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KONY,. O VILÃO VIRAL NTERNET Nunca um vídeo conseguiu tanta audiência em tão pouco tempo. Nunca um raptor, violador e assassino de crianças saiu tão depressa do anonimato. Nunca o Uganda andou tanto na boca dos ocidentais. Nunca se criou tanta expectativa sobre o resultado prático de uma campanha que está a agitar a web. Por causa de "kony 2012", o vídeo virai nunca mais seguirá as mesmas regras. FEXTO DE CRISTINA PERES E MIGUEL MARTINS

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Page 1: KONY,. VILÃO VIRAL › Files › Imprensa › 2012 › 03-17 › 0 › 1_1780638... · 2012-03-16 · KONY,. O VILÃO VIRAL NTERNET Nunca um vídeo conseguiu tanta audiência em

KONY,.O VILÃOVIRAL

NTERNET

Nunca um vídeo conseguiu tanta audiência em tão pouco tempo.Nunca um raptor, violador e assassino de crianças saiu tão depressado anonimato. Nunca o Uganda andou tanto na boca dos ocidentais.Nunca se criou tanta expectativa sobre o resultado prático de uma campanhaque está a agitar a web. Por causa de "kony 2012", o vídeo virai nunca maisseguirá as mesmas regras. FEXTO DE CRISTINA PERES E MIGUEL MARTINS

Page 2: KONY,. VILÃO VIRAL › Files › Imprensa › 2012 › 03-17 › 0 › 1_1780638... · 2012-03-16 · KONY,. O VILÃO VIRAL NTERNET Nunca um vídeo conseguiu tanta audiência em

"O objetivo era tornar Kony famoso, não era?

Parece-me bem que foi conseguido. 0 que acon-

tecerá daqui para a frente não sabemos." As pa-lavras são de Rob Dyer, um produtor de vídeos

oníine de uma organização canadiana de comba-

te ao cancro. E estão certas.

As mais de 76 milhões de pessoas que vi-

ram o vídeo "Kony 2012" desde dia 5 de marçoaumentam à medida que este texto é escrito. É

exatamente por isso que Dyer, que faz o mesmo

tipo de vídeos, está certo quando diz que não

sabe o que acontecerá agora. Essa é a pergunta

que todos estão a fazer, tanto os que viram o

vídeo como os que não viram. Mais: enquanto

uns se interessam por saber qual será o destino

do monstro Joseph Kony, outros analisam o ca-

so do ponto de vista do fenómeno social digital,

que fez uma entrada de campeão para a tabela

dos vídeos mais vistos de sempre na Web.

O que faz de Kony conversa, notícia e tese

académica prematura é a sua grandeza. Konynão é só um grande criminoso ou um grande

raptor e violador de crianças. Longe disso. Konyé grande em tudo.

Por exemplo, é um grande vídeo, no sentido

literal do termo: tem 29 minutos e 59 segundos.O que ainda torna mais estranho o facto de ter

sido visto por um número também grande de

pessoas. É que, dizem as boas práticas, a duraçãode um vídeo que se quer virai na Internet não

deve ser superior a dois minutos e meio, ao limi-te três minutos, já que as taxas de abandono de

quem vê (todos nós) se situam entre o minuto e

meio e os dois minutos. No entanto, a maioria

que viu "Kony 2012", viu-o até ao fim. O tema foi

tópico de conversa numa conferência em Aus-

tin, no Texas, na semana passada, onde se discu-

tia o documentário e a realização em pleno ad-

vento das redes sociais. O evento não foi marca-do para discutir o vídeo sobre as crianças-solda-do vítimas de foseph Kony no Uganda, mas as

intervenções dos oradores foram modificadas à

última hora por causa do que se estava a passar."Este vídeo é tudo o que precisamos de abordar

aqui", disse Dorothy Engelman, especialista emdocumentários Web, antes de perguntar à assis-

tência quem o tinha visto. Quase todos puseramo braço no ar. "E quem o viu até ao fim?" Pratica-

mente os mesmos puseram o braço no ar. Não é

normal. É incrível, até para os especialistas.

