lars von trier - sound design

21
Laura Loguercio Cánepa [email protected] Doutora em Mul meios pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Docente no curso de Graduação em Cinema e Audiovisual da Universidade Anhembi Morumbi. Rodrigo Carreiro [email protected] Mestre e Doutor em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Coordenador do Bacharelado em Cinema e Audiovisual da UFPE. Câmera intradiegéca e maneirismo em obras de George A. Romero e Brian De Palma Intra-diegec camera and mannerism in films by George A. Romero and Brian De Palma CÁNEPA, Laura Loguercio; CARREIRO, Rodrigo. Câmera intradiegética e maneirismo em obras de George A. Romero e Brian De Palma. In: Revista Contracampo, v. 31, n. 1 , ed. dezembro-março ano 2014. Niterói: Contracampo, 2014. Págs: 101-121. DOI: 10.5327/Z22382577201400310673 Enviado em: 03 de jul. de 2014 Aceito em: 19 de out. de 2014 Edição 31/2014 Transmidiação e cultura participativa Contracampo e-ISSN 2238-2577 Niterói (RJ), v. 31, n. 1, dez-mar/2014 www.uff.br/contracampo A Revista Contracampo é uma revista eletrônica do Programa de Pós- Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense e tem como objetivo contribuir para a reflexão crítica em torno do campo midiático, atuando como espaço de circulação da pesquisa e do pensamento acadêmico. Ao citar este artigo, utilize a seguinte referência bibliográfica

Upload: rodrigo-carreiro

Post on 28-Sep-2015

49 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

ensaio de análise filmica

TRANSCRIPT

  • Laura Loguercio [email protected]

    Doutora em Multi meios pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Coordenadora do Programa de Ps-Graduao em Comunicao e Docente no curso de Graduao em Cinema e Audiovisual da Universidade Anhembi Morumbi.

    Rodrigo Carreiro [email protected]

    Mestre e Doutor em Comunicao pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor do Programa de Ps-Graduao em Comunicao e Coordenador do Bacharelado em Cinema e Audiovisual da UFPE.

    Cmera intradiegtica e maneirismo em obras de George A. Romero e Brian De Palma

    Intra-diegetic camera and mannerism in films by George A. Romero and Brian De Palma

    CNEPA, Laura Loguercio; CARREIRO, Rodrigo. Cmera intradiegtica e maneirismo em obras de George A. Romero e Brian De Palma. In: Revista Contracampo, v. 31, n. 1 , ed. dezembro-maro ano 2014. Niteri: Contracampo, 2014. Pgs: 101-121.

    DOI: 10.5327/Z22382577201400310673 Enviado em: 03 de jul. de 2014 Aceito em: 19 de out. de 2014

    Edio 31/2014Transmidiao e cultura participativa

    Contracampo e-ISSN 2238-2577Niteri (RJ), v. 31, n. 1, dez-mar/2014www.uff.br/contracampo

    A Revista Contracampo uma revista eletrnica do Programa de Ps-Graduao em Comunicao da Universidade Federal Fluminense e tem como objetivo contribuir para a reflexo crtica em torno do campo miditico, atuando como espao de circulao da pesquisa e do pensamento acadmico.

    Ao citar este artigo, utilize a seguinte referncia bibliogrfica

  • ResumoEm 2007, George A. Romero e Brian De Palma

    realizaram experimentos de fico com o

    uso do recurso ao qual chamaremos neste

    artigo de cmera intradiegtica, que consiste

    na construo de narrativas audiovisuais

    atravs de registros feitos pelos personagens

    ou por dispositivos pertencentes ao universo

    ficcional. Os longas Dirio dos mortos e

    Guerra sem cortes, de Romero e De Palma,

    respectivamente, converteram-se em marcos

    para o cinema de fico construdo a partir desse

    recurso, justamente no ano em que aumentou

    massivamente a quantidade de filmes que

    adotaram a cmera intradiegtica, originando

    um filo de cinema de aventura e horror que

    ficaria conhecido como found footage por usar,

    na maioria das vezes, a premissa do registro

    encontrado para justificar a incorporao

    dos equipamentos de captao narrativa.

    Neste artigo, sugerimos observar esse recurso

    como uma abordagem maneirista na fico

    contempornea, que tem, nas obras de Romero

    e De Palma, exemplos fundamentais.

    Palavras-chave: cmera intradiegtica; found footage; Maneirismo; George A.

    Romero; Brian De Palma.

    Abstract In 2007, George A. Romero and Brian De

    Palma conducted experiments in fiction

    feature film with the use of the resource

    that we will call intra-diegetic camera,

    which consists in the construction of

    audiovisual narratives through footage

    made by characters or devices within the

    fictional universe. The feature films Diary

    of the dead and Redacted, made by

    Romero and De Palma, respectively, have

    become landmarks for fiction cinema built

    from this resource, in the very same year

    in which the number of movies made with

    intra-diegetic cameras became massive,

    creating a trend of adventure and horror

    films that got known as found footage for

    using, in most cases, the premise of found

    register to justify the incorporation of

    recording devices inside the narrative tissue.

    In this article, we try to read this resource

    as a mannerist approach in contemporary

    fiction, which has, in the works of Romero

    and De Palma, prime examples.

    Keywords: intra-diegetic camera; found footage; Mannerism; George A. Romero;

    Brian De Palma.

    102

  • Introduo

    Filmes de fico codificados como found footages (ou filmes encontrados), frequentemente devedores ao estilo documental, constituem hoje um fenmeno massivo de produo e consumo cinfilo no campo do cinema de horror e aventura. A soluo narrativa

    do documentrio encontrado usada em enredos de fico1, e trabalhada em lanamentos

    esparsos que comearam a ocorrer nos anos 1970, teve seu potencial miditico intensificado

    na virada do sculo, aps o sucesso massivo de A Bruxa de Blair (The Blair Witch Project,

    Daniel Myrick e Eduardo Snchez, 1999), filme que trazia registros alegadamente reais do

    material captado por trs jovens desaparecidos durante as filmagens de um documentrio.

