le monde diplomatique

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37 MAIO 2010 Le Monde Diplomatique Brasil O cinema deu um loop e ocupou o espaço expositivo das galerias e dos museus – os filmes, sem começo nem fim, são a projeção cíclica de um instante. Esse cinema nasceu de uma relação artesanal com o fazer cinematográfico. O artista saiu da sala escura, abandonou a narração e foi em busca de sensações imersivas POR GABRIELA GREEB* Sem começo nem fim CINEMA ARTESANAL EXPERIMENTAL. O que é o filme experimen- tal? Até os anos 1960, os filmes costuma- vam ser classificados como ‘‘documen- tários’’ ou ‘‘ficções’’ e não havia muita margem de manobra para sair dessa di- cotomia simplificadora. Mas havia uma produção emergente, em volume cada vez mais expressivo, sobretudo fora do circuito comercial, que em hipótese al- guma cabia nessa classificação obsoleta. Quando Stan Brakhage começa a fazer fil- mes colando asas de borboleta sobre uma película em branco, sem nem sequer obe- decer aos limites do fotograma, já não era mais possível manter impunemente a di- cotomia tradicional. Foi, então, tomado o termo ‘‘experimental’’ para designar esse campo até então excluído do audiovisual. ARLINDO MACHADO in Visionários, Audiovi- sual na America Latina, Itaú Cultural EXPERIÊNCIA VISUAL. Se o cinema desde o início foi experimental ao combinar meios e também ao multiplicar os for- matos de exibição, hoje cada vez mais este sentido original de discussão do seu dispositivo migrou para as experiências visuais, sonoras e sensoriais que encon- tramos nos museus e galerias. KATIA MACIEL in Transcinemas, ed. Contra Capa O CINEMA FORA DA MOLDURA. Ao lado do ci- nema que narra, sempre houve o que não narra. Sempre houve outros cinemas no cinema. O cinema reinventou a narrati- va que havia no teatro e no romance e as vanguardas se apropriaram do cinema de outra maneira, pesquisando a forma na luz e no movimento e desde então o cine- ma e sua máquina foram matéria de arte. Do mesmo modo que a pintura se desloca da moldura o cinema sai da tela e coloca o espectador em movimento. KATIA MACIEL in CINEMA SIM narrativas e projeções, Itaú Cultural CONFLUÊNCIA DE CINEMA, COMPUTADOR E MUSEU. O desenvolvimento das instalações leva a repensar o próprio cinema como instala- ção na longa história dos dispositivos de imagem e som. Desde então, muitas forças conjugaram- se para variar a fórmula única desse dis- positivo, propiciando a entrada das ima- gens em movimento nos espaços da galeria e do museu: o cinema experimen- tal (suas formas múltiplas de expanded cinema), a videoarte (suas fórmulas múl- tiplas de expanded television), seguidos por todas as novas imagens possibilitadas pelo computador, todas as novas técnicas de difusão e projeção de imagens induzi- das pela digitalização (da tela plana ao DVD e à internet). De tal forma que hoje cada instalação parece reinventar, ao sa- bor do dispositivo singular que elabora em cada caso, seu próprio cinema, abrir- se sobre a virtualidade propriamente infi- nita de “outro cinema”. A PROJEÇÃO NÃO TEM SENTIDO, NEM COMEÇO, NEM FIM, POIS PASSA EM LOOP, e porque o vi- sitante apressado só perceberá dela um fragmento indistinto. Mas ele também pode se tornar um espectador pensativo, desde que tenha esperado minimamente até um fim que marque um breve tempo de parada, ou até que algo faça sentido para ele. (...) A circularidade, princípio de projeção da maioria dos DVDs, cria a pro- jeção de um instante. Essa repetição cícli- ca termina por criar uma imagem-fluxo, um outro-tempo. RAYMOND BELLOUR in CINEMA SIM narrati- vas e projeções, Itaú Cultural MAIS DO QUE UM SIGNIFICADO, BUSCA-SE A SEN- SAÇÃO, a sensorialidade contra o sentido; prevalece a adulação dos sentidos, mais do que a complexidade dramatúrgica, que dificilmente se realiza quando o cor- po do espectador está em movimento, não cativo em uma poltrona. Portanto, o efeito cinema se confunde com um efeito plástico, ao menos com o que supomos ser sensorial num efeito plástico. CINEMA EXPANDIDO É A AMPLIAÇÃO E MULTI- PLICAÇÃO DO ESPAÇO DA TELA. O espectador móvel tem uma visão variável do tama- nho da tela e a possibilidade de entrar na imagem. Para ele, os artistas desaceleram ou aceleram a imagem e transformam o projetor em uma espécie de lupa do tempo (zeitlupe) que permite que se veja de perto, no detalhe. (...) Pode-se expor o tempo? A matéria tempo se expõe? DOMINIQUE PAÏNI in CINEMA SIM narrativas e projeções, Itaú Cultural *Gabriela Greeb é cineasta e autora de trabalhos audiovisuais em diversos formatos. Realizou o lon- ga metragem documentário “A Mochila do Mas- cate – Gianni Ratto”, a videoinstalação “Triptico” (fotos), e outros. É diretora da produtora indepen- dente Homemadefilms.

