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KING KONG PALACE Obra teatral quase operística em quatro atos Texto de Marco Antonio de la Parra Tradução de Antonio Carlos Brunet PERSONAGENS ADMINISTRADOR ADA ANA BOY EVA JANE MANDRAKE TARZAN

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KING KONG

PALACE Obra teatral quase operística em quatro atos

Texto de Marco Antonio de la Parra

Tradução de Antonio Carlos Brunet

PERSONAGENS

ADMINISTRADOR

ADA

ANA

BOY

EVA

JANE

MANDRAKE

TARZAN

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PRIMEIRO ATO

Os quatro atos acontecem nos gigantescos ambientes de um grande hotel, mistura de todos os estilos imagináveis,

ornamentado com toda a grandiosidade da decadência. A luz é mínima, bastante gótica, uma espécie de planta alta de filme

expressionista alemão, de terror. Janelas altas, chuva, trovões. A atuação deve evitar a qualquer custo a paródia.

Ainda que o espectador não acredite, este é um texto trágico, dentro do trágico possível no teatro contemporâneo,

renunciando, definitivamente, ao realismo. Aparece Tarzan emitindo ruídos simiescos. Como um gorila,

joga-se, inesperadamente, pelos balcões do hotel, cruzando o cenário em penumbras.

A luz abre com um violento golpe de música, do Administrador, que está tocando piano ao fundo. As

camareiras cantam um número de musical americano, movimentando-se ao estilo das velhas coreografias da

Broadway.

CENA 1 AS TRES (Cantando) Bem-vindos ao King Kong Palace O lugar de sua fortuna Não haverá mais sofrimento Somente riso e ventura King Kong Palace Hotel Nada mais belo e fiel O paraíso na Terra

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Longe dos ruídos e da guerra King Kong Palace Hotel Sempre cheio de surpresas De suas camas às suas mesas A felicidade a granel Vinde, vinde ao King Kong Palace Vinde, vinde, não vacileis Deixai para trás toda a maldade Sede uma rainha, sede reis Vinde, vinde sem demora Vinde, vinde não vos atraseis Um prazer à vossa altura Sem reclamações na conta King Kong Palace Hotel Onde vossa mesa já está pronta. ADMINISTRADOR (Interrompendo) – Está bom, está bom! (Barulho de tormenta iniciando.) É suficiente por hoje. Deverão ensaiar, a sós, sempre que tiverem tempo livre. Lavem bem o chão, sequem as cortinas, arrumem as camas, ponham as mesas e não esqueçam as rosas e as fronhas vermelhas nos travesseiros. Outro cliente imperial nos espera, e merece o toque King Kong Palace. (Faz menção de sair, mas entra Mandrake, que estava o tempo todo espionando.). MANDRAKE – Senhor Administrador, desculpe-me. ADMINISTRADOR – Ah! Monsieur, parfait. Qui voulez vous aujourd-hui?

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MANDRAKE – Tínhamos falado sobre um cargo... sobre uma promoção... ADMINISTRADOR – Croyez vous que je pense oublier ma parole? Je suis un parfait Chevalier. Para que outra coisa haveria lhe convidado se não para?... Bom, bon, votre devoir est attendre avec patience... MANDRAKE – É urgente! Estou esperando há muito tempo... ADMINISTRADOR – Você terá... Tout... à son temps... Logo… Demain… Lendemain… Para que foi, por acaso, convidado? Attendez avec foi... Au revoir... MANDRAKE – Mas... soube de outro hóspede... ADMINISTRADOR - Como? MANDRAKE – Bom: todos falam nele... Não era eu o único? ADMINISTRADOR - Único? De onde tirou isso? C’est touts... lotado... Não… C’est impossible… Devo lhe dizer que você perdeu pontos com este comentário... MANDRAKE – Per... perdão... Desculpe-me... Compreenda a minha inquietação. ADMINISTRADOR – Au revoir, mon cher Mandrake. (Sai.). CENA 2

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As camareiras seguem ensaiando seus passos de dança, enquanto o Administrador e Mandrake conversam. Ao terminar o diálogo, repetem o estribilho. Passa Tarzan

imitando um macaco. As camareiras param assustadas.

ANA – É ele? EVA - Quem? ADA – O tal. ANA – Juraria que vi passar uma sombra. (Trovões.). EVA – Talvez seja só a tormenta. ADA – Talvez não seja mais do que a nossa fantasia. É um prédio muito grande, e chove como nunca choveu antes. Mau augúrio. Não é bom deixar-se dominar pela credulidade a respeito desta temida visão que já nos apareceu várias vezes. EVA – Não aparecerá de novo. Talvez seja somente um empregado do novo visitante. ANA – Talvez seja ele que volte. ADA – Tenhamos paciência e vamos encará-lo. EVA – Como disseste que era? ANA – Querem que eu conte para rirem de mim? ADA – Conte: talvez seja necessário descrevê-lo um pouco mais.

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EVA – Não percamos tempo e ensaiemos. ANA – Há muitas coisas que a tua forma prática de ver a vida simplesmente nega, querida Eva. EVA – Como um?... ADA – Sshiiiiiiiitt! ANA – Era jovem, deste tamanho, gracioso, em plena forma de seus vinte anos - um pouco mais talvez -, ensangüentado. Eu o vi. Agitei-me de medo e de assombro. Perto dos últimos quartos, no último andar: vagava. EVA – Se falasse certamente te diria: “sabe onde é o banheiro de hóspedes?”. ANA – Não quis falar comigo. Não era a mim, quem procurava. Disse um nome que não entendi. ADA – Mau sinal. Seremos interrogadas. EVA – Isso sim é que deveríamos esquecer. ADA – Mas um fantasma é um motivo mais do que suficiente. ANA – Não era ele quem passou. Era diferente. Este era velho, e o outro, jovem.

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EVA – E formoso, não? Que vontade de ter um fantasma só para mim! ADA – Morrerias de medo ao vê-lo. Mas, cuidado, que aí vem alguém... (Ruídos. Vozes de Jane e o Administrador. Batidas de portas. As camareiras se inquietam e reiniciam seus passos de dança.). MANDRAKE (A um Lothar imaginário) – Ouviste Lothar? Não durma! Não estamos tão velhos a ponto de não podermos esperar que digam o que está acontecendo. Quanto tempo nós levamos aguardando o que nos prometeram? E, voltam a nos desprezar. Garanto que entregarão o que é nosso, a outro, a esse que agora chega. Olhe: procuram por ele, não há dúvida. (Entram Lady Jane e o Administrador.). JANE – É um edifício enorme. Temo que se tenha perdido. ADMINISTRADOR – Nosso sistema de segurança é perfeito. Algum monitor já o teria captado. Estão todos os sensores de saída em alerta vermelho. Está, sem dúvidas, perto de seu quarto ou deste hall. (Às camareiras.) Viram algo, ou alguém, mover-se por aqui? (À Jane.) Se algo caracteriza a nossa criadagem, é que jamais mente. ANA – Sim. EVA – Não. ADA – Não sei.

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ADMINISTRADOR - Como? ANA – Eu quis dizer não. EVA – Eu quero dizer sim. ADA – Ou seja: na verdade, não estou certa. ADMINISTRADOR – De quê? ANA – De que não sei. EVA – De que talvez. ADA – De que pode ser que algo ou alguém tenha passado, e nós não tenhamos nos dado conta. MANDRAKE (À parte, ao imaginário Lothar) – Estas, se fazem de loucas, e, a falsa loucura sempre oculta uma verdade cruel e inesperada. Só o bom-senso é idiota e pouco interessante. Estas dementes devem ter algo de útil entre as mãos. Não percamos palavra. JANE – Se dizem a verdade, então estão mais confusas do que eu. Dê-se conta: apenas chegados ao hotel, ele desaparece entre as cortinas. Encontro apenas a janela aberta. Compreenda o meu pânico. Um atentado terrorista, a perseguição de nossos inimigos políticos. Tivemos que abandonar a África, quase que só com a roupa do corpo. Se não fosse pelo Banco Suíço e pelos cartões de crédito, estaríamos na ruína.

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ADMINSITRADOR – Aparecerá. Nada se perde no King Kong Palace Hotel. Nada sobrenatural acontece; nada terrível sucede. É coisa de minutos. (Às camareiras.) Digam-me: viram ou não viram passar alguém? ADA (Adiantando-se às suas companheiras) – Perguntas se nós vimos alguém mortal, por quem a senhora sofre: alguém deste mundo, alguém corpóreo, tangível, concreto, que pudéssemos tocar; empurrar, perseguir? Pois se é assim, não! Agora, se tivésseis perguntado por alguém de outro mundo, alheio a este planeta, e, contudo, seu mais antigo habitante, talvez, nós devêssemos assentir. Como vossas perguntas são tão diretas e ameaçadoras, suponho que vem desta Terra, e, então, outra vez, deveremos negar. JANE – O que disse? Em que estranho dialeto fala? Não compreendo. ADMINISTRADOR – Nossas camareiras são as melhores do país. Falam em verso, se preciso for – embora ache que na verdade, falam demais. Continuemos nossa busca. Vá para o seu quarto e o mandaremos, sem demora. JANE – Não avise a imprensa nem a polícia, por favor. É para nossa própria segurança. ADMINISTRADOR – O lema do hotel é: “segurança é felicidade”. Adiante, minha Lady. MANDRAKE (Entrando) – Senhor Administrador: vejo que tem uma companhia encantadora.

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ADMINISTRADOR – Ah! É outro de nossos hóspedes! JANE – De que país vem? ADMINISTRADOR – Não o reconhece? É nada menos que (ao ouvido.), e logo partirá para melhores rumos. MANDRAKE – Sim, o senhor Administrador prometeu-me um futuro glorioso por aqui. Por isso vim, na verdade. JANE - A você também? MANDRAKE (Ao Administrador) – Como também? ADMINISTRADOR – É diferente... Completamente diferente. Ouçam-me: já nos veremos, à ceia. Agora, a tempestade aumenta e devemos estar atentos à busca. Madame, Monsieur... deixemos esta conversa agradável para outro momento. (Sai com Jane.). Cena 3 MANDRAKE (Às camareiras, sobretudo, a Ada, que o saúda, com gestos pomposos, como a um rei) - E vocês, o que olham? ADA – Salve: Senhor dos senhores. MANDRAKE – O que querem dizer? EVA – Como assim?

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ADA – Sereis rei, brevemente. Sereis o que nunca havíeis sido. A mulher que esperáveis, o cetro prometido. Não percais a paciência e logo acabará o desejado, em vossas mãos. MANDRAKE – Quem vocês pensam que são? Não passam de criadas. (Sai furioso.). ANA – O que fizeste? EVA – Não era algo que prometemos esquecer? ANA – Estávamos juramentadas a nunca mais falar sobre o futuro a homem algum. ADA – E lhes parece pouco o que está acontecendo? Ouçam a tormenta... Lembrem do espectro que nos visita; as manchas que temos lavado; os clientes que não vemos mais. EVA – Traíste nossa promessa. Íamos ser simples, comuns, humildes. ADA – Pois é justamente nossa própria humildade que exaltou nossos dons. Cego é o poderoso às visões de quem é modesto. ANA – Estás muito esquisita. A visita do fantasma te deixou assim. EVA – Não será esse espectro, simplesmente o mesmo sujeito, que procuram? Outro asilado de algum país fictício, um ator de cinema em decadência ou algum milionário falido?

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ANA – Que o Administrador não te ouça. Isto é absolutamente proibido dizer. EVA – Quem mais virá se meter numa cidade como esta? Que faz um hotel gigantesco, com tantos quartos vazios? De onde saiu este dinheiro, estes gerentes sorridentes, estas amantes de luxo? ADA – Estás nervosa, Eva. EVA – Tu és a estranha, Ada. ANA – Quietas! ADA – Silêncio, Ana. EVA – O que é que há? ANA - Vem? EVA – O fantasma? ADA – É preciso perguntar? EVA – Não queria saber. ANA – Não é. ADA – Porém, se for... EVA – Será. (Escondem-se, mantendo-se ao que parece numa postura ritual.).

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Cena 4

Entra Tarzan imitando um macaco.