    No entanto, apesar da grande bilheteria e da ateno recebida nos meios jornalstico e

    acadmico, alguns anos se passaram at que a ideia do filme encontrado constitusse uma

    prtica estilstica regular no cinema de fico.

    O momento crucial para esse fenmeno parece ter ocorrido ao longo do ano de 2007.

    No intervalo de oito anos entre a capa que a revista Time dedicou ao filme de Snchez e

    Myrick e a temporada cinematogrfica de vero de 2007, um nmero razovel de fices

    feitas a partir de falsos registros de documentaristas ganhou as telas. Entre elas, esto

    o thriller britnico The last horror movie (Julian Richards, 2003), o horror japons

    Noroi (Kji Shiraishi, 2005), o drama dinamarqus Offscreen (Christopher Boe,

    2006) e o falso documentrio estadunidense Poughkeepsie tapes (John Erick Dowdle,

    2007). Esses filmes, entretanto, ainda no constituam um estilo consolidado de filmagem.

    Ento, em 2007, assistiu-se produo de um nmero muito maior de longas-metragens

    ficcionais codificados como found footage, incluindo trs ttulos que alcanaram grande

    repercusso. Todos eles deixaram em segundo plano os recursos de estilo do documentrio,

    dando mais ateno s captaes ditas acidentais e esttica amadora, transformando-se em

    referncias obrigatrias para a produo que viria depois: o espanhol [Rec] (Paco Plaza e

    Jaume Balaguer, 2007), que trazia o material deixado por uma equipe de TV surpreendida

    por uma praga de zumbis; o filme de monstro Cloverfield (Matt Reeves, 2008), produo

    hollywoodiana que se propunha como um vdeo amador feito por um jovem estudante; e

    1 Evitamos usar o termo mockumentary, pois o uso de recursos do documentrio parece ter, nesses filmes, o objetivo apenas de justificar a presena de equipamentos de captao ao alcance das personagens.

    103

  • o primeiro ttulo da franquia Atividade paranormal2 (Oren Peli, 2007), suposto registro

    caseiro feito por um casal para investigar fenmenos sobrenaturais.

    A boa receptividade do pblico e os lucros obtidos por esses ttulos poderiam explicar

    o aumento na produo e circulao de filmes de fico que, como eles, foram codificados

    como found footage. H, contudo, outras variveis. Elas incluem o baixo custo de produo

    (pois no necessrio construir cenrios ou pagar cachs a estrelas, j que esse tipo de fico

    funciona to melhor quanto mais comum for sua aparncia e menos conhecidos forem seus

    atores), a proliferao de dispositivos de registro de imagem e som em alta definio e toda

    uma cultura audiovisual que combina o consumo regular de vdeos amadores e a exposio

    da intimidade, atravs de plataformas multimdia e da disseminao de reality shows.

    Tudo isso sugere que a consolidao do falso found footage consiste de uma das

    muitas faces de um fenmeno cultural amplo, que tem sido examinado por pesquisadores

    a partir de diferentes abordagens tericas (ODIN, 1995; FELDMAN, 2008; BRASIL;

    MIGLIORIN, 2010). A ressignificao de filmes de famlia, o uso de vdeos disponveis na

    Internet dentro de trabalhos audiovisuais, a popularidade de imagens amadoras, os fenmenos

    miditicos nascidos de vdeos caseiros postados no YouTube, a forte e crescente tendncia

    da aceitao de (e at mesmo preferncia por) imagens que contenham erros tcnicos e

    a espetacularizao de imagens e sons da intimidade constituem temas que integram um

    debate mais amplo sobre novos regimes de visualidade que privilegiam imagens amadoras.

    Esses novos regimes de visualidade, portanto, ajudaram os found footages ficcionais a

    cair nas graas de cineastas de todo o planeta, em pases to diferentes como ndia, Noruega,

    Costa Rica, Alemanha, Argentina, Turquia, Austrlia, Srvia, Mxico, Blgica, Japo e

    EUA. O tamanho do fenmeno impressiona: uma consulta a listas publicadas por usurios

    do site Internet Movie Database torna possvel confirmar o lanamento, desde 2007, de pelo

    menos 360 ttulos de fico found footage a maioria deles, de horror. Alm deles, tambm

    recorreram a essa estratgia pelo menos quatro minissries de TV, entre elas, Lost tapes

    (2009), do canal Animal Planet; quatro jogos eletrnicos populares, inclusive Slender: the

    eight pages (2012) e um grande nmero de websries populares no YouTube, como Marble

    hornets (20122014) e Mr. Creepypastas story time (20122014).

    2 O filme circulou em festivais at ser lanado comercialmente em 2009, quando se tornou fenmeno de bilheteria, originando uma franquia hoje com cinco episdios.

    104

  • Desde 2007, portanto, o found footage de fico tem sido combatido e celebrado

    em diversos crculos de crticos, pesquisadores e cinfilos. A abordagem dominante desses

    debates associa os filmes a um novo gnero ou subgnero flmico. Nesse sentido, estaria

    prximo da noo de gnero flmico adjetivo, conforme proposto por Altman (1999).

    A descrio que Altman faz do percurso histrico de um gnero flmico adjetivo

    corresponde ao que vem ocorrendo com o found footage ficcional. Mas, ainda que a maioria

    desses filmes seja de horror, h exemplos de ttulos que operam dentro de outros gneros, como

    a fico-cientfica adolescente Poder sem Limites (Chronicle, Josh Trank, 2012), a comdia

    Projeto X uma festa fora de controle (Project X, Nima Nourizadeh, 2012), o filme-catstrofe

    The Bay (Barry Levenson, 2012) e a aventura infanto-juvenil Projeto Dinossauro (The

    Dinosaur Project, Sid Bennett, 2012), alm do curioso T dando onda (Surfs up, Ash Branon

    e Chris Bruck, EUA, 2007), comdia de animao que parodia a estilstica documental a partir de

    uma situao diegtica que simula um documentrio feito por uma equipe de pinguins surfistas.

