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EDUCAÇÃO SUPERIOR MINIMALISTA: A EDUCAÇÃO QUE CONVÉM AO CAPITAL NO CAPITALISMO DEPENDENTE Roberto Leher (UFRJ)* Nações situadas na classe de renda baixa ou médio-baixa [...] devem se limitar a desenvolver a capacidade para acessar e assimilar novos conhecimentos (p.38, grifos nossos). World Bank: La Educación Superior en los países en desarrollo: peligros y promesas, 2000) Embora seja um propósito mais antigo, é a partir de 1994 quando o Banco Mundial publicou o seu já célebre documento “lições derivadas da “experiência” 1 , que as políticas para a educação superior de muitos países latino-americanos, em conformidade com as suas frações burguesas dominantes, passaram a perseguir o objetivo de desconstituir o chamado modelo europeu de universidade. Conforme o Banco Mundial, a indissociabilidade entre ensino e pesquisa e a gratuidade das instituições públicas, os traços mais distintivos deste modelo, seriam anacrônicas com a realidade latino-americana. As estatísticas sobre a natureza das instituições de ensino superior latino-americanas organizadas pela UNESCO e os levantamentos do INEP, no caso brasileiro, confirmam que, de fato, o modelo universitário deixou de ser reivindicado pelos governos locais. Os indicadores confirmam que nas duas últimas décadas ocorreu uma forte diversificação de instituições 2 de ensino superior na região, sobretudo no setor privado. Proliferaram todos tipos de instituições: tecnológicas, isoladas, centros universitários e até mesmo as universidades privadas, em virtude da flexibilização dos critérios para o credenciamento como universidade, são atualmente, via-de- regra, unidades de ensino quase que completamente desvinculadas da pesquisa, nada tendo de emulação humboldtiana 3 . A natureza jurídica dessas instituições e organizações também se alterou, predominando, largamente, instituições com fins lucrativos de natureza empresarial frente às ditas sem fins lucrativos 4 . 1 . WORLD BANK. Higher Education: the Lessons of Experience (1994). 2 O exame das reformas do Estado e da desregulamentação do setor privado evidenciam que muitas universidades seriam melhor definidas como organizações de negócio e não instituições sociais. Marilena Chauí ofereceu uma importante contribuição ao debate em A universidade operacional (Folha de S.Paulo, Caderno Mais, em 9 de maio de 1999).. 3 . Relativo ao modelo apregoado por Humboldt na universidade de Berlim (1809), referenciado na indissociabilidade entre ensino e pesquisa, gratuita e mantida pelo Estado. A instituição nos termos de Humboldt, deveria ser autônoma, possuindo prerrogativa do autogoverno e da autonormação. 4 . Ver: Roberto Leher “A problemática da universidade 25 anos após a ‘crise da dívida’”, Universidade e Sociedade, n. 39, DF: ANDES-SN, 2007.

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Educação Superior minimalista: a educação que convém ao capital no capitalismo dependente

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EDUCAÇÃO SUPERIOR MINIMALISTA: A EDUCAÇÃO QUE CONVÉM AO CAPITAL NO CAPITALISMO DEPENDENTE

Roberto Leher (UFRJ)*Nações situadas na classe de renda baixa ou médio-baixa [...] devem se limitar a desenvolver a capacidade para acessar e assimilar novos conhecimentos (p.38, grifos nossos). World Bank: La Educación Superior en los países en desarrollo: peligros y promesas, 2000)

Embora seja um propósito mais antigo, é a partir de 1994 quando o Banco Mundial publicou o seu já célebre documento “lições derivadas da “experiência”1, que as políticas para a educação superior de muitos países latino-americanos, em conformidade com as suas frações burguesas dominantes, passaram a perseguir o objetivo de desconstituir o chamado modelo europeu de universidade. Conforme o Banco Mundial, a indissociabilidade entre ensino e pesquisa e a gratuidade das instituições públicas, os traços mais distintivos deste modelo, seriam anacrônicas com a realidade latino-americana.

As estatísticas sobre a natureza das instituições de ensino superior latino-americanas organizadas pela UNESCO e os levantamentos do INEP, no caso brasileiro, confirmam que, de fato, o modelo universitário deixou de ser reivindicado pelos governos locais. Os indicadores confirmam que nas duas últimas décadas ocorreu uma forte diversificação de instituições2 de ensino superior na região, sobretudo no setor privado. Proliferaram todos tipos de instituições: tecnológicas, isoladas, centros universitários e até mesmo as universidades privadas, em virtude da flexibilização dos critérios para o credenciamento como universidade, são atualmente, via-de-regra, unidades de ensino quase que completamente desvinculadas da pesquisa, nada tendo de emulação humboldtiana3. A natureza jurídica dessas instituições e organizações também se alterou, predominando, largamente, instituições com fins lucrativos de natureza empresarial frente às ditas sem fins lucrativos4.

A despeito das profundas mudanças nas instituições universitárias públicas, também alteradas pela mercantilização e pela hipertrofia das atividades de serviços, a grande maioria destas instituições seguiu ofertando cursos de graduação plenos, inclusive ampliando o tempo de formação em diversas carreiras.no bojo de longas reformas curriculares A indissociabilidade ensino, pesquisa e extensão, embora nem sempre sistemática, se mantém como uma prática estabelecida nas públicas, por meio de programas como o Programa Especial de Treinamento (CAPES/SESU-MEC), o Programa de iniciação científica (PIBIC/ CNPq), monitorias e mesmo por atividades docentes em que a pesquisa desenvolvida nos programas de pós-graduação repercute nas salas de aula da graduação.

As resistências das universidades públicas aos projetos que pretendem imprimir um caráter aligeirado e massificado sem qualidade têm gerado críticas sistemáticas por parte dos sucessivos governos brasileiros. Todas as políticas de Collor de Mello a Lula da Silva, inclusive, são enfáticas a esse respeito. A acusação mais comum é que as universidades públicas são burocráticas, conservadoras, elitistas e vivem protegidas por uma redoma de vidro que impede que se tornem instituições “integradas” com a sociedade, como se pudesse existir instituição social fora da sociedade!

