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GILLES DELEUZE
NIETZSCHE E A FILOSOFIA
traduçãoGuilherme Ivo
revisão técnicaLuiz B. L. Orlandi
2017
[Gilles Deleuze. Nietzsche et la philosophie. 6ª ed. Paris: Presses Universitaires de France, 1983. (1ª ed. 1962.)]
Sobre esta tradução
A presente é a terceira tradução de Nietzsche e a filosofia para o português,
feita a partir da 6ª edição dessa obra (Paris: P.U.F., 1983), cuja 1ª edição foi publicada
em 1962. As duas traduções anteriores, de Ruth Joffily Dias e Edmundo Fernandes
Dias (RJ: Rio, 2016), e de António Magalhães (Porto: Rés, 1987), foram de grande
ajuda ao longo deste trabalho, e além delas pudemos consultar também outras
traduções, reconhecidas aqui: italiana de Salvatore Tassinari (Florença: Colportage,
1978); americana de Hugh Tomlinson (Nova York: Columbia U.P., 1983); espanhola
de Carmen Artal (Barcelona: Anagrama, 1998, 5ª ed.); romena de Bogdan Ghiu
(Bucareste: Fundația Culturală Ideea Europeană, 2005).
Abrimos nossa edição com o prefácio que Deleuze escreveu para a tradução
americana deste livro, vinte-e-um anos após a primeira edição francesa. E, ao final,
adicionamos uma bibliografia com as obras citadas no livro; uma lista das traduções
francesas de Nietzsche disponíveis a Deleuze até 1962; e um índice com os nomes
próprios citados na obra.
As notas de rodapé com algarismos árabes são de Deleuze. Já as notas de
tradução vêm chamadas pela sigla nt, e algumas entre elas aparecerão dentro de notas
do autor, mas entre colchetes.
Incluímos a paginação da edição francesa, para possíveis consultas e confronto
de citações: onde houver no texto um traço vertical como este | , à margem na mesma
linha estará o número da página correspondente.
Cada capítulo foi dividido por Deleuze em sub-capítulos, individualmente
intitulados, e cada sub-capítulo também tem suas divisões, individualmente
intituladas. O título dessas divisões em cada sub-capítulo não aparece ao longo do
texto na edição francesa, mas apenas no sumário. Em nossa edição, acrescentamos no
texto esses títulos.
Guilherme Ivo, fevereiro 2017.
SUMÁRIO
“Prefácio à edição americana de Nietzsche e a filosofia”
(1983).........................................
Abreviações das obras de Nietzsche.........................
NIETZSCHE E A FILOSOFIA
Quadro analítico
CAPÍTULO I. – O trágico.............................................................
1) O conceito de genealogia....................................................
Valor e avaliação. – Crítica e criação. – Sentido da palavra
genealogia.
2) O sentido........................................................................
Sentido e força. – O pluralismo. – Sentido e interpretação. – “Só
os graus superiores importam.”
3) Filosofia da vontade...............................................................
Entrelace da força com a força: a vontade. – Origem e hierarquia.
4) Contra a dialética..................................................................
Diferença e contradição. – Influência do escravo sobre a dialética.
5) O problema da tragédia............................................................
Concepção dialética do trágico e “Origem da Tragédia”. – As três
teses da origem da tragédia.
6) A evolução de Nietzsche.....................................................
Novos elementos na origem da tragédia. – A afirmação. –
Sócrates. – O cristianismo.
7) Dioniso e Cristo.............................................................
Pela vida ou contra ela. – Caráter cristão do pensamento dialético.
– Oposição do pensamento dialético e do pensamento
dionisíaco.
8) A essência do trágico.....................................................
O trágico e a alegria. – Do drama ao herói. – Sentido da existência
e justiça.
9) O problema da existência.................................................
A existência criminosa e os Gregos. – Anaximandro. – A
existência culposa e o cristianismo. – Valor da
irresponsabilidade.
10) Existência e inocência.........................................................
Inocência e pluralismo. – Heráclito. – O devir e o ser do devir, o
múltiplo e o uno do múltiplo. – O eterno retorno ou o jogo.
11) O lance da dados.......................................................
Os dois tempos. – Acaso e necessidade: a dupla afirmação. –
Oposição do lance de dados e do cálculo das chances.
12) Conseqüências para o eterno retorno..........................................
Cozimento do acaso. – Caos e movimento circular.
13) Simbolismo de Nietzsche..................................................
Terra, fogo, estrela. – Importância do aforisma e do poema.
14) Nietzsche e Mallarmé.............................................................
As semelhanças. – A oposição: abolição ou afirmação do acaso?
15) O pensamento trágico........................................................
O trágico contra o niilismo. – Afirmação, alegria e criação.
16) A pedra de toque....................................................................
Diferença entre Nietzsche e outros filósofos trágicos. – A aposta
de Pascal. – Importância do problema do niilismo e do
ressentimento.
CAPÍTULO II. – Ativo e reativo...................................................
1) O corpo..........................................................
Que pode um um corpo? – Superioridade do corpo sobre a
consciência. – Forças ativas e reativas, constitutivas do corpo.
2) A distinção das forças...............................
A reação. – As concepções reativas do organismo. – Força ativa
plástica.
3) Quantidade e qualidade.....................................
Quantidade e qualidade da força. – Qualidade e diferença de
quantidade.
4) Nietzsche e a ciência............................................
Concepção nietzscheana da qualidade. – O eterno retorno e a
ciência. – O eterno retorno e a diferença.
5) Primeiro aspecto do eterno retorno: como doutrina cosmológica e
física.................
Crítica do estado terminal. – O devir. – Síntese do devir e eterno
retorno.
6) O que é a vontade de potência?............................................
A vontade de potência como elemento diferencial (genealógico) da
força. – Vontade de potência e forças. –Eterno retorno e
síntese. – Posição de Nietzsche relativamente a Kant.
7) A terminologia de Nietzsche..............................
Ação e reação, afirmação e negação.
8) Origem e imagem revertida................................
Combinação da reação e da negação. – Como sai disso uma
imagem revertida da diferença. – Como uma força ativa
devém reativa.
9) Problema da medida das forças...............................
“Sempre se defendeu os fortes contra os fracos.” – Os
contrassensos de Sócrates.
10) A hierarquia.....................
O livre pensador e o espírito livre. – A hierarquia. – Os diferentes
sentidos das palavras ativo e reativo.
11) Vontade de potência e sentimento de potência.........................
Vontade de potência e sensibilidade (pathos). – O devir das forças.
12) O devir-reativo das forças........................
Devir-reativo. O desgosto do homem. – O eterno retorno como
pensamento desolador.
13) Ambivalência do sentido e dos valores.........................
Ambivalência da reação. – Diversidade das forças reativas. –
Reação e negação.
14) Segundo aspecto do eterno retorno: como pensamento ético e
seletivo......................
O eterno retorno como pensamento consolador. – Primeira
seleção: eliminação dos semi- quereres. –Segunda seleção:
acabamento do niilismo, transmutação do negativo. – As forças
reativas não revêm.
15) O problema do Eterno Retorno..........................
Devir-ativo. – O todo e o momento.
CAPÍTULO III. – A crítica...................................................
1) Transformação das ciências do homem...................................
Modelo reativo das ciências. – Por uma ciência ativa: a lingüística.
– O filósofo médico, artista e legislador.
2) A fórmula da questão em Nietzsche.........
A questão “O que é?” e a metafísica. – A questão “Quem?” e os
sofistas. – Dioniso e a questão “Quem?”
3) O método de Nietzsche........................................
Quem?... = O que ele quer?... – Método de dramatização:
diferencial, tipológico, genealógico.
4) Contra seus predecessores.................................
Os três contrassensos na filosofia da vontade. –Fazer da potência
um objeto de representação. – Fazê-la depender dos valores em curso. –
Fazer disso a aposta de uma luta ou de um combate.
5) Contra o pessimismo e contra Schopenhauer..............................
Como esses contrassensos conduzem o filósofo a limitar ou até
mesmo a negar a vontade. – Schopenhauer, culminação dessa
tradição.
6) Princípios para a filosofia da vontade....................................
Vontade, criação e alegria. – A potência não é o que a vontade
quer, mas aquilo que quer na vontade. – A virtude que dá. – O
elemento diferencial e crítico.
7) Plano da “Genealogia da Moral”.........................
Fazer a verdadeira crítica. – As três dissertações na genealogia da
moral: paralogismo, antinomia e ideal.
8) Nietzsche e Kant do ponto de vista dos princípios.........................
As insuficiências da crítica kantiana. – Em qual sentido ela não é
mesmo uma “crítica”.
9) Realização da crítica...........................
A crítica e a vontade de potência. – Princípio transcendental e
princípio genealógico. – O filósofo como legislador. –“O sucesso de
Kant é tão somente um sucesso de teólogo.”
10) Nietzsche e Kant do ponto de vista das
conseqüências.........................
O irracionalismo e a instância crítica.
11) O conceito de verdade.........................................
Exercício do método de dramatização. – Posição especulativa,
oposição moral, contradição ascética. – Os valores superiores à
vida.
12) Conhecimento, moral e religião.............................
Os dois movimentos. –“A mais assustadora dedução.”
13) O pensamento e a vida...........................................
A oposição do conhecimento e da vida. –A afinidade da vida e do
pensamento. –As novas possibilidades de vida.
14) A arte.......................................
A arte como excitante do querer. – A arte como alta potência do
falso.
15) Nova imagem do pensamento..................................
Os postulados na doutrina da verdade. – Sentido e valor como
elementos do pensamento. –A baixeza. – Papel da filosofia: o filósofo-
cometa. – O intempestivo. Oposição do método e da cultura. – A
cultura é grega ou alemã? – O pensamento e as três anedotas.
CAPÍTULO IV. – Do ressentimento à má
consciência...................................................
1) Reação e ressentimento.....................................
A reação como resposta. – O ressentimento como impotência para
reagir.
2) Princípio do ressentimento............................
A hipótese tópica em Freud. – A excitação e o rastro segundo
Nietzsche. – Como uma reação cessa de ser agida. – Tudo se passa
entre forças reativas.
3) Tipologia do ressentimento....................
Os dois aspectos do ressentimento: topológico e tipológico. – O
espírito de vingança. –A memórias dos rastros.
4) Caráteres do ressentimento.............................
Impotência para admirar. – A passividade. – A acusação.
5) Ele é bom? Ele é mau?
Eu sou bom, logo tu és mau. – Tu és maus, logo eu sou bom. – O
ponto de vista do escravo.
6) O paralogismo...............................
O silogismo do cordeiro. – Mecanismo da ficção no ressentimento.
7) Desenvolvimento do ressentimento: o sacerdote
judaico...................
Do aspecto topológico ao aspecto tipológico. –Papel do sacerdote.
– O sacerdote sob sua forma judaica.
8) Má consciência e interioridade...............................
Reviramento contra si. – A interiorização.
9) O problema da dor............................
Os dois aspectos da má consciência. – Sentido externo e sentido
interno da dor.
10) Desenvolvimento da má consciência: o sacerdote
cristão........................
O sacerdote sob sua forma cristã. – O pecado. – Cristianismo e
judaísmo. – Mecanismo da ficção na má consciência.
11) A cultura encarada do ponto de vista pré-
histórico..........................
A cultura como adestramento e seleção. –A atividade genérica do
homem. – A memória das palavras. – A dívida e a equação do
castigo.
12) A cultura encarada do ponto de vista pós-
histórico.............................
O produto da cultura. – O indivíduo soberano.
13) A cultura encarada do ponto de vista histórico...........................
A desviação da cultura. – O cão de fogo. – Como a ficção da má
consciência se enxerta necessariamente sobre a cultura.
14) Má consciência, responsabilidade, culpabilidade...........................
As duas formas da responsabilidade. – Associação das forças
reativas.
15) O ideal ascético e a essência da religião.....................................
Pluralismo e religião. – A essência ou a afinidade da religião. –A
aliança das forças reativas e da vontade de nada: niilismo e reação.
16) Triunfo das forças reativas............................
Quadro recapitulativo, ….
CAPÍTULO V. – O superhomem: contra a
dialética...................................................
1) O niilismo....................
O que significa “nihil”.
2) Análise da piedade...............................
Os três niilismos: negativo, reativo e passivo. – Deus está morto
de piedade. – O último dos homens.
3) Deus está morto....................................
A proposição dramática. – Pluralidade dos sentidos de “Deus está
morto”. – A consciência judaica, a consciência cristã (são Paulo),
a consciência européia, a consciência búdica. – Cristo e Buda.
4) Contra o hegelianismo...............................
O universal e o particular na dialetica. – Caráter abstrato das
oposições. – A questão “Quem?” contra a dialética. – Ficção,
niilismo e reação na dialética.
5) Os avatares da dialética................................
Importância de Stirner na história da dialética. –Problema da
reapropriação. – A dialética como teoria do Eu.
6) Nietzsche e a dialética...............................
Significação do superhomem e da transmutação.
7) Teoria do homem superior.........................
Os múltiplos personagens do homem superior. – Ambivalência do
homem superior.
8) O homem é essencialmente reativo?.........................................
O homem é o devir-reativo. –“Sois naturezas falhas.” –A ação e a
afirmação. –Simbolismo de Nietzsche em entrelace com o homem
superior. – Os dois cães de fogo.
9) Niilismo e transmutação: o ponto focal.......................................
Niilismo acabado, vencido por si mesmo. – A vontade de potência:
ratio cognoscendi e ratio essendi. – O homem que quer perecer ou
a negação ativa. – A conversão do negativo, o ponto de conversão.
10) A afirmação e a negação..........................
O sim do jumento. – O macaco de Zaratustra, o demônio. – A
negatividade do positivo.
11) O sentido da afirmação.........................
O jumento e o niilismo. – Contra a pretensa positividade do real. –
Os “homens desse tempo”. – Afirmar não é carregar nem assumir. –
Contra a teoria do ser.
12) A dupla afirmação: Ariadne.........................................
A afirmação da afirmação (dupla afirmação). – O mistério de
Ariadne, o labirinto. – A afirmação afirmada (segunda potência). –
Diferença, afirmação e eterno retorno. – O sentido de Dioniso.
13) Dioniso e Zaratustra..............................
O ser como seleção. – Zaratustra e a transmutação: o leão. – Da
transmutação ao eterno retorno, e inversamente. – O riso, o jogo, a
dança.
CONCLUSÃO................................................
Bibliografia........................................
Traduções francesas de Nietzsche.....................................
Índice de nomes próprios..............................
PREFÁCIO À EDIÇÃO AMERICANADE NIETZSCHE E A FILOSOFIA*
A Hugh Tomlinson.
Para um livro francês, ser traduzido ao inglês é sempre uma aventura invejável.
Para o autor, essa deve ser a ocasião, após tantos anos, de sonhar com a maneira pela
qual ele gostaria de ser recebido, da parte de um leitor eventual de quem ele se sente,
a uma só vez, muito próximo e separado demais.
Duas ambiguidades pesaram sobre o destino póstumo de Nietzsche: seria a
prefiguração de um pensamento já fascista? E esse pensamento mesmo, seria ele
filosofia, não seria antes uma poesia violenta, violenta demais, aforismas caprichosos
demais, fragmentos demasiadamente patológicos? Talvez esses mal-entendidos
tenham culminado na Inglaterra. Tomlinson sugere que os principais temas
enfrentados por Nietzsche, combatidos pela filosofia de Nietzsche, o racionalismo à
francesa, a dialética alemã, nunca tiveram importância essencial no pensamento
inglês. Os ingleses dispunham teoricamente de um empirismo e de um pragmatismo
que lhes tornavam inúteis a passagem por Nietzsche, a passagem pelo empirismo e
pelo pragmatismo um tanto especiais de Nietzsche, voltados contra o bom senso. A
influência de Nietzsche na Inglaterra, então, podia se exercer em romancistas, poetas,
dramaturgos: era uma influência prática, afetiva, mais que filosófica, mais lírica que
teórica...
Contudo, Nietzsche é um dos maiores filósofos do século XIX. E afinal ele muda
a teoria e a prática da filosofia. Ele compara o pensador a uma flecha atirada pela
Natureza e que um outro pensador apanha, lá onde ela caiu, para enviá-la alhures.
Segundo ele, o filósofo não é nem eterno nem histórico, mas “intempestivo”, sempre
*
Publicado pela primeira vez em inglês, in Gilles Deleuze, Nietzsche and philosophy, tradução inglesa de Hugh Tomlinson, Nova York, Columbia University Press, 1983, pp. ix-xiv. Traduzido, aqui, a partir do texto em francês, in Gilles Deleuze, Deux régimes de fous. Ed. David Lapoujade, Paris, Minuit, 2002, pp. 187-193.
intempestivo. Nietzsche não teve tantos predecessores. Tirando os bem antigos pré-
socráticos, ele reconhece apenas um predecessor para si, Spinoza.
** *
A filosofia de Nietzsche se organiza a partir de dois grandes eixos. Um concerne
à força, às forças, e forma uma semiologia geral. É que os fenômenos, as coisas, os
organismos, as sociedades, as consciências e os espíritos são signos, ou melhor,
sintomas, e remetem como tais a estados de forças. Donde a concepção do filósofo
como “fisiologista e médico”. Dada uma coisa, que estado de forças exteriores e
interiores ela supõe? Coube a Nietzsche ter constituído toda uma tipologia que
distingue forças ativas, forças agidas e forças reativas, e analisa suas combinações
variáveis. É especialmente o assinalamento de um tipo de forças propriamente
reativas que constitui um dos pontos mais originais do pensamento nietzscheano. Este
livro tenta definir e analisar as diferentes forças. Uma semiologia geral como essa
compreende a linguística, ou antes a filologia como um dos seus setores. Pois uma
proposição é ela mesma um conjunto de sintomas que exprime uma maneira de ser ou
um modo de existência daquele que fala, ou seja, o estado de forças que alguém
sustenta ou se esforça para sustentar consigo próprio e com os outros (a este respeito,
papel das conjunções). Uma proposição remete sempre, neste sentido, a um modo de
existência, a um “tipo”. Dada uma proposição, qual é o modo de existência daquele
que a pronuncia, qual modo de existência é preciso ter para poder pronunciá-la? O
modo de existência é o estado de forças enquanto ele forma um tipo exprimível por
signos ou sintomas.
Os dois grandes conceitos humanos reativos, tais como Nietzsche os
“diagnostica”, são os de ressentimento e de má consciência. Ressentimento e má
consciência exprimem o triunfo das forças reativas no homem, e até mesmo a
constituição do homem por forças reativas: o homem-escravo. Isso diz a que ponto a
noção nietzscheana de escravo não designa necessariamente alguém dominado, por
destino ou condição social, mas qualifica tanto os dominantes quanto os dominados,
desde que o regime de dominação passe por forças reativas e não ativas. Os regimes
totalitários, neste sentido, são regimes de escravos, não apenas pelo povo que
sujeitam, mas sobretudo pelo tipo de “senhores” que erigem. Uma história universal
do ressentimento e da má consciência, a partir do sacerdote judeu e do sacerdote
cristão até o sacerdote laico atual, é essencial no perspectivismo histórico de
Nietzsche (os textos supostamente antissemitas de Nietzsche são, na realidade, textos
sobre o tipo original do sacerdote).
O segundo eixo concerne à potência e forma uma ética e uma ontologia. É com a
potência que culminam os mal-entendidos sobre Nietzsche. Cada vez que se
interpreta a vontade de Potência no sentido de “querer ou buscar a Potência”, incorre-
se em trivialidades, que nada têm a ver com o pensamento de Nietzsche. Se é verdade
que qualquer coisa remete a um estado de forças, a Potência designa o elemento ou,
antes, o entrelace diferencial das forças contendoras. Esse entrelace se exprime em
qualidades dinâmicas do tipo “afirmação”, “negação”... Logo, a potência não é aquilo
que a vontade quer, mas ao contrário aquele que quer na vontade. E “querer ou buscar
a potência” é tão somente o mais baixo grau da vontade de potência, sua forma
negativa ou o aspecto que ela ganha quando as forças reativas lhe prevalecem no
estado de coisas. É um dos caráteres mais originais da filosofia de Nietzsche, ter
transformado a questão “o que é...?” em “quem é...?”. Por exemplo, dada uma
proposição, quem é capaz de enunciá-la? Antes é preciso se desfazer de qualquer
referência “personalista”. “Aquele que...” não remete a um indivíduo, a uma pessoa,
mas sim a um acontecimento, ou seja, às forças em entrelace numa proposição ou
num fenômeno, e ao entrelace genético que determina essas forças (potência).
“Aquele que” é sempre Dioniso, uma máscara ou um aspecto de Dioniso, um
relâmpago.
O mal-entendido sobre o Eterno Retorno não é menor do que aquele que pesa
sobre a vontade de Potência. Pois, cada vez que se compreende o Eterno Retorno
como retorno de uma combinação (depois que todas as outras combinações tenham
sido produzidas), cada vez que se interpreta o Eterno Retorno como o retorno do
Idêntico ou do Mesmo, hipóteses pueris continuam substituindo o pensamento de
Nietzsche. Ninguém levou a crítica de toda identidade tão longe quanto Nietzsche.
Duas vezes, no Zaratustra, Nietzsche nega explicitamente que o Eterno Retorno seja
um círculo que faça revir o Mesmo. O Eterno Retorno é estritamente o contrário, pois
inseparável de uma seleção, de uma dupla seleção. Por um lado, seleção de querer ou
de pensamento, que constitui a ética de Nietzsche: querer apenas aquilo cujo eterno
retorno se quer ao mesmo tempo (eliminar todos os semi-quereres, tudo aquilo que só
se pode querer pensando “uma vez, nada além de uma vez...”). Por outro, seleção do
Ser, que constitui a ontologia de Nietzsche: só revém, só está apto a revir, aquilo que
devém, no sentido mais pleno da palavra. Só revêm a ação e a afirmação: o Ser
pertence ao devir e só pertence a ele. O que se opõe ao devir, o Mesmo ou o Idêntico,
isto não é, com todo o rigor. O negativo como o mais baixo grau da potência, o
reativo como o mais baixo grau da forma, isso não revém, pois é o oposto do devir,
que constitui o único Ser. Vê-se, então, que o Eterno Retorno está ligado, não a uma
repetição do Mesmo, mas ao contrário a uma transmutação. Ele é o instante ou a
eternidade do devir, que elimina tudo aquilo que se lhe resiste. Ele resgata, mais
ainda, ele cria o puro ativo e a afirmação pura. E o superhomem não tem outro
conteúdo, é o produto comum da vontade de Potência e do Eterno Retorno, Dioniso e
Ariadne. Eis por que Nietzsche diz que a vontade de Potência não consiste em querer,
em cobiçar ou buscar, mas apenas em “dar”, em “criar”. E este livro se propõe, antes
de tudo, a analisar aquilo que Nietzsche chama de Devir.
** *
Porém, ainda mais do que sobre análises conceituais, a questão-Nietzsche
repousa primeiramente sobre avaliações práticas que solicitam todo um clima, toda
sorte de disposições afetivas do leitor. Nietzsche sempre manteve o entrelace mais
profundo entre o conceito e o afeto, à maneira spinozista. As análises conceituais são
indispensáveis, e Nietzsche as conduz mais longe do que qualquer outro. Mas elas
serão ineficazes enquanto o leitor as apreender num clima que não é o de Nietzsche.
Enquanto o leitor se obstinar 1) a ver no “escravo” nietzscheano alguém que se
encontra dominado por um senhor e que merece sê-lo; 2) a compreender a vontade de
potência como uma vontade que quer e busca a potência; 3) a conceber o Eterno
Retorno como o fastidioso retorno do mesmo; 4) a imaginar o super-homem como
uma raça dada de senhores — enquanto isso acontecer, não haverá nenhum entrelace
positivo entre Nietzsche e seu leitor. Nietzsche aparecerá como um niilista, ou pior,
um fascista, no melhor dos casos um profeta obscuro e aterrorizante. Nietszche sabia,
ele sabia do destino que o aguardava, ele que emparelhou Zaratustra com um
“macaco” ou um “bufão”, anunciando que confundiriam Zaratustra e seu macaco (um
profeta, um fascista ou um louco...). Eis por que um livro sobre Nietzsche deve se
esforçar tanto em retificar a incompreensão prática ou afetiva quanto em restaurar a
análise conceitual.
E é verdade que Nietzsche diagnosticou o niilismo como o movimento que
arrasta a história. Ninguém melhor analisou o conceito de niilismo, ele inventou este
conceito. Mas definiu-o, precisamente, pelo triunfo das forças reativas ou pelo
negativo na vontade de potência. Não deixou de opor-lhe a transmutação, ou seja, o
devir que, de uma só vez, é a única ação da força e a única afirmação da potência, o
elemento transhistórico do homem, o Overman (e não o superman).nt O overman é o
ponto focal onde o reativo é vencido (ressentimento e má consciência) e onde o
negativo cede lugar à afirmação. Seja qual for o instante em que é apreendido,
Nietzsche continua inseparável de forças do porvir, de forças ainda por vir, que ele
invoca com seus anelos, que o seu pensamento desenha, que a sua arte prefigura. Ele
não apenas diagnostica, como dizia Kafka, as forças diabólicas que já estão batendo à
porta, mas as conjura ao levantar a última Potência capaz de se engajar na luta com
n [Em alemão: Übermensch. As traduções deste conceito para o inglês têm certa semelhança com as traduções feitas no Brasil. Considerando apenas o livro Assim Falou Zaratustra, a primeira tradução para o inglês (1896) é de Alexander Tille, que traduz Übermensch por “Beyond-Man”; e no tomo “Nietzsche” da coleção Os Pensadores, Rubens Rodrigues Torres Filho traduz o termo por “Além-do-homem”. Por outro lado, Thomas Common, em 1909, traduz Übermensch por “Superman”; e Paulo César de Souza verte-o por “Super-homem”, comentando esta opção numa interessante nota (Assim Falou Zaratustra, São Paulo, Cia. das Letras, 2011, pp. 315-6). Foi o tradutor germano-americano Walter Kaufmann quem criticou a tradução para “Superman”, por conta dela poder criar confusões conceituais preocupantes, já que o adjetivo latino super foi imbuído, em seu uso na língua inglesa, de elementos mágicos e divinos, o superman seria um homem com superpoderes, oriundo de outro planeta, geralmente. Kaufmann defendia, portanto, a tradução “Overman”, preferida aqui por Deleuze.]
elas, contra elas, e de desemboscá-las em nós assim como fora de nós. Um
“aforisma” à maneira de Nietzsche não é um simples fragmento, um pedaço de
pensamento: é uma proposição que só ganha um sentido relativamente ao estado de
forças que ele exprime, e que muda de sentido, que deve mudar de sentido, a partir
das novas forças que ele é “capaz” (potência) de solicitar.
E isto sem dúvida é o mais importante na filosofia de Nietzsche: ter
transformado radicalmente a imagem que fazíamos do pensamento. Nietzsche arranca
o pensamento do elemento do verdadeiro e do falso. Faz dele uma interpretação e
uma avaliação, interpretação de forças, avaliação de potência. — É um pensamento-
movimento. Não apenas no sentido em que Nietzsche quer reconciliar o pensamento
e o movimento concreto, mas no sentido em que o próprio pensamento deve produzir
movimentos, velocidades e lentidões extraordinárias (donde, mais uma vez, o papel
do aforisma, com suas velocidades variadas e seu movimento de “projétil”). Segue-se
disso que a filosofia ganha, com as artes do movimento, teatro, dança, música, um
novo entrelace. Nietzsche jamais se contentará com o discurso ou a dissertação
(logos) como expressão do pensamento filosófico, embora tenha escrito as mais belas
dissertações, especialmente a Genealogia da Moral, relativamente à qual toda
etnologia moderna tem uma “dívida” inesgotável. Mas um livro como Zaratustra só
pode ser lido como uma ópera moderna, visto e entendido assim. Não que Nietzsche
faça uma ópera filosófica ou um teatro alegórico, mas ele cria um teatro ou uma
ópera que exprimem diretamente o pensamento como experiência e movimento. E
quando Nietzsche diz que o Superhomem se assemelha mais a [César] Bórgia do que
a Parsifal, ou que ele participa, de uma só vez, da ordem dos Jesuítas e do corpo de
oficiais prussianos, engana-se quem vê nisso declarações pré-fascistas, ao passo que
são observações de cenógrafo, indicando como o Superhomem deve ser “atuado” (um
pouco como Kierkegaard dizendo que o cavaleiro da fé se assemelha a um burguês
endomingado). — Que pensar seja criar, esta é a maior lição de Nietzsche. Pensar,
emitir um lance de dados...: era já o sentido do Eterno Retorno.
ABREVIAÇÕES DAS OBRAS DE NIETZSCHE(E DATA DE PUBLICAÇÃO)
A Aurora (1886)
AC O Anticristo (1895)
BM Além de Bem e Mal (1886)
Co. In. Considerações Intempestivas (1873-6)*
Cr. Id. O Crepúsculo dos Ídolos (1889)
DD Ditirambos de Dioniso (1888)
EH Ecce Homo (1908)
FG A Filosofia na Época Trágica dos Gregos
GC Gaia Ciência (1887)
GM Genealogia da Moral (1887)
HH Humano, Demasiado Humano (1886)
NW Nietzsche contra Wagner (1889)
OT A Origem da Tragédia (1872)†
VP A Vontade de Potência (1901)
VS O Viajante e sua Sombra (1880)‡
Z Assim Falou Zaratustra (1883-5)
*
Em alemão, o título desta obra é Unzeitgemäße Betrachtungen, traduzida em francês por Considérations inactuelles (ou intempestives) e, em português, por Considerações intempestivas (ou extemporâneas).† Apesar do título em alemão desta obra de Nietzsche, Die Geburt der Tragödie, ser melhor
traduzido como O Nascimento da Tragédia, manteremos a tradução que Deleuze privilegia, A Origem da Tragédia, lembrando que até 1962 ele tinha à sua disposição duas traduções, diferentes também no título, e que ele se utilizou de ambas: L'Origine de la tragédie, de Jean Marnold e Jacques Morland (Paris: Mercure de France, 1901), e La naissance de la tragédie, de Geneviève Bianquis (Paris: Gallimard, 1940).
‡ Texto incluído no segundo volume do livro Humano, Demasiado Humano.
[1]
PRIMEIRO CAPÍTULO
O TRÁGICO
1) O CONCEITO DE GENEALOGIA
O projeto mais geral de Nietzsche consiste no seguinte: introduzir na filosofia
os conceitos de sentido e de valor. É evidente que a filosofia moderna, em grande
parte, viveu e vive ainda de Nietzsche. Mas talvez não da maneira como ele teria
almejado. Nietzsche nunca escondeu que a filosofia do sentido e dos valores devesse
ser uma crítica. Que Kant não tenha conduzido a verdadeira crítica, porque não soube
colocar seu problema em termos de valores, eis aí um dos principais móveis da obra
de Nietzsche. Ora, aconteceu que na filosofia moderna a teoria dos valores engendrou
um novo conformismo e novas submissões. Mesmo a fenomenologia, com seu
aparelho, contribuiu para colocar uma inspiração nietzscheana, amiúde presente nela,
a serviço do conformismo moderno. Mas quando se trata de Nietzsche, devemos, ao
contrário, partir do seguinte fato: a filosofia dos valores, tal como ele a instaura e a
concebe, é a verdadeira realização da crítica, a única maneira de realizar a crítica
total, isto é, de fazer filosofia a “marteladas”. A noção de valor, com efeito, implica
uma reversão crítica. Por um lado, os valores aparecem, ou se dão, como princípios:
uma avaliação supõe valores a partir dos quais ela aprecia os fenômenos. Porém, por
outro lado e mais profundamente, são os valores que supõem avaliações, “pontos de
vista de apreciação”, dos quais deriva seu próprio valor. O problema crítico é: o valor
dos valores, a avaliação da qual procede o valor deles, portanto, o problema de sua
criação. A avaliação se define como o elemento diferencial dos valores
correspondentes: elemento de uma só vez crítico e criador. As avaliações, reportadas,
ao seu elemento, não são valores, mas maneiras de ser, [2] modos de existência
daqueles que julgam e avaliam, servindo precisamente de princípios para os valores
relativamente aos quais eles julgam. Eis por que sempre temos as crenças, os
sentimentos, os pensamentos que merecemos em função de nossa maneira de ser ou
de nosso estilo de vida. Há coisas que só se pode dizer, sentir ou conceber, valores
nos quais só se pode crer sob a condição de avaliar “baixamente”, de viver e pensar
“baixamente”. Eis o essencial: o alto e o baixo, o nobre e o vil não são valores, mas
representam o elemento diferencial do qual deriva o valor dos próprios valores.
A filosofia crítica tem dois movimentos inseparáveis: entrelaçar toda coisa, e
toda origem de algum valor, a valores; mas também entrelaçar esses valores a algo
que seja como que sua origem, e que decida sobre o seu valor. Reconhece-se a dupla
luta de Nietzsche. Contra aqueles que subtraem os valores à crítica, contentando-se
em inventoriar os valores existentes ou em criticar as coisas em nome de valores
estabelecidos: os “operários da filosofia”, Kant, Schopenhauer1. Mas também contra
aqueles que criticam ou respeitam os valores, fazendo-os derivarem de simples fatos,
de pretensos fatos objetivos: os utilitaristas, os “cientistas”2. Nos dois casos, a
filosofia bóia no elemento indiferente daquilo que vale em si ou daquilo que vale para
todos. Nietzsche se levanta de uma só vez contra a elevada idéia de fundamento, que
deixa os valores indiferentes à sua própria origem, e contra a idéia de uma simples
derivação causal ou de um começo insípido, que põe uma origem indiferente aos
valores. Nietzsche forma o conceito novo de genealogia. O filósofo é um
genealogista, e não um juiz de tribunal à maneira de Kant, nem um mecânico à
maneira utilitarista. O filósofo é Hesíodo. Nietzsche substitui o princípio da
1
BM, 211.2 BM, VIª parte.
universalidade kantiana, bem como o princípio da semelhança, caro aos utilitaristas,
pelo sentimento de diferença ou de distância (elemento diferencial). “É do alto deste
sentimento de distância que se arroga o direito de criar valores ou de determiná-los:
que importa a utilidade?”3
Genealogia quer dizer, de uma só vez, valor da origem e origem dos valores.
Genealogia se opõe ao caráter absoluto dos valores bem como a seu caráter relativo
ou utilitário. Genealogia significa o elemento diferencial dos valores, do qual decorre
o próprio valor destes. [3] Genealogia quer dizer, portanto, origem ou nascimento,
mas também diferença ou distância na origem. Genealogia quer dizer nobreza e
baixeza, nobreza e vilania, nobreza e decadência na origem. O nobre e o vil, o alto e o
baixo, é este o elemento propriamente genealógico ou crítico. Mas assim
compreendida, a crítica é ao mesmo tempo o mais positivo. O elemento diferencial
não é crítica do valor dos valores sem ser, também, o elemento positivo de uma
criação. Eis por que a crítica nunca é concebida por Nietzsche como uma reação, mas
como uma ação. Nietzsche opõe a atividade da crítica à vingança, ao rancor ou ao
ressentimento. Zaratustra será seguido por seu “macaco”, por seu “palhaço”, por seu
“demônio”, de uma ponta à outra do livro; mas o macaco se distingue de Zaratustra
assim como a vingança e o ressentimento se distinguem da própria crítica. Confundir-
se com seu macaco, eis o que Zaratustra sente como uma das horríveis tentações que
lhe são armadas4. A crítica não é uma re-ação do re-sentimento, mas a expressão ativa
de um modo de existência ativo: o ataque e não a vingança, a agressividade natural de
uma maneira de ser, a maldade divina sem a qual não se conseguiria imaginar a
perfeição5. Esta maneira de ser é a do filósofo porque ele se propõe, precisamente, a
manejar o elemento diferencial como crítico e criador, portanto como um martelo.
Eles pensam “baixamente”, diz Nietzsche sobre seus adversários. Nietzsche espera
muitas coisas dessa concepção de genealogia: uma nova organização das ciências,
uma nova organização da filosofia, uma determinação dos valores do porvir.
3 GM, I, 2.4 Z, III, “De passagem”.5 EH, I, 6-7.
2) O SENTIDO
Jamais encontraremos o sentido de alguma coisa (fenômeno humano, biológico
ou até mesmo físico), se não soubermos qual é a força que se apropria da coisa, que a
explora, que dela se apodera ou nela se exprime. Um fenômeno não é uma aparência,
nem mesmo um aparecimento, mas um signo, um sintoma que encontra seu sentido
numa força atual. A filosofia inteira é uma sintomatologia e uma semiologia. As
ciências são um sistema sintomatológico e semiológico. Nieztsche substitui a
dualidade metafísica da aparência e da essência, e também a [4] relação científica do
efeito e da causa, pela correlação do fenômeno e do sentido. Toda força é
apropriação, dominação, exploração de uma quantidade de realidade. Mesmo a
percepção, em seus aspectos diversos, é a expressão de forças que se apropriam da
natureza. Isto é dizer que a própria natureza tem uma história. A história de uma
coisa, geralmente, é a sucessão das forças que dela se apoderam, e a coexistência das
forças que lutam para se apoderar dela. Um mesmo objeto, um mesmo fenômeno
muda de sentido segundo a força que se lhe apropria. A história é a variação dos
sentidos, ou seja, “a sucessão dos fenômenos de sujeição mais ou menos violentos,
mais ou menos independentes uns dos outros”6. O sentido, pois, é uma noção
complexa: há sempre uma pluralidade de sentidos, uma constelação, um complexo de
sucessões, mas também de coexistências, que faz da interpretação uma arte. “Toda
subjugação, toda dominação equivale a uma interpretação nova.”
A filosofia de Nietzsche só é compreendida quando se leva em conta seu
pluralismo essencial. E, pra falar a verdade, o pluralismo (outras vezes chamado
empirismo) e a própria filosofia são uma coisa só. O pluralismo é a maneira de pensar
propriamente filosófica, inventada pela filosofia: única garantia da liberdade no
espírito concreto, único princípio de um violento ateísmo. Os Deuses estão mortos:
mas eles morreram de rir, ouvindo um Deus dizer que era o único. “Não seria
precisamente isto a divindade, que haja deuses, que não haja um Deus?”7 E a morte
deste Deus, que se dizia único, é ela mesma plural: a morte de Deus é um 6 GM, II, 12.7 Z, III, “Dos trânsfugas”.
acontecimento cujo sentido é múltiplo. Eis por que Nietzsche não acredita nos
“grandes acontecimentos” ruidosos, mas na pluralidade silenciosa dos sentidos de
cada acontecimento8. Não existe sequer um acontecimento, um fenômeno, uma
palavra e nem mesmo um pensamento cujo sentido não seja múltiplo. Alguma coisa é
ora isto, ora aquilo, ora algo mais complicado, segundo as forças (os deuses) que dela
se apoderam. Hegel quis ridicularizar o pluralismo, identificando-o a uma
consciência ingênua que se contentaria em dizer “isto, aquilo, aqui, agora” – como
uma criança balbuciando suas mais humildes necessidades. Na idéia pluralista de que
uma coisa tem vários sentidos, na idéia de que há várias coisas, e “isto e depois
aquilo” para uma mesma coisa, vemos a mais elevada conquista da [5] filosofia, a
conquista do verdadeiro conceito, sua maturidade, e não sua renúncia nem sua
infância. Pois a avaliação disto e daquilo, a delicada pesagem das coisas e dos
sentidos de cada uma, a estimativa das forças que definem a cada instante os aspectos
de uma coisa e de seus entrelaces com as outras, – tudo isto (ou tudo aquilo) compete
à mais elevada arte da filosofia, a da interpretação. Interpretar, e mesmo avaliar, é
pesar. Aí a noção de essência não se perde, mas ganha uma nova significação; pois
nem todos os sentidos se equivalem. Uma coisa tem tantos sentidos quantas forem as
forças capazes de se apoderar dela. Mas a própria coisa não é neutra, e se acha mais
ou menos em afinidade com a força que dela se apodera atualmente. Há forças que só
podem se apoderar de alguma coisa dando-lhe um sentido restritivo e um valor
negativo. Ao contrário, chamar-se-á essência, dentre todos os sentidos de uma coisa,
aquele que lhe dá a força que apresenta mais afinidade com ela. Assim, num exemplo
que Nietzsche gosta de citar, a religião não tem um sentido único, pois ela serve
sucessivamente a forças múltiplas. Mas qual é a força em afinidade máxima com a
religião? Qual aquela de que não se sabe mais quem domina, ela mesma dominando a
religião, ou a própria religião a dominando?9 “Procurem H”.nt Tudo isto para todas as
coisas é ainda questão de pesagem, a arte delicada porém rigorosa da filosofia, a
8 Z, II, “Dos grandes acontecimentos”.9 Nietzsche pergunta: qual é a força que dá à religião a ocasião “de agir soberanamente por si
mesma”? (BM, 62)n t [Alusão ao poema “H” de Arthur Rimbaud, que pode ser encontrado na obra Illuminations (1895).]
interpretação pluralista.
A interpretação revela sua complexidade quando se pondera que uma nova
força só pode aparecer e se apropriar de um objeto usando, em seu início, a máscara
das forças precedentes que já o ocupavam. A máscara ou a artimanha são leis da
natureza, algo mais, portanto, que uma máscara ou uma artimanha. A vida, em seu
início, deve imitar a matéria apenas para ser possível. Uma força não sobreviveria se,
inicialmente, não tomasse emprestada o semblante das forças precedentes contra as
quais luta10. É assim que o filósofo só pode nascer e crescer, com alguma chance de
sobrevivência, caso tenha o ar contemplativo do sacerdote, do homem ascético e
religioso que dominava o mundo antes de seu aparecimento. A imagem ridícula que
fazem da filosofia, a imagem do filósofo-sábio, amigo da sabedoria e da ascese, não é
o único testemunho de que uma tal necessidade pesa sobre nós. Porém, mais do que
isso, a própria filosofia não larga sua [6] máscara ascética à medida que vai
crescendo: de certa maneira deve acreditar nela, só pode conquistar sua máscara
dando-lhe um novo sentido no qual, finalmente, exprime-se a verdadeira natureza de
sua força anti-religiosa11. Vemos que a arte de interpretar deve ser também uma arte
de transpassar as máscaras, e de descobrir quem se mascara e por quê, e com que
objetivo se conserva uma máscara remodelando-a. Isto é dizer que a genealogia não
aparece no início, e que se corre o risco de muitos contrassensos buscando, a partir do
nascimento, qual é o pai da criança. A diferença na origem não aparece desde a
origem, exceto talvez para um olho particularmente treinado, o olho que vê de longe,
o olho do presbita, do genealogista. É só quando a filosofia fica grande que se pode
apreender sua essência ou sua genealogia, e distingui-la de tudo aquilo com que ela
tinha, no início, demasiado interesse em se confundir. Isto se dá com todas as coisas:
“Em toda coisa, só os graus superiores importam”12. Não que o problema não seja o
da origem, mas porque a origem, concebida como genealogia, só pode ser
determinada relativamente aos graus superiores.
Não temos que nos perguntar o que os gregos devem ao Oriente, diz
10 GM, III, 8, 9 e 10.11 GM, III, 10.12 FG.
Nietzsche13. A filosofia é grega na medida em que é na Grécia que ela alcança, pela
primeira vez, sua forma superior, que ela dá testemunho de sua verdadeira força e de
seus objetivos, que não se confundem com os do Oriente-sacerdote, nem mesmo
quando ela os utiliza. Philosophos não quer dizer sábio, mas amigo da sabedoria. Ora,
de que maneira estranha é preciso interpretar “amigo”: o amigo, diz Zaratustra, é
sempre um terceiro entre eu e mim, que me leva a me superar e a ser superado para
viver14. O amigo da sabedoria é aquele que se vale da sabedoria, mas como quem se
vale de uma máscara na qual não se sobreviveria; aquele que faz a sabedoria servir a
novos fins, estranhos e perigosos, bem pouco sábios, na verdade. Ele quer que ela se
supere e que seja superada. É certo que o povo nem sempre se engana com isto; ele
pressente a essência do filósofo, sua anti-sabedoria, seu imoralismo, sua concepção
da amizade. Humildade, pobreza, castidade, adivinhemos o sentido que ganham essas
virtudes sábias e ascéticas, quando são retomadas pela filosofia como por uma força
nova15.
3) FILOSOFIA DA VONTADE
A genealogia não interpreta apenas, ela avalia. Até agora, apresentamos as
coisas como se as diferentes forças lutassem e se sucedessem relativamente a um
objeto quase inerte. Mas o próprio objeto é força, expressão de uma força. É por isso
mesmo que há mais ou menos afinidade entre o objeto e a força que dele se apodera.
Não há objeto (fenômeno) que já não esteja possuído, já que nele mesmo ele é, não
uma aparência, mas o aparecimento de uma força. Toda força está, portanto, num
entrelace essencial com uma outra força. O ser da força é o plural; seria propriamente
absurdo pensar a força no singular. Uma força é dominação, mas é também o objeto
sobre o qual se exerce uma dominação. Uma pluralidade de forças agindo e
padecendo à distância, sendo a distância o elemento diferencial compreendido em
13 FG.14 Z, I, “Do amigo”.15 GM, III, 8.
cada força e pelo qual cada uma se entrelaça a outras: é este o princípio da filosofia
da natureza em Nietzsche. A crítica do atomismo deve ser compreendida a partir
deste princípio; ela consiste em mostrar que o atomismo é uma tentativa de emprestar
à matéria uma pluralidade e uma distância essenciais que, de fato, só pertencem à
força. Só a força tem por ser entrelaçar-se a uma outra força. (Como diz Marx,
quando interpreta o atomismo: “Os átomos são a si próprios seus únicos objetos e só
podem se entrelaçar a si próprios...”16 Mas a questão é a seguinte: a noção de átomo,
em sua essência, poderia dar conta desse entrelace essencial que se lhe confere? O
conceito só devém coerente quando se pensa força em vez de átomo. Porque a noção
de átomo não pode conter em si mesma a diferença necessária à afirmação de tal
entrelace, diferença na essência e segundo a essência. Assim, o atomismo seria uma
máscara para o dinamismo nascente).
Logo, o conceito de força, em Nietzsche, é o de uma força que se entrelaça a
uma outra força: sob este aspecto, a força se chama uma vontade. A vontade (vontade
de potência) é o elemento diferencial da força. Daí resulta uma nova concepção da
filosofia da vontade, pois a vontade não se exerce misteriosamente sobre músculos ou
sobre nervos, menos ainda sobre uma matéria em geral, mas se exerce
necessariamente sobre uma outra vontade. O verdadeiro problema não está no [8]
entrelace do querer com o involuntário, mas no entrelace de uma vontade que
comanda com uma vontade que obedece, e que obedece mais ou menos. “A vontade
bem compreendida só pode agir sobre uma vontade, e não sobre uma matéria (os
nervos, por exemplo). É preciso chegar à idéia de que, em toda parte onde se
constatam efeitos, é porque uma vontade age sobre uma vontade”17. Da vontade é dito
ser ela uma coisa complexa porque, enquanto ela quer, quer ser obedecida, mas só
uma vontade pode obedecer àquilo que a comanda. Assim, o pluralismo encontra sua
confirmação imediata e seu terreno de escolha na filosofia da vontade. E o ponto
sobre o qual incide a ruptura de Nietzsche com Schopenhauer é preciso: trata-se
justamente de saber se a vontade é una ou múltipla. Todo resto decorre disso; com
efeito, se Schopenhauer é conduzido a negar a vontade, é primeiramente porque 16 MARX, Diferença Demócrito-Epicuro.17 BM, 36.
acredita na unidade do querer. Porque a vontade, segundo Schopenhauer, é una em
sua essência, ocorre ao carrasco compreender que ele e sua própria vítima são um só:
é a consciência da identidade da vontade em todas as suas manifestações que leva a
vontade a negar-se, a suprimir-se na piedade, na moral e no ascetismo18. Nietzsche
descobre o que lhe parece ser a mistificação propriamente schopenhaueriana: deve-se
necessariamente negar a vontade quando se coloca sua unidade, sua identidade.
Nietzsche denuncia a alma, o eu, o egoísmo como os últimos refúgios do
atomismo. O atomismo psíquico não vale mais do que o físico: “Em todo querer,
trata-se simplesmente de comandar e de obedecer no interior de uma estrutura
coletiva complexa, feita de muitas almas”19. Quando Nietzsche canta o egoísmo, é
sempre de uma maneira agressiva ou polêmica: contra as virtudes, contra a virtude do
desinteresse20. Mas, de fato, o egoísmo é uma interpretação ruim da vontade, assim
como o atomismo é uma interpretação ruim da força. Para que haja egoísmo, ainda
seria preciso que houvesse um ego. Que toda força se entrelace a outra, seja para
comandar seja para obedecer, eis o que nos coloca na via da origem: a origem é a
diferença na origem, a diferença na origem é a hierarquia, ou seja, o entrelace de uma
força dominante com uma força dominada, de uma vontade obedecida com uma
vontade obediente. A hierarquia como inseparável da [9] genealogia, eis o que
Nietzsche chama de “nosso problema”21. A hierarquia é o fato originário, a identidade
da diferença e da origem. Compreenderemos mais tarde por que o problema da
hierarquia é precisamente o problema dos “espíritos livres”. Seja como for, podemos
marcar, a este respeito, a progressão do sentido ao valor, da interpretação à avaliação
como tarefas da genealogia: o sentido de alguma coisa é o entrelace desta coisa com a
força que dela se apodera, o valor de alguma coisa é a hierarquia das forças que se
exprimem na coisa enquanto fenômeno complexo.
4) CONTRA A DIALÉTICA
18 SCHOPENHAUER, O mundo como vontade e como representação, liv. IV.19 BM, 19.20 Z, III, “Dos três males”.21 HH, Prefácio, 7.
Nietzsche é “dialético”? Mesmo uma relação essencial entre um e outro não
basta para formar uma dialética: tudo depende do papel do negativo nesta relação.
Nietzsche certamente diz que a força tem por objeto uma outra força. Todavia, é
precisamente com outras forças que a força entra em relação. É com uma outra sorte
de vida que a vida entra em luta. O pluralismo tem às vezes aparências dialéticas; ele
é seu inimigo mais arisco, o único inimigo profundo. Eis por que devemos levar a
sério o caráter resolutamente antidialético da filosofia de Nietzsche. Disseram que
Nietzsche não conhecia bem Hegel. No sentido em que não se conhece bem o
adversário. Acreditamos, em contrapartida, que o movimento hegeliano, as diferentes
correntes hegelianas, foram-lhe familiares; como Marx, foi lá que ele pegou seus
judas. É o conjunto da filosofia de Nietzsche que permanece abstrata e pouco
compreensível, caso não se descubra contra quem ela é dirigida. Ora, a própria
questão “contra quem?” demanda várias respostas. Mas uma delas, particularmente
importante, é que o superhomemnt é dirigido contra a concepção dialética do homem,
e a transvaloração contra a dialética da apropriação ou da supressão da alienação. O
anti-hegelianismo atravessa a obra de Nietzsche, como o fio da agressividade.
Podemos segui-lo já na teoria das forças.
Em Nietzsche, nunca o entrelace essencial de uma força com outra é concebido
como um elemento negativo na essência. Em seu entrelace com outra, a força que se
faz obedecer não nega a outra ou aquilo que ela não é, ela afirma sua própria
diferença e goza dessa diferença. O negativo não está presente [10] na essência como
aquilo de que a força tira sua atividade: ao contrário, ele resulta dessa atividade, da
existência de uma força ativa e da afirmação de sua diferença. O negativo é um
produto da própria existência: a agressividade necessariamente ligada a uma
existência ativa, a agressividade de uma afirmação. Quanto ao conceito negativo (isto
é, a negação como conceito), “é apenas um pálido contraste, nascido tardiamente em
comparação ao conceito fundamental, todo impregnado de vida e de paixão”22.
Nietzsche substitui o elemento especulativo da negação, da oposição ou da n t [Em francês, surhomme, que é tradução do nietzscheano Übermensch. Contudo, em outros momentos, Deleuze usa surhumain para o mesmo termo alemão, que então se traduzirá por superhumano.]22 GM, I, 10.
contradição, pelo elemento prático da diferença: objeto de afirmação e de gozo. É
neste sentido que há um empirismo nietzscheano. A questão tão freqüente em
Nietzsche: o que uma vontade quer? o que este quer? aquele? não deve ser
compreendida como a busca de um objetivo, de um motivo nem de um objeto para
esta vontade. O que uma vontade quer é afirmar sua diferença. Em seu entrelace
essencial com outra, uma vontade faz de sua diferença um objeto de afirmação. “O
prazer de se saber diferente”, o gozo da diferença23: eis o elemento conceitual novo,
agressivo e aéreo, pelo qual o empirismo substitui as pesadas noções dialéticas e,
sobretudo, como diz o dialético, o trabalho do negativo. Que a dialética seja um
trabalho e o empirismo um gozo, é caracterizá-los suficientemente. E quem nos diz
que há mais pensamento num trabalho do que num gozo? A diferença é o objeto de
uma afirmação prática inseparável da essência e constitutiva da existência. O “sim”
de Nietzsche se opõe ao “não” dialético; a afirmação, à negação dialética; a diferença,
à contradição dialética; a alegria, o gozo, ao trabalho dialético; a leveza, a dança, ao
pesadume dialético; a bela irresponsabilidade, às responsabilidades dialéticas. O
sentimento empírico da diferença, em suma, a hierarquia, eis o motor essencial do
conceito mais eficaz e mais profundo que todo pensamento da contradição.
Mais ainda, devemos perguntar: o que o próprio dialético quer? O que ela quer,
essa vontade que quer a dialética? Uma força esgotada, que não tem a força para
afirmar sua diferença, uma força que não age mais, mas reage às forças que a
dominam: só uma força assim, em seu entrelace com a outra, faz o elemento negativo
passar ao primeiro plano; [11] ela nega tudo o que ela não é e, desta negação, faz sua
própria essência e o princípio de sua existência. “Enquanto a moral aristocrática
nasce de uma triunfal afirmação de si mesma, a moral dos escravos é, desde o início,
um NÃO ao que não faz parte dela, ao que é diferente dela, ao que é seu não-eu; e este
NÃO é seu ato criador”24. Eis por que Nietzsche apresenta a dialética como a
especulação da plebe, como a maneira de pensar do escravo25: o pensamento abstrato
da contradição prevalece, então, sobre o sentimento concreto da diferença positiva, a 23 BM, 260.24 GM, I, 10.25 Cr. Id., “O problema de Sócrates”, 3-7. – VP, I, 70: “É a plebe que triunfa na dialética... A
dialética só pode servir como arma defensiva.”
reação sobre a ação, a vingança e o ressentimento tomam o lugar da agressividade. E
Nietzsche, inversamente, mostra que aquilo que é negativo no senhor é sempre um
produto secundário e derivado de sua existência. Outrossim, não é o entrelace do
senhor e do escravo que, em si mesmo, é dialético. Quem é dialético, quem dialetiza a
relação? É o escravo, o ponto de vista do escravo, o pensamento do ponto de vista do
escravo. O célebre aspecto dialético da relação senhor-escravo, com efeito, depende
do seguinte: que a potência aí seja concebida, não como vontade de potência, mas
como representação da potência, como representação da superioridade, como
reconhecimento por “um” da superioridade do “outro”. O que as vontades querem,
em Hegel, é fazer reconhecer sua potência, representar sua potência. Ora, segundo
Nietzsche, há nisto uma concepção totalmente errônea da vontade de potência e de
sua natureza. Tal concepção é a do escravo, ela é a imagem que o homem do
ressentimento faz da potência. É o escravo que só concebe a potência como objeto de
uma recognição, matéria de uma representação, risco de uma competição, e que faz
com que ela, portanto, dependa, no desfecho de um combate, de uma simples
atribuição de valores estabelecidos26. Se a relação do senhor e do escravo assume
facilmente a forma dialética, a ponto de ter devindo como que um arquétipo ou uma
figura de escola para todo jovem hegeliano, é porque o retrato que Hegel nos propõe
do senhor é, desde o início, um retrato feito pelo escravo, um retrato que representa o
escravo, pelo menos tal como ele se imagina, quando muito um escravo realizado.
Sob a imagem hegeliana do senhor é sempre o escravo que desponta.
5) O PROBLEMA DA TRAGÉDIA
O comentador de Nietzsche deve principalmente evitar “dialetizar” o
pensamento nietzscheano sob um pretexto qualquer. O pretexto, no entanto, está
prontinho para ser encontrado: é o da cultura trágica, do pensamento trágico, da
filosofia trágica que percorrem a obra de Nietzsche. Mas, justamente, o que Nietzsche
chama de “trágico”? Ele opõe a visão trágica do mundo a duas outras visões: dialética 26 Contra a idéia de que a vontade de potência seja vontade de se fazer “reconhecido”, logo de
fazer com que lhe sejam atribuídos valores em curso: BM, 261; A, 113.
e cristã. Ou antes, contando bem, a tragédia tem três jeitos de morrer: ela morre uma
primeira vez pela dialética de Sócrates, é sua morte “euripidiana”. Morre uma
segunda vez pelo cristianismo. Uma terceira vez, sob os golpes conjugados da
dialética moderna e de Wagner em pessoa. Nietzsche insiste nos seguintes pontos: o
caráter fundamentalmente cristão da dialética e da filosofia alemãs27; a incapacidade
congênita do cristianismo e da dialética para viverem, compreenderem, pensarem o
trágico. “Fui eu quem descobriu o trágico”, até os gregos o desconheceram28.
A dialética propõe uma certa concepção do trágico: liga o trágico ao negativo, à
oposição, à contradição. A contradição do sofrimento e da vida, do finito e do infinito
na própria vida, do destino particular e do espírito universal na idéia; o movimento da
contradição, e também de sua solução: eis como o trágico é representado. Ora, se
considera-se a Origem da tragédia, se vê bem que Nietzsche não é dialético, mas
antes discípulo de Schopenhauer. É então que também se lembra que o próprio
Schopenhauer pouco apreciava a dialética. E, no entanto, neste primeiro livro, o
esquema que Nietzsche nos propõe, sob a influência de Schopenhauer, só se distingue
da dialética pela maneira como a contradição e sua solução são concebidas nele. O
que permite a Nietzsche, mais tarde, dizer sobre a Origem da tragédia: “Ela cheira a
hegelianismo de um jeito bastante escabroso”29. Pois a contradição e sua resolução
desempenham ainda o papel de princípios essenciais; “nisto se vê a antítese
transformar-se em unidade”. Devemos seguir o movimento desse livro [13] difícil
para compreender como Nietzsche instaurará, em seguida, uma nova concepção do
trágico:
1º) A contradição, na Origem da tragédia, é a da unidade primitiva e da
individuação, do querer e da aparência, da vida e do sofrimento. Essa contradição
“original” testemunha contra a vida, coloca a vida em acusação: a vida precisa ser
justificada, isto é, redimida do sofrimento e da contradição. A Origem da tragédia se
desenvolve à sombra dessas categorias dialéticas cristãs: justificação, redenção,
reconciliação;
27 AC, 10.28 VP, IV, 534.29 EH, III, “A origem da tragédia”, 1.
2º) A contradição se reflete na oposição de Dioniso e de Apolo. Apolo diviniza
o princípio de individuação, constrói a aparência da aparência, a bela aparência, o
sonho ou a imagem plástica e, assim, liberta-se do sofrimento: “Apolo triunfa sobre o
sofrimento do indivíduo pela glória radiosa com a qual ele cinge a eternidade da
aparência”, ele apaga a dor30. Dioniso, ao contrário, retorna à unidade primitiva,
arrebenta o indivíduo, arrasta-lhe no grande naufrágio e lhe absorve no ser original:
assim ele reproduz a contradição como a dor da individuação, mas as resolve num
prazer superior, fazendo-nos participar da superabundância do ser único ou do querer
universal. Dioniso e Apolo não se opõem, portanto, como os termos de uma
contradição, mas antes como dois jeitos antitéticos de resolvê-la: Apolo,
mediatamente, na contemplação da imagem plástica; Dioniso, imediatamente, na
reprodução, no símbolo musical da vontade31. Dioniso é como que o fundo sobre o
qual Apolo borda a bela aparência; mas, sob Apolo, é Dioniso quem freme. A própria
antítese precisa então ser resolvida, “transformada em unidade”32;
3º) A tragédia é essa reconciliação, essa aliança admirável e precária dominada
por Dioniso. Pois, na tragédia, Dioniso é o fundo do trágico. O único personagem
trágico é Dioniso: “deus sofredor e glorificado”; o único tema trágico são os
sofrimentos de Dioniso, sofrimentos da individuação porém reabsorvidos no prazer
do ser original; e o único espectador trágico é o coro, porque ele é dionisíaco, [14]
porque vê Dioniso como seu senhor e mestre33. Mas, por outro lado, a contribuição
apolínea consiste no seguinte: na tragédia, é Apolo que desenvolve o trágico em
drama, que exprime o trágico num drama. “A tragédia é o coro dionisíaco que se
distende projetando fora de si um mundo de imagens apolíneas... No decorrer de
várias explosões sucessivas, o fundo primitivo da tragédia produz por irradiação essa
visão dramática, que é essencialmente um sonho... O drama, pois, é a representação
de noções e de ações dionisíacas”, a objetivação de Dioniso sob uma forma e num
30 OT, 16.31 Sobre a oposição da imagem mediata e do símbolo (às vezes chamado de “imagem
imediata do querer”), cf. OT, 5, 16 e 17.32 VP, IV, 556: “No fundo, esforcei-me apenas por adivinhar por que o apolinismo grego teve
que surgir de um subsolo dionisíaco; por que o grego dionisíaco teve necessariamente que devir apolíneo.”
33 OT, 8 e 10.
mundo apolíneos.
6) A EVOLUÇÃO DE NIETZSCHE
Eis, então, como o trágico em seu conjunto é definido na Origem da tragédia: a
contradição original, sua solução dionisíaca e a expressão dramática desta solução.
Reproduzir e resolver a contradição, resolvê-la reproduzindo-a, resolver a contradição
original no fundo original, é este o caráter da cultura trágica e de seus representantes
modernos, Kant, Schopenhauer, Wagner. “Seu traço proeminente é que ela substitui a
ciência por uma sabedoria que fixa um olhar impassível sobre a estrutura do universo
e aí procura apreender a dor eterna, onde ela reconhece com uma terna simpatia sua
própria dor”34. Mas já afloram mil coisas, na Origem da tragédia, que nos fazem
sentir a aproximação de uma concepção nova, pouco conforme a este esquema. E,
primeiramente, Dioniso é apresentado com insistência como o deus afirmativo e
afirmador. Ele não se contenta em “resolver” a dor num prazer superior e
suprapessoal, ele afirma a dor e faz dela o prazer de alguém. Eis por que Dioniso,
mais do que resolver-se no ser original ou absorver o múltiplo num fundo primitivo,
se metamorfoseia em afirmações múltiplas. Ele afirma as dores do crescimento, mais
do que reproduz os sofrimentos da individuação. É o deus que afirma a vida, para
quem a vida tem de ser afirmada, mas não justificada nem redimida. Entretanto, o
que impede este segundo Dioniso de prevalecer sobre o primeiro, é que o elemento
suprapessoal sempre acompanha o elemento afirmador e, finalmente, atribui a si o
benefício deste. Certamente há, por exemplo, um [15] pressentimento do eterno
retorno: Deméter descobre que poderá engravidar-se novamente de Dioniso; mas esta
ressurreição de Dioniso é interpretada somente como “o fim da individuação”35. Sob
a influência de Schopenhauer e de Wagner, a afirmação da vida ainda só é concebida
pela resolução do sofrimento no seio do universal e de um prazer que ultrapassa o
indivíduo. “O indivíduo deve ser transformado num ser impessoal, superior à pessoa.
34 OT, 18.35 OT, 10.
Eis a que se propõe a tragédia...”36
Quando Nietzsche, no fim de sua obra, se interroga sobre a Origem da
tragédia, reconhece nela duas inovações essenciais que transbordam o quadro semi-
dialético, semi-schopenhaueriano37: uma é precisamente o caráter afirmador de
Dioniso, a afirmação da vida em vez de sua solução superior ou de sua justificação.
Por outro lado, Nietzsche se felicita por ter descoberto uma oposição que havia de
ganhar, em seguida, toda sua amplitude. É que, desde a Origem da tragédia, a
verdadeira oposição não é a oposição totalmente dialética de Dioniso e de Apolo, e
sim aquela, mais profunda, de Dioniso e de Sócrates. Não é Apolo que se opõe ao
trágico ou pelo qual o trágico morre, é Sócrates; e Sócrates não é mais apolíneo do
que dionisíaco38. Sócrates é definido por uma estranha reversão: “Enquanto que em
todos os homens produtivos o instinto é uma força afirmativa e criadora, e a
consciência uma força crítica e negativa; em Sócrates, o instinto devém crítico e a
consciência, criadora.”39 Sócrates é o primeiro gênio da decadência: ele opõe a idéia
à vida, ele julga a vida pela idéia, coloca a vida como devendo ser julgada,
justificada, redimida pela idéia. O que ele nos pede é que consigamos sentir que a
vida, esmagada sob o peso do negativo, é indigna de ser desejada por si mesma,
experimentada nela mesma: Sócrates é “o homem teórico”, o único verdadeiro
contrário do homem trágico40.
Mas, ainda assim, algo impede que este segundo tema se desenvolva
livremente. Para que a oposição de Sócrates e da tragédia ganhasse todo seu valor,
para que deviesse realmente a oposição do não e do sim, da negação da vida e de sua
afirmação, era preciso, primeiramente, que o elemento afirmativo na [16] tragédia
fosse resgatado, exposto por si mesmo e liberado de toda subordinação. Ora, uma vez
nesta via, Nietzsche não poderá mais parar: será preciso também que a antítese
Dioniso-Apolo deixe de ocupar o primeiro lugar, que ela se esmaeça, ou até
desapareça, em proveito da verdadeira oposição. Será preciso, enfim, que ela mesma,
36 Co. In., II, “Schopenhauer educador”, cf. 3-4.37 EH, III, “A origem da tragédia”, 1-4.38 OT, 12.39 OT, 13.40 OT, 15.
a verdadeira oposição, mude; que ela não se contente com Sócrates como herói típico,
pois Sócrates é demasiado grego, um pouco apolíneo no início, por sua clareza, um
pouco dionisíaco no fim, “Sócrates estudando música”41. Sócrates não dá à negação
da vida toda sua força; a negação da vida ainda não encontra nele sua essência. Será
preciso, então, que o homem trágico, ao mesmo tempo que descobre seu próprio
elemento na afirmação pura, descubra seu inimigo mais profundo como aquele que
conduz verdadeiramente, definitivamente, essencialmente, a empreitada da negação.
Nietzsche realiza este programa com rigor. A antítese Dioniso-Apolo, deuses que se
reconciliam para resolver a dor, é substituída pela complementaridade mais
misteriosa Dioniso-Ariadne; pois uma mulher, uma noiva, são necessárias quando se
trata de afirmar a vida. A oposição Dioniso-Sócrates é substituída pela verdadeira
oposição: “Compreenderam-me? – Dioniso contra o crucificado.”42 A Origem da
tragédia, observa Nietzsche, silenciava sobre o cristianismo, não identificara o
cristianismo. E é o cristianismo que nem é apolíneo nem dionisíaco: “Ele nega os
valores estéticos, os únicos que a Origem da tragédia reconhece; ele é niilista no
sentido mais profundo, enquanto que no símbolo dionisíaco é atingido o limite
extremo da afirmação.”
7) DIONÍSIO E CRISTO
Em Dioniso e em Cristo o martírio é o mesmo, a paixão é a mesma. É o mesmo
fenômeno, mas dois sentidos opostos43. Por um lado, a vida que justifica o
sofrimento, que afirma o sofrimento; por outro, o sofrimento que acusa a vida, que
testemunha contra ela, que faz da vida algo que deve ser justificado. Que haja
sofrimento na vida, isto significa primeiramente, para o cristianismo, que a vida não é
justa, que é mesmo essencialmente injusta, que ela paga pelo sofrimento uma
injustiça essencial: ela é [17] culpada porque sofre. Em seguida, isto significa que ela
deve ser justificada, ou seja, redimida de sua injustiça ou salva, salva por este mesmo
41 OT, 15.42 EH, IV, 9; VP, III, 413; IV, 464.43 VP, IV, 464.
sofrimento que há pouco a acusava: ela deve sofrer pois que é culpada. Esses dois
aspectos do cristianismo formam o que Nietzsche chama de “má consciência”, ou
interiorização da dor44. Eles definem o niilismo propriamente cristão, ou seja, a
maneira pela qual o cristianismo nega a vida: de um lado, a máquina de fabricar a
culpabilidade, a horrível equação dor-castigo; do outro, a máquina de multiplicar a
dor, a justificação pela dor, a fábrica imunda45. Mesmo quando o cristianismo canta o
amor e a vida, que imprecações nesses cânticos, quanto ódio sob esse amor! Ele ama
a vida como a ave de rapina ama o cordeiro: tenra, mutilada, moribunda. O dialético
coloca o amor cristão como uma antítese, por exemplo como a antítese do ódio
judaico. Mas é o ofício e a missão do dialético estabelecer antíteses, em toda parte
onde houver avaliações mais delicadas a serem feitas, coordenações a serem
interpretadas. Que a flor seja a antítese da folha, que ela “refute” a folha, eis uma
célebre descoberta cara à dialética. É também desta maneira que a flor do amor
cristão “refuta” o ódio: ou seja, de uma maneira inteiramente fictícia. “Que não se
imagine que o amor se desenvolveu... como antítese do ódio judaico. Não, muito pelo
contrário. O amor saiu deste ódio, desabrochando como sua coroa, uma coroa
triunfante que se amplia sob os quentes raios de um sol de pureza, mas que, nesse
domínio novo sob o reino da luz e do sublime, sempre persegue ainda os mesmos
objetivos que o ódio: a vitória, a conquista, a sedução.”46 A alegria cristã é a alegria
de “resolver” a dor: a dor é interiorizada e oferecida a Deus por este meio, depositada
em Deus por este meio. “Esse paradoxo de um Deus crucificado, esse mistério de
uma inimaginável e derradeira crueldade”47, eis a mania propriamente cristã, uma
mania já totalmente dialética.
Quão estranho deveio este aspecto ao verdadeiro Dioniso! O Dioniso da
Origem da tragédia ainda “resolvia” a [18] dor; a alegria que ele experimentava
ainda era uma alegria de resolvê-la, e também de levá-la à unidade primitiva. Mas
44 GM, II.45 Sobre a “fabricação do ideal”, cf. GM, I, 14.46 GM, I, 8. – Era já a reprimenda, em geral, que Feuerbach dirigia à dialética hegeliana: o
gosto pelas antíteses fictícias, em detrimento das coordenações reais (cf. FEUERBACH, Contribution à la critique de la philosophie hégélienne, tradução ALTHUSSER, Manifestes philosophiques, Presses Universitaires de France). NIETZSCHE igualmente dirá: “A coordenação: no lugar da causa e do efeito” (VP, II, 346).
47 GM, I, 8.
agora Dioniso apreendeu precisamente o sentido e o valor de suas próprias
metamorfoses: ele é o deus para quem a vida não é pra ser justificada, para quem a
vida é essencialmente justa. Mais do que isto, é ela que se encarrega de justificar, “ela
afirma até mesmo o mais áspero sofrimento”48. Compreendamos: ela não resolve a
dor interiorizando-a, mas a afirma no elemento de sua exterioridade. E, a partir daí, a
oposição de Dioniso e de Cristo se desenvolve ponto por ponto, como a afirmação da
vida (sua extrema apreciação) e a negação da vida (sua depreciação extrema). A
maniant dionisíaca se opõe à mania cristã; a embriaguez dionisíaca, a uma embriaguez
cristã; a laceração dionisíaca, à crucificação; a ressurreição dionisíaca, à ressurreição
cristã; a transvaloração dionisíaca, à transubstanciação cristã. Pois há duas sortes de
sofrimentos e de sofredores. “Aqueles que sofrem da superabundância da vida”
fazem do sofrimento uma afirmação, como da embriaguez uma atividade; na
laceração de Dioniso, eles reconhecem a forma extrema da afirmação, sem
possibilidade de subtração, de exceção nem de escolha. “Aqueles que sofrem, ao
contrário, de um empobrecimento da vida” fazem da embriaguez uma convulsão ou
um entorpecimento; fazem do sofrimento um meio de acusar a vida, de contradizê-la,
e também um meio de justificar a vida, de resolver a contradição49. Tudo isto, com
efeito, entra na idéia de um salvador; não há salvador mais belo que aquele que seria,
de uma só vez, algoz, vítima e consolador, a santa Trindade, o prodigioso sonho da
má consciência. Do ponto de vista de um salvador, “a vida deve ser o caminho que
leva à santidade”; do ponto de vista de Dioniso, “a existência parece bastante santa
por si mesma para justificar, além de tudo, uma imensidão de sofrimento”50. A
laceração dionisíaca é o símbolo imediato da afirmação múltipla; a cruz de Cristo, o
sinal da cruz, são a imagem da contradição e de sua solução, a vida submetida ao
trabalho do negativo. Contradição desenvolvida, solução da contradição,
reconciliação dos contraditórios, todas essas noções devieram estranhas a Nietzsche.
É Zaratustra quem grita: “Algo mais elevado que toda reconciliação”51 – a afirmação.
48 VP, IV, 464.n t [Transcrição do grego μανία (loucura).]49 NW, 5. Notar-se-á que nem toda embriaguez é dionisíaca: há uma embriaguez cristã que se
opõe à de Dioniso.50 VP, IV, 464.51 Z, II, “Da redenção”.
[19] Algo mais elevado que toda contradição desenvolvida, resolvida, suprimida – a
transvaloração. Aqui está o ponto comum de Zaratustra e Dioniso: “Eu levo a todos
os abismos minha afirmação que abençoa (Zaratustra)... Mas isto, uma vez mais, é a
idéia mesma de Dioniso”52. A oposição de Dioniso ou de Zaratustra a Cristo não é
uma oposição dialética, e sim a oposição à própria dialética: a afirmação diferencial
contra a negação dialética, contra todo niilismo e contra essa forma particular do
niilismo. Nada está mais distante da interpretação nietzscheana de Dioniso do que a
apresentada mais tarde por Otto: um Dioniso hegeliano, dialético e dialetizante ! nt
8) A ESSÊNCIA DO TRÁGICO
Dioniso afirma tudo que aparece, “até mesmo o mais áspero sofrimento”, e
aparece em tudo que é afirmado. A afirmação múltipla ou pluralista, eis a essência do
trágico. Melhor se compreenderá isto caso se pondere as dificuldades que ele tem
para fazer de tudo um objeto de afirmação. Aí é preciso o esforço e o gênio do
pluralismo, a potência das metamorfoses, a laceração dionisíaca. Quando a angústia
ou o desgosto surgem em Nietzsche, é sempre neste ponto: poderia tudo devir objeto
de afirmação, isto é, de alegria? Para cada coisa, será preciso achar os meios
particulares pelos quais ela é afirmada, pelos quais ela deixa de ser negativa53. Só que
o trágico não está nesta angústia ou neste desgosto, nem numa nostalgia da unidade
perdida. O trágico está somente na multiplicidade, na diversidade da afirmação como
tal. O que define o trágico é a alegria do múltiplo, a alegria plural. Essa alegria não é
o resultado de uma sublimação, de uma purgação, de uma compensação, de uma
resignação, de uma reconciliação: em todas as teorias do trágico, Nietzsche pode
denunciar um desconhecimento essencial, o da tragédia como fenômeno estético.
