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LADO A LADO B

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LADO A

LADO B

O conteúdo desta obra, inclusive a revisão

ortográfica é de responsabilidade exclusiva do autor.

Publicado por Perse editora.

Website: www.perse.com.br

E-mail: [email protected]

Todos os direitos dessa edição reservados ao

autor.

HERIBERT BASTOS

LADO A LADO B

©2012 Heribert Vicente Bastos

Título original em português: Lado A Lado B

Edição, diagramação e Capa: Heribert Vicente

Bastos

Revisão: Margarete Bianco

Paula Arruda

ISBN e-book: 978-85-8196-211-5

ISBN: 978-85-8196-212-2

É PROIBIDA A REPRODUÇÃO

Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida, copiada, transcrita ou mesmo transmitida por meios eletrônicos ou gravações, assim como traduzida, sem a permissão, por escrito do autor. Os infratores serão punidos pela Lei nº 9.610/98

.

As pessoas que me apoiaram. Aos

amores da minha vida.: Paula e Maria

Luiza

Agradecimento especial pelas

valiosas leituras, revisões e sugestões:

Margarete Bianco e Paula Arruda

Quem olha fora, sonha. Quem olha

dentro, desperta – Carl Gustav Jung

Heribert Bastos

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CAPÍTULO 1

Madrugada de segunda–feira

Lógico que esse é meu depoimento pessoal e muitos

acharão que estou aumentando alguma coisa ou mesmo

inventando. E pode ser verdade, mas fica a seu cargo,

caro leitor, imaginar ou tentar identificar.

Quero contar sobre Maria Laura. Uma mulher

exatamente como as mulheres do seu tempo. Tem um

emprego, vai à academia, tem um carro grande com

câmbio automático, tem um cachorro e um marido. Mora

em um apartamento pequeno mas confortável em um

bairro de classe média alta de uma cidade bem grande.

Foi promovida a coordenadora no seu trabalho e está

super empenhada (e feliz) nos desafios do mundo

corporativo.

Tudo isso era perfeito para ela, mas alguma coisa

estava fora da ordem. Ela ainda não sabia exatamente o

que mas essa "coisa" lhe dava um nó na garganta e não a

deixava dormir.

Seu estômago revirava e seu coração disparava em

uma ansiedade que não diminuía. Mesmo com algumas

pequenas bolinhas mágicas (que sua mãe lhe deu sem

prescrição médica) aquela sensação de "alguma coisa vai

acontecer" não diminuía, só aumentava.

E naquela noite ela já havia passado por todos os

duzentos e tantos canais da tevê por assinatura, já tinha

lavado a louça, já tinha arrumado sua roupa e o sono não

chegava.

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Seu marido já havia dormido fazia horas. Mesmo

depois de um arroubo excitante e feroz na sala, após o

jogo de futebol. Um amor na sala selvagem, mas... mas...

tão rápido e tão fugaz quanto uma folha de papel

queimando. Logo se apagou. Ele foi tomar banho, assistiu

todos os comentaristas esportivos e dormiu bufando na

cama.

Mas não era só o sexo mal iniciado, ou mal

acabado, como quiser, que a incomodava... Era outra

"coisa".

Por fim decidiu rezar, fechar os olhos e não mudar

mais de posição até pegar no sono e ele veio.

Nesse ponto entra a história contada diretamente

por ela que começou na segunda–feira. Tentarei ser o

mais fiel ao modo dela me contar, com todos os detalhes

que vou lembrar ou aumentar.

Era segunda–feira de manhã e minha vida mudou.

Eu Maria Laura Azeredo, descendente dos Azeredos

Furtado da Bahia, fiquei maluca, sem saber ao certo se

estava sonhando ou se estava acordada. Nem a TPM, que

deixa homens e mulheres malucos, faz um estrago desses.

Tudo começou um dia que acordei, dezessete anos

atrás, deitada no meu quarto de adolescente. Era muito

estranho. Não tinha certeza se estava sonhando ou se era

uma brincadeira. A princípio fiquei pensando em ser uma

pegadinha. O quarto, meus bichos de pelúcia, meu

uniforme de escola, tudo como era antes. Deitada eu via a

iluminação que entrava pela fresta da janela e pessoas

falando. Eram homens que falavam alto alguma coisa

sobre futebol. Levantei rapidamente e fui até a janela.

Heribert Bastos

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Tropecei em uma mochila e quase voei para a rua. A visão

pela fresta da veneziana era da rua que morava com minha

mãe na época do colégio. Lá estava o bar do seu Antônio!

Aliás, lá estava seu Antônio parado na porta do boteco

conversando com um homem barrigudo e de bigode. Eu

voltei para a cama e deitei rapidamente e fechei os olhos.

Que palhaçada era aquela? Quem havia me levado para

aquele lugar? Forcei os olhos o mais que pude pensando

em dormir. Meu coração quase pulava pela boca de tanta

ansiedade e nervosismo. Quando eu abri os olhos as coisas

permaneciam iguais eram no passado, mas só que no

presente. Aquele era o meu presente! Era um presente de

grego. Eu não deveria mais estar ali. Eu era uma mulher

adulta, casada, com um trabalho e uma casa para cuidar! O

que aconteceu comigo?

Pulei novamente da cama e tentei analisar a

situação. Mas nem meu lado mais lógico permitia que eu

entendesse aquilo sem um evento concreto. Fiquei

andando para frente e para trás, tentando buscar no fundo

da minha memória, da minha alma ou de qualquer coisa

uma explicação. Até que, de pé, no meio do quarto,

desesperada sem saber o que fazer quase tive um infarto

quando um despertador, daqueles antigos de corda,

desandou a tocar como se fossem os sinos do céu, me

chamando para prestar conta dos pecados cometidos na

terra. Eram seis e trinta da manhã!

Não teve jeito de segurar aquele choque: sentei e

chorei de desespero! E chorei tão alto e desesperada que

todo mundo deve ter ouvido. Nessas horas mãe faz a

diferença! E ela apareceu! Na porta do quarto me olhando

e perguntando o que aconteceu! Aí eu chorei mais ainda e

ela me apertando contra o seu peito maternal para me

LADO A LADO B

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acalmar. Aqueles olhos castanhos, cheios de ternura, me

consolando, dando carinho! Eu não queria mais sair dali.

Só tinha um detalhe que estava estranho: por que eu estava

ali?

Foi um sonho filha! Calma, mamãe está aqui.

– Me ajuda – disse com dificuldade entre um soluço

e outro.

Calma... respira fundo! – dizia ela calmamente.

Mãe nos dá tudo o que pode e precisamos. Quem

consegue viver com sua mãe o resto da vida (falando dos

normais)? Vendo–me recuperada, veio ela me jogar nas

garras da vida de volta a aquela realidade de tantos anos

atrás que eu nem sabia porque estava ali.

Vamos menina! Você tem prova de Matemática e

não pode faltar na escola. Nem sonho te impede de ir para

escola hoje. Já está melhor, vamos!

– Prova! – Repeti sem ânimo e sem fôlego.

Prova! Ninguém me avisa nada? Que besteira eu

escreveria, se a última lembrança do colégio eram as

poesias do Drummond:

"Tinha uma pedra no meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra"

Como lembrar as equações e fórmulas tantos anos

depois, ninguém merece! Mantive a calma ou disfarcei

bem. Tentei não falar nada a minha mãe e, enquanto o

cheiro do café de minha avó impregnava a casa, fui

remontando os meus passos da noite antes de dormir e

acordar assim novinha, ainda no colegial e morando com

minha família.

Enfurnei–me no banheiro tentando ficar sozinha e

escapar dos olhos de águia da minha mãe, que cercavam

Heribert Bastos

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meus passos, pronta para me fazer largar aquele embaço e

correr carreira para escola.

Naquele momento viria a grande descoberta naquela

manhã! Estava novinha de novo, bonita e cheia de curvas.

Tirando o cabelo de espantalho de “acabei de acordar e

dai”, a testa cheia de espinhas e as unhas roídas, estava

muito da formosinha! Gostei do que vi! Não quero parecer

convencida ou exibida, não é meu estilo, mas sempre fui

mulherão! Quando adolescente era atenção dos meninos,

até os mais velhos. Os seios formados, a retaguarda

sempre avantajada (mal de família), o cabelo castanho,

liso em cima e encaracolado na ponta, um toque especial

diferente das outras meninas de cabelo liso puxado na

escova e algumas até chapinha. Não me lembrava de que

estava tudo tão em cima. Contive minha contemplação

narcisista na cantoria alta da minha mãe na porta do

banheiro.