Mas essa resistência – expressa em atos acadêmicos em prol da concepção universitária e por mobilizações e greves – pode estar sendo quebrada pelas sucessivas medidas adotadas pelo governo Lula da Silva que, diferente de Cardoso, tem obtido apoio mais ativo por parte das administrações universitárias. Em geral, todos os projetos governamentais que pretendiam “harmonizar” os cursos de graduação das públicas com os das privadas, tendo o padrão destas últimas como referência, foram compreendidos como heterônomos e não contaram com o apoio ativo das administrações.

1 . WORLD BANK. Higher Education: the Lessons of Experience (1994).2 O exame das reformas do Estado e da desregulamentação do setor privado evidenciam que muitas universidades seriam melhor definidas como organizações de negócio e não instituições sociais. Marilena Chauí ofereceu uma importante contribuição ao debate em A universidade operacional (Folha de S.Paulo, Caderno Mais, em 9 de maio de 1999).. 3 . Relativo ao modelo apregoado por Humboldt na universidade de Berlim (1809), referenciado na indissociabilidade entre ensino e pesquisa, gratuita e mantida pelo Estado. A instituição nos termos de Humboldt, deveria ser autônoma, possuindo prerrogativa do autogoverno e da autonormação. 4 . Ver: Roberto Leher “A problemática da universidade 25 anos após a ‘crise da dívida’”, Universidade e Sociedade, n. 39, DF: ANDES-SN, 2007.

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A partir do mandato de Lula da Silva a realidade é outra. Projetos que outrora foram apresentados pelo MEC e recusados pelas universidades voltaram à baila, mas agora assumidos como se de autoria das próprias universidades, retirando o MEC do foco do conflito. Assim, diferente dos períodos anteriores em que os embates eram externos à universidade, o que facilitava a unidade da comunidade acadêmica, atualmente, o cerne dos conflitos se volta para dentro das instituições, ampliando o grau de liberdade do governo para levar adiante a sua agenda.

Outro aspecto novo a ser considerado é que setores mais empenhados no “capitalismo acadêmico”5 têm assumido um posicionamento mais ativo, protagônico, nesse processo, justo por vislumbrarem a possibilidade de mais e melhores negócios em uma universidade massificada e aligeirada, em especial por meio de cursos a distância. A este setor se somam docentes que apóiam a contra-reforma como uma tarefa política, por se sentirem comprometidos partidária ou ideologicamente com o governo de Lula da Silva, posicionamento presente em militantes petistas e de outros partidos da base governista (PC do B, PDT, PMDB, PP, PR, PSB), de distintas forças presentes na CUT e na direção majoritária da UNE.

Em que consiste essa reestruturação das universidades federais como instituições que ofertam cursos aligeirados? Quais as medidas que pretendem implementar esse modelo? O que é novo em relação às iniciativas que buscavam implementar cursos de curta duração?

Duas medidas recentes – estreitamente interligadas – têm o objetivo de modificar a forma de graduação, tornando-a mais breve, para que as universidades federais possam ampliar, sem recursos adicionais, a oferta de vagas: o projeto “universidade nova” e o programa de reestruturação das universidades federais (REUNI).

Inicialmente, o artigo analisa a Universidade Nova, por ser um projeto mais detalhado e explícito em relação ao propósito de aligeirar a formação universitária. A seguir, o artigo discute o REUNI, a materialização do projeto universidade nova, estabelecendo, ao final, nexos com o padrão de acumulação em curso no país.

Universidade Nova

O projeto Universidade Nova, apresentado originalmente em um seminário promovido pela UFBa6, pretende promover uma “nova arquitetura curricular” nas universidades, promovendo um ciclo básico, curto, de natureza não profissional, que garantiria aos concluintes um diploma de estudos gerais. A formação profissional seria exclusivamente para os mais aptos a prosseguir em sua formação.

O documento “Universidade Nova: Reestruturação da Arquitetura Curricular na UFBa” doravante denominado Universidade Nova-UFBa, parte da mesma premissa dos documentos do BM e dos teóricos da Escola de Chicago, como Gary Becker, um Nobel neoliberal que pertence a ala direita desta Escola, que afirmam o fracasso do projeto de construção de universidades públicas e gratuitas no Brasil. Nos termos de Becker, manter o modelo europeu (humboldtiano) no Brasil é uma irracionalidade, pois as suas universidades tão somente redescobrem o conhecimento e, ademais, significam subsídios às pessoas erradas (à dita elite).

A partir da construção dessa imagem negativa, os governos neoliberais, a Escola de Chicago e o BM propugnam que, em virtude de seu descolamento com a sua época, a universidade pública precisa

5 . SLAUGHTER, S.; LESLIE, L.L. Academic capitalism: politics, policies and the entrepeneurial university. Baltimore, USA/London, England: The Johns Hopkins University Press (1999).

6 . Em sua atual versão, o projeto Universidade Nova foi divulgado no I Seminário Nacional da Universidade Nova, realizado em Salvador entre 1º e 2 de dezembro de 2006, sob o patrocínio da SESu/MEC e da ANDIFES. O evento tratou dos temas: estrutura curricular do Bacharelado Interdisciplinar (BI), dos Cursos profissionalizantes e da Pós Graduação, modalidades de processo seletivo para o BI e para os Cursos Profissionais, antecedentes históricos da Universidade Nova, modelos de arquitetura acadêmica utilizados no mundo, impacto do projeto Universidade Nova na estrutura administrativa da universidade pública brasileira, dentre outros tópicos. Grupos de trabalho discutiram e sintetizaram as propostas do documento final. O II Seminário Nacional da Universidade Nova realizou-se na Universidade de Brasília – UnB, no Auditório Dois Candangos, no período de 29 a 31 de março de 2007, tendo como tema “Anísio Teixeira e a universidade do século XXI”.

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ser completamente reestruturada: novo aqui significa a rejeição completa do que foi construído no período do pós-Segunda Guerra, no contexto das políticas nacional-desenvolvimentistas em que se forjou, contraditoriamente, um pensamento crítico à ideologia da modernização e do desenvolvimento, crítica esta que supunha que o país desenvolvesse suas universidades para fortalecer a luta contra a heteronomia cultural, cujo expoente máximo foi Florestan Fernandes.

O precioso patrimônio asperamente construído em um intervalo de tempo incrivelmente exíguo, o Brasil foi o último país da América Latina a ter instituições propriamente universitárias, passa ser considerado um estorvo a ser reformulado inteiramente para atender às necessidades de um mercado capitalista dependente que já não estaria demandando formação acadêmico-profissional sólida e longa. Sobressaem as fórmulas bancomundialistas, os esquemas da área de negócios de educação superior estabelecidos pelo processo de Bolonha e da OCDE/ Unesco, almejando a criação de um espaço europeu de negócios educacionais com “competitividade internacional”, o AGCS/OMC e, sobretudo, o modelo aligeirado para os mais pobres nos EUA, os Community Colleges.