Trágico designa a forma estética da alegria, não uma fórmula médica, nem uma
52 EH, III, “Assim falou Zaratustra”, 6.n t [Filólogo e historiador alemão Walter F. Otto (1874-1958), que publicou em 1933 o livro Dionysos: Mythos und Kultus.]53 Cf. as angústias e os desgostos de Zaratustra a propósito do eterno retorno. – Desde as
Considerações intempestivas, NIETZSCHE firma como princípio: “Toda existência que pode ser negada merece também sê-lo: ser verídico equivale a acreditar numa existência que não poderia absolutamente ser negada e que é, ela própria, verdadeira e sem mentira” (Co. In., II, “Schopenhauer educador”, 4).
solução moral da dor, [20] do medo ou da piedade54. O que é trágico é a alegria. Mas
isto quer dizer que a tragédia é imediatamente alegre, que ela só impele o medo e a
piedade do espectador obtuso, ouvinte patológico e moralizante, que conta com ela
para assegurar o bom funcionamento de suas sublimações morais ou de suas
purgações médicas. “O renascimento da tragédia acarreta o renascimento do ouvinte
artista cujo lugar no teatro, até o presente, foi ocupado por um estranho qüiproquó,
de pretensões meio morais, meio eruditas, o crítico”55. E, com efeito, é preciso um
verdadeiro renascimento para liberar o trágico de todo medo ou piedade dos ouvintes
ruins, os quais lhe deram um sentido medíocre oriundo da má consciência. Uma
lógica da afirmação múltipla, portanto uma lógica da pura afirmação, e uma ética da
alegria que lhe corresponde, é este o sonho anti-dialético e anti-religioso que
atravessa toda a filosofia de Nietzsche. O trágico não está fundado num vínculo do
negativo e da vida, mas no vínculo essencial da alegria e do múltiplo, do positivo e
do múltiplo, da afirmação e do múltiplo. “O herói é jovial, eis o que escapou até
então dos autores de tragédias”56. A tragédia, franca jovialidade dinâmica.
Eis por que Nietzsche renuncia à concepção do drama que ele sustentava na
Origem da tragédia; o drama ainda é um pathos,nt pathos cristão da contradição. O
que Nietzsche reprova em Wagner, precisamente, é ele ter feito uma música
dramática, ter renegado o caráter afirmador da música: “Eu sofro por ela ser uma
música de decadência e não mais a flauta de Dioniso”57. Outrossim, contra a
expressão dramática da tragédia, Nietzsche exige os direitos de uma expressão
heróica: o herói jovial, o herói leve, o herói dançarino, o herói brincalhão58. É a tarefa
de Dioniso tornar-nos leves, ensinar-nos a dançar, dar-nos o instinto de brincadeirant.
Até mesmo um historiador hostil ou indiferente aos temas nietzscheanos reconhece a
54 Desde a Origem da tragédia, NIETZSCHE se atém à concepção aristotélica da tragédia-catarse. Ele assinala as duas interpretações possíveis de catarse: sublimação moral, purgação médica (OT, 22). Mas, seja qual for a maneira que se lhe interprete, a catarse compreende o trágico como o exercício de paixões deprimentes e de sentimentos “reativos”. Cf. VP, IV, 460.
55 OT, 22.56 VP, IV, 50.n t [Termo grego para “padecimento”, ou “sofrimento”.]57 EH, III, “O caso Wagner”, 1.58 VP, III, 191, 220, 221; IV, 17-60.n t [Por vezes traduzimos a ambígüa palavra jeu (jogo) e suas variáveis (jouer, jogar, joueur, jogador) também por brincadeira, brincar e brincalhão.]
alegria, a leveza aérea, a mobilidade e a ubiqüidade como outros tantos aspectos
particulares de Dioniso59. [21] Dioniso leva Ariadne ao céu; as pedrarias da coroa de
Ariadne são estrelas. Será este o segredo de Ariadne? A constelação jorrada do
famoso lance de dados? É Dioniso quem lança os dados. É ele que dança e que se
metamorfoseia, que se chama “Polygethes”, o deus das mil alegrias.
A dialética, em geral, não é uma visão trágica do mundo, mas, ao contrário, a
morte da tragédia, a substituição da visão trágica por uma concepção teórica (com
Sócrates), ou melhor ainda, por uma concepção cristã (com Hegel). O que se
descobriu nos escritos de juventude de Hegel é igualmente a verdade final da
dialética: a dialética moderna é a ideologia propriamente cristã. Ela quer justificar a
vida e a submete ao trabalho do negativo. E, no entanto, entre a ideologia cristã e o
pensamento trágico, há certamente um problema comum: o do sentido da existência.
“A existência tem um sentido?” é, segundo Nietzsche, a mais elevada questão da
filosofia, a mais empírica e até a mais “experimental”, porque de uma só vez ela
coloca o problema da interpretação e da avaliação. Bem compreendida, ela significa:
“O que é a justiça?”, e Nietzsche pode dizer sem exagero que toda sua obra é este
esforço para bem compreendê-la. Existem, pois, maneiras ruins de compreender a
questão: desde há muito até então, só se buscou o sentido da existência firmando-a
como algo faltoso ou culpado, algo injusto que devia ser justificado. Precisava-se de
um Deus para interpretar a existência. Precisava-se acusar a vida para redimi-la,
redimi-la para justificá-la. Avaliava-se a existência, mas sempre situando-a do ponto
de vista da má consciência. É esta a inspiração cristã que compromete a filosofia
inteira. Hegel interpreta a existência do ponto de vista da consciência infeliz, mas a
consciência infeliz é apenas a figura hegeliana da má consciência. Mesmo
59 H. JEANMAIRE, Dionysos (ed. Payot): “A alegria, que é um dos traços mais marcantes de sua personalidade, e que contribui para comunicar-lhe esse dinamismo ao qual é sempre necessário voltar para conceber a potência de expansão do seu culto” (27); “Um traço essencial da concepção que se faz de Dioniso é aquele que desperta a idéia de uma divindade essencialmente móvel e em perpétuo deslocamento, mobilidade da qual participa um séquito que é, de uma só vez, o modelo ou a imagem das congregações, ou tíasos nos quais se agrupam seus adeptos” (273-274); “Nascido de uma mulher, escoltado por mulheres que são os êmulos de suas amas míticas, Dioniso é um deus que continua a trilhar com os mortais a quem ele comunica o sentimento de sua presença imediata, que os eleva a si bem mais do que se abaixa em direção a eles, &c.” (339 sq.).[nt: A palavra grega θίασος, aportuguesada como tíaso, designa o séquito que acompanha Dioniso, composto de Sátiros e Mênades.]
Schopenhauer... Schopenhauer faz ressoar a questão da existência ou da [22] justiça
de uma maneira ainda inaudita, mas ele próprio achou no sofrimento um meio de
negar a vida e, na negação da vida, o único meio de justificá-la. “Schopenhauer,
como filósofo, foi o primeiro ateu convicto e inflexível que tivéramos na Alemanha: é
o segredo de sua hostilidade para com Hegel. A existência nada tem de divino; isto
era para ele uma verdade dada, uma coisa tangível, indiscutível... Ao rejeitarmos
assim a interpretação cristã, vemos erguer-se diante de nós, terrivelmente, a questão
de Schopenhauer: a existência tem, então, um sentido? Esta questão que requererá
séculos antes de poder ser simplesmente compreendida de modo exaustivo na
redobra de suas profundezas. A resposta mesma que Schopenhauer lhe deu foi, que
me perdoem, prematura; é um fruto verde; puro compromisso; ele se deteu
apressadamente, pego nas redes daquelas perspectivas morais que eram o vezo do
ascetismo cristão, e às quais, ao mesmo tempo que a Deus, se manifestava que não se
queria acreditar”60. Qual é, então, a outra maneira de compreender a questão, maneira
realmente trágica na qual a existência justifica tudo que ela afirma, inclusive o
sofrimento, em vez dela mesma ser justificada pelo sofrimento, ou seja, santificada e
divinizada?
9) O PROBLEMA DA EXISTÊNCIA
É uma longa história, a do sentido da existência. Tem suas origens gregas, pré-
cristãs. Serviu-se do sofrimento, então, como um meio para provar a injustiça da
existência, mas ao mesmo tempo como um meio para encontrar-lhe uma justificação
superior e divina. (Ela é culpada, já que sofre; mas, porque sofre, ela expia e é
redimida.) A existência como desmedida, a existência como hybrisnt e como crime, eis
a maneira pela qual já os gregos a interpretavam e avaliavam. A imagem titânica (“a
necessidade do crime que se impõe ao indivíduo titânico”) é, historicamente, o
primeiro sentido que se concede à existência. Interpretação tão sedutora que 60 GC, 357.n t [Em grego, hybris (ὕβρις), que pode ser traduzido como “violência descomedida”, “insolência”, “excesso”, é um componente importante na tragédia grega, crucial no destino dos personagens trágicos.]
Nietzsche, na Origem da tragédia, não sabe ainda resistir a ela e a coloca em
benefício de Dioniso61. Mas bastará que ele descubra o verdadeiro Dioniso para ver a
armadilha que ela oculta ou o fim ao qual serve: ela faz da existência um fenômeno
moral e religioso! Fica-se com o ar de estar concedendo [23] muito à existência
quando dela se faz um crime, uma desmedida; confere-se-lhe uma dupla natureza, a
de uma injustiça desmedida e de uma expiação justificadora; ela é titanizada pelo
crime, divinizada pela expiação do crime62. E o que estaria no fundo de tudo isto
senão uma maneira sutil de depreciá-la, de torná-la passível de um juízo, juízo moral
e sobretudo juízo de Deus? Anaximandro é o filósofo que, segundo Nietzsche, deu
expressão perfeita a essa concepção da existência. Dizia: “Os seres pagam uns aos
outros a pena e a reparação de sua injustiça, segundo a ordem do tempo”. Isto quer
dizer: 1º) que o devir é uma injustiça (adikía), e a pluralidade das coisas que vêm à
existência, uma soma de injustiças; 2º) que elas lutam entre si e expiam mutuamente
sua injustiça pela phthorá [destruição]; 3º) que todas elas derivam de um ser original
(“Ápeiron” [“Ilimitado”]), que cai num devir, numa pluralidade, numa geração
culpadas, cuja injustiça ele redime eternamente destruindo-as (“Teodicéia”)63.
Schopenhauer é uma espécie de Anaximandro moderno. O que é que agrada
tanto a Nietzsche, tanto em um como no outro, e que explicaria, na Origem da
tragédia, que ele ainda seja fiel, em geral, à interpretação deles? Talvez seja a
diferença deles com o cristianismo. Fazem da existência algo criminoso, portanto
culpável, mas não ainda algo faltoso e responsável. Mesmo os Titãs ainda não
conhecem a incrível invenção semítica e cristã, a má consciência, a culpa e a
responsabilidade. Desde a Origem da tragédia, Nietzsche opõe o crime titânico e
prometéico ao pecado original. Mas ele o faz em termos obscuros e simbólicos
porque esta oposição é seu segredo negativo, assim como o mistério de Ariadne é seu
61 OT, 9.62 OT, 9: “Assim, o primeiro de todos os problemas filosóficos firma, de pronto, uma antítese
penosa e irreconciliável entre o homem e o deus, e rola essa antítese como um bloco de rocha, às portas de toda civilização. O bem, o melhor e o mais elevado que possa acometer a humanidade, isto ela só obtém por um crime cujas conseqüências deve assumir, ou seja, todo o dilúvio da dor que os imortais ofendidos infligem e devem infligir à raça humana alçada num nobre esforço.” Vê-se até que ponto NIETZSCHE ainda é “dialético”, na Origem da tragédia: ele põe na conta de Dioniso os atos criminosos dos Titãs, dos quais Dioniso, todavia, é vítima. Da morte de Dioniso, ele faz uma espécie de crucificação.
63 FG.
segredo positivo. Nietzsche escreve: “No pecado original, a curiosidade, os
fingimentos mentirosos, a seduzibilidade, a concupiscência, em suma, uma série de
defeitos femininos são considerados como a origem do mal... Assim, para os arianos
(gregos) o crime é masculino; para os semitas, a culpa é feminina”64. Não há
misoginia nietzscheana: Ariadne é o primeiro segredo de Nietzsche, a primeira
potência feminina, a Anima, a noiva inseparável da afirmação dionisíaca65. Mas
totalmente outra é a potência feminina infernal, negativa e moralizante, a mãe
terrível, a mãe do bem e do mal, aquela que deprecia e nega a vida. “Já não há outro
meio de recolocar a filosofia em honra: é preciso começar pegando os moralistas.
Enquanto falarem da felicidade e da virtude, só converterão à filosofia as velhas
matronas. Então olhem no rosto deles, todos esses ilustres sábios, há milênios: são
todos velhas matronas, ou mulheres maduras, umas mães, para falar como Fausto. As
mães, as mães! palavra atroz!”66 As mães e as irmãs: esta segunda potência feminina
tem por função acusar-nos, tornar-nos responsáveis. É tua culpa, diz a mãe, tua culpa
se não tenho um filho melhor, mais respeitador de sua mãe e mais consciente do seu
crime. É tua culpa, diz a irmã, tua culpa se não sou mais bonita, mais rica e mais
amada. A imputação dos erros e das responsabilidades, a amarga recriminação, a
perpétua acusação, o ressentimento, eis aí uma piedosa interpretação da existência. É
tua culpa, é tua culpa, até que o acusado diga, por sua vez, “é minha culpa”, e até que
o mundo desolado repercuta com todas essas queixas e com seu eco. “Em toda parte
onde se buscou por responsabilidades, foi o instinto da vingança que as buscou. Esse
instinto da vingança apoderou-se de tal modo da humanidade, no curso dos séculos,
que toda a metafísica, a psicologia, a história e sobretudo a moral trazem sua marca.
Desde que o homem pensa, ele introduziu nas coisas o bacilo da vingança”67. No
ressentimento (é tua culpa), na má consciência (é minha culpa) e em seu fruto comum
(a responsabilidade), Nietzsche não vê simples acontecimentos psicológicos, mas as
64 OT, 9.[nt: Traduziu-se a citação com auxílio do texto alemão de Nietzsche, para a expressão “fingimentos mentirosos” (lügnerische Vorspiegelung, na trad. fr.: faux semblants) e “seduzibilidade” (Verführbarkeit, e na tr. fr.: entraînement).]
65 EH, III, “Assim falou Zaratustra”, 8; “Então quem, fora eu, sabe quem é Ariadne?”66 VP, III, 408.67 VP, III, 458.
categorias fundamentais do pensamento semítico e cristão, nossa maneira de pensar e
de interpretar a existência em geral. Um novo ideal, uma nova interpretação, uma
outra maneira de pensar, são as tarefas a que Nietzsche se propõe68. “Dar à
irresponsabilidade seu sentido positivo”; “Eu quis conquistar o sentimento de uma
plena irresponsabilidade, [25] tornar-me independente do elogio e da reprovação, do
presente e do passado”69. A irresponsabilidade, o mais nobre e mais belo segredo de
Nietzsche.
Relativamente ao cristianismo, os gregos são crianças. O jeito deles
depreciarem a existência, o “niilismo” deles, não tem a perfeição cristã. Eles julgam a
existência culpada, mas não inventaram ainda aquele refinamento que consiste em
julgá-la faltosa e responsável. Quando os gregos falam da existência como criminosa
e “hýbrica”, pensam que os deuses enlouqueceram os homens: a existência é culpada,
mas são os deuses que tomam sobre si a responsabilidade da culpa. É esta a grande
diferença entre a interpretação grega do crime e a interpretação cristã do pecado. É
esta a razão pela qual Nietzsche, na Origem da tragédia, ainda acredita no caráter
criminoso da existência, pois que este crime, pelo menos, não implica a
responsabilidade do criminoso. “A loucura, a desrazão, um pouco de transtorno nos
miolos, eis o que admitiam os gregos da época mais vigorosa e mais valente, para
explicar a origem de muitas coisas aborrecedoras e fatais. Loucura e não pecado!
Apreendeis?... Um deus deve tê-lo deixado cego, dizia para si um grego balançando a
cabeça... Eis o jeito pelo qual os deuses serviam, então, para justificar até certo ponto
os homens; mesmo em suas más ações, eles serviam para interpretar a causa do mal –
naquele tempo, eles não tomavam sobre si o castigo, mas sim, o que é mais nobre, a
culpa”70. Nietzsche, porém, se aperceberá de que esta grande diferença se ameniza
com a reflexão. Quando se firma a existência como culpada, basta um passo para
torná-la responsável, basta uma mudança de sexo, Eva no lugar dos Titãs, uma
mudança nos deuses, um Deus único, ator e justiceiro, no lugar dos deuses
espectadores e “juízes olímpicos”. Que um deus tome sobre si a responsabilidade da
68 GM, III, 23.69 VP, III, 383 e 465.70 GM, II, 23.
loucura que ele inspira aos homens, ou que os homens sejam responsáveis pela
loucura de um Deus que se mete numa cruz, ambas as soluções ainda não são tão
diferentes, embora a primeira seja incomparavelmente mais bela. Na verdade, a
questão não é: a existência culpada é responsável ou não? Mas, a existência é
culpada... ou inocente? Pois então, Dioniso encontrou sua verdade múltipla: a
inocência, a inocência da pluralidade, a inocência do devir e de tudo que é71.
[26]
10) EXISTÊNCIA E INOCÊNCIA
O que significa “inocência?” Quando Nietzsche denuncia nossa deplorável
mania de acusar, de procurar responsáveis fora de nós ou até em nós, ele funda sua
crítica sobre cinco razões, das quais a primeira é que “nada existe fora do todo”72.
Mas a última, mais profunda, é que “não há todo”: “É preciso esmigalhar o universo,
perder o respeito pelo todo”73. A inocência é a verdade do múltiplo. Ela decorre
imediatamente dos princípios da filosofia da força e da vontade. Toda coisa se
entrelaça a uma força capaz de interpretá-la; toda força se entrelaça ao que ela pode,
do qual ela é inseparável. É esta maneira de se entrelaçar, de afirmar e de ser
afirmado, que é particularmente inocente. O que não se deixa interpretar por uma
força, nem avaliar por uma vontade, demanda uma outra vontade capaz de avaliá-lo,
uma outra força capaz de interpretá-lo. Nós, todavia, preferimos salvar a
interpretação que corresponde às nossas forças, e negar a coisa que não corresponde à
nossa interpretação. Para nós mesmos, fazemos da força e da vontade uma
representação grotesca: separamos a força do que ela pode, firmando-a em nós como
71 Portanto, se agruparmos as teses da Origem da Tragédia, que Nietzsche abandonará ou transformará, veremos que são no total de cinco: a) o Dioniso interpretado nas perspectivas da contradição e de sua solução será substituído por um Dioniso afirmativo e múltiplo; b) a antítese Dioniso-Apolo se esfumará em proveito da complementaridade Dioniso-Ariadne; c) a oposição Dioniso-Sócrates será cada vez menos suficiente e preparará a oposição mais profunda Dioniso-Crucificado; d) a concepção dramática da tragédia dará lugar a uma concepção heróica; e) a existência perderá seu caráter ainda criminoso para ganhar um caráter radicalmente inocente.
72 VP, III, 458: “Não se pode julgar o todo, nem medi-lo, nem compará-lo e muito menos negá-lo.”
73 VP, III, 489.
“merecedora”, porque ela se abstém do que ela não pode, mas como “culpada” na
coisa, na qual ela manifesta precisamente a força que tem. Desdobramos a vontade,
inventamos um sujeito neutro, dotado de livre arbítrio, ao qual conferimos o poder de
agir e de se conter74. É esta a nossa situação relativamente à existência: nem mesmo
reconhecemos a vontade capaz de avaliar a terra (de “pesá-la”), nem mesmo a força
capaz de interpretar a existência. Então negamos a própria existência, substituímos a
interpretação pela depreciação, inventamos a depreciação como maneira de
interpretar e de avaliar. “Uma interpretação entre outras naufragou, mas como era tida
como a única interpretação possível, parece que a existência não tem [27] mais
sentido, que tudo é em vão”75. Ai! que somos jogadores ruins. A inocência é o jogo da
existência, da força e da vontade. A existência afirmada e apreciada, a força não
separada, a vontade não desdobrada, eis a primeira aproximação da inocência76.
Heráclito é o pensador trágico. O problema da justiça atravessa sua obra.
Heráclito é aquele para quem a vida é radicalmente inocente e justa. Ele compreende
a existência a partir de um instinto de jogo, faz da existência um fenômeno estético,
não um fenômeno moral ou religioso. Por conseguinte, Nietzsche o opõe, ponto por
ponto, a Anaximandro, como o próprio Nietzsche se opõe a Schopenhauer77. –
Heráclito negou a dualidade dos mundos, “ele negou o próprio ser”. Mais ainda: fez
do devir uma afirmação. Ora, é preciso refletir longamente para compreender o que
significa fazer do devir uma afirmação. Talvez seja dizer, em primeiro lugar: só o que
há é o devir. Talvez isto seja afirmar o devir. Mas afirma-se também o ser do devir,
diz-se que o devir afirma o ser ou que o ser se afirma no devir. Heráclito tem dois
pensamentos, que são como que cifras: um segundo o qual o ser não é, tudo está em
devir; o outro segundo o qual o ser é o ser do devir enquanto tal. Um pensamento
obreiro que afirma o devir, um pensamento contemplativo que afirma o ser do devir.
Estes dois pensamentos não são separáveis, sendo o pensamento de um mesmo
74 GM, I, 13.75 VP, III, 8.76 VP, III, 457-496.77 Para tudo que se segue, a respeito de Heráclito, cf. FG.
[nt: Neste subcapítulo, Deleuze cita o texto A Filosofia na Época Trágica dos Gregos (FG) a partir da tradução de Geneviève Bianquis, que também contém trecho de anotações e planos de cursos de Nietzsche sobre os pré-socráticos, inseridos como notas de rodapé pela tradutora ao longo de sua tradução.]
elemento, como Fogo e como Diké, como Physis e Logosnt. Pois não há ser além do
devir, não há uno além do múltiplo; nem o múltiplo nem o devir são aparências ou
ilusões. Mas tampouco há realidades múltiplas e eternas que seriam, por sua vez,
como que essências para além da aparência. O múltiplo é a manifestação inseparável,
a metamorfose essencial, o sintoma constante do único. O múltiplo é a afirmação do
uno; o devir, a afirmação do ser. A própria afirmação do devir é o ser, a própria
afirmação do múltiplo é o uno, a afirmação múltipla é a maneira pela qual o uno se
afirma. “O uno é o múltiplo”. E, com efeito, como o múltiplo sairia do uno, e
continuaria saindo dele após uma eternidade de tempo, se o uno justamente não se
afirmasse no múltiplo? “Se Heráclito percebe apenas um elemento único, é portanto
num sentido diametralmente oposto ao de Parmênides (ou de Anaximandro)... O
único deve se afirmar na geração [28] e na destruição”nt. Heráclito enxergou
profundamente: não viu nenhum castigo do múltiplo, nenhuma expiação do devir,
nenhuma culpabilidade da existência. Nada viu de negativo no devir, muito pelo
contrário: viu a dupla afirmação do devir e do ser do devir; em suma, a justificação
do ser. Heráclito é o obscuro porque nos conduz às portas do obscuro: qual é o ser do
devir? Qual é o ser inseparável do que está em devir? Revir é o ser do que devém.
Revir é o ser do próprio devir, o ser que se afirma no devir. O eterno retorno como lei
do devir, como justiça e como ser78.
Disto se segue que a existência nada tem de responsável, nem mesmo de
culpada. “Heráclito chegou até a gritar: a luta dos seres inumeráveis é pura justiça,
apenas! E, aliás, o uno é o múltiplo”. A correlação do múltiplo e do uno, do devir e do
ser forma um jogo. Afirmar o devir, afirmar o ser do devir são os dois tempos de um
jogo, que se compõem com um terceiro termo, o jogador, o artista ou a criança79. O
n t [Diké (em grego Δίκη) pode ser traduzido como ordem ou justiça; Physis (Φύσις) como natureza; e Logos (Λόγος) como razão, raciocínio ou pensamento.]n t [Citação das notas de rodapé da trad. de Bianquis. – O que está entre parênteses, “(ou
de Anaximandro)”, é um acréscimo de Deleuze.]78 Nietzsche fornece nuanças à sua interpretação. Por um lado, Heráclito não se desprendeu
completamente das perspectivas do castigo e da culpabilidade (cf. sua teoria da combustão total pelo fogo). Por outro lado, ele apenas pressentiu o verdadeiro sentido do eterno retorno. Eis por que Nietzsche, em FG, só fala do eterno retorno em Heráclito por alusões; e, em EH (III, “A origem da tragédia”), seu julgamento não se dá sem reticências.
79 FG: “A Diké ou gnóme imanente; o Pôlemos que é seu lugar, o conjunto visto como um jogo; e julgando o todo, o artista criador, ele próprio idêntico à sua obra”.[nt: Citação das notas de rodapé da trad. de Bianquis. – Em grego, γνώμη (gnóme), traduzível
jogador-artista-criança, Zeus-criança: Dioniso, que o mito nos apresenta rodeado por
seus brinquedos divinos. O jogador se abandona temporariamente à vida, e
temporariamente fixa seu olhar sobre ela; o artista se coloca temporariamente em sua
obra, e temporariamente acima de sua obra; a criança brinca, retira-se da brincadeira
e volta a ela. Ora, é igualmente o ser do devir que joga este jogo do devir consigo
mesmo: o Aión, diz Heráclito, é uma criança que brinca, que brinca de chinquilhont. O
ser do devir, o eterno retorno, é o segundo tempo do jogo, mas também o terceiro
termo idêntico aos dois tempos e que vale pelo conjunto. Isto porque o eterno retorno
é o retorno distinto do ir, a contemplação distinta da ação, mas também o retorno do
próprio ir e o retorno da ação: de uma só vez, momento e ciclo do tempo. Devemos
compreender o segredo da interpretação de Heráclito: à hybris ele opõe o instinto de
jogo. “Não é um orgulho culpado, é o instinto do jogo incessantemente despertado,
que traz novos mundos à tona.” Não uma teodicéia, mas uma cosmodicéia; [29] não
uma soma de injustiças a serem expiadas, mas a justiça como lei deste mundo; não a
hybris, mas o jogo, a inocência. “Essa perigosa palavra, a hybris, é a pedra de toque
de todo heracliteano. É aí que ele pode mostrar se compreendeu ou ignorou seu
mestre”.
11) O LANCE DE DADOS
O jogo tem dois momentos, que são os de um lance de dados: os dados que se
lança e os dados que caem. Nietzsche chega a apresentar o lance de dados como
sendo jogado sobre duas mesas distintas, a terra e o céu. A terra onde se lança os
dados, os céus onde caem os dados: “Se alguma vez joguei dados com os deuses, na
mesa divina da terra, de sorte que a terra tremesse e se quebrasse, e projetasse rios de
chamas: pois a terra é uma mesa divina, estremecendo com novas palavras criadoras
e com um ruído de dados divinos...”80 – “Ó céu acima de mim, céu puro e alto! Para
mim é esta agora a tua pureza, que não existe nenhuma eterna aranha, nem teia de
por “mente”, e Πόλεμος (Pôlemos), por “Guerra”.]n t [Aión (em grego Αἰών) tem múltiplos significados: “um longo período de tempo”, “o tempo de uma vida”, “eternidade”...]80 Z, III, “Os sete selos”.
aranha da razão: que tu sejas um tablado onde dançam os acasos divinos, que tu sejas
uma mesa divina para os dados e os jogadores divinos...”81 Mas essas duas mesas não
são dois mundos. São as duas horas de um mesmo mundo, os dois momentos do
mesmo mundo, meia-noite e meio-dia, a hora em que se lança os dados, a hora em
que os dados caem. Nietzsche insiste nas duas mesas da vida, que são também os dois
tempos do jogador ou do artista: “Abandonar-nos temporariamente à vida, para em
seguida fixarmos temporariamente o olhar sobre ela”. O lance de dados afirma o
devir e afirma o ser do devir.
Não se trata de vários lances de dados que, em razão de seu número, chegariam
a reproduzir a mesma combinação. Muito pelo contrário: trata-se de um só lance de
dados que, em razão do número da combinação produzida, chega a reproduzir-se
como tal. Não é um grande número de lances que produz a repetição de uma
combinação, é o número da combinação que produz a repetição do lance de dados.
Os dados que se lança uma vez são a afirmação do acaso, a combinação que eles
formam ao tombarem é a afirmação da necessidade. A necessidade se afirma do
acaso, no sentido exato em que o ser se afirma do devir e o uno, do múltiplo. Em vão
se dirá que os dados, lançados ao acaso, não produzem necessariamente a
combinação vitoriosa, [30] o doze que restaura o lance de dados. É verdade, mas
apenas na medida em que o jogador não soube, primeiramente, afirmar o acaso. Isto
porque, assim como o uno não suprime ou nega o múltiplo, a necessidade não
suprime ou abole o acaso. Nietzsche identifica o acaso ao múltiplo, aos fragmentos,
aos membros, ao caos: caos dos dados que se choca e se lança. Nietzsche faz do acaso
uma afirmação. O próprio céu é chamado de “céu acaso”, “céu inocência”82; o reino
de Zaratustra é chamado de “grande acaso”83. “Por acaso, aí esta a mais antiga
nobreza do mundo, eu a restituí a todas as coisas, eu as libertei da servidão da meta...
Encontrei em todas as coisas esta certeza bem-aventurada, a saber, que elas preferem
dançar sobre os pés do acaso”; “Minha palavra é: deixem o acaso vir até mim, ele é
81 Z, III, “Antes do nascer do sol”.82 Z, III, “Antes do nascer do sol”.83 Z, IV, “A oferenda do mel”. – E III, “Das velhas e das novas tábuas”: Zaratustra se nomeia
“redentor do acaso”.
inocente como uma criancinha”84. O que Nietzsche chama de necessidade (destino)
nunca é, portanto, a abolição, e sim a combinação do próprio acaso. A necessidade se
afirma do acaso contanto que o próprio acaso seja afirmado. Pois há apenas uma
única combinação do acaso enquanto tal, um único jeito de combinar todos os
membros do acaso, jeito que é como o uno do múltiplo, ou seja, número ou
necessidade. Há muitos números segundo probabilidades crescentes ou decrescentes,
mas um só número do acaso enquanto tal, um só número fatal que reúna todos os
fragmentos do acaso, como meio-dia ajunta todos os membros esparsos de meia-
noite. Eis por que basta ao jogador afirmar o acaso uma vez, para produzir o número
que restaura o lance de dados85.
Saber afirmar o acaso é saber jogar. Mas não sabemos jogar: “Tímido,
envergonhado, desajeitado, semelhante a um tigre que errou seu bote: é assim, ó
homens superiores, que eu freqüentemente vos vi deslizardes à parte. Havíeis errado
um lance de dados. Mas que vos importa, a vós jogadores de dados! Vós não
aprendestes a jogar e a desafiar como se deve [31] jogar e desafiar”86. O mau jogador
conta com vários lances de dados, com um grande número de lances: assim ele dispõe
da causalidade e da probabilidade para tirar uma combinação que declara cobiçável;
ele firma esta combinação como uma meta a ser obtida, oculta atrás da causalidade. É
isso que Nietzsche quer dizer quando fala da eterna aranha, da teia de aranha da
razão. “Uma espécie de aranha de imperativo e de finalidade que se oculta atrás da
grande teia, a grande tarrafa da causalidade – poderíamos dizer como Carlos o
Temerário, em luta com Luís XI: “Eu combato a aranha universal”87. Abolir o acaso
pegando-o com a pinça da causalidade e da finalidade; em vez de afirmar o acaso,
contar com a repetição dos lances; em vez de afirmar a necessidade, esperar por uma
84 Z, III, “Antes do nascer do sol” e “No monte das oliveiras”.85 Não se acreditará, portanto, que o acaso, segundo Nietzsche, seja negado pela necessidade.
Numa operação como a transmutação, um tanto de coisas são negadas ou abolidas: por exemplo, o espírito de pesadume é negado pela dança. A fórmula geral de Nietzsche a este respeito é a seguinte: É negado tudo aquilo que pode ser negado (ou seja, o próprio negativo, o niilismo e suas expressões). Mas o acaso não é, como o espírito de pesadume, uma expressão do niilismo; ele é objeto de afirmação pura. Há na própria transmutação uma correlação de afirmações: acaso e necessidade, devir e ser, múltiplo e uno. Não se confundirá o que é afirmado correlativamente com o que é negado ou suprimido pela transmutação.
86 Z, IV, “Do homem superior”.87 GM, III, 9.
meta: eis aí todas as operações do mau jogador. Elas têm sua raiz na razão, mas qual é
a raiz da razão? O espírito de vingança, nada além do espírito de vingança, a
aranha!88 O ressentimento na repetição dos lances, a má consciência na crença numa
meta. Mas assim só serão obtidos números relativos mais ou menos prováveis. Que o
universo não tenha meta, que não exista meta a ser esperada tampouco causas a serem
conhecidas, é esta a certeza para jogar bem89. Desperdiça-se o lance de dados porque
não se afirmou suficientemente, de uma vez, o acaso. Não se lhe afirmou o bastante
para que se produzisse o número fatal que reúne necessariamente todos os seus
fragmentos e que, necessariamente, restaura o lance de dados. Devemos, portanto,
fixar a maior importância à seguinte conclusão: o par causalidade-finalidade,
probabilidade-finalidade, a oposição e a síntese desses termos, a teia desses termos,
são substituídos por Nietzsche pela correlação dionisíaca acaso-necessidade, pelo par
dionisíaco acaso-destino. Não uma probabilidade repartida em muitas vezes, mas
todo o acaso de uma vez; não uma combinação final desejada, querida, cobiçada, mas
a combinação fatal, fatal e amada, o amor fati; não o retorno de uma combinação pelo
número dos lances, mas a repetição do lance de dados pela natureza do número
obtido fatalmente90.
[32]
12) CONSEQÜÊNCIAS PARA O ETERNO RETORNO
Quando os dados lançados afirmam uma vez o acaso, os dados que caem
afirmam necessariamente o número ou o destino que restaura o lance de dados. É
88 Z, II, “Das tarântulas”.89 VP, III, 465.90 Em dois textos da Vontade de Potência, ocorre a Nietzsche apresentar o eterno retorno na
perspectiva das probabilidades e como que se deduzindo de um grande número de lances: “Caso se suponha uma massa enorme de casos, a repetição fortuita de um mesmo lance de dados será mais provável do que uma não-identidade absoluta” (VP, II, 324); o mundo sendo firmado como grandeza de força definida, e o tempo como meio infinito, “toda combinação possível seria realizada ao menos uma vez, mais ainda, seria realizada um número infinito de vezes” (VP, II, 329). – Porém, 1º) Esses textos dão uma exposição apenas “hipotética” do eterno retorno; 2º) Eles são “apologéticos”, num sentido bastante vizinho daquele que às vezes se concedeu à aposta de Pascal. Trata-se de tomar ao pé da letra o mecanicismo, mostrando que ele desemboca numa conclusão que “não é necessariamente mecanicista”; 3º) Eles são “polêmicos”: de uma maneira agressiva, trata-se de vencer o mau jogador em seu próprio terreno.
neste sentido que o segundo tempo do jogo é igualmente o conjunto dos dois tempos
ou o jogador que vale pelo conjunto. O eterno retorno é o segundo tempo, o resultado
do lance de dados, a afirmação da necessidade, o número que reúne todos os
membros do acaso, mas também o retorno do primeiro tempo, a repetição do lance de
dados, a reprodução e a re-afirmação do próprio acaso. O destino no eterno retorno é
também a “boavinda” do acaso: “Faço ferver em minha panela tudo o que é acaso. E
somente quando o acaso está no ponto é que lhe desejo boas-vindas para fazer dele
minha alimentação. E, na verdade, mais de um acaso aproximou-se de mim como
senhor: mas minha vontade lhe falou mais imperiosamente ainda, e logo ele estava de
joelhos diante de mim e me suplicava – me suplicava que lhe desse asilo e acolhida
cordial, e me falava de uma maneira lisonjeira: veja então, Zaratustra, só um amigo
para vir assim à casa de um amigo”91. Isto quer dizer: Existem certamente fragmentos
do acaso, que pretendem valer por si mesmos; eles apelam para sua probabilidade,
cada qual solicita do jogador vários lances de dados; repartidos em vários lances,
tendo devindo simples probabilidades, os fragmentos do acaso são escravos que
querem falar como senhores92; mas Zaratustra sabe que não é assim que se deve jogar,
nem se deixar jogar; é preciso, ao contrário, afirmar todo o acaso de uma vez (fazer,
portanto, com que ele ferva e cozinhe como o jogador que esquenta os dados em sua
mão), para reunir todos os seus fragmentos e para afirmar o número que não é
provável, mas fatal e necessário; somente então o acaso é um amigo que vem ver seu
amigo, e que este faz voltar, um amigo do destino cujo próprio destino assegura o
eterno retorno enquanto tal.
[33] Num texto mais obscuro, carregado de significação histórica, Nietzsche
escreve: “O caos universal, que exclui toda atividade de caráter finalista, não é
contraditório com a idéia do ciclo; pois esta idéia é tão-somente uma necessidade
irracional”93. Isto quer dizer: amiúde se combinou o caos e o ciclo, o devir e o eterno
retorno, mas como se pusessem em jogo dois termos opostos. Assim, para Platão, o
próprio devir é um devir ilimitado, um devir louco, um devir hýbrico e culpado que, 91 Z, III, “Da virtude que apequena”.92 É somente neste sentido que Nietzsche fala dos “fragmentos” como de “acasos
aterrorizantes”: Z, II, “Da redenção”.93 VP, II, 326.
para ser colocado em círculo, precisa sofrer a ação de um demiurgo que o envergue
pela força, que lhe imponha o limite ou o modelo da idéia: eis que o devir ou o caos
são rejeitados pro lado de uma causalidade mecânica obscura, e o ciclo é vinculado a
uma espécie de finalidade que se impõe de fora; o caos não subsiste no ciclo, o ciclo
exprime a submissão forçada do devir a uma lei que não é a sua. Heráclito era talvez
o único, mesmo entre os pré-socráticos, que sabia que o devir não é “julgado”, que
ele não pode ser e não é para ser julgado, que ele não recebe sua lei dalhures, que é
“justo” e possui em si mesmo sua própria lei94. Só Heráclito pressentiu que o caos e o
ciclo em nada se opunham. E, na verdade, basta afirmar o caos (acaso e não
causalidade) para afirmar, no mesmo lance, o número ou a necessidade que o restaura
(necessidade irracional e não finalidade). “Não houve inicialmente um caos, depois
pouco a pouco um movimento regular e circular de todas as formas: tudo isso, ao
contrário, é eterno, subtraído do devir; se alguma vez houve um caos das forças, é
que o caos era eterno e reapareceu em todos os ciclos. O movimento circular não
deveio, ele é a lei original, assim como a massa de força é a lei original sem exceção,
sem infração possível. Todo devir se passa no interior do ciclo e da massa de força”95.
Compreende-se que Nietzsche não reconheça de modo algum sua idéia do eterno
retorno em seus antigos predecessores. Estes não viam no eterno retorno o ser do
devir enquanto tal, o uno do múltiplo, ou seja, o número necessário, oriundo
necessariamente de todo o acaso. Viam nele até mesmo o contrário: uma submissão
do devir, uma confissão de sua injustiça e a expiação dessa injustiça. Salvo Heráclito,
talvez, eles não tinham visto “a presença da lei no devir e do jogo na necessidade”96.
[34]
13) SIMBOLISMO DE NIETZSCHE
Quando os dados são lançados sobre a mesa da terra, esta “estremece e se
quebra”, pois o lance de dados é a afirmação múltipla, a afirmação do múltiplo. Mas
todos os membros, todos os fragmentos são lançados de um golpe: todo o acaso de
94 FG.95 VP, II, 325 (movimento circular = ciclo, massa de força = caos).96 FG.
uma vez. Essa potência, não de suprimir o múltiplo, mas de afirmá-lo de uma vez, é
como o fogo: o fogo é o elemento que joga, o elemento das metamorfoses que não
tem contrário. A terra que se quebra sob os dados projeta, então, “rios de chama”.
Como diz Zaratustra, o múltiplo, o acaso só são bons quando cozidos e fervidos.
Fazer ferver, pôr no fogo, não significa abolir o acaso, nem achar o uno por detrás do
múltiplo. Ao contrário: a ebulição na panela é como que o choque de dados na mão
do jogador, o único meio de fazer do múltiplo ou do acaso uma afirmação. Então os
dados lançados formam o número que restaura o lance de dados. Restaurando o lance
de dados, o número põe o acaso de volta ao fogo, mantém o fogo que torna a cozinhar
o acaso. É que o número é o ser, o uno e a necessidade, mas o uno que se afirma do
múltiplo enquanto tal, o ser que se afirma do devir enquanto tal, o destino que se
afirma do acaso enquanto tal. O número está presente no acaso como o ser e a lei
estão presentes no devir. E este número presente que mantém o fogo, este uno que se
afirma do múltiplo quando o múltiplo é afirmado, é a estrela dançante, ou melhor, a
constelação oriunda do lance de dados. A fórmula do jogo é a seguinte: gerar uma
estrela dançante com o caos que se traz em si97. E quando Nietzsche se interrogar
sobre as razões que o levaram a escolher o personagem de Zaratustra, encontrará três,
bem diversas e de valor desigual. A primeira é Zaratustra como profeta do eterno
retorno98; mas Zaratustra não é o único profeta, nem mesmo aquele que melhor
pressentiu a verdadeira natureza do que ele anunciava. A segunda razão é polêmica:
Zaratustra foi o primeiro a introduzir a moral na metafísica, ele fez da moral uma
força, uma causa, uma meta por excelência; portanto, é ele quem está melhor
colocado para denunciar a mistificação, o erro dessa mesma moral99. (Mas uma razão
análoga valeria para Cristo: quem, melhor que Cristo, está apto para desempenhar o
papel do anticristo... e de Zaratustra [35] em pessoa?100 A terceira razão, retrospectiva
porém única suficiente, é a bela razão do acaso: “Hoje aprendi por acaso o que
significa Zaratustra, a saber, estrela de ouro. Este acaso me encanta”101.
97 Z, Prólogo, 5.98 VP, IV, 155.99 EH, IV, 3.100 Z, I, “Da morte voluntária”: “Acreditai-me, irmãos! Ele morreu cedo demais; ele próprio teria
retratado sua doutrina se tivesse atingido minha idade!”101 Carta a Gast, 20 de maio de 1883.
Esse jogo de imagens caos-fogo-constelação ajunta todos os elementos do mito
de Dioniso. Ou melhor, essas imagens formam o jogo propriamente dionisíaco. Os
brinquedos de Dioniso criança; a afirmação múltipla e os membros ou fragmentos de
Dioniso lacerado; o cozimento de Dioniso ou o uno se afirmando do múltiplo; a
constelação portada por Dioniso, Ariadne no Céu como estrela dançante; o retorno de
Dioniso, Dioniso “senhor do eterno retorno”. Teremos, por outro lado, a oportunidade
de ver como Nietzsche concebia a ciência física, a energética e a termodinâmica de
seu tempo. É claro, desde agora, que ele sonha com uma máquina de fogo bem
diferente da máquina a vapor. Nietzsche tem uma certa concepção da física, mas
nenhuma ambição de físico. Ele se concede ao direito poético e filosófico de sonhar
com máquinas que a ciência, talvez um dia, seja levada a realizar por seus próprios
meios. A máquina de afirmar o acaso, de cozinhar o acaso, de compor o número que
restaura o lance de dados, a máquina de desencadear forças imensas a partir de
pequenas solicitações múltiplas, a máquina de brincar com os astros; em suma, a
máquina de fogo heracliteana102.
Mas nunca um jogo de imagens substituiu, para Nietzsche, um jogo mais
profundo, o dos conceitos e do pensamento filosófico. O poema e o aforisma são as
duas expressões imagéticas de Nietzsche; mas essas expressões estão num vínculo
determinável com a filosofia. Um aforisma considerado formalmente se apresenta
como um fragmento; ele é a forma do pensamento pluralista; e, em seu conteúdo, ele
pretende dizer e formular um sentido. O sentido de um ser, de uma ação, de uma
coisa, é este o objeto do aforisma. Apesar de sua admiração pelos autores de
máximas, Nietzsche vê bem o que falta à máxima como gênero: ela só está apta a
descobrir móveis, eis por que ela só incide, em geral, sobre os fenômenos [36]
humanos. Ora, para Nietzsche, mesmo os móveis mais secretos não são apenas um
aspecto antropomórfico das coisas, mas um aspecto superficial da atividade humana.
[nt: De acordo com a edição Collio-Montinari da correspondência de Nietzsche, esta carta foi escrita em Gênova, a 23 de abril de 1883.]
102 VP, II, 38 (sobre a máquina a vapor); 50, 60, 61 (sobre os desencadeamentos das forças: “O homem testemunha forças inauditas que podem ser postas em ação por um pequeno ser de natureza compósita... Seres que brincam com os astros”; “No interior da molécula, produzem-se explosões, mudanças de direção de todos os átomos e súbitos desencadeamentos de força. Todo nosso sistema solar poderia, num único e breve instante, sentir uma excitação comparável à que o nervo exerce sobre o músculo”).
Só o aforisma é capaz de dizer o sentido, o aforisma é a interpretação e a arte de
interpretar. Outrossim, o poema é a avaliação e a arte de avaliar: ele diz os valores.
Mas, precisamente, o valor e o sentido de noções tão complexas, que o próprio poema
deve ser avaliado e o aforisma, interpretado. O poema e o aforisma são, por sua vez,
objeto de uma interpretação, de uma avaliação. “Um aforisma, cuja fundição e
cunhagem são o que devem ser, não está decifrado só porque foi lido; para isso ainda
falta muito, pois a interpretação apenas começou”103. É que, do ponto de vista
pluralista, um sentido remete ao elemento diferencial de onde deriva sua significação,
assim como os valores remetem ao elemento diferencial de onde deriva seu valor.
Esse elemento, sempre presente, mas também sempre implícito e oculto no poema ou
no aforisma, é como que a segunda dimensão do sentido e dos valores. É
desenvolvendo esse elemento, e desenvolvendo-se nele, que a filosofia, em seu
entrelace essencial com o poema e com o aforisma, constitui a interpretação e a
avaliação completas, ou seja, a arte de pensar, a faculdade de pensar superior, ou
“faculdade de ruminar”104. Ruminação e eterno retorno: dois estômagos não são
demais para pensar. Existem duas dimensões da interpretação ou da avaliação, sendo
a segunda também o retorno da primeira, o retorno do aforisma ou o ciclo do poema.
Todo aforisma deve, portanto, ser lido duas vezes. Com o lance de dados começa a
interpretação do eterno retorno, mas ela apenas começa. É preciso ainda interpretar o
próprio lance de dados, ao mesmo tempo que ele revém.
14) NIETZSCHE E MALLARMÉ
Não se poderia exagerar as semelhanças primordiais entre Nietzzche e
Mallarmé105. Elas incidem sobre quatro pontos principais e põem em jogo todo o
aparelho das imagens: 1º) Pensar é emitir um lance de dados. Só um lance de dados, a
partir do acaso, poderia afirmar a necessidade e produzir “o único número que não
pode ser outro”. Trata-se de um só lance [37] de dados, não de um êxito em vários 103 GM, Prefácio, 8.104 GM, Prefácio, 8.105 THIBAUDET, em La poésie de Stéphane Mallarmé (p. 424), assinala esta semelhança. Ele
exclui, com justa razão, toda influência de um sobre o outro.
lances: só a combinação, vitoriosa em uma vez, pode garantir o retorno do lançar106.
Os dados lançados são como o mar e as ondas (mas Nietzsche diria: como a terra e o
fogo). Os dados que retombam são uma constelação, seus pontos formam o número
“êxito estelar”nt. A mesa do lance de dados é portanto dupla, mar do acaso e céu da
necessidade, meianoite-meiodia. Meianoite, a hora em que se lança os dados...; 2º) O
homem não sabe jogar. Mesmo o homem superior é impotente para emitir o lance de
dados. O mestre está velho, não sabe lançar os dados sobre o mar e no céu. O velho
mestre é “uma ponte”, algo que deve ser ultrapassado. Uma “sombra pueril”, pluma
ou asa, fixa-se no gorro de um adolescente, “estatura miúda, tenebrosa e de pé em sua
torsão de sereia”, apta a retomar o lance de dados. Seria o equivalente de Dioniso-
criança, ou mesmo das crianças das ilhas bem-aventuradas, crianças de Zaratustra?
Mallarmé apresenta Igitur criança invocando seus ancestrais, que não são o homem,
mas os Elohim: raça que foi pura, que “tirou do absoluto sua pureza, para sê-lo, e
deixar apenas uma idéia, ela própria desembocando na necessidade”nt; 3º) Não só o
lançar dos dados é um ato insensato e irracional, absurdo e sobrehumano, mas
constitui a tentativa trágica e o pensamento trágico por excelência. A idéia
mallarméana do teatro, as célebres correspondências e equações entre “drama”,
“mistério”, “hino”, “herói”, dão testemunho de uma reflexão aparentemente
comparável à da Origem da tragédia, quando mais não seja pela sombra eficaz de
Wagner como predecessor comum; 4º) O número-constelação é, ou seria, também o
livro, a obra de arte, como acabamento e justificação do mundo. (Nietzsche escrevia,
a propósito da justificação estética da existência: observa-se no artista “como a
106 O próprio Thibaudet, numa página estranha (433), observa que o lance de dados, segundo Mallarmé, se faz de uma vez; mas parece lamentá-lo, achando mais claro o princípio de vários lances de dados: “Duvido muito que o desenvolvimento de sua meditação tê-lo-ia levado a escrever um poema sobre esse tema: vários lances de dados abolem o acaso. Isto, no entanto, é certo e claro. Que seja lembrada a lei dos grandes números...” – É claro, sobretudo, que a lei dos grandes números não introduziria nenhum desenvolvimento da meditação, mas somente um contrassenso. J. Hyppolite tem uma visão mais profunda quando aproxima o lance de dados mallarméano, não da lei dos grandes números, mas da máquina cibernética (cf. Études philosophiques, 1958). A mesma aproximação valeria para Nietzsche, de acordo com o que precede.
n t [Nas próximas linhas, Deleuze cita palavras e frases do poema Un coup de dés jamais n'abolira le hasard, de Mallarmé, para o qual se consultou a tradução de Haroldo de Campos, todavia não se valendo fielmente dela, Um relance de dados (Mallarmé, 3ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1991).]n t [Trata-se do poema em prosa Igitur ou la folie d'Elbehnon (Igitur ou a loucura de Elbehnon), 1925.]
necessidade e o jogo, o conflito e a harmonia se casam para engendrar a obra de
arte”107). Ora, o número fatal e sideral restaura o lance de dados de tal modo que o
livro é, de uma vez só, único e móvel. [38] A multiplicidade dos sentidos e das
interpretações é explicitamente afirmada por Mallarmé; mas ela é o correlativo de
uma outra afirmação, a da unidade do livro ou do texto “incorruptível como a lei”. O
livro é o ciclo e a lei presente no devir.
Por mais precisas que sejam, essas semelhanças permanecem superficiais. É
que Mallarmé sempre concebeu a necessidade como a abolição do acaso. Mallarmé
concebe o lance de dados de tal maneira que o acaso e a necessidade se opõem como
dois termos, sendo que o segundo deve negar o primeiro, e o primeiro pode apenas
deixar o segundo em xeque. O lance de dados só tem êxito se o acaso for anulado; ele
fracassa precisamente porque o acaso subsiste de alguma maneira: “Pelo simples fato
de se realizar, (a ação humana) toma do acaso os seus meios”. Eis por que o número
resultante do lance de dados é ainda acaso. Amiúde se observou que o poema de
Mallarmé se insere no velho pensamento metafísico de uma dualidade dos mundos; o
acaso é como que a existência que deve ser negada, a necessidade, como que o
caráter da idéia pura ou da essência eterna. De modo que a última esperança do lance
de dados é achar seu modelo inteligível no outro mundo, uma constelação assumindo-
o por conta própria “sobre alguma superfície vacante e superior” onde não exista o
acaso. Finalmente, a constelação é menos o produto do lance de dados do que sua
passagem ao limite ou num outro mundo. Não se perguntará que aspecto prepondera
em Mallarmé, se a depreciação da vida ou a exaltação do inteligível. Numa
perspectiva nietzscheana, esses dois aspectos são inseparáveis e constituem o próprio
“niilismo”, ou seja, a maneira pela qual a vida é acusada, julgada e condenada. Todo
resto decorre disso; a raça de Igitur não é o superhomem, mas uma emanação do
outro mundo. A estatura miúda não é a das crianças das ilhas bem-aventuradas, mas a
de Hamlet “príncipe amargo do escolho”, do qual Mallarmé diz alhures: “senhor
latente que não pode devir”. Herodíade não é Ariadne, mas a fria criatura do
ressentimento e da má consciência, o espírito que nega a vida, perdido em suas
107 FG.
amargas reprimendas à Ama. A obra de arte em Mallarmé é “justa”, mas sua justiça
não é a da existência, é ainda uma justiça acusatória que nega a vida, que supõe seu
fracasso e sua impotência108. Até o ateísmo de Mallarmé é um curioso ateísmo, [39]
indo buscar na missa um modelo do teatro sonhado: a missa, não o mistério de
Dioniso... Na verdade, raramente se levou tão longe, em todas as direções, a eterna
empreitada de depreciar a vida. Mallarmé é o lance de dados, mas revisto pelo
niilismo, interpretado nas perspectivas da má consciência ou do ressentimento. Ora, o
lance de dados não é mais nada, destacado de seu contexto afirmativo e apreciativo,
destacado da inocência e da afirmação do acaso. O lance de dados não é mais nada se
nele se opõe o acaso e a necessidade.
15) O PENSAMENTO TRÁGICO
Será que é apenas uma diferença psicológica? Uma diferença de humor ou de
tom? Devemos firmar um princípio do qual depende a filosofia de Nietzsche em
geral: o ressentimento, a má consciência &c., não são determinações psicológicas.
Nietzsche chama de niilismo a empreitada de negar a vida, de depreciar a existência;
ele analisa as formas principais do niilismo, ressentimento, má consciência, ideal
ascético; ele nomeia espírito de vingança o conjunto do niilismo e de suas formas.
Ora, o niilismo e suas formas não se reduzem absolutamente a determinações
psicológicas, tampouco a acontecimentos históricos ou a correntes ideológicas, e
muito menos a estruturas metafísicas109. Talvez o espírito de vingança se exprima
biologicamente, psicologicamente, historicamente e metafisicamente; o espírito de
vingança é um tipo, não é separável de uma tipologia, peça matriz da filosofia
nietzscheana. Mas todo problema é: qual o caráter dessa tipologia? Longe de ser um
traço psicológico, o espírito de vingança é o princípio do qual depende nossa
108 Quando Nietzsche falava da “justificação estética da existência”, tratava-se, ao contrário, da arte como “estimulante da vida”: a arte afirma a vida, a vida se afirma na arte.
109 Heidegger insistiu nesses pontos. Por exemplo: “O niilismo move a história à maneira de um processo fundamental, quase não reconhecido no destino dos povos do Ocidente. O niilismo não é, portanto, um fenômeno histórico dentre outros, ou uma corrente espiritual que, no quadro da história ocidental, encontra-se ao lado de outras correntes espirituais...” (HOLZWEGE: “Le mot de Nietzsche Dieu est mort”, tr. fr., Arguments, nº 15).
psicologia. Não é o ressentimento que é da psicologia, mas toda nossa psicologia que
é, sem saber, a do ressentimento. Outrossim, quando Nietzsche mostra que o
cristianismo está cheio de ressentimento e de má consciência, não está fazendo do
niilismo um acontecimento histórico, mas antes o elemento da história enquanto tal,
[40] o motor da história universal, o famoso “sentido histórico”, ou “sentido da
história”, que encontra no cristianismo, num certo momento, sua manifestação mais
adequada. E quando Nietzsche conduz a crítica da metafísica, ele faz do niilismo o
pressuposto de toda metafísica, não a expressão de uma metafísica particular: não há
metafísica que não julgue nem deprecie a existência em nome de um mundo supra-
sensível. Nem mesmo se dirá que o niilismo e suas formas sejam categorias do
pensamento; pois as próprias categorias do pensamento, como pensamento racional, a
identidade, a causalidade, a finalidade, supõem uma interpretação da força que é a do
ressentimento. Por todas essas razões, Nietzsche pode dizer: “O instinto da vingança
apoderou-se de tal modo da humanidade, no curso dos séculos, que toda a metafísica,
a psicologia, a história e sobretudo a moral, trazem sua marca. Desde que o homem
pensa, ele introduziu nas coisas o bacilo da vingança”110. Devemos compreender: o
instinto de vingança é a força que constitui a essência do que chamamos de
psicologia, história, metafísica e moral. O espírito de vingança é o elemento
genealógico de nosso pensamento, o princípio transcendental de nossa maneira de
pensar. A luta de Nietzsche contra o niilismo e o espírito de vingança significará,
portanto, reversão da metafísica, fim da história como história do homem,
transformação das ciências. E, pra dizer a verdade, nem mesmo sabemos o que seria
um homem despojado de ressentimento. Um homem que não acusasse nem
depreciasse a existência, seria ainda um homem, ainda pensaria como um homem? Já
não seria outra coisa que não o homem, quase o superhomem? Ter ressentimento, não
tê-lo: não há diferença maior que essa, para além da psicologia, para além da história,
para além da metafísica. É a verdadeira diferença ou tipologia transcendental – a
diferença genealógica e hierárquica.
Nietzsche apresenta o objetivo de sua filosofia: liberar o pensamento do
110 VP, III, 458.
niilismo e de suas formas. Ora, isto implica uma nova maneira de pensar, uma
reviravolta no princípio do qual depende o pensamento, um reendireitamento do
próprio princípio genealógico, uma “transmutação”. Desde há muito, não paramos de
pensar em termos de ressentimento e de má consciência. Não tivemos outro ideal
além do ideal ascético. Opusemos o conhecimento à vida, para julgar a vida, para
fazer dela algo culpado, responsável e errado. [41] Fizemos da vontade uma coisa
ruim, marcada por uma contradição original: dizíamos que era preciso retificá-la,
refreá-la, limitá-la e até negá-la, suprimi-la. Ela só era boa a este preço. Não há
filósofo que, ao descobrir aqui ou ali a essência da vontade, não tenha gemido sobre
sua própria descoberta e, como o adivinho assustadiço, não tenha enxergado nisto, de
uma só vez, o mau presságio para o porvir e a fonte dos males no passado.
Schopenhauer leva às extremas conseqüências esta velha concepção: o cativeiro da
vontade, diz ele, e a roda de Ixião. Nietzsche é o único que não geme sobre a
descoberta da vontade, que não tenta conjurá-la, nem limitar seu efeito. “Nova
maneira de pensar” significa: um pensamento afirmativo, um pensamento que afirma
a vida e a vontade na vida, um pensamento que expulsa, enfim, todo o negativo.
Acreditar na inocência do porvir e do passado, acreditar no eterno retorno. Nem a
existência é firmada como culpada, nem a vontade se sente culpada de existir: é o que
Nietzsche chama sua alegre mensagem. “Vontade, é assim que se chama o liberador e
o mensageiro da alegria”111. A alegre mensagem é o pensamento trágico; pois o
trágico não está nas recriminações do ressentimento, nos conflitos da má consciência,
nem nas contradições de uma vontade que se sente culpada e responsável. O trágico
nem mesmo está na luta contra o ressentimento, a má consciência ou o niilismo.
Nunca se compreendeu, segundo Nietzsche, o que era o trágico: trágico=alegre.
Outro jeito de colocar a grande equação: querer=criar. Não se compreendeu que o
trágico era positividade pura e múltipla, jovialidade dinâmica. Trágica é a afirmação:
porque ela afirma o acaso e, do acaso, a necessidade; porque ela afirma o devir e, do
devir, o ser; porque ela afirma o múltiplo e, do múltiplo, o uno. Trágico é o lance de
dados. Todo resto é niilismo, pathos dialético e cristão, caricatura do trágico, comédia 111 Z, II, “Da redenção”. – EH, IV, 1: “Sou o contrário de um espírito negador. Sou um alegre
mensageiro como jamais houve”.
da má consciência.
16) A PEDRA DE TOQUE
Quando nos acomete o anseio de comparar Nietzsche com outros autores que
se chamaram ou foram chamados de “filósofos trágicos” (Pascal, Kierkegaard,
Chestôv), não devemos nos contentar com a palavra tragédia. Devemos levar em
conta a última [42] vontade de Nietzsche. Não basta perguntar: o que o outro pensa,
será comparável ao que Nietzsche pensa? Mas sim: como pensa este outro? Qual é,
em seu pensamento, a parte subsistente do ressentimento e da má consciência? O
ideal ascético, o espírito de vingança subsistem em sua maneira de compreender o
trágico? Pascal, Kierkegaard, Chestôv souberam, com gênio, levar a crítica mais
longe do que se havia feito. Suspenderam a moral, reverteram a razão. Porém, pegos
nas redes do ressentimento, ainda tiravam suas forças do ideal ascético. Eram poetas
desse ideal. O que eles opõem à moral, à razão, é ainda esse ideal no qual a razão
mergulha, esse corpo místico onde ela se enraíza, a interioridade – a aranha. Para
filosofar, precisaram de todos os recursos e do fio da interioridade, angústia, gemido,
culpabilidade, todas as formas do descontentamento112. Eles próprios se colocam sob
o signo do ressentimento: Abraão e Jó. Falta-lhes o sentido da afirmação, o sentido da
exterioridade, a inocência e o jogo. “Não é preciso esperar, diz Nietzsche, que se
esteja na infelicidade, como pensam aqueles que fazem a filosofia derivar do
descontentamento. É na felicidade que é preciso começar, em plena maturidade viril,
no fogo desse júbilo ardente, que é o da idade adulta e vitoriosa”113. De Pascal a
Kierkegaard, aposta-se e salta-se. Mas estes não são os exercícios de Dioniso, nem de
Zaratustra: saltar não é dançar, e apostar não é jogar. Notar-se-á como Zaratustra, sem
idéia preconcebida, opõe jogar a apostar, e dançar a saltar: é o mau jogador quem
aposta, e é sobretudo o palhaço quem salta, quem acredita que saltar significa dançar,
112 VP, I, 406: “O que atacamos no cristianismo? Que ele queira quebrar os fortes, desencorajar sua coragem, utilizar suas horas ruins e suas lassidões, transformar em inquietude e em tormento de consciência sua orgulhosa segurança...: horrível desastre cujo exemplo mais ilustre é Pascal.”
113 FG.
superar, ultrapassar114.
Se invocamos a aposta de Pascal é para concluir, finalmente, que ela nada tem
de comum com o lance de dados. Na aposta, não se trata absolutamente de afirmar o
acaso, todo o acaso, mas, ao contrário, de fragmentá-lo em probabilidades, de cunhá-
lo como “acaso de ganho e de perda”. Eis por que é embalde perguntar se a aposta
tem um sentido realmente teológico ou [43] apenas apologético. É que a aposta de
Pascal não concerne em nada à existência ou à não-existência de Deus. A aposta é
antropológica, ela incide apenas sobre dois modos de existência do homem, a
existência do homem que diz que Deus existe e a existência do homem que diz que
Deus não existe. A existência de Deus, não sendo posta em jogo na aposta, é ao
mesmo tempo a perspectiva que a aposta supõe, o ponto de vista segundo o qual o
acaso se fragmenta em acaso de ganho e acaso de perda. A alternativa está
inteiramente sob o signo do ideal ascético e da depreciação da vida. Nietzsche tem
razão em opor seu próprio jogo à aposta de Pascal: “Sem a fé cristã, pensava Pascal,
vocês serão para vocês mesmos, como a natureza e a história, um monstro e um caos:
nós realizamos essa profecia”115. Nietzsche quer dizer: soubemos descobrir um outro
jogo, uma outra maneira de jogar; descobrimos o superhumano para além de dois
modos de existência humanos – demasiado humanos; soubemos afirmar todo o acaso,
em vez de fragmentá-lo e deixar um fragmento falar como senhor; soubemos fazer do
caos um objeto de afirmação, em vez de firmá-lo como algo a ser negado...116 E cada
vez que se compara Nietzsche e Pascal (ou Kierkegaard, ou Chestôv), a mesma
conclusão se impõe, a comparação só vale até certo ponto: feita abstração daquilo que
é essencial para Nietzsche, feita abstração da maneira de pensar. Feita abstração do
pequeno bacilo, o espírito de vingança que Nietzsche diagnostica no universo.
Nietzsche dizia: “A hybris é a pedra de toque de todo heracliteano, é aí que ele pode
mostrar se compreendeu ou ignorou seu mestre”. O ressentimento, a má consciência,
114 Z, III, “Das velhas e das novas tábuas”: “O homem é algo que deve ser superado. Pode-se chegar a superar-se por numerosos caminhos e meios: cabe a você consegui-lo. Mas só o palhaço pensa: pode-se também saltar por cima do homem”. – Z, Prólogo, 4: “Amo aquele que tem vergonha de ver o dado cair em seu favor, e então pergunta: trapaceei?”
115 VP, III, 42.116 “... o movimento inaugurado por Pascal: um monstro e um caos, portanto uma coisa que é
preciso negar” (VP, III, 42).
o ideal ascético, o niilismo são a pedra de toque de todo nietzscheano. É aí que ele
pode mostrar se compreendeu ou ignorou o verdadeiro sentido do trágico.
[44]
CAPÍTULO II
ATIVO E REATIVO
1) O CORPO
Spinoza abria às ciências e à filosofia uma via nova: nem mesmo sabemos o
que pode um corpo, dizia ele; falamos da consciência, e do espírito, tagarelamos
sobre tudo isso, mas não sabemos do que um corpo é capaz, quais forças são as suas e
nem o que elas preparam.117 Nietzsche sabe que a hora chegou: “Estamos na fase
onde o consciente devém modesto.”118 Chamar a consciência à modéstia necessária é
tomá-la pelo que ela é: um sintoma, nada além do sintoma de uma transformação
mais profunda e da atividade de forças de toda uma outra ordem que não espiritual.
“Talvez se trate unicamente do corpo em todo desenvolvimento do espírito.” O que é
a consciência? Como Freud, Nietzsche pensa que a consciência é a região do eu
afetado pelo mundo exterior.119 Contudo, a consciência é menos definida
relativamente à exterioridade, em termos de real, do que relativamente à
superioridade, em termos de valores. Essa diferença é essencial numa concepção
geral do consciente e do inconsciente. Em Nietzsche, a consciência é sempre
consciência de um inferior relativamente ao superior ao qual ele se subordina ou “se
incorpora”. A consciência nunca é consciência de si, mas consciência de um eu
relativamente ao si que, [45] ele sim, não é consciente. Ela não é consciência do
senhor, mas consciência do escravo relativamente a um senhor que não tem que ser
consciente. “A consciência habitualmente só aparece quando um todo quer se
117
SPINOZA, Ética, III, 2, esc.: “Já mostrei que não se sabe o que pode o corpo ou o que se pode deduzir da só consideração de sua natureza, e constata-se por experiência que das leis da natureza, apenas, provém um número imenso de coisas que jamais se teria acreditado poderem produzir-se, que não sob a direção do espírito...”
118 VP, II, 261.119 VP, II, 253; GS, 357.
subordinar a um todo superior... A consciência nasce relativamente a um ser do qual
poderíamos ser função.”120 É este o servilismo da consciência: ela é tão somente
testemunha da “formação de um corpo superior”.
O que é o corpo? Não o definimos dizendo que ele é um campo de forças, um
meio nutritício que disputa uma pluralidade de forças. É que, de fato, não há “meio”,
nem campo de forças ou batalha. Não há quantidade de realidade, toda realidade já é
quantidade de força. Nada além de quantidades de força “em relação de tensão” umas
com as outras.121 Toda força está em entrelace com outras, seja para obedecer, seja
para comandar. O que define um corpo é esse entrelace entre forças dominantes e
forças dominadas. Todo entrelace de forças constitui um corpo: químico, biológico,
social, político. Duas forças quaisquer, sendo desiguais, constituem um corpo assim
que entram em entrelace: eis por que o corpo é sempre o fruto do acaso, no sentido
nietzscheano, e aparece como a coisa mais “surpreendente”, muito mais
surpreendente, na verdade, que a consciência e o espírito.122 Mas o acaso, entrelace da
força com a força, é também essência da força; não se perguntará, portanto, como
nasce um corpo vivo, já que todo corpo está vivo como produto “arbitrário” das
forças que o compõem.123 O corpo é fenômeno múltiplo, sendo composto por uma
pluralidade de forças irredutíveis; sua unidade é a de um fenômeno múltiplo,
“unidade de dominação”. Num corpo, as forças superiores ou dominantes são ditas
ativas, as forças inferiores ou dominadas são ditas reativas. Ativo e reativo são
precisamente as qualidades originais, que exprimem o entrelace da força com a força.
É que as forças que entram em entrelace não têm uma quantidade, sem que cada uma
ao mesmo tempo não tenha a qualidade que corresponde à sua diferença de
quantidade como tal. Chamar-se-á hierarquia essa diferença das forças qualificadas
conforme à sua quantidade: forças ativas e reativas. [46]
120 VP, II, 227.121 VP, II, 373.122 VP, II, 173: “O corpo humano é um pensamento mais surpreendente que a alma de
antanho”; II, 226: “O que é mais surpreendente, é deveras o corpo; não cansa maravilhar-se com a ideia de que o corpo humano deveio possível.”
123 Sobre o falso problema de um começo da vida: VP, II, 66 e 68. – Sobre o papel do acaso: VP, II, 25 e 334.
2) A DISTINÇÃO DAS FORÇAS
Ao obedecerem, as forças inferiores não deixam de ser forças, distintas
daquelas que comandam. Obedecer é uma qualidade da força enquanto tal, e se
entrelaça à potência tanto quanto comandar. “Nenhuma força renuncia à sua potência
própria. Do mesmo jeito que o comando supõe uma concessão, admite-se que a força
absoluta do adversário não está vencida, assimilada, dissolvida. Obedecer e comandar
são as duas formas de um torneio.”124 As forças inferiores se definem como reativas:
elas nada perdem de sua força, de sua quantidade de força, elas a exercem
assegurando os mecanismos e as finalidades, preenchendo as condições de vida e as
funções, as tarefas de conservação, de adaptação e de utilidade. Eis o ponto de partida
do conceito de reação, cuja importância veremos em Nietzsche: as acomodações
mecânicas e utilitárias, as regulações que exprimem todo o poder das forças
inferiores e dominadas. Ora, devemos constatar o gosto imoderado do pensamento
moderno por esse aspecto reativo das forças. Sempre se acredita ter feito bastante
quando se compreende o organismo a partir de forças reativas. A natureza das forças
reativas e seu frêmito nos fascinam. É assim que, na teoria da vida, mecanismo e
finalidade se opõem; todavia são duas interpretações que valem apenas para as
próprias forças reativas. É verdade que ao menos compreendemos o organismo a
partir de forças. Mas é verdade, também, que não podemos apreender as forças
reativas pelo que elas são, isto é, como forças e não como mecânicas ou finalidades,
se não as entrelaçarmos àquela que as domina e que, ela sim, não é reativa. “Fecha-se
os olhos à preeminência fundamental das forças de uma ordem espontânea, agressiva,
conquistadora, usurpadora, transformadora, e que dão novas direções sem parar,
sendo a adaptação primeiramente submetida à influência delas; é assim que se nega a
soberania das funções mais nobres do organismo.”125
Sem dúvida é mais difícil caracterizar essas forças ativas. É que elas, por
natureza, escapam da consciência: “A grande atividade principal é inconsciente.”126 A
124 VP, II, 91.125 GM, I, 12.126 VP, II, 227.
consciência tão somente exprime o entrelace de certas forças reativas às forças [47]
ativas que as dominam. A consciência é essencialmente reativa;127 eis por que não
sabemos o que pode um corpo, de qual atividade ele é capaz. E o que dizemos da
consciência, devemos dizer também da memória e do hábito. Mais ainda: devemos
dizer inclusive da nutrição, da reprodução, da conservação, da adaptação. São
funções reativas, especializações reativas, expressões de tais ou quais forças
reativas.128 É inevitável que a consciência veja o organismo do seu ponto de vista e o
compreenda à sua maneira, isto é, de maneira reativa. E ocorre à ciência seguir os
caminhos da consciência, mesmo apoiando-se em outras forças reativas: sempre o
organismo visto do lado pequeno, do lado de suas reações. Segundo Nietzsche, o
problema do organismo não tem de ser debatido entre o mecanicismo e o vitalismo.
De que vale o vitalismo enquanto ele acredita descobrir a especificidade da vida em
forças reativas, aquelas mesmas que o mecanicismo interpreta de outro jeito? O
verdadeiro problema é a descoberta das forças ativas, sem as quais as próprias
reações não seriam forças.129 A atividade das forças necessariamente inconsciente, eis
aí o que faz do corpo algo de superior a todas as reações, e em particular àquela
reação do eu que se chama consciência: “Todo esse fenômeno do corpo é, do ponto
de vista intelectual, tão superior à nossa consciência, ao nosso espírito, aos nossos
jeitos conscientes de pensar, de sentir e de querer, quanto a álgebra é superior à
tabuada de multiplicações.”130 As forças ativas do corpo, eis o que faz do corpo um si,
e que define o si como superior e surpreendente: “... Um ser mais potente, um sán
desconhecido – que tem por nome si. Ele habita o teu corpo, ele é o teu corpo.”131 A
verdadeira ciência é a da atividade, mas a ciência da atividade é também a ciência do
inconsciente necessário. Absurda é a ideia de que a ciência deva ir de mesmo passo
que a consciência e nas mesmas direções. Sente-se, nessa ideia, a moral que desponta.
127 GC, 354.128 VP, II, 43, 45, 187, 390.129 Aqui o pluralismo de Nietzsche acha sua originalidade. Em sua concepção do organismo, ele
não se atém a uma pluralidade de forças constituintes. O que lhe interessa é a diversidade das forças ativas e reativas, a busca pelas forças ativas elas mesmas. – A ser comparado com o pluralismo admirável de [Samuel] Butler, mas que se contenta com a memória e com o hábito.