– Vamos atrasar!!! Quero ver a nota de Matemática

no final do mês! – Forçava ela na canção.

Aproveitei a tensão e gastei os cremes e loções dela,

passei um batom e fui enfrentar a realidade ou a ilusão

daquela doida manhã. Antes de sair tinha que resolver um

pequeno imprevisto:

– Mãe – gritei abrindo a porta do banheiro e

colocando só a cabeça para fora – onde tem absorvente?!?

Depois de ser salva, fui colocada para fora pelas

broncas da minha mãe e os olhares da minha avó.

– Seu irmão já deve estar chegando. Se você correr

pode alcançá–lo! — disse a velhinha.

Mal tive tempo de tomar café da manhã tão especial

da minha avó.

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Fui andando devagar pela rua recordando as

pessoas, as casas, as árvores e tudo que fazia parte das

minhas mais remotas lembranças colegiais.

Na avenida principal do meu bairro vi uma casa de

esfirra na esquina, fechada naquele horário, lógico, mas

com a placa convidativa dizendo das promoções da época.

Que vontade de comer uma bela esfirra de carne com

aquele limão... minha boca até salivava! Mais adiante,

próximo a uma grande agência bancária, estava um bar

aberto vinte e quatro horas. Os trabalhadores que entravam

cedo se misturavam aos vagabundos da noite. Alguns com

seu pingado com pão na chapa e outros com copo de pinga

mesmo, faziam barulho como se fosse meio dia. Mais

adiante Jaime, o engraxate! O Tadeu da banca de jornal!

Seu Adriano, o aposentado, acordava cedo e ficava

passeando pelo bairro para falar do Corinthians!

E o casarão azul? Uma casa cercada por um portão

sinistro e árvores altas. Ninguém entrava nem saia dali,

pelo menos eu nunca vi alma viva naquele lugar. Eu não

tinha medo e sim respeito por aquelas janelas altas e

aquelas sombras estranhas. Mas acelerava o passo ao

andar na frente daqueles portões, sempre achava que tinha

alguém me observando. Detesto gente me olhando!

Por fim a rua do colégio. Aquela ladeira longa e o

Bidu, um vira–lata que vivia colhendo da boa vontade de

quem lhe dava comida. O bicho me olhou de modo

estranho e parecia entender que eu não devia estar ali.

Por causa dessa apreciação toda, cheguei mais

atrasada ainda na escola. O portão fechado me obrigou a

passar pela barrada saia da irmã Olímpia na secretaria, que

me atendeu sem nem mostrar os dentes.

Heribert Bastos

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A mulher baixinha, de rosto branco e nariz pontudo,

mãos frias e fala rápida, não gastou seu latim aprendido no

convento comigo, deu somente algumas recomendações e

um livro grande e verde para eu assinar.

– Não adianta pressa, tem que passar por aqui e

assinar o livro verde – Disse ela carregando no sotaque de

quem vem do interior – E depois explicar para sua mãe os

atrasos, né mocinha?

Escorreguei da sala dela antes do início do sermão.

Não tô podendo! Voltar no tempo e escutar sermão de

irmã Olímpia às sete e meia da manhã!

Corri as salas de aula procurando lembrar de alguém

que tinha estudado comigo, isso me daria segurança na

minha sala. Logo na segunda porta já reconheci a Rita,

olhando direto para mim como se estivesse me esperando.

Rita era uma pernambucana bonitinha e arretada de pele

negra e cabelos trançados como em um desenho. Seu rosto

era delicado como de uma boneca e seus olhos, castanho

claros, eram um chamariz que a deixava mais linda e

exótica. Mas seu gênio era de um leão. Botava o dedo na

cara de quem fosse, se achasse seu direito ou sua razão.

Ao me ver no vidro da porta da sala fez um gesto

para eu entrar rapidamente e sentar ao seu lado, fiz isso

rápido sem olhar para cara do professor.

Agora vou fazer um parêntese para contar uma

história:

(Diz o seguinte: uma loira entrou em um cassino se

aproximou da roleta, tirou toda roupa, fez uma aposta e

começa a torcer. Todos os homens da mesa ficaram

olhando para ela espantados enquanto ela pulava e gritava

pelo resultado. A roleta parou, ela gritou vitória, recolheu

todas as fichas da mesa colocou a roupa e saiu em direção

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ao caixa. O homem na ponta oposta da mesa perguntou

para outro do seu lado.

– Você viu o resultado? Ela ganhou mesmo?

– Não sei... não vi!

Moral da história: nem toda loira é burra, mas todo

homem é igual!)

Agora você vai entender porque contei essa história

e fecho o parêntese.

Explico isso porque não sou loira, mas a história tem

razão e o professor José, de Matemática, não fugia a essa

regra: era igual a todos os homens. Logo de cara, quando

me viu entrar, fez uma gracinha bem sem graça e cheia de

malícia, sobre minha beleza, juventude e meu atraso. Hoje

em dia ele seria processado. Mas sem elaborar muito, e

sem olhar para ele, o fiz lembrar da ótima oportunidade de

ficar quieto:

– A beleza é da minha família, o atraso um acidente

e os meus ouvidos não são fossa, já me expliquei para

irmã Olímpia! Posso fazer a prova?

– A educação também é de família? – Se irritou ele.

– Minha educação responde no tom de quem está

falando... a prova?

Quem está errado não retruca e o assunto morreu

onde havia começado na boca do professor José. Ele me

entregou o papel de má vontade e a prova ocorreu como

deveria ser: uma bosta!

Eu já estava tonta por estar ali dezessete anos atrás,

depois daquela prova então, não sabia nem quem era eu ou

em que planeta eu estava. Não me conformava como

alguém pode gostar de Matemática e fazer daquilo

Heribert Bastos

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profissão! Como engenheiros e matemáticos. O pior é que

mesmo odiando eu era boa naquilo.

Tudo encerrou e eu achei que se fechasse os olhos

voltaria para minha cama de lençóis brancos e rosa. Mas

veio o intervalo. Fiquei besta de ver como as meninas

daquela idade eram bobas e falavam bobagem.

Tudo bem, a bunda do jogador era muito

redondinha, mas aqueles meninos ridículos do “conjunto

americano somos todos iguais” não serviam nem para

passar um dia de chuva na praia.

Fugi das rodinhas e me tranquei no banheiro

tentando buscar um pouco de sanidade, mas só encontrei

mau cheiro e mais barulho. Saí e sentei longe do banheiro

e da bagunça em um banco afastado. Fiquei com a cabeça

baixa esperando algo ou alguém me salvar.

De repente uma mão leve pousou no meu ombro: era

do Sr. Benê, o inspetor de alunos ou bedel como dizia

minha avó! Ele me perguntou se estava tudo bem e eu

disse não. Ele me puxou ternamente, como um avô com

sua neta, me avisou que o intervalo acabara.

– Vamos filha, sua aula já deve ter começado. Se

estiver passando mal vamos à secretaria, a Irmã Olímpia te

dá um remédio.

– Irmã Olímpia de novo não, Sr. Benê! Melhor

voltar para a aula.

– Vem comigo... eu te levo.

Fiquei com os olhos cheios d'água ao vê–lo me tratar

daquele jeito todo delicado. Agarrei no braço do velhinho

e fui deixando ele me levar. Minha carência e minhas

maluquices tornaram Sr. Benê o homem mais gentil que

havia falado comigo naquela doida manhã! Apesar de

estar, naquele momento, com um quarto da idade dele, eu

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tinha a mesma altura que ele, se não fosse maior. Mas

mesmo assim me sentia acolhida e protegida por aquele

velhinho de cabelos prateados, pele morena e enrugada e

de óculos fundo de garrafa. Aquele cheiro de loção pós-

barba e aquelas mãos antigas, traziam uma experiência

sabe–se de quanto tempo, conduziam minha vida naquele

momento. Uma ótima lembrança viva. Subimos uma

escada, degrau por degrau, sem pressa.

Íamos em direção à porta, atravessando o grande

pátio, quando surgiu Rita, vermelha e esbaforida. Da porta

me lançou um esporro que fiquei até descadeirada. Foi tão

autoritária que Sr. Benê até riu.

– Vamos mulher! Vai ficar dependurada nos braços

do Sr. Benê? Tá achando que eu tenho a vida inteira para

te esperar? O Joaquim já está na sala! Tenho coisas

importantíssimas para te dizer!

A maluca me arrancou dos braços do velhinho que

quase caiu! Não tive tempo nem de dizer obrigada pelo

ombro amigo. Fui praticamente arrastada pelo corredor

vazio. Melhor vazio mesmo, pois assim ninguém viu a

espatifada que eu dei no chão enquanto a menina doida

tagarelava alguma coisa sem parar e sem eu entender

nada. Ela voltou, me olhou no chão, me colocou em pé

com apenas um tranco e ainda me chamou de lerda!

