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KAREN MILLA DE ALMEIDA FRANA
ARTE: UM ACONTECIMENTO DA VERDADE EM HEIDEGGER
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Esttica e Filosofia da Arte da
Universidade Federal de Ouro Preto, como requisito
parcial para a obteno do ttulo de Mestre em
Esttica e Filosofia da Arte.
Orientadora: Prof.a Dra. Alice Mara Serra
rea de Concentrao: Esttica e Filosofia da Arte
Ouro Preto
2016
Catalogao: www.sisbin.ufop.br
F814a Frana, Karen Milla de Almeida. Arte [manuscrito]: um acontecimento da verdade em Heidegger / KarenMilla de Almeida Frana. - 2016. 125f.:
Orientador: Prof. Dr. Alice Serra.
Dissertao (Mestrado) - Universidade Federal de Ouro Preto. Instituto deFilosofia, Arte e Cultura. Departamento de Filosofia. Programa de Ps-Graduaoem Esttica e Filosofia da Arte. rea de Concentrao: Filosofia.
1. Arte - Filosofia. 2. Heidegger, Martin, 1889-1976. 3. Verdade e falsidade.I. Serra, Alice. II. Universidade Federal de Ouro Preto. III. Titulo.
CDU: 101.1
Aos meus pais, Jos e Silma,
por sempre acreditarem que seria possvel.
Keite e Karine
razes do meu viver.
AGRADECIMENTOS
profa. Dr
a. Alice Mara Serra, minha gratido pela orientao, pacincia, pelo apoio e
estmulo em todo o trabalho de escrita, e por ser um consistente exemplo como pessoa,
pesquisadora e orientadora.
profa. Dr
a. Luciana da Costa Dias, pela ateno e inestimvel ajuda, pelo exemplo de
docente e por ter gentilmente aceito participar da banca de defesa.
Ao prof. Dr. Eduardo Soares Neves Silva, pela ateno e por ter gentilmente aceito
participar da banca de defesa.
profa. Dr
a. Glria Maria Ferreira Ribeiro, pela amizade e por ter me iniciado na pesquisa
filosfica, por quem, igualmente, tenho profunda admirao.
Ao meu querido Fillipe Soares pelo afeto, pacincia e companheirismo no somente na
realizao deste trabalho, mas, na realizao da minha existncia. Por tornar a minha vida um
lugar sempre melhor.
Aos meus amores Thom, Keitaroe e Nino pelos momentos de alegria e profunda felicidade.
minha famlia pelo apoio incondicional.
Aos meus amigos com os quais sempre pude contar nas horas difceis.
s amigas Ktia Batista, Masa Miranda, Thamara Custdio pela amizade sincera e de tantos
anos.
Aos companheiros de mestrado Wesley Leonel, Sofia Machado e Eliza Albuquerque pelo
nosso convvio, pelos momentos de angstia e risadas partilhadas, por tudo o que fizeram por
mim, em especial, pela amizade.
Aos companheiros do grupo de estudo em Fenomenologia e Desconstruo pelos debates
filosficos que muito contriburam para a escrita desta dissertao.
Aos professores do IFAC que muito contriburam para a minha formao como um todo.
Aos funcionrios do IFAC, em especial, a Claudinia pelo afeto e carinho.
Aos meus amigos Delmo Silva e Raymundo Valrio pelas demonstraes de
companheirismo.
Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES) pelo
indispensvel auxlio financeiro.
Agradeo imensamente a todos vocs pela constante e fundamental presena em minha vida.