130 VP, II, 226.131 Z, I, “Dos depreciadores do corpo”.
De fato, só há ciência ali onde não há consciência e não pode haver consciência. [48]
“O que é que é ativo? Tender à potência.”132 Apropriar-se, apoderar-se,
subjugar, dominar são os caráteres da força ativa. Apropriar-se quer dizer impor
formas, crias formas explorando as circunstâncias.133 Nietzsche critica Darwin,
porque este interpreta a evolução, e até o acaso na evolução, de uma maneira toda
reativa. Ele admira Lamarck, porque Lamarck pressentiu a existência de uma força
plástica verdadeiramente ativa, primeira relativamente às adaptações: uma força de
metamorfose. Em Nietzsche é como na energética, onde se chama “nobre” a energia
capaz de se transformar. A potência de transformação, o poder dionisíaco, é a
primeira definição da atividade. Mas cada vez que marcamos assim a nobreza da ação
e sua superioridade sobre a reação, não devemos esquecer que a reação designa um
tipo de forças tanto quanto a ação: simplesmente, as reações não podem ser
apreendidas, nem cientificamente compreendidas como forças, se não as
entrelaçarmos às forças superiores, que são precisamente de um outro tipo. Reativo é
uma qualidade original da força, mas que só pode ser interpretada como tal em
entrelace com o ativo, a partir do ativo.
3) QUANTIDADE E QUALIDADE
As forças têm uma quantidade, mas elas também têm a qualidade que
corresponde à sua diferença de quantidade: ativo e reativo são as qualidades das
forças. Pressentimos que o problema das medidas das forças é delicado, porque ele
põe em jogo a arte das interpretações qualitativas. O problema se coloca assim: 1º)
Nietzsche sempre acreditou que as forças eram quantitativas e que deviam ser
definidas quantitativamente. “Nosso conhecimento”, ele diz, “deveio científico na
medida em que ele pôde usar número e medida. Seria preciso tentar ver se não se
poderia edificar uma ordem científica dos valores conforme uma escala numeral e
quantitativa da força. Todos os outros valores são preconceitos, ingenuidades,
132 VP, II, 43.133 BM, 259 e VP, II, 63.
malentendidos. São por toda parte redutíveis a essa escala numeral e quantitativa”;134
2º) No entanto, Nietzsche não deixou de acreditar que uma determinação puramente
quantitativa das forças permanecia, de uma só vez, [49] abstrata, incompleta,
ambígua. A arte de medir as forças faz intervir toda uma interpretação e uma
avaliação das qualidades: “A concepção mecanicista quer apenas admitir quantidades,
mas a força reside na qualidade; o mecanicismo pode apenas descrever fenômenos,
não esclarecê-los”;135 “Não seria possível que todas as quantidades fossem os
sintomas de qualidade?... Querer reduzir todas as qualidades a quantidades é
loucura.”136
Haveria contradição entre essas duas sortes de textos? Se uma força não é
separável de sua quantidade, ela tampouco é separável das outras forças com as quais
está em entrelace. A própria quantidade, portanto, não é separável da diferença de
quantidade. A diferença de quantidade é a essência da força, o entrelace da força com
a força. Matutar duas forças iguais, mesmo que se lhes conceda uma oposição de
sentido, é um sonho aproximativo e grosseiro, sonho estatístico onde o vivente
mergulha, mas que a química dissipa.137 Ora, cada vez que Nietzsche critica o
conceito de quantidade, devemos compreender: a quantidade como conceito abstrato
tende sempre e essencialmente a uma identificação, a uma igualação da unidade que a
compõe, a uma anulação da diferença nessa unidade; o que Nietzsche reprova em
toda determinação puramente quantitativa das forças, é que aí as diferenças de
quantidade se anulam, se igualam ou se compensam. Ao contrário, cada vez que ele
critica a qualidade, devemos compreender: as qualidades nada são, salvo a diferença
de quantidade à qual elas correspondem em duas forças ao menos supostamente em
entrelace. Em suma, o que interessa Nietzsche nunca é a irredutibilidade da
quantidade à qualidade; ou melhor, isto só lhe interessa secundariamente e como
sintoma. O que lhe interessa principalmente é, do ponto de vista da própria
134 VP, II, 352.135 VP, II, 46. – Texto quase idêntico, II, 187.136 VP, II, 343.137 VP, II, 86 e 87: “No mundo químico reina a percepção mais aguda da diferença das forças.
Mas um protoplasma, que é uma mutiplicidade de forças químicas, tem apenas uma incerta e vaga percepção de uma realidade estranha”; “Admitir que haja percepções no mundo inorgânico, e percepções de uma exatidão absoluta: é aí que reina a verdade! Com o mundo orgânico começam a imprecisão e a aparência.”
quantidade, a irredutibilidade da diferença de quantidade à igualdade. A qualidade se
distingue da quantidade, mas só porque ela é o que há de inigualável na quantidade,
de inanulável na diferença de quantidade. A diferença de quantidade, portanto, é num
sentido o elemento irredutível da quantidade, e num outro sentido [50] o elemento
irredutível à própria quantidade. A qualidade não é outra coisa que não a diferença de
quantidade, e lhe corresponde em cada força em entrelace. “Não podemos nos
impedir de ressentir simples diferenças de quantidade como algo absolutamente
diferente da quantidade, isto é, como qualidades que não mais são redutíveis umas às
outras.”138 E o que ainda é antropomórfico nesse texto deve ser corrigido pelo
princípio nietzscheano, segundo o qual há uma subjetividade do universo que,
precisamente, não mais é antropomórfica, porém cósmica.139 “Querer reduzir todas as
qualidades a quantidades é loucura...”
Com o acaso, afirmamos o entrelace de todas as forças. E, sem dúvida,
afirmamos todo o acaso de uma vez no pensamento do eterno retorno. Mas todas as
forças, por conta própria, não entram de uma só vez em entrelace. Sua potência
respectiva, com efeito, está preenchida no entrelace com um número pequeno de
forças. O acaso é o contrário de um continuum.140 Os encontros de forças desta ou
daquela quantidades são, portanto, as partes concretas do acaso, as partes afirmativas
do acaso, como tais estranhas a qualquer lei: os membros de Dioniso. Ora, é nesse
encontro que cada força recebe a qualidade que corresponde à sua quantidade, isto é,
a afeição que preenche efetivamente sua potência. Nietzsche pode então dizer, num
texto obscuro, que o universo supõe “uma gênese absoluta de qualidades arbitrárias”,
mas que a própria gênese das qualidades supõe uma gênese (relativa) das
quantidades.141 Que as duas gêneses sejam inseparáveis, significa que não podemos
calcular abstratamente as forças; devemos, em cada caso, avaliar concretamente sua
quantidade respectiva e a nuança dessa qualidade.
4) NIETZSCHE A CIÊNCIA
138 VP, II, 108.139 VP, II, 15.140 Sobre o continuum, cf. VP, II, 356.141 VP, II, 334.
O problema dos entrelaces de Nietzsche com a ciência foi mal colocado.
Fazem como se esses entrelaces dependessem da teoria do eterno retorno, como se
Nietzsche se interessasse pela ciência (e ainda vagamente) na medida em que ela
favorece o retorno eterno, e dela se desinteressaria na medida em que ela [51] se opõe
a ele. Não é nada disso; a origem da posição crítica de Nietzsche relativamente à
ciência deve ser buscada numa direção totalmente outra, ainda que esta direção nos
abra um ponto de vista sobre o eterno retorno. É verdade que Nietzsche tem pouca
competência e pouco gosto pela ciência. Mas o que o separa da ciência é uma
tendência, uma maneira de pensar. Certo ou errado, Nietzsche acredita que a ciência,
em seu manejo da quantidade, tende sempre a igualar as quantidades, a compensar as
desigualdades. Nietzsche, crítico da ciência, jamais invoca os direitos da qualidade
contra a quantidade; ele invoca os direitos da desigualdade contra a igualação das
quantidades. Nietzsche concebe uma “escala numeral e quantitativa”, mas cujas
divisões não são os múltiplos ou divisores um dos outros. Eis precisamente o que ele
denuncia na ciência: a mania científica de buscar compensações, o utilitarismo e o
igualitarismo propriamente cientifícos.142 Eis por que toda sua crítica se desempenha
sobre três planos: contra a identidade lógica, contra a igualdade matemática, contra o
equilíbrio físico. Contra as três formas do indiferenciado.143 Segundo Nietzsche, é
inevitável que a ciência falhe e comprometa a verdadeira teoria da força.
O que significa essa tendência a reduzir as diferenças de quantidade? Ela
exprime, em primeiro lugar, a maneira pela qual a ciência participa no niilismo do
pensamento moderno. O esforço para negar as diferenças faz parte dessa empreitada
mais geral, que consiste em negar a vida, em depreciar a existência, em prometer-lhe
uma morte (calorífica ou outra), onde o universo se abisma no indiferenciado. O que
Nietzsche reprova nos conceitos físicos de matéria, de peso, de calor, é eles também
serem os fatores de uma igualação das quantidades, os princípios de uma
“adiaforia”nt. É neste sentido que Nietzsche mostra que a ciência pertence ao ideal
142 Cf. os juízos sobre Mayer, nas cartas a Gast.143 Esses três temas têm um lugar essencial em VP, I e II.n t [Transcrição do grego ἀδιαφορία, “indiferença”.]
ascético e o serve à sua maneira.144 Mas devemos também buscar na ciência qual o
instrumento desse pensamento niilista. A resposta é: a ciência, por vocação,
compreende os fenômenos a partir das forças reativas e as interpreta desse ponto de
vista. A física é reativa, pela mesma razão que a biologia; sempre as coisas vistas do
lado pequeno, do lado das reações. O triunfo das forças reativas, é este o instrumento
do pensamento niilista. E é também [52] o princípio das manifestações do niilismo: a
física reativa é uma física do ressentimento, como a biologia reativa, uma biologia do
ressentimento. Mas por que, precisamente, é a só consideração das forças reativas que
termina por negar a diferença na força, como ela serve de princípio ao ressentimento,
isso ainda não sabemos.
Ocorre à ciência, segundo o ponto de vista de onde ela se coloca, afirmar ou
negar o eterno retorno. Mas a afirmação mecanicista do eterno retorno e sua negação
termodinâmica têm algo em comum: trata-se da conservação da energia, sempre
interpretada de tal maneira que as quantidades de energia não tenham apenas uma
soma constante, mas anulem suas diferenças. Nos dois casos, passa-se de um
princípio de finitude (constância de uma soma) a um princípio “niilista” (anulação
das diferenças de quantidades cuja soma seja constante). A ideia mecanicista afirma o
eterno retorno, mas supondo que as diferenças de quantidade se compensam ou se
anulam entre o estado inicial e o estado final de um sistema reversível. O estado final
é idêntico ao estado inicial, o qual supõe-se seja indiferenciado relativamente aos
intermediários. A ideia termodinâmica nega o eterno retorno, mas porque ela
descobre que as diferenças de quantidade se anulam apenas no estado final do
sistema, em função das propriedades do calor. Eis que se põe a identidade no estado
final indiferenciado, opõe-se-lhe à diferenciação do estado inicial. As duas
concepções comungam numa mesma hipótese, a de um estado final ou terminal,
estado terminal do devir. Ser ou nada, ser ou não-ser igualmente indiferenciados: as
duas concepções se juntam na ideia de um devir que tem um estado final. “Em termos
metafísicos, se o devir pudesse chegar ao ser ou ao nada...”145 Eis por que o
mecanicismo não consegue colocar a existência do eterno retorno, tampouco a 144 GM, III, 25.145 VP, II, 329.
termodinâmica consegue negá-lo. Ambos passam ao lado, caem no indiferenciado,
recaem no idêntico.
O eterno retorno, segundo Nietzsche, não é de jeito algum um pensamento do
idêntico, mas um pensamento sintético, pensamento do absolutamente diferente, que
reivindica fora da ciência um novo princípio. Esse princípio é o da reprodução do
diverso enquanto tal, o da repetição da diferença: o contrário da “adiaforia”.146 E, com
efeito, não compreendemos [53] o eterno retorno enquanto fazemos dele uma
conseqüência ou uma aplicação da identidade. Não compreendemos o eterno retorno
enquanto lhe opomos, de certa maneira, à identidade. O eterno retorno não é a
permanência do mesmo, o estado do equilíbrio e nem a morada do idêntico. No
eterno retorno não é o mesmo ou o uno que revêm, mas o retorno é ele mesmo o uno
que se diz tão somente do diverso e daquilo que difere.
5) PRIMEIRO ASPECTO DO ETERNO RETORNO:
COMO DOUTRINA COSMOLÓGICA E FÍSICA
A exposição do eterno retorno, tal como Nietzsche o concebe, supõe a crítica
do estado terminal ou estado de equilíbrio. Se o universo tivesse uma posição de
equilíbrio, diz Nietzsche, se o devir tivesse uma meta ou um estado final, ele já o teria
alcançado. Ora, o instante atual, como instante que passa, prova que ele não foi
alcançado: logo, o equilíbrio das forças não é possível.147 Mas por que o equilíbrio, o
estado terminal deveria ser alcançado se ele fosse possível? Em virtude daquilo que
Nietzsche chama de infinidade do tempo passado. A infinidade do tempo passado
significa apenas o seguinte: que o devir não pôde começar a devir, que ele não é algo
que deveio. Ora, não sendo algo que deveio, tampouco é ele um devir alguma coisa.
Não tendo devindo, ele já seria aquilo que ele devém, se deviesse alguma coisa. Ou
seja: o tempo passado sendo infinito, o devir teria alcançado seu estado final se
tivesse um. E, com efeito, dá no mesmo dizer que o devir teria alcançado o estado
final se tivesse um, e que não teria saído do estado inicial se tivesse um. Se o devir 146 VP, II, 374: “Não há adiaforia, ainda que se possa imaginá-la.”147 VP, II, 312, 322-324, 329-330.
devém alguma coisa, por que não terminou de devir há muito tempo atrás? Se é algo
que deveio, como pôde ele começar a devir? “Se o universo fosse capaz de
permanência e de fixidez, e se houvesse em todo seu curso um só instante de ser no
sentido estrito, não poderia mais haver devir, logo, não se poderia mais pensar nem
observar um devir qualquer.”148 Eis o pensamento que Nietzsche declara ter achado
“em autores antigos”.149 Se tudo que devém, dizia Platão, jamais pode esquivar o
presente, assim que ali estiver ele deixa de devir e é, então, aquilo que estava [54]
devindo.150 Mas esse pensamento antigo, Nietzsche o comenta: cada vez que o
encontrei, “estava determinado por outros retro-pensamentos geralmente teológicos”.
É que os filósofos antigos, obstinando-se em indagar como o devir pôde começar e
por que ele ainda não terminou, são falsos trágicos, invocando a hybris, o crime, o
castigo.151 Salvo Heráclito, eles não se põem em presença do pensamento do puro
devir, nem da ocasião deste pensamento. Que o instante atual não seja um instante de
ser ou de presente “no sentido estrito”, que ele seja o instante que passa, força-nos a
pensar o devir, mas a pensá-lo precisamente como aquilo que não pôde começar e
não pode terminar de devir.
Como o pensamento do puro devir funda o eterno retorno? Basta esse
pensamento para cessar de acreditar no ser distinto do devir, oposto ao devir; mas
esse pensamento também basta para acreditar no ser do próprio devir. Qual é o ser
daquilo que devém, do que não começa nem termina de devir? Revir, o ser daquilo
que devém. “Dizer que tudo revém é aproximar ao máximo o mundo do devir e o do
ser: ápice da contemplação.”152 Esse problema da contemplação deve ser formulado
ainda de outro jeito: como pode o passado constituir-se no tempo? Como pode o
presente passar? O instante que passa jamais poderia passar, se já não fosse passado
ao mesmo tempo que presente, ainda por vir ao mesmo tempo que presente. Se o
148 VP, II, 322. – Texto análogo, II, 330.149 VP, II, 329.150 Platão, Parmênides, cf. segunda hipótese. – Todavia, Nietzsche está pensando mais em
Anaximandro. 151 NP: “Então coloca-se a Anaximandro o seguinte problema: Por que tudo aquilo que deveio
não pereceu há muito tempo atrás, visto que já se passou uma eternidade de tempo? De onde vem a torrente sempre renovada do devir? Ele só consegue escapar deste problema por novas hipóteses místicas”.
152 VP, II, 170.
presente não passasse por si mesmo, se fosse preciso esperar um novo presente para
que este deviesse passado, nunca o passado em geral se constituiria no tempo, nem
este presente passaria: não podemos esperar, é preciso que o instante seja, de uma só
vez, presente e passado, presente e porvir, para que ele passe (e passe em proveito de
outros instantes). É preciso que o presente coexista consigo como passado e como
porvir. É o entrelace sintético do instante consigo como presente, passado e porvir,
que funda seu vínculo com os outros instantes. O eterno retorno, portanto, é resposta
ao problema da passagem.153 E, neste sentido, ele não deve ser interpretado [55] como
o retorno de algo que é, que é uno ou que é o mesmo. Na expressão “eterno retorno”,
fazemos um contrassenso quando compreendemos: retorno do mesmo. Não é o ser
que revém, mas o próprio revir constitui o ser enquanto ele se afirma do devir e
daquilo que passa. Não é o uno que revém, mas o próprio revir é o uno que se afirma
do diverso ou do múltiplo. Noutros termos, a identidade no eterno retorno não
designa a natureza daquilo que revém, mas, ao contrário, o fato de revir para aquilo
que difere. Eis por que o eterno retorno deve ser pensado como uma síntese: síntese
do tempo e de suas dimensões, síntese do diverso e de sua reprodução, síntese do
devir e do ser que se afirma do devir, síntese da dupla afirmação. O próprio eterno
retorno, então, depende de um princípio que não é a identidade, mas que deve, no
tocante a isso tudo, preencher as exigências de uma verdadeira razão suficiente.
Por que o mecanicismo é uma interpretação tão ruim do eterno retorno? Porque
ele não implica necessariamente, nem diretamente, o eterno retorno. Porque ele
apenas acarreta a falsa conseqüência de um estado final. Coloca-se tal estado final
como idêntico ao estado inicial; e, nesta medida, conclui-se que o processo mecânico
repassa pelas mesmas diferenças. Assim, forma-se a hipótese cíclica, tão criticada por
Nietzsche.154 É que não compreendemos como esse processo tem a possibilidade de
sair do estado inicial, nem de ressair do estado final, nem de repassar pelas mesmas
diferenças, não tendo ele nem mesmo o poder de passar uma vez por diferenças
quaisquer. Há duas coisas que a hipótese cíclica é incapaz de dar conta: a diversidade
153 A exposição do eterno retorno em função do instante que passa encontra-se em Z, III, “Da visão e do enigma”.
154 VP, II, 325 e 334.
dos ciclos coexistentes e, sobretudo, a existência do diverso no ciclo.155 Eis por que só
podemos compreender o próprio eterno retorno como a expressão de um princípio
que é a razão do diverso e de sua reprodução, da diferença e de sua repetição.
Nietzsche apresenta tal princípio como uma das descobertas mais importantes de sua
filosofia. Ele lhe dá um nome: vontade de potência. Por vontade de potência,
“exprimo o caráter que não se pode eliminar da ordem mecânica sem eliminar esta
mesma ordem.”156 [56]
6) O QUE É A VONTADE DE POTÊNCIA?
Um dos textos mais importantes que Nietzsche escreveu para explicar o que ele
entendia por vontade de potência, é o seguinte: “Esse conceito vitorioso da força,
graças ao qual nossos físicos criaram Deus e o universo, precisa de um complemento;
é preciso lhe atribuir um querer interno que eu chamaria de vontade de potência.”157
A vontade de potência, portanto, é atribuída à força, mas de uma maneira bem
particular: ela é de uma só vez complemento da força e algo interno. Ela não lhe é
atribuída à maneira de um predicado. Com efeito, se colocamos a questão: “Quem?”,
não podemos dizer que a força seja aquilo que quer. Só a vontade de potência é
aquilo que quer, ela não se deixa delegar nem alienar num outro sujeito, nem mesmo
na força.158 Mas então como pode ela ser “atribuída”? Lembremo-nos que a essência
da força é sua diferença de quantidade com outras forças, e que essa diferença se
exprime como qualidade da força. Ora, a diferença de quantidade, assim
compreendida, remete necessariamente a um elemento diferencial das forças em
entrelace, o qual é também elemento genético das qualidades dessas forças. Eis o que
é a vontade de potência: o elemento genealógico da força, de uma só vez diferencial e
genético. A vontade de potência é o elemento do qual decorre, de uma vez, a
155 VP, II, 334: “De onde viria a diversidade no interior de um ciclo?... Admitindo que existira uma energia de concentração igual em todos os centros de forças do universo, pergunta-se de onde teria podido nascer a menor suspeita de diversidade...”
156 VP, II, 374.157 VP, II, 309.158 VP, I, 204. – II, 54: “Quem, portanto, quer a potência? Questão absurda, se o ser por si
mesmo é vontade de potência...”
diferença de quantidade das forças postas em entrelace e a qualidade que, nesse
entrelace, remete a cada força. A vontade de potência revela aqui sua natureza: ela é
princípio para a síntese das forças. É nesta síntese, na qual se entrelaça o tempo, que
as forças repassam pelas mesmas diferenças, ou que o diverso se reproduz. A síntese
é a das forças, de sua diferença e de sua reprodução; o eterno retorno é a síntese cujo
princípio é a vontade de potência. Não se ficará espantado com a palavra “vontade”:
quem, senão a vontade, é capaz de servir de princípio a uma síntese de forças,
determinando o entrelace da força com a força? Mas em qual sentido é preciso tomar
“princípio”? Nietzsche reprova os princípios por serem sempre demasiado gerais
relativamente ao que eles condicionam, de terem sempre as malhas soltas demais
relativamente ao que pretendem capturar ou regrar. Ele gosta de opor a vontade de
potência ao querer-viver [57] schopenhaueriano, quando mais não seja em função da
extrema generalidade deste. Se a vontade de potência, ao contrário, é um bom
princípio, se ela reconcilia o empirismo com os princípios, se ela constitui um
empirismo superior, é porque ela é um princípio essencialmente plástico, que não é
mais amplo do que aquilo que ele condiciona, que se metamorfoseia com o
condicionado, que se determina em cada caso com aquilo que ele determina. A
vontade de potência, com efeito, jamais é separável desta e daquela forças
determinadas, de suas quantidades, de suas qualidades, de suas direções; jamais
superior às determinações que ela opera num entrelace de forças, sempre plástica e
em metamorfose.159
Inseparável não significa idêntico. A vontade de potência não pode ser separada
da força sem cair na abstração metafísica. Mas ao confundir a força e a vontade,
corre-se um risco ainda maior: não mais se compreende a força enquanto força, recai-
se no mecanicismo, esquece-se a diferença das forças que constitui o seu ser, ignora-
se o elemento do qual deriva sua gênese recíproca. A força é aquilo que pode, a
vontade de potência é aquilo que quer. O que significa tal distinção? O texto
159 VP, II, 23: “Meu princípio é que a vontade dos psicólogos anteriores é uma generalização injustificada, que essa vontade não existe, que ao invés de conceber as expressões diversas de uma vontade determinada sob diversas formas, apagou-se o caráter da vontade amputando-a de seu conteúdo, de sua direção; é eminentemente o caso em Schopenhauer; o que ele chama de vontade é só uma fórmula oca.”
anteriormente citado nos convida a comentar cada palavra. – O conceito de força é
por natureza vitorioso, porque o entrelace da força com a força, tal como ele é
compreendido no conceito, é o da dominação: de duas forças em entrelace, uma é
dominante, a outra dominada. (Até mesmo Deus e o universo estão tomados num
entrelace de dominação, por mais discutível que seja, neste caso, a interpretação de
tal entrelace.) No entanto, esse conceito vitorioso da força precisa de um
complemento, e esse complemento é algo interno, um querer interno. Ele não seria
vitorioso sem uma adição como essa. É que os entrelaces de forças permanecem
indeterminados, enquanto não se ajunta à própria força um elemento capaz de
determiná-los de um duplo ponto de vista. As forças em entrelace remetem a uma
dupla gênese simultânea: gênese recíproca de sua diferença de quantidade, gênese
absoluta de sua qualidade respectiva. A vontade de potência se ajunta, portanto, à
força, mas como o elemento diferencial e genético, como o elemento [58] interno de
sua produção. Ela nada tem de antropomórfico em sua natureza. Mais precisamente:
ela se acrescenta à força como o princípio interno da determinação de sua qualidade
num entrelace (x + dx), e como o princípio interno da determinação quantitativa desse
próprio entrelace ( ). A vontade de potência dever ser dita, de uma só vez,
elemento genealógico da força e das forças. Portanto, é sempre pela vontade de
potência que uma força prevalece sobre outras, as domina ou as comanda. Mais do
que isso: é ainda a vontade de potência (dy) que faz com que uma força obedeça num
entrelace; é por vontade de potência que ela obedece.160
Encontramos, de certa maneira, o entrelace do eterno retorno e da vontade de
potência, mas não o elucidamos nem o analisamos. A vontade de potência é de uma
só vez o elemento genético da força e o princípio da síntese das forças. Todavia, que
esta síntese forme o eterno retorno; que as forças nesta síntese, e conforme ao
princípio dela, reproduzam-se necessariamente, para isso não tivemos ainda meios de
160 Z, II, “Da vitória sobre si mesmo”: “De onde então isso vem?, perguntei-me. O que é que decide o ser vivo a obedecer, a comandar e a ser obediente mesmo comandando? Escutai, pois, minhas palavras, ó sábios dentre os sábios! Examinai seriamente se eu entrei no coração da vida, até as raízes do coração dela! – Por toda parte onde encontrei a vida, encontrei a vontade de potência; e mesmo na vontade daquele que obedece, encontrei a vontade de ser senhor” (cf. VP, II, 91).
compreender. Em contrapartida, a existência desse problema revela um aspecto
historicamente importante da filosofia de Nietzsche: sua situação complexa acerca do
kantismo. O conceito de síntese está no centro do kantismo, ele é sua descoberta
própria. Ora, sabe-se que os pós-kantianos, de dois pontos de vista, reprovaram Kant
por ter comprometido essa descoberta: do ponto de vista do princípio que regia a
síntese, do ponto de vista da reprodução dos objetos na própria síntese. Reclamava-se
um princípio que não fosse apenas condicionante relativamente aos objetos, mas
verdadeiramente genético e produtor (princípio de diferença ou de determinação
interna); denunciava-se, em Kant, a sobrevivência de harmonias milagrosas entre
termos que permaneciam exteriores. A um princípio de diferença ou de determinação
interna, reivindica-se uma razão não apenas para a síntese, mas para a reprodução do
diverso na síntese enquanto tal.161 Ora, se Nietzsche [59] se insere na história do
kantismo, é pela maneira original que ele participa dessas exigências pós-kantianas.
Ele fez da síntese uma síntese das forças; pois, falhando em ver que a síntese era uma
síntese das forças, desprezava-se o seu sentido, a sua natureza e o seu conteúdo. Ele
compreendeu a síntese das forças como o eterno retorno, e então encontrou no
coração da síntese a reprodução do diverso. Ele assinalou o princípio da síntese, a
vontade de potência, e a esta determinou como o elemento diferencial e genético das
forças contendoras. Deixando pra verificar mais tarde essa suposição, acreditamos
que não haja em Nietzsche apenas uma descendência kantiana, mas uma rivalidade
meio confessada meio escondida. Nietzsche, relativamente a Kant, não tem a mesma
posição que Schopenhauer: ele não tenta, como Schopenhauer, uma interpretação que
se proporia arrancar o kantismo de seus avatares dialéticos e abrir-lhe novos
escoadouros. É que, para Nietzsche, os avatares dialéticos não vêm de fora e têm,
como causa primeira, as insuficiências da crítica. Uma transformação radical do
kantismo, uma reinvenção da crítíca que Kant traiu ao mesmo tempo em que a
concebia, uma retomada do projeto crítico sobre novas bases e com novos conceitos,
eis o que Nietzsche parece ter buscado (e ter achado no “eterno retorno” e na
161 Sobre esses problemas que se colocam depois de Kant, cf. M. GUÉROULT, La philosophie transcendantale de Salomon Maïmon, La doctrine de la science chez Fichte; e J. VUILLEMIN, L'héritage kantien et la révolution copernicienne.
“vontade de potência”).
7) A TERMINOLOGIA DE NIETZSCHE
Mesmo antecipando-se às análises que restam para fazer, é hora de fixar certos
pontos da terminologia de Nietzsche. Disso depende todo o rigor dessa filosofia, cuja
precisão sistemática é erroneamente suspeitada. Erroneamente, de todo jeito, seja
para dela se regozijar, seja para se lamentar. Na verdade, Nietzsche emprega novos
termos mais precisos para novos conceitos mais precisos: 1º) Nietzsche chama
vontade de potência o elemento genealógico da força. Genealógico quer dizer
diferencial e genético. A vontade de potência é o elemento diferencial das forças, ou
seja, o elemento de produção da diferença de quantidade entre duas ou várias forças
supostamente em entrelace. A vontade de potência é o elemento genético da força, ou
seja, o elemento de produção da qualidade que remete a cada força nesse entrelace. A
vontade de potência como princípio não suprime o acaso, mas ao contrário o implica,
porque ela não teria sem ele nem plasticidade, nem metamorfose. [60] O acaso é o
pôr em entrelace das forças; a vontade de potência, o princípio determinante desse
entrelace. A vontade de potência se ajunta necessariamente às forças, mas só pode se
ajuntar a forças postas em entrelace pelo acaso. A vontade de potência compreende o
acaso em seu âmago; só ela é capaz de afirmar todo o acaso;
2º) Da vontade de potência como elemento genealógico, de uma só vez
decorrem a diferença de quantidade das forças em entrelace e a qualidade respectiva
dessas forças. Conforme sua diferença de quantidade, as forças são ditas dominantes
ou dominadas. Conforme sua qualidade, as forças são ditas ativas ou reativas. Há
vontade de potência na força reativa ou dominada, bem como na força ativa ou
dominante. Ora, sendo a diferença de quantidade irredutível em cada caso, é em vão
querer medi-la sem que se interprete as qualidades das forças contendoras. As forças
são essencialmente diferenciadas e qualificadas. Elas exprimem sua diferença de
quantidade pela qualidade que remete a cada uma. Este é o problema da
interpretação: dado um fenômeno, um acontecimento, estimar a qualidade da força
que lhe dá um sentido, e daí medir o entrelace das forças contendoras. Não nos
esqueçamos que, em cada caso, a interpretação esbarra com toda sorte de dificuldades
e problemas delicados: é preciso uma percepção “extremamente fina”, do gênero
daquela que se encontra nos corpos químicos;
3º) As qualidades das forças têm seu princípio na vontade de potência. E se
perguntarmos: “Quem interpreta?”, respondemos a vontade de potência; é a vontade
de potência que interpreta.162 Mas para estar assim na fonte das qualidades da força, é
preciso que a vontade de potência, ela também, tenha qualidades, particularmente
fluentes, ainda mais sutis que as da força. “O que reina é a qualidade toda
momentânea da vontade de potência.”163 Essas qualidades da vontade de potência que
então se entrelaçam imediatamente ao elemento genético ou genealógico, esses
elementos qualitativos fluentes, primordiais, seminais, não devem ser confundidos
com as qualidades da força. Assim, é essencial insistir nos termos empregados por
Nietzsche: ativo e reativo designam as qualidades originais da força, mas afirmativo e
negativo designam as qualidades primordiais da vontade de potência. Afirmar e
negar, apreciar e depreciar exprimem a vontade de potência, [61] bem como agir e
reagir exprimem a força. (E do mesmo jeito que as forças reativas não deixam de ser
forças, a vontade de negar, o niilismo são vontade de potência: “... uma vontade de
aniquilação, uma hostilidade à vida, uma recusa de admitir as condições
fundamentais da vida, mas isso ao menos é, e sempre continuará sendo, uma
vontade.”164) Ora, se devemos afixar a maior importância a essa distinção das duas
sortes de qualidades, é porque ela se encontra no centro da filosofia de Nietzsche;
entre a ação e a afirmação, entre a reação e a negação, há uma profunda afinidade,
uma cumplicidade, mas nenhuma confusão. Mais do que isso, a determinação dessas
afinidades põe em jogo toda a arte da filosofia. Por um lado, é evidente que há
afirmação em toda ação, negação em toda reação. Mas, por outro lado, a ação e a
reação são antes como que meios, meios ou instrumentos da vontade de potência que
afirma e que nega: as forças reativas, instrumentos do niilismo. Por outro lado ainda,
162 VP, I, 204 e II, 130.163 VP, II, 39.164 GM, III, 28.
a ação e a reação precisam da afirmação e da negação, como de algo que as
ultrapassa, mas que é necessário para que elas realizem suas próprias metas. Enfim,
mais profundamente, a afirmação e a negação transbordam a ação e a reação, porque
são as qualidades imediatas do próprio devir: a afirmação não é a ação, mas a
potência de devir ativo, o devir ativo em pessoa; a negação não é a simples reação,
mas um devir reativo. Tudo se passa como se a afirmação e negação fossem, de uma
só vez, imanentes e transcendentes relativamente à ação e à reação; elas constituem a
cadeia do devir com a trama das forças. É a afirmação que nos faz entrar no mundo
glorioso de Dioniso, o ser do devir; é a negação que nos precipita no fundo
inquietante donde as forças reativas saem;
4º) Por todas essas razões, Nietzsche pode dizer: a vontade de potência não é
somente aquilo que interpreta, mas aquilo que avalia.165 Interpretar é determinar a
força que dá um sentido à coisa. Avaliar é determinar a vontade de potência que dá à
coisa um valor. Os valores, portanto, não mais deixam-se abstrair do ponto de vista de
onde eles tiram seu valor, nem tampouco o sentido, do ponto de vista de onde ele tira
sua significação. A vontade de potência como elemento genealógico é aquilo do qual
derivam a significação do sentido e o valor dos valores. É [62] ela de que falávamos
sem tê-la nomeado, no início do capítulo anterior. A significação de um sentido
consiste na qualidade da força que se exprime na coisa: essa força é ativa ou reativa, e
de qual nuança? O valor de um valor consiste na qualidade da vontade de potência
que se exprime na coisa correspondente: aqui a vontade de potência é afirmativa ou
negativa, e de qual nuança? A arte da filosofia se encontra tanto mais complicada
quanto mais esses problemas de interpretação e de avaliação remetem um ao outro,
prolongam-se um no outro. – O que Nietzsche chama de nobre, alto, senhor, é ora a
força ativa, ora a vontade afirmativa. O que ele chama de baixo, vil, escravo, é ora a
força reativa, ora a vontade negativa. O porquê desses termos, isso também
compreenderemos mais tarde. Mas um valor tem sempre uma genealogia, da qual
dependem a nobreza e baixeza daquilo que ele nos convida a acreditar, a sentir e a
pensar. Qual baixeza pode encontrar sua expressão num valor, qual nobreza num
165 VP, II, 29: “Toda vontade implica uma avaliação”.
outro, só o genealogista está apto para descobrir, porque ele sabe manejar o elemento
diferencial: ele é o senhor da crítica dos valores.166 Tolhemos todo sentido da noção
de valor, quando não vemos nos valores outros tantos receptáculos que é preciso
furar, estátuas que é preciso quebrar para achar o que elas contêm, o mais nobre e o
mais baixo. Como os membros esparsos de Dioniso, sozinhas as estátuas de nobreza
se reformam. Falar da nobreza dos valores em geral, é dar testemunho de um
pensamento que tem interesse demais em ocultar sua própria baixeza: como se
valores inteiros não tivessem como sentido, e precisamente como valor, servir de
refúgio e de manifestação a tudo que é baixo, vil, escravo. Nietzsche criador da
filosofia dos valores teria visto, se tivesse vivido por mais tempo, a noção mais crítica
servir e virar o conformismo ideológico mais raso, mais baixo; os golpes de martelo
da filosofia dos valores devirem golpes de turibulário; a polêmica e agressividade,
substituídas pelo ressentimento, guardião meticuloso da ordem estabelecida, cão dos
valores em curso; a genealogia, apanhada pelos escravos: o esquecimento das
qualidades, o esquecimento das origens.167 [63]
8) ORIGEM E IMAGEM REVERTIDA
Na origem, há a diferença das forças ativas e reativas. A ação e a reação não
estão num entrelace de sucessão, mas de coexistência na própria origem. Outrossim, a
cumplicidade das forças ativas e da afirmação, das forças reativas e da negação,
revela-se no princípio: o negativo já está inteiramente do lado da reação.
Inversamente, só a força ativa se afirma, ela afirma sua diferença, faz da sua
diferença um objeto de gozo e de afirmação. A força reativa, mesmo quando ela
obedece, limita a força ativa, impõe-lhe limitações e restrições parciais, já está
possuída pelo espírito do negativo.168 Eis por que a própria origem comporta, de
166 GM, Introdução, 6: “Precisamos de uma crítica dos valores morais, e o valor desses valores deve, primeirissimamente, ser posto em questão.”
167 A teoria dos valores tanto mais se distancia de suas origens quanto mais ela perde de vista o princípio avaliar=criar. A inspiração nietzscheana revive particularmente em pesquisas como as do Sr. Polin, acerca da criação dos valores. Todavia, do ponto de vista de Nietzsche, o correlativo da criação dos valores não pode ser, em caso algum, sua contemplação, mas deve ser a crítica radical de todos os valores “em curso”.
168 GM, II, 11.
alguma maneira, uma imagem revertida de si: visto do lado das forças reativas, o
elemento diferencial genealógico aparece ao avesso, a diferença deveio negação, a
afirmação deveio contradição. Uma imagem revertida da origem acompanha a
origem: o que é “sim”, do ponto de vista das forças ativas, devém “não” do ponto de
vista das forças reativas, o que é afirmação de si devém negação do outro. É o que
Nietzsche chama de “reversão do golpe de vista apreciador”.169 As forças ativas são
nobres; mas elas mesmas se acham diante de uma imagem plebéia, refletida pelas
forças reativas. A genealogia é a arte da diferença ou da distinção, a arte da nobreza;
mas ela se vê ao avesso no espelho das forças reativas. Sua imagem aparece, então,
como a de uma “evolução”. – E essa evolução é compreendida, ora à maneira alemã,
como uma evolução dialética e hegeliana, como o desenvolvimento da contradição;
ora à maneira inglesa, como uma derivação utilitária, como o desenvolvimento do
benefício e dos juros. Mas a verdadeira genealogia sempre acha sua caricatura na
imagem que lhe dá o evolucionismo, essencialmente reativo: inglês ou alemão, o
evolucionismo é a imagem reativa da genealogia.170 Assim, é próprio das forças
reativas negarem, desde a origem, a diferença [64] que as constitui na origem,
reverterem o elemento diferencial do qual elas derivam, dar-lhe uma imagem
deformada. “Diferença engendra ódio.”171 É por esta razão que elas mesmas não se
compreendem como forças, e preferem voltar-se contra si ao invés de se
compreenderem como tais e aceitar a diferença. A “mediocridade” de pensamento
que Nietzsche denuncia sempre remete à mania de interpretar ou de avaliar os
fenômenos a partir de forças reativas, cada espécie de pensamento nacional
escolhendo as suas. Mas essa mesma mania tem sua origem na origem, na imagem
revertida. A consciência e as consciências, simples engrossamento dessa imagem
reativa...
Um passo a mais: suponhamos que as forças reativas, com ajuda de
169 GM, I, 10. (Ao invés de afirmar-se a si mesmo, e de negar por simples conseqüência, as forças reativas começam por negar o que é diferente delas, elas se opõem primeiro àquilo que não faz parte delas mesmas.)
170 Sobre a concepção inglesa da genealogia como evolução: GM, Introdução, 7, e I, 1-4. Sobre a mediocridade desse pensamento inglês: BM, 253. Sobre a concepção alemã da genealogia como evolução, e sobre sua mediocridade: GC, 357 e BM, 244.
171 BM, 263.
circunstâncias favoráveis externas ou internas, prevaleçam e neutralizem as forças
ativas. Saímos da origem: não se trata mais de uma imagem revertida, mas de um
desenvolvimento dessa imagem, de uma reversão dos próprios valores;172 o baixo se
colocou no alto, as forças reativas triunfaram. Se elas triunfam, é pela vontade
negativa, pela vontade de nada que desenvolve a imagem; mas isto, o seu triunfo, não
é imaginário. A questão é: como triunfam as forças reativas? Ou seja: quando elas
prevalecem sobre as forças ativas, será que as forças reativas devêm, por sua vez,
dominantes, agressivas e subjugantes; formam elas juntas uma força maior que seria,
por sua vez, ativa? Nietzsche responde: as forças reativas, mesmo se unindo, não
compõem uma força maior que seria ativa. Elas procedem de todo um outro jeito:
elas decompõem; elas separam a força ativa do que ela pode; elas subtraem da força
ativa uma parte ou quase tudo do seu poder; e com isso elas não devêm ativas, mas,
ao contrário, fazem com que a força ativa junte-se a elas, devenha ela mesma reativa,
num novo sentido. Pressentimos que, a partir de sua origem e desenvolvendo-se, o
conceito de reação muda de significação: uma força ativa devém reativa (num novo
sentido) quando forças reativas (no primeiro sentido) a separam do que ela pode.
Nietzsche fará a análise de como tal separação é possível em detalhe. Mas é preciso
já constatar que Nietzsche, com cuidado, nunca apresenta o triunfo das forças reativas
como a composição de uma força superior à força ativa, mas como uma subtração ou
uma divisão. Nietzsche consagrará todo um livro à análise [65] das figuras do triunfo
reativo no mundo humano: o ressentimento, a má consciência, o ideal ascético; em
cada caso, ele mostrará que as forças reativas não triunfam compondo uma força
superior, mas “separando” a força ativa.173 E, em cada caso, essa separação repousa
sobre uma ficção, sobre uma mistificação ou falsificação. É a vontade de nada que
desenvolve a imagem negativa e revertida, é ela que faz a subtração. Ora, na operação
da subtração, há sempre algo imaginário do qual é testemunha a utilização negativa
do número. Portanto, se queremos dar uma transcrição numérica da vitória das forças
reativas, devemos fazer apelo não a uma adição pela qual as forças reativas, todas
juntas, deviriam mais fortes que a força ativa, mas a uma subtração que separa a força 172 Cf. GM, I, 7.173 Cf. as três dissertações da GM.
ativa do que ela pode, que nega a diferença desta para fazer dela mesma uma força
reativa. Não basta, a partir disso, que a reação prevaleça para que ela deixe de ser
uma reação; é o contrário. A força ativa é separada do que ela pode por uma ficção,
nem por isso ela deixa de devir realmente reativa, é justamente por meio disso que ela
devém realmente reativa. Daí, em Nietzsche, o emprego das palavras “vil”, “ignóbil”,
“escravo”: essas palavras designam o estado das forças reativas que se colocam no
alto, que atraem a força ativa numa armadilha, substituindo os senhores por escravos
que não deixam de ser escravos.
9) PROBLEMA DA MEDIDA DAS FORÇAS
Eis por que não podemos medir as forças com uma unidade abstrata, nem
determinar sua quantidade e sua qualidade respectivas tomando como critério o
estado real das forças num sistema. Dizíamos: as forças ativas são as forças
superiores, as forças dominantes, as forças mais fortes. Mas as forças inferiores
podem prevalecer sem deixarem de ser inferiores em quantidade, sem deixarem de
ser reativas em qualidade, sem deixarem de ser escravas à sua maneira. Uma das
maiores frases da Vontade de Potência é a seguinte: “Há de se defender sempre os
fortes contra os fracos.”174 Não se pode apoiar-se sobre o estado de fato de um
sistema de forças, nem sobre o desfecho da luta entre elas, para concluir: estas são
ativas, aquelas são [66] reativas. Contra Darwin e o evolucionismo, Nietzsche
observa: “Admitindo que existe essa luta (e ela se apresenta, com efeito), ela
infelizmente termina de um jeito contrário àquele que a escola de Darwin desejava;
àquele que se ousaria desejar com ela: ela infelizmente termina em detrimento dos
fortes, dos privilegiados, das exceções felizes.”175 É neste sentido, primeiramente, que
a interpretação é uma arte tão difícil: devemos julgar se as forças que prevalecem são
inferiores ou superiores, reativas ou ativas; se elas prevalecem enquanto dominadas
174 VP, I, 395.175 Cr. Id., “Perambuleios intelectuais”, 14.
[nt: “Perambuleios intelectuais” traduz “Flâneries intellectuelles”, mas esse capítulo do livro Crepúsculo dos ídolos, se traduzido diretamente do alemão (Streifzüge eines Unzeitgemässe), ficaria “Incursões de um intempestivo”.]
ou dominantes. Neste domínio, não há fato, só há interpretações. Não se deve
conceber a medida das forças não como um procedimento de física abstrata, mas
como o ato fundamental de uma física concreta, não como uma técnica indiferente,
mas como a arte de interpretar a diferença e qualidade, independentemente do estado
de fato. (Nietzsche às vezes diz: “Fora da ordem social existente.”176)
Esse problema desperta uma antiga polêmica, uma discussão célebre entre
Cálicles e Sócrates.nt A que ponto Nietzsche nos parece próximo de Cálicles, e
Cálicles imediatamente completado por Nietzsche. Cálicles se esforça para distinguir
a natureza e a lei. Ele chama de lei tudo aquilo que separa uma força do que ela pode;
a lei, neste sentido, exprime o triunfo dos fracos sobre os fortes. Nietzsche
acrescenta: triunfo da reação sobre a ação. É reativo, com efeito, tudo aquilo que
separa uma força; é reativo, também, o estado de uma força separada do que ela pode.
É ativo, ao contrário, toda força que vai ao cabo do seu poder. Que uma força vá ao
cabo, isso não é uma lei, é justamente o contrário da lei.177 – Sócrates responde a
Cálicles: não cabe distinguir a natureza e a lei; pois se os fracos prevalecem, é
enquanto formam, todos reunidos, uma força mais forte que a do forte; a lei triunfa do
ponto de vista da própria natureza. Cálicles não se queixa de não ter sido
compreendido, e recomeça: o escravo não deixa de ser um escravo ao triunfar;
quando os fracos triunfam, não é formando uma força maior, mas separando a força
do que ela pode. Não se deve comparar as forças abstratamente; a força concreta, do
ponto de vista da natureza, é a que vai até às [67] últimas conseqüências, ao cabo da
potência ou do desejo. Sócrates objeta uma segunda vez: o que conta para ti, Cálicles,
é o prazer... Tu defines todo bem pelo prazer...
Observar-se-á o que se passa entre o sofista e o dialético: de que lado está a boa
fé, e também o rigor do raciocínio. Cálicles é agressivo, mas não tem ressentimento.
Ele prefere renunciar a falar; é claro que Sócrates não compreende na primeira vez, e
na segunda fala de outra coisa. Como explicar a Sócrates que o “desejo” não é a
176 VP, III, 8.n t [No diálogo platônico Górgias.]177 VP, II, 85: “Constata-se, em química, que todo corpo estende sua potência tão longe quanto
pode”; II, 374: “Não há lei; toda potência arrasta, a todo instante, suas últimas conseqüências”; II, 369: “Resguardo-me de falar em leis químicas, a palavra tem um ressaibo moral. Trata-se mesmo é de constatar, de maneira absoluta, relações de potência.”
associação de um prazer e de uma dor, dor de experimentá-lo, prazer de satisfazê-lo?
Que o prazer e a dor são apenas reações, propriedades das forças reativas,
constatações de adaptação ou de inadaptação? E como fazê-lo entender que os fracos
não compõem uma força mais forte? Por um lado, Sócrates não compreendeu, por
outro lado, ele não escutou: demasiadamente animado com ressentimento dialético e
espírito de vingança. Logo ele, tão exigente com outrem, tão meticuloso quando lhe
respondem...
10) A HIERARQUIA
Nietzsche também encontra seus próprios Sócrates. São os livres pensadores.
Eles dizem: “De que vos queixais? Como os fracos teriam triunfado se eles mesmos
não formassem uma força superior?” “Inclinemo-nos diante do fato cumprido.”178
Este é o positivismo moderno: pretende-se estar conduzindo a crítica dos valores,
pretende-se refutar qualquer apelo aos valores transcendentes, declara-se que estão
fora de moda, mas apenas para reencontrá-los, como forças que conduzem o mundo
atual. Igreja, moral, Estado &c.: o valor disso tudo é discutido apenas para admirar
sua força humana e seu conteúdo humano. O livre pensador tem a singular mania de
querer recuperar todos os conteúdos, todo o positivo, mas sem jamais interrogar-se
sobre a natureza desses conteúdos pretensamente positivos, nem sobre a origem ou a
qualidade das forças humanas correspondentes. É o que Nietzsche chama de
“faitalisme” [“fatualismo”].179 O livre pensador quer recuperar o conteúdo da religião,
mas nunca se pergunta se a religião não contém precisamente as forças mais baixas
do homem, das quais se deveria antes almejar que permanecessem no exterior. Eis
por que não é possível dar confiança ao ateísmo de um [68] livre pensador, mesmo
que democrata e socialista: “A Igreja nos repugna, mas não o seu veneno...”180 Eis o
que essencialmente caracteriza o positivismo e o humanismo do livre pensador: o
178 GM, I, 9.179 GM, III, 24.
[nt: Faitalisme é neologismo de Nietzsche (está em francês no texto alemão) que pode ser traduzido por fatualismo (fait = fato), e que explora um jogo de palavras, faitalisme e fatalisme (fatalismo).]
180 GM, I, 9.
fatualismo, a impotência de interpretar, a ignorância das qualidades da força. Assim
que alguma coisa aparece como uma força humana ou como um fato humano, o livre
pensador aplaude, sem perguntar-se se esta força não é de baixa extração, e este fato,
o contrário de um alto fato: “Humano demasiado humano”. Por não levar em conta as
qualidades das forças, o livre pensamento está por vocação a serviço das forças
reativas e traduz o triunfo delas. Pois o fato sempre é o dos fracos contra os fortes; “o
fato sempre é estúpido, tendo desde sempre se assemelhado mais a um bezerro do que
a um deus.”181 Ao livre pensador, Nietzsche opõe o espírito livre, o próprio espírito de
interpretação que julga as forças do ponto de vista de sua origem e de sua qualidade:
“Não há fatos, nada além de interpretações.”182 A crítica do livre pensamento é um
tema fundamental na obra de Nietzsche. Sem dúvida porque essa crítica descobre um
ponto de vista segundo o qual ideologias diferentes podem ser atacadas de uma só
vez: o positivismo, o humanismo, a dialética. O gosto pelo fato no positivismo, a
exaltação do fato humano no humanismo, a mania de recuperar os conteúdos
humanos na dialética.
A palavra hierarquia em Nietzsche tem dois sentidos. Significa,
primeiramente, a diferença das forças ativas e reativas, a superioridade das forças
ativas sobre as forças reativas. Nietzsche pode, então, falar de um “posto imutável e
inato na hierarquia”;183 e o problema da hierarquia é ele próprio o problema dos
espíritos livres.184 Mas hierarquia designa também o triunfo das forças reativas, o
contágio das forças reativas e a complexa organização que disto se segue, onde os
fracos venceram, onde os fortes estão contaminados, onde o escravo que não deixou
de ser escravo prevalece sobre um senhor que não deixou de sê-lo: o reino da lei e da
virtude. Neste segundo sentido, a moral e a religião ainda são teorias da hierarquia.185
Comparando-se os dois sentidos, o que se vê é o segundo como o avesso do primeiro.
Fazemos da Igreja, da moral e do Estado os senhores ou detentores [69] de toda
hierarquia. Temos a hierarquia que merecemos, nós que somos essencialmente
181 Co. In., I, “Utilidade e inconvenientes dos estudos históricos”, 8.182 VP, II, 133.183 BM, 263.184 HH, Prefácio, 7.185 VP, III, 385 e 391.
reativos, nós que tomamos os triunfos da reação como uma metáfora da ação, e os
escravos como novos senhores – nós que só reconhecemos a hierarquia ao avesso.
Nietzsche chama de fraco ou escravo, não o menos forte, mas aquele que, seja
qual for sua força, está separado do que pode. O menos forte é tão forte quanto o forte
se ele vai ao cabo, porque o ardil, a sutileza, a espiritualidade, até mesmo o charme
pelos quais ele completa sua força menor, pertencem precisamente a essa força e
fazem com que ela não seja menor.186 A medida das forças e sua qualificação em nada
dependem da quantidade absoluta, mas da efetuação relativa. Não se pode julgar a
força e a fraqueza, tomando como critério o desfecho da luta e o sucesso. Pois, uma
vez mais, é um fato que os fracos triunfam: esta é mesmo a essência do fato. Só se
pode julgar forças caso se leve em conta, em primeiro lugar, sua qualidade, ativo ou
reativo; em segundo lugar, a afinidade dessa qualidade com o polo correspondente da
vontade de potência, afirmativo ou negativo; em terceiro lugar, a nuança de qualidade
que a força apresenta neste ou naquele momento do seu desenvolvimento, em
entrelace com sua afinidade. Destarte, a força reativa é: 1º) força utilitária, de
adaptação e de limitação parcial; 2º) força que separa a força ativa do que esta pode,
que nega a força ativa (triunfo dos fracos ou dos escravos); 3º) força separada do que
ela pode, que nega a si mesma ou se volta contra si (reino dos fracos ou dos
escravos). E, paralelamente, a força ativa é: 1º) força plástica, dominante e
subjugante; 2º) força que vai ao cabo do que ela pode; 3º) força que afirma sua
diferença, que faz de sua diferença um objeto de gozo e de afirmação. As forças
apenas são determinadas concreta e completamente caso se leve em conta esses três
pares de caráteres de uma só vez.
11) VONTADE DE POTÊNCIA
E SENTIMENTO DE POTÊNCIA
Sabemos o que é a vontade de potência: o elemento diferencial, o elemento
genealógico que determina o entrelace da força com a força e que produz a qualidade 186 Os dois animais de Zaratustra são a águia e a serpente: a águia é forte e orgulhosa; mas a
serpente não é menos forte, sendo ardilosa e charmosa; cf. Prólogo, 10.
da força. Assim, a [70] vontade de potência deve se manifestar na força enquanto tal.
O estudo das manifestações da vontade de potência deve ser feito com o maior
cuidado, porque o dinamismo das forças depende inteiramente dele. Mas o que
significa: a vontade de potência se manifesta? O entrelace das forças é determinado,
em cada caso, à medida que uma força é afetada por outras, inferiores ou superiores.
Segue-se disto que a vontade de potência se manifesta como um poder de ser afetado.
Esse poder não é uma possibilidade abstrata: ele é necessariamente preenchido e
efetuado a cada instante pelas outras forças com as quais essa daqui está em
entrelace. Não se ficará espantado com o duplo aspecto da vontade de potência: ela
determina o entrelace das forças entre si, do ponto de vista da gênese ou da produção
delas; mas é determinada pelas forças em entrelace, do ponto de vista de sua própria
manifestação. Eis por que a vontade de potência é sempre determinada ao mesmo
tempo em que ela determina, qualificada ao mesmo tempo em que qualifica. Em
primeiro lugar, então, a vontade de potência se manifesta como o poder de ser
afetado, como o poder determinado da força de ser, ela mesma, afetada. – É difícil,
aqui, negar em Nietzsche uma inspiração spinozista. Spinoza, numa teoria
extremamente profunda, queria que a toda quantidade de força correspondesse um
poder de ser afetado. Um corpo tinha tanta força quanto maior o número de jeitos
pelos quais ele podia ser afetado; é esse poder que media a força de um corpo ou que
exprimia sua potência. E, por um lado, esse poder não era uma simples possibilidade
lógica: ele era a cada instante efetuado pelos corpos com os quais estava em
entrelace. Por outro lado, esse poder não é uma passividade física: só eram passivas
as afecções cujo corpo considerado não era causa adequada.187
O mesmo se dá em Nietzsche: o poder de ser afetado não significa
necessariamente passividade, mas afetividade, sensibilidade, sensação. É neste
sentido que Nietzsche, antes mesmo de ter elaborado o conceito de vontade de
potência, e dado a ele toda sua significação, já falava de um sentimento de potência: a
187 Se nossa interpretação é exata, Spinoza viu antes de Nietzsche que uma força não era separável de um poder de ser afetado, e que esse poder exprimia sua potência. Nietzsche não deixa de criticar Spinoza, mas num outro ponto: Spinoza não soube elevar-se até à concepção de uma vontade de potência, ele confundiu a potência com a simples força e concebeu a força de maneira reativa (cf. o conatus e a conservação).
potência foi tratada por Nietzsche como um [71] assunto de sentimento e de
sensibilidade, antes de ser tratada como um assunto de vontade. Mas quando ele
elaborou o conceito completo de vontade de potência, essa primeira característica não
desapareceu de jeito algum, ela deveio a manifestação da vontade de potência. Eis
por que Nietzsche não pára de dizer que a vontade de potência é “a forma afetiva
primitiva”, aquela da qual derivam todos os outros sentimentos.188 Ou melhor ainda:
“A vontade de potência não é um ser nem um devir, é um pathos.”189 Ou seja: a
vontade de potência se manifesta como a sensibilidade da força; o elemento
diferencial das forças se manifesta como a sensibilidade diferencial delas. “O fato é
que a vontade de potência reina até mesmo no mundo inorgânico, ou antes, que não
há mundo inorgânico. Não se pode eliminar a ação à distância: uma coisa atrai outra,
uma coisa se sente atraída. Eis o fato fundamental... Para que a vontade de potência
possa se manifestar, ela precisa perceber as coisas que vê, ela sente a aproximação
do que lhe é assimilável.”190 As afecções de uma força são ativas na medida em que
ela se faz obedecida por forças inferiores. Inversamente, elas são sofridas, ou antes
agidas, quando a força é afetada por forças superiores às quais ela obedece. Aqui
também, obedecer é uma manifestação da vontade de potência. Mas uma força
inferior pode acarretar a desagregação de forças superiores, sua cisão, a explosão da
energia que elas tinham acumulado; Nietzsche gosta, neste sentido, de aproximar os
fenômenos de desagregação do átomo, de cisão do protoplasma e de reprodução do
vivente.191 E não apenas desagregar, cindir, separar exprimem sempre a vontade de
potência, mas também ser desagregado, ser cindido, ser separado: “A divisão aparece
como a conseqüência da vontade de potência.”192 Dadas duas forças, uma superior e
outra inferior, vê-se como o poder de ser afetado de cada uma é necessariamente
preenchido. Mas esse poder de ser afetado não é preenchido sem que a força
correspondente entre, ela mesma, numa história ou num devir sensível: 1º) força
ativa, potência de agir ou de comandar; 2º) força reativa, poder de obedecer ou de ser
188 VP, II, 42.189 VP, II, 311.190 VP, II, 89.191 VP, II, 45, 77, 187.192 VP, II, 73.
agido; 3º) força reativa desenvolvida, potência de cindir, de dividir, [72] de separar;
4º) força ativa que deveio reativa, potência de ser separado, de voltar-se contra si.193
Toda a sensibilidade é tão somente um devir de forças: há um ciclo da força no
curso do qual a força “devém” (por exemplo, a força ativa devém reativa). Há até
mesmo vários devires de forças, que podem lutar uns contra os outros.194 Assim, não
basta colocar em paralelo, nem opor os caráteres respectivos da força ativa e da força
reativa. Ativo e reativo são as qualidades da força que decorrem da vontade de
potência. Mas a própria vontade de potência tem qualidades, sensibilia,nt que são
como que devires de forças. A vontade de potência se manifesta, em primeiro lugar,
como sensibilidade das forças; e, em segundo lugar, como devir sensível das forças: o
pathos é o fato mais elementar donde resulta um devir.195 O devir das forças, em
geral, não deve se confundir com as qualidades da força: ele é o devir dessas
qualidades mesmas, a qualidade da vontade de potência em pessoa. Mas justamente,
não mais se poderá abstrair as qualidades da força do devir delas, nem tampouco a
força, da vontade de potência: o estudo concreto das forças implica necessariamente
uma dinâmica.
12) O DEVIR-REATIVO DAS FORÇAS
Mas, na verdade, a dinâmica das forças nos conduz a uma conclusão
desoladora. Quando a força reativa separa a força ativa do que ela pode, esta por sua
vez devém reativa. As forças ativas devêm reativas. E a palavra devir deve ser
tomada no sentido mais forte: o devir das forças aparece como um devir-reativo. Não
haveria outros devires? Só que nós não sentimos, não experimentamos, não
conhecemos outro devir que não o devir-reativo. Não apenas constatamos a existência
de forças reativas, em toda parte constatamos o seu triunfo. Pelo quê elas triunfam?
193 VP, II, 171: “... essa força em seu máximo que, voltando-se contra ela mesma, uma vez que nada pôde organizar, emprega sua força a desorganizar.”
194 VP, II, 170: “Em vez da causa e do efeito, luta dos diversos devires; amiúde o adversário é engolido; os devires não estão em número constante.”
n t [Em latim, plural neutro de sensibile, ou seja: todas as coisas sensíveis, que participam da sensibilidade.]195 VP, II, 311.
Pela vontade de nada, graças à afinidade da reação com a negação. O que é a
negação? É uma qualidade da vontade de potência, é ela que qualifica a vontade de
potência como niilismo [73] ou vontade de nada, é ela que constitui o devir-reativo
das forças. Não é preciso dizer que a força ativa devém reativa porque as forças
reativas triunfam; ao contrário, elas triunfam porque, ao separarem a força ativa do
que esta pode, largam-na à vontade de nada como a um devir reativo mais profundo
que elas mesmas. Eis por que as figuras do triunfo das forças reativas (ressentimento,
má consciência, ideal ascético) são primeiramente as formas do niilismo. O devir-
reativo da força, o devir niilista, eis o que parece essencialmente compreendido no
entrelace da força com a força. – Haveria um outro devir? Talvez tudo nos convide a
“pensá-lo”. Mas seria uma outra sensibilidade; como Nietzsche freqüentemente diz,
uma outra maneira de sentir. Ainda não podemos responder a essa questão,
penosamente a vislumbramos. Mas podemos perguntar por que só sentimos e
conhecemos um devir-reativo. Não seria porque o homem é essencialmente reativo?
Porque o devir-reativo é constitutivo do homem? O ressentimento, a má consciência,
o niilismo não são traços de psicologia, mas como que o fundamento da humanidade
no homem. São o princípio do ser humano como tal. O homem, “doença de pele” da
terra, reação da terra...196 É neste sentido que Zaratustra fala do “grande desprezo”
dos homens, e do “grande desgosto”. Seriam ainda do homem uma outra
sensibilidade, um outro devir?
Essa condição do homem é da maior importância para o eterno retorno. Ela
parece comprometê-lo ou contaminá-lo tão gravemente, que ele mesmo devém objeto
de angústia, de repulsa e de desgosto. Mesmo que revenham as forças ativas, elas
redevirão reativas, eternamente reativas. O eterno retorno das forças reativas, e mais
ainda: o retorno do devir-reativo das forças. Zaratustra não apresenta apenas o
pensamento do eterno retorno como misterioso e secreto, mas como enjoativo, difícil
de suportar.197 Na primeira exposição do eterno retorno, sucede uma estranha visão: a
de um pastor “que se contorce, estertorante e convulsivo, o rosto decomposto”, uma
196 Z, II, “Dos grandes acontecimentos”.197 Cf. também VP, IV, 235 e 246.
pesada serpente negra pendendo pra fora de sua boca.198 Mais tarde, o próprio
Zaratustra explica a visão: “O grande desgosto do homem, é isto que me sufocou e
me entrou pela goela... Ele revirá eternamente, o homem do qual estás cansado, o
homem [74] pequeno... Ai! o homem revirá eternamente... E o eterno retorno, mesmo
do menor – era a causa de meu fastio pela existência toda! Ai de mim! desgosto,
desgosto, desgosto!”199 O eterno retorno do homem pequeno, mesquinho, reativo, não
faz do pensamento do eterno retorno algo apenas insuportável; ele faz do próprio
eterno retorno algo impossível, ele põe a contradição no eterno retorno. A serpente é
um animal do eterno retorno; mas a serpente se desenrola, devém “uma pesada
serpente negra” e pende pra fora da boca que se apressava em falar, na medida em
que o eterno retorno é o das forças reativas. Pois como o eterno retorno, ser do devir,
poderia afirmar-se de um devir niilista? – Para afirmar o eterno retorno, é preciso
decepar e cuspir a cabeça da serpente. Aí o pastor nem mais é homem nem pastor:
“ele havia se transformado, aureolado, ele ria! Homem nenhum jamais havia rido
sobre a terra como ele ri.”200 Um outro devir, uma outra sensibilidade: o superhomem.
13) AMBIVALÊNCIA DO SENTIDO E DOS VALORES
Um outro devir que não esse que conhecemos: um devir-ativo das forças, um
devir-ativo das forças reativas. A avaliação de tal devir levanta várias questões e deve
nos servir, uma última vez, para provar a coerência sistemática dos conceitos
nietzscheanos na teoria da força. – Intervém uma primeira hipótese. Nietzsche chama
de força ativa aquela que vai ao cabo de suas conseqüências; uma força ativa,
separada do que ela pode pela força reativa, devém então reativa por sua vez; mas
essa mesma força reativa, será que ela não vai ao cabo do que ela pode, à sua
maneira? Se a força ativa devém reativa, sendo separada, a força reativa não devém
inversamente ativa, ela que separa? Não é sua maneira de ser ativa? Concretamente:
não haveria uma baixeza, uma vilania, uma bestice &c., que devêm ativas por força
198 Z, III, “Da visão e do enigma”.199 Z, III, “O convalescente”.200 Z, III, “Da visão e do enigma”.
de irem ao cabo do que podem? “Rigorosa e grandiosa besteira...”, escreverá
Nietzsche.201 Essa hipótese lembra a objeção socrática, mas dela se distingue de fato.
Não mais se está dizendo, como Sócrates, que as forças inferiores só triunfam
formando uma força maior; mas que as forças reativas [75] só triunfam indo ao cabo
de suas conseqüências, portanto formando uma força ativa.
É certo que uma força reativa pode ser considerada de diferentes pontos de
vista. A doença, por exemplo, separa-me do que posso: força reativa, ela me torna
reativo, ela restringe minhas possibilidades e me condena a um meio diminuído ao
qual posso tão somente adaptar-me. Porém, de outra maneira, ela me revela uma nova
potência, dota-me de uma nova vontade que posso fazer minha, indo ao cabo de um
estranho poder. (Esse poder extremo põe em jogo muitas coisas, entre outras a
seguinte: “Observar conceitos mais sãos, valores mais sãos, colocando-se num ponto
de vista de doente...”202). Reconhece-se uma ambivalência cara a Nietzsche: de todas
as forças cujo caráter reativo ele denuncia, ele confessa algumas páginas ou algumas
linhas adiante que elas lhe fascinam, que são sublimes pelo ponto de vista que nos
abrem e pela inquietante vontade de potência de que são testemunho. Elas nos
separam de nosso poder, mas ao mesmo tempo nos dão um outro poder, quão
“perigoso”, quão “interessante”. Elas nos trazem novas afecções, nos ensinam novas
maneiras de ser afetado. Há algo admirável no devir-reativo das forças, admirável e
perigoso. Não só o homem doente, mas até o homem religioso apresenta esse duplo
aspecto: por um lado, homem reativo; por outro, homem de uma potência.203 “A
história da humanidade seria, deveras, uma coisa bastante inpeta sem o espírito pelo
qual os impotentes a animaram.”204 Cada vez que Nietzsche falará de Sócrates, do
Cristo, do judaísmo e do cristianismo, de uma forma de decadência ou de
201 BM, 188.202 EH, I, 1.203 GM, I, 6: “É no próprio terreno dessa forma de existência, essencialmente perigosa, a
existência sacerdotal, que o homem começou a devir um animal interessante; é aqui, num sentido sublime, que a alma humana adquiriu a profundidade e a maldade...” – Sobre a ambivalência do sacerdote, GM, III, 15: “É preciso que ele mesmo esteja doente, é preciso que ele esteja intimamente afiliado às doenças, aos deserdados, para poder entendê-los, para poder se entender com eles; mas também é preciso que ele seja forte, mais senhor de si mesmo do que dos outros, inabalável sobretudo em sua vontade de potência, a fim de possuir a confiança dos doentes e ser temido...”
204 GM, I, 7.
degenerescência, ele descobrirá essa mesma ambivalência das coisas, dos seres e das
forças.
Todavia: será exatamente a mesma força, aquela que me separa do que posso e
aquela que me dota de um novo poder? Será a mesma doença, o mesmo doente,
aquele [76] que é escravo de sua doença e aquele que dela se serve como de um meio
para explorar, dominar, ser potente? Será a mesma religião, aquela dos fiéis, que são
como cordeiros balindo, e aquela de certos sacerdotes, que são como novas “aves de
rapina”? De fato, as forças reativas não são as mesmas e mudam de nuança conforme
desenvolvam, mais ou menos, seu grau de afinidade com a vontade de nada. Uma
força reativa que, de uma vez só, obedece e resiste; uma força reativa que separa a
força ativa do que esta pode; uma força reativa que contamina a força ativa, que
arrasta-lhe até ao cabo do devir-reativo, na vontade de nada; uma força reativa que
primeiramente foi ativa, mas que deveio reativa, separada de seu poder, depois
arrastada no abismo e voltando-se contra si: eis aí diferentes nuanças, diferentes
afecções, diferentes tipos, que o genealogista deve interpretar e que ninguém mais
sabe interpretar. “Preciso eu dizer que tenho experiência em todas as questões que
tocam à decadência? Eu a esburguei em todos os sentidos, na frente e atrás. Essa arte
da filigrana, essa arte do tocar e da compreensão, esse instinto da nuança, essa
psicologia do desvio, tudo aquilo que me caracteriza...”205 Problema da interpretação:
interpretar em cada caso o estado das forças reativas, isto é, o grau de
desenvolvimento que elas atingiram no entrelace com a negação, com a vontade de
nada. – O mesmo problema de interpretação se colocaria do lado das forças ativas.
Em cada caso, interpretar sua nuança ou seu estado, isto é, o grau de desenvolvimento
do entrelace entre a ação e a afirmação. Há forças reativas que devêm grandiosas e
fascinantes, por força de seguirem a vontade de nada; mas há forças ativas que
tombam, porque não sabem seguir as potências de afirmação (veremos ser este o
problema daquilo que Nietzsche chama de “a cultura” ou “o homem superior”).
Enfim, a avaliação apresenta ambivalências ainda mais profundas que as da
interpretação. Julgar a própria afirmação do ponto de vista da própria negação, e a
205 EH, I, 1.
negação do ponto de vista da afirmação; julgar a vontade afirmativa do ponto de vista
da vontade niilista, e a vontade niilista do ponto de vista da vontade que afirma: é esta
a arte do genealogista, e o genealogista é médico. “Observar conceitos mais sãos,
valores mais são, colocando-se de um ponto de vista de doente, e inversamente,
consciente da plenitude e do sentimento de si que a [77] vida superabundante possui;
mergulhar os olhares no trabalho secreto do instinto de decadência...”
Porém, seja qual for a ambivalência do sentido e dos valores, não podemos
concluir que uma força reativa devenha ativa indo ao cabo do que ela pode. É que “ir
ao cabo”, “ir até às últimas conseqüências”, tem dois sentidos, conforme se afirme ou
se negue, conforme se afirme sua própria diferença ou se negue aquilo que difere.
Quando uma força reativa desenvolve suas últimas conseqüências, é em entrelace
com a negação, com a vontade de nada que lhe serve de motor. O devir-ativo, ao
contrário, supõe a afinidade da ação com a afirmação; para devir ativo, não basta que
uma força vá ao cabo do que ela pode, é preciso que ela faça disso que ela pode um
objeto de afirmação. O devir-ativo é afirmador e afirmativo, assim como o devir-
reativo é negador e niilista.
14) SEGUNDO ASPECTO DO ETERNO RETORNO:
COMO PENSAMENTO ÉTICO E SELETIVO
Nem sentido nem conhecido, um devir-ativo só poder ser e ser pensado como o
produto de uma seleção. Dupla seleção simultânea: da atividade da força, e da
afirmação na vontade. Mas quem pode operar a seleção? Quem serve de princípio
seletivo? Nietzsche responde: o eterno retorno. Objeto de desgosto ainda há pouco, o
eterno retorno supera o desgosto e faz de Zaratustra um “convalescente”, um
“consolado”.206 Mas em qual sentido o eterno retorno é seletivo? Primeiro porque, a
título de pensamento, ela dá uma regra prática à vontade.207 O eterno retorno dá à
vontade uma regra tão rigorosa quanto a regra kantiana. Havíamos observado que o
eterno retorno, como doutrina física, era a nova formulação da síntese especulativa. 206 Z, III, “O convalescente”.207 VP, IV, 229, 231: “O grande pensamento seletivo”.
Como pensamento ético, o eterno retorno é a nova formulação da síntese prática:
Aquilo que tu queres, queira de tal maneira que tu queiras também o eterno retorno.
“Se, naquilo que queres fazer, começares perguntando-te: é certo que quero fazer isso
um número infinito de vezes?, este será para ti o centro de gravidade mais sólido.”208
Uma coisa no mundo [78] enjoa Nietzsche: as pequenas compensações, os pequenos
prazeres, as pequenas alegrias, tudo com o qual se concorda uma vez, nada além de
uma vez. Tudo que só se pode refazer no dia seguinte sob condição de se ter dito na
véspera: amanhã não farei mais – todo o cerimonial do obsessivo. E assim somos
como aquelas velhas senhoras que se permitem a um excesso uma só vez, agimos
como elas e pensamos como elas. “Ai, se vos desfizésseis desses semi-quereres, se
vos decidísseis pela preguiça ou pela ação! ai, se compreendêsseis minha palavra:
fazei sempre o que quiserdes, mas sede primeiramente daqueles que podem
querer.”209 Uma preguiça que gostaria do seu eterno retorno, uma bestice, uma
baixeza, uma covardia, uma maldade que gostariam do seu eterno retorno: já não
seria a mesma preguiça, já não seria a mesma bestice... Vejamos melhor como o
eterno retorno opera aqui a seleção. É o pensamento do eterno retorno que seleciona.
Ela faz do querer algo inteiro. O pensamento do eterno retorno elimina do querer tudo
aquilo que tomba pra fora do eterno retorno, ele faz do querer uma criação, ele efetua
a equação querer=criar.
