a figura do vilÃo em barba azul

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1 FACULDADE UNIDA DE SUZANO UNISUZ CURSO DE LETRAS ÁGATHA BANDO A FIGURA DO VILÃO EM BARBA AZUL SUZANO 2011

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FACULDADE UNIDA DE SUZANO – UNISUZ

CURSO DE LETRAS

ÁGATHA BANDO

A FIGURA DO VILÃO EM BARBA AZUL

SUZANO

2011

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ÁGATHA BANDO

A FIGURA DO VILÃO EM BARBA AZUL

Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Licenciatura em Letras, da Faculdade Unida de Suzano, sob orientação da Professora Dr.ª Telma Maria Vieira.

SUZANO 2011

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ÁGATHA BANDO

A FIGURA DO VILÃO EM BARBA AZUL

SUZANO, 08/12/2011

BANCA EXAMINADORA

____________________

Telma Maria Vieira

Doutora

Faculdade Unida de Suzano – UNISUZ

____________________

Paula Barbosa Pudo

Mestre

Faculdade Unida de Suzano - UNISUZ

____________________

Jane Gatti de Campos

Mestre

Faculdade Unida de Suzano - UNISUZ

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AGRADECIMENTOS

Agradeço em primeiro lugar, à Prof.ª Dr.ª Telma Maria Vieira, por ter me aceitado

como orientanda, e me orientado da melhor forma possível, o que eu sabia que não

seria diferente desde o momento em que a procurei para pedir que fosse minha

orientadora. Aos demais professores, por acreditarem que eu faria um bom

trabalho. Aos meus amigos de sala, por prestigiarem meus trabalhos de temas

“estranhos”.

Agradeço à minha mãe, por sempre ter me instigado a ler “histórias de fadas”, por

todo o incentivo dado desde sempre e de forma geral. Agradeço também a todos que

leram para mim estas histórias, quando eu ainda não sabia como fazer isso. Com

todo o “maravilhoso” e feérico, também vieram as “músicas de fadas”, creio que sem

elas, as ideias não nasceriam, e meu trabalho não se concretizaria. Por último, e

não menos importante, Alex Meusburger, pelo suporte e paciência, quando muitas

vezes, eu só via a alternativa de destruir o que já estava pronto.

Page 5: A FIGURA DO VILÃO EM BARBA AZUL

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“As pessoas me perguntam se acredito em magia.

Ora, eu sou um escritor.

Acredito em tudo o que for preciso para fazer uma história funcionar.”

Neil Gaiman

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RESUMO

O trabalho propõe a identificação do vilão do conto maravilhoso Barba Azul, tendo como base de análise a Morfologia do Conto Maravilhoso de Vladimir Propp. Contém também algumas outras importantes informações para que fique mais fácil a compreensão pelo seu desenrolar, tais como a linha do tempo do conto, o contexto histórico da criação da literatura para crianças e a diferenciação entre conto maravilhoso e conto de fadas.Para tanto, além da análise proppeana, foram utilizadas obras de Nelly Novaes Coelho, Nádia Gotlib, Júlio Cortázar e Massaud Moisés para maiores definições de contextos.

Palavras-chave: Conto Maravilhoso, vilão, Barba Azul, Propp.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 8

1 CONTO ................................................................................................................... 9

1.1 Definição .............................................................................................................. 9

1.2 Linha do Tempo ................................................................................................... 9

1.3 Teorias sobre “o Contar” .................................................................................... 10

1.3.1 O conto como relato ........................................................................................ 11

1.3.2 Conto Literário................................................................................................. 12

1.4 O conto maravilhoso e sua forma ....................................................................... 14

1.4.1 As Funções, transformações e origens estudadas por Vladimir Propp ............ 14

1.5 Conto Maravilhoso X Conto de Fadas: sutis diferenças ..................................... 17

1.6 O momento histórico da criação da Literatura para crianças .............................. 17

2 VILÃO: DEFINIÇÃO E FACETAS ......................................................................... 20

2.1 Definição ............................................................................................................ 20

2.2 As facetas de um vilão ....................................................................................... 21

3 BARBA AZUL E AS FUNÇÕES DO VILÃO DE PROPP........................................ 25

3.1 O conto Barba Azul ............................................................................................ 25

3.2 Barba Azul e suas fontes ................................................................................... 26

3.3 Barba Azul, vilão e a Morfologia do Conto Maravilhoso...................................... 27

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 31

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 31

ANEXO .................................................................................................................... 33

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INTRODUÇÃO

O trabalho a seguir tem como objetivo caracterizar o vilão no conto Barba

Azul, de Charles Perrault.

Para identificar, ou encaixar Barba Azul nas características e funções de vilão,

foi necessário buscar na teoria de Vladimir Propp o que e principalmente, como é o

vilão.

Propp, em sua obra Morfologia do Conto Maravilhoso, destaca as funções de

cada personagem, que são andamentos necessários para que o desenrolar dos

contos aconteça.

Antes de partir para conceitos e as funções em si, foi estudado primeiro o

vilão, no capítulo 2, com suas definições e facetas, para verificar a pertinência deste

tema. Feito isso, foi o momento de partir para as noções de conto e momento

histórico da criação da literatura para crianças, com base em Nádia Gotlib e Nelly

Novaes Coelho no primeiro capítulo. Houve também, no primeiro capítulo, a

necessidade de diferenciar Conto Maravilhoso e Conto de Fadas, pois, ainda que

pareçam ser a mesma coisa, não são.

O terceiro capítulo trata da análise de Barba Azul de acordo com as funções

que Propp destaca para o vilão. Neste capítulo também é possível perceber que há

uma fórmula, não só para este personagem, mas para as ações de todo o conto,

que são interligadas, mas é graças ao vilão que a fórmula funciona, caso contrário,

não há conflito, não há enredo.

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1 CONTO

1.1 Definição

De acordo com o Míni Dicionário HOUAISS da Língua Portuguesa (2008), o

termo conto designa uma história curta, que tem únicos conflito e ação, e poucos

personagens.

Segundo a Grande Enciclopédia Larousse Cultural (1998), o conto, na sua

origem, era uma narração oral breve de um fato verdadeiro, ou lendário, reproduzido

de maneira fantástica. Tinha como elementos integrantes a fabulação, a lenda e a

anedota.

Ainda na descrição da enciclopédia, o conto é uma expressão dos mitos

humanos universais, distinto do romance e da novela, por exemplo, por sua

brevidade, mas ainda assim, consegue ser uma narrativa densa.

Dadas as definições e algumas características, a enciclopédia descreve uma

brevíssima linha do tempo do conto. Nela, são citados os contos egípcios como os

mais antigos de que se tem notícia, reunidos em 1889. Há ainda uma breve menção

d‟As Mil e Uma Noites, de autores árabes e o Hitopodesa, hindu.

1.2 Linha do Tempo

Gotlib (2006), em seu livro Teoria do Conto, inicia seu estudo acerca deste

gênero narrativo discutindo sua história. O início é bem parecido com a rápida

descrição da enciclopédia, já que a autora afirma ser o conto uma transmissão de

mitos e ritos dos costumes de um povo, pois algumas destas narrativas contêm

personagens que percorrem a história de seu povo.

Junto da história do conto, também seguiu a questão do contar estórias, que

talvez não seja tão fácil de localizar, o que transporta os teóricos por tempos muito

remotos, nos quais ainda não havia uma tradição escrita, isto é, ainda não havia

acontecido uma evolução no modo de contar.

A autora inicia a linha do tempo do conto com os contos egípcios: Os Contos

Mágicos, os mais antigos de que se tem conhecimento, apareceram por volta de

4.000 a.C. Gotlib (2006) ressalta que a evolução do conto é paralela à evolução da

história da humanidade e da cultura. São lembrados também, nesta linha do tempo,

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10

a Ilíada e a Odisseia, de Homero, e os contos do Oriente, o Pantchatantra (VI a.C.),

em sânscrito e As Mil e Uma Noites, que vão da Pérsia para o Egito e para toda a

Europa.