– Eu não vou te falar mais nada. Não quero saber de

você me perguntando nada sobre ele!

– Ele quem? – Disse eu com cara de dúvida.

– Quem mais senão seu tão lindo Fabiano. O homem

mais topetudo desse colégio... Homem não, que ele ainda

carece de experiência para ser homem com “H”

maiúsculo.

Heribert Bastos

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Juro que não lembrava mais dele. O menino mais

famoso e lindo da escola. Foi minha paixão durante anos.

Loiro, topetudo, alto, jogador de basquete, bom de briga,

legal, enfim, tudo de bom para uma garota da minha idade

ou com aquela idade, vamos deixar bem claro.

Entrei na sala e não me concentrei em nada do que o

professor de Geografia falava. Estava pra lá de tonta com

tantos acontecimentos estranhos. Eis que se não bastasse a

porta da sala se abriu e por trás dela ele veio! Aquele

topete loiro, de bermuda, tênis preto surrado, aquele

sorriso de moleque, aquela barba adolescente por fazer,

aquele rosto cheio de espinha, aquele corpo magro, aquele

jeito estranho de andar (pensando bem... que diabos eu via

naquele moleque). Rita, toda assanhada ao meu lado, me

deu um cutucão com o cotovelo que quase me manda pro

beleléu! Só por Deus! Eu já estava sem ar ao vê–lo, depois

daquilo era só levar para ambulância ou para primeiro

velório com falta de defunto. Depois da décima tossida e

de parar a aula reclamei com ela:

– Tu é retardada ou assassina?

– Lesada! – retrucou ela.

Virou a cara e não ligou para o mico que eu passei.

Com a ponta do queixo mostrava o Fabiano sentado um

pouco mais ao lado. Eu olhei meio de lado para ela

estranhando e não entendendo nada. Aí danou–se que a

doida resolveu fazer umas caras mais estranhas ainda.

Como estava silêncio e só o professor Joaquim falava, ela

não queria abrir a boca e ficava só no gestual. Mostrava a

língua, os dentes, piscava o olho direito, o olho esquerdo,

mexia os dedos, esfregava um dedo no outro e por aí

adiante. Eu tentava decifrar o gestual dela respondendo da

mesma maneira. Para uma piscada com o olho direito eu

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colocava a cabeça para o lado quase encostando a

bochecha no ombro. A cada balanço dos ombros eu

balançava a cabeça de um lado para o outro. Cada vez que

ela colocava a língua para fora eu piscava os dois olhos.

Até que, em um momento ela fechou os olhos e baixou a

cabeça. Eu fiquei olhando, tentando ver a cara dela, mas

ela só apontava para frente com o dedo. Já era tarde

demais, estava feita a vergonha: a sala inteira nos olhava e

ria e o professor havia parado a aula observando nosso

"ritual primitivo de comunicação" como ele mesmo

definiu. Tentei falar que não queríamos atrapalhar a aula,

mas quem está errado não retruca e fiquei miudinha na

cadeira.

– Se as duas estiverem passando mal podem sair.

Caso contrário vou continuar – jogou o professor na nossa

cara e com toda razão que demos para ele.

– Pode continuar professor. Desculpa... – sussurrei.

Dali para o final da aula só não fomos confundidas

com as carteiras porque respirávamos, mas era tão baixo

que podia se desconfiar se estávamos mortas.

Na saída da sala, Fabiano me puxou pelo braço e

disse que precisava falar comigo. Foi me levando para o

pátio no contra fluxo dos alunos que saíam. Paramos no

fundo do colégio, perto do parquinho das crianças

menores. Ele estava muito ansioso e eu o via com um

olhar bem diferente das lembranças da minha

adolescência. Apesar de representar estar sobre o controle

de tudo era visível que ele estava arriscando muito por

estar ali. Mas não demonstrava medo e isso me levou

junto sem dar bola para o frio no estômago. Forçou uma

porta e abriu com certa facilidade.

– Entra! – disse ele sorrindo e indicando com a mão.

Heribert Bastos

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Eu não vou dar uma de inocente para descobrir as

intenções dele, agora aquele lugar era de dar arrepios.

–Vai logo – disse ele puxando minha mão e me

jogando para dentro da sala escura que cheirava mofo.

Tropecei em uma arara de roupas e caí sentada em um

sofá velho e empoeirado. Ele rapidamente fechou a porta e

ficou parado olhando para o escuro. Estava tentando

acostumar à visão com a pouca luz que entrava por uma

janela basculante que ficava acima da porta.

Eu estava cheia de nojo e medo, pra ser bem sincera!

O sofá, acho, era vermelho e as roupas penduradas na

arara tinham muita renda.

– Fabiano, você está louco! – berrei com ele.

Ele me olhou bravo e colocou o dedo indicador

sobre os lábios e me mandou falar baixo. E eu obedeci

prontamente.

–Quer que o Sr. Benê venha aqui descobrir a gente?

Ele deu um passo desajeitado e desviou da arara e

com um pulo sentou ao meu lado. Fiz um gesto para

levantar, mas ele me segurou de volta e me deu um beijo

na boca.

– Você está doido? Esse lugar é horrível – gritei

empurrando ele.

Levantei e fui até a porta. Olhei para o lado e

percebi que estávamos na parte de trás do anfiteatro.

Havia cenários e roupas espalhadas por todo canto. Fiz

menção de sair e olhei para a cara dele sentado.

– O que foi... Vamos embora! – disse eu.

– Vem cá, vamos conversar...

Olhei para um lado, olhei para o outro e do escuro

via a cara dele de pidão como que implorando para aquela

oportunidade. Tirei a mão da maçaneta, desviei da arara e

LADO A LADO B

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sentei ao lado dele. Minha mãe já me disse que eu gosto

de fazer coisa errada com vontade. Mas pra ser sincera eu

nem sei do que eu estava com vontade naquele momento

eu só me deixava ser levada pelas borboletas no estômago

e aquela cara de cachorro sem vergonha do Fabiano.

– Mas sem palhaçada. Já estou com problemas

demais hoje. O que você quer?

Ele se aproximou pegou minha mão e ficou me

olhando.

– Só queria ficar sozinho com você. Senti sua falta

hoje na aula de educação física.

– Só isso? – moleque é fogo... já estava quase eu

tomando a iniciativa.

–E não é bastante? Puxa Laura... Eu gosto de você!

– ele passou a mão nos meus cabelos e ajeitou minha

franja deslizando o dedo pelo meu rosto. Ele tinha aqueles

olhos que hipnotizavam qualquer mulher e aquela mão

grande de quem segura sem escapatória. Foi se

aproximando e minha mão ficou sobre seus braços que,

apesar de magros, eram fortes.

Tão fortes que me abraçaram de um jeito delicioso e

forte. Meio sem jeito, mas delicioso. Aí eu fui ficando

mole e ele foi beijando meu pescoço e meu rosto e parou

para me olhar antes de...

– Ótimo saber que vocês estão aí!

A porta abriu e a claridade nos cegou. O

homenzinho que apareceu não estava nada feliz com a

nossa presença naquele lugar clandestino.

– Muito bonito! Vocês dois estão fazendo o que aqui

dentro? – era Sr. Benê com uma mão na cintura e a outra

no molho de chaves – Podem sair agora. Você, dona

Maria Laura, deixa sua mãe ver você dando... dando

Heribert Bastos

23

confiança dessa maneira no fundo da escola. Esperava

mais postura e decência da senhorita.

Nesse momento Fabiano ia saindo rapidinho do

quarto como que escapando e me deixando para trás.

– Pera lá Sr. Benê! – berrei logo pra colocar coisas

no devido lugar – Eu não estou sozinha nessa sala. Esse

bunda mole que está fugindo estava junto comigo e mede

bem o que o senhor está dizendo, pois não conhece minha

natureza pra julgar só por causa de um beijinho no fundo

da escola. Já fiz coisas muito piores em lugares mais

públicos.

Ele arregalou os olhos para mim por trás dos óculos

grossos. Aí vi que tinha soltado uma merda!

– É brincadeira Sr. Benê. Brincadeira. Sou só uma

menina de dezessete anos. Mas ainda assim quero respeito

do senhor! – disse fazendo cara de ofendida. Sempre

funciona com os homens mais velhos.

Vendo que se excedeu no quesito moralidade, Sr.

