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ortográfica é de responsabilidade exclusiva do autor.
Publicado por Perse editora.
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Todos os direitos dessa edição reservados ao
autor.
©2012 Heribert Vicente Bastos
Título original em português: Lado A Lado B
Edição, diagramação e Capa: Heribert Vicente
Bastos
Revisão: Margarete Bianco
Paula Arruda
ISBN e-book: 978-85-8196-211-5
ISBN: 978-85-8196-212-2
É PROIBIDA A REPRODUÇÃO
Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida, copiada, transcrita ou mesmo transmitida por meios eletrônicos ou gravações, assim como traduzida, sem a permissão, por escrito do autor. Os infratores serão punidos pela Lei nº 9.610/98
.
As pessoas que me apoiaram. Aos
amores da minha vida.: Paula e Maria
Luiza
Agradecimento especial pelas
valiosas leituras, revisões e sugestões:
Margarete Bianco e Paula Arruda
Heribert Bastos
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CAPÍTULO 1
Madrugada de segunda–feira
Lógico que esse é meu depoimento pessoal e muitos
acharão que estou aumentando alguma coisa ou mesmo
inventando. E pode ser verdade, mas fica a seu cargo,
caro leitor, imaginar ou tentar identificar.
Quero contar sobre Maria Laura. Uma mulher
exatamente como as mulheres do seu tempo. Tem um
emprego, vai à academia, tem um carro grande com
câmbio automático, tem um cachorro e um marido. Mora
em um apartamento pequeno mas confortável em um
bairro de classe média alta de uma cidade bem grande.
Foi promovida a coordenadora no seu trabalho e está
super empenhada (e feliz) nos desafios do mundo
corporativo.
Tudo isso era perfeito para ela, mas alguma coisa
estava fora da ordem. Ela ainda não sabia exatamente o
que mas essa "coisa" lhe dava um nó na garganta e não a
deixava dormir.
Seu estômago revirava e seu coração disparava em
uma ansiedade que não diminuía. Mesmo com algumas
pequenas bolinhas mágicas (que sua mãe lhe deu sem
prescrição médica) aquela sensação de "alguma coisa vai
acontecer" não diminuía, só aumentava.
E naquela noite ela já havia passado por todos os
duzentos e tantos canais da tevê por assinatura, já tinha
lavado a louça, já tinha arrumado sua roupa e o sono não
chegava.
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Seu marido já havia dormido fazia horas. Mesmo
depois de um arroubo excitante e feroz na sala, após o
jogo de futebol. Um amor na sala selvagem, mas... mas...
tão rápido e tão fugaz quanto uma folha de papel
queimando. Logo se apagou. Ele foi tomar banho, assistiu
todos os comentaristas esportivos e dormiu bufando na
cama.
Mas não era só o sexo mal iniciado, ou mal
acabado, como quiser, que a incomodava... Era outra
"coisa".
Por fim decidiu rezar, fechar os olhos e não mudar
mais de posição até pegar no sono e ele veio.
Nesse ponto entra a história contada diretamente
por ela que começou na segunda–feira. Tentarei ser o
mais fiel ao modo dela me contar, com todos os detalhes
que vou lembrar ou aumentar.
Era segunda–feira de manhã e minha vida mudou.
Eu Maria Laura Azeredo, descendente dos Azeredos
Furtado da Bahia, fiquei maluca, sem saber ao certo se
estava sonhando ou se estava acordada. Nem a TPM, que
deixa homens e mulheres malucos, faz um estrago desses.
Tudo começou um dia que acordei, dezessete anos
atrás, deitada no meu quarto de adolescente. Era muito
estranho. Não tinha certeza se estava sonhando ou se era
uma brincadeira. A princípio fiquei pensando em ser uma
pegadinha. O quarto, meus bichos de pelúcia, meu
uniforme de escola, tudo como era antes. Deitada eu via a
iluminação que entrava pela fresta da janela e pessoas
falando. Eram homens que falavam alto alguma coisa
sobre futebol. Levantei rapidamente e fui até a janela.
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Tropecei em uma mochila e quase voei para a rua. A visão
pela fresta da veneziana era da rua que morava com minha
mãe na época do colégio. Lá estava o bar do seu Antônio!
Aliás, lá estava seu Antônio parado na porta do boteco
conversando com um homem barrigudo e de bigode. Eu
voltei para a cama e deitei rapidamente e fechei os olhos.
Que palhaçada era aquela? Quem havia me levado para
aquele lugar? Forcei os olhos o mais que pude pensando
em dormir. Meu coração quase pulava pela boca de tanta
ansiedade e nervosismo. Quando eu abri os olhos as coisas
permaneciam iguais eram no passado, mas só que no
presente. Aquele era o meu presente! Era um presente de
grego. Eu não deveria mais estar ali. Eu era uma mulher
adulta, casada, com um trabalho e uma casa para cuidar! O
que aconteceu comigo?
Pulei novamente da cama e tentei analisar a
situação. Mas nem meu lado mais lógico permitia que eu
entendesse aquilo sem um evento concreto. Fiquei
andando para frente e para trás, tentando buscar no fundo
da minha memória, da minha alma ou de qualquer coisa
uma explicação. Até que, de pé, no meio do quarto,
desesperada sem saber o que fazer quase tive um infarto
quando um despertador, daqueles antigos de corda,
desandou a tocar como se fossem os sinos do céu, me
chamando para prestar conta dos pecados cometidos na
terra. Eram seis e trinta da manhã!
Não teve jeito de segurar aquele choque: sentei e
chorei de desespero! E chorei tão alto e desesperada que
todo mundo deve ter ouvido. Nessas horas mãe faz a
diferença! E ela apareceu! Na porta do quarto me olhando
e perguntando o que aconteceu! Aí eu chorei mais ainda e
ela me apertando contra o seu peito maternal para me
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acalmar. Aqueles olhos castanhos, cheios de ternura, me
consolando, dando carinho! Eu não queria mais sair dali.
Só tinha um detalhe que estava estranho: por que eu estava
ali?
Foi um sonho filha! Calma, mamãe está aqui.
– Me ajuda – disse com dificuldade entre um soluço
e outro.
Calma... respira fundo! – dizia ela calmamente.
Mãe nos dá tudo o que pode e precisamos. Quem
consegue viver com sua mãe o resto da vida (falando dos
normais)? Vendo–me recuperada, veio ela me jogar nas
garras da vida de volta a aquela realidade de tantos anos
atrás que eu nem sabia porque estava ali.
Vamos menina! Você tem prova de Matemática e
não pode faltar na escola. Nem sonho te impede de ir para
escola hoje. Já está melhor, vamos!
– Prova! – Repeti sem ânimo e sem fôlego.
Prova! Ninguém me avisa nada? Que besteira eu
escreveria, se a última lembrança do colégio eram as
poesias do Drummond:
"Tinha uma pedra no meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra"
Como lembrar as equações e fórmulas tantos anos
depois, ninguém merece! Mantive a calma ou disfarcei
bem. Tentei não falar nada a minha mãe e, enquanto o
cheiro do café de minha avó impregnava a casa, fui
remontando os meus passos da noite antes de dormir e
acordar assim novinha, ainda no colegial e morando com
minha família.
Enfurnei–me no banheiro tentando ficar sozinha e
escapar dos olhos de águia da minha mãe, que cercavam
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meus passos, pronta para me fazer largar aquele embaço e
correr carreira para escola.
Naquele momento viria a grande descoberta naquela
manhã! Estava novinha de novo, bonita e cheia de curvas.
Tirando o cabelo de espantalho de “acabei de acordar e
dai”, a testa cheia de espinhas e as unhas roídas, estava
muito da formosinha! Gostei do que vi! Não quero parecer
convencida ou exibida, não é meu estilo, mas sempre fui
mulherão! Quando adolescente era atenção dos meninos,
até os mais velhos. Os seios formados, a retaguarda
sempre avantajada (mal de família), o cabelo castanho,
liso em cima e encaracolado na ponta, um toque especial
diferente das outras meninas de cabelo liso puxado na
escova e algumas até chapinha. Não me lembrava de que
estava tudo tão em cima. Contive minha contemplação
narcisista na cantoria alta da minha mãe na porta do
banheiro.
– Vamos atrasar!!! Quero ver a nota de Matemática
no final do mês! – Forçava ela na canção.
Aproveitei a tensão e gastei os cremes e loções dela,
passei um batom e fui enfrentar a realidade ou a ilusão
daquela doida manhã. Antes de sair tinha que resolver um
pequeno imprevisto:
– Mãe – gritei abrindo a porta do banheiro e
colocando só a cabeça para fora – onde tem absorvente?!?