Em termos práticos, o projeto UNIVERSIDADE NOVA diagnostica que o problema central das instituições universitárias brasileiras é o “velho recorte disciplinar” que a tornou uma instituição esclerosada, moribunda, inserida em um sistema classificado de "ultrapassado", "condenado" e "arruinado" incapaz de dialogar com as necessidades do tempo presente. A partir dessa consideração, os seus autores concluem que a alternativa mais sensata é adotar o modelo bancomundialista, pincelando aspectos do acordo de Bolonha e carregando nas tintas do modelo dos Community Colleges.

Uma universidade a ser descartada?

A premissa fundamental do projeto Universidade Nova é que o atual modelo universitário é nefasto, gerando uma instituição anacrônica e inviável, especialmente por não ter semelhança com as universidades reformadas pelas políticas neoliberais nos países centrais. É preciso, preliminarmente, examinar esse pressuposto fundamental para seguir examinando os demais fundamentos da proposta.

Os autores do referido projeto partem do que julgam ser uma análise histórica da constituição da universidade brasileira para, a partir do histórico, apresentar um diagnóstico e as supostas alternativas (já contidas na narrativa histórica que é escrita para corroborá-la, uma evidente teleologia). O documento qualifica as universidades federais como híbridas, reunindo o pior do modelo estadunidense e da universidade européia do século XIX. É desconcertante que o documento não considere que, apesar das políticas governamentais, as instituições possuem uma dinâmica própria engendrada pelas contradições do real. A rigor, nenhuma universidade federal se encaixa no diagnóstico da Universidade Nova. Existiram resistências, lutas, greves (qualificadas no documento como inúteis) que impediram que as determinações oficiais fossem implementadas de modo mecânico e absoluto. Ao deixarem de examinar as instituições em suas particularidades, os autores ignoram que existe uma história não governamental que expressa as lutas, tensões e contradições que pulsam em toda instituição universitária.

A análise histórica contida no documento confunde contradição com incoerência. O fato de existir tensões na universidade provocadas por perspectivas distintas de universidade, longe de ser algo negativo é, ao contrário, alvissareiro, pois indica que em um determinado contexto existiram forças criticas ao projeto hegemônico. Para os autores do referido projeto, a existência de forças emancipatórias que reivindicam a dimensão libertária da modernidade é “o” obstáculo a ser removido, pois estas forças criam resistências e arestas à universidade operacional que defendem.

Embora as primeiras instituições propriamente universitárias tivessem sido criadas por frações dominantes com propósitos conservadores – no caso da USP, a afirmação da burguesia paulista frente ao novo bloco de poder que se afirmava sob a liderança de Getúlio Vargas – a vitalidade da universidade produziu contradições muito mais profundas do que supunham os seus criadores. O mesmo efeito aconteceu no período da modernização conservadora do governo empresarial-militar. O fortalecimento da pesquisa e da pós-graduação assumiu contornos muitas vezes distintos do que preconizava o modelo desejado pela ditadura.

Por isso, na segunda metade do século XX, o período em que a maior parte das universidades foi constituída, a função social da universidade não pôde deixar de ser contraditória, produzindo

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majoritariamente conhecimento funcional ao modelo capitalista dependente, mas, embora de forma minoritária, elaborando, também, conhecimento novo, crítico, de alta qualidade que tem contribuído para tornar pensável a formação social brasileira, a agricultura camponesa, a saúde pública, as formas alternativas de energia, os conhecimentos históricos das lutas sociais dos trabalhadores brasileiros etc.

Os autores do projeto em discussão concluem que a universidade existente tem de ser superada a partir de um histórico que, pelo exposto, é sui generis: desqualifica por completo a perspectiva emancipatória que, embora minoritária, parece ser a causa de todos os males. Significativamente, os autores nada falam dos setores mais capitalizados engajados na mercantilização e no empreendedorismo que configuram o capitalismo acadêmico periférico.

Se a universidade que pode dar certo é a universidade operacional (a serviço de um mercado apresentado como virtuoso), como os autores da proposta explicam que o país segue patinando no número de patentes7 e que a presença internacional da ciência brasileira8 tem se dado, sobretudo, na pesquisa básica? O que esses indicadores nos mostram é que, a despeito das políticas que tentam subordinar a universidade ao utilitarismo e ao pragmatismo, a sua vitalidade reside justamente nos domínios em que o fazer acadêmico é mais condizente com a função social de produzir e socializar conhecimento científico e tecnológico do que com a função de ser lócus da pesquisa e desenvolvimento (a chamada inovação tecnológica).

Esses indicadores sobre patentes e produção do conhecimento na universidade não surpreendem os que estudam a base material do país: nações que estão inseridas na economia-mundo de modo capitalista dependente (como o Brasil) não possuem um parque produtivo que requer inovação tecnológica significativa, e não serão as universidades que poderão preencher essa lacuna aberta pelas empresas que atuam apenas em parte da cadeia produtiva ou se valem de tecnologias já consolidadas.

Os autores não explicam igualmente a expansão da pós-graduação brasileira, estruturada a partir dos quase heróicos mestrados (que chegam a ser ridicularizados no documento) há apenas três décadas – uma experiência extremamente bem sucedida, pois ainda hoje é o primeiro momento em que grande parte dos novos professores e pesquisadores faz um trabalho científico completo – tenha alcançado a dimensão do Sistema Nacional de Pós-graduação (em 2003):

Nº de Programas e Nº de Cursos 1.819 / 2.861Doutorado 1020 cursosMestrado Acadêmico 1.726 cursosMestrado Profissional 115 cursosAlunos titulados 35.724

Fonte: CAPES/PNPG (2005-2010)

Mais do que o crescimento das citações internacionais, um indicador em vários sentidos frágil e controvertido, como explicar que uma universidade tida como anacrônica, isolacionista, quase única no