É claro que tal seleção permanece inferior às ambições de Zaratustra. Ela se
contenta em eliminar certos estados reativos, certos estados de forças reativas dentre
os menos desenvolvidos. Mas as forças reativas que, à sua maneira, vão ao cabo do
que podem, e que acham na vontade niilista um potente motor, estas resistem à
primeira seleção. Longe de tombar pra fora do eterno retorno, elas entram no eterno
retorno e parecem revir com ele. Assim, é preciso esperar por uma segunda seleção,
bem diferente da primeira. Mas essa segunda seleção põe em causa as partes mais
obscuras da filosofia de Nietzsche, e forma um elemento quase iniciático na doutrina
208 VP, IV, 242.209 Z, III, “Da virtude que apequena”. – II, “Dos misericordiosos”: “O que há de pior são os
pensamentos mesquinhos. Na verdade, melhor vale fazer mal do que pensar pequeno. Vós dizeis, é verdade: a alegria das pequenas maldades nos poupa de muitos grande malfeitos. Mas nesse domínio, não se deveria querer economizar.”
do eterno retorno. Devemos, então, apenas recensear os temas nietzscheanos,
deixando para almejar mais tarde uma explicação conceitual detalhada: 1º) Por que se
diz que o eterno retorno é “a forma exorbitante do niilismo”?210 E se o eterno retorno
é a forma exorbitante do niilismo, o niilismo, por sua vez, separado ou abstraído do
eterno retorno, é sempre em si mesmo um “niilismo [79] incompleto”:211 por mais
longe que for, por mais potente que seja. Só o eterno retorno faz da vontade niilista
uma vontade completa e inteira; 2º) É que a vontade de nada, tal como a estudamos
até agora, sempre nos aparece em sua aliança com as forças reativas. Esta era sua
essência: ela negava a força ativa, conduzia a força ativa a negar-se, a voltar-se contra
si. Mas, ao mesmo tempo, ela fundava assim a conservação, o triunfo e contágio das
forças reativas. A vontade de nada era o devir-reativo universal, o devir-reativo das
forças. Eis, então, em qual sentido o niilismo é o contrário do que se acredita, “é um
expediente da arte de conservar a vida”; o niilismo é o princípio de conservação de
uma vida fraca, diminuída, reativa; a depreciação da vida, a negação da vida formam
o princípio à sombra do qual a vida reativa se conserva, sobrevive, triunfa e devém
contagiosa;212 3º) O que se passa quando a vontade de nada é entrelaçada ao eterno
retorno? É somente aí que ela quebra sua aliança com as forças reativas. É somente o
eterno retorno que faz do niilismo um niilismo completo, porque ele faz da negação
uma negação das forças reativas elas mesmas. O niilismo, pelo e no eterno retorno,
não mais se exprime como a conservação e a vitória dos fracos, mas como a
destruição dos fracos, sua auto-destruição. “Esse desaparecimento se apresenta sob o
aspecto de uma destruição, de uma seleção instintiva da força destrutiva... A vontade
de destruir, expressão de um instinto ainda mais profundo, da vontade de se destruir:
a vontade do nada.213 Eis por que Zaratustra, desde o prólogo, canta “aquele que quer
seu próprio declínio”: “pois ele quer perecer”, “pois ele não quer se conservar”, “pois
ele transpassará a ponte sem hesitar”.214 O prólogo de Zaratustra contém como que o
segredo prematuro do eterno retorno; 4º) Não se confundirá o voltar-se contra si com
210 VP, III, 8.211 VP, III, 7.212 GM, III, 13.213 VP, III, 8.214 Z, Prólogo, 4.
essa destruição de si, essa auto-destruição. No voltar-se contra si, processo da reação,
a força ativa devém reativa. Na auto-destruição, as próprias forças reativas são
negadas e conduzidas ao nada. Eis por que a auto-destruição é dita uma operação
ativa, uma “destruição ativa”.215 É ela, e ela somente, [80] que exprime o devir-ativo
das forças: as forças devêm ativas na medida em que as forças reativas se negam, se
suprimem em nome do princípio que, até então, assegurava sua conservação e seu
triunfo. A negação ativa, a destruição ativa, é o estado dos espíritos fortes que
destróem o reativo neles, submentendo-o à prova do eterno retorno, e eles mesmos se
submetendo a essa prova, arriscando-se a querer seu declínio; “é o estado dos
espíritos fortes e das vontades fortes, não lhes é possível ater-se a um juízo negativo,
a negação ativa se finca na profunda natureza deles.”216 É esta a única maneira pela
qual as forças reativas devêm ativas. Com efeito e mais ainda: eis que a negação,
fazendo-se de negação das próprias forças reativas, não é apenas ativa, ela está como
que transmutada. Ela exprime a afirmação, exprime o devir-ativo como potência de
afirmar. Nietzsche fala então da “eterna alegria do devir, essa alegria que também traz
em si a alegria do aniquilamento”; “a afirmação do aniquilamento e da destruição, o
que há decisivo numa filosofia dionisíaca...”;217 5º) A segunda seleção no eterno
retorno consiste, portanto, no seguinte: o eterno retorno produz o devir-ativo. Basta
entrelaçar a vontade de nada ao eterno retorno para aperceber-se de que as forças
reativas não revêm. Por mais longe que forem, e por mais profundo que seja o devir-
reativo das forças, as forças reativas não revirão. O homem pequeno, mesquinho,
reativo, não revirá. Pelo e no eterno retorno, a negação como qualidade da vontade de
potência se transmuta em afirmação, ela devém uma afirmação da própria negação,
ela devém uma potência de afirmar, uma potência afirmativa. É isso que Nietzsche
apresenta como a cura de Zaratustra, e também como o segredo de Dioniso: “O
niilismo vencido por si mesmo”, graças ao eterno retorno.218 Ora, esta segunda
seleção é bem diferente da primeira: não mais se trata, pelo simples pensamento do
eterno retorno, de eliminar do querer aquilo que tomba pra fora desse pensamento; 215 VP, III, 8; EH, III, 1.216 VP, III, 102.217 EH, III, “Origem da tragédia”, 3.218 VP, III.
trata-se, pelo eterno retorno, de fazer entrar no ser aquilo que nele não pode entrar
sem mudar de natureza. Não mais se trata de um pensamento seletivo, mas do ser
seletivo; pois o eterno retorno é o ser, e o ser é seleção. (Seleção=hierarquia). [81]
15) O PROBLEMA DO ETERNO RETORNO
Tudo isso deve ser tomado como um simples recenseamento de textos. Esses
textos apenas serão elucidados em função dos seguintes pontos: o entrelace das duas
qualidades da vontade de potência, a negação e a afirmação; o entrelace da própria
vontade de potência com o eterno retorno; a possibilidade de uma transmutação como
nova maneira de sentir, de pensar, e sobretudo como nova maneira de ser (o
superhomem). Na terminologia de Nietzsche, reversão dos valores significa o ativo
em vez do reativo (propriamente falando, é a reversão de uma reversão, já que o
reativo tinha começado tomando o lugar da ação); mas transmutação dos valores. ou
transvaliação, significa a afirmação em vez da negação, mais ainda, a negação
transformada em potência de afirmação, suprema metamorfose dionisíaca. Todos
esses pontos ainda não analisados formam o ápice da doutrina do eterno retorno.
De longe vemos penosamente onde esse ápice está. O eterno retorno é o ser do
devir. Mas o devir é duplo: devir-ativo e devir-reativo, devir-ativo das forças reativas
e devir-reativo das forças ativas. Ora, só o devir-ativo tem um ser; seria contraditório
que o ser do devir se afirmasse de um devir-reativo, ou seja, de um devir ele mesmo
niilista. O eterno retorno deviria contraditório se ele fosse o retorno das forças
reativas. O eterno retorno nos ensina que o devir-reativo não tem ser. E também, é ele
que nos ensina a existência de um devir-ativo. Ele necessariamente produz o devir-
ativo ao reproduzir o devir. Eis por que a afirmação vai a dois: não se pode afirmar
plenamente o ser do devir sem afirmar a existência do devir-ativo. O eterno retorno,
portanto, tem um duplo aspecto: ele é o ser universal do devir, mas o ser universal do
devir se diz de um só devir. Só o devir-ativo tem um ser, que é o ser do devir inteiro.
Revir é o todo, mas o todo se afirma de um só momento. Conforme se afirma o
eterno retorno como o ser universal do devir, conforme se afirma ademais o devir-
ativo como o sintoma e o produto do eterno retorno universal, a afirmação muda de
nuança e devém mais e mais profunda. O eterno retorno como doutrina física afirma
o ser do devir. Porém, enquanto ontologia seletiva, ele afirma este ser do devir como
que “se afirmando” do devir-ativo. Vê-se que, no seio da conivência que une
Zaratustra e seus animais, um malentendido [82] se levanta, como um problema que
os animais não compreendem, não conhecem, mas que é o problema do desgosto e da
cura do próprio Zaratustra: “Ó pilantras que sois, ó realejos!, responde Zaratustra
sorrindo... já fizestes disso um refrão.”219 O refrão é o ciclo e o todo, o ser universal.
Mas a fórmula completa da afirmação é: o todo, sim, o ser universal, sim, mas o ser
universal se diz de um só devir, o todo se diz de um só momento.
219 Z, III, “O convalescente”.
[83]
CAPÍTULO III
A CRÍTICA
1) TRANSFORMAÇÃO DAS CIÊNCIAS DO HOMEM
Para Nietzsche o balanço das ciências parece um triste balanço: por toda parte
a predominância de conceitos passivos, reativos, negativos. Por toda parte o esforço
para interpretar os fenômenos a partir das forças reativas. Já vimos isso para a física e
para a biologia. Mas na medida em que se afunda nas ciências do homem, assiste-se
ao desenvolvimento da interpretação reativa e negativa dos fenômenos: a “utilidade”,
a “adaptação”, a “regulação”, até o “esquecimento” servem como conceitos
explicativos.220 Por toda parte, nas ciências do homem e mesmo da natureza, aparece
a ignorância das origens e da genealogia das forças. Dir-se-ia que o cientista toma
como modelo o triunfo das forças reativas, e a este quer acorrentar o pensamento. Ele
invoca seu respeito pelo fato e seu amor pelo verdadeiro. Mas o fato é uma
interpretação: qual tipo de interpretação? O verdadeiro exprime uma vontade: quem
quer o verdadeiro? Nunca antes como hoje se viu a ciência levar tão longe, num certo
sentido, a exploração da natureza e do homem, mas também nunca antes ela foi vista
levando tão longe a submissão ao ideal e à ordem estabelecidos. Aos cientistas,
mesmo democratas e socialistas, não lhes falta piedade; só que eles inventaram uma
teologia que já não depende do coração.221 “Vejam na evolução de um povo as épocas
onde o cientista passa ao primeiro plano, são épocas de cansaço, amiúde de
crepúsculo, de declínio.”222
O desconhecimento da ação, de tudo que é ativo, explode [84] nas ciências do
homem: por exemplo, julga-se a ação por sua utilidade. Não nos apressemos em dizer 220
GM, I, 2.221 GM, III, 23-25. – Sobre a psicologia do cientista, BM, 206-207.222 GM, III, 25.
que o utilitarismo é uma doutrina hoje em dia ultrapassada. Primeiramente, se ela é,
em parte é graças a Nietzsche. Depois, ocorre que uma doutrina apenas se deixa
ultrapassar na condição de estender seus princípios, de fazer deles postulados melhor
escondidos nas doutrinas que a ultrapassam. Nietzsche pergunta: ao quê remete o
conceito de utilidade? Ou seja: a quem uma ação é útil ou nociva? Quem, então,
considera a ação do ponto de vista de sua utilidade ou de sua nocividade, do ponto de
vista de seus motivos e de suas conseqüências? Não aquele que age; este não
“considera” a ação. Mas sim o terceiro, paciente ou espectador. É ele que considera a
ação que ele não empreende, precisamente porque ele não a empreende, como algo a
ser avaliado do ponto de vista da vantagem que ele pode ou não tirar disso: ele estima
que possui um direito natural sobre a ação, ele que não age, e que merece recolher
dela uma vantagem ou benefício.223 Pressintamos a fonte da “utilidade”: é a fonte de
todos os conceitos passivos em geral, o ressentimento, nada além das exigências do
ressentimento. – Utilidade serve-nos aqui de exemplo. Mas, de todo jeito, o que
parece pertencer à ciência, e também à filosofia, é o gosto de substituir os entrelaces
reais de forças por um entrelace abstrato que é obrigado a exprimi-los todos, como
uma “medida”. A esse respeito, o espírito objetivo de Hegel não vale mais do que a
utilidade igualmente “objetiva”. Ora, nesse entrelace abstrato, seja ele qual for,
sempre se é conduzido a substituir as atividades reais (criar, falar, amar etc.) pelo
ponto de vista de um terceiro sobre essas atividades: confunde-se a essência da
atividade com o benefício de um terceiro, do qual se pretende que ele deva tirar
proveito disto e que ele tem o direito de recolher seus efeitos (Deus, o espírito
objetivo, a humanidade, a cultura, ou até mesmo o proletariado...).
Que seja um outro exemplo, o da lingüística: tém-se o hábito de julgar a
linguagem do ponto de vista daquele que escuta. Nietzsche sonha com uma outra
filologia, uma filologia ativa. O segredo da palavra não está do lado de quem escuta,
nem o segredo da vontade do lado de quem obedece, ou o segredo da força do lado de
quem reage. A filologia ativa de Nietzsche tem apenas um princípio: uma palavra só
quer dizer alguma coisa na medida em que quem a diz quer alguma coisa ao dizer. E
223 GM, I, 2 e 10; BM, 260.
uma só regra: tratar a fala como uma atividade real, colocar-se do ponto de vista
daquele que fala. “Esse [85] direito de senhor, direito de dar nomes, vai tão longe que
pode-se considerar a origem mesma da linguagem como um ato de autoridade a
emanar daqueles que dominam. Eles disseram: isto é tal e tal coisa, eles ataram a um
objeto e a um fato tal vocábulo, e com isso se apropriaram deles, por assim dizer.”224
A lingüística ativa busca descobrir aquele que fala e que nomeia. Quem se serve de
tal palavra, a quem primeiramente ele a aplica, a ele mesmo, a alguém outro que
escuta, a alguma outra coisa, e em qual intenção? O que ele quer ao dizer tal palavra?
A transformação do sentido de uma palavra significa que alguém outro (uma outra
força e uma outra vontade) dela se apodera, aplicando-a a outra coisa porque ele quer
algo de diferente. Toda a concepção nietzscheana da etimologia e da filologia, amiúde
mal compreendida, depende desse princípio e dessa regra. – Nietzsche dará uma
brilhante aplicação disso na Genealogia da Moral, onde ele se interroga sobre a
etimologia da palavra “bom”, sobre o sentido dessa palavra, sobre a transformação
desse sentido: como a palavra “bom” foi primeiramente criada pelos senhores que
aplicavam-na a si mesmos, depois apreendida pelos escravos que a surrupiavam da
boca dos senhores, dos quais diziam, ao contrário, “são uns maldosos”.225
O que seria uma ciência verdadeiramente ativa, penetrada de conceitos ativos,
como essa nova filologia? Só uma ciência ativa é capaz de descobrir as forças ativas,
mas também reconhecer as forças reativas pelo que elas são, ou seja, como forças. Só
uma ciência ativa é capaz de interpretar as atividades reais, mas também os entrelaces
reais entre as forças. Ela se apresenta, portanto, sob três formas. Uma sintomatologia,
já que interpreta os fenômenos, tratando-os como sintomas, cujo sentido é preciso
buscar nas forças que os produzem. Uma tipologia, já que interpreta as próprias
forças do ponto de vista de sua qualidade, ativa ou reativa. Uma genealogia, já que
avalia a origem das forças do ponto de vista de sua nobreza ou de sua baixeza, já que
acha a ascendência delas na vontade de potência e na qualidade dessa vontade. As
diferentes ciências, até mesmo as ciências da natureza, têm sua unidade numa tal
224 GM, I, 2.225 GM, I, 4, 5, 10, 11.
concepção. Mais ainda, a filosofia e a ciência têm sua unidade.226 Quando a ciência
deixa de utilizar conceitos passivos, ela deixa de ser um positivismo, mas a filosofia
deixa de ser uma utopia, um [86] devaneio sobre a atividade que compensa esse
positivismo. O filósofo enquanto tal é sintomatologista, tipologista, genealogista.
Reconhece-se a trindade nietzscheana, do “filósofo do porvir”: filósofo médico (é o
médico quem interpreta os sintomas), filósofo artista (é o artista quem modela os
tipos), filósofo legislador (é o legislador quem determina o ranque, a genealogia).227
2) A FÓRMULA DA QUESTÃO EM NIETZSCHE
A metafísica formula a questão da essência sob a forma: O que é...? Talvez
tenhamos tomado o hábito de considerar que essa questão é óbvia; de fato, disto
somos devedores a Sócrates e a Platão. É preciso voltar a Platão para ver a que ponto
a questão: “O que é...?” supõe uma maneira particular de pensar. Platão pergunta: o
que é o belo, o que é o justo, etc.? Ele se preocupa em opor a essa forma de questão
qualquer outra forma. Ele opõe Sócrates seja a uma gente bem jovem, seja a velhos
turrões, seja aos famosos sofistas. Ora, parece comum a todos estes responderem à
questão citando aquilo que é justo, aquilo que é belo: uma jovem virgem, uma égua,
uma panela... Sócrates triunfa: não se responde à questão “O que é o belo?” citando
aquilo que é belo. Donde a distinção cara a Platão entre as coisas belas, que são belas
apenas como exemplo, acidentalmente e segundo o devir; e o Belo que é tão somente
belo, necessariamente belo, aquilo que é o belo segundo o ser e a essência. Eis por
que, em Platão, a oposição da essência e da aparência, do ser e do devir, depende
primeiramente de uma maneira de questionar, de uma forma de questão. Contudo,
cabe perguntar-se se o triunfo de Sócrates, uma vez mais, é merecido. Pois não parece
que esse método socrático seja frutífero: precisamente, ele domina os diálogos ditos
aporéticos, onde o niilismo é rei. Sem dúvida, é uma besteira citar aquilo que é belo
quando perguntam a você: o que é o belo? Mas não é tão certo que a questão “O que
é o belo?” não seja ela mesma uma besteira. Não é certo que ela seja legítima e bem 226 GM, I, nota final.227 Cf. FG; VP, IV.
colocada, mesmo e sobretudo em função de uma essência a ser descoberta. Às vezes
irrompe um lampejo nos diálogos, mas logo extinto, que nos indica por um instante
qual era a ideia dos sofistas. Misturar [87] os sofistas com velhotes e rapazotes é um
procedimento de amálgama. O sofista Hípias não era uma criança que se contentava
em responder “quem”, quando se lhe perguntava “o que”. Ele pensava que a questão
Quem? era melhor enquanto questão, a mais apta para determinar a essência. Pois ela
não remetia, como acreditava Sócrates, a exemplos discretos, mas à continuidade dos
objetos concretos tomados em seu devir, ao devir-belo de todos os objetos citáveis ou
citados como exemplos. Perguntar quem é belo, quem é justo, e não o que é o belo, o
que é o justo, era portanto o fruto de um método elaborado, implicando uma
concepção original da essência e toda uma arte sofística que se opunha à dialética.
Uma arte empirista e pluralista.
“Então o quê? gritei com curiosidade. – Então quem? tu deverias perguntar!
Assim falou Dioniso, depois se calou do jeito que lhe é particular, ou seja, como
sedutor.”228 A questão “Quem?”, segundo Nietzsche, significa o seguinte: ao
considerar uma coisa, quais são as forças que dela se apoderam, qual é a vontade que
a possui? Quem se exprime, se manifesta e até mesmo se esconde nela? Apenas pela
questão “Quem?” é que somos conduzidos à essência, pois a essência é somente o
sentido e o valor da coisa; a essência é determinada pelas forças em afinidade com a
coisa e pela vontade em afinidade com essas forças. Mais ainda: quando colocamos a
questão “O que é?”, não apenas tombamos na pior metafísica, de fato só o que
fazemos é colocar a questão Quem?, mas de uma maneira desastrada, cega,
inconsciente e confusa. “A questão O que é? é um jeito de colocar um sentido visto
de outro ponto de vista. A essência, o ser é uma realidade perspectiva e supõe uma
pluralidade. No fundo, é sempre a questão “O que é para mim?” (para nós, para tudo
que vive, etc.).”229 Quando perguntamos o que é o belo, perguntamos de qual ponto
de vista as coisas aparecem como belas: e o que não nos aparece belo, de qual outro
ponto de vista ele assim deviria? E para tal coisa, quais são as forças que a tornam ou
a tornariam bela ao se apropriarem dela, quais são as outras forças que se submetem a 228 VS, projeto de prefácio, 10 (trad. ALBERT, II, p. 226).229 VP, I, 204.
estas ou, ao contrário, que lhes resistem? A arte pluralista não nega a essência: ela a
faz depender, em cada caso, de uma afinidade de fenômenos e de forças, de uma
coordenação de força e de vontade. A essência de uma coisa é descoberta [88] na
força que a possui e que se exprime nela, desenvolvida nas forças em afinidade com
esta, comprometida ou destruída pelas forças que a ela se opõem e que podem
prevalecer: a essência é sempre o sentido e o valor. E assim, a questão Quem? ressoa
para todas as coisas e sobre todas as coisas: quais forças, qual vontade? É a questão
trágica. No mais profundo, ela é inteiramente tendida para Dioniso, pois Dioniso é o
deus que se esconde e se manifesta, Dioniso é querer, Dioniso é aquele que... A
questão Quem? encontra sua instância suprema em Dioniso ou na vontade de
potência; Dioniso, a vontade de potência, é aquilo que a preenche tantas vezes
quantas for colocada. Não se perguntará “quem quer?”, “quem interpreta?”, “quem
avalia?”, pois em toda parte e sempre a vontade de potência é aquilo que.230 Dioniso é
o deus das metamorfoses, o uno do múltiplo, o uno que afirma o múltiplo e se afirma
do múltiplo. “Então quem?” é sempre ele. Eis por que Dioniso se cala como sedutor:
o tempo de se esconder, de tomar uma outra forma e de mudar de forças. Na obra de
Nietzsche, o admirável poema O Lamento de Ariadne exprime esse entrelace
fundamental entre um jeito de questionar e o personagem divino presente sob todas as
questões – entre a questão pluralista e a afirmação dionisíaca ou trágica.231
3) O MÉTODO DE NIETZSCHE
Dessa forma de questão deriva um método. Dado um conceito, um sentimento,
uma crença, serão tratados como os sintomas de uma vontade que quer alguma coisa.
O que ele quer, aquele que diz isto, que pensa ou experimenta aquilo? Trata-se de
mostrar que ele não poderia dizê-lo, pensá-lo ou senti-lo, se não tivesse tal vontade,
tais forças, tal maneira de ser. O que ele quer, aquele que fala, que ama ou que cria? E
inversamente, o que ele quer, aquele que pretende ao benefício de uma ação que ele
não faz, aquele que faz apelo ao “desinteresse”? E mesmo o homem ascético? E os 230 VP, I, 204.231 DD, “Lamento de Ariadne”.
utilitaristas, com seu conceito de utilidade? E Schopenhauer, quando ele forma o
estranho conceito de uma negação da vontade? Seria a verdade? Mas o que eles
enfim querem, os buscadores de verdade, esses que dizem: eu busco a verdade?232 –
Querer não é um ato [89] como outros. Querer é a instância a uma só vez genética e
crítica de todas as nossas ações, sentimentos e pensamentos. O método consiste no
seguinte: entrelaçar um conceito à vontade de potência, para fazer dele o sintoma de
uma vontade sem a qual ele nem mesmo poderia ser pensado (nem o sentimento
experimentado, nem a ação empreendida). Tal método corresponde à questão trágica.
Ele mesmo é o método trágico. Ou mais precisamente, caso se remova da palavra
“drama” todo o páthos dialético e cristão que compromete seu sentido, ele é o método
de dramatização. “O que você quer?”, pergunta Ariadne a Dioniso. O que uma
vontade quer, eis aí o conteúdo latente da coisa correspondente.
Não devemos ser abusados pela expressão: o que a vontade quer. O que uma
vontade quer não é um objeto, um objetivo, um fim. Os fins e os objetos, até mesmo
os motivos são ainda sintomas. O que uma vontade quer, segundo sua qualidade, é
afirmar sua diferença ou negar o que difere. Sempre o que se quer são qualidades: o
pesado, o leve... O que uma vontade quer é sempre sua própria qualidade e a
qualidade das forças correspondentes. Como diz Nietzsche, a propósito da alma
nobre, afirmativa e leve: “Não sei qual certeza fundamental de si mesma, algo que é
impossível de buscar, de achar e talvez até de perder.”233 Portanto, quando
perguntamos “O que quer aquele que pensa isto?”, distanciamo-nos da questão
fundamental “Quem?”, damos-lhe apenas uma regra e um desenvolvimento
metódicos. Estamos pedindo, com efeito, que se responda à questão, não com
exemplos, mas com a determinação de um tipo. Ora, um tipo é constituído
precisamente pela qualidade da vontade de potência, pela nuança dessa qualidade e
pelo entrelace de forças correspondente: todo o resto é sintoma. O que uma vontade
quer não é um objeto, mas um tipo, o tipo daquele que fala, daquele que pensa, que
age, que não age, que reage etc. Só se define um tipo determinando o que a vontade
232 É o método constante de Nietzsche, em todos os seus livros. Ele é visto apresentado de maneira particularmente sistemática em GM.
233 BM, 287.
quer nos exemplares desse tipo. O que ele quer, aquele que busca a verdade? É esta a
única maneira de saber quem busca a verdade. O método de dramatização se
apresenta, assim, como o único método adequado ao projeto de Nietzsche e à forma
das questões que ele coloca: método diferencial, tipológico e genealógico.
É verdade que esse método deve superar uma segunda [90] objeção: seu caráter
antropológico. Mas basta considerarmos qual é o tipo do próprio homem. Se é
verdadeiro que o triunfo das forças reativas é constitutivo do homem, todo o método
de dramatização está tendido para a descoberta de outros tipos que exprimam outros
entrelaces de forças, para a descoberta de uma outra qualidade da vontade de
potência, capaz de transmutar nela as nuanças demasiado humanas. Nietzsche diz: o
inumano e o superhumano. Uma coisa, um animal, um deus são tão dramatizáveis
quanto um homem ou determinações humanas. Eles também são as metamorfoses de
Dioniso, os sintomas de uma vontade que quer alguma coisa. Eles também exprimem
um tipo, um tipo de forças desconhecido do homem. Por toda parte, o método de
dramatização ultrapassa o homem. Uma vontade da terra, o que seria uma vontade
capaz de afirmar a terra? O que ela quer, essa vontade na qual a própria terra
permanece um não-sentido? Qual é sua qualidade, que devém também a qualidade da
terra? Nietzsche responde: “A leve...”234
4) CONTRA SEUS PREDECESSORES
O que quer dizer “vontade de potência”? Sobretudo não é que a vontade queira
a potência, que ela deseje ou busque a potência como um fim, nem que a potência
seja o móvel dela. Na expressão “desejar a potência” há tanto absurdo quanto em
“querer viver”: “Seguramente não encontrou a verdade
aquele que falava da vontade de vida, essa vontade não existe. Pois aquilo que não é
não pode querer, e como aquilo que está na vida ainda poderia desejar a vida?”;
234 Z, Prólogo, 3: “O superhomem é o sentido da terra. Que vossa vontade diga: Que o superhomem seja o sentido da terra.” – III, “Do espírito de pesadume”: “Aquele que um dia ensinar os homens a voar, terá deslocado todas as fronteiras; para ele, as próprias fronteiras voarão pelos ares, e ele batizará de novo a terra, ele a chamará de a leve...”
“Desejo de dominar, mas quem gostaria de chamar isso de desejo?”235 Eis por que,
apesar das aparências, Nietzsche estima que a vontade de potência é um conceito
inteiramente novo que ele mesmo criou e introduziu em filosofia. Ele diz, com a
modéstia necessária: “Conceber a psicologia como eu o faço, sob as espécies de uma
morfologia e de uma genética da vontade de potência, é uma ideia que não aflorou
em ninguém, se é que se possa, após tudo que foi escrito, adivinhar [91] também
aquilo que foi deixado em silêncio.”236 Contudo, não faltam autores que, antes de
Nietzsche, falaram de uma vontade de potência ou de alguma coisa análoga; não
faltam os que, depois de Nietzsche, voltaram a falar disso. Mas nem estes são os
discípulos de Nietzsche, nem aqueles seus mestres. Sempre falaram disso no sentido
formalmente condenado por Nietzsche: como se a potência fosse a última meta da
vontade, e também seu motivo essencial. Como se a potência fosse aquilo que a
vontade quisesse. Ora, tal concepção implica ao menos três contrassensos, que
comprometem a filosofia da vontade em seu conjunto:
1º) Interpreta-se, então, a potência como o objeto de uma representação. Na
expressão: a vontade quer a potência ou deseja a dominação, o entrelace da
representação e da potência é mesmo tão íntimo que toda potência é representada, e
toda representação é a da potência. A meta da vontade é também o objeto da
representação, e inversamente. Em Hobbes, o homem no estado de natureza quer ver
sua superioridade representada e reconhecida pelos outros; em Hegel, a consciência
quer ser reconhecida por um outro e representada como consciência de si; em Adler
também, trata-se da representação de uma superioridade que, se necessário, compensa
a existência por uma inferioridade orgânica. Em todos esses casos, a potência é
sempre objeto de uma representação, de uma recognição, que supõe materialmente
uma comparação das consciências. Logo, é necessário que um motivo corresponda à
vontade de potência, que igualmente sirva de motor à comparação: a vaidade, o
orgulho, o amor-próprio, a ostentação, ou até mesmo um sentimento de inferioridade.
Nietzsche pergunta: Quem concebe a vontade de potência como uma vontade de se
fazer reconhecer? Quem concebe a potência mesma como o objeto de uma 235 Z, II, “Da vitória sobre si mesmo”; III, “Dos três males”.236 BM, 23.
recognição? Quem quer essencialmente representar-se como superior, e até mesmo
representar sua inferioridade como uma superioridade? É o doente que quer
“representar a superioridade sob uma forma qualquer”.237 “É o escravo que busca nos
persuadir a ter boa opinião dele; é também o escravo que em seguida dobra os joelhos
diante dessas opiniões, como se não tivesse sido ele quem as produziu. E eu repito, a
vaidade é um atavismo.”238 Aquilo que nos apresentam como [92] a potência ela
mesma é apenas a representação que o escravo faz da potência. O que nos apresentam
como o senhor é a ideia que o escravo faz dele, é a ideia que o escravo faz de si
mesmo quando ele se imagina no lugar do senhor, é o escravo tal como ele é, quando
efetivamente triunfa. “Essa necessidade de alcançar a aristocracia é fundeiramente
diferente das aspirações da alma aristocrática, ela é o sintoma mais eloqüente e mais
perigoso de sua ausência.”239 Por que os filósofos aceitaram essa falsa imagem do
senhor, que se assemelha apenas ao escravo triunfante? Tudo está pronto para um
abracadabra eminentemente dialético: tendo colocado o escravo no senhor, apercebe-
se que a verdade do senhor está no escravo. De fato, tudo se passou entre escravos,
vencedores ou vencidos. A mania de representar, de ser representado, de se fazer
representar; de ter representantes e representados: esta é a mania comum a todos os
escravos, a única relação que eles concebem entre si, a relação que eles impõem
consigo, seu triunfo. A noção de representação envenena a filosofia; ela é diretamente
o produto do escravo e da relação dos escravos, ela constitui a pior interpretação da
potência, a mais medíocre e a mais baixa;240
2º) Em quê consiste esse primeiro erro da filosofia da vontade? Quando
fazemos da potência um objeto de representação, fazemos com que ela forçosamente
dependa do fator segundo o qual uma coisa é representada ou não, reconhecida ou
não. Ora, só valores já em curso, só valores admitidos dão assim critérios à
237 GM, III, 14.238 BM, 261. – Sobre a “aspiração à distinção”, cf. A, 113: “Aquele que aspira à distinção tem o
olho incessantemente no próximo e quer saber quais são os sentimentos dele; mas a simpatia e o abandono, do qual esse pendor tem necessidade para se satisfazer, estão bem longe de serem inspirados pela inocência, pela compaixão ou pela benevolência. O que se quer, ao contrário, é perceber ou adivinhar de qual jeito o próximo sofre interiormente ou exteriormente ao nosso aspecto, como ele perde sua potência sobre si mesmo e cede à impressão que nossa mão ou nosso aspecto fazem sobre ele.”
239 BM, 287.240 VP, III, 254.
recognição. Compreendida como vontade de se fazer reconhecer, a vontade de
potência é necessariamente vontade de se fazer atribuir valores em curso numa
sociedade dada (dinheiro, honrarias, poder, reputação).241 Mas aqui também, quem
concebe a potência como [93] a aquisição de valores atribuíveis? “O homem comum
nunca teve outro valor senão aquele que lhe atribuíam; de jeito algum habituado a ele
mesmo fixar os valores, ele não se atribuiu outro senão aquele que lhe reconheciam”,
ou até mesmo que ele se fazia reconhecer.242 Rousseau reprovava Hobbes por ter feito
do homem no estado de natureza um retrato que supunha a sociedade. Num espírito
bem diferente, acha-se em Nietzsche uma reprimenda análoga: toda a concepção da
vontade de potência, de Hobbes a Hegel, pressupõe a existência de valores
estabelecidos a que as vontades apenas procuram se atribuir. Eis o que parece
sintomático nessa filosofia da vontade: o conformismo, o desconhecimento absoluto
da vontade de potência como criação de novos valores;
3º) Devemos ainda perguntar: como valores estabelecidos são atribuídos? É
sempre no desfecho de um combate, de uma luta, seja qual for a forma dessa luta,
secreta ou aberta, leal ou embusteira. De Hobbes a Hegel, a vontade de potência está
engajada num combate, precisamente porque o combate determina aqueles que
receberão o benefício dos valores em curso. É próprio dos valores estabelecidos
serem postos em jogo numa luta, mas é próprio da luta entrelaçar-se sempre a valores
estabelecidos: luta pela potência, luta pelo reconhecimento ou luta pela vida, o
esquema é sempre o mesmo. Ora, não se poderia insistir em demasia no ponto
seguinte: quão estranhas a Nietzsche e à sua concepção da vontade de potência são
as noções de luta, de guerra, de rivalidade ou até mesmo de comparação. Não que
ele negue a existência da luta; mas esta não lhe parece absolutamente criadora de
valores. Quando menos, os únicos valores que ela cria são os do escravo que triunfa:
a luta não é o princípio ou o motor da hierarquia, mas o meio pelo qual o escravo
241 VP, IV, 522: “Até onde vai a impossibilidade, num demagogo, de representar claramente aquilo que é uma natureza superior. Como se o traço essencial e o verdadeiro valor dos homens superiores consistissem em sua aptidão a incitar as massas, em suma, no efeito que eles produzem. Mas a natureza superior do grande homem reside naquilo em que ele é diferente dos outros, incomunicável, de um outro ranque.” (Efeito que eles produzem = representação demagógica que deles se faz = valores estabelecidos que lhes são atribuídos.)
242 BM, 261.
reverte a hierarquia. A luta nunca é a expressão ativa das forças, nem a manifestação
de uma vontade de potência que afirma; tampouco seu resultado exprime o triunfo do
senhor ou do forte. A luta, ao contrário, é o meio pelo qual os fracos prevalecem
sobre os fortes, porque estão em maior número. Eis por que Nietzsche se opõe a
Darwin: Darwin confundiu a luta e a seleção, ele não viu que a luta tinha o resultado
contrário ao que ele acreditava; que ela selecionava, mas selecionava apenas os fracos
e assegurava o triunfo destes.243 Por demais [94] polido para lutar, diz Nietzsche de si
mesmo.244 Ele ainda diz a respeito da vontade de potência: “Abstração feita da
luta.”245
5) CONTRA O PESSIMISMO E CONTRA SCHOPENHAUER
Esses três contrassensos nada seriam se não introduzissem na filosofia da
vontade um “tom”, uma tonalidade afetiva extremamente lamentável. A essência da
vontade é sempre descoberta com tristeza e acabrunhamento. Todos aqueles que
descobrem a essência da vontade numa vontade de potência ou em algo análogo, não
param de gemer sobre sua descoberta, como se devessem tirar disso a estranha
resolução de fugir dela ou de conjurar seu efeito. Tudo se passa como se a essência da
vontade nos colocasse numa situação invivível, insustentável e enganosa. E isto se
explica facilmente: fazendo da vontade uma vontade de potência no sentido de
“desejo de dominar”, os filósofos apercebem o infinito nesse desejo; fazendo da
potência o objeto de uma representação, eles apercebem o caráter irreal de tal
representado; engajando a vontade de potência num combate, eles apercebem a
contradição na própria vontade. Hobbes declara que a vontade de potência está como
que num sonho do qual só o medo da morte lhe permite sair. Hegel insiste sobre o
irreal na situação do senhor, pois o senhor depende do escravo para ser reconhecido.
Todos metem a contradição na vontade, e também a vontade na contradição. A
243 VP, I, 395; Cr. Id.244 EH, II, 9: “Em toda minha vida não se encontra um único traço de luta, eu sou o contrário de
uma natureza heróica; querer algo, aspirar a algo, ter em vista uma meta, um desejo, tudo isso eu não conheço por experiência.”
245 VP, II, 72.
potência representada é tão somente aparência; a essência da vontade não se coloca
naquilo que ela quer sem perder-se na aparência. Assim, os filósofos prometem à
vontade uma limitação, limitação racional ou contratual que poderá, sozinha, torná-la
vivível e resolver a contradição.
Sob todos esses aspectos, Schopenhauer não instaura uma nova filosofia da
vontade; ao contrário, seu gênio consiste em tirar as conseqüências extremas da
antiga, em levar a antiga até suas últimas conseqüências. Schopenhauer não se
contenta com uma essência da vontade, ele faz da vontade a essência das coisas, “o
mundo visto de dentro”. A vontade deveio [95] a essência em geral e em si. Mas
então, aquilo que ela quer (sua objetivação) deveio a representação, a aparência em
geral. Sua contradição devém a contradição original: como essência, ela quer a
aparência na qual se reflete. “A sina que espera a vontade no mundo em que esta se
reflete” é precisamente o sofrimento dessa contradição. Está é a fórmula do querer-
viver: o mundo como vontade e como representação. Aqui se reconhece o
desenvolvimento de uma mistificação que começava com Kant. Fazendo da vontade
a essência das coisas ou o mundo visto de dentro, recusa-se em princípio a distinção
de dois mundos: é o mesmo mundo que é sensível e supra-sensível. Porém, mesmo
negando essa distinção dos mundos, substitui-se a ela somente a distinção do interior
e do exterior, que se mantêm como a essência e a aparência, ou seja, como ambos
esses mesmos mundos se mantinham. Fazendo da vontade a essência do mundo,
Schopenhauer continua compreendendo o mundo como uma ilusão, uma aparência,
uma representação.246 – Uma limitação da vontade, portanto, não será o bastante para
Schopenhauer. É preciso que a vontade seja negada, que ela mesma se negue. A
escolha schopenhaueriana: “Somos seres estúpidos ou, colocando melhor, seres que
suprimem a si mesmos.”247 Schopenhauer nos ensina que uma limitação racional ou
contratual da vontade não é suficiente, que é preciso ir até a supressão mística. Eis o
que se reteve de Schopenhauer, eis o que Wagner, por exemplo, reteve dele: não sua
crítica da metafísica, não “seu sentido cruel da realidade”, não seu anti-cristianismo,
não suas análises profundas da mediocridade humana, não a maneira pela qual ele 246 BM, 36; VP, I, 216; III, 235.247 VP, III, 40.
mostrava que os fenômenos são sintomas de uma vontade, mas todo o contrário, a
maneira pela qual ele tornou a vontade cada vez menos suportável, cada vez menos
vivível, ao mesmo tempo em que a batizava como querer-viver...248
6) PRINCÍPIOS PARA A FILOSOFIA DA VONTADE
A filosofia da vontade segundo Nietzsche deve substituir a antiga metafísica:
ela a destrói e a ultrapassa. Nietzsche estima ter feito a primeira filosofia da vontade;
todas as outras [96] eram os últimos avatares da metafísica. Tal como ele a concebe, a
filosofia da vontade tem dois princípios que formam a mensagem alegre: querer =
criar, vontade = alegria, “Minha vontade sobrevém sempre como liberadora e
mensageira de alegria. Querer transpõe: esta é a verdadeira doutrina da vontade e da
liberdade, é assim que lhe vos ensina Zaratustra”; “Vontade, é assim que se chamam o
liberador e o mensageiro de alegria. É o que eu vos ensino, meus amigos. Mas
aprendei também isto: a própria vontade é ainda prisioneira. Querer liberta...”249 –
“Que o querer devenha não-querer, e contudo, meus amigos, vós conheceis essa
fábula da loucura! Eu vos conduzi pra longe dessas canções quando vos ensinei: a
vontade é criadora”; “Criar valores é o verdadeiro direito do senhor”.250 Por que
Nietzsche apresenta esses dois princípios, criação e alegria, como o essencial no
ensinamento de Zaratustra, como as duas pontas de um martelo que deve cravar e
arrancar? Esses princípios podem parecer vagos ou indeterminados, eles ganham uma
significação extremamente precisa caso se compreenda seu aspecto crítico, ou seja, a
maneira pela qual se opõem às concepções anteriores da vontade. Nietzsche diz:
Concebeu-se a vontade de potência como se a vontade quisesse a potência, como se a
potência fosse aquilo que a vontade queria; desde então, fazia-se da potência algo
representado; desde então, tinha-se da potência uma ideia de escravo e de impotente;
desde então, julgava-se a potência conforme a atribuição de valores estabelecidos já
prontos; desde então, não se concebia a vontade de potência independentemente de
248 GC, 99.249 Z, II, “Nas ilhas bem-aventuradas”; II, “Da redenção”.250 Z, II, “Da redenção”; BM, 261.
um combate cuja aposta estava nesses valores estabelecidos; desde então,
identificava-se a vontade de potência à contradição e à dor da contradição. Contra
esse acorrentamento da vontade, Nietzsche anuncia que querer libera; contra a dor da
vontade, Nietzsche anuncia que a vontade é alegre. Contra a imagem de uma vontade
que sonha atribuir-se valores estabelecidos, Nietzsche anuncia que querer é criar
valores novos.
Vontade de potência não quer dizer que a vontade queira a potência. Vontade de
potência não implica antropomorfismo algum, nem em sua origem, nem em sua
significação, nem em sua essência. Vontade de potência deve ser interpretada de todo
um outro jeito: a potência é aquilo que quer na vontade. A potência [97] é na vontade
o elemento genético e diferencial. Eis por que a vontade de potência é essencialmente
criadora. Eis também por que a potência nunca se mede com a representação: nunca
ela é representada, ela nem mesmo é interpretada ou avaliada, ela é “aquilo que”
interpreta, “aquilo que” avalia, “aquilo que” quer. Mas o que ela quer? Ela quer
precisamente o que deriva do elemento genético. O elemento genético (potência)
determina o entrelace da força com a força e qualifica as forças em entrelace.
Elemento plástico, ele se determina ao mesmo tempo em que determina, e se
qualifica ao mesmo tempo em que qualifica. O que a vontade de potência quer é tal
entrelace de forças, tal qualidade de forças. E também tal qualidade de potência:
afirmar, negar. Esse complexo, variável em cada caso, forma um tipo ao qual
correspondem fenômenos dados. Todo fenômeno exprime entrelaces de forças,
qualidades de forças e de potência, nuanças dessas qualidades, em suma, um tipo de
forças e de querer. Devemos dizer, em conformidade à terminologia de Nietzsche:
todo fenômeno remete a um tipo que constitui seu sentido e seu valor, mas também à
vontade de potência como ao elemento do qual derivam a significação de seu sentido
e o valor de seu valor. É assim que a vontade de potência é essencialmente criadora e
doadora: ela não aspira, ela não busca, ela não deseja, sobretudo ela não deseja a
potência. Ela dá: a potência é na vontade algo de inexprimível (móvel, variável,
plástico); a potência é na vontade como “a virtude que dá”; a vontade pela potência é
ela mesma doadora de sentido e de valor.251 A questão de saber se a vontade de
potência, no fim das contas, é una ou múltipla não deve ser colocada; ela daria
testemunho de um contrassenso geral sobre a filosofia de Nietzsche. A vontade de
potência é plástica, inseparável de cada caso no qual ela se determina; e assim como
o eterno retorno é o ser, mas o ser que se afirma do devir, a vontade de potência é
una, mas o uno que se afirma do múltiplo. Sua unidade é a do múltiplo e se diz
apenas do múltiplo. O monismo da vontade de potência é inseparável de uma
tipologia pluralista.
O elemento criador do sentido e dos valores define-se, necessariamente,
também como o elemento crítico. Um tipo de forças não signica somente uma
qualidade de forças, mas um entrelace [98] entre forças qualificadas. O tipo ativo não
designa somente forças ativas, mas um conjunto hierarquizado onde as forças ativas
prevalecem sobre as forças reativas, e onde as forças reativas são agidas;
inversamente, o tipo reativo designa um conjunto onde as forças reativas triunfam e
separam as forças ativas do que elas podem. É neste sentido que o tipo implica a
qualidade de potência, pela qual certas forças prevalecem sobre outras. Alto e nobre
designam, para Nietzsche, a superioridade das forças ativas, sua afinidade com a
afirmação, sua tendência a subir, sua leveza. Baixo e vil designam o triunfo das forças
reativas, sua afinidade com o negativo, seu pesadume ou peso. Ora, muitos
fenômenos só podem ser interpretados como exprimindo esse triunfo pesador das
forças reativas. Não é o caso do fenômeno humano em seu conjunto? Há coisas que
só podem existir pelas forças reativas ou por sua vitória. Há coisas que só se pode
dizer, sentir ou pensar, valores aos quais só se pode acreditar caso se esteja animado
pelas forças reativas. Nietzche precisa: caso se tenha a alma pesada e baixa. Para
além do erro, para além da própria besteira: uma certa baixeza da alma.252 Eis em quê
a tipologia das forças e a doutrina da vontade de potência não são separáveis, por sua
vez, de uma crítica apta para determinar a genealogia dos valores, sua nobreza e sua
251 Z, III, “Dos três males”: “Desejo de dominar, mas quem gostaria de chamar isso de desejo...? Oh! Quem, então, batizaria com seu nome verdadeiro semelhante desejo? Virtude que dá – é assim que Zaratustra outrora chamou essa coisa inexprimível.”
252 Cf. os juízos de Nietzsche sobre Flaubert: ele descobriu a besteira, mas não a baixeza de alma que esta supunha (BM, 218).
baixeza. – É verdade que se perguntará em qual sentido e por que o nobre “vale mais”
que o vil, ou o alto mais que o baixo. De qual direito? Nada permite responder a essa
questão enquanto considerarmos a vontade de potência nela mesma ou abstratamente,
como que dotada apenas de duas qualidades contrárias, afirmação e negação. Por que
a afirmação valeria mais que a negação?253 Veremos que a solução só pode ser dada
pela prova do eterno retorno: “vale mais” e vale absolutamente aquilo que revém, o
que suporta revir, o que quer revir. Ora, a prova do eterno retorno não deixa as forças
reativas subsistirem, nem tampouco a potência de negar. O eterno retorno trasmuta o
negativo: ele faz do pesado algo de leve, faz o negativo passar pro lado da afirmação,
faz da negação uma potência de afirmar. Mas, precisamente, [99] a crítica é a negação
sob essa forma nova: destruição devinda ativa, agressividade profundamente ligada à
afirmação. A crítica é a destruição como alegria, a agressividade do criador. O criador
dos valores não é separável de um destruidor, de um criminoso e de um crítico:
crítico dos valores estabelecidos, crítico dos valores reativos, crítico da baixeza.254
7) PLANO DA “GENEALOGIA DA MORAL”
A Genealogia da Moral é o livro mais sistemático de Nietzsche. Seu interesse é
duplo: por um lado, ele não se apresenta nem como um conjunto de aforismas nem
como um poema, mas como uma chave para a interpretação dos aforismas e para a
avaliação do poema.255 Por outro lado, ele analisa em detalhe o tipo reativo, a maneira
pela qual as forças triunfam e o princípio sob o qual elas triunfam. A primeira
dissertação trata do ressentimento, a segunda da má consciência, a terceira do ideal
ascético: ressentimento, má consciência, ideal ascético são as figuras do triunfo das
253 Não pode haver valores pré-estabelecidos que decidam aquilo que vale mais: cf. VP, II, 530: “Eu distingo um tipo de vida ascendente e um tipo de decadência, de decomposição, de fraqueza. Será que acreditariam que a questão da precedência entre esses dois tipos ainda balanceia?”[nt: A ed. fr. termina a última frase com um ponto final, embora a tradução utilizada por Deleuze (de Geneviève Bianquis) a termine com reticências. Em nossa tradução terminamos com a interrogação, conforme o texto da edição alemã de A. Kröner (Der Wille zur Macht II, 6, § 857, Leipzig, 1922).]
254 Z, Prólogo, 9: “... O destruidor, o criminoso – ora, é ele o criador”; I, 15: “Quem seja que deva criar sempre destrói.”
255 GM, Prólogo, 8.
forças reativas, e também as formas do niilismo. – Esse duplo aspecto da Genealogia
da Moral, chave para a interpretação em geral e análise do tipo reativo em particular,
não é devido ao acaso. Com efeito, o que faz obstáculo à arte da interpretação e da
avaliação, o que desnaturaliza a genealogia e reverte a hierarquia, que não a investida
das próprias forças reativas? Os dois aspectos da Genealogia da Moral formam,
portanto, a crítica. Mas o que a crítica é, em qual sentido a filosofia é uma crítica,
tudo isso falta ser analisado.
Sabemos que as forças reativas triunfam apoiando-se numa ficção. Sua vitória
sempre repousa sobre o negativo como sobre algo imaginário: elas separam a força
ativa do que esta pode. A força ativa devém, então, realmente reativa, mas sob o
efeito de uma mistificação. 1) Desde a primeira dissertação, Nietzsche apresenta o
ressentimento como “uma vingança imaginária”, “uma vindita essencialmente
espiritual”.256 Mais ainda, a constituição do ressentimento implica [100] um
paralogismo que Nietzsche analisa detalhadamente: paralogismo da força separada
do que ela pode;257 2) A segunda dissertação sublinha, por sua vez, que a má
consciência não é separável “de acontecimentos espirituais e imaginários”.258 A má
consciência é por natureza antinômica, exprimindo uma força que se volta contra
si.259 Neste sentido, ela está na origem daquilo que Nietzsche chamará de “mundo
revertido”.260 Observar-se-á, em geral, o quanto agrada a Nietzsche sublinhar a
insuficiência da concepção kantiana das antinomias: Kant não compreendeu nem a
fonte delas, nem sua verdadeira extensão;261 3) O ideal ascético remete, enfim, à mais
profunda mistificação, a do Ideal que compreende todos os outros, todas as ficções da
moral e do conhecimento. Elegantia syllogismi, diz Nietzsche.262 Trata-se, desta vez,
de uma vontade que quer o nada, “mas ao menos é, e sempre permanece sendo, uma
vontade”.263
256 GM, I, 7 e 10.257 GM, I, 13.258 GM, II, 18.259 GM, II, 18: “Noções contraditórias como o desinteresse, a abnegação, o sacrifício de si... a
volúpia delas é da mesma essência que a crueldade.”260 GM, III, 14.261 A fonte da antinomia é a má consciência (GM, II). A antinomia se exprime como oposição da
moral e da vida (VP, I, 304; FG, II, GM, III.)262 GM, III, 25.263 GM, III, 28.
Buscamos somente resgatar a estrutura formal da Genealogia da Moral. Caso
se renuncie a acreditar que a organização das três dissertações seja fortuita, é preciso
concluir: Nietzsche na Genealogia da Moral quis refazer a Crítica da Razão Pura.
Paralogismo da alma, antinomia do mundo, mistificação do ideal: Nietzsche estima
que a ideia crítica e a filosofia são uma coisa só, mas que Kant falhou com esta ideia,
que ele a comprometeu e a estragou, não apenas na aplicação, mas desde o princípio.
Chêstov se aprazia ao achar em Dostoiévski, nas Memórias do Subsolo, a verdadeira
Crítica da Razão Pura. Que Kant tenha falhado com a crítica, primeiramente isso é
uma ideia nietzscheana. Mas Nietzsche não se fia a ninguém mais além dele para
conceber e realizar a verdadeira crítica. E esse projeto é de grande importância para a
história da filosofia; pois ele não incide apenas contra o kantismo, com o qual
rivaliza, mas contra a descendência kantiana, à qual ele se opõe com violência. O que
deveio a crítica após Kant, de Hegel a Feuerbach, [101] passando pela famosa “crítica
crítica”? Uma arte pela qual o espírito, a consciência de si, o próprio crítico se
apropriavam das coisas e das ideias; ou ainda uma arte segundo a qual o homem se
reapropriava das determinações das quais, dizia ele, tinham-lhe privado: em suma, a
dialética. Mas essa dialética, essa nova crítica cuidadosamente evita colocar a questão
anterior: Quem deve tocar a crítica adiante, quem está apto para tocá-la? Nos falam
da razão, do espírito, da consciência de si, do homem; mas de quem se trata em todos
esses conceitos? Não nos dizem quem é o homem, quem é espírito. O espírito parece
estar escondendo forças prontas para se reconciliarem com não importa qual
potência, Igreja ou Estado. Quando o homem pequeno se reapropria das coisas
pequenas, quando o homem reativo se reapropria das determinações reativas, será que
se acredita que a crítica tenha feito grandes progressos, que ela tenha, por isso
mesmo, provado sua atividade? Se o homem é o ser reativo, de que direito tocaria ele
a crítica? Ao recuperarmos a religião, deixamos de ser homem religioso? Ao fazer da
teologia uma antropologia, ao colocar o homem no lugar de Deus, suprimimos o
essencial, ou seja, o lugar? Todas essas ambigüidades têm seu ponto de partida na
crítica kantiana.264 A crítica em Kant não soube descobrir a instância realmente ativa, 264 AC, 10: “Entre os alemães me entenderiam na hora, se eu dissesse que a filosofia está
corrompida pelo sangue dos teólogos. O pastor protestante é o avô da filosofia alemã, o
capaz de tocá-la adiante. Ela se esgota em compromissos: nunca ela nos faz superar
as forças reativas que se exprimem no homem, na consciência de si, na razão, na
moral, na religião. Ela tem mesmo é o resultado inverso: faz dessas forças algo ainda
um pouco mais “nosso”. Afinal, com Nietzsche relativamente a Kant dá-se o mesmo
que com Marx relativamente a Hegel: para Nietzsche, trata-se de recolocar a crítica
sobre seus pés, assim como para Marx a dialética. Mas essa analogia, longe de
aproximar Marx e Nietzsche, separa-os ainda mais profundamente. É que a dialética
nasceu da crítica kantiana tal como ela era. Nunca teria havido necessidade de
recolocar a dialética sobre seus pés, nem de maneira alguma “fazer dialética”, se
inicialmente a própria crítica não tivesse ficado de cabeça pra baixo.
8) NIETZSCHE E KANT DO PONTO DE VISTA DOS PRINCÍPIOS
Kant é o primeiro filósofo que compreendeu a crítica como devendo ser total e
positiva enquanto crítica: total porque “a ela nada deve escapar”; positiva, afirmativa,
porque ela não restringe a potência de conhecer sem liberar outras potências até então
negligenciadas. Mas quais são os resultados de um projeto tão grande? Será que o
leitor seriamente acredita que, na Crítica da Razão Pura, “a vitória de Kant sobre a
dogmática dos teólogos (Deus, alma, liberdade, imortalidade) deu prejuízo ao ideal
correspondente”, e será mesmo que se pode acreditar que Kant tenha tido a intenção
de lhe dar prejuízo?265 Quanto à Crítica da Razão Prática, Kant não confessa, desde
as primeiras páginas, que ela não é nem um pouco uma crítica? Parece que Kant
confundiu a positividade da crítica com um humilde reconhecimento dos direitos do
criticado. Nunca antes se viu crítica total mais conciliadora, nem crítico mais
respeitoso. Ora, explica-se facilmente essa oposição entre o projeto e os resultados
(mais ainda, entre o projeto geral e as intenções particulares). Só o que Kant fez foi
levar a cabo uma concepção bem velha da crítica. Ele concebeu a crítica como uma
força que devia incidir sobre todas as pretensões ao conhecimento e à verdade, mas
próprio protestantismo é seu peccatum originale... o sucesso de Kant é tão somente um sucesso de teólogo.”
265 GM, III, 25.
não sobre o conhecimento ele mesmo, não sobre a verdade ela mesma. Como uma
força que devia incidir sobre todas as pretensões à moralidade, mas não sobre a moral
ela mesma. Desta feita, a crítica total vira política de compromisso: antes de partir
para guerra, já se está partilhando as esferas de influência. Distingue-se três ideais:
que posso saber?, que devo fazer?, que tenho a esperar? Limita-se-os
respectivamente, denuncia-se os maus usos e incursões, mas o caráter incriticável de
cada ideal permanece no coração do kantismo como o verme na fruta: o verdadeiro
conhecimento, a verdadeira moral, a verdadeira religião. O que Kant ainda chama,
em sua linguagem, de fato: o fato da moral, o fato do conhecimento... O gosto
kantiano em delimitar os domínios aparece enfim livremente, atuando para si mesmo
na Crítica do Juízo; ali aprendemos o que sabíamos desde o início: a crítica de Kant
não tem outro objeto exceto justificar, ela começa por acreditar no que ela critica.
[102]
Será essa a grande política anunciada? Nietzsche constata que ainda não houve
“grande política”. A crítica nada é e nada diz enquanto ela se contenta em dizer: a
verdadeira moral zomba da moral. A crítica nada fez enquanto ela não incidiu sobre a
própria verdade, sobre o verdadeiro conhecimento, sobre a verdadeira moral, sobre a
verdadeira religião.266 Cada vez que Nietzsche denuncia a virtude, não são as falsas
virtudes que ele denuncia, nem aqueles que se servem da virtude como de uma
máscara. É a própria virtude nela mesma, ou seja: a pequenez da verdadeira virtude, a
inacreditável mediocridade da verdadeira moral, a baixeza de seus valores autênticos.
“Zaratustra não deixa aqui dúvida alguma: ele diz que é o conhecimento dos homens
bons, dos melhores, que lhe inspirou o terror pelo homem; é dessa repulsa que lhe
nasceram asas.”267 Enquanto criticarmos a falsa moral ou a falsa religião, seremos
críticos pobres, a oposição de sua majestade, tristes apologistas. É uma crítica de juiz
de paz. Criticamos os pretendentes, condenamos as incursões de domínios, mas os
próprios domínios nos parecem sagrados. O mesmo se dá para o conhecimento: uma
266 GC, 345: “Os mais sutis... mostram e criticam aquilo que pode haver de louco nas ideias que um povo tem sobre sua moral, ou que os homens têm sobre toda moral humana, sobre a origem dessa moral, sua sanção religiosa, o preconceito do livre-arbítrio etc., e eles imaginam que, com esse fato, criticam também essa moral.”
267 EH, IV, 5.
crítica digna deste nome não deve incidir sobre o pseudo-conhecimento do
desconhecível, mas primeiramente sobre o verdadeiro conhecimento daquilo que
pode ser conhecido.268 Eis por que Nietzsche, tanto nesse domínio quanto nos outros,
pensa ter achado o único princípio possível de uma crítica total naquilo que ele
chama de seu “pespectivismo”. Que não há fato nem fenômeno moral, mas uma
interpretação moral dos fenômenos.269 Que não há ilusões do conhecimento, mas que
o próprio conhecimento é uma ilusão: o conhecimento é um erro, ou pior, uma
falsificação.270 (Esta última proposição, Nietzsche a deve a Schopenhauer. É assim
que Schopenhauer interpretava o kantismo, transformando-o radicalmente, num
sentido oposto ao dos dialéticos. Schopenhauer, portanto, soube preparar o princípio
da crítica: ele tropeçou na moral, seu ponto fraco.)
9) REALIZAÇÃO DA CRÍTICA
O gênio de Kant, na Crítica da Razão Pura, foi conceber uma crítica imanente.
A crítica não devia ser uma crítica da razão pelo sentimento, pela experiência, por
uma instância exterior seja qual fosse. E tampouco o criticado devia ser exterior à
razão: não se devia buscar na razão erros vindos d’alhures, corpos, sentidos ou
paixões, mas ilusões provindo da razão como tal. Ora, tomado entre essas duas
exigências, Kant concluiu que a crítica devia ser uma crítica da razão pela própria
razão. Não é esta a contribuição kantiana, fazer da razão de uma só vez o tribunal e o
acusado, constituí-la como juiz e parte, julgadora e julgada.271 – Faltava a Kant um
método que permitisse julgar a razão de dentro, sem com isso confiar-lhe a
incumbência de ser juiz de si mesma. E, de fato, Kant não realiza seu projeto de
crítica imanente. A filosofia transcendental descobre condições que permanecem
ainda exteriores ao condicionado. Os princípios transcendentais são princípios de
condicionamento, não de gênese interna. Pedimos por uma gênese da própria razão, e
também uma gênese do entendimento e de suas categorias: quais são as forças da 268 VP, I, 189.269 VP, II, 550.270 VP, I e II (cf. o conhecimento definido como “erro que devém orgânico e organizado”.)271 VP, I, 185.
razão e do entendimento? Qual é a vontade que se esconde e que se exprime na
razão? Quem fica por detrás da razão, na própria razão? Com a vontade de potência e
o método que dela decorre, Nietzsche dispõe do princípio de uma gênese interna.
Quando comparávamos a vontade de potência a um princípio transcendental, quando
comparávamos o niilismo na vontade de potência a uma estrutura a priori, queríamos
antes de tudo marcar sua diferença com determinações psicológicas. Só que os
princípios, em Nietzsche, nunca são princípios transcendentais; estes são substituídos
precisamente pela genealogia. Apenas a vontade de potência como princípio genético
e genealógico, como princípio legislativo, está apta para realizar a crítica interna.
Apenas ela torna possível uma transmutação.
O filósofo-legislador, em Nietzsche, aparece como o filósofo do porvir;
legislação significa criação dos valores. “Os verdadeiros filósofos são aqueles que
comandam e legiferam.”272 Essa inspiração nietzscheana anima textos [105]
admiráveis de Chêstov: “Para nós todas as verdades decorrem do parere, até mesmo
as verdades metafísicas. E, no entanto, a única fonte das verdades metafísicas é o
jubere, e enquanto os homens não participarem do jubere, parecer-lhes-á que a
metafísica é impossível”; “Os Gregos sentiam que a submissão, a aceitação obediente
de tudo aquilo que se apresenta, esconde do homem o ser verdadeiro. Para alcançar a
verdadeira realidade, é preciso considerar-se como o senhor do mundo, é preciso
aprender a comandar e a criar... Lá onde falta razão suficiente e onde, segundo nós,
cessa qualquer possibilidade de pensar, eles viam o começo da verdadeira
metafísica.”273 – Não se está dizendo que o filósofo deve acrescentar às suas
atividades a do legislador porque ele está melhor colocado para isso, como se sua
própria submissão à sabedoria o habilitasse a descobrir as melhores leis possíveis, às
quais os homens deveriam, por sua vez, estar submetidos. O que se está dizendo é
toda uma outra coisa: que o filósofo enquanto filósofo não é um sábio, que o filósofo
enquanto filósofo deixa de obedecer, que ele substitui a velha sabedoria pelo
comando, que ele quebra os antigos valores e cria os valores novos, que toda sua
ciência é legisladora neste sentido. “Para ele, conhecimento é criação, sua obra 272 BM, 211. – VP, IV, 104.273 Chêstov, “La seconde dimension de la pensée”, in N.R.F., outubro 1932.
consiste em legiferar, sua vontade de verdade é vontade de potência.”274 Ora, se é
verdade que essa ideia do filósofo tem raízes pré-socráticas, parece que seu
reaparecimento no mundo moderno é kantiano e crítico. Jubere em vez de parere:
não é esta a essência da revolução copernicana, e a maneira pela qual a crítica se opõe
à velha sabedoria, à submissão dogmática ou teológica? A ideia da filosofia
legisladora enquanto filosofia, é esta mesma a ideia que vem completar a da crítica
interna enquanto crítica: ambas formam o principal aporte do kantismo, seu aporte
liberador.
Mas, ainda assim, é preciso perguntar de qual maneira Kant compreende sua
ideia da filosofia-legislação. Por que Nietzsche, no momento mesmo em que parece
estar retomando e desenvolvendo a ideia kantiana, ranqueia Kant entre os “operários
da filosofia”, aqueles que se contentam em inventoriar os valores em curso, o
contrário dos filósofos do porvir?275 Para Kant, com efeito, o que é legislador (num
domínio) é sempre uma de nossas faculdades: o entendimento, a razão. Nós mesmos
somos [106] legisladores na medida em que observamos o bom uso dessa faculdade,
e fixamos às nossas outras faculdades uma tarefa ela mesma conforme a esse bom
uso. Somos legisladores na medida em que obedecemos a uma de nossas faculdades
assim como a nós mesmos. Mas a quem obedecemos sob tal faculdade, a quais forças
em tal faculdade? O entendimento, a razão têm uma longa história: eles formam as
instâncias que ainda nos fazem obedecer quando não queremos mais obedecer
ninguém. Quando deixamos de obedecer a Deus, ao Estado, aos nossos pais,
sobrevém-nos a razão que nos persuade a ainda sermos dóceis, porque ela nos diz: é
tu quem comandas. A razão representa nossas escravidões e nossas submissões, como
outras tantas superioridades que fazem de nós seres racionais. Sob o nome de razão
prática, “Kant inventou uma razão expressamente para os casos em que não
precisamos nos preocupar com a razão, ou seja, quando é a necessidade do coração, a
moral, o dever que falam.”276 E, finalmente, quem se esconde na famosa unidade
kantiana do legislador e do súdito? Nada além de uma teologia renovada, a teologia
274 BM, 211.275 BM, 211.276 VP, I, 78. – Texto análogo, AC, 12.
ao gosto protestante: encarregam-nos o cargo do sacerdote e do fiel, do legislador e
do súdito. O sonho de Kant: não suprimir a distinção dos dois mundos, sensível e
suprassensível, mas assegurar a unidade do pessoal nos dois mundos. A mesma
pessoa como legislador e súdito, como sujeito e objeto, como númeno e fenômeno,
como sacerdote e fiel. Essa economia é um sucesso teológico: “O sucesso de Kant é
tão somente um sucesso de teólogo”.277 Acredita-se que ao instalar em nós o sacerdote
e o legislador deixaríamos de ser, antes de tudo, fiéis e súditos? Esse legislador e esse
sacerdote exercem o ministério, a legislação, a representação dos valores
estabelecidos; só o que fazem é interpretar os valores em curso. O bom uso das
faculdades, em Kant, coincide estranhamente com esses valores estabelecidos: o
verdadeiro conhecimento, a verdadeira moral, a verdadeira religião...
10) NIETZSCHE E KANT DO PONTO DE VISTA DAS CONSEQÜÊNCIAS
Se resumimos a oposição entre a concepção nietzscheana da crítica e a
concepção kantiana, vemos que ela incide sobre cinco pontos: 1º) Nada de princípios
transcendentais, [107] que são simples condições para pretensos fatos, mas princípios
genéticos e plásticos, que dão conta do sentido e do valor das crenças, interpretações
e avaliações; 2º) Não um pensamento que se crê legislador porque só obedece à
razão, mas um pensamento que pensa contra a razão: “Isso que será sempre
impossível, ser racional”.278 Muito se está enganado sobre o irracionalismo quando se
acredita que essa doutrina opõe à razão outra coisa que não o pensamento: os direitos
do dado, os direitos do coração, do sentimento, do capricho ou da paixão. No
irracionalismo, não se trata de outra coisa além do pensamento, nada além de pensar.
O que se opõe à razão é o próprio pensamento; o que se opõe ao ser racional é o
próprio pensador.279 Porque a razão, por conta própria, recolhe e exprime os direitos
daquilo que submete o pensamento, o pensamento reconquista seus direitos e se faz
277 AC, 10.278 Z.279 Cf. Co. In., I, “David Strauss”, 1; II, “Schopenhauer educador”, 1: a oposição do pensador
privado e do pensador público (o pensador público é um “filistino culto”, representante da razão). – Tema análogo em Kierkegaard, Feuerbach, Chêstov.
de legislador contra a razão: o lance de dados, era este o sentido do lance de dados;
3º) Não o legislador kantiano, mas o genealogista. O legislador de Kant é um juiz de
tribunal, um juiz de paz que vigia, de uma só vez, a distribuição dos domínios e a
repartição dos valores estabelecidos. A inspiração genealógica se opõe à inspiração
judiciária. O genealogista é o verdadeiro legislador. O genealogista é um pouco
adivinho, filósofo do porvir. Ele nos anuncia, não uma paz crítica, mas guerras como
nunca as conhecemos.280 Também para ele pensar é julgar, mas julgar é avaliar e
interpretar, é criar os valores. O problema do juízo devém o da justiça, e da
hierarquia; 4º) Não o ser racional, funcionário dos valores em curso, a uma só vez
sacerdote e fiel, legislador e súdito, escravo vencedor e escravo vencido, homem
reativo a serviço de si mesmo. Mas então, quem toca a crítica? Qual é o ponto de
vista da crítica? A instância crítica não é o homem realizado, nem nenhuma forma
sublimada do homem, espírito, razão, consciência de si. Nem Deus nem homem, pois
entre o homem e Deus ainda não há tanta diferença, eles tomam bem demais o lugar
um do outro. A instância crítica é a vontade de potência, o ponto de vista crítico é o
da vontade de potência. Mas sob qual forma? Não o superhomem, que é o produto
positivo da [108] própria crítica. Mas há um “tipo relativamente superhumano”:281 o
tipo crítico, o homem enquanto ele quer ser ultrapassado, superado... “Poderíeis
transformar-vos em pais e ancestrais do superhomem: que isto seja o melhor da vossa
obra”;282 5º) A meta da crítica: não os fins do homem, ou da razão, mas enfim o
superhomem, o homem superado, ultrapassado. Na crítica, não se trata de justificar,
mas sentir outramente:nt uma outra sensibilidade.
11) O CONCEITO DE VERDADE
“A verdade sempre foi colocada como essência, como Deus, como instância
suprema... Mas a vontade de verdade precisa de uma crítica. – Definamos assim
280 EH, IV, 1.281 EH, IV, 5.282 Z, II, “Nas ilhas bem-aventuradas”.n t [“Outramente” se propõe como tradução de autrement, advérbio modal a partir do pronome indefinido autre, “outro”.]
nossa tarefa – é preciso tentar, de uma vez por todas, colocar em questão o valor da
verdade.”283 Por isso Kant é o último dos filósofos clássicos: ele nunca coloca em
questão o valor da verdade, nem as razões de nossa submissão ao verdadeiro. A esse
respeito ele é tão dogmático quanto qualquer outro. Nem ele nem os outros
perguntam: Quem busca a verdade? Ou seja: o que ele quer, aquele que busca a
verdade? qual seu tipo, sua vontade de potência? Essa insuficiência da filosofia,
tentemos compreender sua natureza. Todo mundo bem sabe que o homem, de fato,
raramente busca a verdade: nossos interesses e também nossa estupidez nos separam
do verdadeiro mais ainda do que os nossos erros. Mas os filósofos pretendem que o
pensamento enquanto pensamento busca o verdadeiro, que ele ama “de direito” o
verdadeiro. Estabelecendo um elo de direito entre o pensamento e a verdade,
entrelaçando assim a vontade de um puro pensador à verdade, a filosofia evita
entrelaçar a verdade a uma vontade concreta que seria a sua, a um tipo de forças, a
uma qualidade da vontade de potência. Nietzsche aceita o problema no terreno em
que ele está posto: não se trata, para ele, de colocar em dúvida a vontade de verdade,
não se trata de lembrar uma vez mais que os homens de fato não amam a verdade.
Nietzsche pergunta o que significa a verdade como conceito, quais forças e qual
vontade qualificadas esse conceito pressupõe de direito. Nietzsche não critica as
falsas pretensões à verdade, mas a verdade ela mesma e como ideal. Seguindo o
método de Nietzsche, é preciso dramatizar o conceito de verdade. “A vontade do
verdadeiro, que ainda nos induzirá [109] a um bocado de aventuras perigosas, essa
famosa veracidade da qual todos os filósofos sempre falaram com respeito, quantos
problemas ela já não nos colocou!... O que em nós quer encontrar a verdade? De fato,
atrasamo-nos delongadamente diante do problema da origem deste querer, e pra
finalizar nós nos encontramos completamente atravancados diante de um problema
ainda mais fundamental. Admitindo que quiséssemos o verdadeiro, ao invés disso por
que não o não-verdadeiro? Ou a incerteza? Ou até mesmo a ignorância?... E
acreditariam se nos parecesse definitivo que o problema nunca antes foi colocado,
que somos os primeiros a vê-lo, a encará-lo, a ousá-lo?”284
283 GM, III, 24.284 BM, I.
O conceito de verdade qualifica um mundo como verídico. Mesmo na ciência a
verdade dos fenômenos forma um “mundo” distinto daquele dos fenômenos. Ora, um
mundo verídico supõe um homem verídico ao qual ele remete como ao seu centro.285
– Quem é esse homem verídico, o que ele quer? Primeira hipótese: ele não quer ser
enganado, deixar-se enganar. Porque é “nocivo, perigoso, nefasto ser enganado”. Mas
tal hipótese supõe que o próprio mundo já seja verídico. Pois num mundo
radicalmente falso é a vontade de não se deixar enganar que devém nefasta, perigosa
e nociva. De fato, a vontade de verdade teve de se formar “apesar do perigo e da
inutilidade da verdade a todo preço”. Resta, portanto, uma outra hipótese: eu quero a
verdade significa eu não quero enganar, e “eu não quero enganar compreende, como
caso particular, eu não quero enganar a mim mesmo”.286 – Se alguém quer a verdade,
não é em nome daquilo que o mundo é, mas em nome daquilo que o mundo não é.
Entendido está que “a vida visa extraviar, engambelar, dissimular, ofuscar, cegar”.
Mas aquele que quer o verdadeiro, ele primeiramente quer depreciar essa alta
potência do falso: ele faz da vida um “erro”, desse mundo uma “aparência”. Ele opõe,
portanto, a vida ao conhecimento, ele opõe o mundo a um outro mundo, um além-
mundo, precisamente o mundo verídico. O mundo verídico não é separável dessa
vontade, vontade de tratar este mundo aqui como aparência. Desta feita, a oposição
do conhecimento e da vida, a distinção dos mundos, revelam seu verdadeiro caráter: é
uma distinção de origem moral, uma oposição de origem moral. O homem que [110]
não quer enganar quer um mundo melhor e uma vida melhor; todas as suas razões
para não enganar são razões morais. E sempre esbarramos no virtudismo daquele que
quer o verdadeiro: uma de suas ocupações favoritas é a distribuição dos equívocos,
ele torna responsável, ele nega a inocência, ele acusa e julga a vida, ele denuncia a
aparência. “Eu reconheci que, em qualquer filosofia, as intenções morais (ou imorais)
formam o verdadeiro gérmen de onde nasce a planta inteira... Não acredito, portanto,
na existência de um instinto de conhecimento que seria o pai da filosofia.”287 –
Todavia, essa oposição moral é ela mesma tão somente um sintoma. Aquele que quer 285 VP, I, 107: “Para poder imaginar um mundo do verdadeiro e do ser, foi primeiramente
preciso criar o homem verídico (inclusive o fato dele se acreditar verídico).”286 GC, 344.287 BM, 6.
um outro mundo, uma outra vida, quer algo mais profundo: “A vida contra a vida”.288
Ele quer que a vida devenha virtuosa, que ela se corrija e corrija a aparência, que ela
sirva de passagem ao outro mundo. Ele quer que a própria vida se renegue e se volte
contra si: “Tentativa de usar a força para exaurir a força.”289 Por trás da oposição
moral, perfila-se assim uma contradição de outra espécie, a contradição religiosa ou
ascética.