No século XIV, houve o momento de transição do conto oral, para o escrito,

quando sua categoria estética foi afirmada. “O narrador procura elaboração artística,

sem perder, contudo o tom da narrativa oral.” (Gotlib, 2006, p. 7). O conto escrito

conserva também o recurso das estórias de moldura: todas unidas pelo simples fato

de serem contadas por um alguém a outro.

Já no século XVI veio o Heptameron, de Marguerite de Navarre, no século

XVII, as Novelas Ejemplares, de Cervantes. No final desse mesmo século, surgiram

os registros dos contos de Charles Perrault: Histoires/Contes du Temps Passé, com

o subtítulo de Contes de ma Mère Loye, conhecido como Contos da Mãe Gansa.

Ainda no século XVII, contemporâneo a Perrault, há La Fontaine, habilidoso

contador de fábulas. Entre o final do século XVIII e o começo do século XIX, o conto

desenvolve-se conforme o “apego” com a cultura medieval, com a pesquisa

popular/folclórica e a expansão da imprensa, que permite a publicação destes

contos nas mais variadas revistas e jornais.

Foi também neste momento, criado o conto moderno, por Jacob e Willhelm

Grimm, que começam registros de contos e estudos comparados.

Gotlib (2006) chama a atenção para a força do “contar estórias”, que continua

permanente, necessário e vigoroso, atravessando os séculos e ao mesmo tempo, a

história destas estórias é montada, problematizando a questão do simples contar

histórias.

1.3 Teorias sobre “o Contar”

Dada a linha do tempo do conto, Gotlib (2006) expõe melhor teorias e

observações acerca do conto. Ressalta logo de início as direções da teoria do conto,

que poderiam ser as seguintes: “O lado dos que admitem uma teoria do conto, e o

lado dos que não admitem uma teoria específica.” (p.8), passando a impressão de

que a teoria do conto está filiada a uma teoria geral da narrativa, o que até possui

uma lógica/razão, pois, não há como imaginar o conto fora de um conjunto maior de

maneiras de narrar, ou representar a realidade.

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Gotlib (2006) expõe também opiniões e teorias de outros autores sobre a

resposta da pergunta “O que é o conto?”; pergunta, segundo ela própria,

“angustiosa”. Entre respostas, a autora apresenta uma de Mário de Andrade, de que

conto, é tudo aquilo que o autor batizou como conto.

Júlio Cortázar (2006) afirma que o conto é um gênero que tem uma definição

difícil, pois é muito arredio em seus diversos e por vezes, antagônicos aspectos,

pois, de um lado, é preciso ter uma “ideia viva” de conto, mas ao mesmo tempo, há

uma imensa dificuldade nisso, porque as ideias, tendem ao abstrato, o que tira a

vida do conteúdo. Assim sendo, teorias do conto, são o aceite de que a teoria pode

acabar com a vida deste gênero.

Ainda com Cortázar, pode-se ressaltar três acepções da palavra conto: 1 -

Relato de acontecimento; 2 - Narração oral ou escrita de um acontecimento falso; 3 -

Fábula que se conta às crianças para diverti-las. Dentre todas estas acepções, há

um ponto em comum: o de que são todos modos de contar alguma coisa, e desta

forma, todas são narrativas, pois: “Toda narrativa consiste em um discurso integrado

numa sucessão de acontecimentos de interesse humano, na unidade de uma

mesma ação.” (BREMOND apud GOTLIB, 2006, p. 11).

E realmente, se analisada, toda narrativa apresenta uma sequência de fatos,

isto é, sempre existe algo para narrar; é do interesse humano, ou seja, para nós, de

nós, acerca de nós, e tudo em somente uma unidade de ação. E há formas de

construir essa mesma unidade de ação no projeto humano com uma sequência de

acontecimentos.

1.3.1 O conto como relato

O contar (do latim, computare) uma estória, em princípio, oralmente, evoluiu para o registrar as estórias, por escrito. Mas o contar não é simplesmente um relatar acontecimentos ou ações. Pois, relatar implica que o acontecido seja trazido outra vez, isto é: re (outra vez) mais latum (trazido) que vem de fero (eu trago). Por vezes é trazido outra vez por alguém que ou foi testemunha, ou teve notícia do acontecido. (GOTLIB, 2008, p.12)

Conforme Gotlib (2006), o conto não é referente somente ao que realmente

aconteceu, porque não tem compromisso com o real, a realidade a a ficção são

ilimitadas. O relato é copiado, já o conto, é inventado, a arte do inventar, é a

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representação de algo, então não é preciso conferir se há ou não realidade. Existem

apenas graus de aproximação do real.

1.3.2 Conto Literário

A história do conto é esboçada a partir do critério de invenção desenvolvido.

O início, Gotlib (2006) traça a partir da criação do conto e sua transmissão oral e

somente depois, que passa para seu registro escrito, quando o narrador assumiu o

posto de contador-criador-escritor de contos, afirmando seu caráter literário.

A voz do contador, seja oral ou escrita, sempre pode interferir no seu discurso. Há todo um repertório no modo de contar e nos detalhes do modo como se conta – entonação de voz, gestos, olhares, ou mesmo algumas palavras e sugestões –, que é possível de ser elaborada pelo contador, neste trabalho de conquistar e manter a atenção do seu auditório. (GOTLIB, 2008, p.13)

Conforme a citação, diversos recursos criativos podem ser usados ao passar

o conto oral para escrito, ou seja, no registro destes contos, qualquer mudança que

aconteça, influencia na narrativa. O narrador que fala e/ou escreve, só se afirma

como contista quando há resultado no campo da estética, ou melhor, quando

constrói um conto que ressalta ao próprios valores de conto, na arte do conto. É por

isso que nem todo contador de estórias é um contista.

Esta “arte de contar” só se torna estável numa obra estética quando a voz do

contador/registrador, transforma-se na voz do narrador, que é uma criação desta

pessoa (escritor).

Variedades quanto ao modo de narrar podem ser separadas de acordo com

outras características, que delimitam um gênero. Em certas fases, o problema da

estética evidenciou-se mais. Cada gênero tinha seu público e repertório específicos

de procedimentos/normas usados em obras de arte. Em outros, esses limites se

misturam e as possibilidades de misturar características dos vários gêneros e

alcançar até a dissolução da ideia de gênero e normas.

Os limites de gênero, conforme Gotlib (2006) foram um problema, pois houve

um tempo em que os vários modos de hoje estavam num mesmo gênero, sem

maiores especificações, o que trouxe confusões, refletidas na terminologia.

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São também diferenciados os gêneros narrativos, pois englobam além do

conto, a novela e o romance. E ainda há a fábula e a parábola que, se comparadas

ao conto, têm mais economia de estilo, além da situação e temática resumidas.

A autora começa citando como exemplo Novelas Ejemplares, de Cervantes,

chamadas outrora de cuentos. Em espanhol, hoje, romance, é novela, novela, é

novela corta e conto, é cuento.

La Fontaine , em 1664, usou Nouvelle e Conte sem maiores distinções. Conte

é algo mais concentrado, constituído de somente um episódio principal, forma que

remanesceu da tradição oral, e frequentemente com elementos do fantástico, o que

seria o chamado conto popular. A nouvelle, é uma forma um pouco mais complexa,

mas constitui-se de mais cenas, com uma série de incidentes para análise e

desenvolvimento da personagem ou motivo. Mas a “confusão” continuaria com Guy

de Maupassant, que chamava suas “nouvelles” de “contes”.

Hoje, os termos franceses são os mais próximo do que hé em português:

roman, nouvelle e conte, para: romance, novela e conto, respectivamente.

