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direito constitucional e desenvolvimento.

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  • 1

    O Federalismo e as Regies de Desenvolvimento

    Marcelo Lamy 1(*)

    SUMRIO: 1. O contedo do desenvolvimento como direito e como dever. 2. O

    surgimento das Regies de Desenvolvimento no Brasil. 3. A novel previso

    constitucional das Regies de Desenvolvimento. 4. A marca do federalismo centralista

    sobre as regies de desenvolvimento. 5. O federalismo dual e o federalismo de

    subordinao. 6. Por uma nova poltica federal para o desenvolvimento regional.

    PALAVRAS-CHAVE: Federao. Regies. Desenvolvimento. Liberdade.

    1. O contedo do desenvolvimento como direito e como dever

    Desenvolvimento o resultado de um processo de transformao ou de

    consolidao de uma srie de condicionamentos (polticos, econmicos, culturais e

    sociais) cujo meio (principal instrumento ou causa agente) e fim (telos ou causa final)

    a expanso da liberdade2.

    Nessa perspectiva3, portanto, o desenvolvimento no pode ser medido apenas

    sob a ptica dos recursos ou rendas que as pessoas possuem, mas pelo conjunto de

    capacidades, de possibilidades, de escolhas que as pessoas tm, o que determina o modo

    como vivem, a qualidade de vida.

    O reconhecimento do desenvolvimento como direito foi concretizado pela

    resoluo 41/128 da Assembleia Geral das Naes Unidas, em 04 de dezembro de 1986,

    intitulada Declarao sobre o Direito ao Desenvolvimento:

    Artculo 1. 1. El derecho al desarrollo es un derecho humano inalienable en

    virtud del cual todo ser humano y todos los pueblos estn facultados para

    participar en un desarrollo econmico, social, cultural y poltico en el que

    puedan realizarse plenamente todos los derechos humanos y libertades

    fundamentales, a contribuir a ese desarrollo y a disfrutar de l.4

    1 (*) Bacharel em Direito (UFPR). Mestre em Direito Administrativo (USP). Doutor em Direito

    Constitucional (PUC-SP). Advogado. Professor Permanente do Programa de Mestrado e Doutorado em

    Direito Ambiental e Internacional da Faculdade de Direito na Universidade Catlica de Santos. Diretor da

    Escola Superior de Direito Constitucional. Editor da Revista Brasileira de Direito Constitucional. 2

    Cf. Amartya Sen. Desenvolvimento como Liberdade, pp. 17-50. 3

    Cf. Amartya Sen. Desenvolvimento como Liberdade, p. 39. 4

    http://www.un.org/es/comun/docs/?symbol=A/RES/41/128

  • 2

    Sendo um direito individual (de todo ser humano) e coletivo (de todos os

    povos), essa resoluo reconhece que o Estado o responsvel primrio pelo mesmo,

    tendo de assumir, em contrapartida, o dever de possibilitar esse resultado:

    Artculo 3. 1. Los Estados tienen el deber primordial de crear condiciones

    nacionales e internacionales favorables para la realizacin del derecho al

    desarrollo.5

    Por outro lado, essa resoluo deu um sentido muito concreto a um conjunto de

    medidas ou condies necessrias para o direito ao desenvolvimento:

    Artculo 8. 1. Los Estados deben adoptar, en el plano nacional, todas las

    medidas necesarias para la realizacin del derecho al desarrollo y

    garantizarn, entre otras cosas, la igualdad de oportunidades para todos en

    cuanto al acceso a los recursos bsicos, la educacin, los servicios de salud,

    los alimentos, la vivienda, en empleo, y la justa distribucin de los ingresos.

    Deben adoptarse medidas eficaces para lograr que la mujer participe

    activamente en el proceso de desarrollo. Deben hacerse reformas econmicas

    y sociales adecuadas con objeto de erradicar todas las injusticias sociales. 2.

    Los Estados deben alentar la participacin popular en todas las esferas como

    factor importante para el desarrollo y para la plena realizacin de todos los

    derechos humanos.6

    Amartya Sen, por sua vez, registra uma perspectiva classificatria dessas

    medidas necessrias para o desenvolvimento (aspectos da liberdade que devem ser

    buscados para que possibilitemos o mesmo): (1) liberdades polticas liberdade de

    expresso, oportunidade de dilogo, dissenso e crtica, imprensa sem censura,

    oportunidade de determinar quem deve governar e com base em que princpios,

    possibilidade de fiscalizar as autoridades; (2) facilidades econmicas oportunidades

    de participao no comrcio e na produo, liberdade dos trabalhadores de trocar de

    empregador7, disponibilidade de financiamentos, preo dos servios e produtos; (3)

    oportunidades sociais proporcionadas pelos servios de sade que permitem a todos

    levar uma vida saudvel, distante da morbidez evitvel e da morte prematura, e pelos

    servios de educao que permitem emancipar a todos, bem distante do analfabetismo;

    (4) garantias de transparncia a vida social que liberta exige sinceridade, clareza,

    5 http://www.un.org/es/comun/docs/?symbol=A/RES/41/128

    6 http://www.un.org/es/comun/docs/?symbol=A/RES/41/128

    7 Para Amartya Sen, a presena de uma mo de obra presa a seu emprego (que no tem condies de pensar em trocar de emprego) e o endividamento das pessoas fsicas uma forma particularmente tenaz de privao da liberdade (Desenvolvimento como liberdade, p. 45).