Benê se retratou e colocou a culpa sobre o Fabiano, que já

não sabia se corria, se ficava ou se desaparecia. Não

precisei nem fazer o meu discurso, Sr. Benê já lançou uma

tijolada na cabeça do rapaz.

– E você, grande homem que é! Traz a menina até

aqui e na hora que é descoberto foge como rato! Aprenda

pelo menos a assumir seus erros! Larga a menina aqui e

foge!

Ele gaguejou e não conseguiu se explicar. Também,

vai explicar o quê? Saímos sorrateiramente assim que

chegamos ao portão. Nem ficamos para esperar Sr. Benê e

suas atitudes em relação ao casal meliante que ele

encontrou. Já estava na hora de resolver outros problemas

mais sérios do que aquele para mim.

LADO A LADO B

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Na porta da escola, Rita me esperava como quem

espera um trem atrasado. Quando me viu quase atropelou

um cara de bicicleta que estava passando na frente dela. E

grudou em mim tirando satisfação de onde eu estava, com

quem, por que eu não havia dito para ela e me culpando

pelo atraso dela em ir para casa. Por Deus que não dei um

soco na cara dela! Ai que insuportável...

– Eu lá tenho que te dar alguma explicação?

Atrasou-se para ir para casa porque quis. Até onde me

lembro, e olha que faz tempo que não faço esse caminho,

tua casa é para o lado oposto da minha! Está parecendo

minha mãe!

Respondi sem pensar. A sorte é que a Rita, além de

intrometida, é cara de pau. Mesmo tendo dito tudo isso

para ela, a guria continuou do meu lado querendo saber o

que eu estava fazendo no fundo do colégio com o Fabiano.

Contei o que aconteceu omitindo detalhes sórdidos da

história. Ela quase quis voltar para bater no Sr. Benê, mas

nesse momento, Fabiano passou por nós dando uma

piscadinha com o olho esquerdo e dizendo que amanhã

continuávamos aquele assunto. Rita quase teve um ataque

de urticária de tanta curiosidade. Ela achava que eu tinha

mais para contar, e eu tinha, mas ela não precisava saber.

Continuamos nosso caminho com ela falando sem parar

sobre os assuntos mais desconexos do mundo. Eu sentia

um aperto no peito que não passava. Até que eu vi uma

luz, ou melhor, uma cruz! Era a igreja de Santo Antônio!

Simplesmente esqueci que a Rita existia e que ela estava

ao meu lado. Atravessei a praça e entrei na igreja sem nem

me benzer direito. Aquele cheiro de igreja invadiu meu

peito e trouxe uma paz que eu estava precisando.

Heribert Bastos

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Havia poucas pessoas dentro da igreja. A missa do

meio–dia havia acabado há pouco tempo, pois o sacristão

estava em cima do altar apagando as velas e recolhendo a

bíblia do padre. Corri até ele e cheguei tão afobada

tomando um tropeção que quase caí dentro do santíssimo!

O sacristão me repreendeu dizendo que eu estava na casa

de Deus e não eram modos de uma menina perante o altar.

Pedi um milhão de desculpas e perguntei pelo padre. Ele

perguntou o que eu queria com a autoridade. Termo

estranho, chamar um padre de autoridade, nunca havia

ouvido falar nisso. Disse que se tratava de um recado da

irmã Olímpia para o padre Romano. Ele olhou

desconfiado.

– Por que ela não ligou para ele?

De pronto respondi que ela não o havia encontrado.

O sacristão, desconfiado, colocou a bíblia sobre o altar,

pôs as mãos sobre ela e disse para eu contar a verdade

para ele. Eu quase ia jurar que era verdade, mas dentro da

igreja, diante do altar, com nossa senhora olhando para

mim, não tive coragem.

– Preciso me confessar!

Eu vi, por um segundo, a expressão de sacanagem

na cara daquele ser. Se não me lembrasse do nome do

padre e da cara dele tenho certeza que o fanfarrão se

candidataria a escutar meus pecados. Pilantra! Disse então

que o padre não atendia confissões durante o almoço, para

eu voltar mais tarde, com certeza ele me atenderia.

– Você garante essa informação? – perguntei sem

medo e ele quase me varreu de lá! Na saída da igreja

encontrei a Rita me esperando batendo papo com uma

fulana que eu conhecia, mas não lembrava o nome. Ela me

olhou de maneira estranha dizendo que eu estava muito

LADO A LADO B

26

estranha. Era óbvio que eu estava estranha fui dormir

adulta e acordei com dezessete anos! Só que isso ela não

sabia e desconversei o caso. Dispensei-a e disse que tinha

que ir para casa, pois estava mal, com dor de cabeça. Rita,

que já havia encontrado alguém para amolar, não deu falta

por mim e saiu andando com a tal fulana, que eu não

lembro o nome.

Vaguei pelo bairro sem ter aonde ir. Lembrei-me

novamente do meu marido, Vinícius.

Quando eu iria vê–lo novamente? Teria minha vida

de volta? Lembrei-me da época que o conheci. Na

faculdade, apesar dele não pertencer a minha turma, fez

algumas amizades e passou a ser figura constante na sala,

nas baladas, nas rodas de bate–papo. Tentava me

aproximar dele, mas ele fazia questão de me tratar com

indiferença ou mal. Sempre tive certeza que ele me

odiava. Tinha umas peruas que ficavam em volta dele, que

me deixavam doida. Mas eu já estava tão vidrada que não

pensava em outro. Arrumei até um rabicho na faculdade

só para fazer ciúmes para ele, mas o efeito foi nulo. Tomei

a decisão de só desistir dele quando o visse com outra. O

infeliz não me deu tempo nem de registrar minha

promessa na igreja, apareceu com uma daquelas peruas

cadelas pendurada nos beiços. Fiquei com tanta raiva que

dispensei na mesma hora o bicho goiaba que eu estava

ficando só para fazer ciúmes.

Mas um dia chegamos juntos na sala de aula e aí

ficamos um tempo conversando sobre a faculdade,

trabalho, diversão, etc., etc. A conversa tinha sido a

melhor desde que nos olhamos pela primeira vez.

Descobrimos algumas coisas em comum e combinamos

até de sair com a turma.

Heribert Bastos

27

Aquela noite me arrumei para matar. Gastei todos os

cremes que eu tinha, escolhi um vestido comprido com as

costas de fora, um salto alto e aquele cabelão ondulado

solto. Na época já estava morando em uma república perto

da faculdade e minha primeira notícia de que eu estava

para matar veio do porteiro.

– Jesus dona Maria Laura! Saindo assim a senhora

entorta o pião! Isso acaba com o casamento do cristão!

A medida estava certa. Mas na festa, além de

aguentar bêbado no cio, tive que engolir Vinícius com a

tal cadela perua nos beijos e abraços. Vi até quando ela

deu uma mordida na orelha dele e depois os dois foram

embora, com cara de que a noite seria aquela. Pouco antes

de sair me olhou e deu uma piscadinha. Tremi dentro do

vestido. Detestei ter dado aquela bandeira pra ele, galinha

safado. Minha primeira vontade era de chorar, desaparecer

daquela festa infeliz, matar o primeiro idiota que fizesse

uma gracinha. Que ódio! Parei no bar que ficava perto da

piscina e pedi duas Tequilas e sentei para beber. Fiquei

quase duas horas olhando para os dois copos cheios. Os

malucos até pararam de mexer comigo.

– Essa está muito louca.

Levantei a cabeça, peguei o copo e resolvi que

aquela seria a noite de enfiar o pé na jaca!

Quando levantei o copo vi Vinícius parado, sozinho,

no meio de uma escada com a mão na cintura olhando em

volta, como se procurasse alguma coisa. Nossos olhares se

cruzaram e ele levantou as sobrancelhas, espantado ao ver

meu copo na mão. Fiquei sem graça, coloquei o copo na

mesa e olhei para baixo. Ele tinha voltado só por minha

causa. Naquela época ele era um safado sem vergonha.

Mas lindo!

LADO A LADO B

28

Caminhei mais um pouco e voltei pra igreja. O

sacristão, mal humorado que só, me disse que ele estava

conversando com as senhoras que organizavam o

catecismo e que não podia ser interrompido. Larguei-o de

lado e dei a volta na igreja entrando pelo lado que dava

acesso à sacristia. Lá estava o padre e suas beatas. Todas

muito concentradas no falar de uma senhora grande, de

cabelo armado e quase laranja que tinha os óculos no meio

do nariz e falava olhando um papel. O padre, na verdade

com uma cara de entediado, parecia muito mais

interessado em uma cama do que naquele papo de

paróquia. Quando entrei na sala quase ninguém notou

minha presença, com exceção o padre, que levantou as

sobrancelhas e deu um leve sorriso. A mulher que estava

lendo, como que por instinto, levantou a cabeça e

percebeu que o padre já não prestava mais a atenção nela.