    Quando consideramos esses filmes, vemos que a noo de gnero found footage

    ainda carece de amadurecimento. No entanto, uma caracterstica mais bsica sobressai

    desse conjunto: o fato de todos fazerem uso do recurso da cmera intradiegtica3, isto ,

    suas narrativas so construdas atravs de registros feitos pelos prprios personagens ou

    por aparelhos que pertencem ao universo fictcio, num tour de force estilstico que foge

    aos padres da cmera ubqua e onisciente do cinema de fico convencional. Sem dvida,

    procedimentos de cmera intradiegtica so recorrentes na histria do cinema de fico, e

    filmes fundamentais como Janela indiscreta (Rear Window, Alfred Hitchcock, 1954) e

    A tortura do medo (Peeping Tom, Michael Powell, 1960), entre muitos outros, j fizeram

    uso desse recurso (MACHADO, 2007). A diferena destes para os filmes aqui tratados est

    no fato de, nos ltimos, a presena da cmera intradiegtica ser um recurso constante ao

    longo de toda a narrativa, o que configura uma espcie de jogo mimtico com a estilstica do

    documentrio que d aos produtos resultantes caractersticas especficas (CARREIRO, 2013).

    Neste ensaio, buscamos propor uma leitura alternativa desses filmes, sugerindo

    observ-los no a partir de teorias de gnero flmico a abordagem terica predominante

    atualmente , mas da perspectiva da estilstica cinematogrfica, propondo a instituio

    3 Optou-se, neste artigo, por usar o termo cmera intradiegtica em lugar de diegtica (CARREIRO, 2013) para acompanhar o termo mais usado em publicaes sobre narratologia em lngua portuguesa.

    105

  • da cmera intradiegtica como uma abordagem maneirista da fico audiovisual

    contempornea. Como estudos de caso, selecionamos dois ttulos lanados no estratgico

    ano de 2007, ambos dirigidos por veteranos cujas obras que figuram entre as mais influentes

    do cinema comercial nos ltimos 50 anos. Os filmes Dirio dos mortos (Diary of the dead,

    George A. Romero) e Guerra sem cortes (Redacted, Brian De Palma) foram fracassos

    de bilheteria, mas acabaram por se converter em marcos estilsticos importantes para o

    cinema de fico construdo a partir do recurso da cmera intradiegtica.

    Notas sobre o maneirismo e seus novos dispositivos

    Discutir o found footage ficcional como procedimento maneirista significa deslocar

    o debate do terreno dos gneros para o reino da estilstica o estudo do estilo, conceito

    definido por Bordwell, no cinema, como o uso sistemtico e significativo de tcnicas dessa

    mdia [encenao, fotografia, montagem e desenho de som] em uma obra (2013, p. 17).

    Mas, para levar a cabo esse deslocamento conceitual, preciso comear estabelecendo

    uma definio de maneirismo cinematogrfico.

    Termo adaptado ao cinema a partir de um conceito surgido aps o Renascimento na

    histria da arte europeia, o Maneirismo consistiu em um movimento artstico que, segundo

    Hauser, chegou to tarde ao primeiro plano da investigao sobre a histria da arte, que

    o veredito depreciativo implcito em seu prprio nome ainda , com frequncia, aceito

    como adequado (2000, p. 367). Para ele, s depois que o conceito de maneirista estiver

    completamente separado do de afetado e amaneirado que obteremos uma categoria

    que possa ser usada na investigao histrica (2000, p. 367).

    O maneirismo, segundo a descrio de Hauser, comea decompondo a estrutura

    renascentista [unitria] de espao e desmembrando a cena a ser representada em partes

    separadas (2000, p. 373). Isso permite que diferentes valores espaciais e possibilidades de

    movimento predominem nas vrias sees do quadro. Gombrich descreve sucintamente esses

    procedimentos como quebra-cabeas pictricos (1999, p. 361). Para ele, o maneirismo

    mostra, atravs de distores formais, que a soluo clssica da perfeita harmonia no a

    nica concebvel que existem outros modos menos diretos para obter efeitos interessantes

    aos olhos dos amantes da arte (1999, p. 361).

    106

  • Shearman sugere que esses efeitos interessantes poderiam ser alcanados atravs da ideia

    de que complexidade e redundncia so belas, que o virtuosismo deve ser cultivado e que a arte

    pode ser artificial (1967, p. 186). O que todos os autores tentam demonstrar que a distoro do

    modelo renascentista observada nas obras maneiristas no significa uma imitao mal feita de um

    modelo precedente, como o termo poderia sugerir. Para Hauser, essas distores maneiristas eram

    condicionadas por um novo esprito, profundamente no-clssico (2000, p. 370). Em outras

    palavras, diz ele, estamos lidando com um estilo autoconsciente, que baseia suas formas no

    tanto num determinado objeto quanto na arte de sua poca precedente (HAUSER, 2000, p. 370).

    A transposio da ideia de maneirismo para o cinema exige adaptaes. Ela surgiu

    como consequncia do fim do classicismo hollywoodiano e tem, como descreve Oliveira

    Jnior, a caracterstica de composio de imagens de segundo grau [...] que retomam

    outras imagens e por isso mesmo, muitas vezes dependem de um conhecimento prvio da

    histria do cinema e/ou dos seus cdigos ficcionais (2013, p. 119). Como descreve o autor, a

    encenao maneirista se notabiliza por construes rebuscadas, enquadramentos labirnticos,

    referncias histria da arte, dispositivos pticos elaborados (2013, p. 119).

    Lanada em 1985 em dossi publicado nos Cahiers du Cinma, a noo de um

    cinema maneirista reuniu em torno do conceito um grupo de diretores diferentes entre

    si: Wim Wenders, Dario Argento, Raul Ruiz e De Palma estariam entre os adeptos dessa

    nova esttica, marcada, segundo analogia proposta por Alan Bergala, pela conscincia de

    que uma certa perfeio havia sido atingida pelos mestres que lhes haviam precedido

    (apud OLIVEIRA JNIOR, 2013, p. 123). Para eles, ento, tratava-se de recuperar certos

    gneros no momento em que j no dialogavam com o pblico inocentemente:

    A imagem maneirista, segundo Delorme, aquela que se prope no exatamente

    ao remake [...] nem sua reprise [...], mas anamarfose, isto , ao estudo

    visual sistemtico e obsessivo de um motivo magistral. [...] O que move o

    maneirista seu desejo de perturbar sistematicamente a referncia primeira,

    de refilmar o plano original de todas as formas e em todos os sentidos

    (OLIVEIRA JNIOR, 2013, p. 124-125).