  • 3

    revelao, jamais irresponsabilidade, corrupo e ilicitude; (5) segurana protetora

    que se proporcione uma rede de segurana social para os que passam por adversidades

    naturais ou provocadas, como os benefcios para os incapacitados, distribuio de

    alimentos, gerao de empregos pblicos, um sistema adequado de apoio aos

    desempregados.

    Esses diferentes tipos de liberdade tm relao entre si, de forma que o

    aperfeioamento ou a provao de um deles contribui ou afeta imensamente a promoo

    dos demais8.

    A Declarao e o Programa de Ao de Viena, aprovados pela Conferncia

    Mundial dos Direitos Humanos, realizada em Viena, de 14 a 25 de junho de 1993,

    reforaram o consenso internacional sobre esses pontos:

    10. La Conferencia Mundial de Derechos Humanos reafirma el derecho al

    desarrollo, segn se proclama en la Declaracin sobre el Derecho al

    Desarrollo, como derecho universal y inalienable y como parte integrante de

    los derechos humanos fundamentales.

    Como se dice en la Declaracin sobre el Derecho al Desarrollo, la persona

    humana es el sujeto central del desarrollo.

    El desarrollo propicia el disfrute de todos los derechos humanos, pero la falta

    de desarrollo no puede invocarse como justificacin para limitar los derechos

    humanos internacionalmente reconocidos.

    Los Estados deben cooperar mutuamente para lograr el desarrollo y eliminar

    los obstculos al desarrollo. La comunidad internacional debe propiciar una

    cooperacin internacional eficaz para la realizacin del derecho al desarrollo

    y la eliminacin de los obstculos al desarrollo.

    El progreso duradero con miras a la aplicacin del derecho al desarrollo

    requiere polticas eficaces de desarrollo en el plano nacional, as como

    relaciones econmicas equitativas y un entorno econmico favorable en el

    plano internacional.9

    Em setembro de 2010, a Cpula das Naes Unidas sobre os Objetivos de

    Desenvolvimento do Milnio estabeleceu, pela resoluo 65/1, um Plano de Ao

    Global para alcanar, at 2015, os seguintes objetivos, que traduzem um consenso

    internacional para as aes prioritrias de desenvolvimento10

    : (a) Erradicar a extrema

    pobreza e a fome; (b) Atingir o ensino bsico universal; (c) Promover a igualdade entre

    os sexos e o empoderamento da mulher; (d) Reduzir a mortalidade infantil; (e) Melhorar

    8 Cf. Amartya Sen. Desenvolvimento como liberdade, p. 54. 9

    http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G93/142/36/PDF/G9314236.pdf?OpenElement 10

    http://www.un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/65/L.1&referer=http://www.onu.org.br/a-onu-em-

    acao/a-onu-em-acao/a-onu-e-o-desenvolvimento/&Lang=S

  • 4

    a sade materna; (f) Combater a AIDS, a malria e outras doenas; (g) Garantir a

    sustentabilidade ambiental; e (h) Fomentar uma aliana mundial para o

    desenvolvimento.

    As naes dirigem-se, portanto, quando se fala em desenvolvimento, s

    principais causas de privao da liberdade11

    . extrema pobreza e desigualdade, que

    roubam a possibilidade de muitas pessoas de saciarem a fome, de obterem uma nutrio

    satisfatria, os remdios para as doenas tratveis, a oportunidade de morarem ou de se

    vestirem de modo apropriado, de terem acesso a gua tratada, ao saneamento bsico, o

    que agrava rotineiramente o baixo empoderamento feminino. carncia de servios

    pblicos e de assistncia social, que impedem que as pessoas gozem de programas

    epidemiolgicos, de uma adequada assistncia mdica, de um sistema educativo

    libertador, da paz, segurana e ordem, que no afastam os amplos efeitos do

    desemprego12

    . Aos regimes despticos aparentemente justificados pela emergncia da

    interveno, que impedem que as pessoas possam discutir os problemas e livremente

    optar pelas solues, regimes esses que obstacularizam efetivamente a participao

    social e poltica.

    Percebeu-se que a superao desses problemas, antes mesmo de romper com os

    grilhes do subdesenvolvimento, efetivamente o que permite preparar as naes para o

    prprio desenvolvimento econmico. De outra forma, que o crescimento econmico

    desacompanhado pelo progresso nesses problemas sociais artificial, passageiro e

    ilusrio.

    O direito e dever humano ao desenvolvimento constitui tambm um dos direitos

    e deveres fundamentais de nosso ordenamento, visto que, embora no explicitado no rol

    do artigo 5 da Constituio Federal de 1988, por fora do pargrafo segundo desse

    dispositivo, incluem-se no rol de direitos e deveres expressos outros decorrentes do

    regime e dos princpios adotados pela mesma (o que se infere da simples conjugao

    com o artigo 3, incisos II e III, do Texto Constitucional).

    11 Cf. Amartya Sen. Desenvolvimento como Liberdade, pp. 18 e 29-31. 12 Amartya Sen aponta com acerto que o desemprego no causa apenas uma deficincia de renda, debilita a capacidade de iniciativa e as habilidades dos indivduos, exclui socialmente determinados grupos, acarreta a perda da autonomia, da autoconfiana, da sade fsica e psicolgica (Desenvolvimento como Liberdade, pp. 35-36).

  • 5

    Por outro lado, se ultrapassarmos a anlise meramente positiva e considerarmos

    que cada Estado deve ser entendido historicamente, de acordo com as relaes polticas

    ou ideolgicas que o conformam, h que se ter em conta que o Brasil sofreu duas

    influncias determinantes: da teoria europeia do Estado social e da teoria do Estado

    desenvolvimentista da Comisso Econmica para a Amrica Latina (CEPAL).