Ao me ver quase me eletrocutou com os olhos.

– O que você deseja menina? – disse ela secamente.

Eu podia ter ignorado ou ser mal educada como de

comum, mas resolvi apenas não criar caso e dizer que

estava procurando o padre. Ela rispidamente me

respondeu que ele estava ocupado e que agora não era

hora de atendimento dos fiéis. Mandou que eu voltasse

amanhã pela manhã para falar com ele. Ignorei a velha de

cabelo laranja e perguntei diretamente ao padre se ele

podia me atender. Ele me pediu que o esperasse na igreja e

que logo ele falaria comigo, que não demoraria mais de

quinze minutos. A mulher novamente me fuzilou com os

olhos e pediu que eu saísse. Não resisti:

– Posso ir agora seu padre?

Perguntei ignorando–a e provocando-a ao mesmo

tempo. Ele me dispensou dizendo que tudo tinha seu

Heribert Bastos

29

tempo. Ah que dó do padre! A hora que eu contasse a

minha história para ele...

Sentada na frente de São Benedito fiquei olhando

meio cansada a igreja e com aquele silêncio cochilei.

Quando adormeci sonhei com meu quarto, Vinícius

dormindo ao meu lado e com o barulho da rua. Acordei

com a mão do padre no meu ombro.

– Cansada filha?

Fomos para uma sala fechada onde o padre me

benzeu e perguntou o que afligia meu coração. Contei

tudo o que havia acontecido desde a hora em que acordei.

Omiti os últimos detalhes que aconteceram entre mim e o

Fabiano na salinha do fundo do colégio. O padre ficou

olhando para minha cara como se estivesse vendo uma

doida, mas controlou o primeiro impulso. Perguntou se eu

me lembrava do que havia acontecido no dia anterior e eu

respondi que lembrava bem, mas que eu tinha trinta e

cinco anos no dia anterior, que eu estava trabalhando com

computadores de última geração, que eu dirigia, que eu

tinha um marido, e–mail, Internet, etc. Ele franziu a testa

quando disse aquelas palavras novas e eu disse para ele

não se preocupar com isso, no futuro ele descobriria do

que se trata. Perguntou se eu me lembrava de algum

acontecimento que poderia ter causado essa falta de

memória, ou essa memória fora de tempo. Eu disse que

não havia nada que fosse forte para causar uma regressão

no tempo de dezessete anos. Ele olhou bem para mim e

disse que não acreditava em regressão e que não havia

nem explicações ou fatos que pudessem comprovar

realmente que uma pessoa possa viajar no tempo. A Bíblia

não dizia nada a esse respeito, mas, surpreendentemente

disse que o tempo celestial era diferente. Ele fez um

LADO A LADO B

30

discurso sobre o tempo, as pessoas, Jesus, a Bíblia,

citando casos, capítulos, versículos, mas nada me trouxe

alguma explicação para o que estava acontecendo comigo.

Vendo pela ótica do padre eu era uma menina de dezessete

anos tendo uma alucinação sobre uma vida futura.

– Filha, você concorda que isso pode parecer

loucura, certo?

Eu concordei com ele. Como você explica ter

lembrança do futuro? Mas expliquei que aquela era a

situação em que eu me encontrava. Ele levantou, abriu

mais a janela, colocou algumas violetas para tomar sol,

pegou uma jarra de barro encheu dois copos com água e

me deu um. Sentou–se ao meu lado e me perguntou como

estava minha família. Eu disse que estava tudo bem e que

não tinha nada de errado em casa. Ele perguntou sobre

meu pai. Pensei um pouco sobre como estava nossa vida

naquela época, mas não quis prolongar esses detalhes com

o padre e disse que estava tudo bem.

Entrando um pouco na minha maluquice ele

perguntou como era a minha vida no futuro. Se eu tinha

marido, filhos, problemas. Fiz um relatório rápido sobre

como era minha vida, onde eu morava, quais meus gostos

etc. Disse que meu casamento não estava muito bem pois

estávamos em uma rotina muito desgastante de trabalho e

que o casal não se encontrava na sua melhor fase. O padre

ouviu tudo que eu falava como se fizesse sentido para ele.

Ele colocou o copo em cima da mesa, pegou minha mão e

olhou bem fundo nos meus olhos. A mão macia do padre

esquentou meu coração e eu senti um conforto muito

gostoso.

– Filha, vá para a igreja, sente–se. Reze se quiser um

Pai Nosso, uma Ave–Maria não te farão mal. Converse

Heribert Bastos

31

com Jesus, com Deus. Respire fundo, devagar. Vá se

lembrando da sua família, da sua juventude, da sua casa

quando era mais nova, da sua infância. Vá fazendo isso e

pedindo que Deus oriente sua cabeça para que você tenha

sua cabeça no lugar, para que tudo volte ao normal. Acho

que existe algo que ele está querendo te mostrar e você

ainda não viu. Só que isso, seja lá o que for, está dentro de

você e você precisa parar, se concentrar e pedir

iluminação e paz. Os aprendizados de Jesus às vezes se

mostram de forma estranha. Nossa visão nos engana,

nossos ouvidos nos enganam. Alguns acontecimentos nos

levam a rever muita coisa, de formas às vezes... estranhas.

O padre novamente levantou e encheu os dois copos

com água. Ficamos em silêncio por um tempo, o que me

angustiou profundamente. Queria respostas mais diretas e

claras dele.

– Isso é tudo que eu, na minha humilde posição

posso te orientar. Caso você não consiga se livrar desse

seu pensamento, volte aqui amanhã. Assista a missa,

vamos conversar mais um pouco e depois fique mais um

tempo na igreja como te falei para fazer hoje. Tenho

certeza que tudo tem uma explicação e que Deus quer de

dar um recado. Esse recado você tem que parar e pensar o

que significa. Afirmar que você voltou no tempo é muito

forte... mas nada é impossível para Deus. Não serei eu a

cometer uma loucura de dizer que você está louca.

– Mesmo que eu pareça louca?

– Muito pelo contrário. Você me parece bem sensata

e sóbria.

Naquele momento vi que o padre não estava

entendendo o que eu estava passando. Como eu poderia

estar sensata e calma? Eu estava chorando quando o padre

LADO A LADO B

32

terminou de falar. Não sei ao certo porque, mas soluçava

como bêbado na porta do boteco. Beijei a mão dele e fui

para a igreja refletir, rezar e tentar entender porque aquilo

estava acontecendo comigo. Fiquei lá por quase duas

horas, pensando e lembrando. Estava com muito sono e

minha cabeça pesava demais. Resolvi terminar aquele

papo com Deus em casa. Levantei e fui para a porta da

igreja. Ao chegar no meio do corredor central senti uma

moleza incrível e comecei a ver a igreja rodar. Várias

imagens e lembranças passaram na minha cabeça. O

acidente que meu pai havia sofrido quando tinha dezessete

anos, a separação dos meus pais, minha promoção na

empresa, meu chefe, meu marido. Um rodamoinho de

imagens e sensações. De repente tudo ficou escuro e eu

apaguei no meio da igreja. Quando abri os olhos lá estava

meu marido dormindo de cara comigo. Foi então que

acordei. Tudo tão real que ao ver Vinícius dormindo dei

um grito.

Não é fácil ter um sonho real como eu tive e

acordar. Vinícius, que dormia de babar, pulou como se

estivesse tomado um balde de água fria. Eu chorava,

desesperada, sentada na cama. E ele corria para me trazer

água e um remédio.

Heribert Bastos

33

CAPÍTULO 2

Um novo dia...

Maria Laura tem um jeito diferente de contar as

coisas. Eu fiquei surpreso quando ela apareceu na minha

frente com essa história depois de tanto tempo.

Eu já conhecia seu temperamento explosivo e optei

por liberá-la para contar sua aventura da melhor

maneira. Já era difícil suficiente revê-la depois de tanto

tempo.

Tomei sabe–se lá Deus o que para me acalmar.

Vinícius, despenteado e de pijama me abanava, me

abraçava, acho que, por dentro, até rezava para que eu me

acalmasse. Meu corpo tremia descontroladamente, mesmo

abraçado ao dele. Acho que demorei uns quarenta minutos

para me acalmar, mas a cada vez que tentava falar o que

havia acontecido eu me descontrolava e chorava

novamente. Em um flash de lucidez ele achou melhor que

eu tomasse um banho quente e ficasse quieta até ter

controle sobre alguma emoção.

