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    O SIGNIFICADO DA CONVENÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS DAS CRIANÇAS1 

     Prof. Luis de la MoraConsultor do UNICEF junto ao INAC-Angola

    04 de Agosto, 2000

    CONTEXTO HISTÓRICO EM QUE A CONVENÇÃO É ELABORADA E RATIFICADA

     A década que está para terminar faz a transição entre o século XX e o século XXI. Mas estatransição na é apenas cronológica, ela é principalmente uma transição de atitudes emrelação às crianças e aos adolescentes.

    O século XX, de acordo com Eric Hobsbawn, na sua obra A ERA DOS EXTREMOS, éconsiderado “o século breve”. Ele começou atrasado com a Primeira Grande Guerra e com aRevolução Russa e terminou antes de tempo com a queda do Muro de Berlim e aglobalização.

     Assim a presente década chega como um “período tampão” entre um século que já terminoue outro que ainda não começou. Um tempo fecundo para o surgimento de novas tendências

    que virão preparar a chegada de um novo século e de um novo milénio.É uma década de transição de forma notável no que diz respeito aos direitos humanos deforma geral e aos direitos das crianças em particular. Estamos vivendo um complexo e muitorico período de transição.

    Se não vejamos: No plano económico a globalização dos mercados, das ideias, doscostumes avança pelo mundo todo. Do ponto de vista tecnológico, está surgindo um novomundo pós-industrial, onde a informação assume o protagonismo. No campo político, umanova ordem pós-guerra fria vai rapidamente delineando seus contornos. No plano sócio-cultural, a pós-modernidade vai se afirmando.

    Do ponto de vista dos direitos, a década de noventa registrou importantes avanços. A ONUassumiu um papel protagonístico neste campo ao organizar diversos mega-eventos que vemfechar o século XX e começam a iluminar o século XXI.

    1990 Conferência Mundial sobre Educação para Todos, Jomtiem, Tailandia

    1990 Conferência de Cúpula sobre os Direitos das Crianças.

    1992 Conferência de Cúpula sobre o Meio Ambiente, Rio de Janeiro

    1993 Congresso Mundial de Direitos Humanos, Viena

    1994 Conferência sobre População e Desenvolvimento, Cairo

    1995 Conferência sobre o Desenvolvimento Social, Copenhage.

    Conferência sobre os Direitos da Mulher, Pekim

    1996 Conferência sobre Assentamentos Humanos, Istambul

    1997 Evento mundial sobre a Fome. FAO, Roma

     Assim, os avanços em termos de normativas internacionais, registrados no campo dosdireitos das crianças inserem-se dentro de um contexto mais amplo de procurarenfaticamente constituir as bases da plenitude da cidadania para todos.

    Com efeito, os direitos humanos, base da cidadania, ou se gozam na sua integridade ousimplesmente não se gozam. A integridade considerada em dois sentidos: direitos humanospara todos os grupos, e todos os direitos. Nenhum grupo pode exercer sua cidadania emplenitude se outro grupo não goza de direitos, assim como ninguém pode ser cidadão doponto de vista ambiental e não ser cidadão do ponto de vista educacional.

    1 Publicado pelo Instituto Nacional da Criança  –  Luanda, Angola, Julho 2000.

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     Assim percebemos que amplos segmentos no mundo estão a pensar o século XXI comoaquele em que a humanidade, finalmente, enfrenta com determinação a possibilidade daconstrução de uma vida digna para todos.

    Para que isto ocorra, no entanto, exige-se uma opção política dos países, dos governos, dassociedades nacionais, dos empresários, das ongs, das organizações sociais e comunitárias edos próprios indivíduos em particular, no sentido de engajar-se na luta pela transformaçãoprodutiva com equidade social.

     Angola tem um projecto de desenvolvimento económico. A área económica do governo actuade forma concertada na implementação das medidas necessárias para a execução desseprojecto, até porque as determinações económicas geram impactos em todos os sectores daeconomia: comercio exterior, preços, inflação, poder de compra, salários, etc.

     Angola tem uma clara agenda para a transformação produtiva: a agenda das reformasestruturais destinadas a promover as condições que possibilitem a sua reabilitaçãoeconómica e sua inserção competitiva numa economia internacional em acelerado eirreversível processo de globalização.

    O mesmo não ocorre na área social do governo. Os investimentos neste sector sãoinsuficientes para promover a equidade sociais. E por outra parte cada sector age de forma

    desarticulada, em parte devido a que os efeitos sociais das medidas tomadas se manifestamde forma menos rígida nos outros sectores sociais.