Da posição especulativa à oposição moral, da oposição moral à contradição
ascética... Mas a contradição ascética, por sua vez, é um sintoma que deve ser
interpretado. O que ele quer, o homem do ideal ascético? Aquele que renega a vida é
ainda aquele que quer uma vida diminuída, sua vida degenerescente e diminuída, a
conservação do seu tipo, e mais ainda, a potência e o triunfo do seu tipo, o triunfo das
forças reativas e seu contágio. Neste ponto, as forças reativas descobrem o
inquietante aliado que as conduz à vitória: o niilismo, a vontade de nada.290 É a
vontade de nada que suporta a vida apenas sob sua forma reativa. É ela que se serve
das forças reativas como do meio pelo qual a vida deve se contradizer, se negar, se
aniquilar. É a vontade de nada que, desde o início, anima todos os valores que se
chama de “superiores” à vida. E eis o maior erro de Schopenhauer: ele acreditou que,
nos valores superiores à vida, a vontade se negava. De fato, não é a vontade que se
nega nos valores superiores, são os valores superiores que se entrelaçam a uma
vontade de negar, de aniquilar a vida. Essa vontade de negar define “o valor” dos
valores superiores. Sua arma: fazer a vida passar sob a dominação das forças reativas,
de tal maneira [111] que a vida inteira role sempre mais longe, separada do que ela
pode, apequenando-se cada vez mais, “... até o nada, até o sentimento pungente do
seu nada”.291 A vontade de nada e as forças reativas, são esses os dois elementos
constituintes do ideal ascético.
Assim a interpretação descobre, ao escavar três espessuras (o conhecimento, a
moral e a religião), o verdadeiro, o bem e o divino como valores superiores à vida.
Todos os três se encadeiam: o ideal ascético é o terceiro momento, mas também o 288 GM, III, 13.289 GM, III, 11.290 GM, III, 13.291 GM, III, 25.
sentido e o valor dos outros dois. As cartas estão todas na mão, portanto, para se
partilhar as esferas de influência, e pode-se até mesmo opor cada momento aos
outros. Refinamento que não compromente ninguém, nisso o ideal ascético sempre se
reencontra, ocupando todas as esferas num estado mais ou menos condensado. Quem
pode acreditar que o conhecimento, a ciência, e mesmo a ciência do livre pensador,
“a verdade a todo preço”, comprometem o ideal ascético? “Assim que o espírito está
em ação com seriedade, energia e probidade, ele prescinde absolutamente de ideal...:
a não ser que ele queira a verdade. Mas essa vontade, esse resto de ideal, se nisto
quiserem me crer, é o próprio ideal ascético sob sua forma mais severa, mais
espiritualizada, mais puramente esotérica, mais despojada de qualquer envoltório
exterior.”292
12) CONHECIMENTO, MORAL E RELIGIÃO
Todavia, talvez haja uma razão pela qual se gosta de distinguir e até mesmo de
opor conhecimento, moral e religião. Remontávamos da verdade ao ideal ascético,
para descobrir a fonte do conceito de verdade. Sejamos por um instante mais ciosos
de evolução do que de genealogia: nós redescendemos do ideal ascético ou religioso
até a vontade de verdade. É bem preciso reconhecer, então, que a moral substituiu a
religião como dogma, e que a ciência tende mais e mais a substituir a moral. “O
cristianismo enquanto dogma foi arruinado por sua própria moral”; “o que triunfou
do Deus cristão é a própria moral cristã”; ou então, “no fim das contas o instinto de
verdade se interdita da mentira da fé em Deus”.293 Há coisas, hoje em dia, que um fiel
ou até um sacerdote não podem mais dizer nem pensar. Só alguns bispos ou papas: a
providência e a bondade divinas, a razão divina, a finalidade divina, [112] “eis aí
jeitos de pensar que hoje em dia já passaram, que têm contra si a voz da nossa
consciência”, eles são imorais.294 Amiúde a religião precisa dos livres pensadores
para sobreviver e receber uma forma adaptada. A moral é a continuação da religião,
292 GM, III, 27.293 GM, III, 27, e GC, 357.294 GM, III, 27.
mas com outros meios; o conhecimento é a continuação da moral e da religião, mas
com outros meios. Por toda parte o ideal ascético, mas os meios mudam, não são
mais as mesmas forças reativas. Eis por que de tão bom grado se confunde a crítica
com um ajuste de contas entre forças reativas diversas.
“O cristianismo enquanto dogma foi arruinado por sua própria moral...” Mas
Nietzsche acrescenta: “Assim, o cristianismo enquanto moral deve também chegar à
sua ruína.” Quer ele dizer que vontade de verdade deve ser a ruína da moral, da
mesma maneira que a moral é a ruína da religião? O ganho seria miúdo: a vontade de
verdade é ainda o ideal ascético, a maneira é sempre cristã. Nietzsche pede por outra
coisa: uma mudança de ideal, um outro ideal, “sentir outramente”. Mas como essa
mudança seria possível no mundo moderno? Quando perguntamos o que é o ideal
ascético e religioso, quando colocamos tal questão a esse próprio ideal, a moral ou a
virtude se antecipam para responder no lugar dele. A virtude diz: O que vocês estão
atacando sou eu mesma, pois eu respondo pelo ideal ascético; na religião há o ruim,
mas há também o bom; eu recolhi esse bom, sou eu quem quer o bom... E quando
perguntamos “Mas essa virtude, o que ela é, o que ela quer?”, a história recomeça. É
a verdade que se antecipa em pessoa, e diz: Sou eu quem quer a virtude, eu respondo
pela virtude. Ela é minha mãe e minha meta. Nada sou se não me conduzo até a
virtude. Ora, quem negará que eu não seja algo? – Pretendem fazer com que nós
redescendamos a todo vapor, cabeça pra baixo, sob pretexto de evolução, os estágios
genealógicos que havíamos percorrido, da verdade à moral, da moral à religião. A
virtude responde pela religião, a verdade pela virtude. Daí então basta prolongar o
movimento. Não nos farão redescender os graus sem que reencontremos nosso ponto
de partida, que é também nosso trampolim: a verdade ela mesma não é incriticável
nem por direito divino, a crítica deve ser crítica da verdade ela mesma. “O instinto
cristão de verdade, de dedução em dedução, de atravanco em atravanco, finalmente
chegará à sua mais assustadora dedução, ao [113] seu atravanco contra si próprio;
mas isto acontecerá quando ele se colocar a questão: que significa a vontade de
verdade? E eis-me aqui regressado ao meu problema, ó meus amigos desconhecidos
(pois de mim não conheço ainda amigo nenhum): o que seria para nós o sentido da
vida inteira, se é apenas em nós que essa vontade de verdade consegue tomar
consciência dela mesma enquanto problema? Uma vez consciente dela mesma, a
vontade de verdade será, quanto a isso não há dúvida, a morte da moral: este é o
grandioso espetáculo em cem atos, reservados para os dois próximos séculos de
história européia, espetáculo aterrorizante dentre todos, mas talvez fecundo dentre
todos em magníficas esperanças.”295 Nesse texto de grande rigor, cada termo é
sopesado. “De dedução em dedução”, “de atravanco em atravanco” significa os graus
descendentes: do ideal ascético à sua forma moral, da consciência moral à sua forma
especulativa. Mas “a mais assustadora dedução”, “o atravanco contra si mesmo”
significa o seguinte: o ideal ascético não tem mais esconderijo para além da vontade
de verdade, ninguém mais para responder em seu lugar. Basta continuar a dedução,
descer ainda mais longe do que não gostariam de nos fazer redescender. Então o ideal
ascético é desemboscado, desmascarado, não dispõe de mais nenhum personagem
para manter seu papel. Mais nenhum personagem moral, mais nenhum personagem
erudito. Regressamos ao nosso problema, mas também estamos no instante que
preside à reascensão: o momento de sentir outramente, mudar de ideal. Nietzsche não
quer dizer, portanto, que o ideal de verdade deva substituir o ideal ascético ou até
mesmo moral; ele diz, ao contrário, que o questionamento da vontade de verdade (sua
interpretação e sua avaliação) deve impedir o ideal ascético de se fazer substituir por
outros ideais que o continuariam sob outras formas. Quando denunciamos na vontade
de verdade a permanência do ideal ascético, retiramos deste ideal a condição de sua
permanência ou seu último disfarce. Neste sentido, nós também somos os “verídicos”
ou os “buscadores de conhecimento”.296 Mas não substituímos o ideal ascético, nada
deixamos subsistir do próprio lugar, queremos queimar o lugar, queremos um outro
ideal num outro lugar, uma outra maneira de conhecer, um outro conceito de verdade,
ou seja, uma verdade que não se pressuponha numa vontade do verdadeiro, mas que
suponha toda uma outra vontade. [114]
295 GM, III, 27.296 “Nós, os buscadores de conhecimento.” Nietzsche outrossim dirá que os senhores são
homens “verídicos”, num outro sentido que não o anterior: GM, I, 5.
13) O PENSAMENTO E A VIDA
Nietzsche freqüentemente reprova o conhecimento por sua pretensão de opor-
se à vida, de medir e julgar a vida, de tomar a si mesmo como fim. É já sob essa
forma que a reversão socrática aparece na Origem da Tragédia. E Nietzsche não
cessará de dizer: simples meio subordinado à vida, o conhecimento erigiu-se como
fim, como juiz, como instância suprema.297 Mas devemos avaliar a importância desses
textos: a oposição do conhecimento e da vida, a operação pela qual o conhecimento
se faz de juiz da vida, são sintomas e apenas sintomas. O conhecimento se opõe à
vida, mas porque ele exprime uma vida que contradiz a vida, uma vida reativa que
acha no próprio conhecimento um meio de conservar e de fazer triunfar o seu tipo.
(Assim, o conhecimento dá à vida leis que a separam do que ela pode, que evitam que
ela aja e lhe proíbem de agir, mantendo-a no estreito quadro das reações
cientificamente observáveis: quase como o animal num jardim zoológico. Mas esse
conhecimento que mede, limita e modela a vida, ele próprio é inteirinho feito sobre o
modelo de uma vida reativa, nos limites de uma vida reativa.) – Não se ficará
espantado, portanto, que outros textos de Nietzsche sejam mais complexos, não se
atendo aos sintomas e penetrando na interpretação. Aí então Nietzsche reprova o
conhecimento, não mais por tomar-se como fim, mas por fazer do pensamento um
simples meio à serviço da vida. Ocorre a Nietzsche reprovar Sócrates, não mais por
ter posto a vida a serviço do conhecimento, mas ao contrário, por ter posto o
pensamento a serviço da vida. “Em Sócrates, o pensamento serve a vida, enquanto
que em todos os filósofos anteriores a vida servia o pensamento.”298 Não se verá
contradição alguma entre esses dois tipos de textos, se primeiramente se estiver
sensível às diferentes nuanças da palavra vida: quando Sócrates põe a vida a serviço
do conhecimento, é preciso entender a vida inteira que, com isso, devém reativa; mas
quando ele põe o pensamento a serviço da vida, é preciso entender essa vida reativa
em particular, que devém o modelo de toda a vida e do próprio pensamento. E ainda
menos contradição se verá entre os dois tipos de texto, caso se esteja sensível à 297 VP, I e II.298 FG.
diferença entre “conhecimento” e “pensamento”. (Aqui também, não haveria [115]
um tema kantiano profundamente transformado, voltado contra Kant?)
Quando o conhecimento se faz de legislador, é o pensamento que é o grande
submetido. O conhecimento é o próprio pensamento, mas o pensamento submetido à
razão bem como a tudo que se exprime na razão. O instinto do conhecimento,
portanto, é o pensamento, mas o pensamento em seu entrelace com as forças reativas
que dele se apoderam ou que o conquistam. Pois são os mesmos limites que o
conhecimento racional fixa ao pensamento; é ao mesmo tempo que a vida é
submetida ao conhecimento, mas também que o pensamento é submetido à vida. De
qualquer maneira, a razão ora nos dissuade, e ora nos proíbe de transpor certos
limites: porque é inútil (o conhecimento está aí para prever), porque seria mal (a vida
está aí para ser virtuosa), porque é impossível (nada há para ver, nem para pensar
atrás do verdadeiro).299 – Mas então a crítica, concebida como crítica do próprio
conhecimento, não exprimiria novas forças capazes de dar um outro sentido ao
pensamento? Um pensamento que iria ao cabo do que a vida pode, um pensamento
que levaria a vida ao cabo do que ela pode. Em vez de um conhecimento que se opõe
à vida, um pensamento que afirmaria a vida. A vida seria a força ativa do
pensamento, mas o pensamento seria a potência afirmativa da vida. Ambos iriam no
mesmo sentido, um e outra empurrando-se e quebrando limites, um passo pra um, um
passo pra outra, no esforço de uma criação inaudita. Pensar significaria isto:
descobrir, inventar novas possibilidades de vida. “Há vidas em que as dificuldades
tocam o prodígio; são as vidas dos pensadores. E é preciso dar ouvido ao que nos é
contado a respeito deles, pois nisto se descobre possibilidades de vida, e só sua
narrativa já nos dá alegria e força, e verte uma luz sobre a vida dos seus sucessores.
Nisto há tanta invenção, reflexão, intrepidez, desespero e esperança quanto nas
viagens dos grandes navegadores; e, pra dizer a verdade, são também viagens de
exploração nos domínios mais recuados e mais perigosos da vida. O que essas vidas
têm de surpreendente é que dois instintos inimigos, que atiram em sentidos opostos, 299 Já na Origem da Tragédia, Apolo aparecia sob essa forma: ele traça limites em torno dos
indivíduos, limites “que, em seguida, ele sem parar lhes relembra como sendo leis universais e sagradas, em seus preceitos relativos ao conhecimento de si e à medida” (OT, 9).
parecem ser forçados a marchar sob o mesmo jugo: o instinto que tende ao
conhecimento é [116] coagido, sem parar, a abandonar o solo onde o homem tem
costume de viver e a lançar-se no incerto, e o instinto que quer a vida se vê forçado a
buscar sem parar, às apalpadelas, um novo lugar onde se estabelecer.”300 Noutros
termos: a vida ultrapassa os limites que o conhecimento lhe fixa, mas o pensamento
ultrapassa os limites que a vida lhe fixa. O pensamento deixa de ser uma ratio, a vida
deixa de ser uma reação. O pensador exprime, assim, a bela afinidade do pensamento
e da vida: a vida fazendo do pensamento algo de ativo, o pensamento fazendo da vida
algo de afirmativo. Essa afinidade em geral, em Nietzsche, não aparece apenas como
o segredo pré-socrático por excelência, mas também como a essência da arte.
14) A ARTE
A concepção nietzscheana da arte é uma concepção trágica. Ela repousa sobre
dois princípios, que é preciso conceber como princípios antiquíssimos, mas também
como princípios do porvir. Primeiramente, a arte é o contrário de uma operação
“desinteressada”: ela não cura, não acalma, não sublima, não recompensa,nt ela não
“suspende” o desejo, o instinto nem a vontade. A arte, ao contrário, é “estimulante da
vontade de potência”, “excitante do querer”. Compreende-se facilmente o sentido
crítico deste princípio: ele denuncia toda concepção reativa da arte. Quando
Aristóteles compreendia a tragédia como uma purgação médica ou como uma
sublimação moral, ele dava um interesse a ela, mas um interesse que se confundia
com o das forças reativas. Quando Kant distingue o belo de todo interesse, mesmo
que moral, ele ainda se coloca do ponto de vista das reações de um espectador, mas
de um espectador cada vez menos dotado, que tem pelo belo tão somente um olhar
desinteressado. Quando Schopenhauer elabora sua teoria do desinteresse, ele mesmo
confessa que está generalizando uma experiência pessoal, a experiência do jovem
sobre quem a arte (como sobre outros, o esporte) tem o efeito de um calmante
300 FG.n t [O verbo francês é désinteresser, como liquidar um interesse devido, no sentido financeiro; indenizar, compensar, ou recompensar.]
sexual.301 Mais do que nunca, a questão de Niezsche se impõe: Quem olha o belo de
um jeito desinteressado? A arte sempre é julgada do ponto de vista do espectador, e
de um espectador cada vez menos artista. Nietzsche clama por uma estética da
criação, a estética de Pigmalião. Mas por que, precisamente deste novo ponto de
vista, a arte [117] aparece como estimulante da vontade de potência? Por que a
vontade de potência precisa de um excitante, ela que não precisa de motivo, de meta
nem de representação? É porque ela só pode se colocar como afirmativa em entrelace
com forças ativas, com uma vida ativa. A afirmação é o produto de um pensamento
que supõe uma vida ativa como sua condição e seu concomitante. Segundo
Nietzsche, ainda não se compreendeu o que significa a vida de um artista: a atividade
dessa vida servindo de estimulante à afirmação contida na própria obra de arte, a
vontade de potência do artista enquanto tal.
O segundo princípio da arte consiste no seguinte: a arte é a mais alta potência
do falso, ela magnifica “o mundo enquanto erro”, ela santifica a mentira, faz da
vontade de enganar um ideal superior.302 Este segundo princípio traz, de certa
maneira, a recíproca do primeiro; o que é ativo na vida só pode ser efetuado em
entrelace com uma afirmação mais profunda. A atividade da vida é como uma
potência do falso, ludibriar, dissimular, ofuscar, seduzir. Mas, para ser efetuada, essa
potência do falso deve ser selecionada, redobrada ou repetida, portanto elevada a uma
potência mais alta. A potência do falso deve ser levada até uma vontade de enganar,
vontade artista, única capaz de rivalizar com o ideal ascético e de opor-se com
sucesso a este ideal.303 A arte, precisamente, inventa mentiras que elevam o falso a
esta potência afirmativa mais alta, ela faz da vontade de enganar algo que se afirma
na potência do falso. Aparência, para o artista, já não significa a negação do real
neste mundo, mas esta seleção, esta correção, este redobramento, esta afirmação.304
301 GM, III, 6.302 VS (projeto de prefácio, 6): “Não é o mundo enquanto coisa em si (este mundo é vazio, vazio
de sentido e digno de um riso homérico!), é o mundo enquanto erro que é tão rico em significação, tão profundo, tão maravilhoso”. – VP, I, 453: “A arte nos é dada para nos impedir de morrer da verdade”. – GM, III, 25: “A arte, santificando precisamente a mentira, e colocando a vontade de enganar ao lado da boa consciência, é oposta, por princípio, muito mais ao ideal ascético do que à ciência.”
303 GM, III, 25.304 Cr. Id., “A razão na filosofia”, 6: “Aqui a aparência significa a realidade repetida, uma vez
mais, porém sob forma de seleção, de redobramento, de correção. O artista trágico não é
Verdade, então, ganha talvez uma nova significação. Verdade é aparência. Verdade
significa efetuação da potência, elevação à mais alta potência. Em Nietzsche: nós, os
artistas = nós, os buscadores de conhecimento ou de verdade = nós, os inventores de
novas possibilidades de vida.
15) NOVA IMAGEM DO PENSAMENTO
A imagem dogmática do pensamento aparece em três teses essenciais: 1ª)
Dizem-nos que o pensador enquanto pensador quer e ama o verdadeiro (veracidade
do pensador); que o pensamento como pensamento possui ou contém formalmente o
verdadeiro (inatidade da idéia, a priori dos conceitos); que pensar é o exercício
natural de uma faculdade, que basta, portanto, pensar “verdadeiramente” para pensar
com verdade (natureza reta do pensamento, bom senso universalmente partilhado);
2ª) Dizem-nos também que somos desviados do verdadeiro, mas por forças
estrangeiras ao pensamento (corpos, paixões, interesses sensíveis). Porque não somos
apenas seres pensantes, caímos no erro, tomamos o falso pelo verdadeiro. O erro:
seria este o único efeito, no pensamento como tal, das forças exteriores que se opõem
ao pensamento; 3ª) Dizem-nos enfim que basta um método para pensar bem, para
pensar verdadeiramente. O método é um artifício, mas pelo qual nos reunimos com a
natureza do pensamento, aderimos a essa natureza e conjuramos o efeito das forças
estrangeiras que a alteram e nos distraem. Pelo método, conjuramos o erro. Pouco
importam a hora e o lugar, se aplicamos o método: ele nos faz penetrar no domínio
“daquilo que vale em todos os tempos, em todos os lugares”.
O mais curioso, nessa imagem do pensamento, é a maneira pela qual o
verdadeiro é concebido como um universal abstrato. Nunca se está entrelaçado a
forças reais que fazem o pensamento, nunca se entrelaça o próprio pensamento às
forças reais que ele supõe enquanto pensamento. Nunca se entrelaça o verdadeiro
àquilo que ele pressupõe. Ora, não há verdade que não seja, antes de ser uma verdade,
a efetuação de um sentido ou a realização de um valor. A verdade como conceito é
um pessimista, ele diz sim a tudo que é problemático e terrível, ele é dionisíaco.”
totalmente indeterminada. Tudo depende do valor e do sentido daquilo que pensamos.
Sempre temos aquelas verdades que merecemos em função do sentido daquilo que
concebemos, do valor daquilo que acreditamos. Pois um sentido pensável ou pensado
é sempre efetuado, na medida em que as forças que lhe correspondem no pensamento
apoderam-se também de alguma coisa, apropriam-se de alguma coisa fora do
pensamento. É claro que o pensamento jamais pensa por si mesmo, tampouco ele
acha por si mesmo o verdadeiro. A verdade de um pensamento deve ser interpretada e
avaliada conforme as forças ou a potência que o determinam a pensar, e a pensar isto
ao invés daquilo. Quando nos falam da verdade “e nada mais”, do verdadeiro tal
como ele é em si, para si ou até para nós, [119] devemos perguntar quais forças se
escondem no pensamento dessa verdade, portanto qual é seu sentido e qual é seu
valor. Fato perturbador: o verdadeiro concebido como universal abstrato, o
pensamento concebido como ciência pura nunca fizeram mal a ninguém. O fato é
que a ordem estabelecida e os valores em curso encontram nele, constantemente, seu
melhor suporte. “A verdade aparece como uma criatura bonachona e amante dos seus
confortos, que sem parar dá a todos os poderes estabelecidos a segurança de que ela
jamais causará a ninguém o menor embaraço, pois ela, afinal de contas, é tão somente
a ciência pura.”305 Eis o que a imagem dogmática do pensamento esconde: o trabalho
das forças estabelecidas, que determinam o pensamento como ciência pura, o trabalho
das potências estabelecidas, que se exprimem idealmente no verdadeiro tal como ele
é em si. A estranha declaração de Leibniz ainda pesa sobre a filosofia: produzir
verdades novas, mas sobretudo “sem reverter os sentimentos estabelecidos”.nt E, de
Kant a Hegel, viu-se o filósofo mantendo-se, afinal, como um personagem bem civil
e piedoso, que gosta de confundir os fins da cultura com o bem da religião, da moral
ou do Estado. A ciência foi batizada como crítica, pois fazia comparecerem diante
dela as potências do mundo, mas a fim de devolver-lhes o que ela lhes devia, a sanção
do verdadeiro tal como ele é em si, para si ou para nós.306
Uma nova imagem do pensamento significa, primeiramente, o seguinte: o
305 Co. In., II, “Schopenhauer educador”, 3.n t [Cf. Carta de Leibniz a Antoine Arnauld, 12 de abril de 1686, Hannover.]306 Co. In., II, “Schopenhauer educador”, 3, 4, 8.
verdadeiro não é o elemento do pensamento. O elemento do pensamento é o sentido e
o valor. As categorias do pensamento não são o verdadeiro e o falso, mas o nobre e o
vil, o alto e o baixo, conforme a natureza das forças que se apoderam do próprio
pensamento. Tanto do verdadeiro como do falso, sempre temos a parte que
merecemos: há verdades da baixeza, verdades que são as do escravo. Inversamente,
nossos mais altos pensamentos tem parte com o falso; mais ainda, jamais renunciam a
fazer do falso uma alta potência, uma potência afirmativa e artista, que encontra na
obra de arte sua efetuação, sua verificação, seu devir-verdadeiro.307 Disto decorre uma
segunda conseqüência: o estado negativo do pensamento não é o erro. A inflação do
conceito de erro, em filosofia, dá testemunho da persistência da imagem dogmática.
Conforme esta, tudo que se opõe de fato ao pensamento tem apenas um efeito sobre o
pensamento como tal: induzi-lo ao [120] erro. O conceito de erro, portanto,
exprimiria de direito aquilo que pode ocorrer de pior ao pensamento, ou seja, o estado
de um pensamento separado do verdadeiro. Também aqui, Nietzsche aceita o
problema tal como ele é posto de direito. Mas, justamente, o caráter pouco sério dos
exemplos correntemente evocados pelos filósofos para ilustrar o erro (dizer “bom dia
Teeteto” quando se encontra Teodoro, dizer 3 + 2 = 6), mostra suficientemente que
este conceito de erro é apenas a extrapolação de situações de fato, elas mesmas
pueris, artificiais ou grotescas. Quem diz 3 + 2 = 6 senão a criancinha na escola?
Quem diz “bom dia Teeteto” senão o míope ou o distraído? O pensamento, adulto e
aplicado, tem outros inimigos, estados negativos outramente profundos. A besteira é
uma estrutura do pensamento como tal: ela não é uma maneira de se enganar, ela
exprime de direito o não-senso no pensamento. A besteira não é um erro nem um
tecido de erros. Conhece-se pensamentos imbecis, discursos imbecis feitos inteirinhos
de verdades; mas essas verdades são baixas, são as de uma alma baixa, pesada e
chumbada. A besteira e, mais profundamente, aquilo de que ela é sintoma: uma
maneira baixa de pensar. Eis o que exprime de direito o estado de um espírito
dominado por forças reativas. Tanto na verdade como no erro, o pensamento estúpido
307 HH, 146: “O artista tem, quanto ao conhecimento da verdade, uma moralidade mais fraca que o pensador; ele não quer absolutamente deixar que se lhe tolham as brilhantes interpretações da vida...”
só descobre o mais baixo, os erros baixos e as verdades baixas, que traduzem o
triunfo do escravo, o reino dos valores mesquinhos ou a potência de uma ordem
estabelecida. Nietzsche, em luta com seu tempo, não pára de denunciar: Quanta
baixeza para poder dizer isto, para poder pensar aquilo !
O conceito de verdade só se determina em função de uma tipologia pluralista.
E a tipologia começa por uma topologia. Trata-se de saber a qual região pertencem
tais erros e tais verdades, qual é seu tipo, quem os formula e os concebe. Submeter o
verdadeiro à prova do baixo, mas submeter também o baixo à prova do alto: é a tarefa
realmente crítica e o único meio de se reconhecer na “verdade”. Quando alguém
pergunta pra que serve a filosofia, a resposta deve ser agressiva, pois a questão quer
ser irônica e mordaz. A filosofia não serve ao Estado nem à Igreja, que têm outras
preocupações. Ela não serve a nenhuma potência estabelecida. A filosofia serve para
entristecer. Uma filosofia que não entristece ninguém e não contraria ninguém não é
uma filosofia. Ela serve para prejudicar a besteira, ela faz da besteira algo
vergonhoso.308 [121] Ela não tem outro uso que não este: denunciar a baixeza de
pensamento sob todas as suas formas. Haveria uma disciplina, fora da filosofia, que
se propõe à crítica de todas as mistificações, sejam quais forem sua fonte e sua meta?
Denunciar todas as ficções sem as quais as forças reativas não prevaleceriam.
Denunciar na mistificação essa mescla de baixeza e de besteira, que forma
igualmente a impressionante cumplicidade das vítimas e dos autores. Fazer do
pensamento, enfim, algo agressivo, ativo e afirmativo. Fazer homens livres, ou seja,
homens que não confundem os fins da cultura com o proveito do Estado, da moral ou
da religião. Combater o ressentimento, a má consciência que tomam o lugar do nosso
pensamento. Vencer o negativo e seus falsos prestígios. Quem tem interesse em tudo
isso, salvo a filosofia? A filosofia como crítica nos diz o mais positivo dela mesma:
empreitada de desmistificação. E que não se apressem em proclamar, a este respeito,
308 Co. In., II, “Schopenhauer educador”, 8: “Diógenes objetou, quando se elogiava um filósofo diante dele: O que ele, então, tem de grande para mostrar, ele que por tanto tempo se entregou à filosofia sem nunca entristecer ninguém? Com efeito, seria preciso colocar como epitáfio no túmulo da filosofia de universidade: Ela nunca entristeceu ninguém.” – GC, 328: os filósofos antigos mantiveram um sermão contra a tolice, “não perguntamos aqui se este sermão é melhor fundado que o sermão contra o egoísmo; certo é que ele despojou a besteira de sua boa consciência: esses filósofos estragaram a besteira.”
o fracasso da filosofia. Por mais grandes que sejam, a besteira e a baixeza seriam
ainda maiores, se não subsistisse um pouco de filosofia que as impede, em cada
época, de ir tão longe quanto gostariam, que lhes interdita respectivamente, quando
mais não seja por ouvir-dizer, de ser tão besta e tão baixa quanto cada uma por conta
própria desejaria. Certos excessos são-lhes interditados, mas quem lhes interdita
salvo a filosofia? Quem lhes força a se mascarar, a se arrogarem de ares nobres e
inteligentes, ares de pensador? Decerto existe uma mistificação propriamente
filosófica; a imagem dogmática do pensamento e a caricatura da crítica são
testemunho disso. Mas a mistificação da filosofia começa a partir do momento em
que esta renuncia ao seu papel... desmistificador, e tem parte com potências
estabelecidas: quando ela renuncia a estragar a besteira, a denunciar a baixeza. É
verdade, diz Nietzsche, que os filósofos de hoje devieram cometas.309 Porém, de
Lucrécio aos filósofos do século XVIII, devemos observar esses cometas, segui-los se
possível, reencontrar seu fantástico caminho. Os filósofos-cometas souberam fazer do
pluralismo uma arte de pensar, uma arte crítica. Souberam dizer aos homens o que
sua má consciência e seu ressentimento escondiam. Souberam opor [122] aos valores
e às potências estabelecidas quando menos a imagem de um homem livre. Após
Lucrécio, como ainda é possível perguntar: pra que serve a filosofia?
Isso é possível perguntar porque a imagem do filósofo é constantemente
obscurecida. Fazem dele um sábio, ele que é somente o amigo da sabedoria, amigo
num sentido ambíguo, ou seja, o anti-sábio, aquele que deve se mascarar de sabedoria
para sobreviver. Fazem dele um amigo da verdade, ele que faz o verdadeiro sofrer a
mais dura prova, da qual a verdade sai tão desmembrada quanto Dioniso: a prova do
sentido e do valor. A imagem do filósofo é obscurecida por todos esses disfarces
necessários, mas também por todas as traições que fazem dele o filósofo da religião,
o filósofo do Estado, o colecionador dos valores em curso, o funcionário da história.
A imagem autêntica do filósofo não sobrevive àquele que soube encarná-lo por um
tempo, em sua época. É preciso que ela seja retomada, reanimada, que ela ache um
novo campo de atividade na época seguinte. Se a labuta crítica da filosofia não é 309 NP – Co. In., II, “Schopenhauer educador”, 7: “A natureza envia o filósofo à humanidade
como uma flecha; ela não mira, mas espera que a flecha fique cravada em algum lugar.”
ativamente retomada em cada época, a filosofia morre, e com ela a imagem do
filósofo e a imagem do homem livre. A besteira e a baixeza não param de formar
novas aliagens. A besteira e baixeza são sempre as do nosso tempo, de nossos
contemporâneos, nossa besteira e nossa baixeza.310 Diferentemente do conceito
intemporal de erro, a baixeza não se separa do tempo, isto é, desse transporte do
presente, dessa atualidade na qual ela se encarna e se move. Eis por que a filosofia
tem, com o tempo, um entrelace essencial: sempre contra seu tempo, crítico do
mundo atual, o filósofo forma conceitos que não são nem eternos nem históricos, mas
intempestivos e inatuais. A oposição na qual a filosofia se realiza é a do inatual com o
atual, do intempestivo com o nosso tempo.311 E no intempestivo há verdades mais
duráveis que as verdades históricas e eternas reunidas: as verdades do tempo por vir.
Pensar ativamente é “agir de um jeito inatual, portanto contra o tempo e, por isso
mesmo, sobre o tempo, em favor (assim o espero) de um tempo por vir.”312 A cadeia
dos filósofos não é a cadeia eterna dos sábios, menos ainda o encadeamento da
história, mas uma cadeia [123] quebrada, a sucessão dos cometas, sua
descontinuidade e sua repetição que não se reduzem nem à eternidade do céu que eles
atravessam, nem à historicidade da terra que eles sobrevoam. Não há filosofia eterna,
nem filosofia histórica. Tanto a eternidade quanto a historicidade se reduzem a isto
aqui: a filosofia, sempre intempestiva, intempestiva em cada época.
Colocando o pensamento no elemento do sentido e do valor, fazendo do
pensamento ativo uma crítica da besteira e da baixeza, Nietzsche propõe uma nova
imagem do pensamento. É que pensar nunca é o exercício natural de uma faculdade.
Nunca o pensamento pensa sozinho e por si mesmo; nunca tampouco ele é
simplesmente perturbado por forças que lhe permaneceriam exteriores. Pensar
depende das forças que se apoderam do pensamento. Enquanto nosso pensamento
estiver ocupado pelas forças reativas, enquanto ele achar seu sentido nas forças
reativas, é bem preciso confessar que ainda não estamos pensando. Pensar designa a
310 AC, 38: “Igual a todos os clarividentes, tenho uma grande tolerância para com o passado, ou seja, generosamente eu mesmo me coajo... Mas meu sentimento se inverte, explode, assim que entro no tempo moderno, em nosso tempo.”
311 Co. In., I, “Da utilidade e do inconveniente dos estudos históricos”, Prefácio.312 Co. In., II, “Schopenhauer educador”, 3-4.
ativadade do pensamento; mas o pensamento tem suas próprias maneiras de ser
inativo, ele pode se empregar a isso inteiramente e com todas as suas forças. As
ficções pelas quais as forças reativas triunfam formam o mais baixo no pensamento, a
maneira pela qual ele permanece inativo e se ocupa em não pensar. Quando
Heidegger anuncia: ainda não pensamos, uma origem desse tema está em Nietzsche.
Esperamos pelas forças capazes de fazer do pensamento algo ativo, absolutamente
ativo, a potência capaz de fazer dele uma afirmação. Pensar, como atividade, é
sempre uma segunda potência do pensamento, não o exercício natural de uma
faculdade, mas um extraordinário acontecimento no próprio pensamento, para o
próprio pensamento. Pensar é uma nª... potência do pensamento. Ainda é preciso que
ele seja elevado a essa potência, que ele devenha “o leve”, “o afirmativo”, “o
dançarino”. Ora, ele nunca alcançará essa potência, se forças não exercerem sobre ele
uma violência. É preciso que uma violência se exerça sobre ele enquanto
pensamento, é preciso que uma potência force-o a pensar, lance-o num devir-ativo.
Tal coação, tal adestramento, é o que Nietzsche chama de “Cultura”. A cultura,
segundo Nietzsche, é essencialmente adestramento e seleção.313 Ela exprime a
violência das forças, que se apoderam do pensamento para fazer dele algo ativo,
afirmativo. – Só se compreenderá o conceito de cultura, caso se apreenda todas as
maneiras pelas quais ele se opõe ao método. O metódo sempre supõe uma boa
vontade do pensador, [124] “uma decisão premeditada”. A cultura, ao contrário, é
uma violência sofrida pelo pensamento, uma formação do pensamento sob a ação de
forças seletivas, um adestramento que põe em jogo todo o inconsciente do pensador.
Os Gregos não falavam de método, mas de paideia; eles sabiam que o pensamento
não pensa a partir de uma boa vontade, mas em virtude de forças que se exercem
sobre ele para coagi-lo a pensar. Até mesmo Platão também distinguia o que força a
pensar e o que deixa o pensamento inativo; e, no mito da caverna, ele subordinava a
paideia à violência sofrida por um prisioneiro, seja para sair da caverna, seja para
voltar a ela.314 É essa ideia grega de uma violência seletiva da cultura que Nietzsche 313 Co. In., II, “Schopenhauer educador”, 6. – VP, IV.314 PLATÃO, República, VII: Cf. não apenas o mito da caverna, mas a famosa passagem sobre os
“dedos” (distinção daquilo que força a pensar e daquilo que não força a pensar). – Platão desenvolve, então, uma imagem do pensamento bem diferente daquela que aparece em
reencontra em textos célebres. “Que se considere nossa antiga organização penal, e
dar-se-á conta das dificuldades que há sobre a terra para elevar um povo de
pensadores...”: aí até mesmo os suplícios são necessários. “Aprender a pensar: em
nossas escolas, perdeu-se completamente a noção disso...” “Por mais estranho que
isso possa parecer, tudo que existe e jamais existiu sobre a terra, em fato de liberdade,
de fineza, de audácia, de dança e de magistral segurança, nunca pode florescer senão
sob a tirania das leis arbitrárias.”315
E, sem dúvida, há ironia nesses textos: o “povo de pensadores”, do qual
Nietzsche fala, não é o povo grego, mas calha de ser o povo alemão. Todavia, onde
está a ironia? Não não ideia de que o pensamento só consegue pensar sob a ação de
forças que lhe fazem violência. Não na ideia da cultura como violento adestramento.
A ironia aparece, ao invés disso, numa dúvida sobre o devir da cultura. Começa-se
como Gregos, acaba-se como Alemães. Em vários textos estranhos, Nietzsche faz
valer essa decepção de Dioniso ou de Ariadne: Achar-se diante de um Alemão quando
se queria um Grego.316 – [125] A atividade genérica da cultura tem uma meta final:
formar o artista, o filósofo.317 Toda sua violência seletiva está a serviço desse fim; “na
presente hora eu me ocupo de uma espécie de homem cuja teleologia conduz um
pouco mais acima que o bem de um Estado.”318 As principais atividades culturais das
Igrejas e dos Estados formam antes o longo martirológio da própria cultura. E quando
um Estado favorece a cultura, “ele só a favorece para favorecer a si mesmo, e jamais
concebe que haja uma meta que seja superior ao seu bem e à sua existência.”
Contudo, por outro lado, a confusão da atividade cultural com o bem do Estado
repousa em algo real. O trabalho cultural das forças ativas corre, a cada instante, o outros textos. Esses outros textos nos apresentam uma concepção já dogmática: o pensamento como amor e desejo do verdadeiro, do belo, do bem. Não haveria lugar para opor, em Platão, essas duas imagens do pensamento, sendo apenas a segunda particularmente socrática? Não é algo desse gênero que Nietzsche quer dizer, quando ele aconselha: “Tentar caracterizar Platão sem Sócrates?” (cf. FG).
315 GM, II, 3. – Cr. Id., “O que os alemães estão perdendo”, 7. – BM, 188.316 Cf. a) VP, II, 226: “Nesse momento Ariadne perdeu a paciência...: ‘Mas senhor’, disse ela,
‘você fala alemão como um porco!’ – ‘Alemão’, disse eu sem me incomodar, ‘nada além de alemão...’”; b) VS, projeto de prefácio, 10: “O Deus apareceu diante de mim, o deus que eu conhecia há muito tempo, e pôs-se a dizer: “‘Ora ora! apanhador de ratos, o que então vens fazer aqui? Tu que és metade jesuíta e metade músico, e quase um Alemão?’”; c) Recordar-se-á, também, que o admirável poema O Lamento de Ariadne é atribuído, no Zaratustra, ao Encantador; mas que o encantador é um mistificador, um “falso-cunhador” da cultura.
317 Co. In., II, “Schopenhauer educador”, 8.318 Co. In., II, “Schopenhauer educador”, 4.
risco de ser desviado de seu sentido: ocorre precisamente dele passar em proveito das
forças reativas. Essa violência da cultura, ocorre da Igreja ou do Estado tomarem-na
por conta própria para realizar fins que são os seus. Essa violência, ocorre das forças
reativas desviarem-na da cultura, fazerem dela mesma uma força reativa, um meio de
abestalhar ainda mais, de abaixar o pensamento. Ocorre delas confundirem a
violência da cultura com sua própria violência, sua própria força.319 Nietzsche chama
esse processo de “degenerescência da cultura”. Em que medida ele é inevitável, em
que medida evitável, por quais razões e por quais meios, saberemos mais tarde. Seja
como for quanto a isso, Nietzsche sublinha assim a ambivalência da cultura: de grega
ela devém alemã...
Isso é dizer, uma vez mais, a que ponto a nova imagem do pensamento implica
entrelaces de força extremamente complexos. A teoria do pensamento depende de
uma tipologia das forças. Pensar depende de certas coordenadas. Temos as verdades
que merecemos conforme o lugar onde levamos nossa existência, a hora em que
velamos, o elemento que freqüentamos. A ideia de que a verdade saia do poço, não há
ideia mais falsa. Só achamos as verdades lá onde elas estão, em sua hora e em seu
elemento. Toda verdade é verdade de um elemento, de uma hora e de um lugar: o
minotauro não sai do labirinto.320 Não pensaremos enquanto não nos forçarem a ir lá
onde estão [126] verdades que dão o que pensar, lá onde se exercem as forças que
fazem do pensamento algo ativo e afirmativo. Não um método, mas uma paideia,
uma formação, uma cultura. O método em geral é um meio para nos evitar de ir em
tal lugar, ou para nos guardar a possibilidade de sair dele (o fio no labirinto). “E nós,
nós vos rogamos instantaneamente, pendurai-vos neste fio!” Nietzsche diz: três
anedotas bastam para definir a vida de um pensador.321 Sem dúvida uma para o lugar,
uma para a hora, uma para o elemento. A anedota é na vida aquilo que o aforisma é
no pensamento: algo a ser interpretado. Empédocles e seu vulcão, eis uma anedota de
pensador. O alto dos cumes e as cavernas, o labirinto; meiodia-meianoite; o elemento
areano, alciônio, e também o elemento rareficado daquilo que é subterrâneo. A nós de
319 Co. In., II, “Schopenhauer educador”, 6.320 VP, III, 408.321 FG.
ir nos lugares extremos, nas horas extremas, onde vivem e se levantam as mais altas
verdades, as mais profundas. Os lugares do pensamento são as zonas tropicais,
assombradas pelo homem tropical. Não as zonas temperadas, nem o homem moral,
metódico ou moderado.322
322 BM, 197.
[127]
CAPÍTULO IV
DO RESSENTIMENTO À MÁ CONSCIÊNCIA
1) REAÇÃO E RESSENTIMENTO
No estado normal ou de saúde, as forças reativas sempre têm como papel
limitar a ação. Elas a dividem, a retardam ou a impedem em função de uma outra
ação cujo efeito sofremos. Mas inversamente, as forças ativas fazem a reação
explodir: elas a precipitam num instante escolhido, num momento favorável, numa
direção determinada, para uma tarefa de adaptação rápida e precisa. Assim forma-se
uma resposta. Eis por que Nietzsche pode dizer: “A verdadeira reação é a da ação.”323
O tipo ativo, neste sentido, não é um tipo que conteria exclusivamente forças ativas;
ele exprime o entrelace “normal” entre uma reação que retarda a ação e uma ação que
precipita a reação. Do senhor é dito re-agir, precisamente porque ele age suas reações.
O tipo ativo, portanto, engloba as forças reativas, mas num tal estado que elas se
definem por uma potência de obedecer ou de serem agidas. O tipo ativo exprime um
entrelace tal, entre as forças ativas e as forças reativas, que estas últimas são elas
mesmas agidas.
Compreende-se, então, que não basta uma reação para fazer um ressentimento.
Ressentimento designa um tipo em que as forças reativas prevalecem sobre as forças
ativas. Ora, só de um jeito elas podem prevalecer: deixando de ser agidas. Sobretudo
não devemos definir o ressentimento pela força de uma reação. Se perguntamos o que
é o homem do ressentimento, não devemos esquecer este princípio: ele não re-age. E
a palavra ressentimento dá uma indicação rigorosa: a reação deixa de ser agida para
devir algo sentido. As [128] forças reativas prevalecem sobre as forças ativas porque
elas se furtam de sua ação. Mas neste ponto surgem duas questões: 1ª) Como elas 323
GM, I, 10.
prevalecem, como se furtam? Qual o mecanismo dessa “doença”? 2ª) E,
inversamente, como as forças reativas são normalmente agidas? Normal aqui não
significa freqüente, mas, ao contrário, normativo e raro. Qual a definição dessa
norma, dessa “saúde”?
2) PRINCÍPIO DO RESSENTIMENTO
Freud expõe amiúde um esquema da vida que ele chama de “hipótese tópica”.
Não é o mesmo sistema que recebe uma excitação e que dela conserva um rastro
durável: um mesmo sistema não poderia, de uma só vez, guardar fielmente as
transformações que ele sofre e oferecer uma receptividade sempre fresca.
“Suporemos, então, que um sistema externo do aparelho recebe as excitações
perceptíveis, mas nada retém delas, não tem portanto memória, e que detrás desse
sistema acha-se um outro, que transforma a excitação momentânea do primeiro em
rastros duráveis.” Esses dois sistemas ou registros correspondem à distinção da
consciência e do inconsciente: “Nossas lembranças são, por natureza, inconscientes”;
e inversamente: “A consciência nasce ali onde se interrompe o rastro mnêmico.”
Assim, é preciso conceber a formação do sistema consciente como o resultado de
uma evolução: no limite do fora e do dentro, do mundo interior e do mundo exterior,
“teria se formado uma casca tão amolecida pelas excitações que ela recebeu sem
parar, que ela teria adquirido propriedades que a tornam apta unicamente a receber
novas excitações”, só guardando dos objetos uma imagem direta e modificável,
totalmente distinta do rastro durável ou até imutável no sistema inconsciente.324
Freud está longe de tomar por conta própria essa hipótese tópica, e de aceitá-la
sem restrições. O fato é que achamos todos os elementos da hipótese em Nietzsche.
Nietzsche distingue dois sistemas do aparelho reativo: a consciência e o
inconsciente.325 O inconsciente reativo é definido [129] pelos rastros mnêmicos, pelas
324 Freud, Science des rêves (tr. fr., pp. 442-443); artigo sobre “o inconsciente” de 1915 (cf. Métapsychologie); Além do Princípio de Prazer.
325 GM, II, 1 e I, 10. – Notar-se-á que, em Nietzsche, há vários tipos de inconsciente: a atividade por natureza é inconsciente, mas este inconsciente não deve ser confundido com o das forças reativas.
impressões duráveis. É um sistema digestivo, vegetativo, ruminante, que exprime “a
impossibilidade puramente passiva de subtrair-se da impressão, uma vez recebida.”
E, sem dúvida, mesmo nessa digestão sem fim, as forças reativas executam uma
labuta que lhe é reservada: fixar-se na impressão indelével, cercar o rastro. Mas quem
não vê a insuficiência dessa primeira espécie de forças reativas? Nunca uma
adaptação seria possível, se o aparelho reativo não dispusesse de um outro sistema de
forças. É preciso um outro sistema, onde a reação deixe de ser uma reação aos
rastros, para devir reação à excitação presente ou à imagem direta do objeto. Esta
segunda espécie de forças reativas não se separa da consciência: casca sempre
renovada de uma receptividade sempre fresca, meio [milieu] onde “há novamente
lugar para as coisas novas”. Recorda-se que Nietzsche queria chamar a consciência à
modéstia necessária: sua origem, sua natureza, sua função são tão somente reativas.
Mas não deixa de haver uma relativa nobreza da consciência. A segunda espécie de
forças reativas nos mostra sob qual forma e sob quais condições a reação pode ser
agida: quando forças reativas tomam como objeto a excitação na consciência, então a
reação correspondente devém ela mesma algo agido.
Ainda é preciso que os dois sistemas ou as duas espécies de forças reativas
estejam separadas. Ainda é preciso que os rastros não invadam a consciência. É
preciso que uma força ativa, distinta e delegada, apóie a consciência e lhe reconstitua
a cada instante sua frescura, sua fluidez, seu elemento químico móvel e leve. Essa
faculdade ativa supra-consciente é a faculdade de esquecimento. O equívoco da
psicologia foi tratar o esquecimento como uma determinação negativa, não descobrir
o caráter ativo e positivo dele. Nietzsche define a faculdade de esquecimento: “Não
uma vis inertiæ [força de inércia], como acreditam os espíritos superficiais, mas
muito mais uma faculdade de frenagem, no verdadeiro sentido da palavra”, “um
aparelho de amortecimento”, “uma força plástica, regeneradora e curativa”.326 Então é
ao mesmo tempo que a reação devém algo agido, porque ela toma como objeto a
excitação na consciência, e que a reação aos rastros permanece no inconsciente
como algo insensível. “O que absorvemos apresenta-se tão pouco à nossa 326 GM, II, 1 e I, 10. – Tema já presente em Co. In., I, “Da utilidade e do inconveniente dos
estudos históricos”, 1.
consciência, durante o estado de digestão, quanto o processo múltiplo que se passa
em [130] nosso corpo, enquanto estamos assimilando nossa comida... Disto se
concluirá imediatamente que nenhuma felicidade, nenhuma serenidade, nenhuma
esperança, nenhuma altivez, nenhum gozo do instante presente poderiam existir sem
faculdade de esquecimento.” Mas se notará a situação bem particular dessa
faculdade: força ativa, ela é delegada pela atividade junto às forças reativas. Ela serve
de “guardiã” ou de “vigia”, impedindo que se confunda os dois sistemas do aparelho
reativo. Força ativa, sua atividade é tão somente funcional. Ela emana da atividade,
mas dela é abstraída. E, para renovar a consciência, ela deve constantemente tomar
energia emprestada da segunda espécie de forças reativas, fazer sua esta energia para
entregá-la à consciência.
Eis por que, mais que qualquer outra, ela está sujeita a variações, a distúrbios
também funcionais, a falhas. “O homem, em quem esse aparelho de amortecimento
está danificado e não pode mais funcionar, é semelhante a um dispéptico (e não
apenas semelhante): ele não consegue mais terminar com nada.” Suponhamos um
desfalecimento da faculdade de esquecimento: a cera da consciência está como que
endurecida, a excitação tende a confundir-se com seu rastro no inconsciente, e
inversamente, a reação aos rastros sobe à consciência e a invade. Então é ao mesmo
tempo que a reação aos rastros devém algo sensível e que a reação à excitação deixa
de ser agida. As conseqüências são imensas: não podendo mais agir uma reação, as
forças ativas são privadas de suas condições materiais de exercício, elas já não tem a
ocasião de exercerem sua atividade, estão separadas do que podem. Portanto, enfim
estamos vendo de que maneira as forças reativas prevalecem sobre as forças ativas:
quando o rastro toma o lugar da excitação no aparelho reativo, a própria reação toma
o lugar da ação, a reação prevalece sobre a ação. Ora, é de pasmar que, nessa maneira
de prevalecer, tudo se passe efetivamente entre forças reativas; as forças reativas só
triunfam ao formarem uma força maior que a das forças ativas. Até mesmo o
desfalecimento funcional da faculdade de esquecimento vem dela não mais achar,
numa espécie de forças reativas, a energia necessária para recalcar a outra espécie e
renovar a consciência. Tudo se passa entre forças reativas: umas impedem as outras
de serem agidas, umas destróem as outras. Estranho combate subterrâneo que se
desenrola inteiramente no interior do aparelho reativo, mas que não deixa de ter uma
conseqüência concernente à atividade inteira. Reencontramos a definição do
ressentimento: [131] o ressentimento é uma reação que, de uma só vez, devém
sensível e deixa de ser agida. Fórmula que define a doença em geral; Nietzsche não
se contenta em dizer que o ressentimento é uma doença, a doença como tal é uma
forma do ressentimento.327
3) TIPOLOGIA DO RESSENTIMENTO328
O primeiro aspecto do ressentimento é, portanto, topológico: há uma topologia
das forças reativas: é a mudança de lugar delas, seu deslocamento que constitui o
ressentimento. O que caracteriza o homem do ressentimento é a invasão da
consciência pelos rastros mnêmicos, a ascensão da memória na própria consciência.
E, sem dúvida, com isto nem tudo está dito sobre a memória: será preciso perguntar-
se como a consciência é capaz de construir uma memória à sua altura, uma memória
agida e quase ativa que não mais repousa sobre rastros. Em Nietzsche, assim como
em Freud, a teoria da memória será teoria de duas memórias.329 Mas enquanto
permanecermos na primeira memória, permaneceremos também nos limites do
princípio puro do ressentimento; o homem do ressentimento é um cachorro, uma
espécie de cachorro que só reage aos rastros (sabujo). Ele cerca tão somente rastros: a 327 EH, I, 6.328 Nota sobre Nietzsche e Freud: Do que precede, será preciso concluir que Nietzsche teve
uma influência sobre Freud? De acordo com Jones, Freud negava isso formalmente. A coincidência da hipótese tópica de Freud com o esquema nietzscheano se explica suficientemente pelas preocupações “energéticas” comuns aos dois autores. É de se ficar ainda mais sensível às diferenças fundamentais que separam suas obras. Pode-se imaginar aquilo que Nietzsche teria pensado de Freud: aí também, ele teria denunciado uma concepção “reativa” demais da vida psíquica, uma ignorância da verdadeira “atividade”, uma impotência para conceber e provocar a verdadeira “transmutação”. Pode-se imaginar com mais verossimilhança ainda que Freud teve, dentre seus discípulos, um autêntico nietzscheano. Otto Rank devia criticar, em Freud, “a ideia insossa e terna de sublimação”. Ele reprovava Freud por não ter sabido liberar a vontade da má consciência ou da culpabilidade. Ele queria se apoiar sobre forças ativas do inconsciente desconhecidas do freudismo, e substituir a sublimação por uma vontade criadora e artista. O que o levou a dizer: sou para Freud o que Nietzsche é para Schopenhauer. Cf. RANK, La volonté de bonheur.
329 Esta segunda memória da consciência funda-se sobre a fala e se manifesta como faculdade de prometer: Cf. GM, II, 1. – Em Freud, há uma memória consciente que depende de “rastros verbais”, os quais se distinguem dos rastros mnêmicos e “provavelmente correspondem a um registro particular” (cf. Linconscient e Le moi et le soi.)
excitação para ele confundindo-se localmente com o rastro, o homem do
ressentimento não pode mais agir sua reação. – Mas essa definição topológica deve
[132] nos introduzir a uma “tipologia” do ressentimento. É que quando as forças
reativas prevalecem sobre as forças ativas por esse viés, elas mesmas formam um
tipo. Estamos vendo qual é o principal sintoma desse tipo: uma prodigiosa memória.
Nietzsche insiste nessa incapacidade de esquecer alguma coisa, nessa faculdade de
nada esquecer, na natureza profundamente reativa dessa faculdade, que é preciso
considerar de todos os pontos de vista.330 Um tipo, com efeito, é uma realidade a uma
só vez biológica, psíquica, histórica, social e política.
Por que o ressentimento é espírito de vingança? Poder-se-ia acreditar que o
homem do ressentimento é explicado acidentalmente: tendo experimentado uma
excitação forte demais (uma dor), ele deveria renunciar a reagir, não sendo forte o
bastante para formar uma resposta. Ele então experimentaria um desejo de vingança
e, pela via da generalização, iria querer exercer essa vingança sobre o mundo inteiro.
Tal interpretação está errada; ele apenas leva em conta quantidades, quantidade de
excitação recebida, que se compara “objetivamente” à quantidade de força de um
sujeito receptivo. Ora, o que conta para Nietzsche não é a quantidade de força
abstratamente encarada, mas um entrelace determinado no próprio sujeito entre forças
de diferente natureza que o compõem: aquilo que se chama tipo. Seja qual for a força
da excitação recebida, seja qual for a força total do próprio sujeito, o homem do
ressentimento serve-se desta apenas para cercar o rastro daquela, tanto que ele é
incapaz de agir e até mesmo de reagir à excitação. Assim, nem é preciso que ele tenha
experimentado uma excitação excessiva. Isto pode se dar, mas não é necessário. Não
há mais necessidade de generalizar para conceber o mundo inteiro como objeto de
seu ressentimento. Em virtude do seu tipo, o homem do ressentimento não “reage”:
sua reação não termina, ela é sentida ao invés de ser agida. Ele se apega, portanto, ao
seu objeto, seja este qual for, como a um objeto do qual é preciso tirar vingança, ao
qual é necessário precisamente fazer pagar esse atraso infinito. A excitação pode ser
bela e boa, e o homem do ressentimento experimentá-la como tal: ela pode
330 GM, I, 10 e II, 1.
muitíssimo bem não exceder a força do homem do ressentimento, este pode muito
bem ter uma quantidade abstrata de força tão grande quanto qualquer outro. Ele não
deixará de sentir o objeto correspondente como uma ofensa de sua própria impotência
para cercar outra coisa que não o rastro, impotência qualitativa ou típica. O homem
do ressentimento [133] experimenta qualquer ser e qualquer objeto como uma ofensa
na medida exatamente proporcional em que ele sofre o efeito deles. A beleza, a
bondade lhe são necessariamente afrontas tão consideráveis quanto uma dor ou uma
infelicidade experimentadas. “De nada se consegue desvencilhar, nada se consegue
rejeitar. Tudo fere. Os homens e as coisas se aproximam indiscretamente de muito
perto; todos os acontecimentos deixam rastros; a lembrança é uma chaga
purulenta.”331 O homem do ressentimento é por si mesmo um ser doloroso: a
esclerose ou o endurecimento de sua consciência, a rapidez com a qual toda excitação
se petrifica e se congela nele, o peso dos rastros que o invadem são outros tantos
cruéis sofrimentos. E mais profundamente, a memória dos rastros é odiosa nela
mesma por ela mesma. Ela é peçonhenta e depreciativa, porque se apega ao objeto a
fim de compensar sua própria impotência para subtrair-se dos rastros da excitação
correspondente. Eis por que a vingança do ressentimento, mesmo quando ela se
realiza, não deixa de ser “espiritual”, imaginária e simbólica em seu princípio. Esse
elo essencial entre a vingança e a memória dos rastros não deixa de ter semelhança
com o complexo freudiano sádico-anal. O próprio Nietzsche apresenta a memória
como uma digestão que não termina, e o tipo do ressentimento como um tipo anal.332
Essa memória intestinal e peçonhenta, é ela que Nietzsche chama de aranha,
tarântula, espírito de vingança... – Vê-se onde Nietzsche quer chegar: fazer uma
psicologia que seja verdadeiramente uma tipologia, fundar a psicologia “sobre o
plano do sujeito”.333 Até as possibilidades de uma cura estarão subordinadas à
transformação dos tipos (reversão e transmutação).
331 EH, I, 6.332 EH, II, 1: “O espírito alemão é uma indigestão, ele não consegue terminar com nada... Todos
os preconceitos vêm dos intestinos. O cu de ferro, eu já disse, é o verdadeiro pecado contra o espírito santo.” – GM, I, 6: sobre a “debilidade intestinal” do homem do ressentimento.
333 Expressão familiar a Jung, quando ele denuncia o caráter “objetivista” da psicologia freudiana. Mas Jung, precisamente, admira Nietzsche por ter sido o primeiro a instalar a psicologia sobre o plano do sujeito, ou seja, por tê-la concebido como uma verdadeira tipologia.
4) CARÁTERES DO RESSENTIMENTO
Não devemos ser abusados pela expressão “espírito de vingança”. Espírito não
faz da vingança uma intenção, um fim não realizado, mas, ao contrário, dá à vingança
um meio. Não compreendemos o ressentimento quando [134] só vemos nele um
desejo de vingança, um desejo de se revoltar e de triunfar. O ressentimento, em seu
princípio topológico, acarreta um estado de forças real: o estado das forças reativas
que não mais se deixam agir, que se furtam à ação das forças ativas. Ele dá à
vingança um meio: meio de reverter o entrelace normal das forças ativas e reativas.
Eis por que o próprio ressentimento já é uma revolta, e já o triunfo dessa revolta. O
ressentimento é o triunfo do fraco enquanto fraco, a revolta dos escravos e sua vitória
enquanto escravos. É em sua vitória que os escravos formam um tipo. O tipo do
senhor (tipo ativo) será definido pela faculdade de esquecer, bem como pela potência
de agir as reações. O tipo do escravo (tipo reativo) será definido pela prodigiosa
memória, pela potência do ressentimento; vários caráteres decorrem disso, que
determinam este segundo tipo.
A impotência para admirar, respeitar, amar.334 – A memória dos rastros é
odiosa por si mesma. Mesmo nas lembranças mais ternas e mais amorosas, o ódio ou
a vingança se escondem. Vê-se os ruminantes da memória disfarçarem esse ódio por
uma operação sutil, que consiste em reprovar em si próprios tudo aquilo que, de fato,
eles reprovam no ser cuja lembrança fingem estimar. Por essa mesma razão, devemos
desconfiar daqueles que se acusam diante do que é bom ou belo, pretendendo não
compreender, não ser dignos: a modéstia deles dá medo. Que ódio do belo se esconde
em suas declarações de inferioridade. Odiar tudo que se sente amável ou admirável,
diminuir qualquer coisa por força de chacotas ou de interpretações baixas, ver em
qualquer coisa uma armadilha na qual não se deve cair: não banquem o finório
comigo. O mais espantoso no homem do ressentimento não é sua maldade, mas sua
repugnante malevolência, sua capacidade depreciativa. Nada resiste a isso. Ele não
334 BM, 260, e GM, I, 10.
respeita seus amigos, nem mesmo seus inimigos. Nem mesmo a infelicidade ou a
causa da infelicidade.335 Pensemos nos Troianos que admiravam e respeitavam em
Helena a causa de sua própria infelicidade. Mas é preciso que o homem do
ressentimento faça da própria infelicidade uma coisa medíocre, que ele recrimine e
distribua os equívocos: sua tendência a depreciar as causas, a fazer da infelicidade “a
culpa de alguém”. Ao contrário, o respeito aristocrático pelas causas da infelicidade é
a mesma coisa que a impossibilidade [135] de levar a sério suas próprias
infelicidades. A seriedade com a qual o escravo toma suas infelicidades dá
testemunho de uma digestão árdua, de um pensamento baixo, incapaz de um
sentimento de respeito.
A “passividade”. – No ressentimento “a felicidade aparece sobretudo sob
forma de estupefação, de adormecimento, de repouso, de paz, de sabá, de
relaxamento para o espírito e o corpo, em suma, sob forma passiva.”336 Passivo, em
Nietzsche, não quer dizer não-ativo; não-ativo é reativo; mas passivo quer dizer não-
agido. O que é passivo é somente a reação enquanto esta não é agida. Passivo designa
o triunfo da reação, o momento em que ela, deixando de ser agida, devém
precisamente um ressentimento. O homem do ressentimento não sabe e não quer
amar, mas ele quer ser amado. O que ele quer: ser amado, alimentado, saciado,
acarinhado, ninado. Ele, o impotente, o dispéptico, o frígido, o insone, o escravo.
Assim, o homem do ressentimento mostra uma grande suscetibilidade: face a todos os
exercícios que ele é incapaz de empreender, ele estima que a menor compensação que
lhe é devida é justamente recolher disto um benefício. Ele então considera como uma
prova de notória maldade que não lhe amem, que não lhe alimentem. O homem do
ressentimento é o homem do benefício e do lucro. Mais ainda, o ressentimento só
pôde impor-se no mundo ao fazer o benefício triunfar, ao fazer do lucro não apenas
um desejo e um pensamento, mas um sistema econômico, social, teológico, um
sistema completo, um divino mecanismo. Não reconhecer o lucro, eis o crime
teológico e o único crime contra o espírito. É neste sentido que os escravos têm uma
335 Jules Vallès, revolucionário “ativo”, insistia nessa necessidade de respeitar as causas da infelicidade (Tableau de Paris).
336 GM, I, 10.
moral, e que essa moral é a da utilidade.337 Perguntávamos: quem considera a ação do
ponto de vista de sua utilidade ou de sua nocividade? E também, quem considera a
ação do ponto de vista do bem e do mal, do louvável e do reprovável? Que se passe
em revista todas as qualidades que a moral chama de “louváveis” em si, “boas” em si,
por exemplo a inacreditável noção de desinteresse. Aperceber-se-á que elas escondem
as exigências e recriminações de um terceiro passivo: é ele quem reclama um
interesse das ações que ele não faz; ele bravateia precisamente o caráter
desinteressado das ações de que ele tira um benefício.338 A moral em si esconde o
ponto de vista utilitário; [136] mas o utilitarismo esconde o ponto de vista do terceiro
passivo, o ponto de vista triunfante de um escravo que se interpõe entre os senhores.
A imputação dos equívocos, a distribuição das responsabilidades, a perpétua
acusação. – Tudo isso toma o lugar da agressividade: “O pendor a ser agressivo faz
parte da força tão rigorosamente quanto o sentimento de vingança e de rancor
pertencem à fraqueza.”339 Considerando o benefício como um direito, considerando
como um direito lucrar das ações que ele não faz, o homem do ressentimento explode
em amargas reprimendas assim que sua espera é frustrada. E como ela não seria
frustrada, sendo a frustração e a vingança os a priori do ressentimento? É tua culpa se
ninguém me ama, é tua culpa se estraguei minha vida, tua culpa também se estragas a
tua; tuas infelicidades e as minhas são igualmente tua culpa. Reencontramos aqui a
temível potência feminina do ressentimento: ela não se contenta em denunciar os
crimes e os criminosos, ela quer culpados, responsáveis. Adivinhamos o que a
criatura do ressentimento quer: ela quer que os outros sejam maus, ela tem
necessidade que os outros sejam maus para poder sentir-se boa. Tu és mau, logo eu
sou bom: é esta a fórmula fundamental do escravo, ela traduz o essencial do
ressentimento do ponto de vista tipológico, ela resume e reúne todos os caráteres
anteriores. Que se compare essa fórmula com a do senhor: eu sou bom, logo tu és
337 BM, 260.338 GC, 21: “O próximo louva o desinteresse porque disso ele tira seu benefício. Se ele mesmo
raciocinasse de um jeito desinteressado, ele não iria querer esse sacrifício de força, esse prejuízo do qual ele lucra, ele se oporia ao nascimento desses pendores, sobretudo iria manifestar seu próprio desinteresse ao dizer que eles não são bons. Eis o que indica a contradição fundamental dessa moral que pregam hoje em dia: seus motivos estão em oposição com seu princípio.”
339 EH, I, 7.
mau. A diferença entre as duas mede a revolta do escravo e seu triunfo: “Essa
reversão do lance de olhos apreciador pertence propriamente ao ressentimento; para
nascer, a moral dos escravos tem necessidade, sempre e antes de tudo, de um mundo
oposto e exterior.”340 O escravo tem necessidade primeiramente de estabelecer que o
outro é mau.
5) ELE É BOM? ELE É MAU?
Eis aqui as duas fórmulas: Eu sou bom, logo tu és mau. Tu és mau, logo eu sou
bom. – Nós dispomos do método de dramatização. Quem pronuncia uma dessas
fórmulas, quem pronuncia a outra? E o que cada um quer? Não pode ser [137] o
mesmo que pronuncia as duas, pois o bom de uma é precisamente o mau da outra. “O
conceito de bom não é único”;341 as palavras bom, mau, e até mesmo logo, têm vários
sentidos. Aqui também, verificar-se-á que o método de dramatização, essencialmente
pluralista e imanente, dá sua regra à busca. Esta última não acha alhures a regra
científica que a constitui como uma semiologia e uma axiologia, permitindo-lhe
determinar o sentido e o valor de uma palavra. Perguntamos: quem é aquele que
começa dizendo: “Eu sou bom”? Certamente não é aquele que se compara aos outros,
nem que compara suas ações e suas obras a valores superiores ou transcendentes: ele
nem começaria... Aquele que diz “Eu sou bom” não espera ser dito bom. Ele assim se
chama, se nomeia e se diz assim, na própria medida em que ele age, afirma e goza.
Bom qualifica a atividade, a afirmação, o gozo que são experimentados em seu
exercício: uma certa qualidade de alma, “uma certa certeza fundamental que uma
alma possui no tocante a si mesma, algo que é impossível procurar, achar e talvez até
mesmo perder.”342 O que Nietzsche freqüentemente chama de distinção é o caráter
interno daquilo que se afirma (não é para procurá-lo), daquilo que se coloca em ação
(não dá para achá-lo), daquilo do qual se goza (não se pode perdê-lo). Aquele que
afirma e que age é ao mesmo tempo aquele que é: “A palavra esthlos [ἐσθλός]
340 GM, I, 10.341 GM, I, 11.342 BM, 287.
significa, de acordo com sua raiz, alguém que é, que tem realidade, que é real, que é
verdadeiro.”343 “Aquele ali tem consciência de que confere honra às coisas, de que ele
cria os valores. Tudo que ele acha em si, ele honra; tal moral consiste na glorificação
de si mesmo. Ele coloca no primeiro plano o sentimento da plenitude, da potência
que quer transbordar, o bem-estar de uma alta tensão interna, a consciência de uma
riqueza desejosa de dar e de se prodigalizar.”344 “São os bons eles mesmos, ou seja, os
homens de distinção, os potentes, aqueles que são superiores pela sua situação e sua
elevação de alma, que consideraram a si mesmos bons, que julgaram boas suas ações,
ou seja, de primeira ordem, estabelecendo essa taxação por oposição a tudo aquilo
que era baixo, mesquinho, vulgar.”345 Nenhuma comparação, entretanto, intervém no
princípio. Que outros sejam maus na medida em que não afirmam, não agem, [138]
não gozam, é apenas uma conseqüência secundária, uma conclusão negativa. Bom
designa primeiramente o senhor. Mau significa a conseqüência e designa o escravo.
Mau é negativo, passivo, ruim, infeliz. Nietzsche esboça o comentário do poema
admirável de Teógnis, inteiramente construído sobre a afirmação lírica fundamental:
nós os bons, eles os maus, os ruins. Buscar-se-ia em vão a menor nuança moral nessa
apreciação aristocrática; trata-se de uma ética e de uma tipologia, tipologia das
forças, ética das maneiras correspondentes de ser.
“Eu sou bom, logo tu és mau”: na boca dos senhores, a palavra logo introduz
apenas uma conclusão negativa. O que é negativo é a conclusão. E esta é colocada
apenas como a conseqüência de uma afirmação plena: “Nós, os aristocratas, os belos,
os felizes.”346 No senhor todo positivo está nas premissas. Ele precisa das premissas
da ação e da afirmação, e o gozo dessas premissas, para concluir algo negativo que
não é o essencial e não tem tanta importância. É tão somente um “acessório, uma
nuança complementar”.347 Sua só importância é aumentar o teor da ação e da
afirmação, soldar a aliança de ambas e redobrar o gozo que lhes corresponde: o bom
“só busca seu antípoda para afirmar a si mesmo com maior alegria”.348 É este o
343 GM, I, 5.344 BM, 260 (cf. a vontade de potência como “virtude que dá”).345 GM, I, 2.346 GM, I, 10.347 GM, I, 11.348 GM, I, 10.
estatuto da agressividade: ela é o negativo, mas o negativo como conclusão de
premissas positivas, o negativo como produto da atividade, o negativo como
conseqüência de uma potência de afirmar. O senhor se reconhece num silogismo,
onde é preciso duas proposições positivas para fazer uma negação, sendo a negação
final apenas um meio de reforçar as premissas. – “Tu és mau, logo eu sou bom.”
Tudo mudou: o negativo passa para as premissas, o positivo é concebido como uma
conclusão, conclusão de premissas negativas. É o negativo que contém o essencial, e
o positivo só existe pela negação. O negativo deveio “a ideia original, o começo, o
ato por excelência”.349 O escravo precisa das premissas da reação e da negação, do
ressentimento e do niilismo, para obter uma conclusão aparentemente positiva. E
ainda assim o que ela tem é só a aparência da positividade. Eis por que Nietzsche
atém-se tanto a distinguir o ressentimento e a agressividade: eles diferem por
natureza. [139] O homem do ressentimento tem necessidade de conceber um não-eu,
e então de opor-se a esse não-eu para enfim colocar-se como si. Estranho silogismo
do escravo: ele precisa de duas negações para fazer uma aparência de afirmação. Já
estamos sentindo sob qual forma o silogismo do escravo teve tanto sucesso em
filosofia: a dialética. A dialética como ideologia do ressentimento.
“Tu és mau, logo eu sou bom.” Nessa fórmula é o escravo que está falando.
Não se negará que aí também valores sejam criados. Mas que valores bizarros!
Começa-se colocando o outro como mau. Aquele que se dizia bom, eis que agora
dizem que ele é mau. Esse maldoso é aquele que age, que não se retém de agir, logo
que não considera a ação do ponto de vista das conseqüências que ela terá sobre
terceiros. E o bom, agora, é aquele que se retém de agir: ele é bom precisamente
nisso, que ele entrelaça toda ação ao ponto de vista daquele que não age, ao ponto de
vista daquele que experimenta as conseqüências, ou melhor ainda, ao ponto de vista
mais sutil de um terceiro divino que escrutina as intenções. “É bom seja lá quem não
faça violência a ninguém, seja lá quem não ofenda ninguém nem ataque, não use de
represálias e deixe a Deus o cuidado da vingança, seja lá quem fique escondido como
nós, evite o encontro do mal, e de resto, espere pouco das coisas da vida, como nós,
349 GM, I, 11.
os pacientes, os humildes e os justos.”350 Eis aí nascendo o bem e o mal: a
determinação ética, a do bom e do ruim, dá lugar ao juízo moral. O bom da ética
deveio o mau da moral, o ruim da ética deveio o bom da moral. O bem e o mal não
são o bom e o ruim, mas ao contrário a troca, a inversão, a reversão de sua
determinação. Nietzsche insistirá no seguinte ponto: “Além do bem e do mal” não
quer dizer: “Além do bom e do ruim”. Ao contrário...351 O bem e o mal são novos
valores, mas que estranheza na maneira de criar esses valores! Cria-se eles revertendo
o bom e o ruim. Cria-se eles não agindo, mas retendo-se de agir. Não afirmando, mas
começando por negar. Eis por que são ditos não criados, divinos, transcendentes,
superiores à vida. Mas matutemos sobre aquilo que esses valores escondem, ao seu
modo de criação. Eles escondem um ódio extraordinário, ódio contra a vida, ódio
contra tudo que é ativo e afirmativo na vida. Não há valores morais que
sobreviveriam por um só instante, se [140] fossem separados dessas premissas das
quais eles são a conclusão. E, mais profundamente, não há valores religiosos que
estejam separados desse ódio e dessa vingança dos quais eles tiram a conseqüência. A
positividade da religião é uma positividade aparente: conclui-se que os miseráveis, os
pobres, os fracos, os escravos são bons, já que os fortes são “maus” e “danados”.