ADA – Salve: Senhor da África. (Tarzan incorpora-se, pouco a pouco.). ANA – Salve, em teus últimos dias de glória. (Tarzan observa-as muito desconfiado.). EVA – Salve - que terás um encontro tão esperado e tão imprevisto. TARZAN – Quem são vocês, criaturas do demônio? Mandou-as o novo governo ou minha mulher, que não tolera ver-me caminhando, sozinho, como em meus bons tempos de gorila? Claro que sou o Imperador da África, ou o fui, até a algumas horas atrás, um par de dias, o tempo que durou este maldito vôo até aqui. Que pavor de comida na classe dos turistas. Encontros inesperados - terei aos montes: é um disparate. E, isso, de meus últimos dias... De quem não são? Sou velho. Ou não sabem quem sou? Nem meu nome vocês conhecem, e crêem-se profetisas. Não me reconhecem, por acaso? Claro que nunca me viram. Sempre um dublê. Idéias de minha mulher: é claro. Eu me chamo Tarzan. Sim, eu sei. Vocês me imaginavam mais alto, mais musculoso, mais galante, nem um pouco envelhecido e, é lógico que com um tapa-rabo de índio e uma faca na cintura. Ridículo. Sou um velho comandante derrotado, e ponto. Conheci a glória, conheci o poder até a medula, embriaguei-me com ele. Hoje conheço a derrota. Antigamente fui gorila, com muita honra, não como pretendem ridicularizar-nos os humanos. Nós, gorilas, somos pacíficos,

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vegetarianos, amáveis, bastante tímidos, profundamente democráticos. Nós, humanos, somos selvagens, ambiciosos, carnívoros, de maldade premeditada: intrinsecamente perversos. Fui homem, fui gorila. Sei bem do que falo. ADA – Nós também. TARZAN – Ora, nenhum poder pode ter uma camareira. ADA – Todos os que não têm um grande comandante. TARZAN – Um Imperador: corrigi! ADA – Com mais razão. Você mesmo disse: como gorila sabia o que esqueceu como homem. Assim, também as camareiras conhecem os segredos que o senhor ignora. TARZAN – Absurdo! Consolo de criadas. Lavam os pisos, trocam lençóis imundos, escutam reclamações de velhos cônjuges, ou o cacarejar dos recém-casados. Este é todo o vosso conhecimento? Rio-me dele. Eu já disse: estou dando as costas ao poder. ANA – Mas, esperas algo, aqui, não é assim? ADA – Algo que deverá disputar com outros. TARZAN – Se é assim, não me interessa. Garanto que foi por isso que Jane me empurrou avião adentro. Só me agradam as batalhas vencidas e os rivais debilitados. Mas, como souberam? (Ada inclina-se à sua frente.) Parece certo que vêem o que não vejo. Que outras coisas sabem?

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EVA – Vemos fantasmas. TARZAN (Ri) – Haviam me falado desta cidade: mas é bem pior do que a África. Nada como uma mente cheia de crendices para serem facilmente dominados. Opa, esta frase não é minha, mas de minha mulher. Eu gostava do meu povo. Nunca me senti branco. Ela ensinou-me a força do desprezo. ANA – Não eras tu o fantasma, então? TARZAN – Não sentem o cheiro do meu suor? Não lhes chega o meu alento de boca seca, de tanto saltar de balcão em balcão, de janela em janela? (Abraça Ada.) É o cheiro de um fantasma? Abraçam assim? Riem-se assim, com as mulheres? ADA – És casado. Por que fazes isso? TARZAN – Porque assim minha mulher ensinou-me que devem tratar seus súditos, os reis. Com desprezo, sem respeito, delimitando, claramente, quem é o poderoso. EVA – Falas como se não acreditasses no que dizes. TARZAN – Bom: vocês já me tratam por tu. Entendem por que fui deposto? Fui mais gracioso que humilhante; mais amável que cruel; mais divertido que insultante. Faltaram-me com o respeito e fizeram-se democráticos. Se alguma vez tiverem ânsia de poder, não vacilem em consultar-me. Conheço todos os erros possíveis. Tenho os melhores conselhos. Primeiro: não falem jamais com a criadagem.

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ADA – E o que diz o teu manual, sobre feitiçarias e adivinhações? TARZAN – Que é o começo do fim, a corrupção mais lenta e definitiva, a perda da cabeça. Temos que deixar o medo aos dominados, não ao dominador. E que outra coisa é o interesse mágico em prever o futuro, senão o medo de perder o controle? Por aí entrarão os exércitos do inimigo. ADA (Pedindo-lhe a mão) – Deixa-me ler teu medo, então. TARZAN – Já não o tenho: é tarde. EVA – Nem dos fantasmas? TARZAN – Os fantasmas não existem. (Elas riem.). ANA – Talvez dependa do fantasma. Chamas-te Tarzan? Não é a primeira vez que escuto esse nome. TARZAN – Mas claro: existem revistas, livros, filmes. Ou nunca os viram? Todos pensam que eu era mais alto, é claro, mas existia. Jane contratou um péssimo escritor, é óbvio. Ela tinha a teoria de que alguém muito bom ofuscaria, com sua obra, a seu próprio personagem. Pode ser. Mas, fiquei como um mongolóide: “me Tarzan, You Jane”. Não foi assim nosso primeiro diálogo. Não falei. Não a violentei. Deixei-me alimentar por ela e ela me seduziu. Ela estava assustada, e excitou-se. O medo deixava-a quente como uma estufa, e ainda deixa. A mim, me brocha. Imaginem o quão felizes somos no leito conjugal: outra razão para que nos derrocassem. A outra foi... Não, disso não posso falar, ainda. O

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tempo, às vezes, parece não passar para certos fatos. O que fazes? ADA – Leio a tua mão. TARZAN – Pareces cigana de praça pública. Que mentiras tu me dirás? Que serei feliz? Rei dos reis? Que recuperarei minha virilidade? Que rejuvenescerei? Não. Tu só podes anunciar-me a minha morte, o adultério de minha esposa e a traição de um amigo. Que lês? ADA – Na verdade, que sentido tem? EVA – Não é o fantasma? ANA – Não: por ele me perguntou o jovem que sangra. TARZAN – Não me disseste nada, nada te devo. Cada um aos seus trabalhos. (Ruídos.) Ah! Aí vem. O momento foi lindo. Seriam companhias muito melhores do que ela e sua corte. Mas, assim é a política. Voltemos a nos ver. Tu és formosa. ADA – Sou velha. TARZAN – És linda. Gostaria de levar-te ao meu esconderijo, na selva. Jane jamais o conheceu. Serias uma linda gorila. ADA – Isto é um elogio? TARZAN – O mais sincero que você jamais ouviu. Se de verdade conhecesses um gorila...

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Cena 5 Entram Jane e o Administrador. Mandrake surge atrás deles,

escondendo-se, furtivo, atrás de uma coluna.

JANE – Amor, meu Tarzi. TARZAN – Lady Jane, que bom vê-la. ADMINISTRADOR – Senhor Imperador. TARZAN – Ex. Sejamos realistas. JANE – Estava tão assustada. (Esfrega-se nele.) Preciso estar contigo. TARZAN (Às camareiras) – Vêem como o medo a deixa? JANE (Excitada) – Pensei que, talvez, Deus não o queira, um assassino houvesse se infiltrado entre a criadagem. Não te envenenaram? Não te apontam com um rifle com mira telescópica? Não encontraste um pacote com aspecto suspeito? Não tentaram te apunhalar em meio ao corredor? TARZAN – Não, graças a Deus que não. (Beija-a, carinhoso.). ADMINISTRADOR – Vê-se que vocês são um casal muito feliz. (Às camareiras.) Estes são os nossos clientes mais distintos. Um aplauso para eles. (Todos aplaudem.).

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MANDRAKE – Além de tudo, conhecem o amor marital: certamente podem saciar todos os seus apetites com frenesi. Não sabem da minha solidão de viúvo, da minha miséria de mágico em decadência, de minha raiva de eterno postergado. Alguém se lembra de mim, quando me perco? Só para me cobrarem as contas me procuram, e, ainda assim, sem muito entusiasmo. Adorno o local com os meus truques; faço rir aos visitantes, sirvo de palhaço em cerimônias. Quanto tempo mais eu o agüentarei? É hora de detê-lo. As camareiras, talvez, tenham razão: mas o destino, nós temos de criá-lo. JANE – Vamos ao nosso quarto, Tarzi, e agradeçamos que nada te tenha acontecido. ADMINISTRADOR – Ide. Um carro - de mantimentos e delicatessen - os espera. Gentileza da gerência. (Saem Tarzan e Jane.) E vocês... (Às camareiras.) vigiem-los, que para isto as tenho. Ou pensam que as escolhi por seus lindos rostos? Sei exatamente tudo do vosso passado, e devereis justificar vossa existência. (Sai.). MANDRAKE – O prefere. Claro que o prefere. ADA – A tempestade aumenta. Não são bons augúrios. EVA – O que irá acontecer? ADA – Se tu não te dás conta, menos eu poderei te dizer. EVA – Acontece que o vejo, porém não quero vê-lo. (Uma trovoada. Escuridão.).

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ANA – Agora virá: vocês verão. MANDRAKE – Do que falam? ANA – Ali o vi: ali estará. (Aparece Boy, o espectro, sobre o balcão, sem pronunciar palavra.). EVA – Estou vendo. ADA – Não há dúvida: são parecidos. Observem seus olhos, o perfil. ANA – Escutem-no. BOY – Pai... pai... EVA – É um sussurro. ANA – À outra noite, dizia seu nome... Hoje é o chamado de um filho. ADA – Sim. Li em sua mão a desgraça. EVA – Não quiseste dizer-lhe. ANA – Disse tudo. É homem morto. (Sai Boy.). ADA – Se foi. (A cena se ilumina.) A luz volta. A cidade estará às escuras. Submersa. O King Kong Palace Hotel permanecerá toda a noite em vigília. Ao trabalho, que não devemos saber de descanso, se quisermos conservar este posto. (Saem.).

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MANDRAKE (Saindo do seu esconderijo) – Do que falam? Nada vi, e juro que abri meus olhos como janelas e meus ouvidos como radares rastreavam até a mínima pisada de um inseto. Asseguram que um filho chamou a seu pai. A loucura se estende por todo este lugar. Prevêem qualquer coisa: pensam que são bruxas do Teatro Elisabetano. Nada pior do que gente culta em cargos humildes: pensam serem sempre os proprietários da história. Não farei caso de sua advertência. Perdi minha paciência. Procurarei aquele par de galinhas velhas depenadas. De sua amizade tirarei proveito. O que eles esperam, será meu. É justo. Sou mais velho e estou mais desesperado. Não te parece assim, Lothar? Segue-me, que não estão tão longe daqui, retoçando. (Sai.).

SEGUNDO ATO

Cena 1

Quarto de Jane e Tarzan. Fecham a porta. Tarzan despe-se, trocando seu elegante fraque por um pijama comum e cotidiano. Assemelha-se a um cavaleiro que tirou sua

armadura. Jane tira a maquiagem. A trivialidade da cena contrasta com o texto. Tarzan toma-a pelos ombros.

JANE – Não. Me solta, Tarzi! TARZAN – Não me chames de Tarzi! JANE – Me solta! Já me passou o medo... Já me voltou a tristeza... Não posso, agora.

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TARZAN – A mim, também me passou... Eu podia... (Segue trocando a roupa.). JANE – Onde estavas? Onde te havias metido, horas perdido no hotel? Jornalistas, autoridades nos esperando com tapete vermelho. TARZAN – Por favor, Jane, pelo menos aqui não te alucines... Não havia nada além de um par de jornalistas de meia-tigela. JANE – Estava a televisão. TARZAN – Um turista com sua câmera que não podia se convencer de que Tarzan fosse tão baixo... e tão velho! JANE – Eram honrarias para nós... TARZAN – Não estou com humor para honrarias... Esse tapete vermelho, que se notava à primeira olhada que ninguém o havia pisado... Esse Administrador com seu olhar felino... Que autoridades? JANE – Tarzi, eles nos pagam tudo. TARZAN – Se me chamares de Tarzi de novo, eu saio pelado a saltar pelos corredores. JANE – Não te atrevas! Que vergonha! Fazendo-te de macaco no meio do hotel.

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TARZAN – De gorila. Não sou um macaco qualquer. JANE – És um Imperador, não um símio. TARZAN – Tu mesma me ensinaste que os gorilas não são símios... e sim chimpanzés. Além disso, um Imperador em desgraça é muito mais patético que um gorila feliz. Se tu visses que lugares para se macaquear! Feito para gorilas! Corredores intermináveis, escadas, plantas de plástico imitando uma selva: tudo, enfim, feito para se divertir. Belíssimo lugar para virmos morrer! JANE – Tarzan! Combinamos em não falar da morte! Nem da velhice! Será nosso ponto de partida. Eles nos convidaram: algo nos darão. Querem-nos nacionalizar, disse-me o Administrador. Que jovem mais agradável e inteligente, que educado! Talvez Boy... TARZAN – Jane... combinamos não falar... JANE – Perdão! Não disse nada! Gostei muito do jovem: é engenheiro comercial, sabe de tudo! E, me disse, no ouvido... - que sexy!-, que teríamos grandes responsabilidades no futuro da nação. TARZAN – Vejo que não precisaste te assustar para achá-lo sexy. JANE – Não seria Maravilhoso, Tarzi? TARZAN (Como um gorila) – Hic, hic...

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JANE – Tarzi! TARZAN (Macaqueando-se) – Eu te avisei! JANE – Bom, merda, já chega!... Ai: não sentes, às vezes, vontade de morrer? TARZAN - Eu? JANE – Sim... Não sentes vontade de que tudo termine de uma vez por todas? TARZAN – Desde que sou homem... Quando eu era gorila, a morte era a vida diária. Não precisava nem de religião, nem de política e nem de sexo! JANE – Ai! Tudo tu te resolves como gorila! Mal-agradecido! Ensinei-te inglês, francês, espanhol, música clássica. Ensinei-te a dançar... a caminhar, te ensinei, a falar, a comer com talheres, como um príncipe... a pentear-te... Não sabias, sequer, assuar o nariz quando espirravas. Não eras nada! Escutar-te me deixa pior! Disse-me o meu terapeuta, em Zurique, que eu devo evitar os contratempos. Mas, o que fazer, se eu estou casada com um? Tu perdeste o império... Tu começaste a lhes falar de renúncia, de envelhecimento, de entregar o mandato... Pensaste como Tocqueville, Martain, Marx ou que sei lá eu mais que baboseiras lias. TARZAN – As que tu me mostravas, meu amor, as de tua biblioteca. Desde o Shakespeare, que recitavas entre os gigantescos baobás, onde vivemos nossos primeiros anos...