    Com o Estado social, governar passou a ser buscar a transformao da

    sociedade, promover mudanas estruturais na sociedade, seja pelo intervencionismo,

    seja pelo oferecimento de amplo sistema de assistncia social. Com o Estado

    desenvolvimentista, por sua vez, governar passou a ser promover o desenvolvimento

    por meio do planejamento. Se, pelo Estado social, o governo tornou-se um prestador de

    servios, pelo Estado desenvolvimentista, tornou-se um agente responsvel pela

    transformao das estruturas sociais.

    A passagem para uma situao de desenvolvimento, nesse amplo contexto

    internacional e histrico, somente pode ser alcanada com o rompimento das estruturas

    culturais, sociais, polticas e econmicas que tendem a ser perpetuadas pelos que se

    beneficiam das mesmas. No pode ser implantado qualquer processo de

    desenvolvimento sem ruptura, sem transformao. E essa situao somente pode ser

    atingida com um Estado fortemente planificador e dosadamente intervencionista.

    2. O surgimento das Regies de Desenvolvimento no Brasil

    Embora a identificao de regies dentro de um Estado como espaos

    diferenciados do todo nacional seja um fenmeno praticamente mundial, que afeta tanto

    aos Estados unitrios13

    , quanto aos Estados federais, h uma diferena sensvel entre o

    discurso europeu e o discurso latino-americano sobre as regies. Nos pases europeus, a

    questo regional est atrelada a uma personalidade histrica, a um problema de

    identidade tnica, histrica ou cultural. Na Amrica Latina, a questo regional

    marcadamente um problema econmico e, algumas vezes, social.

    13 Paulo Bonavides alerta-nos, em seu ensaio Federalismo Regional num pas perifrico (p.

    470), sobre o paradoxo: os Estados unitrios (especialmente a Espanha e a Itlia) tm favorecido mais as

    Regies com mais poder autnomo do que os Estados federais.

  • 6

    Foi sob o contexto do discurso econmico e emergencial que apareceram as

    regies no direito constitucional brasileiro.

    Em 1934, a Constituio (art. 177), sensvel ao grave problema das secas

    nordestinas, reservou 4% das receitas da Unio para um plano sistemtico e permanente

    de combate mesma, com obras e servios de assistncia populao, o que redundou

    na criao legal da regio intitulada Polgono das Secas (Lei n. 175, de 07 de janeiro

    de 1936):

    Art. 177 - A defesa contra os efeitos das secas nos Estados do Norte obedecer

    a um plano sistemtico e ser permanente, ficando a cargo da Unio, que

    depender, com as obras e os servios de assistncia, quantia nunca inferior a

    quatro por cento da sua receita tributria sem aplicao especial.

    1 - Dessa percentagem, trs quartas partes sero gastas em obras normais do

    plano estabelecido, e o restante ser depositado em caixa especial, a fim de

    serem socorridos, nos termos do art. 7, n II, as populaes atingidas pela

    calamidade.

    2 - O Poder Executivo mandar ao Poder Legislativo, no primeiro semestre

    de cada ano, a relao pormenorizada dos trabalhos terminados, e em

    andamento, das quantias despendidas com material e pessoal no exerccio

    anterior, e das necessrias para a continuao das obras.

    3 - Os Estados e Municpios compreendidos na rea assolada pelas secas

    empregaro quatro por cento da sua receita tributria, sem aplicao especial,

    na assistncia econmica populao respectiva.

    4 - Decorridos dez anos, ser por lei ordinria revista a percentagem acima

    estipulada.

    A regio Vale do Rio So Francisco, de significativo potencial econmico-

    hidrogrfico e essencial para as comunicaes entre o norte e o sul do pas,

    sensivelmente afetada pelo bombardeio sofrido pela Marinha Mercante brasileira na

    Segunda Guerra, foi criada pelo artigo 29 do ADCT da Constituio de 194614

    :

    Art. 29 - O Governo federal fica obrigado, dentro do prazo de vinte anos, a

    contar da data da promulgao desta Constituio, a traar e executar um plano

    de aproveitamento total das possibilidades econmicas do rio So Francisco e

    seus afluentes, no qual aplicar, anualmente, quantia no inferior a um por

    cento de suas rendas tributrias.

    14 Esse dispositivo foi regulamentado posteriormente pela Lei n. 541, de 25 de dezembro de 1948.

  • 7

    A regio Amaznia Legal, em funo da importncia da borracha para a

    economia brasileira, foi criada pelo artigo 199 da Constituio de 194615

    :

    Art. 199 - Na execuo do plano de valorizao econmica da Amaznia, a

    Unio aplicar, durante, pelo menos, vinte anos consecutivos, quantia no

    inferior a trs por cento da sua renda tributria.

    Pargrafo nico - Os Estados e os Territrios daquela regio, bem como os

    respectivos Municpios, reservaro para o mesmo fim, anualmente, trs por

    cento das suas rendas tributrias. Os recursos de que trata este pargrafo sero

    aplicados por intermdio do Governo federal.

    De qualquer forma, duas palavras novas entraram no lxico constitucional: plano

    e regio.

    Somente em 1959, com o Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do

    Nordeste (GTDN), sob a batuta do economista paraibano Celso Furtado, uma

    perspectiva diversa da meramente econmica, assistencialista e emergencial se

    apresentou, pois se comeou a marcar que o conceito de regio tem de ser

    instrumentalizado para superar as desigualdades econmicas e sociais16

    , pois se

    constatou que os problemas do nordeste, mais do que uma questo hdrica, advinham da

    estrutura fundiria, da disparidade entre os nveis de renda, da prpria poltica nacional

    assistencialista que beneficiava apenas s oligarquias.