Gotlib (2006) detém-se também nos termos americanos: Short Story, que

mais do que uma história curta, é um gênero independente, com características

próprias, mas ainda assim, a confusão terminológica prevalecia, pois Irving usava

termos como tale e sketch, enquanto Poe, Hawthorne e Melville usariam tale

distintamente ao termo short story, considerada por alguns como forma de fundo

mais real. Estes termos, então ganharam “fisionomia” mais definida.

Sketch define uma narrativa descritiva, estática, representando um estado,

como é/está algo ou alguém, com personagens não envolvidas em uma cadeia de

eventos, são retratos/quadros/caracteres soltos. Yarn é aplicado a anedotas: um

único episódio incompleto, que pode ter acontecido com alguém e é contado em

linguagem coloquial. Tale, já se aplicaria a uma anedota ampliada, fosse ficção, ou

não, ou o conto popular.

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1.4 O conto maravilhoso e sua forma

Conto maravilhoso liga-se à terceira acepção de Cortázar (2006) sobre o

conto: “Fábula que se conta às crianças para diverti-las”. É a estória e o contar

estórias, com suas personagens não determinadas historicamente. É mais ou menos

o “como as coisas deveriam acontecer”, que satisfaz à expectativa do leitor,

contrariando o real, em que as coisas não acontecem como gostaríamos.

Aqui está o sentido dado ao conto, que junto da lenda, saga, mito, adivinha,

ditado, caso, memorável e chiste é uma forma simples, ou seja, forma que

permanece através dos tempo, recontada várias vezes, mas não perde a sua forma

e opõe-se à forma artística, elaborada por um autor, única , e assim, impossível de

ser recontada sem que perca sua peculiaridade.

O Conto Maravilhoso não pode ser composto sem o seu elemento

“maravilhoso”, que lhe é imprescindível. Personagens, lugares e tempos são

indeterminados historicamente, ou seja, não existe precisão histórica. Um exemplo

disso é o “Era uma vez...” que inicia estes contos, que conforme a autora, seguem

uma moral ingênua, que contraria o trágico real. Não se seguem ações, mas sim, os

acontecimentos, já que as personagens não fazem o que deveriam, mas as coisas,

estas sim, acontecem “como deveriam”.

Os contos maravilhosos são transmitidos oralmente, ou por escrito e

atravessam os séculos, podendo ser contados com as próprias palavras do

contador, sem que seu fundo desapareça. Qualquer pessoa que contá-los manterá

sua forma, esta forma do conto, uma forma simples. Daí vêm sua fluidez e

mobilidade, de ser entendido por todos e de se renovar em suas transmissões, sem

que seja “desmanchado”.

1.4.1 As Funções, transformações e origens estudadas por Vladimir Propp

Em 1812, Grimm alertou para a permanência das tais formas simples do

conto maravilhoso e Jolles desenvolveu sobre o assunto em 1929, mas Vladimir

Propp foi quem as examinou de forma mais minuciosa em A Morfologia do Conto

Maravilhoso, em 1928, de acordo com os moldes do formalismo russo: estudou as

formas, para que fosse possível determinar os elementos constantes e variantes dos

contos, comparando suas estruturas e sistemas.

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Propp (2001), antes de tudo, descreveu os contos, porque precisava definir o

que é conto, para depois estabelecer teses sobre sua origem. Ele rejeitou certas

classificações, como por assuntos, temas e seus motivos por não conhecer a

estrutura dos contos. Dividiu-os somente por unidades estruturais. Assim,

determinou uma Morfologia do Conto Maravilhoso. Ou seja, descreveu o conto de

acordo com suas partes e a relação entre essas partes, e o conjunto do conto.

Conforme Gotlib (2006), Propp, partindo da análise das ações das

personagens, constatou as ações constantes ou seja, funções que independem das

personagens, e dos modos que são praticadas. Isto quer dizer que as mesmas

ações são praticadas por personagens diferentes e de maneiras diferentes.

Ao examinar os contos russos, Propp encontrou 150 elementos que compõem

o conto, e 31 funções constantes, cuja sucessão nos contos é igual.

As funções são um conjunto de ações criadoras da história. Antes que sejam

apresentadas, é necessário ressaltar que todos os contos iniciam-se com uma

situação inicial, não caracterizada como função, mas ainda assim, é um elemento

morfológico importante. Após a situação inicial, o enredo segue o esquema de

funções narrativas abaixo:

1. Afastamento - um membro da família é afastado de casa;

2. Interdição - é feita uma proibição ao herói;

3. Transgressão - a interdição é transgredida, infringida;

4. Interrogação - o agressor tenta obter informações sobre a vítima;

5. Informação - o agressor recebe as informações;

6. Engano / Logro - o agressor tenta enganar sua vítima para que possa

apoderar-se dela ou de seus bens;

7. Cumplicidade - o herói deixa-se enganar, ajudando inconscientemente

seu inimigo;

8. Malfeitoria / Dano - esta função é de extrema importância, porque é

ela que dá ao conto seu movimento característico. As sete primeiras

funções são como a parte preparatória, pois a intriga inicia quando

acontece o dano, ou malfeitoria;

9. Mediação ou Momento de transição - função que introduz em cena o

herói;

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10. Início da ação contrária - o herói decide fazer algo para reparar o

dano sofrido;

11. Partida - o herói deixa a casa;

12. A primeira função do doador - o herói passa por uma prova;

13. Reação do herói - o herói supera a prova;

14. Recepção do objeto mágico - o objeto mágico é colocado a

disposição do herói;

15. Deslocamento no espaço - o herói é transportado para outro lugar;

16. Combate - o herói e seu agressor defrontam-se em combate;

17. Marca - o herói recebe uma marca;

18. Vitória - agressor é vencido;

19. Reparação do dano - a malfeitoria inicial ou a falta são reparadas;

20. Volta - o herói volta;

21. Perseguição - o herói é perseguido;

22. Socorro - o herói é socorrido (pode ocorrer uma repetição da

sequência de funções anteriores);

23. Chegada incógnita - o herói chega incognitamente;

24. Pretensões falsas - um falso herói assume o papel do herói;

25. Tarefa difícil - ao herói é sugerida uma tarefa difícil;

26. Tarefa cumprida - o herói realiza a tarefa;

27. Reconhecimento - o herói é reconhecido por algum sinal;

28. Descoberta - o falso herói é desmascarado;

29. Transfiguração - o herói recebe uma nova aparência;

30. Punição - o falso herói é punido

31. Casamento - o herói casa-se e sobe ao trono.

Propp (1978, p. 201-32 apud GOTLIB, 2006, p. 20-26), também examinou as

transformações que a realidade faz nos contos. Ele chama estas

transformações/modificações de formas derivadas, pois dependem da realidade em

que o conto aparece e de suas determinações culturais.

Propp concluiu ainda que há 20 casos de transformações de elementos, que

se fazem alterando a forma fundamental diminuindo, deformando, invertendo,

fortalecendo, ou enfraquecendo as ações das personagens, ou por substituições, ou

assimilações.

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A diferença base para se reconhecer as transformações no conto maravilhoso

é distinguir o que é da fonte do conto, e o que foi adquirido posteriormente, e Propp

estudou isso com mais detalhes em As Raízes Históricas do Conto Maravilhoso.

1.5 Conto Maravilhoso X Conto de Fadas: sutis diferenças

Ainda que façam parte do mesmo mundo maravilhoso, “Contos Maravilhosos”

e “Contos de Fadas” apresentam diferenças essenciais quando analisadas em

função da problemática que lhes serve de fundamento. Pode-se afirmar de acordo

com Coelho (2008, p. 85), que o conto maravilhoso tem raízes orientais e gira em

torno de uma problemática material/social/sensorial – busca de riquezas, conquista

de poder, a satisfação do corpo, ligada basicamente à realização socioeconômica do

indivíduo em seu meio.