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JANE – Não sei! Não gosto de recordar isso! Além do quê, eu não lia nem os títulos, até o fim. Acreditava que nos veríamos, famosos, frente a uma biblioteca, na capa da Time Magazine... Nunca saímos na capa da Time... Nem da Newsweek... Nem da People, sequer... Racistas! Ai, negros malditos!... Nem pude trazer os meus sapatos... TARZAN – Duzentos pares pesam demais. JANE – Nem minhas jóias mais caras. TARZAN – Três vezes teu peso em ouro é muito, meu amor, demasiado! JANE – Nem meus cavalos, nem meus carros, nem minhas peles... Fugir como uma desamparada... perseguida... ameaçada... E, quando mais necessito do meu marido, o valente Tarzan das Selvas se transforma em gorila e sai, a saltar pelos balcões do hotel mais elegante da cidade mais próspera da América... Ou, põe-se a recitar Shakespeare... TARZAN – O único que salvei... Complete Works... Forwards by Joseph Papp... JANE – Basta! Não me escutas! Ou símio ou intelectualóide! Impotente! Isso é o que és: um impotente! Os negros fizeram gato e sapato contigo! Eu devia ter te ensinado a falar com A Arte da Guerra ou Clausewitz ou Maquiavel, não com essa merda de teatro inglês! Estás me ouvindo, Tarzan? Tu tiveste a culpa... Tu

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entregaste o poder... Demos-lhes tudo... Demos-lhes indústrias, demos-lhes estradas, demos-lhes escolas... fizemos-lhes crescer. TARZAN – Não se pode fazer alguém crescer, esperando que se submeta para sempre. É o preço do progresso. JANE – O progresso! Ah! Dou-me conta, te vendo! Era este o progresso que eu esperava? Mudaste: algo te aconteceu... algo!... E nunca mais foste o mesmo. Tu eras imensamente cruel, eras visionário, eras fanático... quase perfeito! TARZAN – Não me fales disso! JANE – Não, não: tu eras um simples gorila, bom e são! Bastou que te ensinasse a falar, e te transformaste em orador... Que te lesse um tratado de história, e te autonomeaste general... Um par de artigos de revista, e eras um economista neoliberal... Teu primeiro gabinete, eras tu mesmo, em todos os ministérios. TARZAN – Arrependo-me de tanta brutalidade. JANE – Eu arrependo-me de que tenhas deixado de ser assim. TARZAN – Ainda tenho pesadelos... JANE – Eu tenho pesadelos, com tua maldita bondade de última hora... Que bicho te mordeu? Começar a pôr negros no Ministério, nas Embaixadas, nas Universidades? Um suicídio político! TARZAN – Jane, o Continente era deles! Quando eu era gorila, também tínhamos chefes, e eu nunca senti que pudesse sê-lo,

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pois era diferente... Eu era o estranho... Era eu quem deveria respeitá-los... JANE – Ou seja: voltaste a ser gorila! Tua humanidade caiu por terra. Lady Jane, tu me chamavas! E, eu te chamava Sua Majestade, Tarzan Primeiro!... Your Highness Tarzan, the First... E, o nosso herdeiro… TARZAN – Não fales nele! Não fales! Não havíamos combinado isso? Não te deste conta de que a morte dele me mudou? JANE – Tarzan... Tu disseste! TARZAN – Poderia gritar-lhe... Gritar-lhe todos os dias... Não sai da minha cabeça! Seu corpo... JANE – Deverias ter sido mais cruel. Os negros o mataram... Os rebeldes... Deverias tê-los fuzilado! A todos! TARZAN – Não o sabemos!... Não o sabemos!... JANE – Eu mesma escrevi a Nota Oficial, enquanto tu choravas sobre o seu corpo. Escrevi que o haviam seqüestrado, que o haviam drogado, que o haviam baleado, jogando seu corpo em meio a uma manifestação, frente ao Palácio Real. Nosso Palácio, o que será dele agora? Cheio de macacos negros, de seres inferiores! TARZAN – Basta, Jane!

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JANE – Não, não basta! Nunca bastará, nunca será o suficiente!... Aí caíste... débil... débil... como os teus famosos gorilas! Rugem, porém, não matam ninguém. Jamais terão um império, os gorilas! A civilização é crueldade, não te dás conta? Somente a guerra é conquista! Tua famosa ideologia de convivência pacífica!... Lias, insone... Eu não devia ter te comprado livro algum... Apenas sapatos... Teria, ainda, meus sapatos de crocodilo, de pantera, de caribú... Atraso, decadência... Eles agora têm Congresso, Presidente, eleições... Que apodreçam; que a AIDS lhes consuma; que se matem entre si... Não conhecerão tempos melhores! TARZAN – Jane, basta! Acaso tu não te deste conta de como tu mudaste? Não podes te dar conta que, tampouco, tu és a mesma jovenzinha que salvei das garras dos leopardos?... Ainda tens os mesmos olhos, que vi aterrorizados, que vi chorar em meus braços, que não sabiam o quê fazer com os meus grunhidos... Ainda tens a mesma voz que me lia; as mesmas mãos que conduziam meus dedos, para ensinar-me a escrever teu nome, o meu “te amo, Jane”... A mesma boca que me ensinou a humana arte do beijo... Os segredos do teu corpo... o mesmo... JANE – Graças à cirurgia plástica, graças às viagens que tanto te chateavam! TARZAN – Deixavas o Boy sozinho... JANE – Não toques no nome dele... TARZAN – Perdão... Jane! Jane... vem, pensa no quanto éramos felizes!... Nunca mais devemos ceder a esta louca idéia de governar... de sermos reis...

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JANE – Foi tua. TARZAN – Tu és minha mestra... Tu me disseste que a posição de Júlio César era a que eu deveria admirar; a de Napoleão, Gengis Khan, Alexandre Magno, a vasta história de Roma, que não tinha nada a ver com a paisagem do Kilimanjaro... JANE (Soluça) – Tarzan... (Abraça-o.). TARZAN (Relembrando) – Estavas lá: vinha o leopardo, e eu gritei: “kriga bundolos tarmagani... Sheeta...”, e corri até onde estavas, e te levantei nos braços... Ainda és leve... doce... terna... (Vai emitir o famoso grito de Tarzan, mas é cortado por uma bronquite fortíssima, que lhe provoca um ataque de tosse, que Jane tenta, inutilmente, acalmar.). JANE – O que está acontecendo? TARZAN – Afogo-me, morro... A coluna... Ai... Ai... passou. Estamos velhos... estamos sós... Não somos mais os mesmos... Não deveríamos nunca... JANE (Com despeito) – Não penso assim... Nosso momento mais feliz foi quando tu eras cruel e implacável... Até os canibais nos temiam, nos respeitavam... Ninguém se atrevia a rir-se de nós! TARZAN – Escrevíamos nossa própria sentença de morte! JANE – Até os brancos nos consideravam... De que morte tu me falas? Estamos vivos!

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TARZAN – Porém sozinhos. JANE – Amanhã sairei às compras... Isso é... isso me acalmará!... Um Valium... dois... três... Até que nos entreguem o que o jovem nos prometeu... Aí seremos, de novo, reis. Espero que neste país de merda, aceitem o American Express. TARZAN – Jane... JANE – Não me toques, imbecil! Se algo me excitava, era a tua força, a sensação de que não podia vencer-te, de que me dominarias, fizesse o que fizesse. Agora, tu és um velho. Não quiseste operar-te, como eu. As pessoas nos vêem e pensam que tu és meu pai. Quando te vi, pela primeira vez, o medo do leopardo me excitou, a tranqüilidade dos teus braços fortes me excitou... O que resta de ti? Um gorila velho... Anda... Corre como um macaco pelos corredores do hotel... Com razão Boy começou a drogar-se... com um pai como tu... TARZAN – Jane! Isto é desleal... não podes me culpar... JANE – Como tu a mim. TARZAN – Eu te amo, Jane... JANE – És fraco... Nada me provocas... TARZAN – Tu também mudaste, com a morte dele. JANE – De novo violas o juramento...

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TARZAN – Tu o violaste primeiro... JANE – Eu te mataria... (Pausa.). TARZAN – Não há necessidade... Eu já estou morto... há muito tempo... Cena 2

Entra a camareira.

ADA – Perdão: a administração gostaria de saber se estão à vontade! JANE – No hotel? Claro que sim. TARZAN – É uma força de expressão, é óbvio. JANE – Perdoe os modos do meu esposo. Entenda a nossa situação: o exílio nos destruiu. ADA – Não têm que me explicar nada. Permitam-me que lhes arrume a cama? TARZAN – À vontade... Jane, tu não gostarias de saber o teu futuro? JANE – Se eu tivesse aqui o meu cartomante, a minha astróloga... Mas, os teus democráticos negros ficaram com tudo! TARZAN – Esta camareira diz saber muito disso, não é mesmo?

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ADA - Como? JANE – Meu marido disse que você lê o futuro. ADA – Está brincando. Não. Ele está equivocado. TARZAN – Não, não se vá tão rápido... Leia a mão da minha mulher. JANE - Quiromante? Talvez não seja a mais precisa das ciências, mas, na falta de outra coisa. ADA – Senhora... TARZAN – Lady, por favor! ADA – Lady: está havendo um mal-entendido... JANE – Leia, com firmeza... Sei o que verá!... Triunfo no passado e triunfo no futuro! Somente um contratempo: um filho ingrato, um marido que perde sua potência... guerreira, quero dizer. A velhice em paz, em glória, em majestade. Tenho sonhado... Disseram-me... Venha, comprove-o! ADA – A senhora está me ditando... TARZAN – Uma rainha é sempre assim. (Faz menção de sair.). JANE – Aonde vais? TARZAN – Ver o meu futuro, enquanto lêem o teu! (Sai.).

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JANE – Lê... e perdoai-me que não me acostumo à criadagem branca. É esquisito, depois de tantos anos. Sabes quantos anos tenho? Centenas... mas pareço mais moça que tu, não é mesmo? ADA – Em suas mãos se lê muito sofrimento. JANE – Felicidade! Corrige: uma imensa felicidade! ADA – Há dor, há um reinado... Não, dois... um grande, outro muito breve... Homens mortos... JANE – Exageras. Não sabes que mandei encarcerar um astrólogo que anunciou a queda do reino? Falarei com o Administrador. ADA – Talvez tenha lido mal. JANE – Não. Não sabes fazê-lo! Amanhã falarei com este jovem, e lhe contarei que tipo de adivinhas tem a seu serviço. ADA – Permita-me tentar de novo. JANE – E que me enchas a cabeça com sentimentos depressivos? Não: pagarás com o teu trabalho, por isto. Passa-me este frasco. É Valium. Já tomaste alguma vez? Produz esquecimento. Esquecimento de frases vazias de más adivinhas! ADA – Perdoa-me, Lady. Foi um engano... os nervos! Conheço-a muito pouco.

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JANE – Corrigir-te-ás? ADA – Completamente! (Jane entrega-lhe a mão.) Vejo-a rainha! Rainha de novo! Para sempre! Até a sua morte!... Um homem forte ao seu lado. Brioso, de porte digno e real!... Não lhe importa se a vejo viúva? JANE – Com este corpo? Seria um prazer... ADA – Pois o será... JANE – O Caribe para minha lua-de-mel... O Taiti é melhor: menos comunistas! ADA – Conhecerás o amor, outra vez, de novo, logo. JANE – Como sabes adivinhar tão bem? Como podes? És magnífica! ADA – Há certa violência na troca de coroa. JANE – Sempre há. Não sou um hipócrita pacifista! Para fazermos uma omelete, temos de quebrar os ovos. Continua! ADA – Há um filho morto... JANE – Tragicamente! ADA – Tragicamente. JANE – Pelas mãos da revolução!

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ADA – Não sei tanto detalhe. Uma bala o trespassa... Sua alma vaga, sem descanso, desde então. JANE – Como dizes? ADA – Não... Nada!... A felicidade que vem, imensa, até à morte! JANE – Isto soa melhor! Podes ir... (Sai Ada.) Outro Valium... O sonho!... Nem os bons presságios me acalmam... Nem comprar... Só uma coroa tiraria esta dor de cabeça, esta insônia, esta tristeza da alma... Aí vou, sonho, dize-me que não existo: que sou feliz, que serei rainha para sempre... (Dorme.). Cena 3

Corredor. Ada encontra o Administrador.

ADMINISTRADOR – De onde vens com essa cara? Quem tu és? Ada? Eva? Ana? ADA – Não lhe interessa o meu nome! Sempre o esquece. Saiba tão somente, que eu estou assustada. Este lugar me aterroriza. Vi o seu futuro e não me agradei! ADMINISTRADOR – Do que falas, insensata? Estamos melhores do que nunca. Sabes quem é a nossa última visita? ADA – Não sei, porém vi o que vai lhe acontecer.

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ADMINISTRADOR – É Tarzan! Nunca o viste na televisão? Claro que era mais alto, diferente, mas é o mesmo. Acontecerá o que esperamos! ADA – Deixe-me ir! Você nada sabe sobre o destino de nada! ADMINISTRADOR – És insolente! Mereces ser despedida! ADA – Digo a verdade. Se isso lhe incomoda... ADMINISTRADOR – O que viste, na verdade? ADA - Eu? Nada! ADMINISTRADOR – Sei melhor que todos o que acontece aqui! Nada me escapa! Sei que falam de um fantasma, e agora, do destino. Isso não existe! Superstições! ADA – Chame-os como quiser. Agora, deixe-me ir! ADMINISTRADOR – Por que foges? Não és feia. Ser minha amiga te fará muito bem. ADA – Não me corrompa! É inútil: seu Tarzan foge de novo pelo hotel, e alguém ali, nos escuta! ADMINISTRADOR – Estás te referindo a Mandrake? MANDRAKE (Sai detrás da coluna) – Perdão: vinha com Lothar, ou seja – quero dizer -, vinha lembrando-me dele... Andava só...