Depois de ser salva, fui colocada para fora pelas
broncas da minha mãe e os olhares da minha avó.
– Seu irmão já deve estar chegando. Se você correr
pode alcançá–lo! — disse a velhinha.
Mal tive tempo de tomar café da manhã tão especial
da minha avó.
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Fui andando devagar pela rua recordando as
pessoas, as casas, as árvores e tudo que fazia parte das
minhas mais remotas lembranças colegiais.
Na avenida principal do meu bairro vi uma casa de
esfirra na esquina, fechada naquele horário, lógico, mas
com a placa convidativa dizendo das promoções da época.
Que vontade de comer uma bela esfirra de carne com
aquele limão... minha boca até salivava! Mais adiante,
próximo a uma grande agência bancária, estava um bar
aberto vinte e quatro horas. Os trabalhadores que entravam
cedo se misturavam aos vagabundos da noite. Alguns com
seu pingado com pão na chapa e outros com copo de pinga
mesmo, faziam barulho como se fosse meio dia. Mais
adiante Jaime, o engraxate! O Tadeu da banca de jornal!
Seu Adriano, o aposentado, acordava cedo e ficava
passeando pelo bairro para falar do Corinthians!
E o casarão azul? Uma casa cercada por um portão
sinistro e árvores altas. Ninguém entrava nem saia dali,
pelo menos eu nunca vi alma viva naquele lugar. Eu não
tinha medo e sim respeito por aquelas janelas altas e
aquelas sombras estranhas. Mas acelerava o passo ao
andar na frente daqueles portões, sempre achava que tinha
alguém me observando. Detesto gente me olhando!
Por fim a rua do colégio. Aquela ladeira longa e o
Bidu, um vira–lata que vivia colhendo da boa vontade de
quem lhe dava comida. O bicho me olhou de modo
estranho e parecia entender que eu não devia estar ali.
Por causa dessa apreciação toda, cheguei mais
atrasada ainda na escola. O portão fechado me obrigou a
passar pela barrada saia da irmã Olímpia na secretaria, que
me atendeu sem nem mostrar os dentes.
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A mulher baixinha, de rosto branco e nariz pontudo,
mãos frias e fala rápida, não gastou seu latim aprendido no
convento comigo, deu somente algumas recomendações e
um livro grande e verde para eu assinar.
– Não adianta pressa, tem que passar por aqui e
assinar o livro verde – Disse ela carregando no sotaque de
quem vem do interior – E depois explicar para sua mãe os
atrasos, né mocinha?
Escorreguei da sala dela antes do início do sermão.
Não tô podendo! Voltar no tempo e escutar sermão de
irmã Olímpia às sete e meia da manhã!
Corri as salas de aula procurando lembrar de alguém
que tinha estudado comigo, isso me daria segurança na
minha sala. Logo na segunda porta já reconheci a Rita,
olhando direto para mim como se estivesse me esperando.
Rita era uma pernambucana bonitinha e arretada de pele
negra e cabelos trançados como em um desenho. Seu rosto
era delicado como de uma boneca e seus olhos, castanho
claros, eram um chamariz que a deixava mais linda e
exótica. Mas seu gênio era de um leão. Botava o dedo na
cara de quem fosse, se achasse seu direito ou sua razão.
Ao me ver no vidro da porta da sala fez um gesto
para eu entrar rapidamente e sentar ao seu lado, fiz isso
rápido sem olhar para cara do professor.
Agora vou fazer um parêntese para contar uma
história:
(Diz o seguinte: uma loira entrou em um cassino se
aproximou da roleta, tirou toda roupa, fez uma aposta e
começa a torcer. Todos os homens da mesa ficaram
olhando para ela espantados enquanto ela pulava e gritava
pelo resultado. A roleta parou, ela gritou vitória, recolheu
todas as fichas da mesa colocou a roupa e saiu em direção
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ao caixa. O homem na ponta oposta da mesa perguntou
para outro do seu lado.
– Você viu o resultado? Ela ganhou mesmo?
– Não sei... não vi!
Moral da história: nem toda loira é burra, mas todo
homem é igual!)
Agora você vai entender porque contei essa história
e fecho o parêntese.
Explico isso porque não sou loira, mas a história tem
razão e o professor José, de Matemática, não fugia a essa
regra: era igual a todos os homens. Logo de cara, quando
me viu entrar, fez uma gracinha bem sem graça e cheia de
malícia, sobre minha beleza, juventude e meu atraso. Hoje
em dia ele seria processado. Mas sem elaborar muito, e
sem olhar para ele, o fiz lembrar da ótima oportunidade de
ficar quieto:
– A beleza é da minha família, o atraso um acidente
e os meus ouvidos não são fossa, já me expliquei para
irmã Olímpia! Posso fazer a prova?
– A educação também é de família? – Se irritou ele.
– Minha educação responde no tom de quem está
falando... a prova?
Quem está errado não retruca e o assunto morreu
onde havia começado na boca do professor José. Ele me
entregou o papel de má vontade e a prova ocorreu como
deveria ser: uma bosta!
Eu já estava tonta por estar ali dezessete anos atrás,
depois daquela prova então, não sabia nem quem era eu ou
em que planeta eu estava. Não me conformava como
alguém pode gostar de Matemática e fazer daquilo
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profissão! Como engenheiros e matemáticos. O pior é que
mesmo odiando eu era boa naquilo.
Tudo encerrou e eu achei que se fechasse os olhos
voltaria para minha cama de lençóis brancos e rosa. Mas
veio o intervalo. Fiquei besta de ver como as meninas
daquela idade eram bobas e falavam bobagem.
Tudo bem, a bunda do jogador era muito
redondinha, mas aqueles meninos ridículos do “conjunto
americano somos todos iguais” não serviam nem para
passar um dia de chuva na praia.
Fugi das rodinhas e me tranquei no banheiro
tentando buscar um pouco de sanidade, mas só encontrei
mau cheiro e mais barulho. Saí e sentei longe do banheiro
e da bagunça em um banco afastado. Fiquei com a cabeça
baixa esperando algo ou alguém me salvar.
De repente uma mão leve pousou no meu ombro: era
do Sr. Benê, o inspetor de alunos ou bedel como dizia
minha avó! Ele me perguntou se estava tudo bem e eu
disse não. Ele me puxou ternamente, como um avô com
sua neta, me avisou que o intervalo acabara.
– Vamos filha, sua aula já deve ter começado. Se
estiver passando mal vamos à secretaria, a Irmã Olímpia te
dá um remédio.
– Irmã Olímpia de novo não, Sr. Benê! Melhor
voltar para a aula.
– Vem comigo... eu te levo.
Fiquei com os olhos cheios d'água ao vê–lo me tratar
daquele jeito todo delicado. Agarrei no braço do velhinho
e fui deixando ele me levar. Minha carência e minhas
maluquices tornaram Sr. Benê o homem mais gentil que
havia falado comigo naquela doida manhã! Apesar de
estar, naquele momento, com um quarto da idade dele, eu
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tinha a mesma altura que ele, se não fosse maior. Mas
mesmo assim me sentia acolhida e protegida por aquele
velhinho de cabelos prateados, pele morena e enrugada e
de óculos fundo de garrafa. Aquele cheiro de loção pós-
barba e aquelas mãos antigas, traziam uma experiência
sabe–se de quanto tempo, conduziam minha vida naquele
momento. Uma ótima lembrança viva. Subimos uma
escada, degrau por degrau, sem pressa.
Íamos em direção à porta, atravessando o grande
pátio, quando surgiu Rita, vermelha e esbaforida. Da porta
me lançou um esporro que fiquei até descadeirada. Foi tão
autoritária que Sr. Benê até riu.
– Vamos mulher! Vai ficar dependurada nos braços
do Sr. Benê? Tá achando que eu tenho a vida inteira para
te esperar? O Joaquim já está na sala! Tenho coisas
importantíssimas para te dizer!
A maluca me arrancou dos braços do velhinho que
quase caiu! Não tive tempo nem de dizer obrigada pelo
ombro amigo. Fui praticamente arrastada pelo corredor
vazio. Melhor vazio mesmo, pois assim ninguém viu a
espatifada que eu dei no chão enquanto a menina doida
tagarelava alguma coisa sem parar e sem eu entender
nada. Ela voltou, me olhou no chão, me colocou em pé
com apenas um tranco e ainda me chamou de lerda!