O conto de fadas tem raízes celtas, e conforme Coelho (2008, p. 85) gira em

torno de uma problemática espiritual/ética/existencial, ligada à realização interior do

indivíduo por meio do Amor. Suas temáticas têm o motivo central encontro/união do

cavaleiro com a amada (princesa ou plebeia), após vencer grandes obstáculos

impostos pela maldade de alguém.

A fada vem do mundo dos mitos, mas tem um lugar privilegiado na aventura

humana. O ser humano é limitado por sua materialidade física e de seu mundo, e

naturalmente, precisa de mediadores mágicos. Entre ele, e a possível realização de

seus sonhos, ideais, aspirações, sempre existiram mediadores e opositores. Os

primeiros são as fadas, talismãs, varinhas mágicas, etc.; os segundos são gigantes,

bruxas, feiticeiros que atrapalham ou impedem seus desígnios. Existem, ainda, os

contos exemplares, nos quais se misturam a problemática social e a existencial.

Câmara Cascudo chamou-os de “Contos de encantamento”.

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1.6 O momento histórico da criação da Literatura para crianças

De acordo com Coelho (2010) esta literatura é o resultado de uma valorização

da Fantasia e da Imaginação construída a partir de textos da Antiguidade Clássica,

ou narrativas orais do povo. Esta “tradição” diverge da alta literatura clássica,

produzida no momento: teatro, oratória e teorização poética.

No panorama das ideias e correntes características da época, há justificativa

para tal literatura. Conhecendo este panorama e como nasceu a literatura infantil, é

possível ver a seriedade e objetivos que encaminharam a construção de seus títulos.

Nada nessa produção é gratuito, ou seja um entretenimento sem importância, ou

sentido, como é vista a Literatura Infantil/Juvenil.

Coelho (2010, p. 76) mostra o momento cultural da criação da Literatura

Infanto-Juvenil. Foi após uma turbulência política e desequilíbrio que se seguiram ao

aparecimento do Renascimento e anarquia das guerras civis, a França tentou

reencontrar seu equilíbrio.

O século XVII francês foi caracterizado pelo esforço de estabelecer uma

ordem racional, no pensamento, assim como na sociedade, costumes e vida em

geral.

A tal “ordem racional”, conforme Coelho (2010), tinha como fundação o

seguinte princípio humanista: por meio da Razão, o homem poderia conhecer a

Verdade, a Beleza e o Bem. A Razão é vista como o poder inato para o

conhecimento, tendo em vista experiência concreta para desenvolver amplamente

suas possibilidades inatas, é compreensível a força dos dois fatores marcantes da

arte clássica: o destaque na grandeza do homem e obediência ao modelo dos

antigos, que eram dignos de serem imitados.

Em 1637, com o Discurso do Método, de Descartes, é bem ilustrada esta

tendência filosófica. De acordo com este ideal dominante, era instaurado o

racionalismo na literatura, confrontando sempre com forças opostas: o preciosismo e

o realismo libertino, que, na primeira metade do século “manifestaram-se na

produção da prosa narrativa, caudalosa, exuberante, fantasista, que contrastava

completamente da alta disciplina, que presidia aos gêneros nobres da época: o

teatro e a poesia.” (COELHO, 2010, p. 76).

Page 19: A FIGURA DO VILÃO EM BARBA AZUL

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Coelho (2010) também aponta para o ideal de vida heroica, que exemplifica

muito bem com o Dom Quixote, de Cervantes, que foi criado na decadência das

novelas cavalheiresca, mas trouxe de volta o idealismo e a figura do herói.

No campo da Literatura Infanto-Juvenil, o personagem foi eternizado por suas

façanhas, possíveis somente para mentes geniais, tais e quais as infantis. Em nosso

país, há “rastros” destas novelas na literatura de cordel.

O século XVII, em suas décadas iniciais, prolonga o ideal de vida heroica e

romanesca, típicos do Renascimento. Ideal de grandeza humana fundamentado

entre os franceses sobre um estoicismo cristão. Em meados deste mesmo século,

este “ideal” passa por mudanças. Molière, com seu teatro, e La Fontaine, com suas

fábulas, mostram que não se crê mais nesse ideal estoico. A grandeza do homem é

posta em questão.

Os autores supracitados não eram pessimistas em relação ao ser humano,

apenas deixam claro que não se deve esperar demais do homem, seria muito

ingênuo afirmar, ou crer que ele é naturalmente bom e que sua razão está inclinada

à Verdade e ao Bem.

Conforme as palavras de Coelho (2010), La Fontaine constatou que a razão

do mais forte é sempre melhor. E o ideal muda, já não se sonha mais com

heroísmos, e sim que o homem deve buscar uma sabedoria modesta. É questionada

também a legitimidade do magistério dos antigos.

Perrault é lido em sessão extraordinária na Academia Francesa,

desencadeando a “Querela dos antigos e dos Modernos”, o que traz à tona

discordâncias internas do pensamento e da estética clássica, que se prolonga pelo

século XVIII, auxiliando nas novas ideias e no surgir da Era Romântica.

Índice claro destas discordâncias é o fato de que exatamente no apogeu do Racionalismo clássico (entre 1659 e 1680 mais ou menos) surgem as “obras clássicas” da Literatura infantil, hoje espalhadas por todo o mundo civilizado e que valorizam basicamente a fantasia, o imaginário, o maravilhoso, exatamente o contrário da atitude racionalista preconizada no momento. (COELHO,2010, p. 80)

Coisa que diverge muito, visto que no chamado “Século das Luzes”, em que o

Racionalismo era “moda” surgiram também estes contos, permeados de fantasias e

demais coisas irreais, que, na atualidade, ainda são parte integrante e atuante no

mundo literário e pedagógico.

Page 20: A FIGURA DO VILÃO EM BARBA AZUL

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2 VILÃO: DEFINIÇÃO E FACETAS

2.1 Definição

O termo, a princípio só servia para designar o habitante dos ajuntamentos

feudais (a vila), e usado como adjetivo passa a ser o mesmo que vil, indigno e

desprezível.

Quando empregado na literatura, ou dramaturgia, o termo toma outras formas

sendo mais conhecido como “Antagonista”, que indica o personagem contrário ao

“Protagonista", o rival.

Ceia (2010), em seu dicionário on-line de termos literários, baseado nas mais

diversas fontes, formula este conceito de forma a apontar uma oposição direta ao

“Protagonista”, também citando as origens do termo, com o gênero dramático:

Originalmente, na tragédia grega, o antagonista designava o segundo ator, que vinha depois do primeiro, o protagonista. Deve-se a Ésquilo a sua introdução, o que permitiu, no teatro, o desenvolvimento do diálogo. No Rei Édipo, de Sófocles, por exemplo, considera-se Édipo o protagonista e sua mãe Jocasta a antagonista. (CEIA, 2010)

Com o passar do tempo, a definição de vilão foi mudando daquilo que era no

início para outras concepções. Para mostrar tal mudança destaca-se a primeira

opção do Míni Dicionário Houaiss, em que “vilão” indica habitante de vila e em

segundo lugar, um indivíduo desprezível, indigno.

Assim, na atualidade o “Antagonista” passa a ser representado de forma

quase invariável nas narrativas, como o “vilão”, o patife, um tratante.

Há também casos de narrativas em que o mau caráter (Vilão) é o

“Protagonista”. Neste sentido, o “Antagonista” passa a ser o lado simpático da

história. Como exemplos, podem ser citadas narrativas policiais ou de guerra, nas

quais a figura central pode ser um criminoso ou um ditador e seus antagonistas,

representam a lei e a justiça.

Ainda sobre os conceitos, pode-se citar Moisés (1974, p.26-27): “Antagonista

vem do grego e significa „contra ator‟.”, pois na tragédia grega, o termo designava o

segundo ator e oposto ao “Protagonista”.

Atualmente, o “Antagonista” é a personagem com que se defronta o

“Protagonista”. De uma maneira genérica, sinonimiza „competidor‟, „adversário‟.