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ADMINISTRADOR – Vai-te Ada: desta vez te salvaste. Sabes muito... Procura Tarzan, e diga-lhe que eu quero falar com ele. (Ela sai. Para Mandrake.) Senhor Mandrake, que sorte vê-lo! MANDRAKE - Sério? ADMINISTRADOR – Alguma vez lhe menti? Gosto de sua atitude. Deixou de roer sua amargura pelos cantos: agora, espia; remexe; pesquisa. Estás bem, estás aprendendo. Levaremos em conta! Logo, logo falaremos! C’est suffit pour moi. Au revoir, mon ami. MANDRAKE – Adeus. (Sai o Administrador.) Será que ele sabe de tudo? Pensa que sou débil e manejável: não sabe o quão iludido é, o que confia em seu poder sobre os sentimentos, de quem muito foi humilhado!... Uma mãe que não chora seu filho morto, um esposa insatisfeita, uma mulher que pede vingança! Não é preciso ser mágico para saber que é hora de colher o mais doce dos frutos, ainda que a árvore pareça velha e abatida. Que o medo não detenha minha mão, que a culpa não enrole minha língua, que os escrúpulos não interfiram em minha mente. Onde estás, Tarzan? Preciso saber mais de ti: ser teu amigo – pelo menos, enquanto for necessário. (Sai.). Cena 4

Entra Tarzan macaqueando, e cruza por Ana e Eva.

EVA – Salve senhor! ANA – Salve!

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TARZAN – Sempre me interrompem! Não existe um lugar por aqui, para um insone? Não se pode andar até encontrar a paz? Não é possível! EVA – Senhor: tenha cuidado!... ANA – Achamos que tem alguém que o busca. TARZAN – Há muitos que querem minha cabeça, sem dúvida! EVA – Isto é diferente! ANA – Modera um pouco o teu entusiasmo, senhor! Abre bem os ouvidos, enquanto te conto o prodígio, sob o testemunho desta minha companheira. TARZAN – Pelo amor de Deus, contai! ANA – Duas noites seguidas passamos, eu e Ada, a terceira, durante nossa guarda, limpando as manchas, retirando os corpos, recolhendo alguma alma perdida, quando, no meio da noite, tivemos este encontro. EVA – Uma figura que pronunciava o teu nome, senhor, que com solene andar, caminhava devagar e majestosamente. Eu não acreditava e as acompanhei, e pude vê-lo. Compreendi as palavras: pai, pai! Deste então, estas mãos não param de tremer. TARZAN – Mas, onde foi isso? ANA – Aqui, nestes corredores, quase a esta hora!

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TARZAN – Não lhes falaram? EVA – Sim, senhor, mas não nos deu resposta. Quando o sol da manhã colou-se pelos cristais, pareceu sentir o chamado de partida, e desvaneceu-se ante nossos olhos. TARZAN – É muito estranho! ANA – É tão certo quanto estou viva, meu honrado senhor, e, achamos que fazia parte das nossas obrigações colocá-lo à par do ocorrido. TARZAN – Fizeram bem, fizeram bem, senhoritas. Mas, isto me perturba. Fazem guarda esta noite? EVA – Sim, mas noutra ala. TARZAN – Sangrava? ANA – Da cabeça... do peito... Com abundância! TARZAN – Pálido ou corado? EVA – Palidíssimo! TARZAN – E olhava para vocês? ANA – Não! Tinha os olhos perdidos no infinito, enquanto pronunciava o vosso nome. EVA – Ou chamando: pai... pai!...

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TARZAN – Não continuem que entendo! Quisera ter estado aqui. ANA – Haveria se assustado muito. TARZAN – Sem dúvida, sem dúvida! Ficou muito tempo? EVA – Pareceu-me uma eternidade! TARZAN – Deixem-me só! Montarei guarda esta noite, nestes corredores, e, cuidem para que ninguém se aproxime. Esperarei e virá! ANA – Não o teme? TARZAN – Ao meu filho? Mais temeria a minha consciência ao negar este encontro. A mim me procura, a mim há de encontrar! Ide! É tarde. (Saem Eva e Ana.) Mesmo se for alguém se passando pela figura do meu filho, falarei com ele, ainda que o próprio diabo abra a boca e me mande calar. Pressinto a mais terrível dor. Quieta, quieta, alma minha! O passado sempre volta, ainda que os homens tentem, inutilmente, desviar a história, com tratados de mentiras e falácias. A justiça eu espero com os pés firmes. Vem, filho meu! Aguardo! Cena 5

Ruídos de passos, fora.

TARZAN – Aí vem. Anjos e ministros da graça: defendam-me! Enfrento o derradeiro tribunal, o de além-túmulo, o certeiro, o que exige a verdade, o que traz a salvação ou a condenação, que não

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acatará apelação de nenhuma voz terrena. És Boy, és? (Entra Mandrake.) Quem é você? MANDRAKE (Não vê Tarzan e fala a Lothar) – Vem amigo meu: já o encontraremos e saberemos a que viemos. A noite é a hora propícia para todos os desejos mais ocultos. Seu escuro manto nos protege. (Vê Tarzan.) Deus nos salve! TARZAN – És homem ou és espectro? És mortal, como eu, ou vens do outro lado do último muro? MANDRAKE – Falas esquisito. Não o entendo muito! Na verdade, me surpreende que não me reconheças de imediato. TARZAN - Deveria? MANDRAKE – Nunca leste minhas historietas? Bom, eu era mais jovem. São as vantagens da fantasia: triunfa sobre o tempo, sobre a história! E, eu tinha o cabelo mais curto. Era tão altivo quanto agora, elegante como sempre. Agora, está um pouco roto o meu traje, porém, a capa é magnífica! Eu andava com um negro poderoso e fiel, calvo, com um gorro turco... e uma pele de leopardo. TARZAN – Imagino que sejam atores de feira. Diga logo o seu nome. Eu não sou adivinho e as historietas, eu as descobri demasiado tarde. Aprendi a ler depois de velho, e estou cansado de intrigas. MANDRAKE – Se eu lhe disser, rir-se-á de mim!

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TARZAN – O riso se foi há muito tempo de minh’alma. Luz apagada. Não se esforce em vão. MANDRAKE – E você? Não me disse, tampouco, seu nome! TARZAN – Você riria. MANDRAKE – Eu me chamo Mandrake! TARZAN (Faz um gesto de quem não entendeu nada) – Chinês. MANDRAKE – Mandrake, o mágico! Não me conhece? TARZAN – Nem de ouvir falar. MANDRAKE – Mas nem que tivesse vindo da África mais negra! E você? TARZAN – Meu nome é Tarzan! MANDRAKE - Tarzan? Tarzan? Pensava que eras mais alto! TARZAN – Não és o único! MANDRAKE – Não me diga que és o próprio Tarzan? TARZAN – Se conheces algum outro, diga-me de uma vez! MANDRAKE – O estupendo Tarzan das Selvas? TARZAN – Conheces-me de verdade?

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MANDRAKE – Mas... como esquecê-lo? Você é a força, a pujança, a coragem! A admiração me consome! Não lia outra historieta nos meus tempos de ócio! Sempre dava uma espiada nas tirinhas dos jornais, para ver se você estava presente, para ver seus músculos, seu porte másculo, seu imenso vozeirão... TARZAN – Que tipo de relação você tinha com esse Lothar? MANDRAKE – Não, não imagine nada! Pobre negro! Como gostaria de compartilhar com ele este momento. Acho estranho que não haja uma nuvem de jornalistas, estes sugadores de alma, que vivem a queimar-se com o brilho da fama. TARZAN – Nós nos queimamos por nós mesmos, e muito melhor! Ficamos cegos! MANDRAKE – Você deveria ser santo, Papa, general, Imperador, Presidente das Nações Unidas! TARZAN – Não continue! Fui muitas destas coisas, e larguei de mão. MANDRAKE – Faz frio, não é mesmo? Ah, a minha dor de homem, só se alivia com a sua presença! Vagava, transtornado pela tristeza, pela insônia da ausência, pelo leito vazio, pela lua que parece eterna, e topo com o ídolo de gerações, a natureza rousseauniana, a encarnação do novo homem, a esperança de uma sociedade corrupta até os ossos!

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TARZAN – Não tocam minha alma as suas bajulações, e sim o seu sofrimento. Do que sofres? MANDRAKE (À parte) – Duro de agradar: deve estar muito afetado. Aparentemente, talvez não se envaideça, mas provavelmente já não me teme. Um homem velho e triste é presa fácil do adulador, ainda que não pareça – digo, por experiência própria! (A Tarzan.) Falei-lhe de Lothar, meu companheiro de lutas, por todo o século. Quadro a quadro, domingo a domingo, com seu gorro turco e sua pele de leopardo. Fiel como um cão, forte como um leão, doce como um esquilo amestrado. Mudo, como uma girafa! TARZAN – O seu amigo era um zoológico completo! MANDRAKE – Não zombe da dor alheia! Sua morte arrancou de mim, metade da minha vida. TARZAN – Cruzes! Não era casado? MANDRAKE - Lothar? Não, solteiro. TARZAN – Você, eu quero saber. MANDRAKE - Eu? Fui. Sou viúvo. TARZAN – As pessoas morrem como moscas. MANDRAKE – Certo. A vida tem sido dura para mim. Mandrake, o mágico, antes, célebre figura do cenário mundial, agora anônimo mágico de festas, de aniversários infantis, animador de shows baratos de televisão. Amargo fim para quem foi paladino da justiça!

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TARZAN – Não tiveste filhos? MANDRAKE – Não. TARZAN – Não conheces, então, a maior sorte nem o pior dos infernos. MANDRAKE – Do que falas? Desabafe: nada une mais que a dor. O riso se evapora. Os amigos se fazem com sangue compartilhado. O pranto de homens é um amor que não devemos esquecer. TARZAN – Disseste-me que te chamavas Mandrake? Falas como um cantor de tangos argentinos, que nos visitou em palácio. MANDRAKE – É lindo ouvir meu nome na boca de um amigo! TARZAN – Nós - os velhos -, não temos amigos: somente companheiros de desgraça! MANDRAKE – Melhores que os amigos da juventude, juro-lhe. Quantas vezes nos traem depois de palavras bonitas? Deitam-se com nossas esposas, traem nossos segredos, juram-nos lealdade de bebedeiras, que se vão com o efeito do vinho, pela manhã. Deitam-se soldados e levantam-se desertores! TARZAN – Você disse a verdade, ainda que não me agrade. Conheci o amor, e este amor, hoje me vira as costas. Quis um filho que me quis, e, quando deveria acolhê-lo em seu desespero e tolerar sua raiva de jovem – esta raiva que é grito de liberdade, que é o seu desejo de ser gente -, confundi-o com ódio, e mandei

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que... Oh, Deus dos homens-gorilas: não existe piedade para mim! Por isto, sua alma vagueia atrás dos meus passos, e, hoje, há de me encontrar aqui, desarmado... MANDRAKE – Por que choras? TARZAN – Zombarás de mim! Dirás que estou louco! MANDRAKE - Eu? Você mesmo não soube reconhecer o meu amor por Lothar. Como não vou conhecer o desdém, a incompreensão e a desgraça? TARZAN – O fantasma de meu filho virá a este salão. Procura-me há dias. Sua alma me persegue. Haviam-me falado dele, na savana, também nas estepes, e no palácio, escutaram-no chorar no meio da noite e o confundi com bugios no cio, com um quadrúpede, com algum tigre errante, chamando alguma fêmea extraviada. Não há ninguém que tenha alcançado o poder, que não tenha um morto perseguindo os seus rastros! Oh, dor de minh’alma! MANDRAKE – A mesma que eu vivi com Lothar, com minha esposa... TARZAN – Não me fales dela... MANDRAKE – Da sua? Por quê?... TARZAN – Até hoje se recusa a falar sobre o assunto. Você sabe como são as mulheres: ou não param de repetir as feridas passadas - tal e qual o chiado de javalis selvagens empoleirados

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num tronco -; ou calam para sempre, ruminando por dentro sua dor, até macerar-lhes as entranhas... Quando Boy, meu filho, morreu... ela viajava. Desde então, não parou de fazê-lo. Ficou mais derrotista do que já era, mais cruel, mais distante. Juro-lhe que se enfurecia como uma pantera ferida... Eu, pelo contrário, fiquei brando, perdi a coragem, a disposição para o poder, a arte da liderança. Tornei-me irresoluto, ineficiente, imbecil. MANDRAKE – Tudo isto é ela quem lhe diz? TARZAN – Isto e muito mais. Agora mesmo, expulsou-me do meu quarto... do seu leito... Existe algo pior para um homem velho do que perder cama, amante, filho e cetro? MANDRAKE – Perder um amigo de toda a vida!... TARZAN – Você me entende. O que mais me resta passar? (Entrega-se, abatido.). MANDRAKE (À parte) – Está mais doído do que eu, e, sobretudo, mais indefeso... Vejo-o chorar, e penso que seria o momento perfeito para um golpe fatal... Mas, ao mesmo tempo, duvido!... Quão cruel é o homem diante da morte, da velhice, da mutilação do seu futuro? Há homens, como ele, que se quebram: demonstram sua frágil estrutura. Outros - nos tornamos - vis, cruéis, ardilosos. De minha dor vem minha inveja, do meu padecer minha arma traidora! Nós, os homens tristes, não somos, em geral, os mais sinceros! TARZAN – Choraria toda esta infausta noite! Boy, Boy... Aparece, de uma vez, por todas!