7 . O Brasil perde espaço em inovação tecnológica. Em seu levantamento anual, a Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI) aponta que, entre 2004 e 2005, o número de patentes pedidas no País caiu 13,8%, enquanto em praticamente todo o mundo aumentou. A queda foi a maior entre os 20 principais escritórios de patentes no mundo.Hoje, um quarto de toda a tecnologia disponível no planeta já está nas mãos de apenas três países asiáticos: China, Japão e Coréia do Sul. Jamil Chade, Brasil perde espaço em inovação tecnológica Estadão, 10 de Agosto de 07. Durante a década de 90 verificou-se um crescimento da ordem de 70% nos pedidos de patentes junto ao Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI). Os pedidos passaram de 14.186 em 1990 para 24.572 em 2001. A participação dos residentes nos pedidos de depósito, que pode ser tomada como um indicativo da importância do esforço nacional de inovação, caiu durante toda a década, chegando a atingir, em 1998, a metade do nível de 1991. Antônio Márcio Buainain e Sérgio M. Paulino de Carvalho http://www.inovacao.unicamp.br/anteriores/colunistas/colunistas-amarcio.html. Neste início do século 21, definitivamente, não fomos brilhantes. O USPTO (sigla em inglês do escritório de patentes norte-americano) concedeu-nos, no triênio 2001-2003, 336 patentes, número que caiu para 304 no triênio subseqüente. Ou seja, tivemos uma perda de 10%. Roberto Nicolsky e André Korottchenko. Publicado no Jornal de Brasília, 15/05/2007.

8 . Em 30 anos, o número de trabalhos publicados por pesquisadores brasileiros aumentou exponencialmente de 0,3% para quase 2% de todo o conhecimento científico mundial. Entre as 15 universidades com maior produção científica no momento, 11 cresceram mais de 200% em relação a dez anos atrás (1996-2006), segundo os dados mais recentes da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) (O Estado de S. Paulo, 1/08/2007).

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mundo por seu ecletismo, tem permitido um diálogo tão intenso com os grupos de pesquisa estrangeiros de prestigiosas instituições e a realização de doutorados sanduíches e dos pós-doutoramentos exitosos? Se o sistema fosse tão anacrônico e descolado do que existe nos países centrais, como esses diálogos aconteceriam de modo tão intenso?

O documento tampouco explica como a ciência brasileira foi capaz de produzir conhecimento com amplo reconhecimento internacional, como o uso de soluções hipertônicas no tratamento de choque hemorrágico, uma descoberta que ampliou em cerca de 10% a sobrevida de acidentados com múltiplos fermentos aos serviços de urgência dos hospitais, ou a participação brasileira no Genoma, ou ainda a produção de vacinas contra a hepatite B no Butantan, ou os estudos sobre a fixação de nitrogênio por bactérias associadas com raízes de plantas que permitiram aumentar a produtividade do plantio de feijão em cinco vezes na UFRRJ, ou os estudos sobre as conseqüências do uso de mercúrio no garimpo, pela UFPa, ou os estudos sobre informática desenvolvidos na UFPE ou a prospecção de petróleo em águas profundas pela UFRJ que hoje garante a quase autonomia de combustível fóssil no Brasil9.

A base da infra-estrutura nacional, estradas, portos, pontes, hidrelétricas, petróleo, o conhecimento geográfico, o levantamento da biodiversidade, a produção de sementes adaptadas ao solo e ao clima do país, tudo isso dificilmente teria sido edificado sem os profissionais formados pelas universidades públicas. A avaliação social reiterada no cotidiano de que os melhores professores, enfermeiros, sociólogos, bioquímicos, médicos, agrônomos são provenientes dessas instituições supostamente fracassadas também não é mencionada pelos detratores da universidade pública.

Ao mencionar o elitismo das públicas, os autores ocultam que atualmente as públicas sequer alcançam 20% das vagas disponíveis na educação superior e que a renda familiar dos estudantes das Públicas que estão entre os 20% mais pobres é de cerca de R$ 750,00 e que 75% dos estudantes possuem renda familiar de até R$ 2700,00. Isso seria a elite da Universidade Nova, da Escola de Chicago e do BM? Desconhecem os autores o estudo do IBGE que constata que, apesar de tão reduzida, ainda assim, em todas as situações, a universidade pública é mais democrática do que as privadas: em todos as carreiras a renda média dos estudantes das públicas é menor do que a renda média das privadas?10

Considerando a devastação provocada pela tese de que cada país deve ter uma universidade compatível com as expectativas que o imperialismo tem sobre a sua inserção na economia-mundo – cujo exemplo africano certamente é o mais dramático – que país seria o Brasil sem a sua “arcaica, velhaca, obtusa” universidade pública?

O que realmente querem dizer os elaboradores do projeto Universidade Nova quando dizem que tudo o que foi acumulado historicamente com base em trabalhos tão árduos e penosos é anacrônico e irrelevante? É como se vinte anos de debates sobre a formação de “professores como intelectuais e produtores de conhecimento” fosse apenas motivo de comentários jocosos, lastreados em pressupostos frágeis de Edgar Morin, um autor que se celebrizou por ter sido um operador de políticas neoliberais em seu país, como na reforma da educação tecnológica que, a exemplo da Universidade Nova, aligeirava a formação dos jovens, promovendo um levante da juventude francesa contra o seu modelo, situação finamente criticada por Pierre Bourdieu e que, recentemente, tentou vender o pacote de sua ONG, o Instituto ORUS em associação com o BM, para “reformar e criar uma universidade nova”, dita do Século XXI, no Brasil.

Disciplina e interculturalidade

A discussão prioritária sobre a interculturalidade, o método de construção do objeto, a forma de fazer perguntas e definir os problemas, o problema da unidade do ser e do saber, a unidade das ciências, das técnicas, das artes e das humanidades, em suma, a reflexão a propósito das questões epistemológicas e epistêmicas, ao ser desenvolvida pelos autores da Universidade Nova é dissolvida na fórmula simplista da interdisciplinaridade epidérmica.

9 . A presença da universidade pública. USP, Gabinete do Reitor, 2000.10 . Sobre acesso, ver indicadores muito bem elaborados em José Marcelino Rezende Pinto, Educação e Sociedade, vol. 25, n.88, p.727-754, Especial, Outubro 2004.