– Eu não vou te falar mais nada. Não quero saber de
você me perguntando nada sobre ele!
– Ele quem? – Disse eu com cara de dúvida.
– Quem mais senão seu tão lindo Fabiano. O homem
mais topetudo desse colégio... Homem não, que ele ainda
carece de experiência para ser homem com “H”
maiúsculo.
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Juro que não lembrava mais dele. O menino mais
famoso e lindo da escola. Foi minha paixão durante anos.
Loiro, topetudo, alto, jogador de basquete, bom de briga,
legal, enfim, tudo de bom para uma garota da minha idade
ou com aquela idade, vamos deixar bem claro.
Entrei na sala e não me concentrei em nada do que o
professor de Geografia falava. Estava pra lá de tonta com
tantos acontecimentos estranhos. Eis que se não bastasse a
porta da sala se abriu e por trás dela ele veio! Aquele
topete loiro, de bermuda, tênis preto surrado, aquele
sorriso de moleque, aquela barba adolescente por fazer,
aquele rosto cheio de espinha, aquele corpo magro, aquele
jeito estranho de andar (pensando bem... que diabos eu via
naquele moleque). Rita, toda assanhada ao meu lado, me
deu um cutucão com o cotovelo que quase me manda pro
beleléu! Só por Deus! Eu já estava sem ar ao vê–lo, depois
daquilo era só levar para ambulância ou para primeiro
velório com falta de defunto. Depois da décima tossida e
de parar a aula reclamei com ela:
– Tu é retardada ou assassina?
– Lesada! – retrucou ela.
Virou a cara e não ligou para o mico que eu passei.
Com a ponta do queixo mostrava o Fabiano sentado um
pouco mais ao lado. Eu olhei meio de lado para ela
estranhando e não entendendo nada. Aí danou–se que a
doida resolveu fazer umas caras mais estranhas ainda.
Como estava silêncio e só o professor Joaquim falava, ela
não queria abrir a boca e ficava só no gestual. Mostrava a
língua, os dentes, piscava o olho direito, o olho esquerdo,
mexia os dedos, esfregava um dedo no outro e por aí
adiante. Eu tentava decifrar o gestual dela respondendo da
mesma maneira. Para uma piscada com o olho direito eu
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colocava a cabeça para o lado quase encostando a
bochecha no ombro. A cada balanço dos ombros eu
balançava a cabeça de um lado para o outro. Cada vez que
ela colocava a língua para fora eu piscava os dois olhos.
Até que, em um momento ela fechou os olhos e baixou a
cabeça. Eu fiquei olhando, tentando ver a cara dela, mas
ela só apontava para frente com o dedo. Já era tarde
demais, estava feita a vergonha: a sala inteira nos olhava e
ria e o professor havia parado a aula observando nosso
"ritual primitivo de comunicação" como ele mesmo
definiu. Tentei falar que não queríamos atrapalhar a aula,
mas quem está errado não retruca e fiquei miudinha na
cadeira.
– Se as duas estiverem passando mal podem sair.
Caso contrário vou continuar – jogou o professor na nossa
cara e com toda razão que demos para ele.
– Pode continuar professor. Desculpa... – sussurrei.
Dali para o final da aula só não fomos confundidas
com as carteiras porque respirávamos, mas era tão baixo
que podia se desconfiar se estávamos mortas.
Na saída da sala, Fabiano me puxou pelo braço e
disse que precisava falar comigo. Foi me levando para o
pátio no contra fluxo dos alunos que saíam. Paramos no
fundo do colégio, perto do parquinho das crianças
menores. Ele estava muito ansioso e eu o via com um
olhar bem diferente das lembranças da minha
adolescência. Apesar de representar estar sobre o controle
de tudo era visível que ele estava arriscando muito por
estar ali. Mas não demonstrava medo e isso me levou
junto sem dar bola para o frio no estômago. Forçou uma
porta e abriu com certa facilidade.
– Entra! – disse ele sorrindo e indicando com a mão.
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Eu não vou dar uma de inocente para descobrir as
intenções dele, agora aquele lugar era de dar arrepios.
–Vai logo – disse ele puxando minha mão e me
jogando para dentro da sala escura que cheirava mofo.
Tropecei em uma arara de roupas e caí sentada em um
sofá velho e empoeirado. Ele rapidamente fechou a porta e
ficou parado olhando para o escuro. Estava tentando
acostumar à visão com a pouca luz que entrava por uma
janela basculante que ficava acima da porta.
Eu estava cheia de nojo e medo, pra ser bem sincera!
O sofá, acho, era vermelho e as roupas penduradas na
arara tinham muita renda.
– Fabiano, você está louco! – berrei com ele.
Ele me olhou bravo e colocou o dedo indicador
sobre os lábios e me mandou falar baixo. E eu obedeci
prontamente.
–Quer que o Sr. Benê venha aqui descobrir a gente?
Ele deu um passo desajeitado e desviou da arara e
com um pulo sentou ao meu lado. Fiz um gesto para
levantar, mas ele me segurou de volta e me deu um beijo
na boca.
– Você está doido? Esse lugar é horrível – gritei
empurrando ele.
Levantei e fui até a porta. Olhei para o lado e
percebi que estávamos na parte de trás do anfiteatro.
Havia cenários e roupas espalhadas por todo canto. Fiz
menção de sair e olhei para a cara dele sentado.
– O que foi... Vamos embora! – disse eu.
– Vem cá, vamos conversar...
Olhei para um lado, olhei para o outro e do escuro
via a cara dele de pidão como que implorando para aquela
oportunidade. Tirei a mão da maçaneta, desviei da arara e
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sentei ao lado dele. Minha mãe já me disse que eu gosto
de fazer coisa errada com vontade. Mas pra ser sincera eu
nem sei do que eu estava com vontade naquele momento
eu só me deixava ser levada pelas borboletas no estômago
e aquela cara de cachorro sem vergonha do Fabiano.
– Mas sem palhaçada. Já estou com problemas
demais hoje. O que você quer?
Ele se aproximou pegou minha mão e ficou me
olhando.
– Só queria ficar sozinho com você. Senti sua falta
hoje na aula de educação física.
– Só isso? – moleque é fogo... já estava quase eu
tomando a iniciativa.
–E não é bastante? Puxa Laura... Eu gosto de você!
– ele passou a mão nos meus cabelos e ajeitou minha
franja deslizando o dedo pelo meu rosto. Ele tinha aqueles
olhos que hipnotizavam qualquer mulher e aquela mão
grande de quem segura sem escapatória. Foi se
aproximando e minha mão ficou sobre seus braços que,
apesar de magros, eram fortes.
Tão fortes que me abraçaram de um jeito delicioso e
forte. Meio sem jeito, mas delicioso. Aí eu fui ficando
mole e ele foi beijando meu pescoço e meu rosto e parou
para me olhar antes de...
– Ótimo saber que vocês estão aí!
A porta abriu e a claridade nos cegou. O
homenzinho que apareceu não estava nada feliz com a
nossa presença naquele lugar clandestino.
– Muito bonito! Vocês dois estão fazendo o que aqui
dentro? – era Sr. Benê com uma mão na cintura e a outra
no molho de chaves – Podem sair agora. Você, dona
Maria Laura, deixa sua mãe ver você dando... dando
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confiança dessa maneira no fundo da escola. Esperava
mais postura e decência da senhorita.
Nesse momento Fabiano ia saindo rapidinho do
quarto como que escapando e me deixando para trás.
– Pera lá Sr. Benê! – berrei logo pra colocar coisas
no devido lugar – Eu não estou sozinha nessa sala. Esse
bunda mole que está fugindo estava junto comigo e mede
bem o que o senhor está dizendo, pois não conhece minha
natureza pra julgar só por causa de um beijinho no fundo
da escola. Já fiz coisas muito piores em lugares mais
públicos.
Ele arregalou os olhos para mim por trás dos óculos
grossos. Aí vi que tinha soltado uma merda!
– É brincadeira Sr. Benê. Brincadeira. Sou só uma
menina de dezessete anos. Mas ainda assim quero respeito
do senhor! – disse fazendo cara de ofendida. Sempre
funciona com os homens mais velhos.
Vendo que se excedeu no quesito moralidade, Sr.
Benê se retratou e colocou a culpa sobre o Fabiano, que já
não sabia se corria, se ficava ou se desaparecia. Não
precisei nem fazer o meu discurso, Sr. Benê já lançou uma
tijolada na cabeça do rapaz.
– E você, grande homem que é! Traz a menina até
aqui e na hora que é descoberto foge como rato! Aprenda
pelo menos a assumir seus erros! Larga a menina aqui e
foge!