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MANDRAKE (À parte) – Além de tudo, está louco! Posso aproveitar-me dele, tão facilmente? Posso arrancar-lhe o que lhe resta? É débil, sensível, sentimental, frágil. A solidariedade é sentimento de seres inferiores. (A Tarzan.) Posso ajudá-lo? TARZAN – Em quê? Tu? Um ex-mágico de historietas, que agora animas aniversários infantis? O que sabe uma caricatura da dor de um homem? MANDRAKE – Estranho! Há um minuto atrás, eu sentia-me seu igual, seu amigo, seu espelho. TARZAN – Não. Foi só a embriaguez da dor, que a todos irmana: como o vinho. MANDRAKE – E se eu interceder junto à sua mulher? Também fui casado e espezinhado e criticado e perdoado! Conheço - como você - os contratempos do amor alheio. Sou neutro... TARZAN – Estás falando sério? MANDRAKE – E se resolvesse? Se eu conseguisse acalmá-la? TARZAN – Isso sim que seria magia... Oito psiquiatras preferiram suicidar-se a continuarem atendendo-a. O único, que se negou, foi atacado pelos dardos de uns pigmeus ferozes, que ela contratou, em Zambesi.

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MANDRAKE – Necessitaria que me desses, tão somente, a chave do seu quarto... Entraria de surpresa, fazendo-me passar por um camareiro. Falar-lhe-ia de você. Demonstrar-lhe-ia que a ama. TARZAN – Adoro-a! Mais do que nunca, neste padecer, necessito-a! Mais do que nunca, a dor separa-nos! Ela não tolera ver-me fraco, e, o que eu necessito, com urgência, é chorar sobre o seu peito! MANDRAKE (À parte) – Peito que é generoso e atraente, mas não, exatamente, para chorar! TARZAN – Todo o esforço seria pouco!... MANDRAKE – Hipnotizá-la-ei, se preciso for... TARZAN – E farás renascer seu amor por mim? Farás com que, de novo, ela me aceite, me considere, me respeite? MANDRAKE – Como o fulgor adolescente do primeiro beijo, será o brilho do seu olhar! TARZAN – Toma! (Passa-lhe a chave.) O caminho é teu! Minha felicidade te pertence! MANDRAKE – Esta chave abrirá o caminho do paraíso... TARZAN – Não o nego. Talvez os fados sejam bons comigo. Talvez se tenham apiedado de minha condenação. Talvez, inclusive meu filho, venha aliviar-me com seu amor, mais do que me apontar o dedo. Cheira bem esta cidade! É formoso este hotel!

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Que bem faz sentir-se, outra vez, esperança!... Deus proteja aos que a perdem! MANDRAKE – Claro que sim, como não, claro que sim! (À parte.) Será o caminho da felicidade, por suposto, porém a minha... Que ele apodreça em sua loucura, que se empanturre em sua tristeza, que o sucumba sua derrota! Que fique com os seus fantasmas! Eu terei uma mulher de carne e osso, e uma coroa de verdade... (Sai, entre a tormenta. Tudo escurece. Antes de sair, encontra-se com as camareiras, na penumbra.). Cena 6 MANDRAKE – Que fazem aqui? O que procuram? ADA – Nada que não saibamos inevitável. EVA – Nada que queiramos impedir. ANA – Nada que desejemos interferir. ADA – Mas, estamos vendo que estás contente! EVA – Vais como um noivo com um ramo de flores! ANA – Ou como o sorriso de um condenado que ignora o caminho do patíbulo! MANDRAKE – Deveria dispensá-las...

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ADA – Faça-o e lhes agradeceremos... EVA – Ainda está a tempo de mudar de rumo. ANA – Ainda pode arrepender-se. MANDRAKE – De quê? De querer ser feliz, como todo o mundo? Vocês mesmas anteciparam-me um reinado... Que querem fazer, agora? Cobrar-me um adiantamento? ADA – Tão só ter piedade por ti! Tão só ver-te pela última vez os olhos sãos! EVA – Não é verdade: já estão contaminados! MANDRAKE – De quê? (Elas se calam.) De quê, eu lhes pergunto? Quando eu encontrar o Administrador, vocês verão o que é bom! (Sai. Relâmpagos. Volta a luz. As três camareiras olham-no afastar-se e logo vêem Tarzan.). AS TRÊS – Que não diga que não lhe avisamos! ADMINISTRADOR (Entrando) – Que fazem aqui? Vocês têm de preparar a grande ceia! (Elas saem, obedientes. Ao público.) Falaram com vocês? Não dêem bola... A criadagem já não é mais como era!... Já verão como tudo anda bem. Música, maestro! (Trovoadas, enquanto ele sai. Escuridão, novamente. Agora, as três camareiras aparecem nos bastidores, e espiam Tarzan, na penumbra, chamando Boy.). Cena 7

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ADA – É a hora derradeira: nada restará por inteiro! Deveremos ser cautelosas, sigilosas, cuidadosas... EVA – Que aconteça o que tem que acontecer!... ANA – Que venha a conclusão, o final, o abismo!... (Trovões.). TARZAN – Boy! Boy...

TERCEIRO ATO

Cena 1 Noite. Trovões. Camareira cruza, com candelabros, diante de Mandrake, que entra, encoberto pela escuridão, e se esconde

dela.

MANDRAKE – Que fazem aqui? Estão por acaso em todos os lugares? Que papéis interpretam vocês nesta trama espantosa? (Ela sai sem responder.) Não caibo em mim de felicidade. Quanto tempo eu esperei a oportunidade que agora tenho em minhas mãos, total, definitiva? Ao longe vejo o quarto da mulher que já amo sem conhecer, cheirando à coroa, a poder, à febre e desabafo... Nada como uma amante que vem de uma perda, ninguém que queira com tanto afã ser salva da desolação. Só a luxúria de um viúvo, as ambições de um fracassado ou o descaramento de um covarde que perdeu as esperanças podem comparar-se à vulnerabilidade da mulher que perdeu uma coroa...

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Oferecer-lhe-ei o império do meu coração, do meu sexo, de minha alma. Oferecer-lhe-ei a coragem que o louco do seu esposo não tem. (Escutam-se os gritos de Tarzan chamando Boy.) Ouçam só: como chama a seu espectro... Louco deve estar para fazê-lo aos gritos. A ti, Lothar, eu sempre falo clandestino, com cuidado, baixinho. Agora, vai-te daqui, que a luz do seu quarto me chama, como uma tocha às mariposas da noite. Assim, a solidão de uma mulher chama aos traidores! Cena 2 A luz pisca. A mesma camareira passa, dando gritos de pavor. Mandrake entra no quarto de Jane, onde ela dormita, com sua máscara de dormir, numa poltrona floreada. Mandrake entra, furtivamente, e fecha a porta, que abriu com sumo cuidado.

Jane ajeita-se e fala-lhe, sem tirar a máscara.

JANE - Tarzan? Já de volta? Cansaste logo de andar te fazendo de macaco! (Mandrake acaricia-lhe o colo.) Tarzi? Não sejas bobo. O que é que estás pensando? (Mandrake insiste.) Faz tanto tempo que não... Sabes bem que isso me perturba; me molesta; me inquieta. Não estás me ouvindo?... Não, não pares... Estás doce... Estás suave... Não eras assim desde que... desde antes de aprenderes a falar...Ih, ih, ih... Ficavas olhando-me, nua... Curioso... Estás me excitando... sem medo. (Pega suas mãos. Assusta-se.) Tu não és Tarzi... MANDRAKE – Sou um homem que a ama...

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JANE - Quem? MANDRAKE – Não, não tira a máscara! Suplico-lhe que me desculpe! JANE – Vou chamar o Administrador. MANDRAKE – Qualquer castigo não valeria nada, ante o prazer de acariciá-la... Os padeceres da vida são migalhas junto ao inferno de amá-la à distância... sem poder tocar sua bela pele... seu corpo, que o próprio amor transforma em Deusa... JANE – Quem é você? MANDRAKE - Importaria? Valeria a pena dizer o meu nome? Para quê? Para que possa rir-se do ridículo do amor desatado de um pobre diabo a uma Imperatriz, a mais formosa mulher da Terra? Para que me aponte com o dedo e todos saibam que a amo com loucura, até ser capaz de invadir seus aposentos no meio da noite? (Trovões. Escuridão total.). JANE – Preciso vê-lo! (Tira a máscara.) O que está acontecendo? MANDRAKE – A Divina Providência que protege aos enamorados! (Esconde-se atrás das cortinas.). JANE (Acende velas) – Onde se meteu? MANDRAKE – Perto de você, mas nunca o tanto quanto gostaria de estar.

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JANE – Tarzan! Tarzan! MANDRAKE – Chamas, angustiada, a um homem que não ama, e recusa a voz de quem poria o mundo aos seus pés... Buscas como proteção a um homem que já não menciona seus peitos, nem seus quadris, nem sua boca, que mereceriam ser copiados nas estátuas de todos os caminhos e receber todos os poemas da Terra... JANE – Meus peitos? São velhos e operados. MANDRAKE – Cúpulas do Templo do Amor à espera de dedos suaves que acariciem seus mamilos, para abrir a caixa-forte de uma paixão doída, avariada, convalescente ainda, de velhas cicatrizes. JANE – Saia daí! Já sei onde estás... (Mandrake segura-a através da cortina. As velas giram.) Vai incendiar... MANDRAKE – Mais do que eu, impossível... JANE – Você não sabe o que diz... MANDRAKE – Sob o efeito da paixão ninguém sabe o que diz. Só existe o seu corpo, suas nádegas, seu colo, sua boca. Asfixia-me seu nome na garganta: Jane, Jane, Jane... JANE (Desfalecente) – Não fale mais, que não respondo... MANDRAKE – Teria que lhe pedir - para sermos iguais - que você não existisse: que seu corpo fosse roído pelos ratos e sua pele entregue aos cães. Cale sua beleza, e calarás meu desejo...

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JANE – Não fales assim, a uma mulher que acaba de ser derrocada... Que o desejo rasga-me como um castigo dos céus... MANDRAKE – O mesmo castigo, então, nós padecemos... JANE – Irrompes em meu quarto, como um ladrão, e já sei o quê me roubaste! MANDRAKE – Seu coração... Seu prazer... Como você, ao passar diante de mim, roubou o meu! JANE – Suas palavras são piores que suas mãos! MANDRAKE – Não sabes ainda o que guardo. JANE – Nem me deixes pensar, porque o desejo pensado é sempre pior carcereiro que o falado. MANDRAKE – Já é tarde, já te viste em meus braços, já te sabes penetrada, mordida, lambuzada. Já te sentiste, por minhas mãos, percorrida e morreste a morte que não mata, entre os meus braços... JANE – Seja quem seja: sou sua, derrotada!... (Trovões. Entre as sombras, o beijo de Mandrake e Jane. Os gritos de Tarzan chamando Boy na escuridão.). Cena 3

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Trovoadas. Escuridão total. Entra, correndo, a mesma camareira com candelabros. Cruza o cenário, aos gritos. Entra

Tarzan, como se avançasse através da tormenta. A luz vai e vem: oscilante.

TARZAN – Este é o lugar onde dizem que te viram... Por que se levantou teu pobre corpo de jovem, preso para sempre? Por que teus ossos saíram de tua desconhecida sepultura? Por que invades a ingenuidade dos sobreviventes, que nos cremos a salvo de nossos mortos? Por que estás aqui? Responda-me! ADA (Entrando) - Senhor? TARZAN – Não... Não é você a quem procuro. Perdão: pense que estou louco. Eu falava sozinho. Pense o que quiser. ADA – Procurava a seu filho? TARZAN - Nada podes saber dele! Morreu há anos... Seria maravilhoso, se o tivesse visto vivo! Certamente pensarias em estar em seus braços, em ser sua esposa, seduzi-lo. ADA – Era tão lindo assim? TARZAN – Nasceu para ser um príncipe!... Mas, seu pai estava muito longe de ter os atributos de um rei. (Trovões. Escuridão.) O céu anuncia catástrofe! Virá? (Boy emerge entre a penumbra. Ada o vê.). ADA – Virá, certamente virá! (Sai.).