Page 21: A FIGURA DO VILÃO EM BARBA AZUL

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Sendo assim, na concepção atual, o Antagonista será o personagem contrário

ao personagem principal e em muitos casos, conforme o exemplificado, esta posição

será independente de sua índole. A concepção de “vilão” a ser utilizada no trabalho,

é aquela em que o personagem “vilão” está contra o herói e faz de tudo para

atrapalhar seus planos e/ou testá-lo.

2.2 As facetas de um vilão

Assim como outros personagens, o vilão tem várias faces e maneiras de

aparecer em uma narrativa.

Estas “facetas” são mostradas de forma detalhada por Propp em sua

Morfologia do Conto Maravilhoso, nomeando-as “funções”: “Por função,

compreende-se procedimento de um personagem definido do ponto de vista de sua

importância para o desenrolar da ação.” (PROPP, 2001- p.17), podendo as funções

aparecerem de forma total ou parcial durante a narrativa.

Esclarecendo o conceito de “função”, o autor explica que as funções

desempenhadas pelos personagens são “elementos constantes e permanentes do

conto maravilhoso” (PROPP, 2001- p.17). Desta forma, independem da maneira pela

qual autores e/ou contos as executam. São, portanto, as constituintes básicas do

conto.

Propp (2001), antes mesmo de trabalhar as funções, levanta elementos

importantes, sobre a situação inicial do conto, e todos os dados necessários para o

desenrolar da história: a enumeração de membros da família, quem será o futuro

herói, que é normalmente apresentado quando se menciona seu nome, ou sua

condição/situação. Destaca que mesmo não constituindo uma função, a “situação

inicial” é um elemento morfológico importante.

Dados os elementos que normalmente precedem às funções de cada

personagem central, Propp (2001) inicia descrevendo as três funções iniciais do

“Herói” (“Protagonista”), para só então introduzir as do “Antagonista”. Apresenta o

“Antagonista” como “agressor”, estando seu papel na narrativa ligado à destruição

da paz, a causa de desgraças, danos e prejuízos, tal e qual o conceito de “Vilão” já

estabelecido aqui. O “Antagonista”, destaca Propp, pode ainda aparecer na narrativa

Page 22: A FIGURA DO VILÃO EM BARBA AZUL

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por variados meios e possuir diversas formas, desde um dragão, até um velho

mago.

A primeira função do “Antagonista” é aquela em que ele procura informações

sobre sua “Vítima” (Herói), para descobrir detalhes importantes e que favoreçam a

ele (interrogatório). Neste ponto, Propp (2001) destaca que a obtenção de

informações pode acontecer também de maneira indireta, conseguindo-as por meio

de terceiros ou mesmo a possibilidade de inversão, na qual quem revela os seus

segredos é o “Agressor” (Vilão).

Na segunda função, o “Antagonista” recebe as informações sobre sua

“Vítima” (Herói), o que normalmente são as respostas diretas a seu interrogatório,

podendo esta passagem ser expressa em forma de diálogo. Já no interrogatório

invertido, os papéis de quem faz as perguntas e quem as responde somente se

invertem.

O “Antagonista” recebe as informações que quer, ou precisa e tenta ludibriar

sua “Vítima” (Herói) para apoderar-se dela ou de seus bens. Este ato pode

acontecer de várias formas, entre elas: assumir feições alheias, persuasão, meios

mágicos, fraude e coação. A “Vítima” (Herói) pode ainda que involuntariamente,

ajudar o inimigo, deixando-se persuadir pelo “Antagonista”, aceitando propostas

enganosas, por exemplo.

As maneiras acima são consideradas por Propp (2001) como “não

agressivas” de um “Antagonista” aparecer e atuar em um conto, contudo ressalta a

existência da função que denomina “Dano” na qual o “Antagonista” causa dano ou

prejuízo de qualquer ordem a um dos membros da família da situação inicial.

O “Dano” é uma função bem delineada e importante, pois é a partir dela que o

conto maravilhoso movimenta-se. As funções iniciais do “Protagonista” (Herói) e do

“Antagonista" servem, então, para tornar a função “Dano” possível ou somente

facilitá-la, podendo ser consideradas somente uma parte preparatória do conto

maravilhoso, ao passo que o “nó” da intriga, de acordo com Propp, liga-se ao

“Dano”.

As formas de dano, assim como nas outras funções, são variadas. Vão de

raptos e roubos de objetos mágicos, destruição de plantações, passando por

extorsão, expulsão, matrimônios forçados, indo até ordem de assassinatos e

declarações de guerra.

Page 23: A FIGURA DO VILÃO EM BARBA AZUL

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Apresentam-se de diferentes maneiras, de acordo com o material escolhido

para análise. Porém, os contos, não necessariamente começam por uma agressão.

Há outros inícios, que acarretam frequentemente o mesmo desenvolvimento da

função. Dando atenção a este fato, ou “fenômeno”, é possível observar que esse

tipo de conto começa por uma situação de carência, ou penúria, o que pode gerar

uma procura, semelhante à procura no caso dano-agressão.

Posicionando o “Antagonista” e o que ele pode fazer numa história, Propp

(2001) retoma as funções do “Herói” e os desafios que podem surgir nestas novas

funções, neste ponto retoma o foco ao “Antagonista”, no que diz respeito ao

combate com o “Herói”, que pode acontecer em diferentes ambientes e as batalhas,

podem ser as mais diversas, podendo ser propostas por qualquer das partes.

Em seguida, é descrita a função em que o “Herói” é marcado neste combate

por seu “Agressor” (Vilão), por uma ferida ou estigma podendo esta ser feita por

vários meios e ser tanto boa quanto ruim.

Assim, havendo o combate ou não, o “Antagonista” (Vilão) finalmente é

vencido. A vitória, portanto, não depende diretamente deste combate.

Intercalando, Propp (2001) retoma as funções do “Herói”, efetuando

repetições das funções iniciais. Faz, no entanto, outras abordagens, focando as

mesmas de outras formas. Entra também nesta repetição de funções, o “Anti-herói”,

por muitas vezes, confundido com o “Antagonista” (Vilão), o autor aponta que o

mesmo, não é nada além de um “falso-herói”, ainda que o “Antagonista” (Vilão)

também possa se disfarçar de “Herói”, a análise deve ser cuidadosa para que os

elementos sejam distinguidos.

O termo “Antagonista” (Vilão) é retomado uma última vez, para explicar a

função de desmascaramento, que acontece quando o “Herói” verdadeiro é

reconhecido, em casos como o citado acima, em que o “Antagonista” (Vilão) assume

disfarces para ludibriar sua(s) vítima(s), esta função aplica-se também ao “Anti-

herói”.

As funções, de alguma forma, são interdependentes entre si, mas ainda assim

é possível isolar as que tratam de personagens específicos, na verdade, os

principais de uma narrativa, para estudá-los separadamente, de uma forma mais

detalhada.

Page 24: A FIGURA DO VILÃO EM BARBA AZUL

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Definindo o “Vilão”, e as formas que aparece e participa da narrativa, é

possível enquadrar o perfil em qualquer que seja o conto. Neste trabalho, isso se

dará no capítulo a seguir, em que será analisado o personagem Barba Azul, do

conto homônimo de Charles Perrault, em que ao mesmo tempo o “Protagonista” é o

“Vilão”. A análise, como citado, será feita sob a ótica das funções encontradas e

descritas por Propp, em sua Morfologia do Conto Maravilhoso.

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3 BARBA AZUL E AS FUNÇÕES DO VILÃO DE PROPP

3.1 O conto Barba Azul

O conto mostra a história de um rico fidalgo de aparência terrível que

afugentava moças e mulheres graças à sua barba que era azul, quase da cor do

céu. Barba Azul desejava casar-se novamente, por isso foi visitar uma vizinha, que

tinha duas filhas. As moças, a princípio, jogavam uma para a outra o fardo de casar-

se com o homem, mas depois de alguns dias de gentilezas mil, a mais jovem

decide-se a casar com ele, julgando-o um homem digno.