Ele gaguejou e não conseguiu se explicar. Também,
vai explicar o quê? Saímos sorrateiramente assim que
chegamos ao portão. Nem ficamos para esperar Sr. Benê e
suas atitudes em relação ao casal meliante que ele
encontrou. Já estava na hora de resolver outros problemas
mais sérios do que aquele para mim.
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Na porta da escola, Rita me esperava como quem
espera um trem atrasado. Quando me viu quase atropelou
um cara de bicicleta que estava passando na frente dela. E
grudou em mim tirando satisfação de onde eu estava, com
quem, por que eu não havia dito para ela e me culpando
pelo atraso dela em ir para casa. Por Deus que não dei um
soco na cara dela! Ai que insuportável...
– Eu lá tenho que te dar alguma explicação?
Atrasou-se para ir para casa porque quis. Até onde me
lembro, e olha que faz tempo que não faço esse caminho,
tua casa é para o lado oposto da minha! Está parecendo
minha mãe!
Respondi sem pensar. A sorte é que a Rita, além de
intrometida, é cara de pau. Mesmo tendo dito tudo isso
para ela, a guria continuou do meu lado querendo saber o
que eu estava fazendo no fundo do colégio com o Fabiano.
Contei o que aconteceu omitindo detalhes sórdidos da
história. Ela quase quis voltar para bater no Sr. Benê, mas
nesse momento, Fabiano passou por nós dando uma
piscadinha com o olho esquerdo e dizendo que amanhã
continuávamos aquele assunto. Rita quase teve um ataque
de urticária de tanta curiosidade. Ela achava que eu tinha
mais para contar, e eu tinha, mas ela não precisava saber.
Continuamos nosso caminho com ela falando sem parar
sobre os assuntos mais desconexos do mundo. Eu sentia
um aperto no peito que não passava. Até que eu vi uma
luz, ou melhor, uma cruz! Era a igreja de Santo Antônio!
Simplesmente esqueci que a Rita existia e que ela estava
ao meu lado. Atravessei a praça e entrei na igreja sem nem
me benzer direito. Aquele cheiro de igreja invadiu meu
peito e trouxe uma paz que eu estava precisando.
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Havia poucas pessoas dentro da igreja. A missa do
meio–dia havia acabado há pouco tempo, pois o sacristão
estava em cima do altar apagando as velas e recolhendo a
bíblia do padre. Corri até ele e cheguei tão afobada
tomando um tropeção que quase caí dentro do santíssimo!
O sacristão me repreendeu dizendo que eu estava na casa
de Deus e não eram modos de uma menina perante o altar.
Pedi um milhão de desculpas e perguntei pelo padre. Ele
perguntou o que eu queria com a autoridade. Termo
estranho, chamar um padre de autoridade, nunca havia
ouvido falar nisso. Disse que se tratava de um recado da
irmã Olímpia para o padre Romano. Ele olhou
desconfiado.
– Por que ela não ligou para ele?
De pronto respondi que ela não o havia encontrado.
O sacristão, desconfiado, colocou a bíblia sobre o altar,
pôs as mãos sobre ela e disse para eu contar a verdade
para ele. Eu quase ia jurar que era verdade, mas dentro da
igreja, diante do altar, com nossa senhora olhando para
mim, não tive coragem.
– Preciso me confessar!
Eu vi, por um segundo, a expressão de sacanagem
na cara daquele ser. Se não me lembrasse do nome do
padre e da cara dele tenho certeza que o fanfarrão se
candidataria a escutar meus pecados. Pilantra! Disse então
que o padre não atendia confissões durante o almoço, para
eu voltar mais tarde, com certeza ele me atenderia.
– Você garante essa informação? – perguntei sem
medo e ele quase me varreu de lá! Na saída da igreja
encontrei a Rita me esperando batendo papo com uma
fulana que eu conhecia, mas não lembrava o nome. Ela me
olhou de maneira estranha dizendo que eu estava muito
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estranha. Era óbvio que eu estava estranha fui dormir
adulta e acordei com dezessete anos! Só que isso ela não
sabia e desconversei o caso. Dispensei-a e disse que tinha
que ir para casa, pois estava mal, com dor de cabeça. Rita,
que já havia encontrado alguém para amolar, não deu falta
por mim e saiu andando com a tal fulana, que eu não
lembro o nome.
Vaguei pelo bairro sem ter aonde ir. Lembrei-me
novamente do meu marido, Vinícius.
Quando eu iria vê–lo novamente? Teria minha vida
de volta? Lembrei-me da época que o conheci. Na
faculdade, apesar dele não pertencer a minha turma, fez
algumas amizades e passou a ser figura constante na sala,
nas baladas, nas rodas de bate–papo. Tentava me
aproximar dele, mas ele fazia questão de me tratar com
indiferença ou mal. Sempre tive certeza que ele me
odiava. Tinha umas peruas que ficavam em volta dele, que
me deixavam doida. Mas eu já estava tão vidrada que não
pensava em outro. Arrumei até um rabicho na faculdade
só para fazer ciúmes para ele, mas o efeito foi nulo. Tomei
a decisão de só desistir dele quando o visse com outra. O
infeliz não me deu tempo nem de registrar minha
promessa na igreja, apareceu com uma daquelas peruas
cadelas pendurada nos beiços. Fiquei com tanta raiva que
dispensei na mesma hora o bicho goiaba que eu estava
ficando só para fazer ciúmes.
Mas um dia chegamos juntos na sala de aula e aí
ficamos um tempo conversando sobre a faculdade,
trabalho, diversão, etc., etc. A conversa tinha sido a
melhor desde que nos olhamos pela primeira vez.
Descobrimos algumas coisas em comum e combinamos
até de sair com a turma.
Heribert Bastos
27
Aquela noite me arrumei para matar. Gastei todos os
cremes que eu tinha, escolhi um vestido comprido com as
costas de fora, um salto alto e aquele cabelão ondulado
solto. Na época já estava morando em uma república perto
da faculdade e minha primeira notícia de que eu estava
para matar veio do porteiro.
– Jesus dona Maria Laura! Saindo assim a senhora
entorta o pião! Isso acaba com o casamento do cristão!
A medida estava certa. Mas na festa, além de
aguentar bêbado no cio, tive que engolir Vinícius com a
tal cadela perua nos beijos e abraços. Vi até quando ela
deu uma mordida na orelha dele e depois os dois foram
embora, com cara de que a noite seria aquela. Pouco antes
de sair me olhou e deu uma piscadinha. Tremi dentro do
vestido. Detestei ter dado aquela bandeira pra ele, galinha
safado. Minha primeira vontade era de chorar, desaparecer
daquela festa infeliz, matar o primeiro idiota que fizesse
uma gracinha. Que ódio! Parei no bar que ficava perto da
piscina e pedi duas Tequilas e sentei para beber. Fiquei
quase duas horas olhando para os dois copos cheios. Os
malucos até pararam de mexer comigo.
– Essa está muito louca.
Levantei a cabeça, peguei o copo e resolvi que
aquela seria a noite de enfiar o pé na jaca!
Quando levantei o copo vi Vinícius parado, sozinho,
no meio de uma escada com a mão na cintura olhando em
volta, como se procurasse alguma coisa. Nossos olhares se
cruzaram e ele levantou as sobrancelhas, espantado ao ver
meu copo na mão. Fiquei sem graça, coloquei o copo na
mesa e olhei para baixo. Ele tinha voltado só por minha
causa. Naquela época ele era um safado sem vergonha.
Mas lindo!
LADO A LADO B
28
Caminhei mais um pouco e voltei pra igreja. O
sacristão, mal humorado que só, me disse que ele estava
conversando com as senhoras que organizavam o
catecismo e que não podia ser interrompido. Larguei-o de
lado e dei a volta na igreja entrando pelo lado que dava
acesso à sacristia. Lá estava o padre e suas beatas. Todas
muito concentradas no falar de uma senhora grande, de
cabelo armado e quase laranja que tinha os óculos no meio
do nariz e falava olhando um papel. O padre, na verdade
com uma cara de entediado, parecia muito mais
interessado em uma cama do que naquele papo de
paróquia. Quando entrei na sala quase ninguém notou
minha presença, com exceção o padre, que levantou as
sobrancelhas e deu um leve sorriso. A mulher que estava
lendo, como que por instinto, levantou a cabeça e
percebeu que o padre já não prestava mais a atenção nela.
Ao me ver quase me eletrocutou com os olhos.