    Mais tarde, a ideia foi recuperada por Bordwell (2006), com a diferena de que o

    pesquisador props um corpus mais largo de cineastas maneiristas, formado principalmente

    107

  • por diretores ligados a Hollywood a partir dos anos 1970: de Ridley Scott a Robert Zemeckis,

    passando por Sam Raimi, Quentin Tarantino e os irmos Wachowski. Como pintar o corpo

    humano aps Leonardo, Rafael e Michelangelo?, questiona Bordwell (2006, p. 188),

    imaginando o dilema dos pintores do sculo XVI ao perceberem que a gerao predecessora

    havia alcanado um domnio das propores harmnicas da natureza difcil de superar. Como

    contar uma histria no cinema de modo inovador aps Ford, Hawks, Hitchcock e Welles?

    (BORDWELL, 2006, p. 188), pergunta ele, fechando a analogia e providenciando a resposta:

    Uma opo correr atrs do novo atravs do investimento em pinceladas ousadas

    e tours de force; trocar harmonia por energia, calma por agitao, proporo por

    selvageria. Ler historiadores da arte descrevendo o Maneirismo ecoar qualidades

    que vejo no cinema americano ps-1960. (BORDWELL, 2006, p. 118).

    Esse movimento maneirista em direo a uma estilstica agressiva e autorreferente

    foi nomeado por Bordwell (2006, p. 119) de continuidade intensificada. Ele props que

    os diretores adeptos desse estilo mais virtuoso no estavam criando uma nova potica da

    imagem, mas aguando os princpios gerais da continuidade clssica, submetidos a um processo

    contnuo de intensificao. Para Bordwell, ao romperem com o objetivo de camuflar a instncia

    narrativa, os cineastas gradualmente passaram a chamar a ateno para a forma, desviando-se

    aos poucos do ideal da narrao invisvel que predominava no perodo denominado clssico.

    Entre os filmes citados por Bordwell (2006) como expoentes da continuidade intensificada

    esto Magnolia (Paul T. Anderson, 1999) e a trilogia Matrix (Larry e Andy Wachowski,

    19992003). Esses filmes contm tramas com muitos protagonistas, que se desdobram em

    subtramas paralelas e cronologias complexas, e investem em tticas visuais que fragmentam

    cada vez mais a ao fsica das personagens, incluindo a montagem cada vez mais rpida,

    movimentos incessantes de cmera e a insistncia na imagem do rosto humano como maneira

    de estimular a empatia. A potica da continuidade intensificada tambm rene tcnicas

    narrativas e estilsticas que podem ser observadas nos filmes de fico codificados como

    found footages, como a cmera na mo que treme sem parar, os erros de enquadramento e

    foco utilizados como ttica de encenao, a msica de influncia concretista (muitas vezes

    eletrnica, minimalista e sem linha rtmica ou harmnica discernvel), os dilogos improvisados

    e o uso de diferentes tipos de cmeras e texturas imagticas num mesmo filme.

    108

  • No coincidncia que muitas dessas tcnicas sejam oriundas da estilstica do

    documentrio, especialmente daqueles de cunho observativo ou participativo (NICHOLS,

    2005), mais lembrados pelos espectadores como pertencentes a esse campo. medida

    que a plateia est familiarizada com suas tcnicas, seu uso refora a impresso de registro

    documental das imagens e sons, acentuando a intensidade afetiva das tomadas. Em outras

    palavras, alguns procedimentos tcnicos caractersticos da continuidade intensificada

    realizados maneira de certos documentrios so capazes de produzir um tipo de efeito

    de real (BARTHES, 1984, p. 41) mais intenso ao tecido narrativo dos filmes.

    Vale a pena chamar a ateno, aqui, para a associao entre os conceitos de continuidade

    intensificada e efeito do real, pois, segundo Bordwell (2006), uma das razes para a adoo

    de uma potica cinematogrfica maneirista a busca pelo arrebatamento afetivo e sensorial

    do espectador. No caso do found footage de fico, essa potica se transfigura na busca por

    uma aparncia de verossimilhana que permita despertar na plateia um modo particular

    desse efeito de real, atravs, inicialmente, da estilstica documental e, mais recentemente,

    da emulao do registro amador.

    neste ponto que propomos a questo de um novo maneirismo que pode estar a

    nascer. Aceitando a descrio de Prysthon (2013) de que, depois do apogeu do artificialismo

    autorreferente e metalingustico dos anos 1990, percebe-se uma espcie de reemergncia

    do realismo em estratgias estilsticas marcadas pelo minimalismo, pelo anticlmax, pelo

    despojamento e por uma nfase naturalista chamados hoje de cinema de fluxo (termo

    tambm cristalizado pelos Cahiers), notamos, nas obras de Romero e De Palma, uma

    inflexo diferente dessa busca naturalista.

    Tratando do cinema de fluxo, Oliveira Jnior afirma que na passagem dos anos 1990

    para os 2000, poca em que se fala no fim do maneirismo, uma nova ferramenta terica

    ganha a dianteira: o conceito de dispositivo (2013, p. 137). Como descreve o autor, no

    filme-dispositivo, no h mise-en-scene no sentido clssico [...] mas, antes, a definio

    de uma estratgia visual capaz de produzir acontecimentos por um processo de narrao

    automtico. Como descreve o autor, o cineasta agora se torna um instalador de ambincias,

    um provocador/intensificador de realidades (OLIVEIRA JNIOR, 2013, p. 138).