Inventou-se o bom infeliz, o bom fraco: não há melhor vingança contra os fortes e os
felizes. Que seria do amor cristão sem a potência do ressentimento judaico que o
anima e o dirige? O amor cristão não é o contrário do ressentimento judaico, mas sua
conseqüência, sua conclusão, seu coroamento.352 A religião esconde mais ou menos (e
amiúde, nos períodos de crise, nem mesmo esconde) os princípios dos quais ela é
diretamente oriunda: o peso das premissas negativas, o espírito de vingança, a
potência do ressentimento.
6) O PARALOGISMO
Tu és mau; eu sou o contrário do que tu és; logo eu sou bom. – Em quê consiste
350 GM, I, 13.351 GM, I, 17.352 GM, I, 8.
o paralogismo? Suponhamos um cordeiro lógico. O silogismo do cordeiro balindo
formula-se assim: as aves de rapina são maldosas (ou seja, as aves de rapina são
todos os maldosos, os maldosos são aves de rapina); ora, eu sou o contrário de uma
ave de rapina; logo eu sou bom.353 É claro que, na menor, a ave de rapina é tomada
pelo que ela é: uma força que não se separa de seus efeitos ou de suas manifestações.
Porém, na maior, supõe-se que a ave de rapina não poderia manifestar sua força, que
ela poderia reter seus efeitos e separar-se do que ela pode: ela é má, já que não se
retém. Supõe-se, então, que é uma só e mesma força que se retém efetivamente no
cordeiro virtuoso, mas que se dá livre curso na ave de rapina má. Já que o forte
poderia impedir-se de agir, o fraco é alguém que poderia agir, se ele não se impedisse.
Eis em que repousa o paralogismo do ressentimento: a ficção de uma força
separada do que ela pode. É graças a essa ficção que as forças reativas triunfam. Não
lhes basta, com efeito, furtar-se à atividade; ainda é preciso que elas revertam [141] o
entrelace das forças, que elas se oponham às forças ativas e se representem como
superiores. O processo da acusação no ressentimento preenche essa tarefa: as forças
reativas “projetam” uma imagem abstrata e neutralizada da força; tal força separada
de seus efeitos será culpada de agir, e merecedora, ao contrário, caso não haja;
ademais, imaginar-se-á que é preciso mais força (abstrata) para reter-se do que para
agir. É ainda mais importante analisar em detalhe essa ficção, sendo que por ela as
forças reativas, como veremos, adquirem um poder contagioso, as forças ativas
devêm realmente reativas. 1º) Momento da causalidade: desdobra-se a força.
Conquanto a força não se separe da manifestação, da manifestação se faz um efeito
que é entrelaçado à força como a uma causa distinta e separada: “Tém-se o mesmo
fenômeno, primeiro como uma causa, em seguida como o efeito dessa causa. Os
físicos não fazem melhor quando dizem que a força aciona, que a força produz tal ou
qual efeito.”354 Toma-se por uma causa “um simples signo mnemotécnico, uma
fórmula resumida”: quando, por exemplo, se diz que o relâmpago alumia.355
Substitui-se o entrelace real de significação por um entrelace imaginário de 353 GM, I, 13: “Essas aves de rapina são maldosas; e aquele que menos possivelmente é uma
ave de rapina, até mesmo todo o contrário, um cordeiro – não seria ele bom?”354 GM, I, 13.355 VP, I, 100.
causalidade.356 Começa-se por recalcar a força nela mesma, depois se faz uma outra
coisa da manifestação, que acha na força uma causa eficiente distinta. 2º) Momento
da substância: projeta-se a força assim desdobrada num substrato, num sujeito que
estaria livre para manifestá-la ou não. Neutraliza-se a força, dela se faz o ato de um
sujeito que poderia muito bem não agir. Nietzsche não pára de denunciar no “sujeito”
uma ficção ou uma função gramaticais. Quer seja o átomo dos epicuristas, a
substância de Descartes, a coisa em si de Kant, todos esses sujeitos são a projeção de
“pequenos incubos imaginários”.357 3º) Momento da determinação recíproca:
moraliza-se a força assim neutralizada. É que quando se supõe que uma força pode
muitíssimo bem não manifestar a força que ela “tem”, já não é mais absurdo,
inversamente, supor que uma força poderia manifestar a força que ela “não tem”.
Assim que as forças são projetadas num sujeito fictício, esse sujeito se verifica
culpado ou merecedor, culpado de que a força ativa exerça a atividade que ela tem,
merecedor se a força reativa não exerce aquilo que ela... não tem: “Como se a [142]
fraqueza mesma do fraco, ou seja, sua essência, toda sua realidade única, inevitável e
indelével, fosse um cumprimento livre, algo voluntariamente escolhido, um ato de
mérito.”358 À distinção concreta entre as forças, à diferença original entre forças
qualificadas (o bom e o ruim), substitui-se a oposição moral entre forças
substancializadas (o bem e o mal).
7) DESENVOLVIMENTO DO RESSENTIMENTO:
O SACERDOTE JUDAICO
A análise nos fez passar de um primeiro a um segundo aspecto do
ressentimento. Quando Nietzsche falar de má consciência, ele distinguirá dois
aspectos dela: um primeiro onde a má consciência está “no estado bruto”, pura
matéria ou “questão de psicologia animal, nada mais”; um segundo sem o qual a má
consciência não seria o que ela é, momento que tira partido dessa matéria prévia e a
356 Cf. Cr. Id., “Os quatro grandes erros”: crítica detalhada da causalidade.357 GM, I, 13; sobre a crítica do cogito cartesiano, cf. VP, I, 98.358 GM, I, 13.
conduz a tomar forma.359 Essa distinção corresponde à topologia e à tipologia. Ora,
tudo indica que ela já está valendo para o ressentimento. O ressentimento, também
ele, tem dois aspectos ou dois momentos. O primeiro, topológico, questão de
psicologia animal, constitui o ressentimento como matéria bruta: ele exprime a
maneira pela qual as forças reativas se furtam à ação das forças ativas (deslocamento
das forças reativas, invasão da consciência pela memória dos rastros). O segundo,
tipológico, exprime a maneira pela qual toma forma o ressentimento: a memória dos
rastros devém um caráter típico, porque ela encarna o espírito de vingança e conduz
uma empreitada de acusação perpétua; então as forças reativas se opõem às forças
ativas e as separam do que podem (reversão do entrelace de forças, projeção de uma
imagem reativa). Observar-se-á que a revolta das forças reativas não seria ainda um
triunfo, ou que esse triunfo local não seria ainda um triunfo completo, sem este
segundo aspecto do ressentimento. Observar-se-á também que, em nenhum dos casos,
as forças reativas triunfam ao formarem uma força maior que a das forças ativas: no
primeiro caso, tudo se passa entre forças reativas (deslocamento); no [143] segundo,
as forças reativas separam as forças ativas do que estas podem, mas por uma ficção,
por uma mistificação (reversão por projeção). Daí então, nos restam dois problemas
a resolver, para compreender o conjunto do ressentimento: 1º) Como as forças
reativas produzem essa ficção? 2º) Sob qual influência a produzem? Ou seja: quem
faz as forças ativas passarem da primeira à segunda etapa? Quem elabora a matéria
do ressentimento? Quem mete forma no\formaliza o ressentimento, qual é o “artista”
do ressentimento?
As forças não são separáveis do elemento diferencial do qual deriva sua
qualidade. Mas as forças reativas dão deste elemento uma imagem revertida: vista do
lado da reação, a diferença das forças devém a oposição das forças reativas às forças
ativas. Bastaria, então, que as forças reativas tivessem a ocasião de desenvolver ou de
projetar essa imagem, para que o entrelace das forças e os valores que correspondem
a esse entrelace fossem, por sua vez, revertidos. Ora, elas encontram essa ocasião ao
mesmo tempo em que acham o meio para se furtarem da atividade. Deixando de ser
359 GM, III, 20.
agidas, as forças reativas projetam a imagem revertida. É esta projeção reativa que
Nietzsche chama de uma ficção: ficção de um mundo supra-sensível em oposição
com este mundo, ficção de um Deus em contradição com a vida. É ela que Nietzsche
distingue da potência ativa do sonho, e até mesmo da imagem positiva de deuses que
afirmam e glorificam a vida: “Enquanto o mundo dos sonhos reflete a realidade, só o
que faz o mundo das ficções é falsificá-la, depreciá-la e negá-la.”360 É ela que preside
à evolução toda do ressentimento, ou seja, às operações pelas quais, de uma só vez, a
força ativa é separada do que ela pode (falsificação), acusada e tratada como culpada
(depreciação), os valores correspondentes revertidos (negação). É nessa ficção, por
essa ficção, que as forças reativas se representam como superiores. “Para poder dizer
não, em resposta a tudo o que representa o movimento ascendente da vida, a tudo que
é bem nascido, potente, beleza, afirmação de si na terra, foi preciso que o instinto de
ressentimento, devindo gênio, inventasse um outro mundo, de onde essa afirmação da
vida nos aparecesse como o mal, a coisa reprovável em si.”361
Ainda era preciso que o ressentimento deviesse “gênio”. Ainda era preciso um
artista em ficção, capaz de aproveitar a ocasião [144] e dirigir a projeção, conduzir a
acusação, operar a reversão. Não acreditemos que a passagem de um momento a
outro do ressentimento, de pronto e ajustado que esteja, reduza-se a um simples
encadeamento mecânico. É preciso a intervenção de um artista genial. A questão
nietzscheana “Quem?” repercute mais premente que nunca. “A Genealogia da Moral
contém a primeira psicologia do sacerdote.”362 Aquele que mete forma no\formaliza
o ressentimento, aquele que conduz a acusação e prossegue sempre mais adiante a
empreitada de vingança, aquele que ousa a reversão dos valores, é o sacerdote. E,
mais particularmente, o sacerdote judeu, o sacerdote sob sua forma judaica.363 É ele,
senhor em dialética, que dá ao escravo a ideia do silogismo reativo. É ele que forja as
premissas negativas. É ele que concebe o amor, um novo amor que os cristãos pegam
para si, como a conclusão, o coroamento, a flor venenosa de um ódio inacreditável. É
360 AC, 15, e também 16 e 18.361 AC, 24.362 EH, III, “Genealogia da Moral”.363 Nietzsche resume sua interpretação da história do povo judeu em AC, 24, 25, 26: o
sacerdote judeu já é aquele que deforma a tradição dos reis de Israel e do Antigo Testamento.
ele quem começa dizendo: “Só os miseráveis são os bons; os pobres, os impotentes,
só os pequenos são os bons; aqueles que sofrem, os necessitados, os doentes, os
disformes são também os únicos piedosos, os únicos benditos de Deus; só a eles
pertencerá a beatitude. Em contrapartida, vós outros, vós que sois nobres e potentes,
vós sois de toda eternidade os ruins, os cruéis, os ávidos, os insaciáveis, os ímpios, e
eternamente permanecereis também como os reprovados, os malditos, os danados!”364
Sem ele, nunca o escravo teria sabido elevar-se acima do estado bruto do
ressentimento. Daí então, para apreciar corretamente a intervenção do sacerdote, é
preciso ver de que maneira ele é cúmplice das forças reativas, mas somente cúmplice
e que não se confunde com elas. Ele assegura o triunfo das forças reativas, tem
necessidade desse triunfo, mas persegue uma meta que não se confunde com a delas.
Sua vontade é vontade de potência, sua vontade de potência é o niilismo.365 Que o
niilismo, a potência de negar tenha necessidade das forças reativas, nisso
reencontramos aquela proposição [145] fundamental, mas também sua recíproca: é o
niilismo, a potência de negar, que conduz as forças reativas ao triunfo. Esse duplo
jogo dá ao sacerdote judeu uma profundidade, uma ambivalência desiguais: “Ele
toma partido livremente, por uma profunda inteligência de conservação, de todos os
instintos de decadência; não que seja dominado por eles, mas ele adivinhou neles
uma potência que podia fazê-lo ter sucesso contra o mundo.”366
Teremos que retornar àquelas páginas célebres, onde Nietzsche trata do
judaísmo e do sacerdote judeu. Elas amiúde suscitaram as mais duvidosas
interpretações. Sabe-se que os nazistas tiveram com a obra de Nietzsche ambíguos
entrelaces: ambíguos porque eles gostavam de se reivindicar dela, mas isto não
podiam fazer sem truncar citações, falsificar edições, interditar textos principais. Em
contrapartida, o próprio Nietzsche não tinha ambíguos entrelaces com o regime
364 GM, III, 7.365 AC, 18: “Declarar a guerra, em nome de Deus, à vida, à natureza, à vontade de viver. Deus,
a fórmula para todas as calúnias do aquém, para todas as mentiras do além? O nada divinizado em Deus, a vontade do nada santificado...” – AC, 26: “O sacerdote abusa do nome de Deus: ele chama de reino de Deus um estado de coisas onde é o sacerdote quem fixa os valores, ele chama de vontade de Deus os meios que ele emprega para atingir ou manter tal estado de coisas...”
366 AC, 24. – GM, I, 6, 7, 8: esse sacerdote não se confunde com o escravo, mas forma uma casta particular.
bismarckiano. Menos ainda com o pangermanismo e o antissemitismo. Ele os
desprezava, os odiava. “Não freqüentais ninguém que esteja implicado nessa
falcatrua mentirosa das raças.”367 E o grito do coração: “Mas enfim, o que você acha
que eu experimento quando o nome de Zaratustra sai da boca dos antissemitas!”368
Para compreender o sentido das reflexões nietzscheanas sobre o judaísmo, é preciso
lembrar-se que a “questão judaica” tinha devindo, na escola hegeliana, um tema
dialético por excelência. Aqui também, Nietzsche retoma a questão, mas conforme
seu próprio método. Ele pergunta: como o sacerdote foi constituído na história do
povo judeu? Em quais condições foi constituído, condições que se verificarão
decisivas para o conjunto da história europeia? Nada é mais impressionante do que a
admiração de Nietzsche pelos reis de Israel e o Antigo Testamento.369 O problema
judeu é o mesmo que o problema da constituição do sacerdote neste mundo de Israel:
é este o verdadeiro problema de natureza tipológica. Eis por que Nietzsche insiste
tanto no [146] seguinte ponto: sou o inventor da psicologia do sacerdote.370 É verdade
que não faltam considerações raciais em Nietzsche. Mas a raça nunca intervém senão
como elemento num cruzamento, como fator num complexo fisiológico, e também
psicológico, político, histórico e social. Tal complexo é precisamente o que Nietzsche
chama de um tipo. O tipo do sacerdote, não há outro problema para Nietzsche. E esse
mesmo povo judeu que, num momento de sua história, achou suas condições de
existência no sacerdote, é hoje o mais apto para salvar a Europa, para protegê-la dela
mesma, inventando novas condições.371 Não se lirá as páginas de Nietzsche sobre o
judaísmo sem evocar o que ele escrevia a Fritsch, autor antissemita e racista: “Te 367 Œuvres posthumes (trad. Bolle, Mercure).
[nt: Servimo-nos do texto alemão (ed. A. Kröner, a partir da qual Bolle fez sua tradução) para traduzir “falcatrua mentirosa das raças”. Na citação de Deleuze temos “fumisterie ehontée des races”; na tradução de Bolle, “fumisterie effrontée des races” (p. 309); e no original alemão “verlogeln Rassen-Schwindel” (Nietzsches Werke, v. XII, 1919, p. 356).]
368 Cartas a Fritsch, 23 e 29 de março de 1887. – Sobre todos esses pontos, sobre as falsificações de Nietzsche pelos nazistas, cf. o livro de M. P. Nicolas, De Nietzsche à Hitler (Fasquelle, 1936), onde estão reproduzidas as duas cartas a Fritsch. – Um belo caso de texto de Nietzsche, utilizado pelos antissemitas, enquanto seu sentido é exatamente o inverso, acha-se em BM, 251.
369 BM, 52: “O gosto pelo Antigo Testamento é uma pedra de toque da grandeza ou da mediocridade das almas... Ter ligado juntamente, sob uma mesma capa, o Antigo Testamento e o Novo, que sob todos os aspectos é o triunfo do gosto rococó, para fazer disto um só e mesmo livro, a Bíblia, o Livro por excelência, é talvez a maior imprudência e o pior pecado contra o espírito do qual a Europa literária se tornou culpada.”
370 EH, III, “Genealogia da Moral”.371 Cf. BM, 251 (texto célebre sobre os judeus, os russos e os alemães).
peço a gentileza de não me enviar mais tuas publicações: temo pela minha
paciência.”
8) MÁ CONSCIÊNCIA E INTERIORIDADE
Eis aqui o objeto do ressentimento sob seus dois aspectos: privar a força ativa
de suas condições materiais de exercício; separá-la formalmente do que ela pode.
Mas se é verdade que a força é ficticiamente separada do que ela pode, não deixa de
ser verdade que algo real lhe ocorre, como resultado dessa ficção. Deste ponto de
vista, nossa questão não terminou seu ricocheteio: o que a força ativa realmente
devém? A resposta de Nietzsche é extremamente precisa: seja qual for a razão pela
qual uma força ativa é falsificada, privada de suas condições de exercício e separada
do que ela pode, ela revira pra dentro, ela se revira contra si. Interiorizar-se, revirar-
se contra si, este é o jeito pelo qual a força ativa devém realmente reativa. “Todos os
instintos que não tem escoadouro, que alguma força repressiva impede de explodir
pra fora, reviram pra dentro: está nisso o que eu chamo de interiorização do homem...
Está nisso a origem da má consciência.”372 É neste sentido que a má consciência toma
as rédeas do ressentimento. Tal como ele nos apareceu, o ressentimento não se separa
de um horrível convite, de uma tentação bem como de uma vontade de espalhar um
contágio. Ele esconde seu ódio sob os auspícios de um amor tentador: [147] Eu que te
acuso, é para o teu bem; eu te amo para que te juntes a mim, até que te juntes a mim,
até que tu mesmo devenhas um ser doloroso, doente, reativo, um ser bom... “Quando
é que os homens do ressentimento chegarão ao sublime, definitivo, estrondoso triunfo
da sua vingança? Indubitavelmente quando conseguirem lançar na consciência dos
felizes sua própria miséria e todas as misérias: de sorte que estes começariam a corar
de sua própria felicidade e a dizer uns aos outros: há uma vergonha em ser feliz na
presença de tantas misérias.”373 No ressentimento, a força reativa acusa e se projeta.
Mas o ressentimento nada seria se ele não levasse o próprio acusado a reconhecer
seus equívocos, a “virar-se pra dentro”: a introjeção da força ativa não é o contrário 372 GM, II, 16.373 GM, III, 14.
da projeção, mas a conseqüência e a seqüência da projeção reativa. Não se verá na
má consciência um tipo novo: no mais, achamos no tipo reativo, no tipo do escravo,
variedades concretas onde o ressentimento está quase no estado puro; outras onde a
má consciência, atingindo seu pleno desenvolvimento, recobre o ressentimento. As
forças reativas não terminam de percorrer as etapas do seu triunfo: a má consciência
prolonga o ressentimento, leva-nos ainda mais longe num domínio onde o contágio
ganha. A força ativa devém reativa, o senhor devém escravo.
Separada do que ela pode, a força ativa não se evapora. Revirando-se contra si,
ela produz dor. Não mais gozar de si, mas produzir a dor: “Esse trabalho inquietante,
cheio de uma alegria espantosa, o trabalho de uma alma voluntariamente disjunta,
que se faz sofrer pelo prazer de sofrer”; “o sofrimento, a doença, a feiúra, o prejuízo
voluntário, a mutilação, as mortificações, o sacrifício de si são buscados de igual para
igual a um gozo.”374 A dor, em vez de ser regrada pelas forças reativas, é produzida
pela antiga força ativa. Disso resulta um curioso fenômeno, insondável: uma
multiplicação, uma auto-fecundação, uma hiper-produção de dor. A má consciência é
a consciência que multiplica sua dor, ela achou o meio de fabricá-la: revirar a força
ativa contra si, a fábrica imunda. Multiplicação da dor por interiorização da força,
por introjeção da força, está é a primeira definição da má consciência. [148]
9) O PROBLEMA DA DOR
Esta ao menos é a definição do primeiro aspecto da má consciência: aspecto
topológico, estado bruto ou material. A interioridade é uma noção complexa. O que é
primeiro interiorizado é a força ativa; mas a força interiorizada devém fabricadora de
dor; e a dor sendo produzida em maior abundância, a interioridade ganha “em
profundidade, em comprimento, em altura”, abismo cada vez mais voraz. Isso é dizer,
em segundo lugar, que a dor é por sua vez interiorizada, sensualizada, espiritualizada.
O que significam essas expressões? Inventa-se um novo sentido para a dor, um
sentido interno, um sentido íntimo: da dor se faz a conseqüência de um pecado, de
374 GM, II, 18 e III, 11.
uma culpa. Tu fabricastes tua dor porque pecastes, tu te salvarás fabricando tua dor. A
dor concebida como a conseqüência de uma culpa íntima e o mecanismo interior de
uma salvação, a dor transformada em sentimento de culpa, de temor, de castigo”:375
eis o segundo aspecto da má consciência, seu momento tipológico, a má consciência
como sentimento de culpabilidade.
Para compreender a natureza dessa invenção, é preciso estimar a importância
de um problema mais geral: qual é o sentido da dor? O sentido da existência depende
inteiramente deste; a existência tem sentido na medida em que a dor tem um na
existência.376 Ora, a dor é uma reação. Bem parece que seu único sentido reside na
possibilidade de agir essa reação, ou ao menos de localizá-la, de isolar seu rastro, a
fim de evitar qualquer propagação, até que se possa re-agir de novo. O sentido ativo
da dor aparece, portanto, como um sentido externo. Para julgar a dor de um ponto de
vista ativo, é preciso mantê-la no elemento de sua exterioridade. E é preciso toda uma
arte, que é a dos senhores. Os senhores têm um segredo. Eles sabem que a dor só tem
um sentido: dar prazer a alguém, dar prazer a alguém que a inflige ou que a
contempla. Se o homem ativo é capaz de não levar a sério sua própria dor, é porque
ele sempre imagina alguém a quem ela dá prazer. Na crença dos deuses ativos que
povoam o mundo grego, tal imaginação não está ali por nada: “Todo mal é justificado
no momento que um deus se compraz a olhá-lo... Que sentido tinham, [149] em
última análise, a guerra de Tróia e outros horrores trágicos? Não há dúvida alguma:
eram jogos para regozijar os olhares dos deuses.”377 Hoje se tem tendência a invocar a
dor como argumento contra a existência; essa argumentação dá testemunho de uma
maneira de pensar que nos é cara, uma maneira reativa. Colocamo-nos não somente
do ponto de vista daquele que sofre, mas ponto de vista do homem do ressentimento
que não mais age suas reações. Compreendemos que o sentido ativo da dor aparece
em outras perspectivas: a dor não é um argumento contra a vida, mas ao contrário um
excitante da vida, “uma isca para a vida”, um argumento em seu favor. Ver sofrer ou
até mesmo infligir o sofrimento é uma estrutura da vida como vida ativa, uma
375 GM, III, 20.376 Co. In., II, “Schopenhauer educador”, 5.377 GM, II, 7.
manifestação ativa da vida. A dor tem um sentido imediato em favor da vida: seu
sentido externo. “Repugna... à nossa delicadeza, ou antes à nossa tartufice, retraçar
com toda energia quista até que ponto a crueldade era o regozijo preferido da
humanidade primitiva, e entrava como ingrediente em quase todos os seus prazeres...
Sem crueldade nada de regozijo, eis o que nos ensina a mais antiga e mais longa
história do homem. E o castigo também tem feitios de festa.”378 Esta é a contribuição
de Nietzsche ao problema particularmente espiritualista: qual é o sentido da dor e do
sofrimento?
É preciso admirar ainda mais a impressionante invenção da má consciência:
um novo sentido para o sofrimento, um sentido interno. A questão não é mais agir sua
dor, nem julgá-la de um ponto de vista ativo. Ao contrário, mediante a paixão a gente
se espairece contra a dor. “Paixão das mais selvagens”: da dor se faz a conseqüência
de uma culpa e o meio de uma salvação; cura-se da dor fabricando ainda mais dor,
interiorizando-a ainda mais; a gente se espairece, ou seja, se cura da dor infectando a
ferida.379 Na Origem da Tragédia, Nietzsche já indicava uma tese essencial: a tragédia
morre ao mesmo tempo que o drama devém um conflito íntimo e que o sofrimento é
interiorizado. Mas quem inventa e quer o sentido interno da dor? [150]
10) DESENVOLVIMENTO DA MÁ CONSCIÊNCIA:
O SACERDOTE CRISTÃO
Interiorização da força, depois interiorização da própria dor: a passagem do
primeiro ao segundo momento da má consciência não é mais automática do que já era
o encadeamento dos dois aspectos do ressentimento. Aqui também, é preciso a
intervenção do sacerdote. Essa segunda encarnação do sacerdote é a encarnação
cristã: “É só nas mãos do sacerdote, esse verdadeiro artista para o sentimento de
culpa, que esse sentimento começou a tomar forma.”380 É o sacerdote-cristão que faz
a má consciência sair do seu estado bruto ou animal, é ele quem preside à
378 GM, II, 6.379 GM, III, 15.380 GM, III, 20.
interiorização da dor. É ele, sacerdote-médico, que cura a dor infectando a ferida. É
ele, sacerdote-artista, que leva a má consciência à sua forma superior: a dor,
conseqüência de um pecado. – Mas como ele procede? “Caso se quisesse resumir
numa fórmula curta o valor da existência do sacerdote, seria preciso dizer: o
sacerdote é o homem que muda a direção do ressentimento.”381 Recorda-se que o
homem do ressentimento, essencialmente doloroso, busca uma causa de seu
sofrimento. Ele acusa, ele acusa tudo que é ativo na vida. O sacerdote já surge aqui
sob uma primeira forma: ele preside à acusação, ele a organiza. Tu estás vendo esses
homens que se dizem bons: são uns maldosos. A potência do ressentimento, portanto,
é inteira dirigida sobre o outro, contra os outros. Mas o ressentimento é uma maneira
explosiva; ele faz com que as forças ativas devenham reativas. É preciso, então, que o
ressentimento se adapte a essas novas condições; é preciso que ele mude de direção.
É nele mesmo, agora, que o homem reativo deve achar a causa de seu sofrimento. A
má consciência lhe sugere buscar essa causa “nele mesmo, numa culpa cometida no
tempo passado, interpretá-la como um castigo.”382 E o sacerdote aparece uma segunda
vez para presidir a essa mudança de direção: “É verdade, minha ovelha, alguém deve
ser causa do que tu sofres; mas tu mesma és causa de tudo isso, tu mesma és causa de
ti mesma.”383 O sacerdote inventa a noção do pecado: “O pecado permaneceu, até o
[151] presente, o acontecimento capital na história da alma doente; ele representa
para nós a mais nefasta artimanha da interpretação religiosa.”384 A palavra culpa
remete agora à culpa que eu cometi, à minha própria culpa, à minha culpabilidade.
Eis aí como a dor é interiorizada; conseqüência de um pecado, ela não tem outro
sentido que não um sentido íntimo.
O entrelace do cristianismo e do judaísmo deve ser avaliado de dois pontos de
vista. Por um lado, o cristianismo é a culminação do judaísmo. Ele prossegue e
completa a empreitada deste. Toda a potência do ressentimento culmina no Deus dos
pobres, dos doentes e dos pecadores. Em páginas célebres, Nietzsche insiste no
381 GM, III, 15.382 GM, III, 20.383 GM, III, 15.384 GM, III, 20.
caráter odioso de são Paulo, na baixeza do Novo Testamento.385 Mesmo a morte de
Cristo é um desvio que conduz aos valores judaicos: por essa morte, instaura-se uma
pseudo-oposição entre o amor e o ódio, torna-se tal amor mais sedutor como se ele
fosse independente desse ódio, oposto a esse ódio, vítima desse ódio.386 Esconde-se a
verdade que Pôncio Pilatos soube descobrir: o cristianismo é a conseqüência do
judaísmo, ele acha neste todas as suas premissas, ele é tão somente a conclusão
dessas premissas. – Mas é verdade que o cristianismo, de um outro ponto de vista,
traz uma nota nova. Ele não se contenta em completar o ressentimento, mas muda a
direção deste. Ele impõe essa nova invenção, a má consciência. Ora, aqui tampouco
se acreditará que a nova direção do ressentimento na má consciência se oponha à
direção primeira. Aqui também, trata-se apenas de uma tentação, de uma sedução
suplementares. O ressentimento dizia “é tua culpa”, a má consciência diz “é minha
culpa”. Mas o ressentimento, precisamente, não se apazigua enquanto seu contágio
não estiver espalhado. Sua meta é que toda a vida devenha reativa, que os sadios
devenham doentes. Não lhe basta acusar, é preciso que o acusado se sinta culpado.
Ora, é na má consciência que o ressentimento mostra o exemplo e atinge o cume de
sua potência contagiosa: mudando de direção. É minha culpa, é minha culpa, até que
tudo o que é ativo na vida desenvolva esse mesmo sentimento de culpabilidade. E não
há outras condições para a potência do sacerdote: por natureza, o [152] sacerdote é
aquele que se torna senhor daqueles que sofrem.387
Reencontra-se nisso tudo a ambição de Nietzsche: lá onde os dialéticos vêem
antíteses ou oposições, mostrar que há diferenças mais finas a serem descobertas,
coordenações e correlações mais profundas a serem avaliadas: não a consciência
infeliz hegeliana, que é apenas um sintoma, mas a má consciência! A definição do
primeiro aspecto da má consciência era: multiplicação da dor por interiorização da
força. A definição do segundo aspecto é: interiorização da dor por mudança de
direção do ressentimento. Insistimos na maneira pela qual a má consciência toma as
rédeas do ressentimento. É preciso insistir também no paralelismo da má consciência
385 AC, 42-43, 46.386 GM, I, 8.387 GM, III, 15.
e do ressentimento. Não apenas cada uma dessas variedades tem dois momentos,
topológico e tipológico, mas a passagem de um momento a outro faz com que o
personagem do sacerdote intervenha. E o sacerdote age sempre por ficção.
Analisamos a ficção sobre a qual repousa a reversão dos valores no ressentimento.
Mas nos resta um problema a resolver: sobre qual ficção repousam a interiorização da
dor, a mudança de direção do ressentimento na má consciência? Esse problema é
ainda tão complexo que, segundo Nietzsche, ele coloca em jogo o conjunto do
fenômeno que se chama cultura.
11) A CULTURA ENCARADA
DO PONTO DE VISTA PRÉ-HISTÓRICO
Cultura significa adestramento e seleção. Nietzsche chama o movimento da
cultura de “moralidade dos costumes”;388 esta não é separável dos grilhões, das
torturas, dos meios atrozes que servem para adestrar o homem. Mas nesse
adestramento violento, o olho do genealogista distingue dois elementos:389 1º) Aquilo
a que se obedece, num povo, numa raça ou classe, é sempre histórico, arbitrário,
grotesco, estúpido e cerceado; isso freqüentemente representa as piores forças
reativas; 2º) Mas no fato de obedecer a alguma coisa, pouco importa o quê, aparece
um princípio que ultrapassa os povos, as raças e as classes. Obedecer à lei porque é a
lei: a forma da lei significa que uma [153] certa atividade, uma certa força ativa se
exerce sobre o homem e se dá por tarefa adestrá-lo. Mesmo que inseparáveis na
história, esses dois aspectos não devem ser confundidos: por um lado, trata-se de
assimilar a pressão histórica de um Estado, de uma Igreja etc., sobre os indivíduos;
por outro lado, a atividade do homem como ser genérico, a atividade da espécie
humana enquanto ela se exerce sobre o indivíduo como tal. Donde o emprego, por
Nietzsche, das palavras “primitivo”, “pré-histórico”: a moralidade dos costumes
precede à história universal;390 a cultura é a atividade genérica, “o verdadeiro trabalho
388 A, 9.389 BM, 188.390 A, 18.
do homem sobre si mesmo durante o mais longo período da espécie humana, todo seu
trabalho pré-histórico..., seja qual for aliás o grau de crueldade, de tirania, de
estupidez e de idiotice que lhe é próprio.”391 Toda lei histórica é arbitrária, mas o que
não é arbitrário, o que é pré-histórico e genérico, é a lei de obedecer a leis. (Bergson
reencontrará essa tese quando ele mostrar, em As Duas Fontes da Moral e da
Religião, que todo hábito é arbitrário, mas que é natural o hábito de pegar hábitos.)
Pré-histórico significa genérico. A cultura é a atividade pré-histórica do
homem. Mas em quê consiste essa atividade? Sempre se trata de dar hábitos ao
homens, de fazê-lo obedecer a leis, de adestrá-lo. Adestrar o homem significa formá-
lo de tal maneira que ele possa agir suas forças reativas. A atividade da cultura se
exerce, em princípio, sobre as forças reativas, dá hábitos a elas e lhes impõe modelos,
para torná-las aptas a serem agidas. Enquanto tal, a cultura se exerce em várias
direções. Ela enfrenta até as forças reativas do inconsciente, as mais subterrâneas
forças digestivas e intestinais (regime alimentar, e algo análogo ao que Freud
chamará de educação dos esfíncteres).392 Mas seu principal objeto é reforçar a
consciência. Essa consciência que se define pelo caráter fugidio das excitações, essa
consciência que se apóia sobre a faculdade de esquecimento, é preciso dar-lhe uma
consistência e uma firmeza que ela não tem por si mesma. A cultura dota a
consciência de uma nova faculdade, que aparentemente se opõe à faculdade de
esquecimento: a memória.393 Mas a memória da qual se trata aqui não é a memória
dos rastros. Essa [154] memória original não é mais função do passado, mas função
do futuro. Ela não é memória da sensibilidade, mas da vontade. Ela não é memória
dos rastros, mas das palavras.394 Ela é faculdade de prometer, engajamento do porvir,
lembrança do próprio futuro. Lembrar-se da promessa que se fez não é recordar-se
391 GM, II, 2.392 EH, II: “Por que sou tão maligno.”393 GM, II, 1: “Esse animal necessariamente esquecidiço, para quem o esquecimento é uma
força e a manifestação de uma saúde robusta, criou para si uma faculdade contrária, a memória, pela qual, em certos casos, ele deixará o esquecimento em cheque.”
394 GM, II, 1. – Sobre este ponto, a semelhança entre Freud e Nietzsche se confirma. Freud atribui rastros verbais ao “pré-consciente”, distintos dos rastros mnêmicos próprios ao sistema inconsciente. Essa distinção lhe permite responder à questão: “Como tornar (pré) conscientes elementos recalcados?” A resposta é: “Restabelecendo esses membros intermediários pré-conscientes que são as lembranças verbais.” A questão de Nietzsche se enunciaria assim: como é possível “agir” as forças reativas?
que ela foi feita em tal momento passado, mas que se deve mantê-la em tal momento
futuro. Eis precisamente o objeto seletivo da cultura: formar um homem capaz de
prometer, logo de dispor do porvir, um homem livre e potente. Só esse homem é
ativo; ele age suas reações, nele tudo é ativo ou agido. A faculdade de prometer é o
efeito da cultura como atividade do homem sobre o homem; o homem que pode
prometer é o produto da cultura como atividade genérica.
Compreendemos por que a cultura não recua, em princípio, diante de violência
alguma: “Talvez não haja nada mais terrível e mais inquietante, na pré-história do
homem, do que sua mnemotécnica... Isso jamais se dava sem suplícios, sem martírios
e sacrifícios sangrentos, quando o homem julgava necessário criar para si uma
memória.”395 Antes de chegar à meta (o homem livre, ativo e potente), quantos
suplícios são necessários para adestrar as forças reativas, para coagi-las a serem
agidas. A cultura sempre empregou o seguinte meio: ela fez da dor um meio de troca,
uma moeda, um equivalente; precisamente o exato equivalente de um esquecimento,
de um prejuízo causado, de uma promessa não mantida.396 A cultura entrelaçada a
esse meio chama-se justiça; esse próprio meio chama-se castigo. Prejuízo causado =
dor sofrida, eis aí a equação do castigo, que determina um entrelace do homem com o
homem. Esse entrelace entre homens é determinado, conforme a equação, como
entrelace de um credor e de um devedor: a justiça torna o homem responsável por
uma dívida. O entrelace credor-devedor exprime a atividade da cultura em seu
processo de adestramento ou de formação. Correspondendo à atividade pré-histórica,
esse mesmo entrelace é o entrelace do homem com o homem, “o mais primitivo entre
os indivíduos”, [155] anterior até mesmo “às origens de não importa qual organização
social”.397 Ademais, ele serve de modelo “às mais primitivas e mais grosseiras
compleições sociais”. É no crédito, e não na troca, que Nietzsche vê o arquétipo da
organização social. O homem que paga com sua dor o prejuízo que ele causa, o
homem tido como responsável por uma dívida, o homem tratado como responsável
por suas forças reativas: eis aí o meio operado pela cultura para atingir sua meta. – 395 GM, II, 3.396 GM, II, 4.397 GM, II, 8. – Na relação credor-devedor, “pela primeira vez a pessoa se oporá à pessoa,
medindo-se de pessoa a pessoa”.
Nietzsche, então, apresenta-nos a seguinte linhagem genética: 1) A cultura como
atividade pré-histórica ou genérica, empreitada de adestramento e de seleção; 2) O
meio operado por essa atividade, a equação do castigo, o entrelace da dívida, o
homem responsável; 3) O produto dessa atividade: o homem ativo, livre e potente, o
homem que pode prometer.
12) A CULTURA ENCARADA
DO PONTO DE VISTA PÓS-HISTÓRICO
Colocávamos um problema concernente à má consciência. A linha genética da
cultura não parece absolutamente nos aproximar de uma solução. Ao contrário: a
conclusão mais evidente é que nem a má consciência, nem o ressentimento intervêm
no processo da cultura e da justiça. “A má consciência, essa planta a mais estranha e
mais interessante de nossa flora terrestre, não tem sua raiz neste solo aqui.”398 Por um
lado, a justiça não tem absolutamente como origem a vingança, o ressentimento.
Ocorre a moralistas, até mesmo a socialistas, fazer com que a justiça derive de um
sentimento reativo: sentimento da ofensa ressentida, espírito de vingança, reação
justiceira. Mas tal derivação nada explica: restaria mostrar como a dor de outrem
pode ser uma satisfação da vingança, uma reparação pela vingança. Ora, jamais se
compreenderá a cruel equação prejuízo causado = dor sofrida, se não se introduzir um
terceiro termo, o prazer que se experimenta ao infligir uma dor ou ao contemplá-la.399
Porém, [156] esse terceiro termo, sentido externo da dor, tem ele próprio toda uma
outra origem que não a vingança ou a reação: ele remete a um ponto de vista ativo, a
forças ativas, que se dão como tarefa e como prazer adestrar as forças reativas. A
justiça é a atividade genérica que adestra as forças reativas do homem, que as torna
aptas a serem agidas e mantém o homem como responsável dessa própria aptidão. À
justiça se oporá a maneira pela qual o ressentimento, e então a má consciência, se
398 GM, II, 14.399 GM, II, 6: “Aquele que, pesadamente, introduzir aqui a ideia de vingança, só estará tornando
as trevas mais espessas ao invés de dissipá-las. A vingança conduz ao mesmo problema: como fazer sofrer pode ser uma reparação?” Eis o que falta à maioria das teorias: mostrar de qual ponto de vista “fazer sofrer” dá prazer.
formam: pelo triunfo das forças reativas, pela sua inaptidão a serem agidas, pelo seu
ódio de tudo aquilo que é ativo, pela sua resistência, pela sua fundeira injustiça.
Assim também o ressentimento, longe de estar na origem da justiça, “é o último
domínio conquistado pelo espírito de justiça... O homem ativo, agressivo, mesmo até
violentamente agressivo, ainda está cem vezes mais perto da justiça que o homem
reativo.”400
E a justiça não tendo o ressentimento como origem, tampouco o castigo tem
como produto a má consciência. Seja qual for a multiplicidade dos sentidos do
castigo, há sempre um sentido que o castigo não tem. O castigo não tem a
propriedade de despertar no culpado o sentimento da culpa. “O verdadeiro remorso é
excessivamente raro, em particular nos malfeitores e criminosos; as prisões, os
banhos não são terrenos propícios à eclosão desse verme roedor... Em tese geral, o
castigo arrefece e endurece; ele concentra; ele aguça os sentimentos de aversão; ele
aumenta a força de resistência. Se ocorre dele quebrar a energia e levar a uma
lastimosa prostração, uma humilhação voluntária, decerto um tal resultado é ainda
menos edificante que o efeito médio do castigo: é mais geralmente uma gravidade
seca e morna. Se agora nos reportarmos a esses milhares de anos que precedem à
história do homem, pretenderemos arrojadamente que é o castigo que retardou o mais
poderosamente o desenvolvimento do sentimento de culpabilidade, ao menos nas
vítimas das autoridades repressivas.”401 Ponto por ponto se oporá ao estado da cultura
onde o homem, ao preço de sua dor, sente-se responsável por suas forças reativas, o
estado da má consciência onde o homem, ao contrário, sente-se culpado por suas
forças ativas e as ressente como culpadas. De qualquer maneira que considerássemos
a cultura ou a justiça, por toda parte veríamos [157] o exercício de uma atividade
formadora, o contrário do ressentimento, da má consciência.
Essa impressão ainda é reforçada se considerarmos o produto da atividade
cultural: o homem ativo e livre, o homem que pode prometer. Assim como a cultura é
o elemento pré-histórico do homem, o produto da cultura é o elemento pós-histórico
400 GM, II, 11: “O direito na terra é precisamente o emblema da luta contra os sentimentos reativos, da guerra que as potências ativas e agressivas liberam a esses sentimentos.”
401 GM, II, 14.
do homem. “Aloquemo-nos na ponta do enorme processo, no terreno em que a árvore
enfim amudereceu seus frutos, onde a sociedade e sua moralidade dos costumes
apresentam, enfim, o porquê de estarem sendo apenas meios; e acharemos o fruto
mais maduro da árvore, que é o indivíduo soberano, o indivíduo que se assemelha
apenas a ele mesmo, o indivíduo alforriado da moralidade dos costumes, o indivíduo
autônomo e super-moral (pois autônomo e moral se excluem), em suma, o homem de
vontade própria, independente e persistente, o homem que pode prometer...”402 Aqui
Nietzsche nos ensina que é preciso não confundir o produto da cultura com seu meio.
A atividade genérica do homem constitui o homem como responsável por suas forças
reativas: responsabilidade-dívida. Mas essa responsabilidade é apenas um meio de
adestramento e de seleção: ela mede progressivamente a aptidão das forças reativas a
serem agidas. O produto finito da atividade genérica não é absolutamente o homem
responsável por si mesmo ou o homem moral, mas o homem autônomo e super-
moral, ou seja, aquele que age efetivamente suas forças reativas e em quem todas as
forças reativas são agidas. Somente ele “pode” prometer, precisamente porque já não
é responsável diante de tribunal algum. O produto da cultura não é o homem que
obedece à lei, mas o indivíduo soberano e legislador que se define pela potência sobre
si mesmo, sobre o destino, sobre a lei: o livre, o leve, o irresponsável. Em Nietzsche
a noção de responsabilidade, mesmo sob sua forma superior, tem o valor limitado de
um simples meio: o indivíduo autônomo não é mais responsável por suas forças
reativas diante da justiça, ele é o senhor delas, o soberano, o legislador, o autor e o
ator. É ele quem fala, ele não tem mais que responder. A responsabilidade-dívida não
tem outro sentido ativo que não desaparecer no movimento pelo qual o homem se
libera: o credor se libera porque ele participa do direito dos senhores, o devedor se
libera, mesmo ao preço de sua carne e de sua dor; ambos se liberam, se desprendem
do processo que os adestrou.403 Este é o movimento geral da cultura: que o [158] meio
desapareça no produto. A responsabilidade como responsabilidade diante da lei, a lei
como lei da justiça, a justiça como meio da cultura, tudo isso desaparece no produto
da cultura ela mesma. A moralidade dos costumes produz o homem alforriado da 402 GM, II, 2.403 GM, II, 5, 13 e 21.
moralidade dos costumes, o espírito das leis produz o homem alforriado da lei. Eis
por que Nietzsche fala de uma auto-destruição da justiça.404 A cultura é a atividade
genérica do homem; mas toda essa atividade sendo seletiva, ela produz o indivíduo
como sua meta final onde o próprio genérico é suprimido.
13) A CULTURA ENCARADA
DO PONTO DE VISTA HISTÓRICO
Fizemos como se a cultura fosse da pré-história à pós-história. Nós a
consideramos como uma atividade genérica que, por um longo trabalho de pré-
história, chegava ao indivíduo como ao seu produto pós-histórico. E, com efeito, está
aí mesmo sua essência, conforme à superioridade das forças ativas sobre as forças
reativas. Mas negligenciamos um ponto importante: o triunfo, de fato, das forças
inferiores e reativas. Negligenciamos a história. Da cultura devemos dizer, de uma
vez só, que ela desapareceu há muito tempo e que ela ainda não começou. A atividade
genérica se perde na noite do passado, como seu produto na noite do futuro. A cultura
na história recebe um sentido bem diferente de sua essência própria, sendo capturada
por forças estranhas de toda uma outra natureza. A atividade genérica na história não
se separa de um movimento que a desnaturaliza, e que desnaturaliza seu produto.
Mais ainda, a história é essa desnaturalização mesma, ela se confunde com a
“degenerescência da cultura”. – No lugar da atividade genérica, a história nos
apresenta raças, povos, classes, Igrejas e Estados. Sobre a atividade genérica
enxertam-se organizações sociais, associações, comunidades de caráter reativo,
parasitas que vêm recobri-la e absorvê-la. Em favor da atividade genérica, cujo
movimento elas falsificam, as forças reativas formam coletividades, o que Nietzsche
chama de “rebanhos”.405 – No lugar da justiça e do seu processo de autodestruição,
[159] a história nos apresenta sociedades que não querem perecer e que nada
imaginam de superior às suas leis. Qual o Estado que escutaria o conselho de
404 GM, II, 10: A justiça “acaba, como qualquer coisa excelente neste mundo, por destruir a si própria.”
405 GM, III, 18.
Zaratustra: “Então deixai-vos reverter”?406 A lei se confunde na história com o
conteúdo que a determina, conteúdo reativo que a lastreia e a impede de desaparecer,
salvo em proveito de outros conteúdos, mais estúpidos e pesados. – Em vez do
indivíduo soberano como produto da cultura, a história nos apresenta seu próprio
produto, o homem domesticado, no qual ela acha o famoso sentido da história: “o
sublime aborto”, “o animal gregário, ser dócil, doentio, medíocre, o europeu de hoje
em dia”.407 – A história nos apresenta toda violência da cultura como a propriedade
legítima dos povos, dos Estados e das Igrejas, como a manifestação da força deles. E,
de fato, todos os procedimentos de adestramento são empregados, porém revirados,
desviados, revertidos. Uma moral, uma Igreja, um Estado ainda são empreitadas de
seleção, teorias da hierarquia. Nas mais estúpidas leis, nas comunidades mais
cerceadas, trata-se ainda de adestrar o homem e de fazer suas forças reativas
servirem. Mas fazê-las servirem pra quê? Operar qual adestramento, qual seleção?
Servem-se dos procedimentos de adestramento, mas para fazer do homem o animal
gregário, a criatura dócil e domesticada. Servem-se dos procedimentos de seleção,
mas para quebrantar os fortes, para triar os fracos, os sofredores ou os escravos. A
seleção e a hierarquia são postas de avesso. A seleção devém o contrário do que ela
era do ponto de vista da atividade; já não passa de um meio de conservar, de
organizar, de propagar a vida reativa.408
A história, então, aparece como o ato pelo qual as forças reativas se apoderam
da cultura ou a desviam em proveito delas. O triunfo das forças reativas não é um
acidente na história, mas o princípio e o sentido da “história universal”. Essa ideia de
uma degenerescência histórica da cultura ocupa, na obra de Nietzsche, um lugar
predominante: ela servirá de argumento na luta de Nietzsche contra a filosofia da
história e contra a dialética. Ela inspira a decepção de Nietzsche: de “grega” a cultura
devém “alemã”... Desde as Considerações Extempestivas, Nietzsche tenta explicar
por que e como a cultura passa a serviço das forças reativas que a desnaturalizam.409
406 Z, II, “Dos grandes acontecimentos”.407 BM, 62. – GM, I, 11.408 GM, III, 13-20. – BM, 62.409 Co. In., II, “Schopenhauer educador”, 6. – Nietzsche explica a desviação da cultura ao
invocar “três egoísmos”: o egoísmo dos aquisidores, o egoísmo do Estado, o egoísmo da ciência.
Mais profundamente, Zaratustra desenvolve [160] um símbolo obscuro: o cão de
fogo.410 O cão de fogo é a imagem da atividade genérica, ele exprime o entrelace do
homem com a terra. Mas a terra, justamente, tem duas doenças, o homem e o próprio
cão de fogo. É que o homem é o homem domesticado; a atividade genérica é a
atividade deformada, desnaturalizada, que se coloca a serviço das forças reativas, que
se confunde com a Igreja, com o Estado. – “Igreja? é uma espécie de Estado e a
espécie mais mentirosa. Mas cala-te, cão hipócrita, tu conheces tua espécie melhor
que ninguém! o Estado é um cão hipócrita como tu mesmo és; como tu, ele gosta de
falar fumegando e uivando, para fazer acreditar, como tu, que sua fala sai das
entranhas das coisas. É que o Estado quer absolutamente ser a fera mais importante
na terra; e tem gente que acredita.” – Zaratustra chama por um outro cão de fogo:
“Este fala realmente do coração da terra.” Continua sendo a atividade genérica? Mas
desta vez a atividade genérica apreendida no elemento da pré-história, ao qual
corresponde o homem enquanto produto no elemento da pós-história? Mesmo que
insuficiente, essa interpretação deve ser encarada. Nas Considerações Extempestivas,
Nietzsche já punha sua confiança no “elemento não histórico e supra-histórico da
cultura” (o que ele chamava de sentido grego da cultura).411
Pra dizer a verdade, há um certo número de questões às quais ainda não
podemos responder. Qual o estatuto desse duplo elemento da cultura? Tem ele uma
realidade? É ele outra coisa que não uma “visão” de Zaratustra? A cultura não se
separa, na história, do movimento que a desnaturaliza e a coloca a serviço das forças
reativas; mas a cultura tampouco se separa da história ela mesma. A atividade da
cultura, a atividade genérica do homem: não é uma ideia simples? Se o homem é
essencialmente (ou seja, genericamente) um ser reativo, como ele poderia ter ou
mesmo ter tido, numa pré-história, uma atividade genérica? Como um homem ativo
poderia aparecer, mesmo numa pós-história? Se o homem é essencialmente reativo,
parece que a atividade deve concernir um ser diferente do homem. Se o homem, ao
contrário, tem uma atividade genérica, parece que ela só pode ser deformada de uma
maneira acidental. Por ora, podemos apenas [161] arrolar as teses de Nietzsche, 410 Z, II, “Dos grandes acontecimentos”.411 Co. In., I, “Da utilidade e do inconveniente dos estudos históricos”, 10 e 8.
deixando para mais tarde o cuidado de buscar sua significação: o homem é
essencialmente reativo; não deixa de haver uma atividade genérica do homem, porém
necessariamente deformada, malogrando necessariamente sua meta, culminando no
homem domesticado; essa atividade deve ser retomada num outro plano, plano sobre
o qual ela produz, mas produz outra coisa que não o homem...
Todavia, já é possível explicar por que a atividade genérica necessariamente
tomba na história e vira em proveito das forças reativas. Se o esquema das
Considerações Extempestivas é insuficiente, a obra de Nietzsche apresenta outras
direções nas quais uma solução pode ser achada. A atividade da cultura se propõe a
adestrar o homem, ou seja, tornar as forças reativas aptas a servirem, a serem agidas.
Porém, no decorrer do adestramento, essa aptidão para servir permanece
profundamente ambígua. É que ela ao mesmo tempo permite às forças reativas
colocarem-se a serviço de outras forças reativas, darem a estas uma aparência de
atividade, uma aparência de justiça, formarem com elas uma ficção que prevalece
sobre as forças ativas. Recorda-se que certas forças reativas, no ressentimento,
impediam outras forças reativas de serem agidas. A má consciência emprega para o
mesmo fim meios quase contrários: na má consciência, forças reativas servem-se de
sua aptidão a serem agidas para dar a outras forças reativas um ar de estarem
agindo. Há tanta ficção nesse procedimento quanto no procedimento do
ressentimento. É assim que se formam, em favor da atividade genérica, associações
de forças reativas. Estas se enxertam na atividade genérica e necessariamente a
desviam de seu sentido. As forças reativas, em favor do adestramento, acham uma
ocasião prodigiosa: a ocasião de se associarem, de formarem uma reação coletiva,
usurpando a atividade genérica.
14) MÁ CONSCIÊNCIA,
RESPONSABILIDADE, CULPABILIDADE
Quando as forças reativas se enxertam assim na atividade genérica, elas
interrompem a “linhagem” desta. Aqui também uma projeção intervém: é a dívida, é
a relação credor-devedor que é projetada, e que muda de natureza nessa projeção. Do
ponto de vista da atividade genérica, o homem era tido como responsável por suas
forças reativas; suas próprioas forças reativas eram consideradas como responsáveis
[162] diante de um tribunal ativo. Agora, as forças reativas aproveitam-se do seu
adestramento para formar uma associação complexa com outras forças reativas: elas
se sentem responsáveis diante dessas outras forças, essas outras forças se sentem
como juízas e senhoras das primeiras. A associação das forças reativas é
acompanhada, assim, por uma transformação da dívida; esta devém dívida com “a
divindade”, com “a sociedade”, com “o Estado”, com instâncias reativas. Tudo se
passa, então, entre forças reativas. A dívida perde o caráter ativo pelo qual ela
participava da liberação do homem: sob sua nova forma, ela é inesgotável,
impagável. “Será preciso que a perspectiva de uma liberação definitiva desapareça de
uma vez por todas na bruma pessimista, será preciso que o olhar desesperado se
desencoraje diante de uma impossibilidade de ferro, será preciso que essas noções de
dívida e de dever se revirem. Mas revirar-se contra quem, então? Não há dúvida
alguma: em primeiro lugar, contra o devedor... em último lugar, contra o credor.”412
Que se examine aquilo que o cristianismo chama de “remissão”. Não mais se trata de
uma liberação da dívida, mas de um aprofundamento da dívida. Não mais se trata de
uma dor pela qual se paga a dívida, mas de uma dor pela qual se acorrenta a ela, pela
qual se sente devedor para sempre. A dor nada mais paga senão os juros da dívida; a
dor é interiorizada, a responsabilidade-dívida deveio responsabilidade-
culpabilidade. Tanto que será preciso que o próprio credor tome a dívida por sua
conta, que ele tome sobre si o corpo da dívida. Lance de gênio do cristianismo, diz
Nietzsche: “O próprio Deus se oferecendo em sacrifício para pagar as dívidas do
homem, Deus pagando a si mesmo, Deus sozinho conseguindo liberar o homem
daquilo que, para o homem mesmo, deveio irremissível.”
Ver-se-á uma diferença de natureza entre as duas formas de responsabilidade, a
responsabilidade-dívida e a responsabilidade-culpabilidade. Uma tem como origem a
atividade da cultura; ela é tão somente o meio dessa atividade, ela desenvolve o
412 GM, II, 21.
sentido externo da dor, ela deve desaparecer no produto para dar lugar à bela
irresponsabilidade. Tudo na outra é reativo: ela tem como origem a acusação do
ressentimento, ela se enxerta na cultura e a desvia de seu sentido, ela mesma acarreta
uma mudança de direção do ressentimento que já não busca um culpado fora, ela se
eterniza ao mesmo tempo em que interioriza a dor. – Dizíamos: o sacerdote é aquele
que [163] interioriza a dor mudando a direção do ressentimento; com isso, ele dá uma
forma à má consciência. Perguntávamos: como pode o ressentimento mudar de
direção, mesmo resguardando suas propriedades de ódio e de vingança? A longa
análise anterior nos dá os elementos de uma resposta: 1º) Em favor da atividade
genérica e usurpando essa atividade, as forças reativas constituem associações
(rebanhos). Certas forças reativas têm o ar de estarem agindo, outras servem de
matéria: “Por toda parte onde há rebanhos, é o instinto de fraqueza que os quis, a
habilidade do sacerdote que os organizou”;413 2º) É nesse meio que a má consciência
toma forma. Abstraída da atividade genérica, a dívida se projeta na associação
reativa. A dívida devém a relação de um devedor que não terminará de pagar, e de um
credor que não terminará de esgotar os juros da dívida: “Dívida com a divindade”. A
dor do devedor é interiorizada, a responsabilidade da dívida devém um sentimento de
culpabilidade. É assim que o sacerdote consegue mudar a direção do ressentimento:
nós, seres reativos, não temos de buscar culpado fora, somos todos culpados diante
dele, diante da Igreja, diante de Deus;414 3º) Mas o sacerdote não apenas envenena o
rebanho, ele o organiza, o defende. Ele inventa os meios que nos fazem suportar a dor
multiplicada, interiorizada. Ele torna vivível a culpabilidade que ele injeta. Nos faz
participar de uma aparente atividade, de uma aparente justiça, o serviço de Deus; ele
nos interessa na associação, ele desperta em nós “o desejo de ver prosperar a
comunidade”.415 Nossa insolência de domésticos serve de antídoto à nossa má
consciência. Mas sobretudo o ressentimento, mudando de direção, nada perdeu das
fontes de satisfação, de sua virulência e nem de seu ódio contra os outros. É minha
culpa, eis o grito de amor pelo qual, novas sereias, atraímos os outros e os desviamos
413 GM, III, 18.414 GM, II, 20-22.415 GM, III, 18-19.
de seu caminho. Mudando a direção do ressentimento, os homens da má consciência
acharam o meio de melhor satisfazer a vingança, melhor espalhar o contágio: “Eles
mesmos estão prontos para fazer expiar, eles têm sede de desempenhar o papel de
algozes...”;416 4º) Notar-se-á, em tudo isso, que a forma da [164] má consciência
implica uma ficção, tanto quanto a forma do ressentimento. A má consciência repousa
sobre a desviação da atividade genérica, sobre a usurpação dessa atividade, sobre a
projeção da dívida.
15) O IDEAL ASCÉTICO E A ESSÊNCIA DA RELIGIÃO
Ocorre a Nietzsche fazer como se houvesse margem para distinguir dois e até
mesmo vários tipos de religiões. Neste sentido, a religião não estaria essencialmente
ligada nem ao ressentimento nem à má consciência. Dioniso é um Deus. “Eu não
poderia tão bem duvidar que haja numerosas variedades de deuses. Não faltam
aqueles que parecem inseparáveis de um certo alcionismo, de uma certa
despreocupação. Os pés leves talvez façam parte dos atributos da divindade.”417
Nietzsche não pára de dizer que há deuses ativos e afirmativos, religiões ativas e
afirmativas. Toda seleção implica uma religião. Segundo o método que lhe é caro,
Nietzsche reconhece uma pluralidade de sentidos à religião, de acordo com as
diversas forças que podem se apropriar dela: assim, há uma religião dos fortes, cujo
sentido é profundamente seletivo, educativo. Ademais, caso se considere Cristo como
tipo pessoal, distinguindo-o do cristianismo como tipo coletivo, é preciso reconhecer
até que ponto Cristo carecia de ressentimento, de má consciência; ele se define por
uma mensagem alegre, ele nos apresenta uma vida que não é a do cristianismo, assim
como o cristianismo é uma religião que não é a de Cristo.418
416 GM, III, 14: “Eles passam em nosso meio como reprovações vivas, como se quisessem servir de advertência – como se a saúde, a robustez, a altivez, o sentimento da potência fossem simplesmente vícios que seria preciso expiar, amargamente expiar; pois, no fundo, eles mesmos estão prontos para fazer expiar, eles têm sede de desempenhar um papel de algozes! Dentre eles, há um bocado de vingativos disfarçados de juízes, tendo sempre na boca, uma boca de lábios apertados, a baba envenenada que eles chamam de justiça e que sempre estão prontos para jogar em tudo que não tem o ar descontente, em tudo aquilo que, de coração leve, segue seu caminho.”
417 VP, IV, 580.418 A religião dos fortes e sua significação seletiva: BM, 61. – As religiões afirmativas e ativas,
que se opõem às religiões niilistas e reativas: VP, I, 332 e AC, 16. – Sentido afirmativo do
Mas essas observações tipológicas têm o risco de nos esconder o essencial.
Não que a tipologia não seja o essencial, mas [165] só há boa tipologia se ela der
conta do seguinte princípio: o grau superior ou a afinidade das forças. (“Em qualquer
coisa, só importam os graus superiores.”) A religião tem tantos sentidos quantas são
as forças capazes de se apropriar dela. Mas a própria religião é uma força em
afinidade mais ou menos grande com as forças que dela se apropriam ou das quais ela
mesma se apropria. Enquanto a religião for apanhada por forças de uma outra
natureza, ela não atingirá seu grau superior, o único que importa, onde ela deixaria de
ser um meio. Ao contrário, quando ela é conquistada por forças de mesma natureza,
ou então quando, crescendo, ela se apodera dessas forças e sacode o jugo daquelas
que a dominavam em sua infância, aí ela descobre sua própria essência com seu grau
superior. Ora, cada vez que Nietzsche nos fala de uma religião ativa, de uma religião
dos fortes, de uma religião sem ressentimento nem má consciência, trata-se de um
estado onde a religião acha-se precisamente subjugada por forças de toda uma outra
natureza que não a sua, e não pode se desmascarar: a religião como “procedimento de
seleção e de educação entre as mãos dos filósofos”.419 Mesmo com o Cristo, a religião
como crença ou como fé permanece inteiramente subjugada pela força de uma prática
que, sozinha, dá “o sentimento de ser divino”.420 Em contrapartida, quando a religião
consegue “agir soberamente por si mesma”, quando cabe às outras forças tomar
emprestado uma máscara para sobreviver, isto é pago sempre “com um preço pesado
e terrível”, ao mesmo tempo em que a religião acha sua própria essência. Eis por que,
segundo Nietzsche, a religião de uma parte, e de outra parte a má consciência, o
ressentimento, estão essencialmente ligados. Encarados em seu estado bruto, o
ressentimento e a má consciência representam as forças reativas, que se apoderam
dos elementos da religião para liberá-las do jugo em que as forças ativas lhes
paganismo como religião: VP, IV, 464. – Sentido ativo dos deuses gregos: GM, II, 23. – O budismo, religião niilista, mas sem espírito de vingança nem sentimento de culpa: AC, 20-23, VP, I, 342-343. – O tipo pessoal do Cristo, ausência de ressentimento, de má consciência e de ideia de pecado: AC, 31-35, 40-41. – A famosa fórmula pela qual Nietzsche resume sua filosofia da religião: “No fundo, só o Deus moral é refutado”, VP, III, 482; III, 8. – É sobre todos esses textos que se apoiam os comentários que querem fazer do ateísmo de Nietzsche um ateísmo temperado, ou que até mesmo querem reconciliar Nietzsche com Deus.
419 BM, 62.420 AC, 33.
mantinham. Em seu estado formal, o ressentimento e a má consciência representam
as forças reativas que a própria religião conquista e desenvolve ao exercer sua nova
soberania. Ressentimento e má consciência, são esses os graus superiores da religião
como tal. O inventor do cristianismo não é o Cristo, mas são Paulo, o homem da má
consciência, o homem do ressentimento. (A questão “Quem?” aplicada ao
cristianismo.421) [166]
Tipo Variedade do tipo
Mecanismo Princípio Produto Qualidade da
vontade de
potência
Tipo ativo: O Senhor (as forças ativas prevalecem sobre as forças reativas; as forças reativas são agidas).
O sonho e a embriaguez.
A consciência: Sistema do aparelho reativo, onde as forças reativas re-agem às excitações.
A cultura: Atividade genérica pela qual as forças reativas são
Os excitantes da vida, os estimulantes da vontade de potência.
Distinção do rastro e da excitação (recalque da memória dos rastros).
Mecanismo da violência; sentido externo da dor; instauração do entrelace credor-devedor;
Apolo e Dioniso.
Faculdade de esquecimento (como princípio regulador).
Faculdade de memoória: memória das palavras (como princípio teleológico).
O artista.
O nobre.
O indivíduo-soberano, o legislador.
AFIRMAÇÃO
421 AC, 42: “A mensagem alegre foi seguida de perto pela pior de todas: a de são Paulo. Em são Paulo encarna-se o tipo contrário da mensagem alegre, o gênio no ódio, na visão do ódio, na implacável lógica do ódio. Quantas coisas esse disangelista não sacrificou ao ódio! Antes de tudo o Salvador: ele o pregou à sua cruz. – Foi são Paulo quem “inventou” o sentido da culpa: ele “interpretou” a morte de Cristo como se Cristo morresse pelos nossos pecados (VP, I, 366 e 390). [nt: O termo disangelista, cunhado por Nietzsche, é um antagônico a evangelista (evangelho, em grego, é “boa nova”), construído com a partícula grega δυσ-, que tinge o termo com os sentidos de “mau uso”, “defeito”. Disangelista é aquele que traz uma mensagem defeituosa.]
adestradas e domadas.
responsabilidade-dívida.
Triunfo das forças reativas
Tipo reativo: O Escravo (as forças reativas prevalecem sobre as forças ativas; elas triunfam sem formar uma força maior).
Ressentimento.
Má consciência (Interiorização).
Ideal ascético.
Aspecto topológico: Deslocamento (deslocamento das forças reativas).
Aspecto tipológico: Reversão (reversão dos valores ou do entrelace das forças).
Aspecto topológico: Reviramento (interiorização da força).Aspecto tipológico: Mudança de direção (interiorização da dor por mudança de direção do ressentimento).
Meios de tornar suportáveis a má consciência e o ressentimento.
Expressão da vontade de nada.
Memória dos rastros: ascensão da memória dos rastros; confusão da excitação com o rastro.Primeira FICÇÃO: Projeção reativa da imagem revertida.
Força ativa separada do que ela pode.Segunda FICÇÃO: Projeção reativa da dívida; usurpação da cultura e formação de rebanhos.
Terceira FICÇÃO: Posicioamento de um além-mundo.
O homem que não termina com nada.
O acusador perpétuo.(≠ Nobre.)
O homem que multiplica sua dor.O homem culpado: sentido interno da dor, responsabilidade-culpabilidade.O homem domesticado.(≠ Legislador.)
O homem ascético.
(≠ Artista.)
NEGAÇÃO
[167]
A religião não é somente uma força. Nuncas as forças reativas triunfariam,
trazendo a religião até seu grau superior, se a religião não estivesse, de sua parte,
animada por uma vontade, vontade que leva as forças reativas ao triunfo. Além do
ressentimento e da má consciência, Nietzsche trata do ideal ascético, terceira etapa.
Mas também o ideal ascético estava presente desde o início. Segundo um primeiro
sentido, o ideal ascético designa o complexo do ressentimento e da má consciência:
ele cruza um com o outro, ele reforça um pelo outro. Em segundo lugar, ele exprime
o conjunto dos meios pelos quais a doença do ressentimento, o sofrimento da má
consciência devêm vivíveis, e mais ainda, organizam-se e propagam-se; o sacerdote
ascético é a uma só vez jardineiro, domesticador, pastor, médico. Enfim, e é seu mais
profundo sentido, o ideal ascético exprime a vontade que faz as forças reativas
triunfarem. “O ideal ascético exprime uma vontade.”422 Reencontramos a ideia de
uma cumplicidade fundamental (não uma identidade, mas uma cumplicidade) entre as
forças reativas e uma forma da vontade de potência.423 Nunca as forças reativas
prevaleceriam sem uma vontade que desenvolve as projeções, que organiza as ficções
necessárias. A ficção de um além-mundo no ideal ascético: eis o que acompanha os
andamentos do ressentimento e da má consciência, eis o que permite depreciar a vida
e tudo aquilo que é ativo na vida, eis o que dá ao mundo um valor de aparência ou de
nada. A ficção de um outro mundo já estava presente nas outras ficções como a
condição que as tornava possíveis. Inversamente, a vontade de nada precisa das
forças reativas: ela não apenas só suporta a vida sob forma reativa, mas ela precisa da
vida reativa como do meio pelo qual a vida deve se contradizer, se negar, se aniquilar.
O que seriam das forças reativas separadas da vontade de nada? Mas o que seria da
vontade de nada sem as forças reativas? Talvez ela deviesse totalmente uma outra
coisa que não essa que a vemos ser. O sentido do ideal ascético, portanto, é o
seguinte: exprimir a afinidade das forças reativas com o niilismo, exprimir o niilismo
como “motor” das forças reativas. [168]
422 GM, III, 23.423 Lembra-se que o sacerdote não se confunde com as forças reativas: ele as leva, as faz
triunfar, delas tira partido, lhes insufla uma vontade de potência (GM, III, 15 e 18).
16) TRIUNFO DAS FORÇAS REATIVAS
A tipologia nietzscheana coloca em jogo toda uma psicologia das
“profundezas” ou das “cavernas”. Especialmente os mecanismos, que correspondem
a cada momento do triunfo das forças reativas, formam uma teoria do inconsciente
que deveria ser confrontada com o conjunto do freudismo. Resguardar-se-á, no
entanto, de conceder aos conceitos nietzscheanos uma significação exclusivamente
psicológica. Não só um tipo é também uma realidade biológica, sociológica, histórica
e política; não só a metafísica e a teoria do conhecimento dependem, elas mesmas, da
tipologia. Mas Nietzsche, através dessa tipologia, desenvolve uma filosofia que deve,
segundo ele, substituir a velha metafísica e a crítica transcendental, e dar às ciências
do homem um novo fundamento: a filosofia genealógica, isto é, a filosofia da vontade
de potência. A vontade de potêcia não deve ser interpretada psicologicamente, como
se a vontade quisesse a potência em virtude de um móvel; e tampouco a genealogia
deve ser interpretada como uma simples gênese psicológica. (Cf. quadro
recapitulativo, p. 166).
[169]
CAPÍTULO V
O SUPERHOMEM:
CONTRA A DIALÉTICA
1) O NIILISMO
Na palavra niilismo, nihil não significa o não-ser, mas primeiramente um valor
de nada. A vida ganha um valor de nada na medida em que é negada, depreciada. A
depreciação sempre supõe uma ficção: é por ficção que se falsifica e que se deprecia,
é por ficção que se opõe alguma coisa à vida.424 A vida, portanto, devém inteiramente
irreal, ela é representada como aparência, ela ganha em seu conjunto um valor de
nada. A ideia de um outro mundo, de um mundo supra-sensível com todas as suas
formas (Deus, a essência, o bem, o verdadeiro), a ideia de valores superiores à vida
não é um exemplo dentre outros, mas o elemento constitutivo de toda ficção. Os
valores superiores à vida não se separam de seu efeito: a depreciação da vida, a
negação desse mundo. E se elas não se separam desse efeito, é porque têm por
princípio uma vontade de negar, de depreciar. Resguardemo-nos de acreditar que os
valores superiores formam um limiar onde a vontade se interrompe, como se, em face
do divino, estivéssemos libertos da coação de querer. Não é a vontade que se nega
nos valores superiores, são os valores superiores que se entrelaçam a uma vontade de
negar, de aniquilar a vida. “Nada de vontade”: esse conceito de Schopenhauer é
apenas um sintoma; ele significa primeiramente uma vontade de aniquilamento, uma
vontade de nada... “Mas pelo menos é, e permanece sempre sendo, uma vontade.”425
Nihil em niilismo significa [170] a negação como qualidade da vontade de potência.
Em seu primeiro sentido e em seu fundamento, niilismo então significa: valor de nada
424
AC, 15 (a oposição do sonho e da ficção).425 GM, III, 28.
tomado pela vida, ficção dos valores superiores que lhe dão esse valor de nada,
vontade de nada que se exprime nesses valores superiores.
O niilismo tem um segundo sentido, mais corrente. Ele não significa mais uma
vontade, mas uma reação. Reage-se contra o mundo suprasensível e contra os valores
superiores, nega-se a existência deles, denega-se qualquer validez a eles. Não mais
desvalorização da vida em nome de valores superiores, mas desvalorização dos
próprios valores superiores. Desvalorização não mais significa valor de nada pego
pela vida, mas nada dos valores, dos valores superiores. A grande nova se propaga:
não há o que ser visto detrás da cortina, “os signos distintivos que atribuíram à
verdadeira essência das coisas são os signos característicos do não-ser, do nada”.426
Assim o niilista nega Deus, o bem e até o verdadeiro, todas as formas do
suprassensível. Nada é verdadeiro, nada é bem, Deus está morto. Nada de vontade
não é mais apenas um sintoma para uma vontade de nada, mas, no limite, uma
negação de qualquer vontade, um tædium vitæ [tédio da vida]. Não há mais vontade
do homem nem da terra. “Neve por toda parte, aqui a vida está muda; os últimos
corvos cuja voz se ouve estão grasnando: Bom pra quê? Em vão! Nonada! Nada mais
brota nem cresce aqui.”427 – Este segundo sentido continuaria familiar, mas não
deixaria de ser menos incompreensível caso não se visse como ele decorre do
primeiro e supõe o primeiro. Agora há pouco, depreciava-se a vida do alto dos
valores superiores, negava-se-lhe em nome desses valores. Aqui, ao contrário, fica-se
só com a vida, mas essa vida ainda é a vida depreciada, que prossegue agora num
mundo sem valores, desnudado de sentido e de meta, rolando sempre mais longe até
seu próprio nada. Agora há pouco, opunha-se a essência à aparência, fazia-se da vida
uma aparência: tudo é tão somente aparência, essa vida que nos fica acabou ficando,
para si mesma, uma aparência. O primeiro sentido do niilismo achava seu princípio
na vontade de negar como vontade de potência. O segundo sentido, “pessimista da
fraqueza”, acha seu princípio na vida reativa totalmente só e totalmente nua, nas
forças reativas reduzidas a si mesmas. O primeiro sentido é um niilismo negativo; o
segundo sentido, um niilismo reativo. [171]426 Cr. Id., “A razão na filosofia”, 6.427 GM, III, 26.
2) ANÁLISE DA PIEDADE
A cumplicidade fundamental entre a vontade de nada e as forças reativas
consiste no seguinte: é a vontade de nada que faz as forças reativas triunfarem.