– O que você deseja menina? – disse ela secamente.
Eu podia ter ignorado ou ser mal educada como de
comum, mas resolvi apenas não criar caso e dizer que
estava procurando o padre. Ela rispidamente me
respondeu que ele estava ocupado e que agora não era
hora de atendimento dos fiéis. Mandou que eu voltasse
amanhã pela manhã para falar com ele. Ignorei a velha de
cabelo laranja e perguntei diretamente ao padre se ele
podia me atender. Ele me pediu que o esperasse na igreja e
que logo ele falaria comigo, que não demoraria mais de
quinze minutos. A mulher novamente me fuzilou com os
olhos e pediu que eu saísse. Não resisti:
– Posso ir agora seu padre?
Perguntei ignorando–a e provocando-a ao mesmo
tempo. Ele me dispensou dizendo que tudo tinha seu
Heribert Bastos
29
tempo. Ah que dó do padre! A hora que eu contasse a
minha história para ele...
Sentada na frente de São Benedito fiquei olhando
meio cansada a igreja e com aquele silêncio cochilei.
Quando adormeci sonhei com meu quarto, Vinícius
dormindo ao meu lado e com o barulho da rua. Acordei
com a mão do padre no meu ombro.
– Cansada filha?
Fomos para uma sala fechada onde o padre me
benzeu e perguntou o que afligia meu coração. Contei
tudo o que havia acontecido desde a hora em que acordei.
Omiti os últimos detalhes que aconteceram entre mim e o
Fabiano na salinha do fundo do colégio. O padre ficou
olhando para minha cara como se estivesse vendo uma
doida, mas controlou o primeiro impulso. Perguntou se eu
me lembrava do que havia acontecido no dia anterior e eu
respondi que lembrava bem, mas que eu tinha trinta e
cinco anos no dia anterior, que eu estava trabalhando com
computadores de última geração, que eu dirigia, que eu
tinha um marido, e–mail, Internet, etc. Ele franziu a testa
quando disse aquelas palavras novas e eu disse para ele
não se preocupar com isso, no futuro ele descobriria do
que se trata. Perguntou se eu me lembrava de algum
acontecimento que poderia ter causado essa falta de
memória, ou essa memória fora de tempo. Eu disse que
não havia nada que fosse forte para causar uma regressão
no tempo de dezessete anos. Ele olhou bem para mim e
disse que não acreditava em regressão e que não havia
nem explicações ou fatos que pudessem comprovar
realmente que uma pessoa possa viajar no tempo. A Bíblia
não dizia nada a esse respeito, mas, surpreendentemente
disse que o tempo celestial era diferente. Ele fez um
LADO A LADO B
30
discurso sobre o tempo, as pessoas, Jesus, a Bíblia,
citando casos, capítulos, versículos, mas nada me trouxe
alguma explicação para o que estava acontecendo comigo.
Vendo pela ótica do padre eu era uma menina de dezessete
anos tendo uma alucinação sobre uma vida futura.
– Filha, você concorda que isso pode parecer
loucura, certo?
Eu concordei com ele. Como você explica ter
lembrança do futuro? Mas expliquei que aquela era a
situação em que eu me encontrava. Ele levantou, abriu
mais a janela, colocou algumas violetas para tomar sol,
pegou uma jarra de barro encheu dois copos com água e
me deu um. Sentou–se ao meu lado e me perguntou como
estava minha família. Eu disse que estava tudo bem e que
não tinha nada de errado em casa. Ele perguntou sobre
meu pai. Pensei um pouco sobre como estava nossa vida
naquela época, mas não quis prolongar esses detalhes com
o padre e disse que estava tudo bem.
Entrando um pouco na minha maluquice ele
perguntou como era a minha vida no futuro. Se eu tinha
marido, filhos, problemas. Fiz um relatório rápido sobre
como era minha vida, onde eu morava, quais meus gostos
etc. Disse que meu casamento não estava muito bem pois
estávamos em uma rotina muito desgastante de trabalho e
que o casal não se encontrava na sua melhor fase. O padre
ouviu tudo que eu falava como se fizesse sentido para ele.
Ele colocou o copo em cima da mesa, pegou minha mão e
olhou bem fundo nos meus olhos. A mão macia do padre
esquentou meu coração e eu senti um conforto muito
gostoso.
– Filha, vá para a igreja, sente–se. Reze se quiser um
Pai Nosso, uma Ave–Maria não te farão mal. Converse
Heribert Bastos
31
com Jesus, com Deus. Respire fundo, devagar. Vá se
lembrando da sua família, da sua juventude, da sua casa
quando era mais nova, da sua infância. Vá fazendo isso e
pedindo que Deus oriente sua cabeça para que você tenha
sua cabeça no lugar, para que tudo volte ao normal. Acho
que existe algo que ele está querendo te mostrar e você
ainda não viu. Só que isso, seja lá o que for, está dentro de
você e você precisa parar, se concentrar e pedir
iluminação e paz. Os aprendizados de Jesus às vezes se
mostram de forma estranha. Nossa visão nos engana,
nossos ouvidos nos enganam. Alguns acontecimentos nos
levam a rever muita coisa, de formas às vezes... estranhas.
O padre novamente levantou e encheu os dois copos
com água. Ficamos em silêncio por um tempo, o que me
angustiou profundamente. Queria respostas mais diretas e
claras dele.
– Isso é tudo que eu, na minha humilde posição
posso te orientar. Caso você não consiga se livrar desse
seu pensamento, volte aqui amanhã. Assista a missa,
vamos conversar mais um pouco e depois fique mais um
tempo na igreja como te falei para fazer hoje. Tenho
certeza que tudo tem uma explicação e que Deus quer de
dar um recado. Esse recado você tem que parar e pensar o
que significa. Afirmar que você voltou no tempo é muito
forte... mas nada é impossível para Deus. Não serei eu a
cometer uma loucura de dizer que você está louca.
– Mesmo que eu pareça louca?
– Muito pelo contrário. Você me parece bem sensata
e sóbria.
Naquele momento vi que o padre não estava
entendendo o que eu estava passando. Como eu poderia
estar sensata e calma? Eu estava chorando quando o padre
LADO A LADO B
32
terminou de falar. Não sei ao certo porque, mas soluçava
como bêbado na porta do boteco. Beijei a mão dele e fui
para a igreja refletir, rezar e tentar entender porque aquilo
estava acontecendo comigo. Fiquei lá por quase duas
horas, pensando e lembrando. Estava com muito sono e
minha cabeça pesava demais. Resolvi terminar aquele
papo com Deus em casa. Levantei e fui para a porta da
igreja. Ao chegar no meio do corredor central senti uma
moleza incrível e comecei a ver a igreja rodar. Várias
imagens e lembranças passaram na minha cabeça. O
acidente que meu pai havia sofrido quando tinha dezessete
anos, a separação dos meus pais, minha promoção na
empresa, meu chefe, meu marido. Um rodamoinho de
imagens e sensações. De repente tudo ficou escuro e eu
apaguei no meio da igreja. Quando abri os olhos lá estava
meu marido dormindo de cara comigo. Foi então que
acordei. Tudo tão real que ao ver Vinícius dormindo dei
um grito.
Não é fácil ter um sonho real como eu tive e
acordar. Vinícius, que dormia de babar, pulou como se
estivesse tomado um balde de água fria. Eu chorava,
desesperada, sentada na cama. E ele corria para me trazer
água e um remédio.
Heribert Bastos
33
CAPÍTULO 2
Um novo dia...
Maria Laura tem um jeito diferente de contar as
coisas. Eu fiquei surpreso quando ela apareceu na minha
frente com essa história depois de tanto tempo.
Eu já conhecia seu temperamento explosivo e optei
por liberá-la para contar sua aventura da melhor
maneira. Já era difícil suficiente revê-la depois de tanto
tempo.
Tomei sabe–se lá Deus o que para me acalmar.
Vinícius, despenteado e de pijama me abanava, me
abraçava, acho que, por dentro, até rezava para que eu me
acalmasse. Meu corpo tremia descontroladamente, mesmo
abraçado ao dele. Acho que demorei uns quarenta minutos
para me acalmar, mas a cada vez que tentava falar o que
havia acontecido eu me descontrolava e chorava
novamente. Em um flash de lucidez ele achou melhor que
eu tomasse um banho quente e ficasse quieta até ter
controle sobre alguma emoção.
– Vai ser melhor. Você vai relaxar mais.