    Ao fazer uso de alguns dispositivos identificados com prticas do cinema de fluxo,

    e tambm do documentrio e do audiovisual amador (tais como os tempos mortos e os

    planos-sequncia com cmera na mo, o uso de equipamentos de vigilncia e de cdigos

    109

  • estilsticos de gneros televisivos como os reality shows), uma atitude maneirista pode estar

    se dando no mais em relao ao modelo clssico, mas aos procedimentos contemporneos.

    Para Weisbach, o maneirismo existe quando formas que originalmente tinham

    um significado preciso e um valor expressivo so retrabalhadas e levadas a extremos

    (WEISBACH, 1910 apud BORDWELL, 2006, p. 189). Se, como observa Oliveira Jnior

    (2013), uma parte do cinema contemporneo manifesta a tendncia de respeitar a ambiguidade

    do real, explorar o acidental e o assignificante e no impor ao mundo um sentido, talvez

    se possa sugerir que, em Dirio dos Mortos e Guerra sem Cortes, estejamos a assistir,

    de certa forma, a um arremedo artificial desse tipo de cinema dentro de um campo antes

    dominado pela fico convencional. No por acaso, Baltar e Diogo (2013), em reflexo

    sobre o apelo emocional das imagens amadoras voltadas expresso de experincias

    individuais, destacam a observao de Lipovetsky e Serroy sobre a influncia dessas

    produes em obras comerciais de fico sobre violncia, sexo e horror, que teriam passado

    por um enfraquecimento em sua lgica narrativa questo que, parece-nos, interessou a

    Romero e De Palma em seus filmes de 2007.

    Inflexes no estilo: Romero e De Palma, 2007

    Em Dirio dos Mortos e Guerra sem Cortes, Romero e De Palma adotaram o

    projeto estilstico de trabalhar exclusivamente com imagens produzidas dentro da diegese,

    seja por meio de registros feitos pelas personagens ou encontrados por elas em cmeras de

    vigilncia, programas de televiso, vdeos postados em websites etc. Nos dois casos, os

    filmes funcionam como inventrios de possibilidades para o uso da cmera intradiegtica

    e firmaram-se como referncias fundamentais de opes estilsticas dentro do formato.

    De todo modo, preciso reconhecer que os experimentos dos diretores se relacionam com

    seus trabalhos pregressos, tanto em questes temticas quanto estilsticas.

    O filme de Romero o quinto segmento da srie iniciada com A Noite dos Mortos

    Vivos (The Night of the Living Dead, 1968) e encerrada com A Ilha dos Mortos

    (Survival of the Dead, 2009). Nessa srie de seis longas, o diretor e roteirista reinventou

    constantemente os parmetros do monstro cinematogrfico conhecido como zumbi

    tipo de cadver-redivivo-contagioso que se multiplica em seus filmes e em centenas de

    110

  • imitadores desde os anos 1970. Suas imagens nauseantes, porm, nunca esconderam os

    aspectos polticos, geralmente to explcitos quanto o sangue e as tripas. E, desde o incio,

    isso foi feito por meio da emulao de estilos estranhos ao horror convencional, como

    observa Russell sobre A noite dos Mortos Vivos:

    Recusando-se a ladear a questo da materialidade do zumbi [...] Romero

    trouxe um realismo inflexvel ao gnero. [...] A fotografia granulada

    apoiada pelas cenas de TV com ncoras ansiosos e funcionrios pblicos

    desnorteados em Washington d ao filme um visual cinma verit, sugerindo

    que esses acontecimentos no fazem parte de um terror sobrenatural. [...]

    A cotidianidade a chave para o terror do filme (RUSSELL, 2012, p. 111-112).

    Essa adoo de um estilo at ento indito no horror foi uma marca da influncia

    de Romero, mas suas caractersticas maneiristas so mais evidentes em filmes que no

    pertencem srie dos mortos-vivos, como Martin (1977)4, filme realista de vampiro

    em que um jovem bebedor de sangue compara seu cotidiano s representaes tradicionais

    dos vampiros, e no longa em episdios Creepshow (1982), no qual Romero aproveitou

    suas origens como diretor de publicidade para brincar com a linguagem dos quadrinhos e

    com a TV, alm de j experimentar algumas cenas feitas com cmeras de vigilncia.

    Caso diferente o de De Palma, diretor que dedicou sua carreira a investigar o estatuto

    da imagem cinematogrfica e suas tradies de maneira muito mais estrutural do que Romero.

    No que se refere s questes temticas, os acontecimentos histricos que inspiraram

    Guerra sem Cortes o estupro de uma adolescente e o assassinato brutal dela e de sua

    famlia por soldados estadunidenses no Iraque em 2006 repetem um assunto que j

    interessara ao diretor em um filme sobre a guerra do Vietn: Pecados de Guerra (Casualities

    of War, 1989). Alm do tema especfico do estupro/massacre, pode-se relacionar Guerra

    sem Cortes reflexo mais ampla sobre a misoginia e a brutalizao das mulheres vistas

    na obra de De Palma, em filmes como Carrie a Estranha (Carrie, 1977), Vestida para

    Matar (Dressed to Kill, 1982), Dlia Negra (The Black Dhalia, 2005), entre outros.

    4 Quanto a esse filme, vale lembrar que ele foi inteiramente refeito entre 1976 e 1977, j que os negativos originais foram roubados com um furgo da equipe, obrigando o diretor a refazer o trabalho.

    111

  • J do ponto de vista das escolhas estilsticas, preciso reconhecer que quase toda

    a obra de De Palma enfrenta a questo da produo de imagens intradiegticas, o que o

    torna pea fundamental nesta discusso. Desde seus primeiros trabalhos mais conhecidos

    (Greetings, 1968, e principalmente Hi Mom!, 1970), passando por O Fantasma do Paraso

    (Phantom of the Paradise, 1974), Terapia de Doidos (Home Movies, 1980), Um Tiro

    na Noite (Blow Out, 1982) e Passion (2012), dispositivos variados de produo de

    imagens e sons incorporados diegese so marcas no apenas do virtuosismo, mas tambm

    da reflexo sobre o cinema recolocada constantemente pelo diretor.