     A transformação produtiva está em curso, tem um projecto. A implantação da equidade socialnão avança nem tem projecto.

    Este quadro precisa ser revertido para que Angola possa entrar de cabeça erguida no séculoXXI. Não se trata, de propor ingenuamente que, magicamente, de forma imediata, o paísreverta seus indicadores sociais negativos. O que se faz necessário neste momento é que Angola, assuma consigo mesma o compromisso ético de implantar uma tendência mais firmee determinada nesta direcção.

    É preciso pois, uma opção política pelo desenvolvimento da equidade social. As reformaseconómicas, encaradas de per si, tendem a impactar de forma perversa as conquistas

    sociais, gerando e acirrando desigualdades intoleráveis, seja entre as nações, seja entre aspessoas no interior de cada nação.

     Além de uma nova política  –transformação produtiva com equidade social, Angola precisa deuma nova ética em relação aos grupos mais vulneráveis da sociedade: as crianças comnecessidades de protecção especial, os portadores de deficiências físicas e mentais, muitasdelas provocadas pela guerra e pelos altos níveis de pobreza, a terceira idade desamparada,as populações directamente afectadas pela guerra, e tantas outras categorias que sofrem asamargas consequências do conflito armado associado à crise económica mundial.

     Assim como as velas, a agenda da transformação produtiva também é empurrada pelosventos que sopram pelo mundo afora e não apenas pela vontade política e a determinaçãodos angolanos. Da mesma forma, a agenda da equidade social deverá ser construída a partirda vontade dos angolanos encorajada pelas declarações e planos que emanam de cada

    grande evento internacional, no campo dos direitos humanos.O cumprimento da Convenção dos Direitos da Criança em Angola representa uma parteimportante do esforço de uma Nação, que luta por construir a paz e a reconciliação nacional,para acertar o passo com a comunidade internacional em termos de direitos humanos.

     As idas e vindas, os altos e baixos, os caminhos e os descaminhos da sua implementaçãonos dão uma boa imagem, de como, enquanto Estado e sociedade civil, estão os angolanosse saindo no esforço de promover a paz e a cidadania das crianças que são o futuro do país.

     A Paz é boa para a criança, assim como a criança é boa para a Paz. O cumprimento daConvenção deverá mostrar como estas duas afirmações são verdadeiras.

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    O SIGNIFICADO REVOLUCIONÁRIO DA APLICAÇÃO DA CONVENÇÃO

     A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança mas que regulamentar asconquistas em favor da criança promove um importante conjunto de revoluções queextrapola o campo jurídico desdobrando-se e envolvendo outras áreas da realidade política esocial do País.

     A primeira – e quiçá a mais importante dessas revoluções, porquanto dela fluem as demais  – foi a da concepção da criança como sujeito de direitos, pessoa em condição peculiar dedesenvolvimento e em condições de receber cuidados especiais com prioridade absoluta.

    Esta nova concepção rompeu definitivamente com o enfoque da doutrina da situaçãoirregular, levando à sua superação, tanto no campo dos procedimentos jurídicos, como no daestrutura e funcionamento das políticas públicas.

    Conceber a criança como sujeito de direitos, o que significa que não é mais apenas alguémque precisa de assistência, mas que é portadora de direitos e que tem alguém que éresponsável pelo seu respeito.

     Assim a criança não é mais um simples objecto de intervenção jurídica ou social por parte dasua família, da comunidade, da sociedade ou do Estado. Isto equivale a superar a concepção

    assistencialista que considera a criança simplesmente como portadora de necessidades.Passamos pois “das necessidades aos direitos” da política de assistência para a promoçãoda cidadania. Esta é a pedra angular do novo direito da criança que a Convenção vem aintroduzir no marco legal angolano e no sistema de promoção das políticas públicas.

     A promoção da assistência social insere-se a partir da Convenção no projecto mais amplo daconstrução da cidadania, do usufruto dos direitos, de todos os direitos na sua plenitude. Assim a assistência social deixa de ser uma actividade fim, para ser assumida comoactividade meio. Assistir para criar condições da própria criança e sua família superarem assituações de vulnerabilidade. Assistir a família para que ela possa assumir o plenodesenvolvimento das crianças.

     Assim passamos das necessidades aos direitos, da assistência para a construção dacidadania.

    Na visão anterior, a criança era objecto, os sujeitos protagonistas eram (e ainda são de formamuito frequente) os órgãos públicos e as organizações não governamentais. A criança éconsiderado apenas um número numa estatística para demostrar que os protagonistas  – asorganizações, são muito eficientes e competentes.