O banheiro ficou que não se podia ver a porta de
tanto vapor da água quente. Praticamente cozinhei dentro
do box. Mas isso me ajudou muito, pois fui me acalmando
e tentando colocar minha cabeça no lugar correto. Fui
fazendo, a mim mesma, algumas perguntas do tipo qual
era meu nome completo, onde eu morava, onde eu
LADO A LADO B
34
trabalhava, qual era o nome completo do meu marido, etc.
Se isso não me trouxesse a realidade acho que só enfiando
o dedo na tomada (que eu não estava descartando
totalmente). Saí do banheiro e encontrei o Vinícius
encolhido como passarinho em cima da cama, assustado e
ansioso por me ver. Preparou uma bandeja com o café da
manhã: leite, frutas, cereais e biscoito. Pediu que sentasse
e comesse. Exigiu apenas que eu não falasse nada, apenas
comesse e me acalmasse. As janelas do quarto estavam
abertas e a visão da rua do décimo sétimo andar do
edifício onde morávamos me deu certo espanto. Lá fora
carros e pessoas, mesmo que pequenos, andavam sem
parar. Aviões e helicópteros sobrevoavam a cidade e seu
caos de trânsito logo pela manhã. A televisão do quarto,
ligada, mostrava notícias sobre os conflitos no Oriente
Médio, a onda de violência, as estreias no cinema e
algumas coisas sobre jardinagem. Porém a linguagem era
diferente da que havia sonhado. Sim um sonho. Tudo não
passou de um sonho. Uma viagem sem fim. Coisa de
maluca.
O padre, talvez em um recado da minha mente para
meu corpo, falou corretamente: lembre–se porque você
veio parar aqui. Pense na sua família, na sua casa, na sua
história. Na hora em que me lembrei, despertei. O que
mexia muito comigo era o fato de lembrar do cheiro da
sala onde me confessei com o padre, do perfume do
menino que me beijou no fundo do colégio, do gosto da
boca dele, do aperto do abraço da minha mãe. Eu me
lembrava de detalhes como se tivessem acabado de
acontecer, como uma lembrança recente. Parecia até que
minha cabeça estava dolorida pelo tombo que tomei na
Heribert Bastos
35
igreja quando desmaiei. Sentia-me cansada como se não
tivesse dormido a noite inteira.
Já bem mais recuperada e depois de ter tomado todo
o café da manhã resolvi contar tudo para Vinícius. Ele me
escutou pacientemente e calado. Não disse uma única
palavra. Seus olhos não desviavam do meu e sua
respiração era forte a cada detalhe mínimo que eu contava.
Ao terminar ele me perguntou se eu estava melhor e se
queria mais alguma coisa.
Depois de algum tempo sentada na cama tudo não
passava de um sonho muito forte e muito detalhado,
mexendo com um período muito conturbado do meu
passado. Vinícius, sentindo que eu estava melhor, se
preparou para o trabalho. Rotina normal de tomar banho,
colocar terno, gravata e perfume (aliás, muito perfume).
Deu-me um beijo na testa, disse para eu ligar no escritório
avisando que eu atrasaria e foi embora. Pensei em
vasculhar as gavetas de fotos e relembrar um pouco aquela
época, mas não foi preciso. O telefone celular tocou e a
voz que eu atendi me remetia ao conforto de tudo. Era
minha mãe. Comecei a chorar no telefone novamente e ela
ficou desesperada do outro lado. Contei tudo novamente
para ela. Mãe é mãe e sempre tem uma palavra para nos
acalmar e para nos chamar a realidade.
– Você quer me matar do coração! Atende ao
telefone chorando só por causa de um sonho! Eu sonho
todas as noites com sua avó e nem por isso eu te ligo
chorando! – berrou ela do outro lado.
Quase disse "Obrigado mãe!" era tudo que eu queria
escutar naquele momento. Ela, como sempre, me tirando
da cama e me colocando nas garras da vida. Minha mãe
tinha razão. Não dá para ficar deitada só porque sonhei
LADO A LADO B
36
com o passado. Sou mais mulher que isso. Era hora de sair
de casa e parar de chorar por causa de um sonho. Chega de
lágrimas por nada, disse para mim mesma! Coloquei
minha melhor roupa, meu sapato de salto mais alto, passei
meus melhores cremes, perfumes, batom e fui à luta.
Estava até torcendo por um elogio gratuito de um Zé
qualquer, só para ver se minha autoestima subia.
Entrei no elevador e fiquei procurando a chave do
carro dentro da minha bolsa. O elevador foi parando no
décimo andar e eu ali, toda atrapalhada segurando a bolsa,
o casaco e procurando a chave. Entrou uma mulher que eu
não olhei para a cara. Ela disse bom dia e eu respondi por
educação, novamente sem olhar para a cara dela. Ao achar
a chave levantei em triunfo e gritei alto “ACHEI”!
Eis que quase meu queixo caiu no chão. Arrumada e
olhando para os números do elevador lá estava ela. RITA!
Cabelo mais curto, de roupa de ginástica, com uma
mochila nas costas de tênis pronta para ir para a academia.
Eu não conseguia falar. O elevador foi chegando ao
subsolo e ela se preparava para sair. Eu não tinha forças
para dizer o nome dela e não me mexia de espanto. Ela por
sua vez, tão concentrada em seu objetivo de ir para a
academia, que eu podia ter um ataque epilético naquele
elevador que ela nem perceberia. O elevador foi parando
no primeiro subsolo. Ela desceu sem nem falar até logo.
Baiana mal educada (nem lembrava se ela era baiana ou
pernambucana).
Eu estava tão estúpida que nem consegui segurar o
elevador, que fechou e se encaminhou para o segundo
subsolo. Apertei o botão para voltar, mas já era tarde.
Quando saí ela já estava colocando o carro para fora do
prédio. Apressadinha ela!
Heribert Bastos
37
Voltei para o elevador e fui até o carro. Sentada lá
dentro lembrei-me do que aconteceu e uma coisa me
passou pela cabeça: será que eu voltei no tempo? É
possível acontecer uma coisa dessas?
Melhor, será que eu tive um ataque de
esquizofrenia? Mas o que é esquizofrenia e o que sente
uma pessoa assim?
Era melhor ir trabalhar.
Vou dizer uma coisa: nada melhor para uma pessoa
surtada como eu naquela manhã do que pegar trânsito. De
onde sai tanto carro? Gente mais idiota que tem que cada
um sair com seu carrinho, bonitinho de vidrinho preto.
Não dá para paquerar, não dá para ler, não dá para fazer
nada!
Nem mudar de faixa é possível, pois tem uma chuva
de motoboys passando entre os carros. Não dá para ser
feliz: trânsito, motoboy e sonhos malucos. Quem aguenta?
Mas tudo tende a piorar, pois tem meu chefe me
esperando.
Trabalho em uma empresa de telecomunicações,
mas não me xingue, pois não é uma operadora de
telefonia. Bem, mas não importa muito o que faz a
empresa e sim o que faço: enrolo as pessoas! Simples
assim. Vivo enfurnada na empresa gerindo uns projetos
malucos que só gastam dinheiro e ninguém usa. E pior
que, às vezes, acho que sou boa nisso. Há um ano meu
chefe mudou. Veio o José Lopes. Um maníaco por
trabalho, mal educado e com uma particularidade: não sei
o que ele pensa. Você já conversou com uma pessoa que
nitidamente fala uma coisa e pensa outra? Se não, é
porque não conheceu o José. Tem reunião que penso que
vou surtar ou matar aquele indivíduo. Às vezes não sei
LADO A LADO B
38
como ele casou e teve filho. A coitada devia estar catando
papel na ventania pra escolher um traste daquele. O que a
necessidade faz com uma mulher! Ele só teve uma
vantagem até agora: promoveu-me a líder de projetos. Mas
ainda estou descobrindo se isso é uma vantagem ou um
fardo.
Veja só. Nesse dia lindo, depois de uma noite
“maravilhosa”, sonhando com uma prova de Matemática
dezessete anos atrás chego à minha mesa e já tem um
recado para eu procurar o Zé! Mas eu respirei fundo,
pensei duas vezes e fui atrás do infeliz, porque nem ficar
na sala dele ele fica e tenho que caçar o bicho por aí.
Fui encontrar o sorrisinho besta tomando café com
uma sirigaita do RH. Menina feia que se acha gostosa. E
ele cheio de asa para cima da baranga! Deus não queria
me poupar naquele dia. O pecado que cometi devia ser
grande mesmo.
– Zé? – Ele me olhou feio. Ele detestava que o
chamasse de Zé. Fiz de propósito mesmo – Você estava
me procurando?