RESUMO
O presente trabalho visa esclarecer a relao proposta por Martin Heidegger entre arte e
verdade, tendo por centro as transformaes que a noo de verdade sofreu no decorrer do
pensamento deste filsofo. Esta transformao se deve mudana de abordagem para a
questo do Ser. Assim, apresentamos dentro de uma perspectiva histrico-filosfica o modo
como a noo de verdade foi sendo tratada no escopo deste pensar. Com este propsito,
retomamos a crtica de Heidegger sobre a concepo tradicional de verdade, descrevendo os
passos que o filsofo percorre nas suas obras: Lgica: a pergunta pela verdade (Logik: Die
Frage nach der Wahrheit, 1925/26), e Ser e Tempo (Zeit und sein, 1927). Estas obras
apresentam o movimento de fundar a verdade do enunciado, legada pela tradio metafsica,
em uma verdade mais originria, a alethia. Com isto, descrevemos a relao entre Ser e
verdade, pois a verdade sendo compreendida enquanto alethia traz luz (Holen) o Ser, na
medida em que desvela e revela sentido e significado para o mundo. Este mundo, nas
consideraes de 1927, estava ligado s condies existenciais do ser-a (Dasein). Este
tornou-se o fio condutor da questo proposta em A essncia da liberdade humana: introduo
filosofia (Vom Wesen der menschlichen Freiheit. Einleitung in die Philosophie, 1930) e
Sobre a essncia da verdade (Vom Wesen der Wahrheit, 1930). Nestas obras retomamos a
relao proposta entre verdade e liberdade, a fim de pensar acerca da essncia da verdade. Em
vista disto, a verdade surge desde uma abertura (Erschlossenheit) originria e esta abertura
em A origem da obra de arte (Der Ursprung des Kunstwerkes, 1935/36) chamou-se de arte.
Aqui, investigada, finalmente, a relao entre arte e verdade. A arte se institui enquanto um
jogo que, ao mesmo tempo, descobre e encobre o Ser, este jogo nasce do combate (plemos)
entre duas naturezas distintas, a saber: mundo (Welt) e terra (Erde). Este par revela-se
enquanto essncia da obra de arte, que abrir um mundo. E, para que esta essncia pudesse se
configurar, fez-se necessrio que Heidegger distanciasse a sua compreenso da concepo
esttica. Assim, nos esforamos por explicitar a crtica de Heidegger a algumas estruturas do
discurso esttico. Por fim, tentamos demonstrar como a noo de verdade fora desvirtuada do
movimento de desvelar e velar, ao qual os gregos denominaram de alethia. Em suma,
procurou-se esclarecer algumas noes de verdade, com o intuito de elucidar a formulao de
que a arte um acontecer da verdade.
Palavras-chave: Arte, Verdade, Acontecimento, Heidegger.
ABSTRACT
This paper aims to clarify the relationship proposed by Martin Heidegger between art and
truth, having as center the transformations that the notion of truth has undergone over the
thought of this philosopher. This transformation is due to change of approach to the question
of Being. Thus, we present within a historical-philosophical perspective how the notion of
truth was being treated in the scope of this thinking. To this end, we return to Heidegger's
critique of the traditional conception of truth, describing the steps the philosopher gives in his
works: Logic: the question of truth (Logik: Die Frage nach der Wahrheit, 1925/26) and Being
and Time (Zeit und sein, 1927). These works present the movement to establish the truth of
the statement, bequeathed by the metaphysical tradition in a truth more originating, the
alethia. With this, we describe the relationship between being and truth, because truth being
understood as alethia brings light (Holen) the Being, to the extent that unveiling and veiling
the sense and meaning for the world. This world, on the considerations of 1927, was attached
to the existential conditions of Dasein. This became the conductor of question proposal in The
essence of human freedom: an introduction to Philosophy (Vom Wesen der menschlichen
Freiheit: Einleitung in die Philosophie, 1930) and On the essence of truth (Vom Wesen der
Wahrheit, 1930). In these works we resumed the proposed relationship between truth and
freedom, in order to think about the essence of truth. In view of this, the truth emerges from
an opening (Erschlossenheit) originally, and this opening in The origin of the work of art (Der
Ursprung des Kunstwerkes, 1935/36) was called art. Here it is investigated, finally, the
relationship between art and truth. The art is established as a game that at the same time,
discovers and conceals the being, this game is born of plemos between two distinct natures,
namely: world (Welt) and earth (Erde). This pair is revealed as the essence of the artwork,
which is open up a world. And so that this essence could set it was necessary that Heidegger
distanced his understanding of aesthetic concept. Thus, we strive to make explicit criticism of
Heidegger to some aesthetic discourse structures. Finally, we try to show how the notion of
truth was distorted movement of unveiling and veiling, to which the Greeks termed alethia.