O conflito tem seu início quando o marido, após um mês de casado precisa

ausentar-se a negócios e deixa um molho de chaves com a esposa; junto dele, uma

proibição: ela poderia abrir qualquer cômodo da casa, exceto um gabinete no porão.

E o que não poderia/deveria ser feito, consumou-se.

Ao entrar, ela deparou-se com os cadáveres das mulheres anteriores de

Barba Azul presos às paredes do quarto. No espanto e terror da situação, ela deixa

a chave cair numa poça de sangue, ficando manchada, o que só foi percebido

quando ela retornou a seus aposentos.

Vista a mancha, a moça tentou limpar, mas a chave era mágica, por isso, ela

limpava a mancha de um lado e a mesma aparecia do outro lado, tornando a

limpeza inútil. Além deste infortúnio, a jovem esposa teve outro, pois o marido

voltara muito antes do previsto, dizendo que antes mesmo de chegar ao destino,

fora informado de que seus negócios haviam prosperado.

Barba Azul esperou somente um dia após sua volta para pedir o molho de

chaves à esposa, que tentou driblá-lo, mas sem sucesso. Ela levou as chaves ao

marido, e ele apenas constatou o que já imaginava: a mulher havia infringido sua

proibição. Em questão de minutos, ela mesma se denunciou e ele a ameaçou de

execução.

A mulher pediu um tempo para rezar e encomendar sua alma, e assim, subiu

com a irmã mais velha para a torre mais alta. Lá, ela lembrou que seus irmãos iriam

visitá-la e pediu que a irmã fizesse um sinal para que eles se apressassem.

Se chegassem em tempo, poderiam salvá-la de seu terrível destino nas mãos

de Barba Azul.

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Em meio às ameaças do marido, eis que o milagre aconteceu, quando Barba

Azul a segurava pelos cabelos, os irmãos chegaram e o atravessaram com espadas

e a jovem mulher tornou-se a única herdeira da fortuna do marido.

3.2 Barba Azul e suas fontes

Assim como outras histórias, Barba Azul também teve fontes de inspiração. É

bem provável que este conto tenha sua raiz na lenda do tesouro de Íxion, da

mitologia grega. Íxion teria sido um rei da Tessália, que se casou com a ninfa Dia,

após fazer-lhe promessas de muitos presentes e também de um tesouro secreto.

Depois do casamento, quando Dia reclamou o presente, o marido recusou-se a dar-

lhe e com raiva, atirou-a numa fossa cheia de carvões acesos. Devido a este e a

todos os seus crimes, Íxion foi condenado ao Tártaro, lugar no qual passou a

eternidade atado a uma roda de fogo.

A partir dos séculos XII e XVI os textos da Antiguidade Clássica começaram a

circular pela Europa e fundiram-se com outras narrativas, procedentes de diversas

fontes e culturas, por isso é possível compreender as alterações processadas que

as tornaram irreconhecíveis.

Outras fontes, ainda acreditam que Charles Perrault, o autor deste e de outros

contos da obra Contes du Temps Passé baseou-se num nobre bretão do século XV

ex-companheiro de batalha de Joana D‟arc, e notório assassino, conhecido por suas

atrocidades contra crianças e também por ter encarcerado a única esposa que a

história tem conhecimento numa masmorra após esta ter dado à luz uma menina.

Há também a relação com a obra de São Gildas, beato do séc. V / VI. Ele

descreveu a história de um nobre, que casava e matava suas mulheres assim que

engravidavam. Os fantasmas das esposas mortas anteriormente avisaram a última

esposa sobre o perigo que ela corria, mas quando ficou grávida, ela também foi

morta pelo marido, mas ressuscitada por São Gildas.

Estas são as possíveis fontes que inspiraram Perrault na criação do conto.

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3.3 Barba Azul, vilão e a Morfologia do Conto Maravilhoso

Para início da análise do personagem Barba Azul, conforme a análise

proppeana do vilão (antagonista) é necessário retomar dois conceitos anteriormente

descritos de forma mais detalhada: o que é vilão e o que é Conto Maravilhoso.

Há dois tipos de personagem, o Herói e o Vilão, representam o bem e o mal

respectivamente. Neste capítulo será tratado o Vilão. Por vilão pode-se entender o

seguinte conceito: indigno, vil, que tem atitudes desprezíveis.

É necessário também retomar o conceito de Conto Maravilhoso. Coelho

(2008) define como Conto Maravilhoso o conto que gira em torno do

material/social/sensorial, que contém busca de riquezas, conquista de poderes,

satisfação física e o que está ligado às realizações socioeconômicas de um

indivíduo em seu meio.

Esclarecidos estes dois conceitos, é possível classificar o personagem e sua

figura dentro do conto.

Em Barba Azul, há um vilão protagonista, uma vez que o malfeitor é também

o personagem principal.

Todo conto, de acordo com Propp (2001), apresenta uma situação inicial, não

é exatamente uma função, mas é essencial para apresentar o ambiente e os

personagens principais da trama.

Na situação inicial, Barba Azul é apresentado sem muitos pormenores,

informa-se somente quem e como ele é, a pretensão dele é informada instantes

depois, com o aparecimento da vizinha e suas filhas e consuma-se quando ele

desposa uma delas.

Propp (2001), após explicar o que é situação inicial, listou e exemplificou as

funções encontradas no Conto Maravilhoso. Com Barba Azul serão tratadas as

funções do Antagonista (Vilão).

INTERROGAÇÃO - momento em que o agressor tenta obter uma informação.

Seguida da INFORMAÇÃO - o agressor recebe a informação.

Ao apresentar-se à vizinha, Barba Azul obtém informações sobre a família

(interrogação) e ao receber estas informações (informação), dispõe-se a casar com

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uma das filhas da mulher, ou melhor, dispõe-se a casar com aquela que quiser se

casar com ele.

ENGANO, ou LOGRO - o agressor tenta enganar a vítima, para que possa se

apoderar dela, ou dos bens e CUMPLICIDADE - quando o herói se deixa enganar,

ajudando o inimigo sem saber.

A vizinha conversa com as filhas, e num primeiro momento, nenhuma quer se

unir ao misterioso fidalgo, e assim, ficam num jogo, em que uma passa a decisão

para a outra. Para conquistar a família e a possível noiva, Barba Azul convida as

jovens e a mãe para uma temporada em uma de suas casas de campo, com tudo do

bom e do melhor (engano/logro). Após este tempo na companhia do fidalgo, a filha

mais jovem decide casar-se com ele, por tê-lo julgado um homem muito digno

(cumplicidade). A moça deixa-se levar pelas “qualidades” do vilão.

Nesta parte, fica ainda mais clara a esfera da qual trata o Conto Maravilhoso,

o material/social, já que a moça, de acordo com o relato do conto, rende-se ao

pedido de casamento após a temporada na casa de campo de Barba Azul, rodeada

de mimos e afins. O vilão também não foge da esfera social, pois procurava uma

esposa para “mostrar”.

Com o casamento de Barba Azul com sua jovem esposa, há uma entrada em

algumas funções do herói (neste caso, a jovem), para que seja possível

compreender melhor o que vem depois com o vilão, porque funcionam como uma

preparação para a intriga, que ocorre no momento em que é causado o dano ao

herói.

AFASTAMENTO - momento em que um membro da família afasta-se de casa.

Ao se casar, a jovem vai morar com o marido, ficando longe da família.

INTERDIÇÃO - é feita uma proibição ao herói.

Um mês após o casamento, Barba Azul diz à mulher que precisa viajar por no

mínimo seis semanas deixando-a livre para passar esses dias com amigas, mas

antes de sair, entrega-lhe um molho de chaves. Lá estão as chaves dos guarda-

louças, dos cofres, e também a menor chave que abria um gabinete do porão,

proibindo a mulher de entrar lá sob hipótese alguma.