    Esta visão leva a uma concorrência desenfreada entre órgãos do governo, e entre estes e asONGs. Cada um querendo “controlar um maior numero de carentes assistidos” . Assim ascrianças são rotuladas: criança de tal programa, ou de tal grupo. Como se a criança fosse umobjecto que pertencesse ao sujeito que é a própria instituição.

     A nova visão, de criança como sujeito de direitos, provoca uma conseqüência revolucionária:o governo e as organizações não são mais que simples instrumentos para ajuda-la aconstruir sua cidadania. Na qualidade de instrumentos perdem o protagonismo que passa aser da criança. Não é mais a criança que pertence a tal programa, é o programa quepertence a criança.

     A perda do protagonismo das instituições provoca uma outra grandiosa revolução. Quandoas instituições públicas ou privadas eram tidas como protagonistas, a desconfiança e aconcorrência entre elas é o tipo mais comum de relação. Cada uma quer ser mais importantee melhor que a outra. No novo modelo, inserido nos princípios imanentes da Convenção, nomomento que as instituições são instrumento e objecto de promoção e defesa dos direitos dacriança, e que esta é colocada no centro de convergência das actividades das instituições,onde cada uma delas contribui com uma parcela na obra grandiosa da plenitude dos direitosda criança, as relações de concorrência e competição vão gradualmente sendo substituídaspor relações de colaboração e ajuda mútua.

    O conceito da criança como pessoa em condição peculiar de desenvolvimento complementade forma magnífica a conceição de sujeito de direitos. A fragilidade física e psicológica dacriança faz com que seja portadora de necessidades especiais. Ela goza de todos os direitosdos adultos, e mais alguns, decorrentes da sua situação de pessoa em processo de

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    desenvolvimento. De aqui decorre a prioridade absoluta que o Governo, a Sociedade, aComunidade e a própria família devem conferir as acções em favor da criança.

     A Convenção traz uma revolução no conteúdo dos princípios e das práticas pedagógicas emfavor das crianças.

    Traz também uma revolução no método manifesta em duas conquistas básicas: a primeira,

    foi a introdução das garantias processuais no relacionamento da criança a qual se imputauma infracção penal com o sistema de administração de justiça. Ela tem direito a assistência jurídica, a tomar conhecimento da acusação que pesa sobre ela, e tem direito aocontraditório e a ampla defesa.

     A segunda revolução no método decorre da superação da visão assistêncialista. A criançanão está mais a mercê da boa vontade e dedicação da família, da sociedade ou do Estado.Seus direitos são agora exigíveis com base na lei, podem levar aos tribunais os responsáveispelo seu não atendimento ou desrespeito.

     A revolução na gestão reside no facto da Convenção ter introduzido uma nova visão naforma de se relacionarem as instituições governamentais entre si, e entre estas e asorganizações da sociedade civil.

    Com efeito, se a doutrina da protecção integral exige que sejam desenvolvidas acções denatureza diferente e de carácter complementar. E este leque amplo de acções não pode serdesenvolvido por uma única instituição dado seu carácter complexo, isto exige a necessidadede articulação das acções entre as diferentes áreas do Governo e entre este e as ONGs.

     A trajectória das instituições angolanas nos últimos anos tem trilhado este caminho. Osgrupos de discussão e de articulação, as redes que tem se formado e estão em processo dese desenvolver e consolidar são um testemunho desta vontade.

     A própria determinação do Governo Angolano de criar, primeiro uma Comissão e depois umInstituto Nacional da Criança demostra esta tendência.

     A realização da Conferência Nacional da Assistência, processo longo, de vários anos, que apartir dos grupos temáticos da análise da situação da criança angolana promovidos peloUNICEF em 1997 e 1998 vieram culminar no Grupo Temático “Crianças com Necessidadesde Protecção Especial” da Conferência, cujas conclusões e recomendações estão sendotraduzidas em instrumentos legais e administrativos, através da Lei de Base da AssistênciaSocial e da elaboração de um Plano Nacional de Assistência Social que venha a conter asconclusões e recomendações do Grupo Temático da Conferência.

    No estudo preliminar do Ange-projecto de Lei de Base está sendo cogitada ainstitucionalização da gestão articulada da política de defesa dos direitos da criança,congregando os principais Ministérios envolvidos na promoção das políticas sociais básicas,de assistência social e de defesa dos direitos, além dos seus principais parceirosinstitucionais entre as Agências das Nações Unidas e as ONGs.