In short, sought to clarify some notions of truth, aiming to elucidate the formulation that art is
a happen of truth.
Keywords: art, truth, happening, Heidegger.
SUMRIO
1 INTRODUO ................................................................................................................................ 10
2 CAPTULO I - DA VERDADE DA PROPOSIO VERDADE DO LOGOS: BUSCANDO
O SENTIDO ORIGINAL PARA A VERDADE .............................................................................. 21
2.I.1 Sobre o conceito de intencionalidade em Brentano .................................................................. 23
2.I.1.1 Do psicologismo a uma fenomenologia transcendental .................................................... 25
2.I.1.2 Pressupostos da fenomenologia husserliana ..................................................................... 28
2.I.2 Sobre a analtica da facticidade ................................................................................................. 32
2.I.2.1 A verdade do logos ............................................................................................................. 35
2.I.3 Existncia e mundanidade ......................................................................................................... 37
2.I.3.1 O discurso ........................................................................................................................... 37
2.I.3.2 A curiosidade ...................................................................................................................... 39
2.I.3.3 A ambiguidade ................................................................................................................... 40
2.I.4 O existir mundano ..................................................................................................................... 41
2.I.4.1 Compreenso e verdade .................................................................................................... 44
2.I.5 Alethia: um retorno necessrio ............................................................................................... 47
3 CAPTULO II - VERDADE E LIBERDADE: SOBRE A ESSNCIA DA VERDADE ........... 51
3.II.1 Transcendncia e verdade ........................................................................................................ 55
3.II.1.1 Cuidado e antecipao ...................................................................................................... 55
3.II.1.2 Transcendncia e ultrapassamento .................................................................................. 57
3.II.2 Transcendncia e liberdade ..................................................................................................... 61
3.II.3 Liberdade e fundamento .......................................................................................................... 63
3.II.4 Liberdade e verdade................................................................................................................. 68
3.II.5 Verdade e essncia................................................................................................................... 72
4 CAPTULO III - SOBRE A ARTE E A VERDADE .................................................................... 76
4.III.1 Sobre a arte ............................................................................................................................. 77
4.III.1.1 A origem: a ideia de gnio e o par matria e forma ........................................................ 77
4.III.1.2 A coisa e o coisal............................................................................................................... 80
4.III.1.3 O apetrecho e a obra ........................................................................................................ 85
4.III.2 A obra e o acontecimento (Ereignis) ...................................................................................... 87
4.III.2.1 Mundo e Terra .................................................................................................................. 90
4.III.2.2 Arte e jogo: o movimento originrio ................................................................................ 93
4.III.2.3 O desvelar e o velar: a alethia ........................................................................................ 95
4.III.3 A arte como o pr-se em obra da verdade .............................................................................. 98
4.III.3.1 Arte e poesia: sobre a essncia ...................................................................................... 101
4.III.3.2 A arte .............................................................................................................................. 104
5 CONSIDERAES FINAIS ........................................................................................................ 106
6 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ......................................................................................... 119
6.1 Bibliografia Primria ................................................................................................................. 119
6.2 Bibliografia de Apoio ................................................................................................................ 120
10
1 INTRODUO
guisa de esclarecimentos, a presente dissertao percorre um caminho para
esclarecer uma das reflexes de Martin Heidegger sobre a relao entre a arte e a verdade.