– Vai ser melhor. Você vai relaxar mais.

O banheiro ficou que não se podia ver a porta de

tanto vapor da água quente. Praticamente cozinhei dentro

do box. Mas isso me ajudou muito, pois fui me acalmando

e tentando colocar minha cabeça no lugar correto. Fui

fazendo, a mim mesma, algumas perguntas do tipo qual

era meu nome completo, onde eu morava, onde eu

LADO A LADO B

34

trabalhava, qual era o nome completo do meu marido, etc.

Se isso não me trouxesse a realidade acho que só enfiando

o dedo na tomada (que eu não estava descartando

totalmente). Saí do banheiro e encontrei o Vinícius

encolhido como passarinho em cima da cama, assustado e

ansioso por me ver. Preparou uma bandeja com o café da

manhã: leite, frutas, cereais e biscoito. Pediu que sentasse

e comesse. Exigiu apenas que eu não falasse nada, apenas

comesse e me acalmasse. As janelas do quarto estavam

abertas e a visão da rua do décimo sétimo andar do

edifício onde morávamos me deu certo espanto. Lá fora

carros e pessoas, mesmo que pequenos, andavam sem

parar. Aviões e helicópteros sobrevoavam a cidade e seu

caos de trânsito logo pela manhã. A televisão do quarto,

ligada, mostrava notícias sobre os conflitos no Oriente

Médio, a onda de violência, as estreias no cinema e

algumas coisas sobre jardinagem. Porém a linguagem era

diferente da que havia sonhado. Sim um sonho. Tudo não

passou de um sonho. Uma viagem sem fim. Coisa de

maluca.

O padre, talvez em um recado da minha mente para

meu corpo, falou corretamente: lembre–se porque você

veio parar aqui. Pense na sua família, na sua casa, na sua

história. Na hora em que me lembrei, despertei. O que

mexia muito comigo era o fato de lembrar do cheiro da

sala onde me confessei com o padre, do perfume do

menino que me beijou no fundo do colégio, do gosto da

boca dele, do aperto do abraço da minha mãe. Eu me

lembrava de detalhes como se tivessem acabado de

acontecer, como uma lembrança recente. Parecia até que

minha cabeça estava dolorida pelo tombo que tomei na

Heribert Bastos

35

igreja quando desmaiei. Sentia-me cansada como se não

tivesse dormido a noite inteira.

Já bem mais recuperada e depois de ter tomado todo

o café da manhã resolvi contar tudo para Vinícius. Ele me

escutou pacientemente e calado. Não disse uma única

palavra. Seus olhos não desviavam do meu e sua

respiração era forte a cada detalhe mínimo que eu contava.

Ao terminar ele me perguntou se eu estava melhor e se

queria mais alguma coisa.

Depois de algum tempo sentada na cama tudo não

passava de um sonho muito forte e muito detalhado,

mexendo com um período muito conturbado do meu

passado. Vinícius, sentindo que eu estava melhor, se

preparou para o trabalho. Rotina normal de tomar banho,

colocar terno, gravata e perfume (aliás, muito perfume).

Deu-me um beijo na testa, disse para eu ligar no escritório

avisando que eu atrasaria e foi embora. Pensei em

vasculhar as gavetas de fotos e relembrar um pouco aquela

época, mas não foi preciso. O telefone celular tocou e a

voz que eu atendi me remetia ao conforto de tudo. Era

minha mãe. Comecei a chorar no telefone novamente e ela

ficou desesperada do outro lado. Contei tudo novamente

para ela. Mãe é mãe e sempre tem uma palavra para nos

acalmar e para nos chamar a realidade.

– Você quer me matar do coração! Atende ao

telefone chorando só por causa de um sonho! Eu sonho

todas as noites com sua avó e nem por isso eu te ligo

chorando! – berrou ela do outro lado.

Quase disse "Obrigado mãe!" era tudo que eu queria

escutar naquele momento. Ela, como sempre, me tirando

da cama e me colocando nas garras da vida. Minha mãe

tinha razão. Não dá para ficar deitada só porque sonhei

LADO A LADO B

36

com o passado. Sou mais mulher que isso. Era hora de sair

de casa e parar de chorar por causa de um sonho. Chega de

lágrimas por nada, disse para mim mesma! Coloquei

minha melhor roupa, meu sapato de salto mais alto, passei

meus melhores cremes, perfumes, batom e fui à luta.

Estava até torcendo por um elogio gratuito de um Zé

qualquer, só para ver se minha autoestima subia.

Entrei no elevador e fiquei procurando a chave do

carro dentro da minha bolsa. O elevador foi parando no

décimo andar e eu ali, toda atrapalhada segurando a bolsa,

o casaco e procurando a chave. Entrou uma mulher que eu

não olhei para a cara. Ela disse bom dia e eu respondi por

educação, novamente sem olhar para a cara dela. Ao achar

a chave levantei em triunfo e gritei alto “ACHEI”!

Eis que quase meu queixo caiu no chão. Arrumada e

olhando para os números do elevador lá estava ela. RITA!

Cabelo mais curto, de roupa de ginástica, com uma

mochila nas costas de tênis pronta para ir para a academia.

Eu não conseguia falar. O elevador foi chegando ao

subsolo e ela se preparava para sair. Eu não tinha forças

para dizer o nome dela e não me mexia de espanto. Ela por

sua vez, tão concentrada em seu objetivo de ir para a

academia, que eu podia ter um ataque epilético naquele

elevador que ela nem perceberia. O elevador foi parando

no primeiro subsolo. Ela desceu sem nem falar até logo.

Baiana mal educada (nem lembrava se ela era baiana ou

pernambucana).

Eu estava tão estúpida que nem consegui segurar o

elevador, que fechou e se encaminhou para o segundo

subsolo. Apertei o botão para voltar, mas já era tarde.

Quando saí ela já estava colocando o carro para fora do

prédio. Apressadinha ela!

Heribert Bastos

37

Voltei para o elevador e fui até o carro. Sentada lá

dentro lembrei-me do que aconteceu e uma coisa me

passou pela cabeça: será que eu voltei no tempo? É

possível acontecer uma coisa dessas?

Melhor, será que eu tive um ataque de

esquizofrenia? Mas o que é esquizofrenia e o que sente

uma pessoa assim?

Era melhor ir trabalhar.

Vou dizer uma coisa: nada melhor para uma pessoa

surtada como eu naquela manhã do que pegar trânsito. De

onde sai tanto carro? Gente mais idiota que tem que cada

um sair com seu carrinho, bonitinho de vidrinho preto.

Não dá para paquerar, não dá para ler, não dá para fazer

nada!

Nem mudar de faixa é possível, pois tem uma chuva

de motoboys passando entre os carros. Não dá para ser

feliz: trânsito, motoboy e sonhos malucos. Quem aguenta?

Mas tudo tende a piorar, pois tem meu chefe me

esperando.

Trabalho em uma empresa de telecomunicações,

mas não me xingue, pois não é uma operadora de

telefonia. Bem, mas não importa muito o que faz a

empresa e sim o que faço: enrolo as pessoas! Simples

assim. Vivo enfurnada na empresa gerindo uns projetos

malucos que só gastam dinheiro e ninguém usa. E pior

que, às vezes, acho que sou boa nisso. Há um ano meu

chefe mudou. Veio o José Lopes. Um maníaco por

trabalho, mal educado e com uma particularidade: não sei

o que ele pensa. Você já conversou com uma pessoa que

nitidamente fala uma coisa e pensa outra? Se não, é

porque não conheceu o José. Tem reunião que penso que

vou surtar ou matar aquele indivíduo. Às vezes não sei

LADO A LADO B

38

como ele casou e teve filho. A coitada devia estar catando

papel na ventania pra escolher um traste daquele. O que a

necessidade faz com uma mulher! Ele só teve uma

vantagem até agora: promoveu-me a líder de projetos. Mas

ainda estou descobrindo se isso é uma vantagem ou um

fardo.

Veja só. Nesse dia lindo, depois de uma noite

“maravilhosa”, sonhando com uma prova de Matemática

dezessete anos atrás chego à minha mesa e já tem um

recado para eu procurar o Zé! Mas eu respirei fundo,

pensei duas vezes e fui atrás do infeliz, porque nem ficar

na sala dele ele fica e tenho que caçar o bicho por aí.

Fui encontrar o sorrisinho besta tomando café com

uma sirigaita do RH. Menina feia que se acha gostosa. E

ele cheio de asa para cima da baranga! Deus não queria

me poupar naquele dia. O pecado que cometi devia ser

grande mesmo.