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TARZAN – Este edifício tem olhos que vêem o que não deveriam ver. Devo cuidar-me. Talvez a presença desta camareira tenha espantado a aparição de Boy... (Trovões. A luz volta a piscar). BOY – Pai... pai... TARZAN - Onde? Boy? Estás aí? Boy? És tu que arrasta os pés como pétalas de pedra sobre os tapetes? És tu, o que me esfola e rasga meu peito ao meio, respirando sem respirar, como fazem as almas penadas, como o fazes tu, agora, pálido, luminoso, incandescente? Deveriam advertir aos fantasmas, que dissessem aos seus parentes para usarem óculos de sol! És tu? Realmente tu, dor da memória, tristeza da alma, juiz dos juízes, filho morto que voltas para dizer-me quem sou; quem fui, quem não mereço ser? Boy? Por que não falas, Boy, por que não falas? Oi, filho... Estás bem? Como tens passado? Boy? Por que não dizes nada? Censura-me, cobra-me, qualquer coisa, mas fala! Responda ao teu pai! Não sabes maldito filho, que o teu silêncio dói mais que mil sinos batendo como um alarme aos meus ouvidos? Vocês, os espectros, vocês, cruéis, falam com meus remorsos que são sempre implacáveis! Boy! Não te lembras, por acaso, que fomos amigos, que brincávamos com as zebras, perseguíamos os antílopes pelas savanas, capturávamos as últimas girafas? Nem fui tão mau pai, como dizia Jane, tua mãe, tua querida mãe... Estive sempre junto. Claro, o império depois cresceu. Tu sabes o que são as obrigações: melhoramos indefinidamente o nível de vida, fizemos da África um império moderno. Eu não podia estar em todas as partes: a política é assim. Por isso não me falas, Boy? Sempre te levei a ver os gorilas, os desfiles militares. Boy, se alguém te abandonou... foi ela, primeiro... Boy, fala, por favor: começo a pensar em nossa felicidade e só me dispara mais

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blasfêmias com tua mudez de pedra. Filho meu, a lembrança é uma tortura... Fala... Boy! Eu não te matei, eu não ordenei que disparassem! Foram esses agitadores, esses terroristas que sempre existem; que se escondem na multidão; disparam a esmo, colocam bombas! Tu viste os noticiários: tu viste como queimavam ônibus, multidões de inocentes... Assim foi contigo: eu não te matei, eu não mandei te matarem, eu não podia saber que estavas entre a multidão, no meio do povo. De repente, brilhou o brinco que te puseste na orelha, ou teu cabelo longo: não sei como te veste com essa roupa de anarquista... Eu não te matei, Boy! Nem eu nem Jane, que estava na Suíça, operando-se. Eu apenas disse que acalmassem o protesto. A missão de um Imperador é velar pela seriedade e pela ordem da população. Não me recrimines mais, a vida é a vida, a morte é a morte... Fala Boy, fala: eu sei que tu me entendes! Tudo está bem entre nós, não é assim? Foi tudo um acidente, mais nada! Como iria saber que te misturavas com essa gente? Tu eras o filho do Imperador... Como irias te pôr a protestar contra mim?... Boy, Boy... Por que não falas? Vai-te, então! A que vieste? Não sabemos o que fazer com o teu corpo morto - é verdade. Ah, eu não quis te matar, Boy... Quando entenderás?... As drogas te deixaram assim, claro: a maconha, a coca - e não sei mais que merdas tu experimentaste... Tampouco podes me culpar: contratei os melhores professores e faltavas às aulas. Quem te mandou fugir para as savanas? Criança, criança: deste para te misturar com os gorilas... Boy! Por que te meteste com estes negros imbecis? Sempre os preferiste, aos negros, aos miseráveis, aos marginais... Faltaste com o respeito ao império. Eu... eu... eu não queria que morresses, como ia querer?... Eu só queria te assustar. Eu só queria que te desses conta. Ordenei que disparassem para cima... Algum negro - tinha que ser -, que se enganou e tropeçou, ou disparou... uma casualidade, Boy... Boy,

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fala algo, ou morra de uma vez por todas! (Rompe a chorar.) Boy, meu filhinho, eu também gostaria de fugir contigo para as savanas: eram tão lindos aqueles dias. Quem nos separou? Por que não estive contigo, por que não fui contigo? Eras como eu: selvagem, rebelde, solto, e eu não te segui. Maldito império! Maldito império!... Uma só palavra tua, Boy, uma só palavra, e poderei andar sem cair aos pedaços, respirar sem que me queimem os brônquios, ser quase humano! Deixa-me pelo menos, saber que me querias. Tu me sorrias quando criança. Claro é que eu não soube te compreender. Se existe um Deus que me perdoe: que fale! Eu te dava presentes, todos os presentes do mundo. Nada mais que... que... Bom, não haverá castigo suficiente! Ai, eu não quero te ver nunca mais, não queria dizer nunca mais o teu nome. Vai-te de mim! Vai-te!... Não, não te vás nunca: sei o que me espera. Vem, olha como a minha alma sangra. Vem, deixa-me, pelo menos, sentir como são os fantasmas mais amados, mais temidos. BOY – Não me toque! Já não existo! Minha alma não conhece o repouso! Eu tinha que te mostrar minhas feridas. Eu também quis te matar. Perdoar-te-ei, se tu me perdoares. TARZAN – Filho, filho, claro que sim, que sim... BOY – Cairão sobre ti, como sobre mim, a morte e a traição! TARZAN – Seria um alívio... BOY – Tu não saberás, tal como eu, o que fazer para te defender.

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TARZAN – Tudo, desde que minha mente deixe de me castigar com aparições. BOY – Tu perderás o juízo, a visão, a esperança. Pedirás, aos gritos, que te executem logo... como eu pedi, como tu permitiste que acontecesse. (Sai.). TARZAN - Boy? Boy? Boy, essa não é a maneira de me perdoar: isto é somente abrir com tuas mãos minhas feridas, que já são muitas e que queimam como o fogo. Até onde queres seguir, até onde pensas que o meu coração suporta? Boy, Boy, onde estás? Foste... (Trovoadas. Escuridão total.) Estou cego... tal como anunciaste...Ribombem eternamente os trovões: vi um fantasma e a noite se fez para sempre! Castigo dos deuses! (Trovões. Passam as camareiras. O Administrador entra e assiste ao desgosto de Tarzan. Parece incomodado.). Cena 4

Depois de fazer amor, Jane e Mandrake repousam. Talvez cantem junto, um número ao estilo de Jeannette MacDonald e

Nelson Eddy. Ela, enamorada dos pés à cabeça, está resplandecente.

JANE – Oh, crueldade do amor, que nos recolhe em seus dedos delicados, que ferem fundo como as garras mais afiadas... Por que emerges da escuridão e me surpreendes, quando pensava estar minha vida derrotada? Por que me atormentas com o prazer no ocaso da vida, e a destrói? Tu, Mandrake, por que não és o marido que sempre tive e não a sombra que me assalta, derrubando meus frágeis muros, com seu amor incontrolável? Só teu nome é meu

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inimigo: seja outro, então, o teu nome. O que chamamos rosa exalaria o mesmo grato perfume, com qualquer outra denominação... Renega o teu nome, Mandrake, e, em troca deste nome que não é parte de ti, toma-me a mim, toda, inteira. MANDRAKE – Aceito tua palavra. Chama-me somente de meu amor e serei novamente batizado. JANE – Quem és tu, que assim, escondido na noite surpreende de tal modo meus segredos? Como chegaste aqui, e para quê? MANDRAKE – Com leves asas de amor atravessei estas paredes, pois não há muro de pedra capaz de impedir o amor. Nem os guardas, nem toda a vigilância do King Kong Palace Hotel me importam. JANE – Assassinar-te-iam, se te encontrassem. MANDRAKE – Talvez! Exatamente neste ponto gostaria de chegar. Já chega de recitar Shakespeare, e mal. Romeu e Julieta eram jovens amantes, e nós, dois velhos cheios de pelancas, que descobriram sua última parcela de ar, na paixão, nestas chamas que nos inflamam e que de nós depende não as deixar nos destruir, e sim, que nos devolvam nossos reinos, nossa fama, a que carrega a juventude, vangloriando-se do amor que eles dizem sentir, desprezando os velhos, como seres sem calor, répteis com pele humana de segunda mão, batráquios anfíbios, que devemos tomar sol para podermos mover nossas articulações. Fazemos amor mais e melhor do que eles: azeitada está a ferramenta básica, e azeitado está o vosso interior para receber-me. O amor não conhece a velhice, a não ser de nome.

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JANE – Que queres dizer, Mandry? MANDRAKE – Não me chames de Mandry! Não sou o mico do teu esposo! Sou um homem feito e direito, que mescla amor com ambição, que te ama como esposa e rainha, e não tolerará que nos tirem o já ganho. JANE – Tirem-nos o quê? MANDRAKE – Para que pensas que os trouxeram? Para que pensas que estavam sendo observados? Dar-nos-ão um trono, um cetro, uma mitra, uma faixa presidencial! Colocar-nos-ão como reis, à altura dos deuses. Esta é uma cidade que sonha com monarcas, mas só tem dinheiro. Procuram-nos, desejam-nos! JANE – A nós? MANDRAKE – Na verdade, a vocês, Tarzan e Lady Jane. JANE – Eu e Tarzan? Que maravilha! MANDRAKE (Intrigante) – Sim, se Tarzan não fosse o velho louco que é. JANE - Louco? MANDRAKE – Completamente! Vaga pelos corredores, gritando o nome de mortos que diz ver e ninguém vê! Alucina, delira, transmite em onda curta e onda larga. Não tem remédio! Renegaram-no, e de ti, dirão que tão somente és a esposa de um

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pobre demente, que diz ser Tarzan. Lançaste a lenda muito ao alto, e já ninguém acredita que ele seja ele, porque as lendas, nem envelhecem, nem adoecem. Não há piedade para com os heróis, quando se tornam humanos... JANE – E então?... MANDRAKE – Tu e eu devemos ser reis, juntos. Devemos fazer amor dignamente, como convém a soberanos. Que todo o povo ouça os gemidos de amor saindo de tua boca, que todo o povo saiba que tens um homem que te faz fechar os olhos, feliz, e que da velhice não fazem nem idéia. JANE – Mas... MANDRAKE – Diremos que és a mais jovem, mais bela, mais rica que todas as princesas, e todos acreditarão. Seremos os mais ricos, os mais belos, os mais jovens, e todos acreditarão. Prostrar-se-ão, devotos, aos nossos pés! JANE - Sério? E Tarzan? MANDRAKE – Esse é o nosso problema... Eu só poderia me casar, dignamente, com uma... JANE - Separada?... MANDRAKE – Jamais! Este é um país muito religioso, e vê com maus olhos a quebra voluntária de um tálamo conjugal. Seria horrendo escutar comentários sobre o nosso amor arrastado pela lama. Tu tratada de meretriz, de prostituta, de rameira, e eu, como

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gigolô, um aproveitador e sedutor de mulheres de má-fama, um cafetão... Se quiseres isso para o nosso amor, vá, e peça-lhe a separação! JANE – Não, claro que não... MANDRAKE – Preciso de ti... viúva!... JANE – Viúva!... MANDRAKE – Viúva, poderias manter a memória de um esposo idolatrado, juntaríamos sua gloriosa tradição ao nosso patrimônio, e seríamos ainda mais poderosos e célebres. Não há como infundir mais respeito do que com uma viúva chorosa e digna, que recebe junto a si um novo amor de igual nobreza. Todos nos engrandeceríamos: até ele seria engrandecido! Seria esquecida a sua loucura, o seu desvario, a sua demência... sob o halo trágico de uma morte violenta. JANE – Ele está tão mal assim? MANDRAKE – E pior estará para a sua desonra e a tua... minha rainha... JANE – Mas como vamos esperar que morra? MANDRAKE – Quem falou em esperar? JANE – Mandry! MANDRAKE – Não me chames de Mandry!

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JANE – É impossível! MANDRAKE – Claro que é possível, e muito possível! Ele não dorme, por acaso? E, quando dorme, não deixa, como todo o mundo, seu ouvido destapado? Não é por aí que entra o mais célebre veneno, o sumo do meimendro, vertendo seu mortífero destilado para, rápido como o azougue, correr pelas vias naturais e condutos do corpo, cortando e coalhando, como gotas ácidas pingadas no leite, o sangue são e fluído? Ninguém suspeitará ao vê-lo, insano, gritar aos fantasmas, que alguém, com mão intencionada, buscou sua execução. Viúva, tu ficarás, e serás minha! JANE – E onde vamos obter este veneno? MANDRAKE – Na verdade, em parte alguma: não existe. Experimentei, inutilmente, em um amante de minha esposa, e falhou. É um problema de tradução. Na verdade, trata-se do hébon shakespeareano, mas não se consegue entender a que se refere. JANE – E então? MANDRAKE – Não nos resta outra coisa, a não ser o vulgar assassinato. JANE – Eu nunca matei ninguém! (Mandrake explode numa terrível gargalhada.). MANDRAKE (Brincalhão) – A ninguém? Vocês caminharam todo o seu reinado sobre cadáveres!

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JANE – Não te atrevas a insinuá-lo! Ninguém morreu sob nosso reinado! MANDRAKE – Ah, sim, claro! A palavra morte desapareceu do dicionário e os cemitérios fecharam por falta de clientela. Talvez, por isso, é que jogavam os corpos no deserto, aos abutres, às hienas. Jane, os jornais se cansaram das fotografias de vocês sorrindo sobre os mortos do dia! JANE – Jornais comunistas! Tu também és um comunista! MANDRAKE – Jamais, jamais: apenas penso em mim, nunca pensaria em ingênuas teses coletivistas e fora de moda. Jane, eu te amo, com loucura te amo, e penso em ti, como em mim: quero ser contigo como um ser único, e quero que falem bem de ti, ou seja, de mim... Que os jornais publiquem em suas primeiras páginas, nosso casamento, e anunciem a tua redenção. Desfaz-te dele! Será o suficiente para aplacar a sede de vingança dos leitores e da imprensa marrom de todo o planeta... Tu ficarás limpa! As pessoas querem sangue. Querem o teu sangue. Vamos dar-lhes o dele! JANE – Talvez seja esta a mais rara mescla de medo e calma. É como se houvessem tempestades maravilhosas ou infernos agradáveis, chicotes de algodão, torturas de seda. MANDRAKE – O que é um crime a mais em tua memória? Sobretudo, se tu não o cometes, e sim um par de terroristas. JANE – Falas como o Tarzan dos bons tempos.