    A perspectiva econmica permaneceu, pois a industrializao, diante da escassez

    da oferta de terras adequadas nessa regio, era a aposta do GTDN, especialmente a

    reorganizao das indstrias tradicionais da regio (a algodoeira) e a instalao de

    indstrias de base (a siderurgia).

    Ocorre que o maior obstculo industrializao, identificado pelo GTDN, era o

    abastecimento de alimentos, o que exigia outra perspectiva, a social, especialmente a da

    reestruturao da infraestrutura fundiria e agrria nordestina, pr-requisitos da

    industrializao.

    15 A Amaznia Legal foi delimitada posteriormente pelo artigo 2 da Lei n. 1.806, de 06 de janeiro

    1953, ficando reforado, pelo artigo 3, que os recursos destinados a essa regio somente poderiam ter

    fins estritamente econmicos ou de recuperao econmica. 16

    Referencial essencial nesse ponto foi o relatrio intitulado Uma poltica de desenvolvimento econmico para o nordeste, apresentado em 1959 pelo GTDN. possvel consultar esse relatrio no seguinte link: http://www.sudene.gov.br/conteudo/download/PDEN%20-%20segunda%20edicao.pdf

  • 8

    Nesse novo contexto, nasceu a regio Nordeste (definida pelo artigo 1, 1 da

    Lei n. 3.692, de 15 de dezembro de 1959), sobre a qual se projetou outra poltica

    pblica, uma poltica mais ampla que a econmica, a de desenvolvimento.

    Art. 1. (...) 1 Para os fins desta lei, considera-se como Nordeste a regio

    abrangida pelos Estados do Maranho, Piau, Cear, Rio Grande do Norte,

    Paraba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia.

    Art. 2 A Superintendncia do Desenvolvimento do Nordeste tem por

    finalidades:

    a) estudar e propor diretrizes para o desenvolvimento do Nordeste;

    b) supervisionar, coordenar e controlar a elaborao e execuo de projetos a

    cargo de rgos federais na regio e que se relacionem especificamente com o

    seu desenvolvimento;

    c) executar, diretamente ou mediante convnio, acrdo ou contrato, os projetos

    relativos ao desenvolvimento do Nordeste que lhe forem atribudos, nos trmos

    da legislao em vigor;

    d) coordenar programas de assistncia tcnica, nacional ou estrangeira, ao

    Nordeste.

    Com o regime militar, centralista por excelncia, a ideia das regies foi

    praticamente abandonada; inclusive, os rgos federais de gesto perderam sua

    independncia, passando a integrar o Ministrio Extraordinrio para a Coordenao dos

    Organismos Regionais.

    Nessa toada, a Constituio de 1967 deixou de lado a questo regional,

    preservando apenas um dispositivo sobre o tema, estatuindo que o oramento

    consignasse dotaes plurianuais para a execuo dos planos de valorizao das regies

    menos desenvolvidas do pas:

    Art. 65 (...) 6 - O oramento consignar dotaes plurianuais para a

    execuo dos planos de valorizao das regies menos desenvolvidas do Pas.

    Nesse prisma, as regies Centro-Oeste (Lei n. 5.365/1967) e Sul (DL n.

    301/1967) foram estruturadas com a simples preocupao de aproveitar seus recursos

    naturais e para criar polos de desenvolvimento econmico.

    No h dvida de que o Brasil um Estado de extenso territrio ocupado de

    maneira diferenciada e que apresenta combinaes diversas de variados fatores, sejam

    eles naturais, culturais, econmicos, polticos ou sociais, no somente econmicos.

    O foco central das primeiras polticas pblicas voltadas s regies, no entanto,

    foi o econmico, mais notadamente o da industrializao, pois acreditava-se que a

    simples instalao ou expanso de uma indstria existente faria com que as

    transformaes locais fossem acontecendo, especialmente porque essa, alm de criar

  • 9

    empregos, permitiria a criao de novas atividades para fornecer os insumos necessrios

    para a indstria.

    De outro lado, no podemos olvidar que o fenmeno poltico do regionalismo

    brasileiro sempre esteve atrelado a um disfarado assistencialismo que perpetuava as

    injustias sociais. Ou seja, a elite regional elabora um discurso em que todos os

    problemas devem ser solucionados nacionalmente17, com o intuito de preservar o seu

    status:

    O regionalismo nordestino utilizado para preservar as estruturas de poder das

    suas elites, que mantm sua posio aliando-se ao Governo Central em troca de

    apoio mtuo. A criao de uma imagem de regio problema tem por objetivo

    a obteno de recursos junto ao Governo Federal, que se limita a promover

    polticas pblicas assistencialistas e compensatrias. Deste modo, apesar de

    inegvel modernizao econmica, os problemas sociais continuam o mesmo.

    A forma predatria e oligrquica com que se criou o discurso regionalista no

    Nordeste acaba interferindo e prejudicando qualquer tentativa mais slida e

    abrangente de reduzir, efetivamente, os desequilbrios regionais e democratizar

    o desenvolvimento.18

    Somente o GTDN asseverava que o desenvolvimento econmico no viria antes

    de um desenvolvimento social. Ocorre que a resistncia poltica nunca deixou que essa

    viso se operasse.

    Observe-se que o conceito de desenvolvimento na ONU est muito mais

    atrelado s questes sociais do que s questes econmicas. Basta considerarmos os

    citados objetivos do milnio.