Quando, sob a vontade de nada, a vida universal devém irreal, a vida como vida
particular devém reativa. É ao mesmo tempo que a vida devém irreal em seu conjunto
e reativa em particular. Em sua empreitada de negar a vida, por um lado a vontade de
nada tolera a vida reativa e, por outro, precisa dela. Ela a tolera como estado da vida
vizinho ao zero, e precisa dela como do meio pelo qual a vida é conduzida a se negar,
a se contradizer. É assim que, em sua vitória, as forças reativas têm uma testemunha,
ou pior, um condutor. Ora, ocorre que as forças reativas, triunfantes, suportam cada
vez menos esse condutor e essa testemunha. Elas querem triunfar sozinhas, não
querem mais ficar devendo seu triunfo a ninguém. Talvez se apavorem com a meta
obscura que a vontade de potência alcança por conta própria através da vitória delas,
e talvez receiem que essa vontade de potência se revire contra elas e, por sua vez, as
destrua. A vida reativa quebra sua aliança com a vontade negativa, ela quer reinar
sozinha. Eis que as forças reativas projetam sua imagem, mas desta vez para tomar o
lugar da vontade que as conduzia. Até onde irão nesta via? Antes “vontade” nenhuma
do que essa vontade demasiado potente, ainda viva demais. Antes os nossos rebanhos
estagnantes do que o pastor que nos conduz ainda mais longe. Antes as nossas forças
sozinhas do que uma vontade da qual já não precisamos. Até onde irão as forças
reativas? Antes apagar-se passivamente! O “niilismo reativo” prolonga, de certa
maneira, o “niilismo negativo”: triunfantes, as forças reativas tomam o lugar daquela
potência de negar que as conduzia ao triunfo. Mas o “niilismo passivo” é a
culminação extrema do niilismo reativo: apagar-se passivamente antes do que ser
conduzido de fora.
Essa história também se conta de outra maneira. Deus está morto, mas morreu
de quê? Morreu de piedade, diz Nietzsche. Ora essa morte é apresentada como
acidental: velho e cansado, lasso de querer, Deus “acaba sufocando um dia com sua
piedade grande demais”.428 Ora essa morte é o efeito de um [172] ato criminoso: “Sua
piedade desconhecia pudor; ele se insinuava nas minhas redobras mais imundas.
Precisava era morrer esse curioso entre todos os curiosos, esse indiscreto, esse
misericordioso. Ele ficou me vendo, eu, sem parar; e eu quis me vingar de uma
testemunha dessa, ou parar eu mesmo de viver. O Deus que via tudo, até mesmo o
homem: esse Deus devia morrer! O homem não suporta que viva uma testemunha
dessa.”429 – O que é a piedade? Ela é essa tolerância pelos estados da vida vizinhos ao
zero. A piedade é amor da vida, mas da vida fraca, doente, reativa. Militante, ela
anunca a vitória final dos pobres, dos sofredores, dos impotentes, dos pequenos.
Divina, ela lhes dá essa vitória. Quem experimenta a piedade? Precisamente aquele
que só tolera a vida reativa, aquele que precisa dessa vida e desse triunfo, aquele que
instala seus templos no solo pantanoso de uma tal vida. Aquele que odeia tudo que é
ativo na vida, aquele que se serve da vida para negar e depreciar a vida, para opô-la a
ela própria. A piedade, no simbolismo de Nietzsche, sempre designa esse complexo
da vontade de nada e das forças reativas, essa afinidade de uma com as outras, essa
tolerância de uma pelas outras. “A piedade é a prática do niilismo... A piedade
persuade ao nada! Não dizem o nada, colocam no lugar o além, ou então Deus, ou a
vida verdadeira; ou então nirvana, a salvação, a beatitude. Essa inocência retórica,
que entra no domínio da idiossincrasia religiosa e moral, parecerá muito mais
inocente assim que se compreender qual é a tendência que se veste aqui dum manto
de palavras sublimes: a inimizade da vida.”430 Piedade pela vida reativa em nome dos
valores superiores, piedade de Deus pelo homem reativo: adivinha-se a vontade que
se esconde nessa maneira de amar a vida, nesse Deus de misericórdia, nesses valores
superiores.
Deus se sufoca de piedade: tudo se passa como se a vida reativa lhe entrasse
pela goela. O homem reativo lança Deus à morte porque não suporta mais sua
piedade. O homem reativo não suporta mais testemunhas, ele quer viver sozinho com
seu triunfo, e só com suas forças. Ele se coloca no lugar de Deus: ele não conhece
428 Z, IV, “Fora de serviço: versão do “último papa”.429 Z, IV, “O mais hediondo dos homens”: versão do “assassino de Deus”.430 AC, 7.
mais valores superiores à vida, mas somente uma vida reativa que se contenta de si,
que pretende secretar seus próprios valores. As armas que Deus lhe deu, o
ressentimento, até mesmo a má consciência, todas as figuras do seu triunf, ele as
[173] vira contra Deus, ele as opõe a Deus. O ressentimento devém ateu, mas esse
ateísmo ainda é ressentimento, sempre ressentimento, sempre má consciência.431 O
assassino de Deus é o homem reativo, “o mais hediondo dos homens”, “gorgolejando
de fel e cheio de vergonha escondida”.432 Ele reage contra a piedade de Deus: “Há
também um bom gosto no domínio da piedade; esse bom gosto acabou dizendo:
Derrubemos esse Deus. Antes Deus nenhum, antes decidir com a própria cabeça o
destino, antes ser louco, antes ser si mesmo Deus.”433 – Até onde ele irá nesta via? Até
o grande desgosto. Antes valores nenhuns do que esses valores superiores, antes
vontade nenhuma, antes um nada de vontade do que uma vontade de nada. Antes
apagar-se passivamente. É o adivinha, “adivinha da grande lassidão”, que anuncia as
conseqüências da morte de Deus: a vida reativa sozinha consigo, nem tendo mais a
vontade de desaparecer, sonhando com uma extinção passiva. “Tudo é vazio, tudo é
igual, tudo está resolvido!... Todas as fontes foram estancadas para nós e o mar se
retirou. Todo solo se furta, mas o abismo não nos quer engolir. Ai! onde ainda há um
mar onde se possa afogar-se...? Na verdade, já estamos cansados demais para
morrer.”434 O último dos homens, eis o descendente do assassino de Deus: antes
vontade nenhuma, antes um único rebanho. “Já não se devém nem pobre nem rico: é
penoso demais. Quem ainda gostaria de governar? Quem ainda gostaria de obedecer?
É penoso demais. Nada de pastor e um único rebanho! Cada qual quer a mesma
coisa, todos são iguais...”435
Assim contada, a história nos conduz ainda à mesma conclusão: o niilismo
negativo é substituído pelo niilismo reativo, o niilismo reativo culmina no niilismo
passivo. De Deus ao assassino de Deus, do assassino de Deus ao último dos homens.
431 Sobre o ateísmo do ressentimento: VP, III, 458; cf. EH, II, 1: como Nietzsche opõe ao ateísmo do ressentimento sua própria agressividade contra a religião.
432 Z, IV, “O mais hediondo dos homens”.433 Z, IV, “Fora de serviço”.434 Z, II, “O adivinha”. – GC, 125: “Não estamos indo errantes como que por um infinito nada?
Não sentimos o sopro do vazio em nossa face? Não está fazendo mais frio? Não estão sempre vindo noites, sempre mais noites?”
435 Z, Prólogo, 5.
Mas essa culminação é o saber do adivinha. Antes de chegar nisso, quantos avatares,
quantas variações sobre o tema niilista. Faz tempo que a vida reativa se esforça em
secretar seus próprios valores, o homem reativo toma o lugar de Deus: a adaptação, a
evolução, o progresso, a felicidade para todos, o bem da [174] comunidade; o
Homem-Deus, o homem moral, o homem verídico, o homem social. São estes os
novos valores que nos propõem no lugar dos valores superiores, são estes os novos
personagens que nos propõem no lugar de Deus. Os últimos dos homens ainda dizem:
“Nós inventamos a felicidade.”436 Por que teria o homem matado Deus, senão para
tomar o lugar dele ainda fresco? Heidegger observa, comentando Nietzsche: “Se
Deus abandonou seu lugar no mundo suprassensível, esse lugar, embora vazio,
permanece. A região vacante do mundo suprassensível e do mundo ideal pode ser
mantida. O lugar vazio até clama, de certa sorte, para ser ocupado de novo, e
substituir o Deus desaparecido por outra coisa.”437 Mais ainda: é sempre a mesma
vida, essa vida que se beneficiava, em primeiro lugar, da depreciação do conjunto da
vida, essa vida que se aproveitava da vontade de nada para obter sua vitória, essa vida
que triunfava nos templos de Deus, à sombra dos valores superiores; depois, em
segundo lugar, essa vida que se coloca no lugar de Deus, que se revira contra o
princípio de seu próprio triunfo e já não reconhece outros valores senão os seus;
enfim, essa vida extenuada que preferirá não querer apagar-se passivamente antes do
que ser animada por uma vontade que a ultrapasse. É ainda e sempre a mesma viva:
vida depreciada, reduzida à sua forma reativa. Os valores podem mudar, se renovar
ou até desaparecer. O que não muda e não desaparece é a perspectiva niilista que
preside essa história, do início ao fim, e da qual derivam todos esses valores bem
como a ausência deles. Eis por que Nietzsche pode pensar que o niilismo não é um
acontecimento na história, mas o motor da história do homem como história
universal. Niilismo negativo, reativo e passivo: para Nietzsche é uma só e mesma
história escalonada pelo judaísmo, pelo cristianismo, pela reforma, pelo livre
pensamento, pela ideologia democrática e socialista, etc. Até o último dos homens.438
436 Z, Prólogo, 5.437 Heidegger, Holzwege (“Le mot de Nietzsche: Dieu est mort”, tr. fr., Arguments, nº 15).438 Nietzsche não se atém a uma história europeia. O budismo lhe parece uma religião passiva;
o budismo até mesmo dá ao niilismo passivo uma nobreza. Outrossim, Nietzsche pensa que
[175]
3) DEUS ESTÁ MORTO
As proposições especulativas colocam em jogo a ideia de Deus do ponto de
vista de sua forma. Deus não existe, ou existe, porquanto sua ideia implique ou não
implique contradição. Mas a fórmula “Deus está morto” é de toda uma outra
natureza: ela faz a existência de Deus depender de uma síntese, ela opera a síntese da
ideia de Deus com o tempo, com o devir, com a história, com o homem. Ela diz de
uma só vez: Deus existiu e está morto e ressuscitará, Deus deveio Homem e o
Homem deveio Deus. A fórmula “Deus está morto” não é uma proposição
especulativa, mas uma proposição dramática, a proposição dramática por excelência.
Não se pode fazer de Deus o objeto de um conhecimento sintético sem colocar nele a
morte. A existência ou a não-existência deixam de ser determinações absolutas que
decorrem da ideia de Deus, mas a vida e a morte devêm determinações relativas que
correspondem às forças que entram em síntese com a ideia de Deus ou na ideia de
Deus. A proposição dramática é sintética, logo essencialmente pluralista, tipológica e
diferencial. Quem morre, e quem lança Deus à morte? “Quando os deuses morrem,
eles sempre morrem de várias espécies de morte.”439
1) Do ponto de vista do niilismo negativo: momento da consciência judaica e
cristã. – A ideia de Deus exprime a vontade de nada, a depreciação da vida; “quando
não se coloca o centro de gravidade da vida na vida, mas no além, no nada,
arrebatou-se da vida seu centro de gravidade.”440 Mas a depreciação, o ódio da vida
em seu conjunto, acarreta uma glorificação da vida reativa em particular: eles os
maldosos, os pecadores... nós os bons. O princípio e a conseqüência. A consciência
judaica ou consciência do ressentimento (após a bela época dos reis de Israel)
apresenta esses dois aspectos: nela o universo aparece como esse ódio da vida, o
particular como esse amor pela vida, sob condição dela ser doente e reativa. Mas que
esses dois aspectos estejam num entrelace de premissas e de conclusão, de princípio e
o Oriente está à frente da Europa: o cristianismo ainda permanece nos estágios negativo e reativo do niilismo (cf. VP, I, 343; AC, 20-23).
439 Z, IV, “Fora de serviço”.440 AC, 43.
de conseqüência, que esse amor seja a conseqüência desse ódio, isso é muitíssimo
importante esconder. É preciso tornar a vontade de nada mais sedutora, opondo um
aspecto ao outro, fazendo do amor uma antítese do ódio. O Deus judeu lança seu filho
à morte para [176] torná-lo independente de si mesmo e do povo judeu: este é o
primeiro sentido da morte de Deus.441 Mesmo Saturno não tinha tal sutileza nos
motivos. A consciência judaica lança Deus à morte na pessoa do Filho: ela inventa
um Deus de amor que sofreria do ódio, em vez de achar nisso suas premissas e seu
princípio. A consciência judaica torna Deus, em seu Filho, independente das próprias
premissas judaicas. Lançando Deus à morte, ela achou o meio de fazer do seu Deus
um Deus universal “para todos” e verdadeiramente cosmopolita.442
O Deus cristão, portanto, é o Deus judeu, mas que deveio cosmopolita,
conclusão separada de suas premissas. Na cruz, Deus deixa de aparecer como judeu.
Outrossim, na cruz, é o velho Deus que morre e o Deus novo que nasce. Ele nasce
órfão e refaz para si um pai à sua imagem: Deus de amor, mas este amor ainda é o da
vida reativa. Eis o segundo sentido da morte de Deus: o Pai morre, o Filho nos refaz
um Deus. O Filho nos pede apenas para acreditar nele, amá-lo como ele nos ama,
devir reativo para evitar o ódio. No lugar de um pai que nos dava medo, um filho que
pede um pouco de confiança, um pouco de crença.443 Aparentemente destacado de
suas premissas odiosas, é preciso que o amor da vida reativa valha por si mesmo e
devenha o universal para a consciência cristã.441 GM, I, 8: “Não é pela oculta magia negra de uma política verdadeiramente grandiosa da
vingança, de uma vingança previdente, subterrânea, lenta para apreender e calcular seus golpes, que até mesmo Israel teve de renegar e pôr na cruz, em face do mundo, o verdadeiro instrumento de sua vingança, como se este instrumento fosse seu inimigo mortal, a fim de que o mundo inteiro, ou seja, todos os inimigos de Israel tivessem menos escrúpulos para morder essa isca?”
442 AC, 17: “Outrora Deus só tinha o seu povo, seu povo eleito. Daí então, ele foi ao estrangeiro, assim como o seu povo, se meteu a viajar sem nunca mais deter-se num só lugar: até que em toda parte ele estivesse em casa, o grande cosmopolita.”
443 O tema da morte de Deus, interpretado como morte do Pai, é caro ao romantismo: por exemplo, Jean Paul (Choix de rêves, trad. Béguin). Nietzsche dá uma versão admirável disso em VS, 84: estando ausente o carcereiro, um preso sai das fileiras e diz em voz alta: “Sou o filho do carcereiro e tudo posso sobre ele. Posso salvar vocês, eu quero salvar vocês. Mas que fique claro: só salvarei aqueles de vocês que acreditam que eu sou o filho do carcereiro.” Então espalha-se a notícia de que o carcereiro “acaba de morrer subitamente”. O filho fala de novo: “Eu disse a vocês, deixarei livre cada um daqueles que tiverem fé em mim, isso eu afirmo com tanta certeza quanto afirmo que meu pai ainda está vivo.” – Essa exigência cristã, ter crentes, Nietzsche a denuncia freqüentemente. Z, II, “Dos poetas”: “A fé não salva, a fé em mim mesmo menos que qualquer outra.” EH, IV, 1: “Não quero crentes, acredito que sou maldoso demais pra isso, nem eu mesmo acredito em mim. Nunca falo às massas... Tenho um medo pavoroso de que um dia queiram me canonizar.”
Terceiro sentido da morte de Deus: são Paulo se apodera dessa morte, dá uma
interpretação dela que constitui o cristianismo. [177] Os Evangelhos haviam
começado, são Paulo levou à perfeição uma falsificação grandiosa. Primeiramente,
Cristo estaria morto pelos nossos pecados! O credor teria dado seu próprio filho, teria
sido pago com seu próprio filho, de tão imensa que era a dívida do devedor. O pai não
mais mata seu próprio filho para torná-lo independente, mas por nós, por causa de
nós.444 Deus põe seu filho na cruz por amor; nós responderemos a esse amor desde
que nos sintamos culpados, culpados dessa morte, e a reparemos acusando-nos,
pagando os juros da dívida. Sob o amor de Deus, sob o sacrifício do seu filho, toda a
vida devém reativa. – A vida morre, mas ela renasce como reativa. A vida reativa é o
conteúdo da sobrevivência enquanto tal, o conteúdo da ressurreição. Só ela é eleita de
Deus, só ela acha sua graça diante de Deus, diante da vontade de nada. O Deus posto
na cruz ressuscita: esta é a outra falsificação de são Paulo, a ressurreição de Cristo e a
sobrevida para nós, a unidade do amor e da vida reativa. Não é mais o pai que mata o
filho, não é mais o filho que mata o pai: o pai morre no filho, o filho ressuscita no
pai, por nós, por causa de nós. “No fundo, são Paulo não podia nenhum pouco servir-
se da vida do Salvador, ele tinha necessidade da morte na cruz, e ainda de uma outra
coisa...”: a ressurreição.445 – Na consciência cristã, não se esconde apenas o
ressentimento, muda-se a direção dele: a consciência judaica era consciência do
ressentimento, a consciência cristã é má consciência. A consciência cristã é a
consciência judaica revertida, revirada: o amor da vida, mas como vida reativa,
deveio o universal; o amor deveio princípio, o ódio sempre vivaz aparece apenas
como uma conseqüência desse amor, o meio contra quem resiste a esse amor. Jesus
guerreiro, Jesus odioso, mas por amor.
2) Do ponto de vista do niilismo reativo: momento da consciência européia. –
Até aqui a morte de Deus significa a síntese na ideia de Deus da vontade de nada e da
vida reativa. Esta síntese tem proporções diversas. Mas na medida em que a vida
reativa devém o essencial, o cristianismo nos conduz a um estranho expediente. Ele
nos ensina que somos nós quem lançamos Deus à morte. Ele secreta com isso o seu 444 Primeiro elemento da interpretação de são Paulo, AC, 42, 49; VP, I, 390.445 AC, 42. – Segundo elemento da interpretação de são Paulo, AC, 42, 43; VP, I, 390.
próprio ateísmo, ateísmo da [178] má consciência e do ressentimento. A vida reativa
no lugar da vontade divina, o Homem reativo no lugar de Deus, o Homem-Deus e
não mais o Deus-Homem, o Homem europeu. O homem matou Deus... mas quem
matou Deus? O homem reativo, “o mais hediondo dos homens”. A vontade divina, a
vontade de nada não tolerava outra vida senão a vida reativa; esta já nem mesmo
tolera Deus, já não suporta a piedade de Deus, ela leva o sacrifício dele à letra, ela o
sufoca na armadilha de sua misericórdia. Ela o impede de ressuscitar, ela senta na
tampa. Não mais correlação da vontade divina e da vida reativa, mas deslocamento,
substituição de Deus pelo homem reativo. Eis o quarto sentido da morte de Deus:
Deus se sufoca por amor da vida reativa, Deus é sufocado pelo ingrato que ele ama
demasiadamente.
3) Do ponto de vista do niilismo passivo: momento da consciência búdica. –
Deixando de parte falsificações que começam com os Evangelhos e que acham sua
forma definitiva com são Paulo, o que resta do Cristo, qual é seu tipo pessoal, qual é
o sentido de sua morte? O que Nietzsche chama de “contradição hiante” do
Evangelho deve nos guiar. O que os textos nos deixam adivinhar do verdadeiro
Cristo: a mensagem alegre que ele trazia, a supressão da ideia de pecado, a ausência
de qualquer ressentimento e de qualquer espírito de vingança, a recusa de qualquer
guerra mesmo que por conseqüência, a revelação de um reino de Deus aqui embaixo
como estado do coração, e sobretudo a aceitação da morte como prova de sua
doutrina.446 Dá pra ver onde Nietzsche quer chegar: Cristo era o contrário do que são
Paulo fez com ele, o Cristo verdadeiro era uma espécie de Buda, “um Buda num
terreno pouco hindu”.447 Ela estava à frente de sua época, em seu meio [milieu]: ele já
ensinava a vida reativa a morrer serenamente, a apagar-se passivamente, ele mostrava
à vida reativa seu verdadeiro expediente quando ela ainda estava se debatendo [179]
446 AC, 33, 34, 35, 40. – O verdadeiro Cristo, segundo Nietzsche, não faz apelo a uma crença, ele traz uma prática: “A vida do Salvador não era outra coisa senão essa prática, e tampouco sua morte foi outra coisa... Ele não resiste, não defende seu direito, não dá um passo para distanciar de si a coisa extrema, mais que isso ele a provoca. E ele reza, sofre e ama com aqueles que lhe fazem mal. Não se defender, não se encolerizar, não tornar responsável. Mas também não resistir ao mal, amar o mal... Com sua morte, Jesus não podia querer outra coisa, em si, exceto dar a prova mais estrepitosa de sua doutrina.”
447 AC, 31. – AC, 42: “Um novo esforço, totalmente impetuoso, para um movimento de apaziguamento búdico”; VP, I, 390: “O cristianismo é um ingênuo começo de pacifismo búdico, surgido do mesmo rebanho que o ressentimento anima.”
com a vontade de potência. Ele dava um hedonismo à vida reativa, uma nobreza ao
último dos homens, quando os homens ainda estavam se perguntando se tomariam ou
não o lugar de Deus. Ele dava uma nobreza ao niilismo passivo, quando os homens
ainda estavam no niilismo negativo, quando o niilismo reativo começava às custas.
Além da má consciência e do ressentimento, Jesus dava uma lição ao homem reativo:
ensinava-lhe a morrer. Ele era o mais doce dos decadentes, o mais interessante.448
Cristo não era nem judeu nem cristão, mas budista; mais próximo do Dalai Lama do
que do papa. Tão à frente em seu país, em seu meio [milieu], que sua morte devia ser
deformada, toda sua história falsificada, retrogradada, colocada a serviço dos estágios
anteriores, virada em proveito do niilismo negativo ou reativo. “Torcida e
transformada por são Paulo em uma doutrina de mistérios pagãos, que acaba por se
conciliar com toda a organização política... e por ensinar a fazer a guerra, a condenar,
a torturar, a jurar, a odiar”: o ódio deveio o meio desse Cristo muito doce.449 Pois aí
está a diferença entre o budismo e o cristianismo oficial de são Paulo: o budismo é a
religião do niilismo passivo, “o budismo é uma religião pelo fim e pela lassidão da
civilização; o cristianismo ainda não encontra essa civilização, ele a cria se for
necessário.”450 O próprio da história cristã e europeia é realizar, a ferro e fogo, um fim
que, aliás, já está dado e naturalmente alcançado: a culminação do niilismo.O que o
budismo tinha conseguido viver como fim realizado, como perfeição alcançada, o
cristianismo vive apenas como motor. Não está excluído que ele se reúna a esse fim;
não está excluído que o cristianismo culmine numa “prática” desembaraçada de toda
a mitologia paulina, não está excluído que ele reencontre a verdadeira prática do
Cristo. “O budismo progride em silêncio por toda Europa.”451 Mas quanto ódio e
quanta guerra para chegar a isto. Cristo instalou-se pessoalmente nesse fim
derradeiro, ele o alcançou num bater de asas, pássaro de Buda num meio [milieu] que
não era búdico. É preciso que o cristianismo, ao contrário, repasse por todos os
estágios do niilismo para que esse fim devenha também o seu, ao fim de uma longa e
terrível política de vingança. [180]448 AC, 31.449 VP, I, 390.450 AC, 22.451 VP, III, 87.
4) CONTRA O HEGELIANISMO
Não se verá, nessa filosofia da história e da religião, uma retomada ou mesmo
uma caricatura das concepções de Hegel. O entrelace é mais profundo, a diferença,
mais profunda. Deus está morto, Deus deveio Homem, o Homem deveio Deus:
Nietzsche, à diferença dos seus antecessores, não acredita nessa morte. Ele não aposta
nessa cruz. Ou seja: ele não faz dessa morte um acontecimento que possuiria seu
sentido em si. A morte de Deus tem tanto sentido quantas são as forças capazes de se
apoderar de Cristo e fazer com que ele morra; mas nós, precisamente, ainda estamos
esperando pelas forças ou pela potência que levarão essa morte ao seu grau superior,
e farão dela uma outra coisa que não uma morte aparente e abstrata. Contra todo o
romantismo, contra toda a dialética, Nietzsche desconfia da morte de Deus. Com ele
cessa a era da confiança ingênua, onde se saudava ora a reconciliação do homem e de
Deus, ora a substituição de Deus pelo homem. Nietzsche não tem fé nos grandes
acontecimentos ruidosos.452 É preciso muito silêncio e tempo para que um
acontecimento, enfim, ache as forças que lhe dão uma essência. – Sem dúvida, para
Hegel também, é preciso tempo para que um acontecimento se junte à sua verdadeira
essência. Mas esse tempo é necessário apenas para que o sentido, tal como ele é “em
si”, devenha também “para si”. A morte de Cristo interpretada por Hegel significa a
oposição superada, a reconciliação do finito e do infinito, a unidade de Deus e do
indivíduo, do imutável e do particular; ora, será preciso que a consciência cristã
passe por outras figuras da oposição para que essa unidade também devenha para si o
que ela já é em si. O tempo do qual Nietzsche fala, ao contrário, é necessário à
formação de forças que dão à morte de Deus um sentido que ela não continha em si,
que lhe trazem uma essência determinada como a esplêndida dádiva da exterioridade.
Em Hegel a diversidade dos sentidos, a escolha da essência, a necessidade do tempo
são outras tantas aparências, somente aparências.453 [181]452 Z, II, “Dos grandes acontecimentos”: “Eu perdi a fé nos grandes acontecimentos, desde que
haja muito berro e fumaça em torno deles... E então confesse! Pouco coisa teria sido cumprida enquanto se dissipavam teu estardalhaço e tua fumaça”, GC, 125.
453 Sobre a morte de Deus e seu sentido na filosofia de Hegel, cf. os comentários essenciais do
Universal e singular, imutável e particular, infinito e finito, o que é tudo isso?
Nada além de sintomas. Quem é esse particular, esse singular, esse finito? E o que é
esse universal, esse imutável, esse infinito? Um é sujeito, mas quem é esse sujeito,
quais forças? O outro é predicado ou objeto, mas de qual vontade ele é “objeto”? A
dialética nem mesmo aflora a interpretação, ela nunca ultrapassa o domínio dos
sintomas. Ela confunde a interpretação com o desenvolvimento do sintoma não
interpretado. Eis por que, em matéria de desenvolvimento e de mudança, ela nada
concebe de mais profundo exceto uma permutação abstrata, onde o sujeito devém
predicado e o predicado, sujeito. Mas aquele que é sujeito e aquilo que é predicado
não mudaram, no fim eles permanecem tão pouco determinados quanto no início, tão
pouco interpretados quanto possível: tudo se passou nas regiões médias. Que a
dialética proceda por oposição, desenvolvimento da oposição ou contradição, solução
da contradição, com isso não se pode ficar espantado. Ela ignora o elemento real do
qual derivam as forças, suas qualidades e seus entrelaces; desse elemento ela conhece
tão somente a imagem revertida que se reflete nos sintomas abstratamente
considerados. A oposição pode ser a lei do entrelace entre os produtos abstratos, mas
a diferença é o único princípio de gênese ou de produção, ela mesma produzindo a
oposição como simples aparência. A dialética se nutre de oposições porque ela ignora
os mecanismos diferenciais, outramente sutis e subterrâneos: os deslocamentos
topológicos, as variações tipológicas. Isto bem se vê num exemplo caro a Nietzsche:
toda sua teoria da má consciência deve ser compreendida como uma reinterpretação
da consciência infeliz hegeliana; essa consciência, aparentemente dilacerada, acha
seu sentido nos entrelaces diferenciais de forças que se escondem sob oposições
fingidas. Outrossim, o entrelace do cristianismo com o judaísmo não deixa a oposição
subsistir senão como cobertura e como pretexto. Destituída de todas as suas
ambições, a oposição deixa de ser formadora, motora e coordenadora: um sintoma,
nada além de um sintoma a ser interpretado. Destituída de sua pretensão de dar conta
da diferença, a contradição aparece tal como ela é: contrassenso perpétuo sobre a
Sr. Wahl (Le malheur de la conscience dans la philosophie de Hegel) e do Sr. Hyppolite (Genèse et structure de la phénoménologie de l'esprit). – E também o belo artigo do Sr. Birault (“L’Onto-théo-logique hégélienne et la dialectique”, in Tijdscrift voor Filosofie, 1958).
diferença ela mesma, reversão confusa da genealogia. Na verdade, para o olho do
genealogista, o trabalho do negativo é tão somente uma grosseira aproximação dos
jogos da vontade de potência. Considerando os sintomas abstratamente, fazendo do
movimento da aparência a lei genética das coisas, só retendo do princípio uma [182]
imagem revertida, toda a dialética opera e se move no elemento da ficção. Como suas
soluções não seriam fictícias, sendo que seus próprios problemas são fictícios? Não
há uma ficção da qual ela não faça um momento do espírito, um de seus próprios
momentos. Andar com os pés no ar não é uma coisa que um dialético possa reprovar
em outro, é o caráter fundamental da própria dialética. Como ela ainda guardaria,
nessa posição, um olho crítico? De três maneiras a obra de Nietzsche é dirigida contra
a dialética: esta desconhece o sentido porque ela ignora a natureza das forças que se
apropriam concretamente dos fenômenos; ela desconhece a essência porque ignora o
elemento real do qual derivam as forças, suas qualidades e seus entrelaces; ela
desconhece a mudança e a transformação porque se contenta em operar permutações
entre termos abstratos e irreais.
Todas essas insuficiências têm uma mesma origem, a ignorância da questão:
Quem? Sempre o mesmo desprezo socrático pela arte dos sofistas. Anunciam-nos à
maneira hegeliana que o homem e Deus se reconciliam, e também que a religião e a
filosofia se reconciliam. Anunciam-nos à maneira de Feuerbach que o homem toma o
lugar de Deus, que ele recupera o divino como seu bem próprio ou sua essência, e
também que a teologia devém antropologia. Mas quem é Homem e o que é Deus?
Quem é particular, o que é o universal? Feuerbach diz que o homem mudou, que ele
deveio Deus; Deus mudou, a essência de Deus deveio a essência do homem. Mas
aquele que é Homem não mudou: o homem reativo, o escravo, que não deixa de ser
escravo ao se apresentar como Deus, sempre o escravo, máquina de fabricar o divino.
O que é Deus tampouco mudou: sempre o divino, sempre o Ser supremo, máquina de
fabricar o escravo. O que mudou, ou antes o que mudou suas determinações, é o
conceito intermediário, são os termos médios que podem muito bem ser sujeito ou
predicado um do outro: Deus ou o Homem.454
454 Sob as críticas de Stirner, Feuerbach convinha: eu deixo subsistir os predicados de Deus, “mas (me) é bem necessário deixá-los subsistir, sem o qual (eu) nem mesmo poderia deixar
Deus devém Homem, o Homem devém Deus. Mas quem é Homem? Sempre o
ser reativo, o representante, o sujeito de uma vida fraca e depreciada. O que é Deus?
Sempre o Ser [183] supremo como meio de depreciar a vida, “objeto” da vontade de
nada, “predicado” do niilismo. Antes e depois da morte de Deus, o homem
permanece “quem ele é” assim como Deus permanece “o que ele é”: forças reativas e
vontade de nada. A dialética nos anuncia a reconciliação do Homem e de Deus. Mas o
que é essa reconciliação senão a velha cumplicidade, a velha afinidade da vontade de
nada e da vida reativa? A dialética nos anuncia a substituição de Deus pelo homem.
Mas o que é essa substituição senão a vida reativa no lugar da vontade de nada, a vida
reativa produzindo agora seus próprios valores? Neste ponto, parece que toda a
dialética se move nos limites das forças reativas, que ela inteira evolui na perspectiva
niilista. Precisamente, há sim um ponto de vista de onde a oposição aparece como o
elemento genético da força; é o ponto de vista das forças reativas. Visto do lado das
forças reativas, o elemento diferencial é revertido, refletido ao avesso, devindo
oposição. Há sim uma perspectiva que opõe a ficção ao real, que desenvolve a ficção
como o meio pelo qual as forças reativas triunfam; é o niilismo, a perspectiva niilista.
O trabalho do negativo está a serviço de uma vontade. Basta perguntar que vontade é
essa para pressentir a essência da dialética. A descoberta cara à dialética é a
consciência infeliz, o aprofundamento da consciência infeliz, a solução da
consciência infeliz, a glorificação da consciência infeliz e dos seus recursos. São as
forças reativas que se exprimem na oposição, é a vontade de nada que se exprime no
trabalho do negativo. A dialética é a ideologia natural do ressentimento, da má
consciência. Ela é o pensamento na perspectiva do niilismo e do ponto de vista das
forças reativas. De cabo a rabo, ela é pensamento fundamentalmente cristão:
impotente para criar novas maneiras de pensar, novas maneiras de sentir. A morte de
Deus, grande acontecimento dialético e ruidoso; mas acontecimento que se passa no
estardalhaço das forças reativas, na fumaça do niilismo.
subsistir a natureza e o homem; pois Deus é um ser composto de realidades, ou seja, predicados da natureza e da humanidade” (cf. “L’essence du christianisme dans son rapport avec l’Unique et sa propriété”, Manifestes philosophiques, trad. Althusser (Presses Universitaires de France).
5) OS AVATARES DA DIALÉTICA
Na história da dialética, Stirner tem um lugar à parte, o último, o lugar
extremo. Stirner foi aquele dialético audacioso que tentou conciliar a dialética com a
arte dos sofistas. Ele soube reencontrar o caminho da questão: Quem? Soube fazer
dela [184] a questão essencial de uma só vez contra Hegel, contra Bauer, contra
Feuerbach. “A questão ‘O que é o Homem?’ devém ‘Quem é o Homem?’, e cabe a Ti
responder. O que é? visava o conceito a ser realizado; começando por quem é, a
questão já não é uma, pois a resposta está pessoalmente presente naquele que
interroga.”455 Noutros termos, basta colocar a questão “Quem?” para conduzir a
dialética ao seu verdadeiro expediente: saltus mortalis. Feuerbach anunciava o
Homem no lugar de Deus. Mas tanto eu não sou mais o homem ou o ser genérico,
tanto não sou a essência do homem quanto eu não era Deus e a essência de Deus.
Fazem o Homem e Deus permutarem; mas o trabalho do negativo, uma vez
deslanchado, está aí para nos dizer: ainda não é Tu. “Eu não sou nem Deus nem o
Homem, não sou nem a essência suprema nem minha essência, e no fundo dá no
mesmo que eu conceba a essência em mim ou fora de mim.” “Como o homem
representa apenas um outro ser supremo, o ser supremo apenas sofreu, em suma, uma
simples metamorfose, e o temor do Homem é apenas um aspecto diferente do temor
de Deus.”456 – Nietzsche dirá: o mais hediondo dos homens, tendo matado Deus
porque não suportava sua piedade, ainda está na mira da piedade dos Homens.457
O motor especulativo da dialética é a contradição e sua solução. Mas seu motor
prático é a alienação e a supressão da alienação, a alienação e a reapropriação. A
dialética revela aqui sua verdadeira natureza: arte procedurária entre todas, arte de
discutir sobre as propriedades e de mudar de proprietários, arte do ressentimento.
Stirner ainda alcança a verdade da dialética no próprio título de seu grande livro: O
único e sua propriedade. Ele considera que a liberdade hegeliana permanece um
455 STIRNER, L’unique et sa propriété, p. 449. – Sobre Stirner, Feuerbach e seus entrelaces, cf. os livros do Sr. Arvon: Aux sources de l’existentialisme: Max Stirner; Ludwig Feuerbach ou la transformation du sacré (Presses Universitaires de France).
456 STIRNER, p. 36, p. 220.457 Z, IV, “O mais hediondo dos homens”.
conceito abstrato; “nada tenho contra a liberdade, mas para ti anseio mais que
liberdade. Tu não deverias apenas ser desembaraçado do que não queres, tu deverias
também possuir o que queres; tu não deverias apenas ser um homem livre, tu deverias
ser igualmente um proprietário.” – Mas quem se apropria ou se reapropria? Qual é a
instância reapropriadora? O espírito objetivo de Hegel, o saber absoluto, não é
também uma alienação, uma forma espiritual e refinada de alienação? A consciência
[185] de si de Bauer, a crítica humana, pura ou absoluta? O ser genérico de
Feuerbach, o homem enquanto espécie, essência e ser sensível? Eu nada sou disso
tudo. Stirner não tem dissabor ao mostrar que a ideia, a consciência ou a espécie são
tão alienações quanto a teologia tradicional. As reapropriações relativas ainda são
alienações absolutas. Rivalizando com a teologia, a antropologia faz de mim a
propriedade do Homem. Mas a dialética não irá se deter enquanto eu não devier
enfim proprietário... Podendo desembocar no nada, se for preciso. – Ao mesmo
tempo que a instância reapropriadora diminui em comprimento, largura e
profundidade, o ato de reapropriar muda de sentido, exercendo-se sobre uma base
cada vez mais estreita. Em Hegel, tratava-se de uma reconciliação: a dialética estava
pronta a se reconciliar com a religião, com a Igreja, com o Estado, com todas as
forças que nutriam a sua. Sabe-se o que as famosas transformações hegelianas
significam: elas não se esquecem de conservar piedosamente. A transcendência
permanece transcendente no seio do imanente. Com Feuerbach, o sentido de
“reapropriar” muda: menos reconciliação do que recuperação, recuperação humana
das propriedades transcendentes. Nada é conservado, salvo todavia o humano como
“ser absoluto e divino”. Mas essa conservação, essa última alienação desaparece em
Stirner: o Estado e a religião, mas também a essência humana são negados no EU, que
não se reconcilia com nada porque aniquila tudo, por sua própria “potência”, por seu
próprio “comércio”, por seu próprio “gozo”. Superar a alienação significa, então,
pura e fria aniquilação, retomada que nada deixa subsistir do que ela retoma: “O eu
não é tudo, mas ele destrói tudo.”458
O eu que aniquila tudo é também o eu que nada é: “Só o eu que se decompõe, o
458 STIRNER, p. 216.
eu que nunca é realmente eu.” “Eu sou o proprietário de minha potência, e sou isto
quando me sei único. No único, o possuidor retorna ao nada criador do qual ele saiu.
Todo ser superior a mim, quer seja Deus ou o Homem, enfraquece diante do
sentimento de minha unicidade e empalidece ao sol dessa consciência. Se baseio
minha causa em mim, o único, ela repousa sobre seu criador efêmero e perecível que
devora a si mesmo, e posso dizer: não baseei minha causa sobre Nada.”459 O interesse
do livro de Stirner era triplo: uma profunda análise da insuficiência das
reapropriações em seus antecessores; a descoberta do entrelace essencial entre a
dialética e uma teoria do eu, só o eu sendo instância reapropriadora; uma visão
profunda do que era a culminação da dialética, com o eu, no eu. A história em geral e
o hegelianismo em particular achavam seu expediente, porém sua mais completa
dissolução, em um niilismo triunfante. A dialética ama e controla a história, mas ela
mesma tem uma história do qual sofre e não controla. O sentido da história e da
dialética reunidas não é a realização da razão, da liberdade, nem do homem enquanto
espécie, mas o niilismo, nada além do niilismo. Stirner é o dialético que revela o
niilismo como verdade da dialética. Basta que ele coloque a questão “Quem?” O eu
único concede ao nada tudo que não é ele, e esse nada é precisamente seu próprio
nada, o nada mesmo do eu. Stirner é dialético demais para pensar de outro jeito senão
em termos de propriedade, de alienação e de reapropriação. Mas exigente demais
para não ver aonde esse pensamento conduz: ao eu que nada é, ao niilismo. – Então o
problema de Marx, na Ideologia Alemã, acha um de seus mais importantes sentidos:
trata-se para Marx de parar esse deslizamento fatal. Ele aceita a descoberta de Stirner,
a dialética como teoria do eu. Em um ponto ele dá razão a Stirner: a espécie humana
de Feuerbach ainda é uma alienação. Mas o eu de Stirner, por sua vez, é uma
abstração, uma projeção do egoísmo burguês. Marx elabora sua famosa doutrina do
eu condicionado: a espécie e o indivíduo, o ser genérico e o particular, o social e o
egoísmo se reconciliam no eu condicionado segundo os entrelaces históricos e
sociais. Será suficiente? O que é a espécie, e quem é indivíduo? Será que a dialética
achou seu ponto de equilíbrio e de parada, ou somente um último avatar, o avatar
459 STIRNER, p. 216, p. 449.
socialista antes da culminação niilista? Na verdade é difícil parar a dialética e a
história na ladeira comum onde ambas se arrastam uma a outra: Marx faz outra coisa
além de marcar uma última etapa antes do fim, a etapa proletária?460
6) NIETZSCHE E A DIALÉTICA
Temos todas as razões para supor em Nietzsche um profundo conhecimento do
movimento hegeliano, de Hegel ao próprio Stirner. Os conhecimentos filosóficos de
um autor não são avaliados pelas citações que ele faz, nem a partir das fichas de
bibliotecas sempre fantasistas e conjecturais, mas a partir das direções apologéticas
ou polêmicas de sua própria obra. Compreende-se mal o conjunto da obra de
Nietzsche, caso não se veja “contra quem” seus principais conceitos são dirigidos. Os
temas hegelianos estão presentes nessa obra como o inimigo que ela combate.
Nietzsche não pára de denunciar: o caráter teológico e cristão da filosofia alemã (o
“seminário de Tübingen”) – a impotência dessa filosofia para sair da perspectiva
niilista (niilismo negativo de Hegel, niilismo reativo de Feuerbach, niilismo extremo
de Stirner) – a incapacidade dessa filosofia para culminar em outra coisa que não o
eu, o homem ou as fantasias do humano (o superhomem nietzscheano contra a
dialética) – o caráter mistificador das pretensas transformações dialéticas (a
transvaloração contra a reapropriação, contra as permutações abstratas). É certo que,
em tudo isso, Stirner desempenha o papel de revelador. É ele quem leva a dialética
até suas últimas conseqüências, mostrando em quê ela culmina e qual é seu motor.
Mas justamente, porque Stirner ainda pensa como dialético, porque ele não sai das
categorias da propriedade, da alienação e de sua supressão, ele mesmo se lança no
460 M. Merleau-Ponty escreveu um belo livro sobre As Aventuras da Dialética. Entre outras coisas, ele denuncia a aventura objetivista, que se apóia sobre “a ilusão de uma negação realizada na história e em sua matéria” (p. 123), ou que “concentra toda a negatividade numa formação histórica existente, a classe proletária” (p. 278). Essa ilusão acarreta necessariamente a formação de um corpo qualificado: “os funcionários do negativo” (p. 184). – Porém, ao querer manter a dialética no terreno de uma subjetividade e uma intersubjetividade moventes, é duvidoso que se escape desse niilismo organizado. Há figuras da consciência que já são funcionárias do negativo. A dialética tem menos aventuras que avatares; naturalista ou ontológica, objetiva ou subjetiva, ela é, diria Nietzsche, niilista por princípio; e a imagem que ela dá da positividade é sempre uma imagem negativa ou revertida.
nada que ele escava sob os passos da dialética. Quem é homem? Eu, nada além de
mim. Ele se serve da questão quem?, mas apenas para dissolver a dialética no nada
desse eu. Ele é incapaz de colocar essa questão em outras perspectivas que não a do
humano, sob outras condições que não as do niilismo; ele não pode deixar essa
questão se desenvolver por si mesma, nem colocá-la num outro elemento que lhe
daria uma resposta afirmativa. Falta-lhe um método, tipológico, que corresponderia à
questão.
A tarefa positiva de Nietzsche é dupla: o superhomem e a transvaloração. Não
“quem é homem?”, mas quem supera o homem? “Os mais zelosos estão perguntando
hoje em dia: como conservar o homem? Mas Zaratustra pergunta, e ele é o [188]
único e primeiro a perguntar: como o homem será superado? O superhomem está em
meu coração, é ele que para mim é o Único, e não o homem: não o próximo, não o
mais miserável, não o mais aflito, não o melhor.”461 Superar opõe-se a conservar, mas
também a apropriar, reapropriar. Transvalorar opõe-se aos valores em curso, mas
também às pseudo-transformações dialéticas. O superhomem nada tem de comum
com o ser genérico dos dialéticos, com o homem enquanto espécie nem com o eu.
Não sou eu que sou o único, nem o homem. O homem da dialética é o mais miserável
porque ele nada mais é exceto homem, tendo aniquilado tudo que não era ele. O
melhor também, porque ele suprimiu a alienação, substituiu Deus, recuperou suas
propriedades. Não acreditemos que o superhomem de Nietzsche seja um sobrelanço:
ele difere em natureza com o homem, com o eu. O superhomem se define por uma
nova maneira de sentir: um outro sujeito que não o homem, um outro tipo que não o
tipo humano. Uma nova maneira de pensar, outros predicados que não o divino; pois
o divino ainda é uma maneira de conservar o homem, e de conservar o essencial de
Deus, Deus como atributo. Uma nova maneira de avaliar: não uma mudança de
valores, não uma permutação abstrata ou uma reversão dialética, mas uma mudança e
uma reversão no elemento do qual deriva o valor dos valores, uma “transvaloração”.
Do ponto de vista dessa tarefa positiva, todas as intenções críticas de Nietzsche
acham sua unidade. O amálgama, procedimento caro aos hegelianos, é revirado
461 Z, IV, “Do homem superior”. – A alusão a Stirner é evidente.
contra os próprios hegelianos. Numa mesma polêmica, Nietzsche engloba o
cristianismo, o humanismo, o egoísmo, o socialismo, o niilismo, as teorias da história
e da cultura, a dialética em pessoa. Tudo isso, impugnado, forma a teoria do homem
superior: objeto da crítica nietzscheana. No homem superior, a disparidade se
manifesta, como a desordem e a indisciplina dos próprios momentos dialéticos, como
o amálgama das ideologias humanas e demasiado humanas. O grito do homem
superior é múltiplo: “Era um longo grito, estranho e múltiplo, e Zaratustra distinguia
perfeitamente que se compunha de muitas vozes; muito embora, à distância,
parecesse o grito de uma boca só.”462 Mas a unidade do homem superior é também
[189] a unidade crítica: todinho feito de peças e de pedaços que a dialética amontoou
por conta própria, ele tem por unidade a do fio que retém o conjunto, fio do niilismo e
da reação.463
7) TEORIA DO HOMEM SUPERIOR
A teoria do homem superior ocupa o livro IV de Zaratustra; e esse livro IV é o
essencial do Zaratustra publicado. As personagens que compõem o homem superior
são: o adivinha, os dois reis, o homem da sanguessuga, o encantador, o último papa, o
mais hediondo dos homens, o mendigo voluntário e a sombra. Ora, através dessa
diversidade de pessoas, descobre-se rapidamente o que constitui a ambivalência do
homem superior: o ser reativo do homem, mas também a atividade genérica do
homem. O homem superior é a imagem na qual o homem reativo se representa como
“superior” e, melhor ainda, se deifica. Ao mesmo tempo, o homem superior é a
imagem na qual aparece o produto da cultura ou da atividade genérica. – O adivinha
é adivinha da grande lassidão, representante do niilismo passivo, profeta do último
dos homens. Ele busca um mar para beber, um mar para se afogar; mas toda morte
ainda lhe parece ativa demais, estamos cansados demais para morrer. Ele quer a
462 Z, IV, “A saudação”. – “Parece-me, no entanto, que vós concordais bastante mal uns com os outros, quando estais reunidos aqui, vós que dais gritos de aflição.”
463 Cf. Z, II, “Do país da cultura”: O homem desse tempo é de uma só vez a representação do homem superior e o retrato do dialético. “Pareceis modelados de cores e pedaços de papel juntados com cola... Como poderíeis acreditar, sarapintados que sois! Vós que sois pinturas de tudo aquilo em que jamais se acreditou.”
morte, mas como uma extinção passiva.464 O encantador é a má consciência, “o falso-
cunhador”, “o expiador do espírito”, “o demônio da melancolia” que fabrica seu
sofrimento para excitar a piedade, para espalhar o contágio. “Tu camuflarias até tua
doença se te mostrasses nu diante do teu médico”: o encantador maqueia a dor,
inventa pra ela um novo sentido, ele trai Dioniso, apodera-se da canção de Ariadne,
ele, o falso trágico.465 O mais hediondo dos homens representa o niilismo reativo: o
homem reativo virou seu ressentimento contra Deus, colocou-se no lugar do Deus
que ele matou, mas ele não deixa de ser reativo, cheio de má consciência e de
ressentimento.466
Os dois reis são os costumes, a moralidade dos costumes, e as [190] duas
pontas dessa moralidade, as duas extremidades da cultura. Eles representam a
atividade genérica apreendida no princípio pré-histórico onde os costumes são
suprimidos. Eles se desesperam porque assistem ao triunfo de um “populacho”: eles
vêem forças se enxertando nos próprios costumes, forças que desviam a atividade
genérica, que a deformam de uma só vez em seu princípio e em seu produto.467 O
homem das sanguessugas representa o produto da cultura enquanto ciência. Ele é “o
consciencioso do espírito”. Ele quis a certeza, e quis apropriar-se da ciência, da
cultura: “Antes não saber nada do que saber muitas coisas pela metade.” E nesse
esforço rumo à certeza, ele aprende que a ciência nem mesmo é um conhecimento
objetivo da sanguessuga e de suas causas primeiras, mas apenas um conhecimento do
“cérebro” da sanguessuga, um conhecimento que já não é um, porque ele deve se
identificar à sanguessuga, pensar como ela e submeter-se a ela. O conhecimento é a
vida contra a vida, a vida que incisa a vida, mas só a sanguessuga incisa a vida, só ela
é conhecimento.468 O último papa fez de sua existência um longo serviço. Ele
representa o produto da cultura como religião. Ele serve Deus até o fim, perdeu um
olho nisso. O olho perdido, sem dúvida, é o olho que vive dos deuses ativos,
afirmativos. O olho restante segue o deus judeu e cristão em toda sua história: ele viu
464 Z, II, “O adivinha”; IV, “O grito de aflição”.465 Z, IV, “O encantador”.466 Z, IV, “O mais hediondo dos homens”.467 Z, IV, “Conversa com os reis”.468 Z, IV, “A sanguessuga”. – Recordar-se-á também da importância do cérebro nas teorias de
Schopenhauer.
o nada, todo o niilismo negativo e a substituição de Deus pelo homem. Velho lacaio
que se desespera por ter perdido seu senhor: “Estou sem senhor e entretanto não estou
livre; também não sou mais alegre salvo em minhas lembranças.”469 O mendigo
voluntário percorreu toda a espécie humana, dos ricos aos pobres. Ele buscava “o
reino dos céus”, “a felicidade na terra” como a recompensa, mas também como o
produto da atividade humana, genérica e cultural. Ele queria saber a quem remetia
esse reino, e quem representava essa atividade. A ciência, a moralidade, a religião?
Outra coisa ainda, a pobreza, o trabalho? Mas o reino dos céus não mais se encontra
nem entre os pobres nem entre os ricos: por toda parte o populacho, “populacho
acima, populacho abaixo”! O mendigo voluntário achou o reino dos céus como a
única recompensa e o verdadeiro produto de uma atividade genérica: mas somente
entre as vacas, somente na atividade genérica [191] das vacas. É que as vacas sabem
ruminar, e ruminar é o produto da cultura enquanto cultura.470 A sombra é o próprio
viajante, a própria atividade genérica, a cultura e seu movimento. O sentido do
viajante e de sua sombra é que só a sombra viaja. A sombra viageira é a atividade
genérica, mas enquanto perde seu produto, enquanto perde seu princípio e os busca
loucamente.471 – Os dois reis são os guardiães da atividade genérica, o homem das
sanguessugas é o produto dessa atividade como ciência, o último papa é o produto
dessa atividade como religião; o mendigo voluntário, além da ciência e da religião,
quer saber qual o produto adequado dessa atividade; a sombra é essa atividade
mesmo enquanto ela perde sua meta e busca seu princípio.
Fizemos como se o homem superior se dividisse em duas espécies. Mas, na
verdade, é cada personagem do homem superior que tem os dois aspectos segundo
uma proporção variável; a uma só vez representante das forças reativas e do seu
triunfo, representante da atividade genérica e do seu produto. Devemos levar esse
duplo aspecto em conta, a fim de compreender por que Zaratustra trata o homem
superior de dois jeitos: ora como o inimigo que não recua diante de armadilha
alguma, infâmia alguma, para desviar Zaratustra do seu caminho; ora como um
469 Z, IV, “Fora de serviço”.470 Z, IV, “O mendigo voluntário”.471 Z, IV, “A sombra”.
hóspede, quase um companheiro que se lança numa empreitada próxima à do próprio
Zaratustra.472
8) O HOMEM É ESSENCIALMENTE “REATIVO”?
Essa ambivalência só pode ser interpretada com exatidão caso se coloque um
problema mais geral: em que medida o homem é essencialmente reativo? Por um
lado, Nietzsche apresenta o triunfo das forças reativas como algo [192] essencial no
homem e na história. O ressentimento, a má consciência são constitutivos da
humanidade do homem, o niilismo é o conceito a priori da história universal; eis por
que vencer o niilismo, liberar o pensamento da má consciência e do ressentimento,
significa superar o homem, destruir o homem, até mesmo o melhor.473 A crítica de
Nietzsche não ataca um acidente, mas a essência mesma do homem; é em sua
essência que o homem é dito doença de pele da terra.474 Porém, por outro lado,
Nietzsche fala dos senhores como de um tipo humano que o escravo teria apenas
vencido, da cultura como de uma atividade genérica humana que as forças reativas
teriam simplesmente desviado de seu sentido, do indivíduo livre e soberano como do
produto humano dessa atividade que o homem reativo teria apenas deformado.
Mesmo a história do homem parece comportar períodos ativos.475 Ocorre a Zaratustra
evocar seus verdadeiros homens e anunciar que seu reino é também o reino do
homem.476
Mais profundamente que as forças ou as qualidades de forças, há os devires de
forças ou qualidades da vontade de potência. À questão “O homem é essencialmente
472 Z, IV, “A saudação”: “Não sois vós quem eu esperava nessas montanhas... Vós não sois meu braço direito... Convosco eu malograria até mesmo minhas vitórias... Não sois vós a quem meu nome e minha herança pertencem.” Z, IV, “O canto da melancolia”: “Todos esses homens superiores cheiram mal, talvez.” Sobre a armadilha que pregam a Zaratustra, cf. Z, IV, “O grito de aflição”, “O encantador”, “Fora de serviço”, “O mais hediondo dos homens”. – Z, IV, “A saudação”: “Este é meu reino e meu domínio: mas serão vossos por esta tarde e noite. Que meus animais vos sirvam, que minha caverna seja vosso local de repouso.” Os homens superiores são ditos “pontes”, “graus”, “prenuciadores”: “Pode ser que de vossa semente um dia nasça, para mim, um filho e um herdeiro perfeito.”
473 Z, IV, “Do homem superior”: “É preciso que pereçam sempre mais e sempre os melhores de vossa espécie.”
474 Z, II, “Dos grandes acontecimentos”.475 GM, I, 16.476 Z, IV, “O signo”.
reativo?”, devemos responder: aquilo que constitui o homem é ainda mais profundo.
Aquilo que constitui o homem e seu mundo não é somente um tipo particular de
forças, mas um devir das forças em geral. Não as forças reativas em particular, mas o
devir-reativo de todas as forças. Ora, um tal devir exige sempre, como seu terminus a
quo, a presença da qualidade contrária, que passa em seu contrário devindo. Há uma
saúde que o genealogista bem sabe que só existe como o pressuposto de um devir-
doente. O homem ativo é esse homem belo, jovem e forte, mas em cujo rosto se
decifra os signos discretos de uma doença que ele ainda não tem, de um contágio que
só lhe alcançará amanhã. É preciso defender os fortes contra os fracos, mas sabe-se o
caráter desesperado dessa empreitada. O forte pode se opor aos fracos, mas não ao
devir-fraco que é o seu, que lhe pertence sob uma solicitação mais sutil. Cada vez que
Nietzsche fala dos homens ativos não é sem tristeza, vendo a destinação que lhes
[193] é prometida como seu devir essencial: o mundo grego revertido pelo homem
teórico, Roma revertida pela Judéia, a Renascença pela Reforma. Portanto, há sim
uma atividade humana, há sim forças ativas do homem; mas essas forças particulares
são apenas o alimento de um devir universal das forças, de um devir-reativo de todas
as forças, que define o homem e o mundo humano. É assim que se conciliam em
Nietzsche os dois aspectos do homem superior: seu caráter reativo, seu caráter ativo.
À primeira vista, a atividade do homem aparece como genérica; forças reativas se
enxertam sobre ela, que a desnaturalizam e a desviam de seu sentido. Porém, mais
profundamente, o verdadeiro genérico é o devir reativo de todas as forças, sendo a
atividade apenas o termo particular suposto por esse devir.
Zaratustra não pára de dizer aos seus “visitantes”: vocês são falhos, são
naturezas falhas.477 É preciso compreender essa expressão no sentido mais forte: não
é o homem que não consegue ser homem superior, não é o homem que falha e
malogra seu produto. Os visitantes de Zaratustra não se experimentam como falsos
homens superiores, eles experimentam o homem superior que eles são como algo
falso. A própria meta é falha, malograda, não em virtude de meios insuficientes, mas
em virtude de sua natureza, em virtude do que ele é como meta. Se ela é falha, não é
477 Z, IV, “Do homem superior”.
na medida em que não se a alcança; é como meta alcançada que ela também é meta
falha. O próprio produto é malogrado, não em virtude de acidentes que sobreviriam,
mas em virtude da atividade, da natureza da atividade da qual ele é produto.
Nietzsche quer dizer que a atividade genérica do homem ou da cultura só existe como
o suposto termo de um devir-reativo que faz do princípio dessa atividade um
princípio que malogra, do produto dessa atividade um produto malogrado. A dialética
é o movimento da atividade enquanto tal; ela também é essencialmente malograda e
malogra essencialmente; o movimento das reapropriações, a atividade dialética, é o
mesmo que o devir-reativo do homem e no homem. Que se considere o jeito pelo
qual os homens superiores se apresentam: seu desespero, seu desgosto, seu grito de
aflição, sua “consciência infeliz”. Todos sabem e experimentam o caráter falho da
meta que eles alcançam, o caráter malogrado do produto que eles são.478 A sombra
[194] perdeu a meta, não que ela não a tenha alcançado, mas a meta que ela alcançou
é ela mesma uma meta perdida.479 A atividade genérica e cultural é um falso cão de
fogo, não que ela seja uma aparência de atividade, mas porque ela tem somente a
realidade que serve de primeiro termo ao devir reativo.480 É bem nesse sentido que os
dois aspectos do homem superior são conciliados: o homem reativo como a expressão
sublimada ou divinizada das forças reativas, o homem ativo como o produto
essencialmente falho de uma atividade que falha essencialmente sua meta. Devemos,
então, recusar qualquer interpretação que apresentaria o superhomem como tendo
sucesso ali onde o homem superior fracassa. O superhomem não é um homem que se
ultrapassa e tem sucesso em se ultrapassar. Entre o superhomem e o homem superior
a diferença é de natureza, na instância que os produz respectivamente, bem como na
meta que eles alcançam respectivamente. Zaratustra diz: “Vós, os homens superiores,
acreditai que estou aqui para reparar o que fizestes mal?”481 Tampouco podemos
seguir uma interpretação como a de Heidegger, que faz do superhomem a realização e
até mesmo a determinação da essência humana.482 É que a essência humana não
478 Por exemplo, a maneira pela qual os dois reis sofrem da transformação dos “bons costumes” em “populacho”.
479 Z, IV, “A sombra”.480 Z, II, “Dos grandes acontecimentos”.481 Z, IV, “Do homem superior”.482 HEIDEGGER, Qu’appelle-t-on penser? (trad. BECKER e GRANEL, Presses Universitaires de France),
espera o superhomem para se determinar. Ela é determinada como humana,
demasiado humana. O homem tem como essência o devir reativo das forças. Mais
ainda, ele dá ao mundo uma essência, esse devir como devir universal. A essência do
homem, e do mundo ocupado pelo homem, é o devir reativo de todas as forças, o
niilismo e nada além do niilismo. O homem e sua atividade genérica, eis aí as duas
doenças de pele da terra.483
Resta perguntar: por que a atividade genérica, sua meta e seu produto são
essencialmente falhos? Por que só existem como malogrados? A resposta é simples,
caso se lembre que essa atividade quer adestrar as forças reativas, torná-las aptas a
serem agidas, torná-las elas próprias ativas. Ora, como seria viável esse projeto, sem
a potência de afirmar que constitui o devir-ativo? As forças reativas, por conta
própria, souberam achar o aliado que as conduz à vitória: o niilismo, o negativo, a
potência de negar, a vontade de nada que forma um devir-reativo universal.
Separadas de uma potência [195] de afirmar, as forças ativas nada podem de sua
parte, salvo devirem reativas por sua vez, ou se revirarem contra si mesmas. A
atividade delas, sua meta e seu produto são malogrados o tempo todo. Elas carecem
de uma vontade que as ultrapasse, de uma qualidade capaz de manifestar, de portar
sua superioridade. Só há devir-ativo pela e numa vontade que afirma, assim como só
há devir-reativo pela e numa vontade de nada. Uma atividade que não se eleva às
potências de afirmar, uma atividade que se confia tão somente ao trabalho do
negativo, está prometida ao fracasso; em seu princípio mesmo, ela vira seu contrário.
– Quando Zaratustra considera os homens superiores como hóspedes, companheiros,
prenunciadores, ele assim nos revela que o projeto deles não deixa de ter semelhança
com o seu: devir ativo. Mas logo aprendemos que essas declarações de Zaratustra
devem ser levadas a sério só pela metade. Elas se explicam pela piedade. De uma
ponta à outra do livro IV, os homens superiores não escondem de Zaratustra que lhe
estão pregando uma armadilha, que estão lhe trazendo uma última tentação. Deus
experimentava a piedade pelo homem, essa piedade foi a causa de sua morte; a
piedade pelo homem superior, é esta a tentação de Zaratustra, que lhe faria morrer por
pp. 53-55.483 Z, II, “Dos grandes acontecimentos”.
sua vez.484 Isso é dizer que, seja qual for a semelhança entre o projeto do homem
superior e o do próprio Zaratustra, uma instância mais profunda intervém, que
distingue em natureza as duas empreitadas.
O homem superior fica no elemento abstrato da atividade; ele jamais se eleva,
mesmo em pensamento, ao elemento da afirmação. O homem superior pretende
reverter os valores, converter a reação em ação. Zaratustra fala de outra coisa:
transmutar os valores, converter a negação em afirmação. Ora, nunca a reação devirá
ação sem essa conversão mais profunda: é primeiramente preciso que a negação
devenha potência de afirmar. Separada das condições que a tornariam viável, a
empreitada do homem superior é falha, não acidentalmente, mas por princípio e na
essência. Em vez de formar um devir-ativo, ela nutre o devir inverso, o devir-reativo.
Em vez de reverter os valores, muda-se de valores, [196] faz-se com que eles
permutem, mas guardando o ponto de vista niilista do qual derivam; em vez de
adestrar as forças e torná-las ativas, organiza-se associações de forças reativas.485
Inversamente, as condições que tornariam viável a empreitada do homem superior
são condições que mudariam sua natureza: a afirmação dionisíaca, não mais a
atividade genérica do homem. O elemento da afirmação, eis aí o elemento do
superhumano. O elemento da afirmação, eis aí o que falta ao homem, mesmo e
sobretudo ao homem superior. De quatro jeitos Nietzsche exprime simbolicamente
essa falta como a insuficiência no coração do homem: 1º) Há coisas que o homem
superior não sabe fazer: rir, jogar e dançar.486 Rir é afirmar a vida e, na vida, até
mesmo o sofrimento. Jogar é afirmar o acaso e, do acaso, a necessidade. Dançar é
afirmar o devir e, do devir, o ser; 2º) Os próprios homens superiores reconhecem o
484 Z, IV, “O grito de aflição”: “O último pecado que me foi reservado, sabes qual o nome dele? – Piedade, respondeu o adivinha com um coração transbordante, e levantou as duas mãos: Ó Zaratustra, venho para te levar ao teu último pecado!” – Z, IV, “O mais hediondo dos homens”: “Tu mesmo resguarda-te de tua própria piedade!... Conheço o machado que pode abatê-la.” E Z, IV, “O signo”: uma das últimas palavras de Zaratustra é: “Piedade, a piedade pelo homem superior!... Pois bem, já deu seu tempo.”
485 Cf. Z, IV, “A saudação”: Zaratustra diz aos homens superiores: “Em vós também há um populacho escondido.”
486 Z, IV, “Do homem superior”. – O jogo: “Vós falhastes um lance de dado. Mas que vos importa, a vós jogadores de dados! Vós não aprendestes a jogar e desafiar como se deve jogar e desafiar!” – A dança: “Mesmo a pior das coisas tem pernas boas para dançar: então aprendei vós mesmos, ó homens superiores, a ficarem de pé sobre vossas pernas!” – O riso: “Eu canonizei o riso: homens superiores, aprendei então a rir!”
jumento como seu “superior”. Eles o adoram como se ele fosse um deus; através de
sua velha maneira teológica de pensar, eles pressentem o que lhes falta e o que lhes
ultrapassa, o que é o mistério do jumento, o que seu grito e suas longas orelhas
escondem: o jumento é o animal que diz I-A, o animal afirmativo e afirmador, o
animal dionisíaco;487 3º) O simbolismo da sombra tem um sentido vizinho. A sombra
é a atividade do homem, mas ela precisa da luz como de uma instância mais alta: sem
esta, ela se dissipa; com esta, ela se transforma e lhe ocorre desaparecer de outro
jeito, mudando de natureza quando é meiodia;488 4º) Dos dois Cães de fogo, um é a
caricatura do outro. Um se ativa na superfície, no estardalhaço e na fumaça. Ele pega
sua comida na superfície, faz a lama entrar em ebulição: isso é dizer que sua
atividade serve apenas para nutrir, esquentar, manter no universo um devir-reativo,
um devir cínico. Mas o outro cão de fogo é animal afirmativo: “Este fala realmente
do coração da terra... O riso volteia em torno dele como uma nuvem colorida.”489
9) NIILISMO E TRANSMUTAÇÃO: O PONTO FOCAL
O reino do niilismo é poderoso. Ele se exprime nos valores superiores à vida,
mas também nos valores reativos que tomam o lugar daqueles, e ainda no mundo sem
valores do último dos homens. É sempre o elemento da depreciação que reina, o
negativo como vontade de potência, a vontade como vontade de nada. Mesmo
quando as forças reativas se erguem contra o princípio do seu triunfo, mesmo quando
elas culminam em um nada de vontade ao invés de uma vontade de nada, é sempre o
mesmo elemento que se manifestava no princípio, e que agora se nuança e se disfarça
na conseqüência ou no efeito. Vontade nenhuma, isso ainda é o último avatar da
vontade de nada. Sob o império do negativo, é sempre o conjunto da vida que é
depreciada, e a vida reativa que triunfa em particular. A atividade nada pode,
malgrado sua superioridade sobre as forças reativas; sob o império do negativo, ela
487 Z, IV, “O despertar”, “A festa do jumento”.[nt: As vogais i-a, como onomatopéia do zurro do jumento, também correspondem à pronúncia da palavra “Sim” em alemão: Ja.]
488 VS, cf. os diálogos de “A sombra e seu viajante”.489 Z, II, “Dos grandes acontecimentos”.
não tem outro expediente que não revirar-se contra si; separada do que pode, ela
mesma devém reativa, já não serve mais senão como alimento ao devir-reativo das
forças. E, na verdade, o devir-reativo das forças é também o negativo como qualidade
da vontade de potência. – Sabe-se o que Nietzsche chama de transmutação,
transvaloração: não uma mudança de valores, mas uma mudança no elemento do qual
deriva o valor dos valores. A apreciação em vez da depreciação, a afirmação como
vontade de potência, a vontade como vontade afirmativa. Enquanto se fica no
elemento do negativo, de nada vale mudar os valores ou até suprimi-los, de nada vale
matar Deus: guarda-se o lugar e o atributo dele, conserva-se o sagrado e o divino,
mesmo que se deixe o lugar vazio e o predicado não atribuído. Mas quando se muda
o elemento, aí então, e somente então, pode-se dizer que se revirou todos os valores
conhecidos ou conhecíveis até esse dia. Venceu-se o niilismo: a atividade reencontra
seus direitos, mas somente em entrelace e em afinidade com a instância mais
profunda do qual eles derivam. O devir-ativo aparece no universo, mas idêntico à
afirmação como vontade de potência. A questão é: como vencer o niilismo? Como
mudar o próprio elemento dos valores, como substituir a negação pela afirmação?
Talvez estejamos mais perto de uma solução do que podemos acreditar.
Observar-se-á que, para Nietzsche, todas as formas do niilismo anteriormente
analisadas, até mesmo a forma [198] extrema ou passiva, constituem um niilismo
inacabado, incompleto. Não seria o mesmo dizer, inversamente, que a transmutação,
que vence o niilismo, é a única forma completa e acabada do próprio niilismo? Com
efeito, o niilismo é vencido, mas vencido por si mesmo.490 Nós nos aproximaremos de
uma solução na medida em que compreendermos por que a transmutação constitui o
niilismo acabado. – Uma primeira razão pode ser invocada: é somente mudando o
elemento dos valores que se destrói todos aqueles que dependem do velho elemento.
A crítica dos valores conhecidos até esse dia é uma crítica radical e absoluta,
excluindo qualquer compromisso, caso se a conduza em nome de uma transmutação,
a partir de uma transmutação. A transmutação seria, então, um niilismo acabado,
“totalizante”. Mas tal interpretação ainda não nos diz por que a transmutação é 490 VP, liv. III. – VP, I, 22: “Tendo levado em si mesmo o niilismo até seu termo, ele o colocou
atrás de si, abaixo de si, fora de si.”
niilista, não apenas por suas conseqüências, mas nela mesma e por ela mesma.
Os valores que dependem desse velho elemento do negativo, os valores que
tombam sob a crítica radical, são todos os valores conhecidos ou conhecíveis até esse
dia. “Até esse dia” designa o dia da transmutação. Mas o que significa: todos os
valores conhecíveis? O niilismo é a negação como qualidade da vontade de potência.
Todavia, essa definição permanece insuficiente, caso não se leve em conta o papel e a
função do niilismo: a vontade de potência aparece no homem e nele se dá a conhecer
como uma vontade de nada. E, pra dizer a verdade, pouca coisa saberíamos sobre a
vontade de potência se não apreendêssemos sua manifestação no ressentimento, na
má consciência, no ideal ascético, no niilismo que nos força a conhecê-la. A vontade
de potência é espírito, mas o que saberíamos do espírito sem o espírito de vingança
que nos revela estranhos poderes? A vontade de potência é corpo, mas o que
saberíamos do corpo sem a doença que nos faz conhecê-lo? Assim o niilismo, a
vontade de nada, não é somente uma vontade de potência, uma qualidade de vontade
de potência, mas a ratio cognoscendi [razão de conhecer] da vontade de potência em
geral. Todos os valores conhecidos e conhecíveis são, por natureza, valores que
derivam dessa razão. – Se o niilismo nos faz conhecer a vontade de potência, esta
inversamente nos ensina que ela nos é [199] conhecida sob uma única forma, sob a
forma do negativo que constitui apenas uma face dela, uma qualidade. “Pensamos” a
vontade de potência sob uma forma distinta daquela em que a conhecemos (assim, o
pensamento do eterno retorno ultrapassa todas as leis do nosso conhecimento).
Longínqua sobrevivência dos temas de Kant e de Schopenhauer: o que conhecemos
da vontade de potência é também dor e suplício, mas a vontade de potência ainda é a
alegria desconhecida, a felicidade desconhecida, o deus desconhecido. Ariadne canta
em seu lamento: “Curvo-me e torço-me, atormentada por todos os eternos martírios,
abatida por ti, o mais cruel caçador, tu, o deus – desconhecido... Fala enfim, tu que te
escondes atrás dos relâmpagos? Desconhecido! Fala! Que queres...? Ó regressa, meu
deus desconhecido! Minha dor! Minha última felicidade.”491 A outra face da vontade
de potência, a face desconhecida, a outra qualidade da vontade de potência, a
491 DD, “Lamento de Ariadne”.
qualidade desconhecida: a afirmação. E a afirmação, por sua vez, não é somente uma
vontade de potência, uma qualidade de vontade de potência, ela é ratio essendi [razão
de ser] da vontade de potência em geral. Ela é ratio essendi de toda a vontade de
potência, portanto razão que expulsa o negativo dessa vontade, como a negação era
ratio cognoscendi de toda a vontade de potência (portanto razão que não faltava em
eliminar o afirmativo do conhecimento dessa vontade). Da afirmação derivam os
novos valores: valores desconhecidos até esse dia, ou seja, até o momento em que o
legislador toma o lugar do “cientista”, a criação o lugar do próprio conhecimento, a
afirmação o lugar de todas as negações conhecidas. – Vê-se, então, que entre o
niilismo e a transmutação há um entrelace mais profundo que aquele que
indicávamos de início. O niilismo exprime a qualidade do negativo como ratio
cognoscendi da vontade de potência; mas ele não se acaba sem transmutar-se na
qualidade contrária, na afirmação como ratio essendi dessa mesma vontade.
Transmutação dionisíaca da dor em alegria, que Dioniso, em resposta a Ariadne,
anuncia com o mistério conveniente: “Primeiro não é preciso odiar-se, caso se deva
amar-se?”492 Ou seja: não deves tu conhecer-me como negativo se deves
experimentar-me como afirmativo, esposar-me como o afirmativo, pensar-me como a
afirmação?
Mas por que a transmutação é o niilismo acabado, se é verdade que ela se
contenta em substituir um elemento por um [200] outro? Uma terceira razão deve
intervir aqui, que corre o risco de passar despercebida de tão sutis ou minuciosas que
devêm as distinções de Nietzsche. Retomemos a história do niilismo e de seus
estágios sucessivos: negativo, reativo, passivo. As forças reativas devem seu triunfo à
vontade de nada; uma vez adquirido o triunfo, elas quebram sua aliança com essa
vontade, sozinhas elas querem fazer valerem seus próprios valores. Eis aí o grande
acontecimento ruidoso: o homem reativo no lugar de Deus. Sabe-se qual o
expediente: o último dos homens, aquele que prefere um nada de vontade, apagar-se
passivamente, ao invés de uma vontade de nada. Mas esse expediente é um
expediente para o homem reativo, não para a própria vontade de nada. Esta prossegue
492 DD, “Lamento de Ariadne”.
sua empreitada, desta vez em silêncio, para além do homem reativo. As forças
reativas quebrando sua aliança com a vontade de nada, esta, por sua vez, quebra sua
aliança com as forças reativas. Ela inspira um novo gosto no homem: destruir-se,
mas destruir-se ativamente. Sobretudo não se confundirá o que Nietzsche chama de
auto-destruição, destruição ativa, com a extinção passiva do último dos homens. Não
se confundirá, na terminologia de Nietzsche, “o último dos homens” e “o homem que
quer perecer”.493 Um é o último produto do devir reativo, o último jeito pelo qual o
homem reativo se conserva, estando lasso de querer. O outro é o produto de uma
seleção, que sem dúvida passa pelos últimos homens, mas que não pára nisso.