– Zé? – Ele me olhou feio. Ele detestava que o

chamasse de Zé. Fiz de propósito mesmo – Você estava

me procurando?

– Sim. Tenho duas coisas para você – disse ele

pedindo licença à baranga e me puxando para fora do café

– a primeira... eu já lhe falei que não gosto que me chame

de “Zé”?

– Sim. Desculpe... não resisti – e dei um sorriso

amarelo.

– Tá. Bem daqui a meia hora deve chegar o novo

consultor e você vai recebê–lo e orientar o trabalho dele

no projeto de levantamento para a nova base de dados, ok?

– Nossa – dei um grito – esqueci que ele vinha hoje!

– Se já não chegou. Cuida dele direitinho e

acompanha o trabalho. Não esquece que esse trabalho faz

Heribert Bastos

39

parte das suas metas para o bônus no final do ano. E sua

meta é ousada... lembra? Você quer um conselho?

– Zé... opa... desculpa! – ele olhou sem paciência –

José me poupa. Passei mal à noite, tive uns problemas que

só acontece em sonho. Já tivemos essa conversa antes.

Vou para minha mesa.

– Menina, eu sou seu chefe! – disse ele rindo do

meu jeito

– E daí? É chefe, mas não é padre para ficar dando

conselho toda hora! Vou trabalhar que minha meta é

ousada, lembra?

E deixei-o no cafezinho com a baranga. Por

enquanto dava para mim.

Ser coordenadora era uma atividade completamente

nova para mim. Estava há três meses no cargo depois do

facão que levou a antiga ocupante da cadeira. A coisa me

apertava de um tanto que não era fácil. A começar pela

equipe: dois homens e uma mulher. E cada um de um jeito

mais diferente que a encomenda.

O Thiago era cabeludo, tinha barba, ficava com fone

de ouvido o dia inteiro e aprendia muito mais rápido que

os computadores da NASA. Tinha todo perfil de rato de

computador. Falava pouco e quando abria a boca sempre

era coisa de se aproveitar. Para o bem ou para o mal,

apesar de eu quase sempre não entender o significado e

ficar com cara de tonta rindo para o nada. Usava um

guarda chuva com cabo de espada de samurai e compra

umas coisas estranhas da China.

O Ricardo, que era mais velho, usava uns óculos

grossos e falava demais, demais. Era experiente e fazia

sempre questão de provar sua sabedoria vivida "na pele".

LADO A LADO B

40

– Veja meus cabelos brancos! – repetia ele em um

mantra interminável, apontando para a vasta cabeleira que

lembrava um algodão doce.

E se não bastasse tinha o hábito nojento de cortar a

unha da mão no cesto de lixo que ficava na mesa dele.

Logo de cara eu disse para ele que se colocasse uma unha

na minha mesa eu botava fogo no saco dele! Ninguém

merece esse tipo de coisa no trabalho. Coincidência ou

não depois dessa patada nunca mais ele repetiu essa

abominação.

Eu poderia dizer que o Thiago era o melhor

funcionário, mas eu tinha a Sandra. Uma japonesinha

esperta que, de japonesa, só tinha aqueles olhinhos

puxados. Não vou puxar sardinha para o gênero feminino,

porque não preciso ficar provando os fatos pra ninguém,

mas se não fosse ela eu estava perdida. Sabia de tudo,

tinha histórico de tudo, comprometida, inteligente e uma

graça de elegância! Eu que não economizo pra falar

escancarava pra ela.

– Tenho muita inveja dos seus vestidos...

A figurinha era magrinha e tudo que ela usava ficava

lindo. Era praticamente meu braço direito do trabalho e

das compras de sapato! Já perdemos até reunião por ter

ficado no shopping experimentando botas.

Só que naquela semana eu estava sem braço direito

porque Sandrinha, metida a esportista, torceu o pé

correndo uma meia maratona. Ia ficar quinze dias em

casa! E eu sozinha tendo que aguentar o Ricardo. O

Thiago não, porque às vezes eu o cutucava pra saber se ele

não estava morto. Uma vez recebi um e-mail de um cara

que passou três dias morto no trabalho e ninguém

percebeu. Depois desse dia fiquei cismada com o Thiago.

Heribert Bastos

41

Acho que se eu desmaiasse e morresse na mesa ao lado

dele, era capaz daquele ser humano passar por cima e não

fazer nada. Às vezes ele era muito estranho.

Mas lá estava eu na minha mesa cheia de e–mail

para ler, o Zé botando pressão e aquele sonho maldito que

não saia da minha mente. Foi então que aconteceu outra

coisa inesperada:

A coisa foi mais rápida do que imaginava minha

mente criativa. Dez horas em ponto tocou o telefone da

minha mesa e a recepcionista disse da presença do

consultor.

– Senhor Fabiano da AA B&C Consultoria.

– Pode liberá-lo para subir. Estou no bloco B

primeiro andar.

Arrumei os papéis, coloquei tudo em uma pasta e

avisei o Thiago que iria receber o novo consultor. Tenho

certeza que ele não ouviu. Então repeti para o Ricardo que

logo se empertigou todo para ir comigo. Se fecha mala

velha!

– Eu vou sozinha Ricardo. Termina seu trabalho, faz

favor? – disse sem olhar pra ele.

Fui para a porta onde o receberia no elevador. Do

hall do elevador era possível ver as pessoas entrando da

recepção andando. Parei no vidro e fiquei olhando para o

pátio central do prédio vendo quem seria o consultor que

apareceria. E lá vinha ele. Um homem de terno preto com

uma gravata azul linda e uma camisa branca que parecia

brilhar. Sapato brilhante e bem lustrado. Carregava uma

mochila que lhe dava um ar informal, mesmo todo formal.

Ele era loiro e tinha um topete alto bem construído mesmo

sem gel. Seu andar era meio estranho e me lembrava de

alguém. De repente ele parou e apoiou a mochila na

LADO A LADO B

42

cadeira e mexeu em alguma coisa. Ajeitou-se novamente e

começou a caminhar. Deu um leve sorriso e ajeitou o

cabelo de uma maneira lembrando Fabiano. Sim, o

Fabiano do meu sonho que me levou para o fundo da

escola e me deu uns amassos. Aproximei mais a cara do

vidro e senti um frio correr minha espinha. Meus braços se

arrepiaram e percebi a volta dos mortos do meu passado.

O consultor que estava vindo em direção ao elevador era

sim Fabiano.

Ele sumiu da minha vista e encostei de costas na

parede com o coração disparado. Alguns segundos depois

ouvi um sinal como uma campainha. A porta do elevador

abriu e ninguém menos que Fabiano, homem feito, lindo

como sempre, saiu de lá meio que perdido e procurando

uma referencia. Parou e olhou para mim em busca de

ajuda. Recompus-me logo e perguntei se ele era o

consultor.

– Sim, Fabiano Almeida – para meu desespero

estendeu a mão para mim e abriu um sorriso de creme

dental. Apertei a mão dele e percebi que ele não me

reconheceu. Era uma cabeça oca mesmo. Como seria o

trabalho dele então?

– Maria Laura. Prazer – dei a dica falando meu

nome bem alto. A besta quadrada apertou minha mão, mas

não falou nada. Tratou-me como se não me conhecesse.

– Venha comigo – disse abrindo caminho e abrindo

a porta.

Mostrei a copa onde tinha café e água. Sentamos e

ficamos quase duas horas falando sobre o projeto.

Almoçamos, voltamos e entramos em uma reunião de

mais duas horas.

Heribert Bastos

43

Quando acabou a reunião eram três e meia da tarde e

paramos no café para dar um tempo. Até ali Fabiano nem

desconfiava quem eu era. Foi quando Ricardo entrou na

copa me chamando de mala! Eu odiava quando alguém

fazia isso: abreviar meu nome nas iniciais Maria Laura. Se

tivesse super poderes aquele homem estava, no mínimo,

gritando muito de dor. Mas muita dor. Algo como um jato

de carbox no saco dele. Fiz o pior olhar que alguém pode

fazer para outra. Mas se não bastasse quando olhei para o

lado lá estava o idiota do Fabiano tentando disfarçar a

risada. Quando ele percebeu tentou justificar:

– Desculpe! É que quando eu era mais novo tinha

uma amiga que também se chamava Maria Laura e odiava

quando chamávamos ela de m... – de repente ele foi

parando de falar e olhando para minha cara como se

estivesse vendo fantasma. O sorriso dele foi

desaparecendo junto com a cor das bochechas. De espanto

a cara dele foi se transformando em nervoso e atenção.

Franziu a testa e apertou o olho mirando minha cara e foi

se aproximando. Chegou bem perto e terminou a frase

maldita – Mala? É você Maria Laura? A mesma Maria

Laura do colégio? A Mala?