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Os seus autores criticam o recorte disciplinar das faculdades, mas sustentam a interdisciplinaridade. Como é possível estabelecer relação entre várias disciplinas em que se divide o saber-fazer humano se a proposta em discussão desqualifica a existência da disciplina e das faculdades? Tudo indica que os autores desconsideram que a expressão disciplina está relacionada ao “propósito de rigor, exatidão que se identificam com a posse de ´um saber´ ou o ´domínio de uma arte ou técnica´ e também com divisões do trabalho intelectual em campos, áreas ou aspectos de um fenômeno. Ao mesmo tempo, (...) disciplina e faculdade evocam os problemas do poder estabelecido e alternativo.”11

A leitura dos documentos da Universidade Nova indica, antes, que o sentido assumido na crítica às disciplinas é o oposto desta expressão: indisciplina, isto é, ausência de rigor e exatidão, relativismo epistemológico, nos termos do pós-modernismo midiático.

A interdisciplinaridade somente pode buscar novas formas de rigor e profundidade se estabelecer real diálogo com problemas bem elaborados e demarcados, pois é a busca do rigor disciplinar que exige combinações e interseções de duas ou mais disciplinas, superando a divisão do trabalho anterior, conferindo novos sentidos para a totalidade12. O abandono do rigor reacende o empirismo vulgar e a celebração do senso comum como saber científico. As ideologias dominantes, com isso, jamais poderão ser questionadas, assegurando a ordem estabelecida como uma ordem natural. É a capitulação ao fim da história.

Baseado no modelo pretendido no Bacharelado Interdisciplinar, a vida acadêmica do estudante será equivalente a do consumidor em um shopping center: os estudantes percorrerão as diversas temáticas como se estivessem diante de vitrines, mas, tal como nesses templos de consumo, nem todos poderão freqüentar as mesmas “lojas” (percursos escolares), posto que, como discutido adiante, alguns domínios estarão reservados aos “vocacionados”. A massa terá de se contentar em adquirir alguma quinquilharia (O Bacharelado Interdisciplinar) em alguma loja de departamento.

Com base nessa noção rala que não enfrenta o debate epistêmico (que saber está sendo produzido? Como esse saber está sendo elaborado?) os piores projetos em curso, como a transposição das águas do Rio São Francisco ou a hidrelétrica do Rio Madeira podem ser concebidos como exemplos bem sucedidos desse enfoque interdisciplinar epidérmico. Se compreendemos a interdisciplinaridade como justaposição de saberes, é indubitável que esses projetos são interdisciplinares, reunindo saberes da engenharia, da física, da metereologia, da hidrologia, da ecologia etc. Mas nem por isso anunciam perspectivas emancipatórias, críticas à colonialidade do saber, referenciadas em estudos desenvolvidos em perspectivas históricas. Essa interdisciplinaridade epidérmica já é uma realidade em quase todos os cursos, o que não altera o peso da razão instrumental que segue guiando os mesmos.

Mas a questão de fundo do projeto Universidade Nova não é o debate epistemológico e epistêmico, mesmo porque estas preocupações inexistem no projeto Universidade Nova. A mal denominada “arquitetura curricular” da Universidade Nova é, sobretudo, uma “reestruturação” gerencial para aumentar a produtividade da universidade, em termos da administração racional do trabalho taylorista. Nesse sentido, o Decreto 6069/07 do MEC (REUNI) é mais honesto: trata-se mesmo de uma reestruturação da universidade. Assim como as empresas viveram reestruturações baseadas na qualidade total, na reengenharia etc, agora é a vez das universidades se ajustarem aos preceitos da economia capitalista dependente.

A questão central do projeto da Universidade Nova, que não pode ser objeto de confusão, é a graduação minimalista com a concessão de diploma, objetivando ampliar o número de estudantes sem contrapartida de recursos e promover um novo e perverso gargalo que tornará a profissionalização um privilégio de poucos “vocacionados”.

As inspirações do modelo

11 . Pablo G. Casanova, interdisciplina e complexidade. In: Casanova, P. G. As novas ciências e as humanidades. SP: Boitempo, 2006, p.13.12 . Idem, p.13.

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Após as críticas à universidade à bolonhesa, as referências a Bolonha13 acabaram ocultadas, em favor de um educador respeitado: Anísio Teixeira, autor de um projeto de educação nacional-desenvolvimentista, que, ao criar a UnB, desenvolveu fundamentos radicalmente distintos dos presentes na Universidade Nova. Embora o projeto da UnB14 previsse um ciclo básico em grandes áreas, seguido de um bacharelado de três anos, perfazendo uma graduação de cinco anos, este projeto foi pensado com os estudantes cursando o ciclo básico em horário integral, em pequenos grupos, acompanhados pari passu por docentes. A meta, em dez anos, era que o número de estudantes por professor fosse de 6:1! A Universidade Nova prevê no ciclo básico (O Bacharelado Interdisciplinar) 80:1 a 40:1. O REUNI 18:1! Obviamente, não há como comparar os termos da UnB com os da Universidade Nova.

A leitura do texto do Documento Universidade Nova: UFBa e do referido artigo do reitor da UFBa não deixam dúvidas de que as referências mais importantes são mesmo as de Bolonha e dos Community Colleges. E isso fica claro não apenas pela adoção do modelo do ciclo básico (o Bacharelado Interdisciplinar) de curta duração, mas de todo o léxico dos textos, estruturado a partir de expressões muito bancomundialistas e muito bolonhesas, a “nova vulgata planetária”15 como: “ciclos”, “mobilidade”, ‘qualidade”, “competitividade”, “flexibilidade”, “empreendedorismo”, “inevitabilidade da transnacionalização”, “globalização”, “sociedade da informação”, “competências genéricas”, “polivalência”, “adaptação ao mercado” etc. Nos termos de Bourdieu e Wacquant (2001), essa vulgata opera a ideologia neoliberal que difunde as ‘disposições de pensamento´ necessárias para a nova ordem: o capitalismo de livre mercado inexorável e irreversível.

Em todo texto está suposto que o mercado é um agente. Quando não é o mercado, os atores que induzem as transformações são não-humanos, inanimados (as novas tecnologias) ou nominalizados (a transformação, a mudança). O ator mais proeminente é o “novo mundo globalizado”. Não há protagonismo humano. A partir desses pressupostos o documento da Universidade Nova conclui que a universidade brasileira está em descompasso com esses “agentes transformadores”. Daí a obsessão com a forma distinta de organização da educação superior brasileira em relação aos países centrais e ao mercado global, um sujeito que requer que a universidade faça os ajustes em conformidade às suas necessidades.