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MANDRAKE – Não o cites jamais. Sou também muito ciumento. JANE – E de onde tiraremos os terroristas? MANDRAKE - Como? Não tens dinheiro para pagá-los? JANE – Nem um centavo! Quando o American Express nos descobrir, será muito tarde. Conto com o meu prestígio e desfaçatez para as últimas compras. Minhas camisetas têm remendos. Minhas meias, eu mesma as cerzi, noite após noite. MANDRAKE – E este hotel? JANE – Tudo pago. De que outra maneira, nós teríamos aceitado este convite, para este país infecto, sem pena nem glória? MANDRAKE – Onde nos conhecemos... JANE – Sim, querer maior riqueza que o amor?... É mesmo necessária a morte dele? MANDRAKE – Já não está morto? Não o matamos já com o nosso amor, sobre esta cama, tu e tu, suados? JANE – Mandry... (Beijam-se.). MANDRAKE (À parte) – Estou quase enamorado! E, quando me escuto me digo: teria ela alguma outra possibilidade, que não fosse enamorar-se de mim? Lothar: seremos reis! JANE – A quem falas?

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MANDRAKE – A ninguém. Grito de felicidade, de sorte, de alegria. JANE – Mandry... MANDRAKE – Não me chames de Mandry... (Beijam-se. As camareiras espiam.). ASTRÊS (Ao público) – Que não digam que não lhes avisamos!

QUARTO ATO

Cena 1

A tormenta chega ao seu apogeu. Trovões. Chuva. Talvez helicópteros misturados às trovoadas. Brilho de luzes

piscando do lado de fora. A luz do hotel parece sempre a ponto de apagar-se. A grandiosidade inicial converte-se num

espaço gótico, onde se vislumbram as balaustradas das escadas e dançam os lustres, agitados pelo vento. Faltariam somente tochas desfilando ao fundo, lembrando os cenários do Rei Lear. Tarzan vaga - operístico e frenético - após seu

encontro com Boy. A dor o contorce completamente. Dá encontrões entre as varandas e os pilares.

TARZAN (Entre violentas trovoadas) – Soprem ventos, explodam suas bochechas! Bufem de raiva! Soprem até rebentar! Vocês, cataratas e trombas, diluviem até inundar nossos

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campanários e submergir o último arranha-céu! Que não reste sobre a Terra, rastro algum da soberania do homem! Que seja o castigo para uma raça que não soube conservar o amor de pais e filhos! Que morram os assassinos de seus pequenos! Que sejam afogados os filhos que ousaram atentar contra seus pais! Rompe o céu, oh trovão, e que ele caia inteiro sobre nossas cabeças! Raça de demônios! Vocês, relâmpagos sulfúreos, rápidos como o pensamento, precursores das centelhas que dizimam os carvalhos, que não perdoam nem ao ferro nem ao aço: incendeiem o branco de minha cabeça! Tu, trovão, rei do céu em tormenta, herdeiro do sol: que consuma a todos; rompa o equilíbrio da natureza e destrua, num só instante, todos os germens que produzem a ingratidão do homem! (Rompe a chorar.) Maldito este teto que me acolhe, maldito o calor destas paredes que não me permitem ser castigado como devo; que deixam agitando-se dentro em mim, os crimes sem sanção, as sentenças que não foram ditas, as vozes, que estou certo, são ouvidas lá de fora, gemendo entre meus ossos: Tarzan! Queremos tua cabeça! Tarzan! Assassino de teu filho! Boy, Boy, por que não me falaste? Por que não te ouvi? Por que não me procuraste, por que não te busquei? Amor tardio, sempre o mais cruel: o que faz ver fantasmas, o que estraçalha a alma para sempre. Onde estão os restos do meu império ridículo?... Onde está o meu coração, o meu espírito?... De que me servem as palavras que Jane me ensinou?... Absurdas à hora da morte. (Dá um lamento de gorila. Um grande urro.) Só o dialeto dos animais sabe dizer o quão dilacerado está meu peito... (Outra vez grita como gorila.) Renego a fala, a linguagem... Que fale o meu corpo! (Dança como um gorila ante a morte dos seus pais.) Deus dos homens, Deus dos gorilas, dá-me tua paz ou tua condenação! Dá-me, dá-me algo... (Fica ajoelhado, implorando. Entra Ada com as outras camareiras, que ficam mais atrás.

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Ada aproxima-se dele, quase ao alcance de suas mãos. Tarzan não a vê, enquanto soluça. Ela parece querer acariciá-lo. Um grande trovão soa. Enorme. Parece a voz de Deus respondendo ao clamor de Tarzan. A luz apaga-se, totalmente, e Tarzan põe as mãos nos olhos e urra de dor. Ada abraça-o.) Estou cego, cego... Uma luz enorme e brilhante veio mostrar-me o caminho do Senhor. Onde estão? (Desvencilha-se de Ada e avança, tropeçando, num degrau. Cai, ruidosamente.) Onde estão todos?... O que posso fazer?... Estou cego. Seja lá como te chames – Deus - aceito o teu castigo... Aceito esta dor enorme... Não mereço ver o mundo que manchei com sangue do meu sangue, nem as paisagens que povoei de cadáveres sob ruínas de acrílico e telas de televisores coloridos. Cego eu sou - Deus meu - te agradeço... Aqui esperarei a piedade, serei mendigo, esperarei ao pobre tirano que me mandará matar, para limpar as ruas da cidade. Pobre orgulhoso, que pensa ser a morte o trono de Deus! (Ri.) Que vontade de sentir o desprezo de um tirano e rir-me de sua inocência. (Imita-se.) Eu, Imperador de todas as Áfricas, a negra, a branca, a vermelha, a amarela, proclamo a desordem absoluta dos costumes sexuais de elefantes e zebras, a castidade absoluta dos tigres, a proibição das tormentas, o descanso das saúvas, abelhas e formigas carnívoras, e o pranto eterno das hienas, abutres e todo o tipo de carniceiros, que, de agora em diante, serão alimentados com spaghetti! (Ri de si mesmo.) Que venha e me maldiga... Que venha e se ria de mim... Que me chute o traseiro... Que me cuspa!... Corre cego de merda! Que não saiba que matarás teu filho, que teu filho desejará matá-lo, que juntos encontrarão o caminho da desgraça, que tua esposa por-te-á cornos até o teto, que teus amigos trair-te-ão e, que não haverá nenhuma folha de capim que se lembre do teu nome! Cego, mais cego que todos os cegos, que eu, que ninguém, aquele que bebe

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das fontes do poder... (Ada acaricia-o.) Quem está aí? Boy? Não, tu não poderias me tocar... Jane? Mandrake falou contigo? Voltaste a me querer, a perdoar tanto, a ponto de ser minha guia, a companheira de um cego? Assim, tão humilde ficaste, assim, terna e solidária? Jane? Não, tu não és Jane. Mas tua mão é amável... E não me pertence... Existiam antes estas mãos? Existia este amor, ou está reservado, exclusivamente, àqueles que conhecem o sofrimento? Tu és o anjo dos cegos? Tu és Deus? Tu és a Virgem de que tanto Jane falava? ADA – Sou nada nem ninguém. Somente tua sombra. TARZAN – Minha sombra já não existe: perdi-a com a visão. Sou um gorila que fala, e nós - os gorilas - confundimos os espelhos com inimigos, não sabemos quem somos... Desejo... este estado de inocência. ADA – Desejas a paz perdida... o amor perdido... TARZAN – Estas palavras doem-me noutra boca. Também falas docemente. Quem és que não sabes que o mel de tuas palavras é sal em minhas feridas? Quem és, que caminhas sem fazer ruído e cobres a tempestade com braços delicados, como os arbustos das planícies do Transvaal? ADA – Alguém que teve pena de ti. TARZAN – Ah, a tão falada compaixão. Como a recusava! Antes, achava-a humilhante, e hoje é a única tábua onde posso segurar-me em meio ao meu último naufrágio. Como te chamas? Podes dizer-me, ao menos, como te chamas?

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ADA – Ada. TARZAN - Fada? Tu és bruxa negra ou branca? Elfo? Duende? Não fiques aborrecida. Estava somente brincando. Acariciar-me-ias da mesma forma, se eu tivesse cabeça de burro, ou se fosse um ex-Imperador derrocado? Fada: senta-te, pois, e tem cuidado com este pobre cego... Que poderes tu tens? ADA – Apiedar-me dos perdidos. Ler o futuro. TARZAN – E o que vês no meu, agora que estou cego? ADA – Que não estás... Que verás de novo... e, que virá te buscar... a morte! E, também, que deveremos abandonar este lugar. TARZAN – Por quê? ADA – Para ficarmos a salvo. TARZAN – De quê? ADA – Das implacáveis presas da matilha do destino, que não perde jamais o rastro, não se cansa de correr, não abandona suas vítimas e é cevada pela amargura, chamada pelo terror. TARZAN – Não as podes deter? ADA – Só a fé, a felicidade, a esperança. TARZAN – E elas, não as são, tu?

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ADA – Não. TARZAN – Logo virá Jane. Será, talvez, ela? Meu bom amigo Mandrake irá trazê-la. É o alívio de um cego, encontrar o carinho que nunca teve, à hora das sombras? Podes dizer-me em que lugar nós estamos? (Ada afasta-se e desaparece, com as outras camareiras.) Fada? Fada? Ai! Como todas as mulheres: vais-te após te tornar necessária!... Droga fatal a doçura: é sempre insuficiente! Aqui, sinto de novo minha desgraça... Nem sequer a tormenta é tão forte... O dilúvio não lavou minha desdita. Olhem ao rei cego!... Olhem!... (A luz retorna.) Não! Vejo! Nem sequer estou cego... Ridículo: nem sequer cego! Nada mais patético do que a desgraça a olhos vistos... (Encolhe-se, quase dormindo, em posição fetal.) Fecharei meus olhos, então... Não é a desgraça causa suficiente para arrancarem-se os olhos com as mãos? Oh, luz, que seja este o último dia em que te vejo - quem veio ao mundo engendrado por pais mortos; que contraiu relações com a mulher que não devia, e quem matou a quem lhe estava proibido. Infeliz de mim! Onde estou com minha desgraça? Onde me jogou o demônio dos homens? Como me dilaceram as pontadas da dor e as lembranças dos meus crimes! Cena 2

Entram Jane e Mandrake vestidos como terroristas, com meias na cabeça, luvas, roupas grossas; arrastando-se pelas

paredes. Confusos, de início, dando-se logo a conhecer. Tarzan reage.

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MANDRAKE (Com sotaque africano) – Dá-te por morto, maldito burguês! Come merda! Tu pagarás teus crimes, infeliz explorador do povo! (Levanta uma faca de mesa.) Morre!... TARZAN – Mandrake: és tu? Tu, que substituis o bom espírito que me acompanhava? Que alegria escutar a voz de um amigo, em meio à escuridão. Não sofras por meus olhos. A escuridão é o alívio de quem só pode ver sua própria culpa. Vem, por favor, e leva-me onde está Jane, que juntos devemos pagar nossas culpas. Falei com Boy. Ela ficará feliz em saber quem foi, verdadeiramente, nosso filho; triste ao inteirar-se, como morre e padece e jaz: anônimo, perdido. Feliz em saber que talvez, algum dia, possa perdoar-nos... JANE – Mate-o de uma vez... Mandry... MANDRAKE – Não posso... Está cego. Confia em mim. Não se dá conta que somos... que parecemos... TARZAN – Jane: estás aí? JANE – Mate-o, que não te trema a mão como a um covarde... MANDRAKE – Lembra-me Lothar... Ele me esperava. JANE – Se continuares falando, vai nos reconhecer. TARZAN – Jane: vem comigo, aproxima-te... JANE – Não sou eu: tu te enganas...