– Só não vou dizer que mala é a senhora sua mãe

porque a Dona Zaira não tem culpa te ter colocado um

filho tão tapado assim no mundo! – respondi dando risada

de ver a cara que ele fazia. Ricardo ficou parado com cara

de interessado na fofoca. Olhei para ele e mandei-o logo

seguir carreira – O que você quer Ricardo? Só me chamar

de mala mesmo ou é alguma coisa importante? Se não for

pode pegar seu café e voltar para sua mesa porque tem

muito trabalho para você fazer!

LADO A LADO B

44

Ele fez um muxoxo com a boca, deu risada e saiu

tomando o café. Só a deixa do Fabiano já daria assunto

suficiente para ele se divertir fazendo comentários sobre

mim.

Quando olhei de novo para Fabiano ele estava ainda

com cara de besta.

– Você vai ficar me olhando com essa cara de besta

o resto da tarde?

Ele acordou e pediu um mundo de desculpas. Deu-

me um abração e novamente voltou a sorrir.

– Você está ótima! Irreconhecível! Acho que é o

cabelo... sei lá o que é, mas está muito diferente – disse ele

empolgado com a descoberta.

– Pois é... você também está diferente, mas ainda

assim eu te reconheci!

Aí ele pediu mais um monte de desculpas e eu o

deixei sentindo um monte de culpa por isso. Daí para

frente o trabalho ficou para décimo plano. Falamos de

muitas coisas, até do nosso antigo namorico do colégio.

Acho que ficamos três horas só falando do passado, que

na noite passada era tão presente para mim. Aquilo ficou

na minha cabeça durante aquele dia inteiro.

Depois de muito papo ele foi embora. Voltei para

minha mesa e segundos depois começou a chover um

monte de mulher perguntando quem era o deus grego!

– Você o conhece?

– De onde?

– Ele foi seu namorado?

– Ele vem de novo?

– Ele é casado?

– Me apresenta, amiga?

Heribert Bastos

45

Aí já era demais! Bando de desocupadas

empoleiradas na minha mesa pedindo para eu dar o MEU

deus grego assim de bandeja? E ainda me chamando de

"amiga"? Puxei uma régua da gaveta e saí espantando a

peruada! Elas riam e diziam que eu estava com ciúmes.

–Deixa seu marido saber! – disse uma das abusadas.

– Isso é problema meu. Volta para sua mesa!– disse

dando uma reguada na bunda da falante que saiu rindo da

minha cara.

Já passavam das sete da noite e eu ainda estava

trabalhando. Aquele peso no ombro, os olhos pesados. Por

que será? Talvez por que minha noite havia sido um tanto

quanto atribulada? Provavelmente sim. Mesmo tendo

passado o dia inteiro parecia que ainda podia sentir o

cheiro da sacristia e das velas na igreja. Ou mesmo sentir a

dor na cabeça por ter caído no chão. Será que eu havia

voltado no tempo? Ou era tudo um sonho muito estranho?

Precisava sair do escritório urgente, pois não dava

para continuar ali. Se o dono do circo aparecesse só sairia

meia noite e de longe ouvia a voz dele conversando no

corredor.

Sem enrolar peguei minha bolsa, minha chave do

carro e saí voando da minha mesa. Deixei o monitor

ligado para pensarem que eu voltaria e sumi. Tenho mais

que cuidar da minha saúde e da minha linda vida. Fui para

academia.

No caminho liguei para o Vinícius que não tinha

chegado em casa ainda.

– Melhorou? – perguntou ele antes de desligar. Sua

voz tão desanimada que dava até nojo.

– Acho que sim – respondi no mesmo tom.

LADO A LADO B

46

– Amanhã vou acordar normalmente ou você vai

berrar para me assustar de novo?

Ele parece que não me conhece há tanto tempo.

– Quem berra é bode, igual ao bode do seu pai.

– Grossa!

– Só respondo a altura. Beijo.

Eu não sei bem dizer o que se passa na cabeça

desses homens. Acham que casam e podem falar qualquer

coisa. Quando namora é um tal de “amorzinho”, “bem”,

“o tom da sua voz é lindo”, “o cheiro da sua boca me

deixa louco”. Depois de um tempo de namoro a coisa

desanda e depois de quatro anos de casamento seus gritos

viram berros! Não vou levar desaforo comigo. Não sou

baú para guardar comentários infelizes. Passei o dia inteiro

do lado da beldade do Fabiano. Bem possível que

sonhasse com ele. Tomara!

Que coxas...

Mas é malhando que tiro do meu corpo todo excesso

de energia e de problemas. Corri dez quilômetros e saí

pingando feito uma esponja molhada.

Já passava das nove horas e eu tomava um banho

delicioso. Só então percebi que minha formosura inteira

estava sendo avaliada pelo mercado das sapatas da

academia! Vê se pode... três mulheres (bonitas não vou

negar) reparando nos meus peitos. E não era inveja

feminina não... era aquele olhar de touro com fome.

– Perderam alguma coisa na minha bunda? – Já fui

logo perguntando, pois não quero deixar ninguém com

dúvida.

– Estou querendo achar – disse a morena de cabelo

liso e magra.

Heribert Bastos

47

– Amor, fechada para o pau do meu marido! – disse

rindo, mas nervosa.

Elas riram e dispersaram, mas antes de ir a morena

provocou:

– Quando abrir de novo me procura tá? – e passou

por mim rindo.

Ai que abusada! Quase joguei o sabonete na boca

daquela infeliz. E a diaba era linda, não devia faltar

homem naquela praça querendo um pedaço dela. Mas

quem tem muito, quer o diferente. Era hora de mudar de

academia.

Fui para casa rapidinho. Chega de aventura na rua

para um dia só. Isso era o que eu imaginava.

Para o Vinícius ser perfeito ele precisava só mudar

duas coisas (e mesmo assim eu sei que ia querer mais):

cuidar um pouco (só um pouco) da casa e parar de ver

esportes na TV. O principal é sentar aquela bunda gorda

na frente da TV e ficar vendo desde futebol de botão até a

partida do Juventus contra o Arapiraca!

Dito e feito cheguei em casa lá estava ele comendo

amendoim e vendo Sport TV.

– Jantou? – perguntei na esperança de aquele ser um

dia diferente.

– Não, estou esperando você?

Paciência é uma virtude para poucos. Detesto

pertencer à maioria, mas infelizmente essa é a vida. Fiz

uma salada com atum e o gostosão não gostou!

– Por que você não prepara o que você quer jantar?

– arremessei.

– Porque você sabe cozinhar e eu não! – ele falou

ainda comendo a minha deliciosa saladinha com atum – o

problema é que agora você está preguiçosa. Chega tarde

LADO A LADO B

48

em casa e só sabe fazer salada de atum ou aquele frango

grelhado seco. Eu não estou de dieta, sabia?

– Você não aprendeu a andar? Então aprende

também a cozinhar. Ou depois de velho não sabe mais

aprender, só sabe sentar e ver futebol? E outra... quando te

conheci sua barriga era metade dessa, então é melhor você

pensar um pouco em fazer uma dieta sim.

Os olhos dele soltaram fogo para cima de mim. Mas

não tenho medo de fogo, muito menos tinha medo dele.

Logo que acabou de jantar mandei ir passear com o

Chewe. Ah, Chewe é meu cachorro, um vira–lata peludo

marrom com o peito branco, muito bonitinho, que peguei

em uma adoção no centro de zoonoses.

– Pô, trabalhei o dia inteiro! Você não pode dar uma

voltinha só com ele?

Aí eu cansei de ser boazinha. O sangue da família

ferveu e despejei várias verdades sobre aquela bunda que

só cresce na frente da TV. E ele ficou magoadinho.

Quando voltou não falou mais comigo. Tomou banho,

pegou suas coisas no quarto e foi dormir na sala.

– Você vai ficar aí? – perguntei da porta do quarto.

Ele me ignorou.

Minha cama sem ele ficou até maior! Fiz um chá

especial, me espalhei no quarto, rezei e peguei no sono...

Bem quase isso. Sabe aquela sensação gostosa quando

estamos pegando no sono e de repente nossa perna pula

por impulso e despertamos bem leve. Isso aconteceu

comigo. Mas eu continuei de olhos fechados.

Pois de repente ouvi uma coisa estranha que parecia

uma porta de bar se abrindo. Quando abri os olhos vi um

urso de pelúcia olhando para minha cara. Sentei

Heribert Bastos

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rapidamente e vi que estava de volta ao meu quarto de

adolescente. Chorei de novo!