De fato, a localização das IFES fora do padrão de Bolonha ou dos community colleges é provavelmente um dos pontos mais reiterados do documento da Universidade Nova-UFBA, estruturando a crítica à universidade atual e propugnando o ajuste aos referidos modelos sob o risco de “isolamento”, como se não estar com o mesmo formato mercantilizado e “mercadocêntrico” fosse impedir o diálogo da universidade brasileira com os demais centros de produção de conhecimento: “se (...) não aproveitarmos a chance de criar um novo sistema universitário articulado ao que é dominante no mundo o Brasil vai ficar isolado” (citação com ajuste de redação) (Universidade Nova-UFBa, p.13).

A solução miraculosa para esse descompasso é, como visto, a revisão curricular, sem qualquer indicação de alteração nas políticas macroeconômicas do imperialismo que somente mantém empregos precários e de péssima qualidade, sem qualquer menção ao encolhimento da oferta pública, ao congelamento das verbas para a educação federal, ao robusto sistema de subsídios públicos para as instituições privadas-mercantis (PROUNI) e ao problema da propriedade intelectual que opõe as nações centrais e periféricas. É observável ainda a adesão à ideologia de que as pessoas trabalham em áreas distintas de sua formação ou estão desempregadas em função do anacronismo do currículo presente em

13 . O processo de Bolonha propugna a criação de um espaço europeu de educação superior que, na ótica dos que mercantilizam a educação, pode significar um robusto mercado educacional: essa é a expectativa da OCDE-UNESCO que incentiva a difusão do comércio transfronteiriço de educação superior por meio da EAD. O modelo preconizado pelo Relatório Attali, a graduação genérica em três anos, representa a possibilidade de um sistema abreviado e massificado que os mercadores gostariam de ver difundido em toda a Europa. (Roberto Leher “Fast delivery diploma: a feição atual da contra-reforma da educação superior Notas sobre a Universidade Nova”, publicado originalmente no sitio da Carta Maior, espaço de controvérsias)

14 . Plano Orientador da Universidade de Brasília. Ed. UnB, 1962.15 . Bourdieu, Pierre & Wacquant, Loïc 2001 NewLiberalSpeak: notes on the new planetary vulgate. Radical Philosophy, 105, p.2-5. URL: http://www.radicalphilosophy.com/default.asp Access in july, 2003 .

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sua escolarização, uma afirmação que causaria orgulho em Schultz e Becker, dois dos mais importantes ideólogos do capital humano da universidade de Chicago que, em sua época, teriam ficado encantados com seus discípulos brasileiros.

Graduação minimalista para um mercado de trabalho flexível e desregulamentado

Em linhas gerais, a Universidade Nova preconiza a seguinte estrutura: após o invertebrado Bacharelado Interdisciplinar (BI) de 2 a 3 anos (p.18), o estudante ganharia um diploma que o habilitaria a seguir os seus estudos, se aprovado em seleção, conforme o seu perfil “vocacional”:

Aluno(a)s vocacionados para a docência poderão prestar seleção para licenciaturas específicas com mais 1 a 2 anos de formação profissional, o que habilita o aluno(a) a lecionar nos níveis básicos de educação;

Aluno(a)s vocacionados para carreiras específicas poderão prestar seleção para cursos profissionais (p.ex. Arquitetura, Enfermagem, Direito, Medicina, Engenharia etc.), com mais 2 a 5 anos de formação, levando todos os créditos dos cursos do BI;

Aluno(a)s com excepcional talento e desempenho, se aprovados em processos seletivos específicos, poderão ingressar em programas de pós-graduação, como o mestrado profissionalizante ou o mestrado acadêmico, podendo prosseguir para o Doutorado, caso pretenda tornar-se professor ou pesquisador16 (grifos e destaques meus).

Está evidente que essa diferenciação tem como fundamento o padrão de acumulação por despossessão17 que pressupõe níveis de “competência” distintas no mercado de trabalho.

A lógica da Universidade Nova é mesma da de Bolonha. Espera-se aqui uma instituição de ensino superior capaz de servir a demandas de mercado, operando a hierarquia baseada em supostas competências gerais e específicas, lastreando conhecimentos subjetivos que vão separar “os mais talentosos” que terão uma formação mais sólida, da maioria que terá apenas uma formação panorâmica de uma grande área.

No México, por exemplo, o instituto de estudos estatísticos desse país menciona que apenas 10% dos postos de trabalho exigirão formação universitária completa. No Brasil não temos indicadores prospectivos abrangentes, mas, muito provavelmente, não serão muito distintos dos mexicanos.

Essa cisão não é vista como problemática, ao contrário, é celebrada como um ajuste da educação superior ao mercado mundializado: “Um mundo do trabalho marcado pela desregulamentação, flexibilidade e imprevisibilidade não demanda apenas especialistas, mas também profissionais qualificados e versáteis, com competência para atuar em diferentes áreas” (Razões para a reestruturação. In: Universidade Nova: uma nova arquitetura para um novo tempo, UFBA Revista, n.4, 2007). A lógica não poderia ser mais instrumental: como o futuro do trabalho será precário para a grande maioria é preciso “ajustar” as universidades públicas criadas em um contexto de Estado de bem-estar social para o áspero mundo do trabalho flexível e desregulamentado, por isso os ciclos. Claro que o “velho” modelo universitário orientado para o trabalho regulado não cabe mais aqui.

Este mesmo padrão de acumulação requer a diferenciação das instituições de ensino superior mundiais. No caso brasileiro, uma conseqüência do projeto será a conformação das universidades federais em “escolões”, em detrimento da pesquisa acadêmica, tendo em vista que para cumprir o contrato de gestão, discutido adiante, o grosso do corpo docente terá de se empenhar em atender enormes turmas no primeiro ciclo, institucionalizando, ainda mais, o afastamento do modelo humboldtiano de universidade como instituição de ensino e pesquisa, capaz de garantir uma formação ampla, bildung, aos estudantes.

16 . http://www.universidadenova.ufba.br/arquivo/Projeto_Universidade_Nova.doc17 . Bourdieu, Pierre & Wacquant, Loïc 2001 NewLiberalSpeak: notes on the new planetary vulgate. Radical Philosophy, 105, p.2-5. URL: http://www.radicalphilosophy.com/default.asp Access in july, 2003 .