– Sim. Tenho duas coisas para você – disse ele
pedindo licença à baranga e me puxando para fora do café
– a primeira... eu já lhe falei que não gosto que me chame
de “Zé”?
– Sim. Desculpe... não resisti – e dei um sorriso
amarelo.
– Tá. Bem daqui a meia hora deve chegar o novo
consultor e você vai recebê–lo e orientar o trabalho dele
no projeto de levantamento para a nova base de dados, ok?
– Nossa – dei um grito – esqueci que ele vinha hoje!
– Se já não chegou. Cuida dele direitinho e
acompanha o trabalho. Não esquece que esse trabalho faz
Heribert Bastos
39
parte das suas metas para o bônus no final do ano. E sua
meta é ousada... lembra? Você quer um conselho?
– Zé... opa... desculpa! – ele olhou sem paciência –
José me poupa. Passei mal à noite, tive uns problemas que
só acontece em sonho. Já tivemos essa conversa antes.
Vou para minha mesa.
– Menina, eu sou seu chefe! – disse ele rindo do
meu jeito
– E daí? É chefe, mas não é padre para ficar dando
conselho toda hora! Vou trabalhar que minha meta é
ousada, lembra?
E deixei-o no cafezinho com a baranga. Por
enquanto dava para mim.
Ser coordenadora era uma atividade completamente
nova para mim. Estava há três meses no cargo depois do
facão que levou a antiga ocupante da cadeira. A coisa me
apertava de um tanto que não era fácil. A começar pela
equipe: dois homens e uma mulher. E cada um de um jeito
mais diferente que a encomenda.
O Thiago era cabeludo, tinha barba, ficava com fone
de ouvido o dia inteiro e aprendia muito mais rápido que
os computadores da NASA. Tinha todo perfil de rato de
computador. Falava pouco e quando abria a boca sempre
era coisa de se aproveitar. Para o bem ou para o mal,
apesar de eu quase sempre não entender o significado e
ficar com cara de tonta rindo para o nada. Usava um
guarda chuva com cabo de espada de samurai e compra
umas coisas estranhas da China.
O Ricardo, que era mais velho, usava uns óculos
grossos e falava demais, demais. Era experiente e fazia
sempre questão de provar sua sabedoria vivida "na pele".
LADO A LADO B
40
– Veja meus cabelos brancos! – repetia ele em um
mantra interminável, apontando para a vasta cabeleira que
lembrava um algodão doce.
E se não bastasse tinha o hábito nojento de cortar a
unha da mão no cesto de lixo que ficava na mesa dele.
Logo de cara eu disse para ele que se colocasse uma unha
na minha mesa eu botava fogo no saco dele! Ninguém
merece esse tipo de coisa no trabalho. Coincidência ou
não depois dessa patada nunca mais ele repetiu essa
abominação.
Eu poderia dizer que o Thiago era o melhor
funcionário, mas eu tinha a Sandra. Uma japonesinha
esperta que, de japonesa, só tinha aqueles olhinhos
puxados. Não vou puxar sardinha para o gênero feminino,
porque não preciso ficar provando os fatos pra ninguém,
mas se não fosse ela eu estava perdida. Sabia de tudo,
tinha histórico de tudo, comprometida, inteligente e uma
graça de elegância! Eu que não economizo pra falar
escancarava pra ela.
– Tenho muita inveja dos seus vestidos...
A figurinha era magrinha e tudo que ela usava ficava
lindo. Era praticamente meu braço direito do trabalho e
das compras de sapato! Já perdemos até reunião por ter
ficado no shopping experimentando botas.
Só que naquela semana eu estava sem braço direito
porque Sandrinha, metida a esportista, torceu o pé
correndo uma meia maratona. Ia ficar quinze dias em
casa! E eu sozinha tendo que aguentar o Ricardo. O
Thiago não, porque às vezes eu o cutucava pra saber se ele
não estava morto. Uma vez recebi um e-mail de um cara
que passou três dias morto no trabalho e ninguém
percebeu. Depois desse dia fiquei cismada com o Thiago.
Heribert Bastos
41
Acho que se eu desmaiasse e morresse na mesa ao lado
dele, era capaz daquele ser humano passar por cima e não
fazer nada. Às vezes ele era muito estranho.
Mas lá estava eu na minha mesa cheia de e–mail
para ler, o Zé botando pressão e aquele sonho maldito que
não saia da minha mente. Foi então que aconteceu outra
coisa inesperada:
A coisa foi mais rápida do que imaginava minha
mente criativa. Dez horas em ponto tocou o telefone da
minha mesa e a recepcionista disse da presença do
consultor.
– Senhor Fabiano da AA B&C Consultoria.
– Pode liberá-lo para subir. Estou no bloco B
primeiro andar.
Arrumei os papéis, coloquei tudo em uma pasta e
avisei o Thiago que iria receber o novo consultor. Tenho
certeza que ele não ouviu. Então repeti para o Ricardo que
logo se empertigou todo para ir comigo. Se fecha mala
velha!
– Eu vou sozinha Ricardo. Termina seu trabalho, faz
favor? – disse sem olhar pra ele.
Fui para a porta onde o receberia no elevador. Do
hall do elevador era possível ver as pessoas entrando da
recepção andando. Parei no vidro e fiquei olhando para o
pátio central do prédio vendo quem seria o consultor que
apareceria. E lá vinha ele. Um homem de terno preto com
uma gravata azul linda e uma camisa branca que parecia
brilhar. Sapato brilhante e bem lustrado. Carregava uma
mochila que lhe dava um ar informal, mesmo todo formal.
Ele era loiro e tinha um topete alto bem construído mesmo
sem gel. Seu andar era meio estranho e me lembrava de
alguém. De repente ele parou e apoiou a mochila na
LADO A LADO B
42
cadeira e mexeu em alguma coisa. Ajeitou-se novamente e
começou a caminhar. Deu um leve sorriso e ajeitou o
cabelo de uma maneira lembrando Fabiano. Sim, o
Fabiano do meu sonho que me levou para o fundo da
escola e me deu uns amassos. Aproximei mais a cara do
vidro e senti um frio correr minha espinha. Meus braços se
arrepiaram e percebi a volta dos mortos do meu passado.
O consultor que estava vindo em direção ao elevador era
sim Fabiano.
Ele sumiu da minha vista e encostei de costas na
parede com o coração disparado. Alguns segundos depois
ouvi um sinal como uma campainha. A porta do elevador
abriu e ninguém menos que Fabiano, homem feito, lindo
como sempre, saiu de lá meio que perdido e procurando
uma referencia. Parou e olhou para mim em busca de
ajuda. Recompus-me logo e perguntei se ele era o
consultor.
– Sim, Fabiano Almeida – para meu desespero
estendeu a mão para mim e abriu um sorriso de creme
dental. Apertei a mão dele e percebi que ele não me
reconheceu. Era uma cabeça oca mesmo. Como seria o
trabalho dele então?
– Maria Laura. Prazer – dei a dica falando meu
nome bem alto. A besta quadrada apertou minha mão, mas
não falou nada. Tratou-me como se não me conhecesse.
– Venha comigo – disse abrindo caminho e abrindo
a porta.
Mostrei a copa onde tinha café e água. Sentamos e
ficamos quase duas horas falando sobre o projeto.
Almoçamos, voltamos e entramos em uma reunião de
mais duas horas.
Heribert Bastos
43
Quando acabou a reunião eram três e meia da tarde e
paramos no café para dar um tempo. Até ali Fabiano nem
desconfiava quem eu era. Foi quando Ricardo entrou na
copa me chamando de mala! Eu odiava quando alguém
fazia isso: abreviar meu nome nas iniciais Maria Laura. Se
tivesse super poderes aquele homem estava, no mínimo,
gritando muito de dor. Mas muita dor. Algo como um jato
de carbox no saco dele. Fiz o pior olhar que alguém pode
fazer para outra. Mas se não bastasse quando olhei para o
lado lá estava o idiota do Fabiano tentando disfarçar a
risada. Quando ele percebeu tentou justificar:
– Desculpe! É que quando eu era mais novo tinha
uma amiga que também se chamava Maria Laura e odiava
quando chamávamos ela de m... – de repente ele foi
parando de falar e olhando para minha cara como se
estivesse vendo fantasma. O sorriso dele foi
desaparecendo junto com a cor das bochechas. De espanto
a cara dele foi se transformando em nervoso e atenção.