    3. A novel previso constitucional das Regies de Desenvolvimento

    A Constituio de 1988 inaugurou, sem qualquer dvida, uma reviso no

    modelo federativo brasileiro, especialmente em razo da incorporao das novas

    tcnicas de diviso de competncias e pela constituio do municpio como ente

    federativo.

    17 Gilberto Bercovici. Desigualdades regionais, Estado e Constituio, p. 76.

    18 Gilberto Bercovici. Desigualdades regionais, Estado e Constituio, p. 78.

  • 10

    No que diz respeito s regies, inovou de maneira singular: inseriu seo

    especfica para as regies (seo IV) no captulo da Administrao Pblica (captulo

    VII) no ttulo da Organizao do Estado (ttulo III). O que faz o tema das regies entrar

    definitivamente nos estudos sobre a organizao do Estado brasileiro. No ousou,

    apenas, dar o passo de atribuir-lhe estatalidade, a respectiva autonomia poltica:

    Art. 43. Para efeitos administrativos, a Unio poder articular sua ao em um

    mesmo complexo geoeconmico e social, visando a seu desenvolvimento e

    reduo das desigualdades regionais.

    1 - Lei complementar dispor sobre:

    I - as condies para integrao de regies em desenvolvimento;

    II - a composio dos organismos regionais que executaro, na forma da lei, os

    planos regionais, integrantes dos planos nacionais de desenvolvimento

    econmico e social, aprovados juntamente com estes.

    2 - Os incentivos regionais compreendero, alm de outros, na forma da lei:

    I - igualdade de tarifas, fretes, seguros e outros itens de custos e preos de

    responsabilidade do Poder Pblico;

    II - juros favorecidos para financiamento de atividades prioritrias;

    III - isenes, redues ou diferimento temporrio de tributos federais devidos

    por pessoas fsicas ou jurdicas;

    IV - prioridade para o aproveitamento econmico e social dos rios e das massas

    de gua represadas ou represveis nas regies de baixa renda, sujeitas a secas

    peridicas.

    3 - Nas reas a que se refere o 2, IV, a Unio incentivar a recuperao de

    terras ridas e cooperar com os pequenos e mdios proprietrios rurais para o

    estabelecimento, em suas glebas, de fontes de gua e de pequena irrigao.

    A regio, na Constituio de 1988, no chega a ser uma Comunidade Autnoma

    (criada pela Constituio espanhola de 1978), uma Regio de Estatuto Especial

    (instituda pelo art. 116 da Constituio italiana de 1947) ou uma Regio Ordinria

    (instituda pelos arts. 123 e 131 da Constituio italiana de 1947), que possuem

    autonomia poltica.

    O Brasil no deu o passo de criar entes territoriais autnomos, apenas

    constitucionalizou a prtica anterior, a gesto de regies por rgos vinculados ao

    governo federal, mais especificamente autarquias que faziam parte da administrao

    indireta da Unio.

    O tema das regies, ademais, entrou na base estrutural da Constituio de 1988,

    pois o inciso III do artigo 3 colocou a reduo das desigualdades regionais como um

    dos objetivos fundamentais do pas:

    Art. 3 Constituem objetivos fundamentais da Repblica Federativa do Brasil:

    III - erradicar a pobreza e a marginalizao e reduzir as desigualdades sociais e

    regionais;

  • 11

    Em mltiplos dispositivos e sob diversas pticas, a Constituio de 1988 refere-

    se s regies.

    Do ponto de vista do planejamento, atribuiu expressamente Unio o encargo

    de elaborar os planos regionais de desenvolvimento econmico e social (art. 21, IX)

    dependente da aprovao congressual e presidencial (art. 48, IV; art. 165, IV). Estatuiu

    Comisso Mista Permanente de Senadores e Deputados para apreciar, bem como para

    exercer o acompanhamento e a fiscalizao oramentria desses planos (art. 166, 1,

    II), sem prejuzo da atuao das demais comisses, em razo da matria (art. 58, 2,

    VI).

    Do ponto de vista tributrio, permitiu que a Unio utilizasse do instrumental

    dos incentivos fiscais para tratar desigualmente determinada regio, buscando o

    equilbrio do desenvolvimento socioeconmico (art. 151, I) e manteve a Zona Franca de

    Manaus (art. 40 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias ADCT).

    Do ponto de vista financeiro, destinou percentual do IR e do IPI para o

    financiamento do setor produtivo de determinadas regies (art. 159, I, c; conjugado com

    o art. 34, 10 e 11 do ADCT), resguardando as caractersticas e condies

    operacionais plenas das instituies oficiais de crdito da Unio voltadas ao

    desenvolvimento regional (art. 163, VII).

    Do ponto de vista mais restrito das finanas pblicas, estabeleceu que o Plano

    Plurianual deve estabelecer as diretrizes, objetivos e metas da administrao pblica

    federal de forma regionalizada (art. 165, 1); que o oramento fiscal e de investimento

    em empresa estatais, integrantes da lei oramentria anual, precisa ter a funo de

    reduzir as desigualdades inter-regionais (art. 165, 7; art. 35 do ADCT); que os

    recursos da Unio destinados irrigao sejam aplicados preferencialmente no Nordeste

    e na Regio Centro-Oeste (art. 42 do ADCT). Desde 2000 (em funo da Emenda

    Constitucional 29/2000), a Constituio estabelece tambm que o rateio dos recursos

    pblicos da Unio e dos Estados vinculados sade deve seguir critrios fixados em lei

    que objetivem a progressiva reduo das disparidades regionais (art. 198, 3, II).