    Ainda que se trate de cineastas difceis de comparar, De Palma e Romero compartilhavam

    algumas circunstncias em 2007. Apesar da fama e do reconhecimento, ambos se encontravam

    em condies economicamente menos favorveis, em termos de recursos de produo, do

    que muitos de seus colegas de gerao cujas carreiras tm paralelos com as deles, como Wes

    Craven e Martin Scorsese. Dessa constatao se pode inferir que o risco assumido pela atitude

    experimental derivou, em parte, da ausncia de projetos ligados aos grandes estdios, e talvez

    mesmo da limitao de recursos, problema que pode ser contornado pelo uso da cmera

    intra-diegtica em condies amadorsticas. O filme de De Palma custou cinco milhes de

    dlares (10% do oramento de seu filme anterior, o fracasso comercial Dlia Negra), e o de

    Romero custou apenas dois milhes (15% do oramento de Terra dos Mortos, de 2004, outro

    malogro comercial). Mesmo assim, nenhum rendeu o suficiente para cobrir os prprios custos.

    Os dois projetos possuem premissa similar. Ao contrrio da maior parte das

    produes codificadas como found footage conduzidas em meados dos anos 2000, Guerra

    sem Cortes e Dirio dos Mortos no escondem do espectador a natureza ficcional de

    seus sons e imagens. Quem v os filmes capaz de index-los categoria de fico sem

    qualquer dificuldade, j nos primeiros segundos de projeo.

    Romero realiza essa operao logo na sequncia de abertura, atravs de uma colagem

    de trechos de reportagens falsas de TV (Figura 1) que expe o ponto de partida do enredo:

    a doena que faz mortos voltarem vida e atacarem os vivos, lanando o mundo no caos.

    uma premissa to absurda e j codificada ao subgnero dos zumbis que elimina qualquer

    possibilidade de indexao documental. De Palma ainda mais resoluto, pois Guerra

    sem Cortes inicia com uma tela cujo texto informa ao espectador de que ele ver um

    trabalho de fico, inspirado por eventos supostamente ocorridos no Iraque (Figura 2). Essa

    primeira linha contm uma dupla tentativa de afastar o filme da leitura documentarizante,

    112

  • Figura 1. Abertura de Dirio dos Mortos

    Figura 2. Incio de Guerra sem Cortes

    pois assegura que as imagens so encenadas por atores e refora que os fatos no foram

    confirmados por qualquer fonte oficial.

    Isso posto, a forma como os diretores lidam com o instrumental estilstico reflete uma

    atitude que pode ser tratada como maneirista. Os dois respeitam o tempo inteiro as restries

    impostas pelo princpio da cmera intradiegtica (CARREIRO, 2013): a fisicalidade dos

    dispositivos de registro inseridos na diegese impede a ubiquidade da instncia narradora e

    limita a forma como as aes fsicas das personagens so gravadas, j que as cmeras no

    podem estar ligadas o tempo inteiro e existem locais e momentos que esses dispositivos no

    conseguem ou no podem acessar. Cada cineasta, contudo, recorre a expedientes distintos

    para driblar essa restrio e alargar o ponto de vista narrativo.

    De Palma transforma seu filme em uma colagem de registros provenientes de

    diferentes fontes: vdeo-dirios de soldados, trechos de um documentrio da TV francesa,

    113

  • cmeras de segurana, vdeos amadores disponibilizados na Internet e at mesmo pedaos

    de conversas travadas em sistemas de comunicao similares ao Skype (Figura 3). Essa

    estratgia torna-o capaz de construir um enredo em que o narrador invisvel substitui, pelo

    menos em parte, a ausncia da ubiquidade da cmera por uma espcie de ubiquidade do

    ponto de vista, j que a instncia narrativa permanece parcialmente onisciente. Tambm h a

    construo de personagens muito falantes, que comentam constantemente seus sentimentos

    e intenes, alm do texto informativo do programa da TV francesa, o que permite ao filme

    desenvolver suas questes de forma progressiva e explcita.

    J Romero adota uma construo mais comum em filmes de found footage ficcional,

    nos quais a instncia narradora espelha a perspectiva alternada de dois personagens (Figura 4).

    O primeiro Jason Creed (Joshua Close), estudante de cinema que, ao se deparar com mortos

    voltando vida, decide registrar a realidade e editar um documentrio, cujo work in progress

    divulga na Internet. Quando ele morre, a namorada Debra (Michelle Morgan) assume a direo

    e inclui, nos trechos editados por ele, sua narrao em voz over e trechos de filmes gravados de

    cmeras de segurana ou encontrados na Internet. H, portanto, uma dupla estratgia narrativa

    colocada em operao para minimizar o estreitamento produzido pela cmera intradiegtica.

    A primeira ttica consiste na incluso da narrao verbal, que permite a Debra

    comentar e ressignificar as imagens, usando a trilha de voz como contraponto trilha

    visual. A segunda ttica consiste no uso de metalinguagem: Romero alterna os registros

    audiovisuais do apocalipse zumbi com sequncias em que os personagens discutem as

    imagens, explicam os detalhes tcnicos, refletem sobre opes estilsticas e debatem, de

    maneira por vezes grandiloquente, a situao trgica em que se encontram.

    Mas talvez o aspecto em que a abordagem maneirista de Romero e De Palma esteja mais

    visvel seja o uso abundante de planos-sequncia. A estratgia de usar tomadas mais longas

    tambm deriva do princpio da cmera intradiegtica, pois, como o dispositivo de registro

    est presente na diegese, o diretor tem mais dificuldade para fazer cortes e mudar a posio

    da cmera durante uma cena. No entanto, como convm a dois diretores que exercem um

    amplo domnio sobre a imagem, Romero e De Palma no resistem a encenar cuidadosamente

    os planos mais importantes, mostrando e escondendo elementos visuais dentro do quadro

    com eficincia incompatvel com a precariedade de um registro visual e sonoro improvisado.