Page 29: A FIGURA DO VILÃO EM BARBA AZUL

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TRANSGRESSÃO - a interdição é transgredida/desrespeitada.

A moça chama as amigas para passar o dia em sua casa, para que vissem as

tapeçarias e pratarias, ela também resolve descer ao gabinete proibido, tamanha é

sua curiosidade de saber o que há lá dentro.

Aqui também cabe outra consideração de Propp (2001) sobre o conto

maravilhoso, de que neste tipo de conto, sempre há um objeto mágico, seja uma

varinha, um amuleto, ou qualquer outra coisa e no conto de Perrault, é a chave do

gabinete, que é mágica, pois, conforme a moça limpa-a, tentando tirar a mancha, a

mesma muda de lugar e assim, não desaparece.

MALFEITORIA / DANO - função de extrema importância, pois dá movimento ao

conto.

A introdução à malfeitoria é dada com a volta de Barba Azul, dizendo que foi

avisado da prosperidade dos negócios e por isso regressou à casa e a cobrança do

molho de chaves no dia seguinte à sua volta.

A esposa denuncia seu nervosismo ao tentar tremulamente desconversar, o

que deixa Barba Azul impaciente e desconfiado do que havia se passado em sua

ausência. Ao ver a chave manchada, ele ameaça a esposa com o mesmo triste final

das anteriores, para ele, ela devia ser executada naquele exato momento.

Para driblar o marido e tentar ganhar algum tempo, ela pede que ele a deixe

rezar para encomendar sua alma na torre mais alta do castelo. Lá chegando, ela

pediu à irmã mais velha que fique na janela gesticulando para que os irmãos que

estavam indo visitá-la se apressassem e a salvassem. Passado o tempo concedido

à moça, Barba Azul recomeçou a gritar, ameaçando ir buscá-la na torre. Ela vai ao

encontro do marido, que a pega pelos cabelos, pronto para degolá-la com um cutelo.

COMBATE - herói e agressor defrontam-se em combate

O combate acontece no momento em que os cunhados de Barba Azul

adentram a casa e pegam-no em flagrante. O fidalgo tenta fugir, mas os rapazes são

mais rápidos e alcançam-no, atravessando-o a fio de espada. (VITÓRIA - o agressor

é vencido).

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REPARAÇÃO DO DANO - a malfeitoria inicial ou a falta são reparadas.

Como Barba Azul não tinha herdeiros, a esposa ficou com todos os seus

bens, e ajudou sua família e reencontrou também um amor que a fez esquecer o

que havia padecido nas mãos de Barba Azul.

O Conto de Perrault não é composto somente por funções relacionadas ao

vilão, mas a análise proposta era somente destinada a este personagem.

De acordo com Propp (2001), há outras funções contidas nos mais variados

contos maravilhosos, e ainda que ele as tenha ordenado, não há uma ordem muito

precisa para que elas aconteçam, mas mesmo assim as principais funções

aparecem e são identificáveis, como é o caso de Barba Azul.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme o proposto na introdução e o destacado no desenvolvimento, o

objetivo deste breve estudo é definir e analisar a figura do vilão no conto Barba Azul.

Os contextos históricos ajudaram na compreensão não só no ato da leitura,

quanto na pesquisa.

Igualmente importantes foram as fontes que o autor usou para escrever o

conto, que ainda reduzidas auxiliaram na compreensão de Barba Azul enquanto

personagem.

O personagem do conto de Perrault ilustra bem a teoria proppeana do conto

maravilhoso, pois é ele quem dá movimento, ação à narrativa. Não fosse o vilão com

suas façanhas sejam elas bem, ou mal sucedidas não haveria conflitos, ou somente

um único conflito. O conto não seria tão interessante como é, ou melhor, não seria

conhecido em nossa época.

O tema, bem como a pesquisa realizada deixa sugestões para outras leituras,

talvez pormenorizadas.

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REFERÊNCIAS

BARBA AZUL. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Barba_Azul>. Acesso em: 31.out.2011.

CEIA, Carlos. E-Dicionário de termos literários. Disponível em: <http://www.edtl.com.pt>. Acesso em: 20 abr.2011.

COELHO, Nelly Novaes. Panorama histórico da literatura infantil/juvenil: das origens indo-europeias ao Brasil contemporâneo. 5.ed. Barueri, SP: Manole, 2010.

COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas: símbolos - mitos - arquétipos. São Paulo: Paulinas, 2008.

CORTÁZAR, Júlio. Valise de Cronópio. Trad. Davi Arrigucci Júnior. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006.

GOTLIB, Nádia Batella. Teoria do conto. 11.ed. São Paulo: Ática, 2006.

GRANDE ENCICLOPÉDIA LAROUSSE CULTURAL. São Paulo: Nova Cultural, 1998. v.7.

GAIMAN, Neil. Criaturas da noite. Ed. especial. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.

HOUAISS, Antônio e VILLAR, Mauro de Salles. Minidicionário Houaiss da língua portuguesa. 3. ed. rev. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.

MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 12.ed. São Paulo: Cultrix, 2004.

PERRAULT, Charles. O Barba Azul. Disponível em: <http://members.fortunecity.com/gafanhota/perrault.htm>. Acesso em: 09.mar.2011.

PROPP, Vladimir Iakovlevitch. Morfologia do conto maravilhoso. 2.ed. São Paulo: Forense Universitária, 2001.

SUPER INTERESSANTE. São Paulo: Abril, n. 265, mai. 2009. p. 40

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ANEXO

O Barba-Azul

Charles Perrault Era uma vez um homem que tinha belas casas na cidade e no campo, baixela

de ouro e prata, móveis trabalhados e carruagens douradas; mas, por desventura,

esse homem tinha a barba azul: isto o fazia tão feio e tão terrível que não havia

mulher nem moça que não fugisse ao vê-lo.

Uma de suas vizinhas, dama de alta linhagem, tinha duas filhas absolutamente

belas. Ele pediu-lhe uma delas em casamento, deixando a escolha à vontade

materna. Nenhuma das duas o queria, e cada uma o passava à outra, pois nenhuma

podia decidir-se a aceitar um homem de barba azul. Aborrecia-as também a

circunstância de ele já ter desposado várias mulheres sem que ninguém soubesse o

que era feito delas.

Para travar relações com as moças, Barba-Azul levou-as, juntamente com a

mãe e as três ou quatro melhores amigas, e algumas jovens da vizinhança, a uma

das suas casas de campo, onde passaram nada menos de oito dias. E eram só

passeios, caçadas e pescarias, danças e festins e merendas: ninguém dormia,

levavam a noite a pregar peças uns aos outros; afinal, tudo correu às mil maravilhas,

e a mais nova das meninas começou a achar que o dono da casa não tinha a barba

tão azul, e que era homem muito digno. E, logo que tornaram à cidade, realizou-se o

casamento.

Ao cabo de um mês, Barba-Azul disse à mulher que tinha de fazer uma

viagem à província, de seis semanas, no mínimo, para um negócio de importância;

que lhe pedia se divertisse à vontade durante a ausência dele – mandasse buscar

suas boas amigas, levasse-as ao campo, se quisesse, comesse do bom e do

melhor.

– Aqui estão – disse-lhe – as chaves dos dois grandes guarda-móveis; aqui

as da baixela de ouro e de prata que só se usa nos grandes dias; aqui as dos meus

cofres, onde está o meu ouro e a minha prata, as dos cofres de minhas joias e aqui

a chave de todas as dependências da casa. Esta chavezinha é a chave do gabinete

que fica no extremo da grande galeria do porão: pode abrir tudo, pode ir aonde

quiser, mas neste pequeno gabinete eu lhe proíbo de entrar, e o proíbo de tal

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maneira que, se acontecer abri-lo, não há nada que você não possa esperar da

minha cólera.

Ela prometeu cumprir à risca tudo quanto acabava de ser ordenado: e ele,

depois de beijá-la, toma sua carruagem e parte.