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Ensaio sobre cinema expandido

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37 MAIO 2010 Le Monde Diplomatique Brasil

O cinema deu um loop e ocupou o espaço expositivo das galerias e dos museus – os filmes, sem começo nem fim, são a projeção cíclica de um instante. Esse cinema nasceu de uma relação artesanal com o fazer cinematográfico. O artista saiu da sala escura, abandonou a narração e foi em busca de sensações imersivasPOR GABRIELA GREEB*

Sem começo nem fimCINEMA ARTESANAL

EXPERIMENTAL. O que é o filme experimen-tal? Até os anos 1960, os filmes costuma-vam ser classificados como ‘‘documen-tários’’ ou ‘‘ficções’’ e não havia muita margem de manobra para sair dessa di-cotomia simplificadora. Mas havia uma produção emergente, em volume cada vez mais expressivo, sobretudo fora do circuito comercial, que em hipótese al-guma cabia nessa classificação obsoleta. Quando Stan Brakhage começa a fazer fil-mes colando asas de borboleta sobre uma película em branco, sem nem sequer obe-decer aos limites do fotograma, já não era mais possível manter impunemente a di-cotomia tradicional. Foi, então, tomado o termo ‘‘experimental’’ para designar esse campo até então excluído do audiovisual. ARLINDO MACHADO in Visionários, Audiovi-

sual na America Latina, Itaú Cultural

EXPERIÊNCIA VISUAL. Se o cinema desde o início foi experimental ao combinar meios e também ao multiplicar os for-matos de exibição, hoje cada vez mais este sentido original de discussão do seu dispositivo migrou para as experiências visuais, sonoras e sensoriais que encon-tramos nos museus e galerias. KATIA MACIEL in Transcinemas, ed. Contra Capa

O CINEMA FORA DA MOLDURA. Ao lado do ci-nema que narra, sempre houve o que não narra. Sempre houve outros cinemas no cinema. O cinema reinventou a narrati-va que havia no teatro e no romance e as vanguardas se apropriaram do cinema de outra maneira, pesquisando a forma na luz e no movimento e desde então o cine-ma e sua máquina foram matéria de arte.Do mesmo modo que a pintura se desloca da moldura o cinema sai da tela e coloca o espectador em movimento. KATIA MACIEL in CINEMA SIM narrativas e

projeções, Itaú Cultural

CONFLUÊNCIA DE CINEMA, COMPUTADOR E MUSEU. O desenvolvimento das instalações leva a repensar o próprio cinema como instala-ção na longa história dos dispositivos de imagem e som.Desde então, muitas forças conjugaram-se para variar a fórmula única desse dis-positivo, propiciando a entrada das ima-gens em movimento nos espaços da galeria e do museu: o cinema experimen-tal (suas formas múltiplas de expanded cinema), a videoarte (suas fórmulas múl-tiplas de expanded television), seguidos por todas as novas imagens possibilitadas pelo computador, todas as novas técnicas

de difusão e projeção de imagens induzi-das pela digitalização (da tela plana ao DVD e à internet). De tal forma que hoje cada instalação parece reinventar, ao sa-bor do dispositivo singular que elabora em cada caso, seu próprio cinema, abrir-se sobre a virtualidade propriamente infi-nita de “outro cinema”.

A PROJEÇÃO NÃO TEM SENTIDO, NEM COMEÇO, NEM FIM, POIS PASSA EM LOOP, e porque o vi-sitante apressado só perceberá dela um fragmento indistinto. Mas ele também pode se tornar um espectador pensativo, desde que tenha esperado minimamente até um fim que marque um breve tempo de parada, ou até que algo faça sentido para ele. (...) A circularidade, princípio de projeção da maioria dos DVDs, cria a pro-jeção de um instante. Essa repetição cícli-ca termina por criar uma imagem-fluxo, um outro-tempo. RAYMOND BELLOUR in CINEMA SIM narrati-

vas e projeções, Itaú Cultural

MAIS DO QUE UM SIGNIFICADO, BUSCA-SE A SEN-SAÇÃO, a sensorialidade contra o sentido; prevalece a adulação dos sentidos, mais do que a complexidade dramatúrgica, que dificilmente se realiza quando o cor-

po do espectador está em movimento, não cativo em uma poltrona. Portanto, o efeito cinema se confunde com um efeito plástico, ao menos com o que supomos ser sensorial num efeito plástico.

CINEMA EXPANDIDO É A AMPLIAÇÃO E MULTI-PLICAÇÃO DO ESPAÇO DA TELA. O espectador móvel tem uma visão variável do tama-nho da tela e a possibilidade de entrar na imagem. Para ele, os artistas desaceleram ou aceleram a imagem e transformam o projetor em uma espécie de lupa do tempo (zeitlupe) que permite que se veja de perto, no detalhe. (...) Pode-se expor o tempo? A matéria tempo se expõe? DOMINIQUE PAÏNI in CINEMA SIM narrativas

e projeções, Itaú Cultural

*Gabriela Greeb é cineasta e autora de trabalhos audiovisuais em diversos formatos. Realizou o lon-ga metragem documentário “A Mochila do Mas-cate – Gianni Ratto”, a videoinstalação “Triptico” (fotos), e outros. É diretora da produtora indepen-dente Homemadefilms.