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O modelo preconizado pelo processo de Bolonha não é distinto da formulação bancomundialista e está sendo difundida não apenas na Europa, objetivando o espaço de negócios europeus de educação superior, mas está promovendo o redesenho da educação superior em muitos outros países capitalistas dependentes. A mesma estrutura pode ser encontrada na Guatemala, está em discussão na Argentina e encontra-se em implementação na Romênia e em Portugal. Na Romênia, o ajuste ao processo de Bolonha tem como argumentação central a recusa a especialização excessiva e precoce, buscando uma formação mais geral e ajustada ao mercado de trabalho, assumido, tal como na Universidade Nova, como precário e flexível18.

Não casualmente, em Portugal a Comissão de educação do Parlamento encarregada de examinar o processo de Bolonha sugeriu a sua não implementação, pois essa dinâmica iria aprofundar a condição periférica do país no continente europeu. As principais universidades portuguesas não aderiram justo porque compreendem o modelo como prejudicial à autonomia científico-cultural do país.

As lutas dos estudantes franceses contra o processo de Bolonha expuseram todo o arcaísmo do modelo, pois cerca de 90% dos estudantes não podem alcançar os níveis mais elevados do sistema. Também os estudantes gregos estão em luta contra o modelo bolonhês. Nenhuma dessas resistências é mencionada pelo Documento que se alia aos governos social-liberais na defesa da diferenciação social.

Universidade Nova e o MEC

A pretensão de originalidade do projeto é descabida, pois não apenas em âmbito internacional projetos semelhantes estão sendo implementados em diversas partes do mundo, como, em âmbito local, vem sendo diligentemente encaminhado pelo MEC desde Cardoso. Na proposta do Grupo de Trabalho Interministerial (2003), a idéia era expandir as vagas públicas por Educação a Distância, uma idéia que faz parte do núcleo sólido da política do governo de Lula da Silva e que compunha o cerne da Minuta de Decreto de implementação da Universidade Nova apresentada pelo MEC em março de 2007. O crescimento das matrículas nessa modalidade é inédito e vertiginoso, passando de 28 cursos de graduação em 2003, sendo 70% públicos, equivalendo ao ingresso anual de 21 mil estudantes, para 189 cursos em 2005, 40% deles públicos, correspondendo ao ingresso neste ano de 172 mil estudantes!

Outra idéia força foi a criação de uma graduação em moldes pós-secundários, à semelhança da reforma conservadora do Pacto de Bolonha. A expansão da educação tecnológica, dos centros universitários (2002:70, 2005:120) e das instituições com fins lucrativos (2003: 1600, 2005:1850) comprovam que a expansão aligeirada, uma realidade nas privadas, já vinha sendo incentivada pelos governos.

A idéia de um sistema organizado para ofertar ensino massificado e desvinculado da pesquisa, presente no Projeto GERES19, qualificado como positivo pelo Documento da Universidade Nova20, é sumamente significativa. Distintamente do afirmado no referido documento, o ANDES-SN combateu intensamente o GERES por compreender que o mesmo institucionalizaria um sistema dual nas IFES: alguns poucos “centros de excelência” e muitos “escolões”, perpetuando, assim, as desigualdades sociais e regionais. Também importante é a avaliação do documento (p.12) de que o PL 7200/06 é um avanço, indicando o escopo em que o projeto Universidade Nova está situado.

No âmbito do MEC, os fundamentos do Projeto Universidade Nova estão no Projeto de Lei Orgânica (versão de dezembro de 04) que previa graduação em três anos (Art. 7) e o desmembramento da graduação em dois ciclos, o primeiro deles de “formação geral” (Art. 21). Entretanto, as críticas impediram a concretização desse intento, agora retomado pelo MEC, com apoio de parte da ANDIFES, com a Universidade Nova. A primeira menção explícita pode ser encontrada na Minuta de Decreto Presidencial Plano Universidade Nova de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais Brasileiras (versão de março de 07). A incorporação do princípio da graduação minimalista pelo MEC

18 . Fairclough, N. (2006) Language and Globalization, London: Routledge.

19 . Em novembro de 1985 foi criado o Grupo Executivo para a Reformulação da Educação Superior (Geres). Composto por cinco membros, o Grupo elaborou uma proposta de lei, na qual pretendeu reformular as instituições federais de ensino superior.20 . Universidade Nova - UFBa, p.11.

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é muito importante, pois indica que, enquanto política governamental, o MEC propugna que também as públicas devem se harmonizar com a tendência geral de adequação da educação superior ao mercado capitalista dependente, equiparando públicas e privadas a partir do metro do mercado.

Programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI)

Recentemente, com o chamado PAC da Educação, o governo lançou um conjunto de medidas denominadas de Plano de Desenvolvimento da Educação. No caso da educação superior federal editou o Decreto 6.096/2007 (24/04/07) que “Institui o Programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais” (REUNI) que opera a implementação da universidade nova (incisos II, III e IV do art. 2o do decreto 6.096/2007). O inciso II garante condições para a mobilidade e a “harmonização” dos ciclos básicos, criando um vasto mercado para as privadas que disputarão a absorção dos excedentes do ciclo básico. O Inciso III permite o desenho curricular previsto na Universidade Nova e o IV a diversificação das modalidades de graduação. O Decreto também fixa metas de desempenho a serem alcançadas, em moldes do contrato de gestão de Bresser Pereira: os recursos financeiros serão reservados a cada IFES na medida da elaboração e apresentação dos respectivos planos de reestruturação (Art. 3o):

a) 90% de formados em relação aos ingressantes (Art. 1o, §1o), um índice que não tem paralelo nas comparações internacionais e que somente seria possível com a implementação também na educação superior da aprovação automática e uma agressiva política de assistência estudantil e

b) a meta de relação professor/ estudante que deverá passar dos atuais 12 estudantes por docente para 18 alunos por docente em um prazo de cinco anos. Vale notar que a ANDIFES queria empurrar o cumprimento dessas metas para 10 anos, mas o decreto não acatou o seu pleito. É importante registrar que os números do MEC estão fundamentados em comparações internacionais descabidas (pois não considera que em muitas universidades estrangeiras os docentes podem contar com apoio de doutorandos e assistentes que não compõem o quadro permanente da instituição), ignora a expansão da pós-graduação e a especificidade de áreas.

Toda a lógica de implementação do REUNI está baseada no conceito de contrato de gestão, tal como formulado por Bresser e Cardoso. Os recursos somente serão liberados em função da atendimento de determinadas metas, na melhor tradição bancomundialista, referenciada no léxico próprio do neoliberalismo, já citado.