"Kony" é grande também na edição, o que,

mais uma vez, contraria o normal nos vídeos vi-

rais, que são, na grande maioria, pequenos, ama-

dores e desprovidos de montagem. Quem não se

lembra de "David After Dentist", onde dois minu-

tos sem edição foram vistos por mais de cem mi-lhões de pessoas, e que está na tabela dos 15 virais

mais assistidos de sempre? Ou de "Charlie bit myfinger — again!", com 56 segundos captados ama-

doramente e servidos também sem edição? Au-diência: mais de 400 milhões de visualizações.

A produção e montagem de "Kony 2012", o

vídeo de Jason Russell para a campanha da or-

ganização Invisible Children, é profissional.Mesmo. Assenta em detalhes que desenca-

deiam emoções, usam um ritmo publicitáriovestido de panfletário, a narrativa é segura nos

factos (independentemente da informação ser

exata), na humanização, aponta caminhos, assu-

me compromissos, faz promessas de ação ao

mesmo tempo que pede... ação.

BOLA DE NEVE IMPARÁVEL

Quando colocado no YouTube, caso pegue, um

produto destes funciona como um rastilho. Nes-

te caso, superou todas as expectativas, inclusive

da Invisible Children, que esperava sucesso

com o vídeo, mas não a este nível. Russell sabia

o que estava a fazer e por isso tirou o máximo

partido das três palavras-conceito que Steve

Chen, Chad Hurley e fawed Karim juntaramquando criaram o YouTube, em 2005: upload;

tag; share (colocar na rede, etiquetar, partilhar).

Agora, até no debate que gerou (está e con-tinuará a gerar) "Kony 2012" é grande. Estamos

perante um novo pico de adesão das pessoas ao

ativismo digital — que terá consequências reais—

, ou, pelo contrário, este envolvimento massi-

vo não passa de mais um momento do chama-

do "ativismo preguiçoso" ou "stacktivism"? Queé uma atitude típica de cibernautas onde se pen-sa que por se fazer um clique num qualquerconteúdo (vulgo, um "gosto") se pode dizer que

isso fará a diferença ou mudará alguma coisa.

De uma maneira ou de outra, o vídeo apon-ta baterias para uma faixa etária entre os 20 e

os 30 anos. Erik Qualman, autor do livro "Social-

nomics" olha para este espetro etário atual co-

mo uma geração de jovens conscientes e prepa-rados para mudar o mundo através das redes

sociais. Em oposição, Mark Bauerlein, que escre-

veu 'The Dumbest Generation", considera a

mesma geração como pessoas que pensam pou-co e que se deixaram embrutecer com a tecnolo-

gia da informação, em vez de a usarem para se

tornarem mais conscientes.

É também por isto que o vídeo não pode dei-

xar de ser grande, neste caso, grande na expecta-tiva que está a gerar quanto ao desfecho real des-

te virai. Para já, há pelo menos três certezas:

"Kony 2012" mudou as convenções dos vídeos vi-

rais na Web; "Kony 2012" pôs o mundo a falar do

monstro Joseph Kony; o número de pessoas que

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viram "Kony 2012" aumentou 335 mil vezes en-

tre o inicio e o fim da produção deste texto.

KONY, OS FACTOS E AS DISTORÇÕES

Na lista do Tribunal de Haia desde 2005, [oseph

Kony éon'l, procurado por crimes contra a

Humanidade. Desde 1987 que o Exército de Re-

sistência do Senhor (ERS) aterroriza populaçõesvulneráveis usando tropas constituídas porcrianças-soldados raptadas das aldeias e força-das a matar, mutilar e a escravatura sexual. Jo-

seph Kony crê-se porta-voz do Espírito Santo e

pretende instituir o governo dos 10 mandamen-tos e da tradição acholi (norte do Uganda), poroposição à cultura baganda (sul do Uganda). O

ERS chegou a ter 3000 efetivos, estimando-se

que não ultrapasse hoje 400. Calcula-se que, ao

longo de 26 anos, cerca de 30 mil crianças e Jo-

vens não tenham conhecido alternativa ao ERS.