    Dirio dos Mortos tem 379 planos distribudos em 89 minutos, o que significa

    uma durao mdia de plano de 14 segundos, nmero quase 4 vezes maior do que a mdia

    114

  • praticada nos filmes de Hollywood desde os anos 1990 (SALT, 2009). O filme de Romero

    tem 17 planos com durao superior a 1 minuto, e o mais longo, com 182 segundos, ocorre

    ainda no incio do filme, no momento em que Romero apresenta seus protagonistas ao

    espectador num set de filmagens localizado num bosque. A tomada chama a ateno pela

    encenao composta meticulosamente: mesmo operada manualmente, a cmera possui

    estabilidade, enquanto seu operador caminha para frente, para trs e para os lados, sempre

    reenquadrando os rostos de quem fala. J os atores caminham em eixos diagonais, explorando

    a profundidade de campo e criando uma coreografia de corpos complexa e nada gratuita

    (Figura 5). Nenhuma ao fsica importante para a compreenso da cena ocorre fora do

    quadro, ou em enquadramentos que bloqueiem a viso do espectador.

    Em Guerra sem Cortes, De Palma aplica o rigor de seu virtuosismo tarefa de

    construir a aparncia de erros tcnicos em cenas e sequncias que no prejudiquem a

    Figura 3. O plano mais longo de Guerra sem Cortes

    Figura 4. Duas cmeras simultneas em Dirio dos Mortos

    115

  • compreenso do enredo. O filme possui apenas 141 planos em 80 minutos, alcanando uma

    durao mdia de 34 segundos. Existem 20 planos maiores do que 1 minuto, sendo que 11

    tm mais de 2 minutos de durao. O plano-sequncia mais longo dura 416 segundos e traz

    para o universo da diegese a famosa tcnica da tela dividida (split screen), que constitui uma

    das assinaturas estilsticas mais proeminentes de De Palma desde os anos 1970: trata-se do

    plano que mostra pai e filho conversando atravs do Skype (Figura 3). Note-se que esse

    um plano artificial, composto pela instncia narradora sem qualquer interferncia dos

    personagens. Nas tomadas longas, De Palma tambm recorre frequentemente estratgia da

    encenao em diagonal, com a maior parte da ao ocorrendo dentro do quadro (Figura 6).

    Tambm vale notar que o cineasta varia o tipo de lente, a colorimetria e a composio

    visual dos diferentes segmentos do filme, dependendo da origem de cada grupo de imagens.

    As tomadas oriundas das cmeras operadas pelos soldados, por exemplo, tm

    resoluo visual mais baixa, cores mais desbotadas e pouca profundidade de campo

    (Figura 7); muitas vezes, esses planos constituem tomadas com cmera fixa, colocada

    sobre uma cadeira (Figura 6) ou o cap de um carro. J os trechos do documentrio francs

    (Figura 8) tm colorao dourada, e os movimentos de cmera so suaves e profissionais.

    Nos dois filmes, possvel perceber, tambm, a valorizao ou elogio do erro tcnico.

    Trata-se de mais uma caracterstica herdada do princpio da cmera intradiegtica: as imagens

    no vo se parecer com registros casuais de situaes extraordinrias caso no contenham esses

    defeitos aparentes, como certa falta de estabilidade, aes inesperadas e cortes bruscos. Nem

    Romero e muito menos De Palma, contudo, alcanam um nvel de crueza e sujeira audiovisual

    compatvel com um registro verdadeiro feito no calor da hora. Os erros tcnicos no surgem

    espontaneamente, mas so calculados e, portanto, virtuosos. At mesmo as imagens oriundas

    de cmeras de vigilncias so cuidadosamente compostas e enquadradas (Figuras 9 e 10).

    Essa espcie de virtuosismo s avessas est ainda mais evidente nas trilhas de udio dos

    filmes, cujos dilogos so sempre claros, limpos e perfeitamente audveis. H efeitos sonoros

    organizados metodicamente e seguindo preceitos tradicionais da edio de som (por exemplo,

    o filme de Romero inicia com uma sirene de polcia estrategicamente colocada na abertura do

    primeiro plano, a fim de sinalizar rapidamente ao espectador a urgncia documental daquele

    momento). Um ouvido treinado percebe o uso de manipulaes tcnicas oriundas do tratamento

    acstico, inclusive compresso e reverberao, a fim de manter vozes e rudos dentro de um

    padro de udio confortvel e legvel. Por fim, os dois cineastas utilizam msica no diegtica,

    116

  • Figura 5. Encenao em diagonal em Dirio dos Mortos

    Figura 7. Imagem sem profundidade em Guerra sem Cortes

    Figura 6. Composio recessiva em Guerra sem Cortes

    117

  • Figura 9. Cmera de segurana em Dirio dos Mortos

    Figura 8. Tomada com cmera fixa em Guerra sem Cortes

    Figura 10. Imagem de cmera de segurana em Guerra sem Cortes

    118

  • padro tpico do cinema de fico tradicional que eles no se preocupam em esconder, porque,

    afinal, assumem desde o princpio seus filmes como fices que apenas emprestam a tcnica

    do documentrio e do registro amador, sem pretender se fazer passar por nenhum deles.

    Concluses

    Como vimos, a produo de filmes de fico codificados como found footage ganhou

    flego a partir do sucesso de crtica e pblico alcanado por A Bruxa de Blair. Os cineastas

    que exploraram o formato a partir do ano 2000 no realizaram grandes inovaes formais

    de imediato. Muitos eram novatos, trabalhando com oramentos limitados. Diante desse

    panorama, as solues para os problemas de representao introduzidos pelo princpio da

    cmera intradiegtica demoraram a alcanar alguma originalidade formal.

    nesse ponto que entram os filmes de Romero e De Palma. Veteranos acostumados

    a experimentar novas tecnologias e ferramentas de estilo, eles parecem ter encontrado uma

    oportunidade para revitalizar suas reflexes formais iniciadas nos anos 1960. Nos dois

    trabalhos, os diretores exploram tcnicas diversas, na tentativa de solucionar questes de

    representao introduzidas no enredo porque as personagens da fico tm conscincia dos

    dispositivos de registro dentro da diegese, bem como tentam minimizar os limites estreitos

    para a representao impostos por essa presena.