Zaratustra canta o homem da destruição ativa: ele quer ser superado, ele vai além do
humano, já na rota do superhomem, “transpondo a ponte”, pai e ancestral do
superhumano. “Eu amo aquele que vive para conhecer e quer conhecer, a fim de que
um dia viva o superhomem. Assim ele quer seu próprio declínio.”494 Zaratustra quer
dizer: amo aquele que se serve do niilismo como que da ratio cognoscendi da
vontade de potência, mas que acha na vontade de potência uma ratio essendi na qual
o homem é superado e o niilismo, portanto, é vencido.
A destruição ativa significa: o ponto, o momento de transmutação na vontade
de nada. A destruição devém ativa no momento em que, tendo sido quebrada a
aliança entre as forças reativas e a vontade de nada, esta se converte e passa pro lado
da afirmação, entrelaça-se a uma potência de afirmar que destrói [201] as próprias
forças reativas. A destruição devém ativa na medida em que o negativo é
transmutado, convertido em potência afirmativa: “eterna alegria do devir” que se
declara em um instante, “alegria da aniquilação”, “afirmação da aniquilação e da
destruição”.495 É este o “ponto decisivo” da filosofia dionisíaca: o ponto onde a
negação exprime uma afirmação da vida, destrói as forças reativas e restaura a
atividade em seus direitos. O negativo devém o trovão e o relâmpago de uma
potência de afirmar. Ponto supremo, focal ou transcendente, Meianoite, que em
493 Sobre a destruição ativa, VP, III, 8 e 102. – Como Zaratustra opõe “o homem que quer perecer” aos últimos homens ou “predicadores da morte”: Z, Prólogo, 4 e 5; I, “Dos predicadores da morte”.
494 Z, Prólogo, 4.495 EH, III, “Origem da tragédia”, 3.
Nietzsche não se define por um equilíbrio ou uma reconciliação dos contrários, mas
por uma conversão. Conversão do negativo em seu contrário, conversão da ratio
cognoscendi na ratio essendi da vontade de potência. Perguntávamos: por que a
transmutação é o niilismo acabado? É porque na transmutação não se trata de uma
simples substituição, mas de uma conversão. É passando pelo último dos homens,
mas é também indo além que o niilismo acha seu acabamento: no homem que quer
perecer. No homem que quer perecer, que quer ser superado, a negação rompeu tudo
que ela inda retinha, ela mesma se venceu, ela deveio potência de afirmar, potência já
do superhumano, potência que anuncia e prepara o superhomem. “Poderíeis
transformar-vos em pais e ancestrais do Superhomem: que isto seja o melhor de vossa
obra!”496 A negação fazendo o sacrifício de todas as forças reativas, devindo
“destruição impiedosa de tudo que apresenta caráteres degenerados e parasitários”,
passando a serviço de um excedente da vida:497 é só aí que ela acha seu acabamento.
10) A AFIRMAÇÃO E A NEGAÇÃO
Transmutação, transvaloração significam: 1º) Mudança de qualidade na
vontade de potência. Os valores, e o valor deles, não mais derivam do negativo, mas
da afirmação como tal. Afirma-se a vida em lugar de depreciá-la; e também a
expressão “em lugar de” é faltosa. É o lugar mesmo que muda, não há mais lugar
para um outro mundo. É o elemento dos valores [202] que muda de lugar e de
natureza, o valor dos valores que muda de princípio, é toda a avaliação que muda de
caráter; 2º) Passagem da ratio cognoscendi à ratio essendi na vontade de potência. A
razão sob a qual a vontade de potência é conhecida não é a razão sob a qual ela é.
Pensaremos a vontade de potência tal como ela é, pensaremo-la como ser, na medida
em que nos servirmos da razão de conhecer como de uma qualidade que passa pro
seu contrário, e acharmos nesse contrário a razão desconhecida de ser; 3º) Conversão
do elemento na vontade de potência. O negativo devém potência de afirmar: ele se
subordina à afirmação, passa a serviço de um excedente da vida. A negação não mais 496 Z, II, “Sobre as ilhas bem-aventuradas”.497 EH, III, “Origem da tragédia”, 3-4.
é a forma sob a qual a vida conserva tudo que é reativo nela, mas ao contrário, o ato
pelo qual ela sacrifica todas as suas formas reativas. O homem que quer perecer, o
homem que quer ser superado: nele a negação muda de sentido, ela deveio potência
de afirmar, condição preliminar ao desenvolvimento do afirmativo, signo
prenunciador e servidor zeloso da afirmação como tal; 4º) Reino da afirmação na
vontade de potência. Só a afirmação subsiste enquanto potência independente; o
negativo emana dela como o relâmpago, mas nela também se absorve, nela
desaparece como um fogo solúvel. No homem que quer perecer, o negativo
anunciava o superhumano, mas só a afirmação produz o que o negativo anuncia.
Nenhuma outra potência que não de afirmar, nenhuma outra qualidade, nenhum outro
elemento: a negação é inteiramente convertida em sua substância, transmutada em
sua qualidade, nada subsiste de sua própria potência ou de sua autonomia.
Conversão do pesado em leve, do baixo em alto, da dor em alegria: essa trindade da
dança, do jogo e do riso forma, de uma só vez, a transubstanciação do nada, a
transmutação do negativo, a transvaloração ou mudança de potência da negação. O
que Zaratustra chama de “a Cena”; 5º) Crítica dos valores conhecidos. Os valores
conhecidos até esse dia perdem todo seu valor. Aqui a negação reaparece, mas sempre
sob a espécie de uma potência de afirmar, como a conseqüência inseparável da
afirmação e da transmutação. A afirmação soberana não se separa da destruição de
todos os valores conhecidos, ela faz dessa destruição uma destruição total; 6º)
Reversão do entrelace das forças. A afirmação constitui um devir-ativo como devir
universal das forças. As forças reativas são negadas, todas as forças devêm ativas. A
reversão dos valores, a desvalorização dos valores reativos e a instauração de valores
ativos são outras tantas operações [203] que supõem a transmutação dos valores, a
conversão do negativo em afirmação.
Talvez estejamos à altura para compreender os textos de Nietzsche que
concernem à afirmação, à negação e aos seus entrelaces. Em primeiro lugar, a
negação e a afirmação se opõem como duas qualidades da vontade de potência, duas
razões na vontade de potência. Cada uma é o contrário, mas também o todo que
exclui o outro contrário. Dizer da negação que ela dominou nosso pensamento,
nossas maneiras de sentir e de avaliar até esse dia, é pouco. Na verdade, ela é
constitutiva do homem. E com o homem, é o mundo inteiro que se abisma e devém
doente, é a vida inteira que é depreciada, todo o conhecido que desliza rumo ao seu
próprio nada. Inversamente, a afirmação só se manifesta acima do homem, fora do
homem, no superhumano que ela produz, no desconhecido que ela traz consigo. Mas
o superhumano, o desconhecido, é também o todo que enxota o negativo. O
superhomem como espécie é também “a espécie superior de tudo aquilo que é”.
Zaratustra diz sim e amém “de um jeito enorme e ilimitado”, ele próprio é “a eterna
afirmação de todas as coisas”.498 “Eu abençoo e afirmo sempre, contanto que tu
estejas ao redor de mim, céu claro, abismo de luz! Eu levo em todas as voragens
minha afirmação que abençoa.”499 Enquanto reina o negativo, em vão se ficaria
procurando o grão de uma afirmação aqui embaixo e no outro mundo: o que se chama
afirmação é grotesco, triste fantasma agitando as correntes do negativo.500 Mas
quando a transmutação sobrevém, é a negação que se dissipa, dela nada subsiste
como potência independente, nem em qualidade nem em razão: “Constelação
suprema do ser, que nenhum anseio alcança, que nenhuma negação suja, eterna
afirmação do ser, eternamente eu sou tua afirmação.”501
Mas então, por que ocorre a Nietzsche apresentar a afirmação como
inseparável de uma condição preliminar negativa, e também de uma conseqüência
próxima negativa? “Eu conheço a alegria de destruir a um grau que é conforme à
minha força de destruição.”502 1º) Nada de afirmação que não seja [204]
imediatamente seguida de uma negação não menos enorme e ilimitada do que ela
própria. Zaratustra se eleva a este “supremo grau de negação”. A destruição como
destruição ativa de todos os valores conhecidos é o rastro do criador: “Vede os bons e
os justos! O que eles mais odeiam? Aquele que quebra a tábua dos valores deles, o
destruidor, o criminoso: ora, é ele o criador.” 2º) Nada de afirmação que não se faça
498 EH, III, “Assim Falou Zaratustra”, 6.499 Z, III, “Antes do nascer do sol”.500 VP, IV, 14: “Será preciso estimar com a maior justeza os únicos aspectos da existência até
então afirmados; compreender de onde vem essa afirmação e o quanto ela é pouco convincente, assim que se trata de uma avaliação dionisíaca da existência.”
501 DD, “Glória e eternidade”.502 EH, IV, 2.
preceder, também, por uma negação imensa: “Uma das condições essenciais da
afirmação, é a negação e a destruição.” Zaratustra diz: “Eu devim aquele que abençoa
e que afirma, e por muito tempo lutei por isso.” O leão devém criança, mas o “sim
sagrado” da criança deve ser precedido pelo “não sagrado” do leão.503 A destruição
como destruição ativa do homem que quer perecer e ser superado é o anúncio do
criador. Separada dessas duas negações, a afirmação nada é, ela mesma impotente
para se afirmar.504
Ter-se-ia podido acreditar que o jumento, o animal que diz I-A, era o animal
dionisíaco por excelência. De fato, não é nada disso; sua aparência é dionisíaca, mas
toda sua realidade é cristã. Ele só é bom pra servir de deus aos homens superiores:
sem dúvida, ele representa a afirmação como o elemento que ultrapassa os homens
superiores, mas a desfigura à sua imagem e pras suas necessidades. Ele sempre diz
sim, mas não sabe dizer não. “Eu honro as línguas e os estômagos recalcitrantes e
difíceis que aprenderam a dizer: eu e sim e não. Mas todo mastigar e todo digerir é
bom pros porcos! Sempre dizer I-A, foi isso que nos ensinaram os jumentos e os da
sua espécie!”505 Ocorre uma vez a Dioniso, por gracejo, dizer a Ariadne que ela tem
orelhas pequenas demais: ele quer dizer que ela ainda não sabe afirmar nem
desenvolver a afirmação.506 Mas, realmente, o próprio Nietzsche se gaba de ter a
orelha pequena: “Isso não deixará de interessar um pouco as mulheres. Parece-me
que elas se sentirão melhor compreendidas por mim. Eu sou o anti-jumento por
excelência, o que faz de mim um monstro histórico. Sou [205] em grego, e não só em
grego, o anti-cristão.”507 Ariadne, até mesmo Dioniso têm orelhas pequenas, pequenas
orelhas circulares propícias ao eterno retorno. É que as compridas orelhas pontudas
não são as melhores: elas não sabem recolher “a palavra esperta”, nem dar a ela todo
503 Z, I, “Das três metamorfoses”.504 Cf. EH: como a negação sucede à afirmação (III, “Além do Bem e do Mal”: “Após ter cumprido
a parte afirmativa dessa tarefa, era a vez da parte negativa...” – Como a negação precede a afirmação (III, “Assim Falou Zaratustra”, 8; e IV, 2 e 4).
505 Z, III, “Do espírito de pesadume”.506 Cr. Id., “Perambuleios intelectuais”, 19: “Ó Dioniso divino, por que puxas minhas orelhas?
perguntou um dia Ariadne ao seu filosófico amante, num desses célebres diálogos sobre a ilha de Naxos. – Tem uma coisa engraçada nas tuas orelhas, Ariadne: por que não são ainda mais compridas?”
507 EH, III, 3.
seu eco.508 A palavra esperta é sim, mas um eco a precede e a segue, que é não. O sim
do jumento é um falso sim: sim que não sabe dizer não, sem eco nos sins do jumento,
afirmação separada das duas negações que deveriam rodeá-la. O jumento não sabe
formular a afirmação nem tampouco suas orelhas sabem recolhê-la, ela e seus ecos.
Zaratustra diz: “Minha estrofe não será para as orelhas de todo mundo. Faz muito
tempo que desaprendi a levar em consideração as orelhas compridas.”509
Não se verá contradição no pesamento de Nietzsche. Por um lado, Nietzsche
anuncia a afirmação dionisíaca que nenhuma negação suja. Por outro lado, ele
denuncia a afirmação do jumento que não sabe dizer não, que não comporta negação
alguma. Num caso, a afirmação nada deixa subsistir da negação como potência
autônoma ou como qualidade primeira: o negativo é inteiramente expulso da
constelação do ser, do círculo do eterno retorno, da própria vontade de potência e de
sua razão de ser. Porém, no outro caso, a afirmação jamais seria real, e nem completa,
se ela não se fizesse preceder e seguir pelo negativo. Trata-se, então, de negações,
mas de negações como potências de afirmar. Nunca a afirmação se afirmaria, se
primeiramente a negação não quebrasse sua aliança com as forças reativas e não
deviesse potência afirmativa no homem que quer perecer; e, em seguida, se a negação
não reunisse, não totalizasse os valores reativos para destruí-los de um ponto de vista
que afirma. Sob essas duas formas, o negativo deixa de ser uma qualidade primeira e
uma potência autônoma. Todo negativo deveio potência de afirmar, ele nada mais é
que a maneira de ser da afirmação como tal. Eis por que Nietzsche tanto insiste na
distinção do ressentimento, potência de negar que se exprime nas forças reativas, e da
agressividade, maneira de ser ativa de uma potência de afirmar.510 De uma ponta a
outra de Zaratustra, o próprio Zaratustra [206] é seguido, imitado, tentado,
comprometido pelo seu “macaco”, seu “palhaço”, seu “anão”, seu “demônio”.511 Ora,
508 DD, “Lamento de Ariadne”: “Dioniso: Tu tens orelhas pequenas, tens minhas orelhas, meta aí uma palavra esperta.”
509 Z, IV, “Conversa com os reis”. – E IV, “Do homem superior”: “As orelhas compridas do populacho”.
510 EH, I, 6 e 7.511 Z, Prólogo, 6, 7, 8 (primeiro encontro com o palhaço, que diz a Zaratustra: “Tu falaste como
um palhaço”). – II, “A criança do espelho” (Zaratustra sonha que, olhando-se num espelho, está vendo o rosto do palhaço. “Na verdade, compreendo bem demais o sentido e a advertência desse sonho: minha doutrina está em perigo, o joio quer se chamar trigo. Meus inimigos ficaram poderosos e desfiguraram a imagem da minha doutrina”). – III, “Da visão e
o demônio é o niilismo: porque ele nega tudo, despreza tudo, também ele acredita
levar a negação até o grau supremo. Mas vivendo da negação como de uma potência
independente, não tendo outra qualidade além do negativo, ele é tão somente criatura
do ressentimento, do ódio e da vingança. Zaratustra lhe diz: “Desprezo teu desprezo...
É só do amor que pode me chegar a vontade do meu desprezo e do meu pássaro
admoestador: mas não do lodaçal.”512 Isso quer dizer: é tão somente como potência de
afirmar (amor) que o negativo alcança seu grau superior (o pássaro admoestador que
precede e segue a afirmação); enquanto o negativo for para si mesmo sua própria
potência ou sua própria qualidade, ele estará no lodaçal, e ele mesmo será lodaçal
(forças reativas). É tão somente sob o império da afirmação que o negativo é elevado
ao seu grau superior, ao mesmo tempo em que ele se vence: ele subsiste não mais
como potência e qualidade, mas como maneira de ser daquele que é potente. Aí então,
e somente então, o negativo é a agressividade, a negação devém ativa, a destruição
alegre.513
Dá pra ver onde Nietzsche quer chegar e a quem ele se opõe. Ele se opõe a
qualquer forma de pensamento que se confie à potência do negativo. Ele se opõe a
qualquer pensamento que se mova no elemento do negativo, que se sirva da negação
como de um motor, de uma potência e de uma qualidade. Assim como outros têm o
vinho triste, esse pensamento tem a destruição triste, o trágico triste: ele é e continua
sendo pensamento do ressentimento. A tal pensamento, é preciso duas negações para
fazer uma afirmação, ou seja, uma aparência de afirmação, um fantasma de
afirmação. (Assim, o ressentimento precisa de suas duas premissas negativas para
concluir pela pretensa positividade de sua conseqüência. Ou então o ideal ascético
precisa do ressentimento e da má consciência, como de duas premissas negativas,
para concluir pela pretensa positividade do divino. Ou então a atividade genérica do
homem precisa duas [207] vezes do negativo para concluir pela pretensa positividade
das reapropriações.) Tudo é falso e triste nesse pensamento representado pelo palhaço
do enigma” (segundo encontro com o anão-palhaço, perto do pórtico do eterno retorno). – III, “Passando” (terceiro encontro: “A fala de louco me aborrece, mesmo quando tu tens razão”).
512 Z, III, “Passando”.513 EH, III, “A Origem da Tragédia”, “Assim Falou Zaratustra”.
de Zaratustra: nele a atividade é apenas uma reação, a afirmação, um fantasma.
Zaratustra lhe opõe a afirmação pura: é preciso e basta a afirmação para fazer duas
negações, duas negações que fazem parte das potências de afirmar, que são as
maneiras de ser da afirmação como tal. E, de um outro jeito, nós veremos, é preciso
duas afirmações para fazer da negação em seu conjunto uma maneira de afirmar. –
Contra o ressentimento do pensador cristão, a agressividade do pensador dionisíaco.
À famosa positividade do negativo, Nietzsche opõe sua própria descoberta: a
negatividade do positivo.
11) O SENTIDO DA AFIRMAÇÃO
A afirmação, segundo Nietzsche, comporta duas negações: mas exatamente da
maneira contrária à da dialética. Não deixa de subsistir um problema: por que é
preciso que a afirmação pura comporte essas duas negações? Por que a afirmação do
jumento é uma falsa afirmação, na medida mesma em que ela não sabe dizer não? –
Voltemos à litania do jumento tal como a canta o mais hediondo dos homens.514
Distingue-se aí dois elementos: de um lado, o pressentimento da afirmação como
daquilo que falta aos homens superiores (“Que sabedoria oculta é essa, então, de ter
orelhas compridas e sempre dizer sim e nunca não?... Teu reino está além do bem e
do mal”). Mas, de outro lado, um contrassenso, tal como os homens superiores são
capazes de fazer, sobre a natureza da afirmação: “Ele carrega nossos fardos, ele
ganhou a figura de servidor, ele é paciente de coração e nunca diz não.”
Com isso, o jumento é também o camelo; é sob os traços do camelo que
Zaratustra, no início do primeiro livro, apresentava “o espírito corajoso” que exige os
fardos mais pesados.515 A lista das forças do jumento e a das forças do camelo são
vizinhas: a humildade, a aceitação da dor e da doença, a paciência a respeito daquele
que castiga, o gosto pelo verdadeiro mesmo que a verdade dê nozes e cardos para
comer, o amor pelo real mesmo que esse real seja um deserto. Aqui também o
514 Z, IV, “O despertar”.515 Z, I, “Das três metamorfoses”.
simbolismo de Nietzsche deve [208] ser interpretado, recortado por outros textos.516
O jumento e o camelo não têm somente forças para carregar os fardos mais pesados,
eles têm costas para estimar, para avaliar o peso disso. Esses fardos lhes parecem ter
o peso do real. O real tal como ele é, eis como o jumento experimenta sua carga. É
por isso que Nietzsche apresenta o jumento e o camelo como impermeáveis a todas as
formas de sedução e de tentação: são sensíveis apenas ao que eles têm nas costas, ao
que eles chamam de real. Adivinha-se, então, o que significa a afirmação do Jumento,
o sim que não sabe dizer não: aqui afirmar nada é além de carregar, assumir.
Aquiescer ao real tal como ele é, assumir a realidade tal como ela é.
O real tal como ele é, isso é uma ideia de jumento. O jumento experimenta
como a positividade do real o peso dos fardos de que ele foi encarregado, de que ele
se encarrega. Eis o que se passa: o espírito de pesadume é o espírito do negativo, o
espírito conjugado do niilismo e das forças reativas; em todas as virtudes cristãs do
jumento, em todas as forças que lhe servem para carregar, o olho exercido não sofre
dissabores para descobrir o reativo; em todos os fardos que ele carrega, o olho esperto
vê os produtos do niilismo; mas o jumento nada apreende exceto conseqüências
separadas de suas premissas, produtos separados do princípio de sua produção, forças
separadas do espírito que as anima. Então, os fardos lhe parecem ter a positividade do
real, como as forças das quais ele é dotado lhe parecem ser as qualidades positivas
que correspondem a uma assunção do real e da vida. “Desde o berço, já nos dotam de
palavras pesadas e valores pesados; bem e mal, assim se nomeia esse patrimônio... E
nós, nós puxamos fielmente isso de que nos encarregam, sobre ombros fortes e por
cima de áridas montanhas! E quando transpiramos, dizem-nos: Sim, a vida é pesada
pra carregar.”517 O jumento é primeiramente Cristo: é Cristo quem se encarrega dos
mais pesados fardos, é ele quem carrega os frutos do negativo como se contivessem o
mistério positivo por excelência. Aí, quando o homem toma o lugar de Deus, o
jumento devém livre pensador. Ele se apropria de tudo que lhe colocam nas costas.
Nem mais é preciso encarregá-lo, ele mesmo se encarrega. Ele recupera o Estado, a
516 Dois textos retomam e explicam os temas do fardo e do deserto: Z, II, “Do país da cultura”, e III, “Do espírito de pesadume”.
517 Z, III, “Do espírito de pesadume”.
religião &c., como suas próprias potências. Ele deveio Deus: todos os velhos valores
do outro mundo lhe aparecem agora como forças que conduzem este mundo aqui,
como suas próprias forças. O peso do fardo se [209] confunde com o peso de seus
músculos cansados. Assumindo o real ele mesmo se assume, assumindo-se ele
assume o real. Um gosto estarrecedor pelas responsabilidades, é toda a moral que
revém a galope. Mas nesse expediente, o real e sua assunção continuam sendo o que
são, falsa positividade e falsa afirmação. Frente aos “homens desse tempo”,
Zaratustra diz: “Tudo que é inquietante no porvir, e tudo que sempre assustou os
pássaros tresmalhados, é na verdade mais familiar e mais seguro do que vossa
realidade. Pois é assim que falais: Estamos inteiramente presos ao real, sem crença
nem superstição. É assim que encheis o papo sem nem sequer terem papo! Sim, e
como poderíeis acreditar, sarapintados como sois, vós que sois pinturas de tudo em
que jamais se acreditou... Seres efêmeros, é assim que eu vos chamo, vós os homens
da realidade!... Sois homens estéreis... Sois portas entreabertas diante das quais os
coveiros esperam. E eis aí a vossa realidade...”518 Os homens desse tempo ainda
vivem sob uma velha ideia: é real e positivo tudo que pesa, é real e afirmativo tudo
que carrega. Mas essa realidade, que reúne o camelo e seu fardo a ponto de confundi-
los numa mesma miragem, é tão somente o deserto, a realidade do deserto, o
niilismo. Zaratustra já dizia do camelo: “Tão logo encarregado, ele se apressa rumo
ao deserto”. E do espírito corajoso, “vigoroso e paciente”: “até que a vida lhe pareça
um deserto”.519 O real compreendido como objeto, meta e término da afirmação; a
afirmação compreendida como adesão ou aquiescência ao real, como assunção do
real: é este o sentido do zurro. Mas essa afirmação é uma afirmação de conseqüência,
conseqüência de premissas eternamente negativas, um sim de resposta, resposta ao
espírito de pesadume e a todas as suas solicitações. O jumento não sabe dizer não;
mas primeiramente ele não sabe dizer não ao próprio niilismo. Ele recolhe todos os
produtos deste, ele os carrega no deserto e lá os batiza: o real tal como ele é. Eis por
que Nietzsche pode denunciar o sim do jumento: o jumento não se opõe
absolutamente ao macaco de Zaratustra, ele não desenvolve outra potência além da 518 Z, II, “Do país da cultura”.519 Z, I, “Das três metamorfoses”, e III, “Do espírito de pesadume”.
potência de negar, ele responde fielmente a essa potência. Ele não sabe dizer não, ele
sempre responde sim, mas responde sim cada vez que o niilismo engaja a
conversação.
Nessa crítica da afirmação como assunção, [210] Nietzsche não está
simplesmente nem longinquamente pensando em concepções estóicas. O inimigo está
mais próximo. Nietzsche conduz a crítica contra qualquer concepção da afirmação
que faria desta uma simples função, função do ser ou daquilo que é. Seja qual for a
maneira que se conceba este ser: como verdadeiro ou como real, como númeno ou
fenômeno. E seja qual for a maneira que se conceba esta função: como
desenvolvimento, exposição, desvelamento, revelação, realização, tomada de
consciência ou conhecimento. Desde Hegel a filosofia se apresenta como uma
mistura bizarra de ontologia e de antropologia, de metafísica e de humanismo, de
teologia e de ateísmo, teologia da má consciência e ateísmo do ressentimento . É que
quando a afirmação é apresentada como uma função do ser, o próprio homem aparece
como o funcionário da afirmação: o ser se afirma no homem ao mesmo tempo que o
homem afirma o ser. Quando a afirmação é definida por uma assunção, ou seja, um
encargo, ela estabelece entre o homem e o ser uma relação dita fundamental, um
entrelace atlético e dialético. Aqui também, com efeito e pela última vez, não há
dissabores para identificar o inimigo que Nietzsche combate: é a dialética que
confunde a afirmação com a veracidade do verdadeiro ou a positividade do real; e
essa veracidade, essa positividade, é a própria dialética quem primeiro as fabrica com
os produtos do negativo. O ser da lógica hegeliana é o ser tão somente pensado, puro
e vazio, que se afirma passando em seu próprio contrário. Mas nunca este ser foi
diferente desse contrário, nunca ele teve de passar naquilo que ele já era. O ser
hegeliano é o nada puro e simples; e o devir que este ser forma com o nada, ou seja,
consigo próprio, é um devir perfeitamente niilista; e aqui a afirmação passa pela
negação porque ela é tão somente a afirmação do negativo e de seus produtos.
Feuerbach levou bem longe a refutação do ser hegeliano. A uma verdade tão somente
pensada, ele substitui a verdade do sensível. Ao ser abstrato, ele substitui o ser
sensível, determinado, real, “o real em sua realidade”, “o real enquanto real”. Ele
queria que o ser real fosse o objeto do ser real: a realidade total do ser como objeto do
ser real e total do homem. Ele queria o pensamento afirmativo, e compreendia a
afirmação como o posicionamento daquilo que é.520 Mas esse real tal como ele é, em
Feuerbach, conserva todos os atributos do niilismo como o predicado do divino; o ser
[211] real do homem conserva todas as propriedades reativas como a força e o gosto
de assumir esse divino. Nos “homens desse tempo”, nos “homens da realidade”,
Nietzsche denuncia a dialética e os dialéticos: pintura de tudo aquilo em que jamais
se acreditou.
Nietzsche quer dizer três coisas: 1ª) O ser, o verdadeiro, o real são avatares do
niilismo. Maneiras de mutilar a vida, negá-la, torná-la reativa submetendo-a ao
trabalho do negativo, encarregando-a dos mais pesados fardos. Nietzsche não
acredita na autossuficiência do real nem tampouco na do verdadeiro: ele as pensa
como as manifestações de uma vontade, vontade de depreciar a vida, vontade de opor
a vida à vida; 2ª) A afirmação concebida como assunção, como afirmação daquilo que
é, como veracidade do verdadeiro ou positividade do real, é uma falsa afirmação. É o
sim do jumento. O jumento não sabe dizer não, mas porque diz sim a tudo que é não.
O jumento ou o camelo são o contrário do leão; no leão, a negação devinha potência
de afirmar, mas neles a afirmação fica a serviço do negativo, simples potência de
negar; 3ª) Essa falsa concepção da afirmação ainda é um jeito de conservar o homem.
Quando o ser é um encargo, lá está o homem para carregá-lo. Onde o ser melhor se
afirmaria do que no deserto? E onde o homem melhor se conservaria? “O último
homem vive mais tempo.” Sob o sol do ser ele perde até o gosto de morrer,
afundando-se no deserto para ali ficar um tempão sonhando com uma extinção
passiva.521 – Toda a filosofia de Nietzsche se opõe aos postulados do ser, do homem e
da assunção. “O ser: dele não temos outra representação além do fato de viver. Como
520 FEUERBACH, “Contribuição à crítica da filosofia de Hegel”, e “Princípios da filosofia do porvir” (Manifestes philosophiques, trad. ALTHUSSER, Presses Universitaires de France).
521 Heidegger dá uma interpretação da filosofia nietzscheana mais próxima do seu pensamento do que do pensamento de Nietzsche. Na doutrina do eterno retorno e do superhomem, Heidegger vê a determinação “do entrelace do Ser ao ser do homem como relação deste ser ao Ser” (cf. Qu’appelle-t-on penser?, p. 81). Essa interpretação negligencia toda a parte crítica da obra de Nietzsche. Ela negligencia tudo contra o qual Nietzsche lutou. Nietzsche se opõe a qualquer concepção da afirmação que acharia o fundamento no Ser, e a determinação no ser do homem.
aquilo que está morto poderia ser?”522 O mundo nem é verdadeiro, nem real, mas
vivo. E o mundo vivo é vontade de potência, vontade do falso que se efetua sob
potências diversas. Efetuar a vontade do falso sob uma potência qualquer, a vontade
de potência sob uma qualidade qualquer, é sempre avaliar. Viver é avaliar. Não há
verdade do mundo pensado nem realidade do mundo sensível, tudo é avaliação,
mesmo e sobretudo o sensível e o [212] real. “A vontade de parecer, de dar ilusão, de
enganar, a vontade de devir e de mudar (ou a ilusão objetivada) é considerada, neste
livro, como mais profundo, mais metafísico que a vontade de ver o verdadeiro, a
realidade, o ser, sendo esta apenas ainda uma forma da tendência à ilusão.” O ser, o
verdadeiro, o real só valem mesmo como avaliações, isto é, como mentiras.523 Mas,
por conta disso, esses meios de efetuar a vontade sob uma de suas potências até agora
só serviram a potência ou qualidade do negativo. O ser, o verdadeiro, o próprio real
são como que o divino no qual a vida se opõe à vida. O que então reina é a negação
enquanto qualidade da vontade de potência que, opondo a vida à vida, a nega em seu
conjunto e a faz triunfar como reativa em particular. Ao contrário, uma potência sob a
qual o querer é adequado a toda a vida, uma mais alta potência do falso, uma
qualidade sob a qual a vida inteira é afirmada, e sua particularidade, devinda ativa: é
esta a outra qualidade da vontade de potência. Afirmar ainda é avaliar, mas avaliar do
ponto de vista de uma vontade que goza de sua própria diferença na vida, em vez de
sofrer as dores da oposição que ela mesma inspira a esta vida. Afirmar não é tomar
encargo, assumir aquilo que é, mas libertar, desencarregar aquilo que vive. Afirmar
é aliviar: não encarregar a vida sob o peso dos valores superiores, mas criar valores
novos que sejam os da vida, que façam da vida a leve e a ativa. Só há criação,
propriamente falando, na medida em que nós, longe de separarmos a vida do que ela
pode, servimo-nos do excedente para inventar novas formas de vida. “E o que
chamastes de mundo, é preciso que começais por criá-lo: vossa razão, vossa
imaginação, vossa vontade, vosso amor devem devir esse mundo.”524 Mas essa tarefa
não acha seu cumprimento no homem. Por mais longe que ele possa ir, o homem
522 VP, II, 8.523 VP, IV, 8. – O “livro” ao qual Nietzsche faz alusão é a Origem da Tragédia.524 Z, II, “Sobre as ilhas bem-aventuradas”.
eleva a negeção até uma potência de afirmar. Mas afirmar em toda sua potência,
afirmar a própria afirmação, eis aí o que ultrapassa as forças do homem. “Criar
valores novos, nem mesmo o leão ainda pode: mas tornar-se livre para criações
novas, isto é o que pode a potência do leão.”525 O sentido da afirmação só pode se
desprender caso se leve em conta esses três pontos fundamentais na [213] filosofia de
Nietzsche: não o verdadeiro nem o real, mas a avaliação; não a afirmação como
assunção, mas como criação; não o homem, mas o superhomem como nova forma de
vida. Se Nietzsche dá tanta importância à arte, é precisamente porque a arte realiza
todo esse programa: a mais alta potência do falso, a afirmação dionisíaca ou o gênio
do superhumano.526
Assim se resume a tese de Nietzsche: o sim que não sabe dizer não (sim do
jumento) é uma caricatura da afirmação. Precisamente porque ele diz sim a tudo
aquilo que é não, porque ele suporta o niilismo, fica a serviço da potência de negar
como do demônio, cujos fardos todos ele carrega. O sim dionisíaco, ao contrário, é
aquele que sabe dizer não: ele é a afirmação pura, ele venceu o niilismo e destituiu a
negação de qualquer poder autônomo, mas isto porque colocou o negativo a serviço
das potências de afirmar. Afirmar é criar, não carregar, suportar, assumir. Ridícula
imagem do pensamento, que se forma na cabeça do jumento: “Pensar e levar uma
coisa a sério, assumir o peso, é tudo o mesmo pra eles, eles não têm outra
experiência.”527
12) A DUPLA AFIRMAÇÃO: ARIADNE
O que é a afirmação em toda sua potência? Nietzsche não suprime o conceito
de ser. Ele propõe do ser uma nova concepção. A afirmação é ser. O ser não é o objeto
da afirmação, nem tampouco um elemento que se ofereceria, que se daria ao encargo
da afirmação. A afirmação não é a potência do ser, ao contrário. A própria afirmação é
o ser, o ser é somente a afirmação em toda sua potência. Não se ficará espantado,
525 Z, I, “Das três metamorfoses”.526 VP, IV, 8.527 BM, 213.
então, que não haja em Nietzsche nem análise do ser por si mesmo, nem análise do
nada por si mesmo; evitar-se-á de acreditar que Nietzsche, a esse respeito, não tenha
liberado seu pensamento. O ser e o nada são apenas a expressão abstrata da
afirmação e da negação como qualidades (qualia) da vontade de potência.528 Mas
toda a questão é: em qual sentido a afirmação é ela mesma o ser? [214]
A afirmação não tem outro objeto além de si mesma. Mas ela, precisamente, é
o ser enquanto a si mesma ela é seu próprio objeto. A afirmação como objeto da
afirmação: este é o ser. Nela mesma e como afirmação primeira, ela é devir. Mas ela é
o ser, enquanto é o objeto de uma outra afirmação que eleva o devir ao ser ou que
extrai o ser do devir. Eis por que a afirmação em toda sua potência é dupla: afirma-se
a afirmação. É a afirmação primeira (devir) que é ser, mas isto ela só é como objeto
da segunda afirmação. As duas afirmações constituem a potência de afirmar em seu
conjunto. Que essa potência seja necessariamente dupla é exprimido por Nietzsche
em textos de alto alcance simbólico: 1º) Os dois animais de Zaratustra, a águia e a
serpente. Interpretados do ponto de vista do eterno retorno, a águia é como o grande
ano, o período cósmico, e a serpente, como a destinação individual inserida nesse
grande período. Mas essa interpretação exata não deixa de ser insuficiente, porque ela
supõe o eterno retorno e nada diz sobre os elementos pré-constituintes do qual ele
deriva. A águia paira em largos círculos, uma serpente enrolada em torno do seu
pescoço, “não que nem uma presa, mas como um amigo”:529 nisto se verá a
necessidade, para a mais altiva afirmação, de estar acompanhada, dobrada por uma
afirmação segunda que a toma por objeto; 2º) O par divino, Dioniso-Ariadne. “Então
quem, fora eu, sabe quem é Ariadne?”530 E, sem dúvida, o mistério de Ariadne tem
uma pluralidade de sentidos. Ariadne ama Teseu. Teseu é uma representação do
homem superior: é o homem sublime e heróico, aquele que assume os fardos e que
vence os monstros. Mas falta-lhe precisamente a virtude do touro, ou seja, o sentido
da terra quando ele está atrelado, e também a capacidade de desatrelar, de rejeitar os
528 Achar na afirmação e na negação as raízes mesmas do ser e do nada não é novidade; essa tese se inscreve numa longa tradição filosófica. Mas Nietzsche renova e reviravolteia essa tradição com sua concepção da afirmação e da negação, com sua teoria do entrelace e da transformação delas.
529 Z, Prólogo, 10.530 EH, III, “Assim Falou Zaratustra”, 8.
fardos.531 Enquanto a mulher ama o homem, enquanto ela é mãe, irmã, esposa do
homem, ainda que do homem superior, ela é apenas a imagem feminina do homem: a
potência feminina fica acorrentada na mulher.532 Terríveis mães, terríveis irmãs e
esposas, a feminidade representa aqui o espírito de vingança e o ressentimento que
animam o próprio homem. Mas Ariadne abandonada por Teseu sente chegar uma
[215] transmutação que lhe é própria: a potência feminina alforriada, devinda
benfeitora e afirmativa, a Anima. “Que o reflexo de uma estrela reluza em vosso
amor! Que vossa esperança diga: Oh, pudera eu por no mundo o superhomem!”533
Mais ainda: relativamente a Dioniso, Ariadne-Anima é como uma segunda afirmação.
A afirmação dionisíaca exige uma outra afirmação que a toma por objeto. O devir
dionisíaco é o ser, a eternidade, mas enquanto a afirmação correspondente é ela
mesma afirmada: “Eterna afirmação do ser, eternamente eu sou tua afirmação.”534 O
eterno retorno “aproxima ao máximo” o devir e o ser, ele afirma um do outro;535 ainda
é preciso uma segunda afirmação para operar essa aproximação. Eis por que o
próprio eterno retorno é um anel de núpcias.536 Eis por que o universo dionisíaco, o
ciclo eterno, é um anel de núpcias, um espelho de bodas que espera pela alma
(anima) capaz de se mirar nele, mas também de refleti-lo ao se mirar.537 Eis por que
Dioniso quer uma noiva: “Sou eu, sou eu quem tu queres? Eu inteira?...”538 (Aqui
também se notará, segundo o ponto em que se está, que as bodas mudam de sentido
ou de parceiros. É que, segundo o eterno retorno constituído, o próprio Zaratustra
aparece como o noivo, e a eternidade como uma mulher amada. Mas conforme o que
constitui o eterno retorno, Dioniso é a primeira afirmação, o devir e o ser, mas
justamente o devir que só é ser como objeto de uma segunda afirmação; Ariadne é
essa segunda afirmação, Ariadne é a noiva, a potência feminina amante.)
3º) O labirinto ou as orelhas. O labirinto é uma imagem freqüente em
531 Z, II, “Dos homens sublimes”. – “Deixar os músculos inativos e a vontade de desatrelar: é o que há de mais difícil para vós outros, homens sublimes.”
532 Z, III, “Da virtude que apequena”.533 Z, I, “Das mulheres jovens e velhas”.534 DD, “Glória e eternidade”.535 VP, II, 170.536 Z, III, “Os sete selos”.537 VP, II, 51: outro desenvolvimento da imagem do noivado e do anel de núpcias.538 DD, “Lamento de Ariadne”.
Nietzsche. Primeiro ele designa o inconsciente, o si; só a Anima é capaz de nos
reconciliar com o inconsciente, de nos dar um fio condutor para sua exploração. Em
segundo lugar, ele não é o caminho perdido, mas o caminho que nos reconduz ao
mesmo ponto, ao mesmo instante que é, que foi e que será. Porém, mais
profundamente, do ponto de vista daquilo que constitui o eterno retorno, o labirinto é
o devir, a afirmação do devir. Ora, o ser sai do devir, ele se afirma do próprio devir,
contanto que a afirmação do devir seja o objeto [216] de uma outra afirmação (o fio
de Ariadne). Enquanto Ariadne freqüentou Teseu, o labirinto era tomado pelo avesso,
ele se abria sobre os valores superiores, o fio era o fio do negativo e do
ressentimento, o fio moral.539 Mas Dioniso ensina seu segredo a Ariadne: o verdadeiro
labirinto é o próprio Dioniso, o verdadeiro fio é o fio da afirmação. “Eu sou teu
labirinto.”540 Dioniso é o labirinto e o touro, o devir e o ser, mas o devir que só é ser
contanto que sua afirmação seja ela mesma afirmada. Dioniso não pede a Ariadne
apenas que escute, mas que afirme a afirmação: “Tu tens orelhas pequenas, tens
minhas orelhas: meta aí uma palavra esperta.” A orelha é labiríntica, a orelha é o
labirinto do devir ou o dédalo da afirmação. O labirinto é o que nos conduz ao ser, só
do devir há ser, só do próprio labirinto há ser. Mas Ariadne tem as orelhas de Dioniso:
a própria afirmação deve ser afirmada para que ela seja precisamente a afirmação do
ser. Ariadne mete uma palavra esperta nas orelhas de Dioniso. Ou seja: tendo ela
mesma escutado a afirmação dionisíaca, disto ela faz o objeto de uma segunda
afirmação que Dioniso escuta.
Se consideramos a afirmação e a negação como qualidades da vontade de
potência, vemos que elas não têm um entrelace unívoco. A negação se opõe à
afirmação, mas a afirmação difere da negação. Não podemos pensar a afirmação
como “se opondo” por conta própria à negação: isto seria meter o negativo nela. A
oposição não é somente a relação da negação com a afirmação, mas a essência do
539 VP, III, 408: “Somos particularmente curiosos de explorar o labirinto, esforçamo-nos em travar relações com o Sr. Minotauro do qual nos contam coisas tão terríveis; que nos importam vosso caminho que sobe, vosso fio que conduz afora, que conduz à felicidade e à virtude, que conduz até vós, eu o temo... vós podeis nos salvar com ajuda desse fio? Mas nós encarecidamente vos rogamos, pendurai-vos nesse fio!”
540 DD, “Lamento de Ariadne”: “Sê prudente, Ariadne! Tu tens orelhas pequenas, tens minhas orelhas: Meta aí uma palavra esperta! Primeiro não é preciso odiar-se, caso se deva amar-se?... Eu sou teu labirinto...”
negativo enquanto tal. E a diferença é a essência do afirmativo enquanto tal. A
afirmação é gozo e jogo de sua própria diferença, como a negação é dor e trabalho da
oposição que lhe é própria. Mas que jogo é esse da diferença na afirmação? A
afirmação é posicionada uma primeira vez como o múltiplo, o devir e o acaso. É que
o múltiplo é a diferença de um e do outro, o devir é a diferença consigo, o acaso é a
diferença “entre todos” ou distributiva. Daí a afirmação se desdobra, a diferença é
refletida na [217] afirmação da afirmação: momento da reflexão onde uma segunda
afirmação toma por objeto a primeira. Mas assim a afirmação redobra: como objeto
da segunda afirmação, ela é a afirmação ela mesma afirmada, a afirmação redobrada,
a diferença elevada à sua mais alta potência. O devir é o ser, o múltiplo é o uno, o
acaso é a necessidade. A afirmação do devir é a afirmação do ser, &c., mas contanto
que ela seja o objeto da segunda afirmação que a leva a essa nova potência. O ser se
diz do devir, o uno do múltiplo, a necessidade do acaso, mas contanto que o devir, o
múltiplo e o acaso se reflitam na segunda afirmação que os toma por objeto. Assim, é
próprio da afirmação revir, ou da diferença reproduzir. Revir é o ser do devir, o uno
do múltiplo, a necessidade do acaso: o ser da diferença enquanto tal, ou o eterno
retorno. Se consideramos a afirmação em seu conjunto, não devemos confundir, salvo
por comodidade de expressão, a existência de duas potências de afirmar com a
existência de duas afirmações distintas. O devir e o ser são uma mesma afirmação,
que somente passa de uma potência à outra enquanto é o objeto de uma segunda
afirmação. A afirmação primeira é Dioniso, o devir. A afirmação segunda é Ariadne, o
espelho, a noiva, a reflexão. Mas a segunda potência da afirmação primeira é o eterno
retorno ou o ser do devir. É a vontade de potência como elemento diferencial que
produz e desenvolve a diferença na afirmação, que reflete a diferença na afirmação da
afirmação, que a faz revir na própria afirmação afirmada. Dioniso desenvolvido,
refletido, elevado à mais alta potência: são estes os aspectos do querer dionisíaco que
serve de princípio ao eterno retorno.
13) DIONISO E ZARATUSTRA
A lição do eterno retorno é que não há retorno do negativo. O eterno retorno
significa que o ser é seleção. Só revém o que afirma, ou o que é afirmado. O eterno
retorno é a reprodução do devir, mas a reprodução do devir é também a produção de
um devir ativo: o superhomem, criança de Dioniso e de Ariadne. No eterno retorno, o
ser se diz do devir, mas o ser do devir só se diz do devir-ativo. O ensinamento
especulativo de Nietzsche é o seguinte: o devir, [218] o múltiplo, o acaso não contêm
negação nenhuma; a diferença é a afirmação pura; revir é o ser da diferença
excluindo todo o negativo. E talvez tal ensinamento permanecesse obscuro sem a
clareza prática onde ele banha. Nietzsche denuncia todas as mistificações que
desfiguram a filosofia: o aparelho da má consciência, os falsos prestígios do negativo
que fazem do múltiplo, do devir, do acaso, da própria diferença outras tantas
infelicidades da consciência, e das infelicidades da consciência, outros tantos
momentos de formação, de reflexão ou de desenvolvimento. Que a diferença é feliz;
que o múltiplo, o devir, o acaso são suficientes, por si mesmos objetos de alegria; que
só a alegria revém: este é o ensinamento prático de Nietzsche. O múltiplo, o devir, o
acaso são a alegria propriamente filosófica onde o uno se regozija de si mesmo, e
também o ser e a necessidade. Jamais desde Lucrécio (exceção feita a Spinoza) se
tinha levado tão longe a empreitada crítica que caracteriza a filosofia. Lucrécio
denunciando o distúrbio da alma e aqueles que precisam desse distúrbio para assentar
sua potência – Spinoza denunciando a tristeza, todas as causas da tristeza, todos
aqueles que fundam sua potência no seio dessa tristeza – Nietzsche denunciando o
ressentimento, a má consciência, a potência do negativo que lhes serve de princípio:
“inatualidade” de uma filosofia que se dá por objeto liberar. Não há consciência
infeliz que não seja ao mesmo tempo a servidão do homem, uma armadilha para o
querer, a ocasião de todas as baixezas para o pensamento. O reino do negativo é o
reino das feras potentes, Igrejas e Estados, que nos acorrentam aos seus próprios fins.
O assassino de Deus cometeu um crime triste porque motivava seu crime tristemente:
ele queria tomar o lugar de Deus, ele matava para “roubar”, ficava no negativo ao
assumir o divino. É preciso tempo para que a morte de Deus, enfim, ache sua
essência e devenha um acontecimento alegre. O tempo de expulsar o negativo, de
exorcizar o reativo, o tempo de um devir-ativo. E esse tempo é precisamente o ciclo
do eterno retorno.
O negativo expira às portas do ser. A oposição cessa seu trabalho, a diferença
começa seus jogos. Mas onde está o ser, que não é um outro mundo, e como se faz a
seleção? Nietzsche chama de transmutação o ponto onde o negativo é convertido.
Este perde sua potência e sua qualidade. A negação cessa de ser uma potência
autônoma, ou seja, uma qualidade da vontade de potência. A transmutação entrelaça o
negativo à afirmação na vontade de potência, faz dele uma simples maneira de ser
[219] das potências de afirmar. Não mais trabalho da oposição nem dor do negativo,
mas jogo guerreiro da diferença, afirmação e alegria da destruição. O não destituído
de seu poder, passado pra qualidade contrária, devindo ele mesmo afirmativo e
criador: esta é a transmutação. E o que define essencialmente Zaratustra é essa
transmutação dos valores. Se Zaratustra pára pelo negativo, como dão testemunho
seus desgostos e suas tentações, não é para se servir dele como de um motor, nem
para assumir a carga ou o produto dele, mas para alcançar o ponto onde o motor é
mudado, o produto superado, todo o negativo vencido ou transmutado.
Toda a história de Zaratustra está firmada em seus entrelaces com o niilismo,
ou seja, com o demônio. O demônio é o espírito do negativo, a potência de negar que
preenche papéis diversos, aparentemente opostos. Ora ele se faz carregar pelo
homem, sugerindo-lhe que o peso de que ele o encarrega é a positividade mesma.
Ora, ao contrário, ele salta por cima do homem, retirando-lhe todas as forças e todo
querer.541 A contradição é apenas aparente: no primeiro caso, o homem é o ser reativo
que quer se apoderar da potência, substituir suas próprias forças pela potência que o
dominava. Mas o demônio, na verdade, acha aqui a ocasião para fazer com que lhe
carreguem, para fazer com que lhe assumam, para prosseguir sua labuta, disfarçado
541 Sobre o primeiro aspecto do demônio, cf. a teoria do jumento e do camelo. Mas também, Z, III, “Da visão e do enigma”, onde o demônio (o espírito de pesadume) está sentado nos ombros do próprio Zaratustra. E IV, “Do homem superior”: “Se quiserdes subir bem alto, servi-vos de vossas próprias pernas! Não fazei com que vos carreguem pro alto, nem sentai-vos nas costas e na chefia de outrem.” – Sobre o segundo aspecto do demônio, cf. a célebre cena do Prólogo, onde o palhaço alcança o equilibrista e lhe salta por cima. Essa cena é explicada em III, “Das velhas e das novas tábuas”: “Pode-se conseguir superar-se por caminhos e meios numerosos: cabe a ti cuidar disso. Mas só o palhaço pensa: pode-se também saltar por cima do homem.”
sob uma falsa positividade. No segundo caso, o homem é o último dos homens: ainda
ser reativo, ele não tem mais a força para se apoderar do querer; é o demônio que
retira do homem todas as suas forças, que o deixa sem forças e sem querer. Em
ambos os casos, o demônio aparece como o espírito do negativo que, através dos
avatares do homem, conserva sua potência e guarda sua qualidade. Ele significa a
vontade de nada que se serve do homem como de um ser reativo, que se faz carregar
por ele, mas também que não se confunde com ele e “salta por cima”. De todos esses
pontos de vista a transmutação difere da vontade do nada, assim como Zaratustra de
seu demônio. É com Zaratustra que a negação perde sua potência [220] e sua
qualidade: para além do homem reativo, o destruidor dos valores conhecidos; para
além do último dos homens, o homem que quer perecer e ser superado. Zaratustra
significa a afirmação, o espírito da afirmação como potência que faz do negativo um
modo, e do homem um ser ativo que quer ser superado (e não “sobre-saltado”). O
signo de Zaratustra é o signo do leão: o primeiro livro de Zaratustra se abre sobre o
leão, o último se fecha sobre o leão. Mas o leão é precisamente o “não sagrado” que
deveio criador e afirmativo, aquele não que a afirmação sabe dizer, no qual todo o
negativo é convertido, transmutado em potência e em qualidade. Com a
transmutação, a vontade de potência deixa de estar acorrentada ao negativo como à
razão que nos faz conhecê-la, ela tende a sua desconhecida face, a desconhecida
razão de ser que faz do negativo uma simples maneira de ser.
Outrossim, Zaratustra tem com Dioniso, e a transmutação com o eterno
retorno, um entrelace complexo. De certa maneira, Zaratustra é causa do eterno
retorno e pai do superhomem. O homem que quer perecer, o homem que quer ser
superado, é o ancestral e o pai do superhomem. O destruidor de todos os valores
conhecidos, o leão do não sagrado prepara sua última metamorfose: ele devém
criança. E com mãos mergulhadas na juba do leão, Zaratustra sente que suas crianças
estão próximas ou que o superhomem está chegando. Mas em qual sentido Zaratustra
é o pai do superhomem, causa do eterno retorno? No sentido de condição. De outra
maneira, o eterno retorno tem um princípio incondicionado ao qual o próprio
Zaratustra está submetido. O eterno retorno depende da transmutação do ponto de
vista do princípio que o condiciona, mas a transmutação depende mais
profundamente do eterno retorno do ponto de vista de seu princípio incondicionado.
Zaratustra está submetido a Dioniso: “Que sou eu? Estou esperando alguém mais
digno do que eu; nem mesmo sou digno de quebrar-me contra ele.”542 Na trindade do
Anticristo (Dioniso, Ariadne e Zaratustra), Zaratustra é o noivo condicional de
Ariadne, mas Ariadne é a noiva incondicional de Dioniso. Eis por que Zaratustra,
relativamente ao eterno retorno e ao superhomem, tem sempre uma posição inferior.
Ele é causa do eterno retorno, mas causa que tarda para produzir seu efeito. Profeta
que hesita livrar sua mensagem, que conhece a vertigem e a tentação do negativo, que
deve ser encorajado por seus animais. Pai do superhomem, mas pai cujos produtos
estão maduros antes dele estar amaduro para seus frutos, leão que ainda carece [221]
de uma última metamorfose.543 Na verdade, o eterno retorno e o superhomem estão
no cruzamento de duas genealogias, de duas linhas genéticas desiguais.
Por um lado, remetem a Zaratustra como ao princípio condicionante que os
“posiciona” de maneira tão somente hipotética. Por outro lado, a Dioniso como ao
princípio incondicionado que funda seu caráter apodítico e absoluto. Assim, na
exposição de Zaratustra, é sempre o emaranhado das causas ou a conexão dos
instantes, o entrelace sintético dos instantes uns com os outros, que serve de hipótese
ao retorno do mesmo instante. Mas do ponto de vista de Dioniso, ao contrário, é o
entrelace sintético do instante consigo, como presente, passado e por vir, que
determina absolutamente seu entrelace com todos os outros instantes. Revir não é a
paixão de um instante empurrado pelos outros, mas a atividade do instante, que
determina os outros determinando a si mesmo a partir daquilo que ele afirma. A
constelação de Zaratustra é a constelação do leão, mas a de Dioniso é a constelação
do ser: o sim da criança-jogadora, mais profundo que o não sagrado do leão.
Zaratustra é inteiro afirmativo: mesmo quando ele diz não, ele que sabe dizer não.
Mas Zaratustra não é a afirmação inteira, nem o mais profundo da afirmação.
542 Z, II, “A hora mais silenciosa”.543 Z, II, “A hora mais silenciosa”: “Ó Zaratustra, teus frutos estão maduros, mas tu ainda não
estás maduro para teus frutos.” – Sobre as hesitações e esquivas de Zaratustra para dizer o eterno retorno, cf. III, “Dos grandes acontecimentos”, e sobretudo “A hora mais silenciosa” (“Está acima de minhas forças”); III, “O convalescente”.
Zaratustra entrelaça o negativo à afirmação na vontade de potência. Ainda é
preciso que a vontade de potência seja entrelaçada à afirmação como à sua razão de
ser, e a afirmação à vontade de potência como ao elemento que produz, reflete e
desenvolve sua própria razão: esta é a tarefa de Dioniso. Tudo que é afirmação acha
em Zaratustra sua condição, mas em Dioniso seu princípio incondicionado. Zaratustra
determina o eterno retorno; mais ainda, ele determina o eterno retorno a produzir seu
efeito, o superhomem. Mas essa determinação é o mesmo que a série das condições
que acha seu término derradeiro no leão, no homem que quer ser superado, no
destruidor de todos os valores conhecidos. A determinação de Dioniso é de outra
natureza, idêntica ao princípio absoluto sem o qual as condições permaneceriam elas
mesmas impotentes. E é precisamente o supremo disfarce de Dioniso, submeter seus
produtos a [222] condições que lhe são elas mesmas submetidas, e que esses produtos
ultrapassam. É o leão que devém criança, é a destruição dos valores conhecidos que
torna possível uma criação dos valores novos; mas a criação dos valores, o sim da
criança-jogadora não se formariam sob tais condições se não fossem justificáveis, ao
mesmo tempo, de uma genealogia mais profunda. Não se ficará espantado, portanto,
que todo conceito nietzscheano esteja no cruzamento das duas linhagens genéticas
desiguais. Não apenas o eterno retorno e o superhomem, mas o riso, o jogo, a dança.
Entrelaçados a Zaratustra, o riso, o jogo, a dança são as potências afirmativas de
transmutação: a dança transmuta o pesado em leve, o riso o sofrimento em alegria, o
jogo do lançador (os dados) o baixo em alto. Mas entrelaçados a Dioniso, a dança, o
riso, o jogo são as potências afirmativas de reflexão e de desenvolvimento. A dança
afirma o devir e o ser do devir; o riso, as explosões de riso, afirmam o múltiplo e o
uno do múltiplo; o jogo afirma o acaso e a necessidade do acaso.
[223]
CONCLUSÃO
A filosofia moderna apresenta amálgamas, que dão testemunho de seu vigor e
de sua vivacidade, mas que também comportam perigos para o espírito. Bizarra
mistura de ontologia e de antropologia, de ateísmo e de teologia. Em proporções
variáveis, um pouco de espiritualismo cristão, um pouco de dialética hegeliana, um
pouco de fenomenologia como escolástica moderna, um pouco de fulguração
nietzscheana formam estranhas combinações. Marx e os pré-socráticos, Hegel e
Nietzsche são vistos dando as mãos numa ciranda que celebra o ultrapassamento da
metafísica e até mesmo a morte da filosofia propriamente dita. E é verdade que
Nietzsche se propunha expressamente a “ultrapassar” a metafísica. Mas Jarry
também, no que ele chamava de “patafísica”, invocando a etimologia. Neste livro
tentamos romper alianças perigosas. Imaginamos Nietzsche retirando sua aposta de
um jogo que não é o seu. Dos filósofos e da filosofia do seu tempo, Nietzsche dizia:
pintura de tudo em que jamais se acreditou. Talvez dissesse o mesmo da filosofia
atual, onde nietzscheísmo, hegelianismo e husserlianismo são os pedaços do novo
pensamento sarapintado.
Não há compromisso possível entre Hegel e Nietzsche. A filosofia de Nietzsche
tem um grande alcance polêmico; ela forma uma anti-dialética absoluta, propõe-se a
denunciar todas as mistificações que acham na dialética um último refúgio. O que
Schopenhauer tinha sonhado, mas não realizado, preso como estava no aranhol do
kantismo e do pessimismo, Nietzsche torna seu, ao preço de sua ruptura com
Schopenhauer. Erigir uma nova imagem do pensamento, liberar o pensamento dos
fardos que o esmagam. Três ideias definem a dialética: a ideia de um poder do
negativo como princípio teórico que se manifesta na oposição e na contradição; a
ideia de um valor do sofrimento e da tristeza, a valorização das “paixões tristes”,
como princípio prático que se manifesta [224] na cisão, no dilaceramento; a ideia da
positividade como produto teórico e prático da negação mesma. Não é exagero dizer
que toda a filosofia de Nietzsche, em seu sentido polêmico, é a denúncia dessas três
ideias.
Se a dialética acha seu elemento especulativo na oposição e na contradição, é
primeiramente porque ela reflete uma falsa imagem da diferença. Como o olho do
boi, ela reflete da diferença uma imagem invertida. A dialética hegeliana é sim
reflexão sobre a diferença, mas a imagem desta ela reverte. À afirmação da diferença
enquanto tal, ela substitui a negação daquilo que difere; à afirmação de si, a negação
do outro; à afirmação da afirmação, a famosa negação da negação. – Mas essa
reversão não teria sentido, se ela não fosse praticamente animada por forças que têm
interesse em fazê-la. A dialética exprime todas as combinações das forças reativas e
do niilismo, a história ou a evolução de seus entrelaces. A oposição posta no lugar da
diferença é também o triunfo das forças reativas que acham na vontade de nada o
princípio que lhes corresponde. O ressentimento precisa de premissas negativas, de
duas negações, para produzir um fantasma de afirmação; o ideal ascético precisa do
próprio ressentimento e da má consciência, como o prestidigitador com suas cartas
blefadas. Por toda parte as paixões tristes; a consciência infeliz é o tema de toda a
dialética. A dialética é primeiramente o pensamento do homem teórico, em reação
contra a vida, que pretende julgar a vida, limitá-la, medi-la. Em segundo lugar, ela é o
pensamento do sacerdote que submete a vida ao trabalho do negativo: ele precisa da
negação para assentar sua potência, ele representa a estranha vontade que conduz as
forças reativas ao triunfo. A dialética, nesse sentido, é a ideologia propriamente cristã.
Enfim, ela é o pensamento do escravo, exprimindo a vida reativa nela mesma e o
devir-reativo do universo. Mesmo o ateísmo que ela nos propõe é um ateísmo
clerical, mesmo a imagem do senhor é uma figura de escravo. – Não se ficará
espantado que a dialética produza somente um fantasma de afirmação. Oposição
superada ou contradição resolvida, a imagem da positividade encontra-se
radicalmente falsificada. A positividade dialética, o real na dialética, é o sim do
jumento. O jumento acreditar afirmar porque assume, mas ele assume apenas os
produtos do negativo. Ao demônio, macaco de Zaratustra, bastava saltar sobre nossos
ombros; os que carregam sempre são tentados a acreditar que estão afirmando ao
estarem carregando, e que o positivo se avalia pelo peso. O jumento sob a pele [225]
do leão, é isso que Nietzsche chama de “o homem desse tempo”.
Grandeza de Nietzsche por ter sabido isolar essas duas plantas, ressentimento e
má consciência. Tivesse ela somente esse aspecto, a filosofia de Nietzsche já seria da
maior importância. Mas a polêmica, nele, é tão somente a agressividade que decorre
de uma instância mais profunda, ativa e afirmativa. A dialética saiu da Crítica
kantiana ou da falsa crítica. Fazer a crítica verdadeira implica uma filosofia que se
desenvolve por si mesma e só retém o negativo como maneira de ser. Nietzsche
reprovava os dialéticos por ficarem numa concepção abstrata do universal e do
particular; eram prisioneiros dos sintomas e não alcançavam as forças nem a vontade
que dão sentido e valor aos sintomas. Eles evoluíam no quadro da questão: O que
é...?, questão contraditória por excelência. Nietzsche cria seu próprio método:
dramático, tipológico, diferencial. Ele faz da filosofia uma arte, a arte de interpretar e
de avaliar. Para todas as coisas, ele coloca a questão: “Quem?” Aquele que... é
Dioniso. Aquilo que... é a vontade de potência como princípio plástico e genealógico.
A vontade de potência não é a força, mas o elemento diferencial que determina de
uma só vez o entrelace das forças (quantidade) e a qualidade respectiva das forças em
entrelace. É nesse elemento da diferença que a afirmação se manifesta e se
desenvolve enquanto criadora. A vontade de potência é o princípio da afirmação
múltipla, o princípio doador ou a virtude que dá.
Que o múltiplo, o devir, o acaso sejam objeto de afirmação pura, este é o
sentido da filosofia de Nietzsche. A afirmação do múltiplo é a proposição
especulativa, como a alegria do diverso é a proposição prática. O jogador só perde
porque não afirma o bastante, porque introduz o negativo no acaso, a oposição no
devir e no múltiplo. O verdadeiro lance de dados produz necessariamente o número
ganhador, que reproduz o lance de dados. Afirma-se o acaso e a necessidade do
acaso; o devir e o ser do devir; o múltiplo e o uno do múltiplo. A afirmação se
desdobra, depois redobra, levada à sua mais alta potência. A diferença se reflete, e se
repete ou se reproduz. O eterno retorno é essa mais alta potência, síntese da
afirmação que acha seu princípio na Vontade. A leveza daquilo que afirma, contra o
peso do negativo; os jogos da vontade de potência, contra o trabalho da dialética; a
afirmação da afirmação, contra essa famosa negação da negação. [226]
A negação, é verdade, aparece primeiramente como uma qualidade da vontade
de potência. Mas no sentido em que a reação é uma qualidade da força. Mais
profundamente, a negação é tão somente uma face da vontade de potência, a face sob
a qual ela nos é conhecida, na medida em que o conhecimento é ele mesmo a
expressão das forças reativas. O homem só habita o lado desolado da terra, dela só
compreende o devir-reativo que o atravessa e o constitui. Eis por que a história do
homem é a do niilismo, negação e reação. Mas a longa história do niilismo tem seu
acabamento: o ponto final onde a negação se revira contra as próprias forças reativas.
Esse ponto define a transmutação ou transvaloração; a negação perde sua potência
própria, ela devém ativa, nada além da maneira de ser das potências de afirmar. O
negativo muda de qualidade, passa a serviço da afirmação; ele já não vale senão
como preliminar ofensivo ou como agressividade conseqüente. A negatividade como
negatividade do positivo faz parte das descobertas anti-dialéticas de Nietzsche. Da
transmutação, dá no mesmo dizer que ela serve de condição ao eterno retorno, mas
também que ela depende dele do ponto de vista de um princípio mais profundo. É que
a vontade de potência só faz revir aquilo que é afirmado: é ela que de uma só vez
converte o negativo e reproduz a afirmação. Que um esteja pelo outro, que um esteja
no outro, significa que o eterno retorno é o ser, mas o ser é seleção. A afirmação
permanece como única qualidade da vontade de potência, a ação como única
qualidade da força, o devir-ativo como identidade criadora da potência e do querer.
BIBLIOGRAFIA*
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[Tr. do alemão Die Traumdeutung (A interpretação dos sonhos)]
_______. Le moi et le soi. Trad. Simon Jankélévitch. Paris: Payot, 1927.
[Tr. do alemão Das Ich und das Es (O Eu e o Isso), 1923.]*
Aqui estão listadas as obras mencionadas por Deleuze no corpo do texto ou em notas de rodapé. Como ele não especifica as traduções que utilizou de algumas obras clássicas, incluiu-se tais obras com o título em português e com a data original de publicação
_______.“L’inconscient”, in Métapsychologie, 1915-1917. Trad. Anne Berman
& Marie Bonaparte (Paris: Gallimard, 1940).
GUÉROULT, Martial. La philosophie transcendantale de Salomon Maïmon
(Paris: Félix Alcan, 1929).
_______. L'Évolution et la structure de la doctrine de la science chez Fichte
(Paris: Les Belles Lettres, 1930).
HEIDEGGER, Martin. “Le mot de Nietzsche ‘Dieu est mort’”, in Arguments, 15
(Paris, 1959).
_______. Qu’appelle-t-on penser? Trad. Aloys Becker e Gérard Granel (Paris:
P.U.F., 1959).
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MALLARMÉ, Stéphane. Igitur ou la folie d'Elbehnon (escrito c. 1869, publicado
postumamente em 1925 pela Gallimard, Paris).
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Armand Colin, maio 1897).
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MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã (1845-6).
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WAHL, Jean. Le malheur de la conscience dans la philosophie de Hegel (Paris:
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TRADUÇÕES FRANCESAS DE NIETZSCHE ATÉ 1962*
Assim Falou Zaratustra
Ainsi parlait Zarathoustra. Trad. de Geneviève Bianquis (Paris: Gallimard,
1947).
Ainsi parlait Zarathoustra, un livre pour tous et pour personne. Trad. de Henri
Albert (Paris: Société du “Mercure de France”, 1898).
Aurora
Aurore, réflexions sur les préjugés moraux. Trad. de Henri Albert (Paris:
Mercure de France, 1901).
Correspondência
Lettres choisies. Trad. de Alexandre Vialatte (Paris: Stock,1931).
Lettres à Theodor Fritsch, trad. de Marius Paul Nicolas, in M. P. Nicolas, De
Hitler à Nietzsche (Paris: Fasquelle, 1936).
Lettres à Peter Gast. Trad. de Louise Servicen (Mônaco: Éditions du Rocher,
1957).
Ecce Homo*
Deleuze nomeia apenas uma das traduções de Nietzsche que utilizou (Œuvres posthumes, trad. Bolle). Assim sendo, arrolou-se aqui as edições francesas disponíveis a ele até 1962. Em havendo mais de uma, foi preciso tê-las em mão para confrontar com as citações ao longo do texto, e confirmar a proveniência exata do texto que Deleuze acompanhou. Em alguns casos, no entanto, não foi possível realizar tal confronto.
Ecce Homo: comment on devient ce que l'on est. Trad. de Henri Albert (Paris:
Mercure de France, 1908).
Ecce Homo. Trad. de Alexandre Vialatte (Paris: Stock, 1931).
A Filosofia na Época Trágica dos Gregos
La naissance de la philosophie à l’époque tragique des grecs. Tr. de Geneviève
Bianquis (Paris: Gallimard, 1938). [Tradução feita a partir do vol. X da edição
Musarion de Leipzig, com trechos de anotações e planos de cursos de Nietzsche
sobre os pré-socráticos, que Bianquis inseriu como notas de rodapé ao longo de sua
tradução.]
A Gaia Ciência
Le gai Savoir. Trad. de H. Albert (Paris: Mercure de France, 1901).
Le Gai savoir. Trad. de Alexandre Vialatte (Paris: Gallimard, 1939).
Le Gai savoir. Trad. de Pierre Klossowski (Paris: Club français du livre, 1956).
A Genealogia da Moral
La généalogie de la morale. Trad. de H. Albert (Paris: Mercure de France,
1900).
Humano, Demasiado Humano
Humain, trop humain: un livre pour esprits libres. Trad. de H. Albert e
Alexandre-Marie Desrousseaux. 2 Tomos (Paris: Mercure de France, 1899-1902).
O Nascimento da Tragédia
L'Origine de la tragédie, ou Hellénisme et pessimisme. Trad. Jean Marnold e
Jacques Morland (Paris: Mercure de France, 1901). [O título da ed. fr. não
corresponde ao original alemão: Die Geburt der Tragödie, oder Griechenthum und
Pessimismus, O Nascimento da Tragédia, ou Helenismo e Pessimismo.
La naissance de la tragédie. Tr. de Geneviève Bianquis (Paris: Gallimard,
1949). [Deleuze se serve dessa tradução preferencialmente, apesar de sempre se
referir ao livro como a Origem da Tragédia, e não o Nascimento.]
Além de Bem e Mal
Par delà le bien et le mal. Trad. de Georges Art e L. Weiscopf. Ed. H. Albert
(Paris: Mercure de France/Leipzig: C.G. Naumann, 1898).
Par delà le bien et le mal. Trad. de H. Albert (Paris: Mercure de France, 1903).
Au-delà du bien et du mal. Trad. de André Meyer e René Guast (Paris: Bordas,
1948).
Par delà le bien et le mal. Trad. de Geneviève Bianquis (Paris: Aubier, 1951).
[Deleuze se serve desta tradução preferencialmente.]
A Vontade de Potência
La volonté de puissance: essai d'une transmutation de toutes les valeurs
(études et fragments). Trad. de Henri Albert (Paris: Mercure de France, 1903).
[Tradução feita a partir da edição alemão de 1901, publicada por C. G. Naumann, aos
cuidados do Nietzsche-Archiv e da irmã de Nietzsche, Elisabeth-Förster.]
La volonté de puissance. Trad. de Geneviève Bianquis (Paris: Gallimard, 1º
vol. 1935, 2º vol. 1937). [Tradução feita a partir da ed. Musarion de 1926, sob
Richard Oehler, Max Oehler e Friedrich Würzbach. Deleuze se serve desta tradução
preferencialmente.]
Outros textos
Œuvres posthumes. Trad. Henri Jean Bolle (Paris: Mercure de France, 1934).
[Trata-se de um generoso apanhado de fragmentos e textos não publicados de
Nietzsche, feito a partir dos volumes IX a XVI da edição alemã de Alfred Kröner das
obras de Nietzsche (Leipzig, 1919).]
ÍNDICE DE NOMES PRÓPRIOS
ADLER, Alfred : 91
ALTHUSSER, Louis : 17, 182
ANAXIMANDRO : 23, 27
ARISTÓTELES : 116
ARVON, Henri : 184
BAUER, Bruno : 184-185
BERGSON, Henri : 153
BIRAULT, Henri : 180
BUTLER, Samuel : 47
BISMARCK, Otto von : 145
CÁLICLES : 66-7
CHESTÔV, Liêv : 41-43, 100, 105, 107
COPÉRNICO, Nicolau : 105
CRISTO, Jesus : 16-9, 34, 75
DARWIN, Charles : 48, 66, 93
DESCARTES, Renée : 141
DOSTOIÊVSKI, Fiódor : 100
EURÍPIDES : 12
EMPÉDOCLES : 126
EPICURO : 141
ESTÓICOS : 210
FEUERBACH, Ludwig : 17, 100, 107, 182, 184-185, 187, 210
FLAUBERT, Gustave : 98
FREUD, Sigmund : 44, 128, 131, 153-154, 168
FRITSCH, Theodor : 145
GAST, Peter (Heinrich Köselitz) : 35, 51
GUÉROULT, Martial : 58
HEGEL, G. W. F. : 4, 9, 11, 17, 21-22, 63, 84, 91, 93-4, 100, 119, 180-182, 184-187,
210, 223-4
HEIDEGGER, Martin : 39, 123, 174, 194, 211
HERÁCLITO : 27-29, 33, 35, 43
HESÍODO : 2
HÍPIAS : 87
HOBBES, Thomas : 91, 93-4
HYPPOLITE, Jean : 37, 180
JARRY, Alfred : 224
JEANMAIRE, Henri : 20
JEAN PAUL (Johann Paul Friedrich Richter) : 176
JONES, Ernest : 131
JUNG, Carl Gustav : 133
KANT, Immanuel : 2, 14, 58-59, 77, 95, 100-107, 115-116, 119, 141, 199, 223
KIERKEGAARD, Søren : 41-43, 107
LAMARCK, Jean-Baptiste de : 48
LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm : 119
LUCRÉCIO : 121-122, 218
MALLARMÉ, Stéphane : 36-39
MARX, Karl : 7, 9, 101, 186, 223
MAYER, Julis Robert von : 51
MERLEAU-PONTY, Maurice : 186
NICOLAS, Marius Paul : 145
OTTO, Walter F. : 19
PARMÊNIDES : 27
PASCAL, Blaise : 31, 41-43
PLATÃO : 33, 86, 124
POLIN, Raymond : 62
PRÉ-SOCRÁTICOS : 33
RANK, Otto : 131
ROUSSEAU, Jean-Jacques : 93
SCHOPENHAUER, Arthur : 2, 8, 12, 14-15, 21-23, 57, 59, 88, 94-5, 103, 110, 116, 131,
169, 190, 199, 223
SÓCRATES : 11, 12, 15-16, 21, 25, 66-7, 74-5, 86-7, 114, 124, 182
SPINOZA, Baruch de : 44, 70, 218
STIRNER, Max : 182, 183-188
TEÓGNIS : 138
THIBAUDET, Albert : 36-37
VALLÈS, Jules : 134
VUILLEMIN, Jules : 58
WAGNER, Richard : 12, 14-15, 20, 37, 95
WAHL, Jean : 180