Nem os recursos previstos na primeira Minuta de Decreto para instituir a Universidade Nova, nem o REUNI agregam montantes significativos de recursos ao orçamento geral das IFES. A previsão da primeira versão era de R$ 3,7 bilhões até 2012 (R$ 625 milhões/ ano), sendo 52 universidades federais, teríamos 12 milhões por ano/ universidade. A versão atual foi mais pragmática, indicando a possibilidade de um montante que não poderá ultrapassar o equivalente a 20% das despesas de custeio e de pessoal (excluindo os aposentados e pensionistas), montante este que será distribuído ao longo de cinco anos (Art 3, parágrafo 1o). Admitindo que todas apresentem planos de adesão ao REUNI, que o MEC trabalhe com o teto de 20% e, ainda, que os 20% serão distribuídos todos os anos, ao longo do período de contrato, grosso modo, o montante seria de aproximadamente R$ 1,12 bi ano, cerca de R$ 21 milhões/ano por instituição que, com esses recursos, terá de arcar com a expansão da infra-estrutura e com as despesas adicionais de pessoal (Art.3, inciso III).

O atendimento do Plano de cada IFES é condicionado à capacidade orçamentária e operacional do MEC (Art.3, §3o), o que pode confirmar um montante inferior a 20%, assim, a hipótese de que as universidades contratem docentes e invistam em infra-estrutura e não recebam os magros recursos adicionais não pode ser descartada. A rigor, com o decreto 6069/07, o MEC não fica obrigado a se responsabilizar com a garantia dos recursos adicionais acordados. Considerando o PAC e o virtual congelamento das despesas correntes da União, essa possibilidade não é pequena. Outro detalhe: a decisão sobre a pertinência ou não do contrato de gestão elaborado pela IFES compete exclusivamente ao MEC.

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Está claro que os parcos investimentos serão direcionados para a função de escolão. As licenciaturas pós BI estarão reservadas a possivelmente um terço ou menos do número de estudantes do BI, abrindo um imenso mercado nas privadas que terão um novo ‘nicho´ de mercado: como a grande maioria dos que concluírem o BI não poderá se licenciar de modo pleno nas públicas, o setor empresarial buscará “captar” parte desses “clientes”.

Esse processo levará a uma renhida disputa dos estudantes por conceitos. Cada colega passará a ser visto como um inimigo em potencial, pois, o estreito funil para as licenciaturas plenas selecionará os estudantes de maior coeficiente de rendimento (ou outro processo de avaliação similar). As lutas estudantis poderão ser duramente atacadas com a quebra da solidariedade e do companheirismo entre os estudantes, cada um concorrente do outro na luta pela formação plena.

Mas a difusão da cizânia não estará restrita aos estudantes em competição pela formação profissional. Como os recursos para a contratação de professores serão liberados em função de “professores-equivalentes”: uma unidade corresponde a um professor doutor com dedicação exclusiva ou a três docentes de 20h e considerando a pressão para dobrar o número de estudantes, é previsível que no futuro próximo se expanda uma nova categoria de professores: os docentes que atuam no escolão. Estes, certamente, terão o caminho para a pesquisa interditado, conformando duas categorias de professores: os docentes que desenvolvem todas as atividades universitárias e os que devem restringir a sua atividade as aulas do Bacharelado Interdisciplinar ou do ciclo básico.

Método de implementação

Novamente, a falsificação do consenso. O MEC não promoveu qualquer debate com a comunidade acadêmica, não escutando os docentes organizados no Andes-SN e tampouco os estudantes autônomos frente ao governo. O debate do MEC com os reitores foi terceirizado por um reitor que serviu de porta-voz dos anseios do governo. A proposição de que a adesão das universidades ao projeto é livre por parte das universidades também contribui para escamotear a ausência de debates. De fato, estranguladas pelo contingenciamento de recursos e pelo virtual congelamento de recursos, mesmo os muito parcos recursos disponibilizados, em tese, pelo MEC são uma forma de constrangimento ou chantagem econômica, pois os recursos adicionais para a infra-estrutura e a possibilidade de realizar concursos a partir de uma definição da própria instituição, um anseio das IFES, somente serão possíveis para as universidades que se ajustarem ao projeto da Universidade Nova-MEC. Essa é a “democracia” dos contratos de gestão.

Se o consenso é falsificado no andar de cima, não surpreende que o mesmo processo esteja acontecendo nas IFES21 que, para cumprirem o apertado calendário do MEC (do esboço ao projeto final em aproximadamente dois meses), estão ignorando o processo democrático que seguramente evidenciaria, a todos os que estão comprometidos com a causa da universidade pública, que a reestruturação é uma reengenharia produtivista que desconstituirá o modelo universitário conquistado na Constituição Federal de 1988.

Universidade Nova e a contra reforma

O projeto Universidade Nova/ REUNI é um ajuste na tática governamental. A política de aligeiramento e de criação de um mercado educacional mais robusto é a mesma, mas a forma contém novidades. O Decreto 6.096/2007 a primeira vista permite um amplo grau de liberdade para instituições, afirmando que as universidades são livres para aderir ou não ao projeto (mas sem aderir não receberão os magros recursos). Em todo processo foi muito difundida a idéia de que a proposta nasceu da livre elaboração das universidades federais, em especial da UFBa e UnB, inspiradas em Anísio Teixeira, situação que não se situação, como visto anteriormente.

O retrospecto das iniciativas de criação de uma graduação mais aligeirada para os pobres é suficientemente longo para comprovar que o mesmo é parte de um padrão de acumulação muito

21 . Roberto Leher, “Metamorfoses na deliberação do Consuni impõem o Reuni como fato consumado na UFRJ”, Jornal da Adufrj, 22 de maio de 2007.

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próprio do imperialismo de hoje, em que os países periféricos e semiperiféricos não ocuparão um lugar relevante na produção de conhecimento e em processos produtivos em que o conhecimento se constitui em vantagem comparativa importante.

Seria um grave erro situar esse projeto como uma peça secundária no processo de contra-reforma em curso, assim como seria um grave equívoco localizá-lo como uma iniciativa de reitores. Assim, as frentes de luta serão mais complexas, tendo de conjugar a luta no âmbito interno as universidades e nas lutas anti-sistêmicas mais amplas.

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