As vizinhas e as boas amigas não esperaram, para ir à residência da jovem

esposa, que as mandassem buscar, tão sôfregas estavam de ver-lhe todas as

riquezas da casa, não havendo ousado ir lá enquanto o marido se achava por causa

de sua barba azul, que lhes fazia medo. E ei-las, sem perda de tempo, a percorrer

os quartos, gabinetes, vestiários, cada um mais belo que os outros. Subiram depois

aos guarda-móveis, onde não se cansavam de admirar o número e a beleza das

tapeçarias, dos leitos, dos sofás, dos guarda-roupas, dos veladores, das mesas e

dos espelhos, nos quais a gente se via da cabeça aos pés, e cujos ornatos, uns de

vidro, outros de prata, ou de prata dourada, eram os mais belos e magníficos que já

se poderiam ter visto. Não cessavam de exagerar e invejar a felicidade da amiga, a

quem, no entanto, não alegravam todas essas riquezas, ansiosa que estava de abrir

o gabinete do porão.

Sentiu-se tão premida pela curiosidade que, sem refletir que era uma

indelicadeza deixas sozinhas as visitas, desceu até lá por uma escadinha oculta, e

com tamanha precipitação que por duas ou três vezes pensou em quebrar o

pescoço. Chegando à porta do gabinete, aí se deteve algum tempo, lembrando-se

da proibição que o marido lhe fizera e considerando que lhe poderia acontecer uma

desgraça por haver sido desobediente; mas a tentação era tão forte que ela não a

pôde vencer: tomou da chavezinha e abriu, trêmula, a porta do gabinete.

A princípio não viu coisa alguma, porque as janelas se achavam fechadas;

momentos depois começou a notar que o soalho estava todo coberto de sangue

coalhado, no qual se espelhavam os corpos de várias mulheres mortas, presas ao

longo das paredes (eram todas mulheres que Barba-Azul desposara e que havia

estrangulado). Cuidou morrer de susto, e a chave do gabinete que acabava de

retirar da fechadura, caiu-lhe da mão. Após haver recobrado um pouco o ânimo,

apanhou a chave, fechou a porta e subiu ao quarto para refazer-se; não o

conseguia, porém, devido à sua grande perturbação.

Tendo notado que a chave do gabinete estava manchada de sangue, limpou-

a duas ou três vezes, mas o sangue não desaparecia; lavou-a, esfregou-a com

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sabão e pedra-pomes; debalde: o sangue ficava sempre, pois a chave era fada, e

não havia meio de limpá-la inteiramente: quando se tirava o sangue de um lado, ele

voltava do outro.

Barba-Azul regressou de sua viagem logo nessa noite, e disse haver

recebido, no caminho, notícias de que o negócio que o levara a partir acabara de

realizar-se com vantagem para ele. A mulher fez quanto pôde para se mostrar

encantada com esse breve retorno.

No dia seguinte ele pediu-lhe as chaves, e ela as entregou, porém a mão

tremia tanto que Barba-Azul adivinhou sem esforço todo o ocorrido.

– Por que é – perguntou-lhe – que a chave do gabinete não está junto com as

outras?

– Devo tê-las deixado lá em cima, sobre a minha mesa.

– Quero a chave aqui, já!

Depois de várias delongas, a mulher teve que levá-la. Barba-Azul examinou-a

e disse:

– Por que há sangue nesta chave?

– Não sei nada disso – respondeu a pobre criatura, mais pálida que a morte.

– Você não sabe nada – continuou ele – mas eu sei muito bem; você quis

entrar no meu gabinete! Está certo, senhora, lá entrará e irá ter o seu lugar ao lado

das que lá encontrou.

Ela se atirou aos pés do marido, chorando e pedindo-lhe perdão, com todos

os sinais de um arrependimento sincero de não haver sido obediente. Bela e aflita

como estava, seria capaz de enternecer um rochedo; mas Barba-Azul tinha o

coração mais duro que um rochedo:

– Tem de morrer, senhora, e imediatamente.

– Visto que tenho que morrer – respondeu ela, fitando-o com os olhos

banhados de lágrimas – dê-me um pouco de tempo para rezar a Deus.

– Dou-lhe meio quarto de hora – replicou Barba-Azul – e nem um momento a

mais.

Quando ela se viu sozinha, chamou a irmã e disse-lhe:

– Minha irmã, sobe ao alto da torre, eu te suplico, para ver se meus irmãos

não vêm; eles me prometeram que me viriam ver hoje, e, se os vires, faze-lhes sinal

para que se apressem.

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A irmã subiu ao alto da torre, e a pobre aflita gritava-lhe de vez em quando:

– Ana, minha irmã, não vês ninguém?

E a irmã respondia:

– Não vejo nada a não ser o Sol que brilha e a erva que verdeja.

Entrementes, Barba-Azul, com um grande cutelo na mão, gritava para a

esposa com toda a força:

– Desce depressa, ou eu subirei aí.

– Mais um momento, por favor –, respondia-lhe a mulher. E logo, baixinho:

– Ana, minha irmã, não vês ninguém?

E a irmã Ana respondia:

– Não vejo nada a não ser o Sol que brilha e a erva que verdeja.

– Desce depressa – bradava Barba-Azul -, ou eu subirei aí.

– Já vou – respondeu a mulher. E depois:

– Ana, minha irmã, não vês ninguém?

–Só vejo – respondeu a irmã Ana – uma grossa poeira que vem desta banda.

– São meus irmãos?

– Infelizmente não, minha irmã; é um rebanho de carneiros.

– Não queres descer? – bradava Barba Azul.

– Mais um momento – respondia a mulher.

E depois:

– Ana, minha irmã, não vês ninguém?

– Vejo – respondeu ela – dois cavaleiros que vêm deste lado, mas ainda

estão muito longe... Louvado seja Deus! – exclamou um instante depois. – São

meus irmãos; estou lhes fazendo sinal, tanto quanto me é possível, para que se

apressem.

Barba Azul pôs-se a gritar tão alto que a casa estremeceu. A pobre mulher

desceu e atirou-se-lhe aos pés, desgrenhada e em prantos.

– Isto não adianta nada – disse Barba Azul. – Tens de morrer.

Em seguida, segurando-a com uma das mãos pelos cabelos e erguendo-a com a

outra o cutelo no ar, ia cortar-lhe a cabeça. A pobre mulher, voltando-se para ele,

rogou-lhe que lhe concedesse um breve momento para se recolher.

– Não, não – disse ele –, e encomenda bem tua alma a Deus.

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E erguendo o braço... Neste momento bateram à porta com tanta força que

Barba Azul se deteve instantaneamente. Abriram e logo se viu entrar dois cavaleiros

que, sacando da espada, correram direto a Barba Azul.

Ele reconheceu que eram os irmãos da esposa, um deles dragão e o outro

mosqueteiro, e fugiu sem demora para salvar-se mas os dois irmãos o perseguiram

tão de perto que o alcançaram antes que ele pudesse atingir a escada externa.

Atravessaram-no a fio de espada, e o deixaram morto. A pobre dama estava quase

tão morta quanto o marido, nem lhe restavam forças para beijar os irmãos.

Verificou-se que Barba-Azul não tinha herdeiros, razão por que sua mulher se

tornou dona de todos os seus bens. Empregou parte deles no casamento de sua

irmã Ana com um jovem fidalgo, que a amava desde muito tempo; outra parte na

compra do posto de capitão para seus dois irmãos, e o resto no casamento dela

própria com um homem muito distinto, que lhe fez esquecer o mau tempo que ela

passara com Barba Azul.

Moralidade

A curiosidade é tão cheia de encantos!

Mas custa às vezes dores, prantos...

Cada instante se vê disso exemplo bem claro.

É – perdoe, belo-sexo – um deleite fugaz,

Mal o gozamos se desfaz.

E custa sempre muito caro.