    Do ponto de vista econmico, estabeleceu que a ordem econmica est fundada

    no princpio da reduo das desigualdades regionais e sociais (art. 170, VII) e que o

    Estado, como agente normativo e regulador da atividade econmica, estabelecer

  • 12

    legalmente as bases do plano de desenvolvimento econmico nacional, incorporando os

    planos regionais de desenvolvimento (art. 174, 1).

    Deu-se ateno constitucional tambm ao aspecto cultural, pois o ensino

    fundamental deve assegurar a formao e o respeito dos valores regionais (art. 210), o

    plano nacional de cultura necessita prever aes pblicas que valorizem a diversidade

    regional (art. 215, 3, V), a pesquisa tecnolgica promovida pelo Estado precisa estar

    voltada para o desenvolvimento do sistema produtivo regional (art. 218, 2), a

    programao das emissoras de rdio e televiso deve promover a cultura regional (art.

    221, II), a produo cultural, artstica e jornalstica deve ser regionalizada (art. 221, III).

    Esse ponto, a proteo constitucional da cultura regional, merece destaque, pois

    muitas vezes o desenvolvimento visto apenas do ponto de vista econmico parece exigir

    e at mesmo justificar a eliminao de certas tradies ou heranas culturais.

    A proteo constitucional da cultura regional, em um Estado democrtico de

    Direito, d-nos outra perspectiva.

    Se um modo de vida tradicional tiver que ser sacrificado, pois parece o nico

    caminho para se escapar da pobreza devastadora ou mesmo da baixa longevidade de

    uma comunidade, somente as pessoas diretamente envolvidas devem ter a prerrogativa

    de decidir cooperativamente sobre o problema e as solues. No se pode optar

    automaticamente pela modernidade, nem mesmo pela tradio. Somente uma resoluo

    participativa legtima. O que exige, em consequncia, a preparao intelectual, uma

    poltica pblica vinculada a uma educao emancipadora das pessoas envolvidas19

    .

    Em um Estado democrtico, preciso que as pessoas beneficiadas pelos

    programas pblicos de desenvolvimento envolvam-se ativamente na conformao de

    seus prprios destinos, no podem se tornar apenas beneficirias passivas desses

    engenhosos programas20

    .

    4. A marca do federalismo centralista sobre as regies de desenvolvimento

    19 Cf. Amartya Sen. Desenvolvimento como liberdade, pp. 47-48. 20 Cf. Amartya Sen. Desenvolvimento como liberdade, p. 71.

  • 13

    No modelo brasileiro de gesto regional estabelecido como paradigma pela

    Superintendncia do Desenvolvimento do Nordeste SUDENE (art. 5, 2, da Lei n.

    3.692/1959), as decises eram tomadas com a frgil participao dos governos estaduais

    envolvidos. O que concretizava, de qualquer forma, um federalismo regionalizado

    peculiar.

    Devido resistncia poltica inclusive dos prprios governos envolvidos, que

    no ousaram modificar as estruturas sociais de base, governos brasileiros sucessivos

    desmantelaram esse projeto, consolidando o centralismo do planejamento regional,

    concentrando-se em incentivos fiscais que beneficiavam grandes operadores

    econmicos e ignorando qualquer reforma social. Afastou-se, portanto, da ideia de

    desenvolvimento21

    .

    O desmantelamento completo do modelo das autarquias federais (SUDENE e

    SUDAM) se deu em 2001, com a extino das mesmas e a substituio delas por duas

    agncias inexpressivas e efmeras: Agncia para o Desenvolvimento da Amaznia

    ADA e Agncia para Desenvolvimento do Nordeste ADENE.

    A partir do governo Lula seguido pelo governo Dilma, no entanto,

    restabeleceram-se os rgos regionais de desenvolvimento. Hoje, o Ministrio da

    Integrao Nacional atua com as autarquias federais SUDAM (Superintendncia do

    Desenvolvimento da Amaznia), SUDENE (Superintendncia do Desenvolvimento do

    Nordeste), SUDECO (Superintendncia do Desenvolvimento do Centro-Oeste),

    DNOCS (Departamento Nacional de Obras contra as Secas) e a empresa pblica

    CDVSF (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do So Francisco e do Parnaba).

    A Superintendncia do Desenvolvimento do Nordeste SUDENE foi recriada

    pela Lei Complementar n. 125, de 03 de janeiro de 2007. relevante destacar que seu

    Conselho Deliberativo, rgo responsvel por formular as polticas pblicas e os

    programas regionais de desenvolvimento (art. 10, I e II), est composto pelos

    governadores dos Estados envolvidos, por representantes de Municpios da regio, da

    classe empresarial e da classe dos trabalhadores (art. 8, I, IV e V), embora seja

    majoritariamente composto por representantes de diversos ministrios.

    21 Cf. Gilberto Bercovici. Desigualdades regionais, Estado e Constituio, p. 114-124.

  • 14

    A Superintendncia do Desenvolvimento da Amaznia SUDAM foi recriada

    pela Lei Complementar n. 124, de 03 de janeiro de 2007, nos mesmos moldes (arts. 8,

    I, III e IV; art. 10, I).

    A Superintendncia do Desenvolvimento do Centro-Oeste SUDECO foi

    recriada pela Lei Complementar n. 129, de 08 de janeiro de 2009, tambm nos mesmos

    moldes (art. 8, I, III, IV; art. 10).