    Para alm dos experimentos com forma e narrativa dos filmes, os diretores tambm

    introduziram certa dimenso crtica aos novos processos de midiatizao e regimes de

    visualidade que privilegiam ou valorizam imagens amadoras, cenas de exposio da intimidade

    e a proliferao de dispositivos de registro visual. possvel dizer que tanto Dirio dos

    Mortos quanto Guerra sem Cortes discutem o papel das mdias ao mostrarem que,

    graas existncia de cmeras de segurana, telefones celulares com filmadoras e outros

    dispositivos espalhados por ruas, casas, hospitais etc., a privacidade tem se tornado uma

    dimenso cada vez menos possvel e talvez menos almejvel na vida das pessoas.

    Em certa medida, por fim, podem-se ler ambos os filmes como releituras atualizadas

    de trabalhos anteriores. Guerra sem Cortes funciona como uma espcie de refilmagem de

    Pecados de Guerra, acrescida de reflexo crtica sobre a enorme quantidade de imagens

    que circulam livremente, enquanto Dirio dos Mortos pode ser visto como remixagem

    119

  • de A Noite dos Mortos Vivos, tendo a ao dramtica deslocada para um micro-nibus,

    com as cmeras nas mos das personagens.

    Para Barry Keith Grant, obras como essas (as quais ele classifica como new verit)

    so sintomticas de uma sensibilidade ps-moderna que, na era digital, coloca em dvida

    o estatuto de verdade de qualquer imagem (2013). Nesse sentido, Alexandra Heller-

    Nicholas oferece uma explicao sucinta para mostrar a relao entre o realismo das

    imagens e sons e o fascnio exercido por esses filmes sobre o pblico:

    A tradio do found footage de horror evoluiu e amadureceu [desde A Bruxa

    de Blair], e por sua vez o pblico pode se envolver com os filmes de modo

    mais consciente, sem tom-los por documentrios reais. O prazer gerado pela

    estilstica do gnero no dependente da nossa credulidade, mas sim da nossa

    vontade de sucumbir ao mito do real que esses filmes oferecem atravs de seu

    sistema formal, agora fortemente codificado (HELLER-NICHOLAS, 2014, p. 27).

    Pensar sobre esses filmes a partir do impulso maneirista presente nas obras de Romero

    e De Palma pode contribuir para a reflexo sobre a incorporao de estratgias experimentais

    contemporneas ao cinema de fico comercial, fenmeno que deve ser observado com

    ateno medida que reflete os novos regimes de visualidade em suas formas mais populares.

    Referncias

    ALTMAN, Rick. Film/genre. London: BFI Publishing, 1999.

    BALTAR, Mariana; DIOGO, Lgia. Viver conectado. In: BRASIL, Andr; MORETTIN, Eduardo; LISSOVSKY, Maurcio (Orgs.). Visualidades hoje. Salvador: EDUFBA, 2013. p. 137-156.

    BARTHES, Roland. O rumor da lngua. Lisboa: Edies 70, 1984.

    BORDWELL, David. The way Hollywood tells it: story and style in modern movies. Los Angeles: University of California Press, 2006.

    BORDWELL, David. Sobre a histria do estilo cinematogrfico. Campinas: Editora da UNICAMP, 2013.

    120

  • BRASIL, Andr; MIGLIORIN, Csar. Biopoltica do amador: generalizao de uma prtica, limites de um conceito. Galxia, So Paulo, n. 20, p. 84-94, dez. 2010.

    CNEPA, Laura; FERRARAZ, Rogrio. Fantasmagorias das imagens cotidianas. In: BRASIL, Andr; MORETTIN, Eduardo; LISSOVSKI, Mauricio (Orgs). Visualidades Hoje. Salvador, EDUFBA/COMPS, 2013, p. 79-100.

    CARREIRO, Rodrigo. A cmera diegtica: legibilidade narrativa e verossimilhana documental em falsos found footage de horror. Significao, So Paulo, n. 40, p. 224-244, 2013.

    FELDMAN, Ilana. O apelo realista: uma expresso esttica da biopoltica. In: ENCONTRO ANUAL DA COMPS, 17., 2008, So Paulo. Anais eletrnicos... So Paulo: UNIP, 2008. Disponvel em: . Acesso em: 02 jul. 2014.

    GOMBRICH, Ernst. A histria da arte. Rio de Janeiro: LTC, 1999.

    GRANT, Barry Keith. Digital anxiety and the new verit horror and sf film. Science Fiction Film and Television, v. 6, n. 2, p. 153-175, Summer 2013.

    HAUSER, Arnold. Histria social da arte e da literatura. So Paulo: Martins Fontes, 2000.

    HELLER-NICHOLAS, Alexandra. Found footage horror films: fear and the appearance of reality. London: McFarland, 2014.

    MACHADO, Arlindo. O sujeito na tela: modos de enunciao no cinema e no ciberespao. So Paulo: Paulus, 2007.

    NICHOLS, Bill. Introduo ao documentrio. Campinas: Papirus, 2005.

    ODIN, Roger (Org.). Le film de famille: usage priv, usage public. Paris: Mridiens-Klincksieck, 1995.

    OLIVEIRA JNIOR, Luiz Carlos. A mise en scne no cinema: do clssico ao cinema de fluxo. Campinas: Papirus, 2013.

    PRYSTHON, Angela. Efeitos do real no cinema do mundo. In: BRASIL, Andr; MORETTIN, Eduardo; LISSOVSKY, Maurcio (Orgs). Visualidades hoje. Salvador: EDUFBA, 2013. p. 101-117.

    RUSSELL, Phil. Beyond the darkness: cult, horror and extreme cinema. New York: Bad News Press, 2012.

    SALT, Barry. Film style & technology: history and analysis. London: Stardword, 2009.

    SHEARMAN, John. Mannerism: style and civilization. Harmondsworth: Penguin, 1967.

    121