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TARZAN – Reconhecer-te-ia, em meio ao mais feroz foguetório, em meio a uma manada de bisontes atravessando o deserto, através de uma caterva de hienas uivantes. Vem: sei que és tu quem vieste me buscar! JANE (Toma a faca de Mandrake) – Não te dás conta de que eu não sou a mesma? TARZAN – Teu tom é igual: jamais muda! Mistura de amor e ódio, de guerra e paz! A seiva mais ácida, o licor mais saboroso. (Apalpa-a) O que tens à cabeça? JANE – O disfarce de um terrorista. TARZAN – Organizaram alguma festa no hotel? Que recepção maravilhosa! Eu deveria ir de Édipo cego, ou de Rei Lear, ou de fantasma de pai, morto de dor. Sabes que vi Boy? JANE – Como não te dás conta que venho a te trair? TARZAN - Tu? A mim? MANDRAKE – Dá-me a faca!... TARZAN - Faca? (Apalpa-a.) Esta faca? Cortaste-me... Uma faca de mesa comum e vagabunda para assassinar um ex-Imperador? Suas vozes os traem. Também deveria ter ficado surdo. Pensei que bastava apagar a luz para não ver os males do mundo, mas também são sonoros. Ouço os seus suspiros, respiram como respiram os amantes, como tu respiravas Jane, quando fazíamos amor, ou no telefone que me ensinaste a usar para seguir-te em

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tuas viagens pela Europa, enquanto eu escravizava meu povo... Reconheço tua voz, Mandrake: como muda de tom... Assassinos baixos, pobres adúlteros: traem depois de velhos, quando o corpo não é mais que desesperança e o esqueleto de uma caricatura, quando a vida há muito tempo que se foi, e ficamos como uma maleta de ossos sobre um embarcadouro abandonado... Que amor vocês fizeram? O do ódio, o da trapaça, o que se faz às costas de um velho louco que pensa ser homem, e que não passa de um gorila? Como é deitar-se com esse couro transparente de suspensórios? Observaste as minúsculas cicatrizes que cobrem seu ventre? Tu, Jane, o que ele disse para seduzir-te como a mim me fez? Foram felizes? Tiveram vocês um orgasmo com fogos de artifício, com tudo a que tem direito, com câmeras de televisão do início ao fim, como ela gosta? Ela pediu-lhe que gritasse de amor, como eu costumava fazer? (Grita como Tarzan e se afoga.) Os gorilas não conhecem a infidelidade, nem o adultério: sabem dos seus limites. Eles não são como tu, Jane, que me deixaste metade homem, metade gorila, e me levaste a me descuidar do meu próprio filho... Estive com ele. Com teu queridíssimo Boy. Com o seu queridíssimo espectro... JANE – Cale-se... MANDRAKE – Vou te matar se seguires falando, Tarzan... TARZAN – Ele soube da nossa cumplicidade, querida Jane, mostrou-me suas marcas, até a tumba nos acompanhará sua sombra. (Aparece o espectro sobre o balcão. Tarzan abre os olhos.) Ali está! Ri de nós! Vejo-o! Castigo dos cegos de corpo, que são capazes de ver as tormentas da alma! (Aumenta a tempestade. Trovões. Boy desaparece.).

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JANE (Luta com Mandrake pela faca) – Mate-o! TARZAN – Sim! Matem-me de uma vez, inaptos! Cumpram seu destino ignóbil nesta tragédia ridícula! Com uma faca de passar manteiga, com um alfinete bastaria - assim tão pobre está meu corpo, assim de maltratada está minha pele! Matem-me, traidores de segunda mão! Assassinem a esse pobre mendigo, que se acreditou Imperador de um continente sem confins, salvador da tradição ocidental num país de araque! (Jane pega a faca, e frenética, esfaqueia-o. Logo retrocede horrorizada.) Assim, assim! Muito bem, Jane... Reconheço teu estilo arrebatado... Sabes? Dói menos do que dizem. Sente-se uma tontura... e o sangue... olha, como escorre pelo piso. Olha! (A mancha espalha-se. Jane vai até Mandrake, soltando a faca.) Assim sangrou nosso filho... Assim, foi-se esvaindo, lentamente... Já estou pálido?... Ah, tu não sabes o alívio que se sente ao morrer. Será isso o que buscava nosso pequeno, na morfina? Nada parece importante, tudo está tão longe, tudo é neutro, indiferente. De vossa traição, já não me recordo. Teu nome, Jane, até está terno. (O Administrador entra em cena. Mandrake o vê.) A chuva é apenas o orvalho. Suave a morte, suave! Presenteio-lhes a vida! Repouso, afinal: morro gorila. Encontrarei Boy... Gozem coroas, mandatos, primeiras páginas, vivam a culpa, a deslealdade, a desconfiança: nunca mais durmam tranqüilos!... (Mandrake salta sobre ele e executa-o, a punhaladas, numa cena de grande violência e muito sangrenta. Levanta-se empapado de sangue.). MANDRAKE – Já está feito! Ouviste um ruído?

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JANE – Ouvi chiar o pássaro da morte e bater o vento contra os vidros... Não falaste? MANDRAKE - Quando? JANE – Agora. MANDRAKE – Enquanto o apunhalava? JANE – Temos que nos lavar, agora! Temos que nos lavar! (Olha as mãos, obsessiva.) Mesmo assim as manchas permanecem. (Faz gestos de quem está lavando as mãos.) Mesmo assim me ficam manchas... MANDRAKE – O que está te acontecendo? ADMINISTRADOR – Deixe-a, Mandrake! Monsieur... o que ela faz agora? Esfrega as mãos... MANDRAKE – Ela está tentando limpá-las, aos poucos, mas não consegue... ADMINISTRADOR – Silêncio, que ela está falando... JANE – Fora, maldita mancha, fora!... (Badaladas de relógio.) Uma, duas, sim... já era hora de fazê-lo... O inferno jaz, sumido nas trevas. Que vergonha, Senhor, que vergonha! E nós, com medo! A quem poderíamos temer? Ninguém se atreve a pedir explicações aos poderosos, como nós. Mas quem poderia imaginar que o velho gorila tinha tanto sangue no corpo?

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ADMINISTRADOR – Consegues ouvi-la? JANE – Nunca ficarão limpas minhas mãos? Já chega, Senhor, já chega! Ainda há cheiro de sangue. Todas as essências da Arábia não bastariam para perfumar estes corredores. Lavem-se todas as mãos! Está tudo empapado de sangue. Não só o dele: olhem os meus pés! Venho deixando rastros de sangue por todas as veredas, por todos os pavimentos, por todos os aeroportos! Devo jogar meus sapatos pelas janelas, minhas roupas ensangüentadas... O ar está cheio de sangue... esta bata, este boné... MANDRAKE – Jane! Amor! ADMINISTRADOR - Amor? MANDRAKE – Vamos ser reis! Deuses! Estamos além do bem e do mal! JANE – Com sabão, com água do mar, com lavanda e açucenas, com loções, com gasolina e álcool... sairá, mais cedo ou mais tarde, sairá: com lágrimas, com saliva, com urina, com merda de cachorro, com bofes de cordeiros, com crinas de cavalos... bem esfregados! Bem esfregados!... MANDRAKE (Ao Administrador) – Está tudo bem: ela está brincando, está assustada... Ela é tão dura quanto eu, tão dura quanto ele era, tão dura quanto você quer que seja... JANE – Sangue nas nuvens! (Tempestade.) O céu uiva de dor!

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ADMINISTRADOR – Ela está louca... O céu não sangra! MANDRAKE – Não sangra. Sangra sim. Não sangra! Senhor Administrador: eu sou a pessoa que você buscava... ADMINISTRADOR – E essa, sua primeira-dama? MANDRAKE – Jane! JANE – Estás cheio de sangue... Tarzi... Boy... Tarzi... (Abraça-se ao cadáver, enquanto Boy reaparece.) Eu lavarei teu corpo. MANDRAKE – Jane: não me traias, agora, Jane! JANE – Lavo o corpo que amei. O corpo que amei ficará como novo, inteiro, são, limpo, limpo, limpo... MANDRAKE – Não! Amas a mim! A mim! Somos reis! Reis, Jane! (Impotente, apunhala-a desesperado, até às últimas conseqüências. Logo olha para o Administrador.) Viste? Era simples... Buscaremos outra... Eu sou eu: lavo-me tanto no sangue quanto na água. Tenho a pele dura como um tubarão, moral de crocodilo, ambição de águia... ADMINISTRADOR (Após uma pausa) – E cérebro de inseto! Não me serves... MANDRAKE – Por favor: envelheço sem remédio... Matei por você. Li no seu olhar que você necessitava criminosos francos e diretos. Que mais você quer? Ouvi-o falar da crueldade necessária, para quem exerce o poder, da debilidade daqueles que

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insistem em vãs teorias morais, da urgência de uma mão firme, de um líder implacável, de um pulso que não trema... Segui-o dia a dia, desde que me trouxe: desde que me pôs a fazer números de magia. Quiseste-me mais corrupto: já nem lembro mais de Lothar, nem dela, nem dele. O amor me é de todo alheio... Por favor... Por favor!... ADMINISTRADOR – Sim!... Sim!... Sim!... Tens razão! Necessito gente dura, firme, implacável... mas com as mãos limpas!... Pensamos em ti, como o herói que uma vez conhecemos! Acreditamos que poderias nos salvar; que poderias vir ao King Kong Palace e ser a faca serena e rigorosa que pusesse ordem... mas, olha-te agora: escorrendo sangue, sujo, torpe – babas! Tu pareces um cão de caça, assanhado com sua vítima. Se algo tu tens, é febre, é raiva, uma peste que te arrebentou as costuras do cérebro... Estamos, por acaso, condenados a ser governados por idiotas? Não eras, por acaso, mágico, onipotente, todo-poderoso? E não eras belo; altivo, e de inenarrável soberania? (Chove. Trovões.). MANDRAKE – Posso operar-me, posso assessorar-me contigo, colocar-me sob as rédeas de um domador, de um assessor de imagens, de um marqueteiro, de um dramaturgo, com quem quiseres: posso ser fachada, cenário, máscara... ADMINISTRADOR – Com tão pouco te conformas? Insensato... Ele era melhor do que tu - não o duvido. Ela, inclusive. Se algo os corrompeu, foram o poder e a dor... Para criminosos como tu, as ruas estão cheias de mendigos e desesperados... Não és – Mandrake -, o que esperávamos!

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MANDRAKE – O que vais fazer comigo? Não tenho onde parar... Não tenho amigos, nem família. Preciso de um reinado!... ADMINISTRADOR – Seja rei, então! Já o és, já o és! Te sentes melhor? Rei dos Criminosos, dos assassinos, dos que perderam sua dignidade, dos que não são capazes de ascender pisando as cabeças dos outros, sem que se façam notar. Não sabes ser cruel, sutilmente. Não sabes ser astuto nem intrigante, sem deixar rastros demasiados ao teu redor. Rei dos Idiotas! (Saca uma arma, na qual coloca um silenciador.) Não mereces nem sequer honras fúnebres, nem sequer o ódio, nem o juízo da história, por tua usura e ambição... Nem sequer a piedade, nem sequer o riso! (Aponta a arma. Dispara. Mandrake cai sem ruído. Trovões. Entram as camareiras.). EVA – O que aconteceu? ANA – Por que tanto sangue, tantos corpos? Por que tanto cheiro a gritos e pólvora e desgraça? ADA – Poderemos algum dia limpar tantas manchas, tantas feridas, tantos rastros? ADMINISTRADOR – Não sei! Entrei aqui, e os três jaziam ao chão. Fumegava esta arma em sua mão. Talvez fossem impostores. Talvez, tenha havido entre eles, um ajuste de contas. Não! Nem sequer chamem a funerária. São apenas vagabundos que se infiltraram nos aposentos, vestindo-se com as roupas de alguns hóspedes. Foi uma falha da recepção. Seus corpos não merecem sepultura. São animais. Caricaturas, arremedos de sonhos, subumanos. Joguem-nos com os restos da ceia!

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ANA – Mas nunca há ninguém para comer à ceia... ADMINISTRADOR – Haverá: algum dia haverá... EVA – E não se ouvem mais passos nos quartos, a não ser os de um fantasma. ADMINISTRADOR – A clientela dorme. Está tudo tranqüilo. Não me contradigam! ADA (Puxando os cadáveres) – Seus corpos não se movem: estão grudados no chão. ADMINISTRADOR – Então, lacrem este salão, este piso, esta ala. Traremos abutres, hienas, aves de rapina... Estão contentes? Virão turistas, felizes, para ver a morte em seu apogeu. O que olham? Vão chamar os empregados! Abram o hotel à plebe! Não é isso o que vocês mesmas queriam? Já não há heróis, nem deuses, nem monstros, nem ídolos. Que ocupem o edifício, os vulgares e os miseráveis! Baixem os preços! Já não há xeques, nem imperadores, nem multimilionários, nem ladrões, que paguem, em diamantes, nem destruidores psicóticos... Aceitem dinheiro sujo, tíquetes, cartões de crédito! Saiamos na televisão!... Entreguem-se à popularidade!... Implorarão por um tirano!... Pedirão aos gritos uma guerra! Sonharão com a escravidão e com o domínio! Nunca mais haverá estátuas de bronze, nem grandes guerreiros, nem vozes envoltas em chamas, que queimem os corações da multidão!... Nem sequer a morte será trágica. Nunca estivemos tão distantes dos deuses! Só o ridículo é possível! O mundo pertencerá aos trabalhadores e aos palhaços! Fora! Fora, disse! Deixem-me a sós! Completamente só!

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ADA – A solidão é cruel! Veja o que tem feito; o que fez com eles! ADMINISTRADOR – Nada será pior do que o que já aconteceu! Quero ficar só! Absolutamente só! Ensaiem os cantos, façam a limpeza, sumam! Façam declarações à imprensa, cometam crimes, droguem-se, qualquer coisa, mas desapareçam! (As camareiras saem correndo. O Administrador fica só. Levanta a arma. Sente sua frieza. Aponta-a para a própria testa, coloca-a em sua boca, e volta para a testa. Pensa se vale a pena dar-se um tiro. Joga longe a arma. Vai ao mesmo piano, ao fundo, onde acompanhou o bailado inicial, e toca uma velha melodia, um tema melancólico, que fale de tempos melhores e horizontes mais claros. Crescente ruído exterior. Escutam-se trovões, explosões, sirenes de bombeiros, gritos de torcidas de futebol, risos e ritmos de carnaval, festas populares, tráfego engarrafado. Uma pedra quebra um vidro. Outro. Outro mais. O Administrador pragueja.) Que apodreçam! (Segue tocando, impassível.).

FIM