    De incio, com participao dos governos estaduais e com certa autonomia tpica

    das autarquias. Em 1964, rebaixadas a algo semelhante a um rgo federal vinculado

    aos ministrios da presidncia (Lei n. 4.344/1964). Em 2001, substitudas por agncias

    (MP 2156-5 e 2157-5), atreladas ao comando federal pelo instituto do contrato de

    gesto (efetiva amarra de seu programa de ao). Em 2007, com o controle dos

    ministrios envolvidos.

    Continua atual, portanto, a afirmao de Gilberto Bercovici:

    Ao invs de fortalecer o federalismo no Brasil, o artigo 43 da Constituio de

    1988 pode servir para ampliar os poderes do Governo Federal: a criao das

    Regies compete exclusivamente Unio, sem qualquer participao dos

    Estados interessados. Os organismos regionais previstos no texto

    constitucional so considerados apenas como meros executores dos planos

    regionais de desenvolvimento, que so elaborados tambm na rbita federal.

    A vontade regional, ou, ao menos, a dos Estados e Municpios envolvidos, ,

    aqui, totalmente desprezada.22

    5. O federalismo dual e o federalismo de subordinao

    O federalismo norte-americano inaugurou um modelo bastante inovador de

    arranjo de poderes estatais. No seguiu o clssico modelo do Estado unitrio

    descentralizado, no qual as regies do Estado adquiriam o perfil de meras unidades

    administrativas sob a batuta de um nico comando. No seguiu o modelo de unio de

    Estados confederados, em que o poder central dependia das unidades confederadas para

    implementar seus comandos.

    Com o fim de consolidar uma unio mais perfeita (como consta do prembulo

    da Constituio norte-americana), conformaram-se os poderes central e estaduais

    independentes (no sentido amplo da palavra, igualmente soberanos), com todo o aparato

    pblico necessrio para atuarem, dentro de seus limites territoriais, diretamente sobre as

    22 Gilberto Bercovici. Desigualdades regionais, Estado e Constituio, p. 235.

  • 15

    pessoas e propriedades, para imporem os seus comandos normativos. A duplicao dos

    aparatos de governo (legislativos, executivos e judiciais), atuando diretamente sobre os

    cidados parece-nos a grande novidade desse modelo de arranjo de poderes.

    Atrelado a isso, o governo central foi configurado originalmente como possuidor

    de um poder controlvel, pois adstrito a um rol taxativo de atribuies. Somente nesses

    pontos concretos poder-se-ia invocar a supremacia do poder central. Em todos os

    demais campos, a base era a da supremacia do estadual. Havia, portanto, plena

    soberania no domnio apropriado de cada um.

    Essa dualidade (independente e coordenada) de poderes que se projetavam sobre

    todos e a existncia de dois campos de poder mutuamente exclusivos parecem-nos as

    razes para que esse modelo de arranjo de poderes tenha se perpetuado com o epteto

    federalismo dual.

    Ocorre que, muito cedo, em termos histricos, os poderes centrais foram

    ampliados pela teoria dos poderes implcitos.

    Como a Constituio no descrevia com mnimos detalhes os poderes

    enumerados, o judicirio norte-americano (legtimo intrprete da diviso dos poderes,

    segundo o pensamento constitucional original) reconheceu que o poder central tinha que

    possuir no somente os poderes claramente enumerados, mas todos os poderes

    necessrios e apropriados para o exerccio de tais poderes enumerados (McCulloch

    versus Maryland, 1819).

    A Corte Suprema teve um papel importante de resistncia ao locupletamento

    central da soberania estadual (desde o caso Hammer versus Dagenhart, de 1918, at o

    caso Schechter Poultry Corp. versus Estados Unidos, de 1935). Ocorre que, a partir de

    1937, a Suprema Corte, cedendo poltica intervencionista do New Deal (implantada

    por Roosevelt como trilha necessria para superar a depresso econmica), comeou a

    eliminar as limitaes ao poder central advindas do federalismo dual, revendo,

    inclusive, o seu posicionamento anterior (Estados Unidos versus Darby, de 1941)23

    .

    A partir desse momento, o federalismo norte-americano original no foi o

    mesmo imaginado (ou, talvez, por ns utopicamente imaginado).

    23 Antes desse, so significativos os seguintes casos: Junta Nacional de Relaes Trabalhistas

    versus Jones & Laughlin Steel Corp., de 1940; Sunshine Anthracute Co. versus Adkins, de 1940.

  • 16

    Pela fresta do poder central de regulamentar o comrcio interestadual, o

    Congresso passou a regular tudo o que afetava mesmo que remotamente a esse

    comrcio: at mesmo o servio de limpeza de janelas de um edifcio que possua

    empresas que realizavam comrcio interestadual (Martinho versus Michigan Window

    Cleaning Co., de 1946)24

    .

    Por essa razo, Bernard Schwartz afirmava na dcada de 80:

    ...o sistema americano no mais, nitidamente, um sistema de federalismo

    dual. A Unio americana, hoje, no se baseia numa diviso de soberania entre

    iguais governamentais. Em vez disso, caracteriza-se pelo predomnio do poder

    federal sobre o poder estadual. No existe mais uma rea exclusiva de

    autoridade estadual sobre o comrcio dentro do qual a autoridade federal no

    possa ser exercida [...] o poder regulamentar federal agora totalmente difuso.

    Pode ser exercido sobre qualquer tema escolhido pelo Congresso e no

    constitui objeo a seu exerccio que ele possa entrar em conflito com os

    poderes habituais dos estados.25

    Por outro lado, desde o New Deal, o governo central norte-americano acentuou

    sua poltica intervencionista nos poderes estaduais de maneira muito mais eficaz, qual

    seja, pelo instrumental das subvenes federais. Algo muito e muito presente na

    realidade brasileira tambm.