Franziu a testa e apertou o olho mirando minha cara e foi
se aproximando. Chegou bem perto e terminou a frase
maldita – Mala? É você Maria Laura? A mesma Maria
Laura do colégio? A Mala?
– Só não vou dizer que mala é a senhora sua mãe
porque a Dona Zaira não tem culpa te ter colocado um
filho tão tapado assim no mundo! – respondi dando risada
de ver a cara que ele fazia. Ricardo ficou parado com cara
de interessado na fofoca. Olhei para ele e mandei-o logo
seguir carreira – O que você quer Ricardo? Só me chamar
de mala mesmo ou é alguma coisa importante? Se não for
pode pegar seu café e voltar para sua mesa porque tem
muito trabalho para você fazer!
LADO A LADO B
44
Ele fez um muxoxo com a boca, deu risada e saiu
tomando o café. Só a deixa do Fabiano já daria assunto
suficiente para ele se divertir fazendo comentários sobre
mim.
Quando olhei de novo para Fabiano ele estava ainda
com cara de besta.
– Você vai ficar me olhando com essa cara de besta
o resto da tarde?
Ele acordou e pediu um mundo de desculpas. Deu-
me um abração e novamente voltou a sorrir.
– Você está ótima! Irreconhecível! Acho que é o
cabelo... sei lá o que é, mas está muito diferente – disse ele
empolgado com a descoberta.
– Pois é... você também está diferente, mas ainda
assim eu te reconheci!
Aí ele pediu mais um monte de desculpas e eu o
deixei sentindo um monte de culpa por isso. Daí para
frente o trabalho ficou para décimo plano. Falamos de
muitas coisas, até do nosso antigo namorico do colégio.
Acho que ficamos três horas só falando do passado, que
na noite passada era tão presente para mim. Aquilo ficou
na minha cabeça durante aquele dia inteiro.
Depois de muito papo ele foi embora. Voltei para
minha mesa e segundos depois começou a chover um
monte de mulher perguntando quem era o deus grego!
– Você o conhece?
– De onde?
– Ele foi seu namorado?
– Ele vem de novo?
– Ele é casado?
– Me apresenta, amiga?
Heribert Bastos
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Aí já era demais! Bando de desocupadas
empoleiradas na minha mesa pedindo para eu dar o MEU
deus grego assim de bandeja? E ainda me chamando de
"amiga"? Puxei uma régua da gaveta e saí espantando a
peruada! Elas riam e diziam que eu estava com ciúmes.
–Deixa seu marido saber! – disse uma das abusadas.
– Isso é problema meu. Volta para sua mesa!– disse
dando uma reguada na bunda da falante que saiu rindo da
minha cara.
Já passavam das sete da noite e eu ainda estava
trabalhando. Aquele peso no ombro, os olhos pesados. Por
que será? Talvez por que minha noite havia sido um tanto
quanto atribulada? Provavelmente sim. Mesmo tendo
passado o dia inteiro parecia que ainda podia sentir o
cheiro da sacristia e das velas na igreja. Ou mesmo sentir a
dor na cabeça por ter caído no chão. Será que eu havia
voltado no tempo? Ou era tudo um sonho muito estranho?
Precisava sair do escritório urgente, pois não dava
para continuar ali. Se o dono do circo aparecesse só sairia
meia noite e de longe ouvia a voz dele conversando no
corredor.
Sem enrolar peguei minha bolsa, minha chave do
carro e saí voando da minha mesa. Deixei o monitor
ligado para pensarem que eu voltaria e sumi. Tenho mais
que cuidar da minha saúde e da minha linda vida. Fui para
academia.
No caminho liguei para o Vinícius que não tinha
chegado em casa ainda.
– Melhorou? – perguntou ele antes de desligar. Sua
voz tão desanimada que dava até nojo.
– Acho que sim – respondi no mesmo tom.
LADO A LADO B
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– Amanhã vou acordar normalmente ou você vai
berrar para me assustar de novo?
Ele parece que não me conhece há tanto tempo.
– Quem berra é bode, igual ao bode do seu pai.
– Grossa!
– Só respondo a altura. Beijo.
Eu não sei bem dizer o que se passa na cabeça
desses homens. Acham que casam e podem falar qualquer
coisa. Quando namora é um tal de “amorzinho”, “bem”,
“o tom da sua voz é lindo”, “o cheiro da sua boca me
deixa louco”. Depois de um tempo de namoro a coisa
desanda e depois de quatro anos de casamento seus gritos
viram berros! Não vou levar desaforo comigo. Não sou
baú para guardar comentários infelizes. Passei o dia inteiro
do lado da beldade do Fabiano. Bem possível que
sonhasse com ele. Tomara!
Que coxas...
Mas é malhando que tiro do meu corpo todo excesso
de energia e de problemas. Corri dez quilômetros e saí
pingando feito uma esponja molhada.
Já passava das nove horas e eu tomava um banho
delicioso. Só então percebi que minha formosura inteira
estava sendo avaliada pelo mercado das sapatas da
academia! Vê se pode... três mulheres (bonitas não vou
negar) reparando nos meus peitos. E não era inveja
feminina não... era aquele olhar de touro com fome.
– Perderam alguma coisa na minha bunda? – Já fui
logo perguntando, pois não quero deixar ninguém com
dúvida.
– Estou querendo achar – disse a morena de cabelo
liso e magra.
Heribert Bastos
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– Amor, fechada para o pau do meu marido! – disse
rindo, mas nervosa.
Elas riram e dispersaram, mas antes de ir a morena
provocou:
– Quando abrir de novo me procura tá? – e passou
por mim rindo.
Ai que abusada! Quase joguei o sabonete na boca
daquela infeliz. E a diaba era linda, não devia faltar
homem naquela praça querendo um pedaço dela. Mas
quem tem muito, quer o diferente. Era hora de mudar de
academia.
Fui para casa rapidinho. Chega de aventura na rua
para um dia só. Isso era o que eu imaginava.
Para o Vinícius ser perfeito ele precisava só mudar
duas coisas (e mesmo assim eu sei que ia querer mais):
cuidar um pouco (só um pouco) da casa e parar de ver
esportes na TV. O principal é sentar aquela bunda gorda
na frente da TV e ficar vendo desde futebol de botão até a
partida do Juventus contra o Arapiraca!
Dito e feito cheguei em casa lá estava ele comendo
amendoim e vendo Sport TV.
– Jantou? – perguntei na esperança de aquele ser um
dia diferente.
– Não, estou esperando você?
Paciência é uma virtude para poucos. Detesto
pertencer à maioria, mas infelizmente essa é a vida. Fiz
uma salada com atum e o gostosão não gostou!
– Por que você não prepara o que você quer jantar?
– arremessei.
– Porque você sabe cozinhar e eu não! – ele falou
ainda comendo a minha deliciosa saladinha com atum – o
problema é que agora você está preguiçosa. Chega tarde
LADO A LADO B
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em casa e só sabe fazer salada de atum ou aquele frango
grelhado seco. Eu não estou de dieta, sabia?
– Você não aprendeu a andar? Então aprende
também a cozinhar. Ou depois de velho não sabe mais
aprender, só sabe sentar e ver futebol? E outra... quando te
conheci sua barriga era metade dessa, então é melhor você
pensar um pouco em fazer uma dieta sim.
Os olhos dele soltaram fogo para cima de mim. Mas
não tenho medo de fogo, muito menos tinha medo dele.
Logo que acabou de jantar mandei ir passear com o
Chewe. Ah, Chewe é meu cachorro, um vira–lata peludo
marrom com o peito branco, muito bonitinho, que peguei
em uma adoção no centro de zoonoses.
– Pô, trabalhei o dia inteiro! Você não pode dar uma
voltinha só com ele?
Aí eu cansei de ser boazinha. O sangue da família
ferveu e despejei várias verdades sobre aquela bunda que
só cresce na frente da TV. E ele ficou magoadinho.
Quando voltou não falou mais comigo. Tomou banho,
pegou suas coisas no quarto e foi dormir na sala.
– Você vai ficar aí? – perguntei da porta do quarto.
Ele me ignorou.
Minha cama sem ele ficou até maior! Fiz um chá
especial, me espalhei no quarto, rezei e peguei no sono...
Bem quase isso. Sabe aquela sensação gostosa quando
estamos pegando no sono e de repente nossa perna pula
por impulso e despertamos bem leve. Isso aconteceu
comigo. Mas eu continuei de olhos fechados.
Pois de repente ouvi uma coisa estranha que parecia
uma porta de bar se abrindo. Quando abri os olhos vi um
urso de pelúcia olhando para minha cara. Sentei