Alguns ugandeses elogiaram nos media aeficácia do vídeo "Kony 2012", acatando a lição:

se África tivesse uma atitude de marketing se-

melhante à do Ocidente o continente ganhariauma projeção igual àquela que Kony terá global-mente a partir de agora. A verdade é que umvídeo de 30 minutos parece valer mais do que20 anos de estudo e investimento por parte da

elite académica e política ugandesa.O que incomoda alguns africanos como

Thimoty Kalyegira, um jornalista do diário

ugandês "Daily Monitor", é a atitude superficiale didática: "Como acontece com a maior partedos retratos que o mundo ocidental, ou o de lín-

gua inglesa, faz das situações perturbadoras,

"Kony 2012" parte da divisão entre bons e maus.

Tão simples como isso. Quase nenhum contex-

to nem investigação. Só um apelo ao lado dos

seres humanos que se revolta com o mal extre-

mo. Russel, o narrador, faz recomendações so-

bre o que se deve fazer; os Estados Unidos têm

de enviar tropas para o Uganda (já agora, o

Uganda fica na África Oriental e não na África

Central, como Russel afirma) para prender o

Kony", escreveu no domingo. Kalyegira conclui

dizendo que África tem de "investir muito mais

nos media, em marketing e na compreensão de

como eles moldam a opinião pública ocidental".

A reação do Governo do Uganda foi caute-

losa. Agradecendo todo o esforço que possa ser

feito para contribuir para a prisão de Joseph

Kony, apelou para que "qualquer campanha" ti-vesse em consideração "a atual situação do

país". Embora não haja dúvida de que Kony é

um monstro, os promotores da campanha estão

debaixo de fogo pela simplificação que fazem

da situação e por usarem informação anacróni-

ca. Em especial no que se refere à cidade de Gu-

lu, onde o ERS reinou no passado, mas de ondefoi expulso em meados de 2006 pelas Forças de

Segurança Populares do Uganda Dali, enfraque-cido e reduzido a centenas de efetivos, o ERS

refugiou-se em zonas mais remotas do Uganda,

República Centro Africana, República Democrá-

tica do Congo e República do Sul do Sudão.

Foi, aliás, a concordância das quatro capi-tais — Kampala, Bangui, Kinshasa e fubá — com

Washington, como escreve Itamar Souza na re-vista "África 21", que permitiu materializar a de-

cisão de Barack Obama no envio de 100 milita-

res norte-americanos para "providenciar infor-

mação, aconselhamento e assistência".

Esta é a primeira presença militar nor-te-americana em África desde 2003 (Monróvia,

Libéria) e é matéria delicada. Se o Presidente do

Uganda, Yoweri Museveni, se apressa a dizer

que ninguém fará a luta ao ERS no lugar dos

africanos, este avanço militar, em ano de cam-

panha eleitoral nos Estados Unidos, é tambémvisto como uma tentativa de ampliar o seu raio

de ação militar até aqui limitado ao Djibuti.Do ponto de vista da eficácia das opera-

ções que têm estado a decorrer secretamente

para reduzir o ralo de ação do ERS e caçar

Kony, a campanha não poderia ter vindo em

pior altura, disse Peter Pham, do Atlantic Coun-

cil, um thinlc tank de Washington."0 que o vídeo diz está errado e pode preju-

dicar-nos mais do que ajudar-nos", declarou ao

"Telegraph" Beatrice Mpora, diretora de uma or-

ganização de saúde de Gulu. "Não há ninguémdo ERS aqui desde 2006. Temos paz, as pessoasestão de volta às suas casas, a plantar as suas

terras e nos seus negócios. Aí é que poderiam

ajudar-nos!", rematou.

Luis Moreno-Ocampo, o procurador-geraldo Tribunal Penal Internacional, defende a cam-

panha Kony 2012. Em entrevista à BBC no seu

gabinete de Haia, o argentino, que participou no

vídeo, disse que o mundo deveria estar a "cele-

brar o movimento em vez de condená-lo". JNIa

sua opinião, "miúdos brancos que estão a empre-

gar o seu tempo a tentar proteger miúdos da sua

idade em África não deveriam ser criticados".

Angelo Izame, outro jornalista ugandês, ten-

ta aproveitar o melhor da situação e pergunta:"O que podemos nós no Uganda fazer para apro-veitar esta onda de interesse internacional?" O

cperes@expresso. impresa.pt

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