    Sem invadir a terica liberdade ou soberania estadual, o governo federal oferecia

    e oferece as subvenes mais diversas, desde que se cumpram alguns condicionamentos

    federais. Tcnica ou teoricamente, respeitavam-se as autonomias estaduais. A prtica,

    no entanto, impede-nos de considerar tal conduta como compatvel com a autonomia

    estadual.

    No meio do sculo passado, 15% dos recursos financeiros estaduais norte-

    americanos estavam atrelados a esses projetos federais de subveno. No anos 80,

    constituam 25%. As subvenes federais tornaram-se base do sistema governamental

    norte-americano. O poder de dispndio tornou-se o mais importante poder central e

    afeta sensivelmente o funcionamento do sistema federal norte-americano, que no tem

    mais nada de dual.

    24 O nico freio a essa poltica foi estabelecido mais recentemente, impedindo a regulao federal

    sobre as atividades estaduais tipicamente estatais (Liga Nacional da Cidade versus Usery, de 1976). 25

    Bernard Schwartz. O federalismo norte-americano atual, p. 36.

  • 17

    Para o Brasil, d-se o mesmo: toda ajuda federal estendida ao preo de um

    controle cada vez maior sobre as administraes estaduais e municipais. Essa poltica

    crava estacas profundas na autonomia imaginada pelos entes federados.

    6. Por uma nova poltica federal para o desenvolvimento regional

    O foco desviado do federalismo brasileiro manifesta-se pela luta estadual e

    municipal pela autonomia sem romper com os beneplcitos do repasse de verbas

    federais. Trata-se de um desvio ideolgico que atinge o cerne da ideia federalista.

    O foco do federalismo no deve ser a descentralizao, pois esse deveria ser um

    pr-requisito instituinte do mesmo; o foco teria de ser a integrao, a unidade nacional,

    especialmente a solidariedade: o atuar conjuntamente para resolver os problemas

    comuns, sem desconsiderar a capacidade de resolver as questes peculiares de maneira

    separada.

    O problema do desenvolvimento, especialmente se considerado na perspectiva

    ampla que exploramos neste texto, um problema comum que exige a atuao conjunta

    e solidria.

    No h cooperao se a Unio atua isoladamente no planejamento (o que

    reforado pelos arts. 21, IX e 48, IV da Constituio de 1988), se os organismos

    regionais so meros administradores locais das polticas controladas integralmente pela

    primeira.

    No h colaborao, solidariedade, mas dominao, se nas mos da Unio est

    efetivamente a receita, se a Unio impe condies aos Estados e aos Municpios para

    repassar as suas verbas (ou mais especificamente para renegociar suas dvidas

    exigindo a privatizao de bancos e companhias energticas, por exemplo). fcil

    compreender por que Paulo Bonavides identifica nosso federalismo como um

    federalismo de subordinao.

    No h planejamento para o desenvolvimento se limitamos o seu espectro a

    pensar apenas no oramento, no crescimento econmico.

    O grande objetivo do desenvolvimento a elevao das condies sociais, a

    expanso da liberdade, em todas as dimenses anteriormente apontadas, no o mero

    crescimento econmico.

  • 18

    O norte da igualao e de relativa homogeneidade social significa que todos tm

    o direito a que o Estado providencie as mesmas condies de expanso da liberdade em

    todas as regies.

    preciso que as Regies adquiram estatalidade, com capacidade poltica,

    precisam ser sujeitos, e no meros objetos. Os cidados precisam conservar o poder de

    governar, no meramente de administrar os seus problemas locais.

    Os perigos da centralizao j foram declarados por Alexis de Tocqueville.

    Resolvem momentaneamente todos os sintomas, constituem imagem bastante positiva

    para o governo do momento, mas destroem a verdadeira evoluo:

    ...a centralizao administrativa s serve para debilitar os povos que a ela se

    submetem, porque tende sem cessar a diminuir entre eles o esprito de

    cidadania. A centralizao administrativa, verdade, consegue reunir em

    determinada poca e em certo lugar todas as foras disponveis da nao, mas

    nociva reproduo das foras. Ela a faz triunfar no dia do combate, mas

    diminui com o correr do tempo sua potncia. Portanto, pode contribuir

    admiravelmente para a grandeza passageira de um homem, mas no para a

    prosperidade duradoura de um povo.26

    A Constituio de 1988 no neutra; estabelece prioridades, das quais

    destacamos: o desenvolvimento e a reduo das disparidades regionais. Esse programa

    de atuao precisa ser lido como tal, como uma imposio de conduta imediata para o

    Estado e para a sociedade (de transformao das estruturas culturais, polticas,

    econmicas e sociais), conduta esta que constitui a ossatura principal da Constituio de

    1988, pois constitui objetivo fundamental da organizao poltica brasileira.

    De qualquer forma, celebramos a Constituio de 1988.

    No porque esteja realizada, no porque tenha sido compreendida, no porque

    tenha conseguido modificar as perspectivas sobre o desenvolvimento e sobre o

    regionalismo no pas, no porque tenha estabelecido modelo de federalismo regional

    que nos parea adequado (alteraramos o centralismo planejador, atribuiramos

    autonomia poltica s regies, explicitaramos que o desenvolvimento uma questo de

    expanso da liberdade que deve ser resolvida pelas trilhas democrticas), mas porque

    ela fixa as bases que nos permitem pensar um projeto de desenvolvimento mais elevado.

    REFERNCIAS

    26 Alexis de Tocqueville. A democracia na Amrica: leis e costumes, p. 99.

  • 19

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