Trata-se, na verdade, da tentativa de compreenso do percurso de pensamento de Heidegger
ligado formulao da relao entre arte e verdade exposta pelo filsofo, pela primeira vez,
em 1935/36. Certamente podemos afirmar que o encontro de Heidegger com os temas da arte
e da verdade traa novos rumos para o pensamento deste autor. Como proposto por Werle, o
mundo intelectual questionava o engajamento do filsofo alemo nestes temas e se
perguntava: teria Heidegger abandonado a filosofia da existncia e se dedicado [...]
esttica?1.
Ora, a questo que alicera o pensar heideggeriano a pergunta pelo sentido do Ser.
Heidegger, com a publicao da sua obra capital, intitulada Ser e Tempo (Sein und Zeit,
1927), prope como mtodo a anlise da facticidade (Faktizitt) do ser-a (Dasein)2 como
modo de acesso para se pensar tal questo. Desta maneira, nesta obra a pergunta pelo Ser
(Sein) tratada a partir dos traos cotidianos que orientam os modos de ser do ser-a (Dasein).
No entanto, como observa Nunes3, este projeto ficou incompleto. Heidegger no escreveu a
segunda parte da obra, e muito menos a terceira seco que comporia a primeira parte. Ora,
Heidegger percebe que a analtica da existncia oferece condies restritas e limitadas para o
desenvolvimento do seu projeto filosfico, e, em vista disto, o filsofo abandona a via de
1927, e se lana a interpelar o horizonte dos acontecimentos da verdade, da arte, da poesia e
da linguagem.
Heidegger, em 1935/36, especificamente, em A origem da obra de arte4 (Der
Ursprung des Kunstwerkes), anuncia serem as obras de arte um dos lugares privilegiados de
1 Segundo Werle, a virada heideggeriana teria sido assim interpretada de maneira equivocada, sendo tratada
como uma espcie de [] abandono, de fuga ou misticismo (WERLE, apud WU, 2014, p. 129). 2 O a (das Da) o espao que abre e ilumina: o a no um lugar que se contrasta com um l (dort)
(INWOOD, 2002, p. 29). E enquanto este espao, o Dasein essencialmente abertura de possibilidades. 3 NUNES, 1986, p. 247.
4 Este ensaio resultado de trs conferncias proferidas nos anos de 1935/36 na sociedade de cincias da arte de
Freiburg, sendo elas: A coisa e a obra; A obra e a verdade; A verdade e arte. Mas, somente, em 1950 elas seriam
pela primeira vez publicadas. Estas conferncias traduzem o percurso meditativo de Heidegger para fazer uma
ontologia da obra de arte, ou seja, fundamentar a relao proposta entre arte e verdade. Desta maneira, elas
prefiguram a visada da obra de arte de um mbito ntico para o ontolgico. Para isto, Heidegger partir da
noo de obra de arte enquanto coisa, desde o seu carter instrumental at chegar na noo de arte enquanto
acontecimento apropriativo.
11
essencializao da verdade do Ser (Sein). Como se v sugerido, neste ensaio esta essncia
apareceria por meio de cinco modos, quais sejam:
o primeiro a verdade enquanto obra, o segundo o que decorre da ao fundadora
de uma cidade e ainda [o terceiro ] a experincia de proximidade do ente, [o
quarto ] o sacrifcio essencial (wesentliche Opfer) e [o quinto ] a pergunta do
pensamento como questo do ser5.
Desde esta perspectiva, a essencializao d-se (es gibt) por meio ou da Arte, ou do Estado,
ou da Cincia, ou da Religio, ou da Filosofia.
Com esta afirmao chegamos questo chave desta dissertao que, como j fora
mencionado, toma como fio condutor pensar a relao entre arte e verdade. Nas elaboraes
de 1935/36 a arte ser tratada enquanto aquela que abriga em sua essncia o pr-em-obra da
verdade, em suma, a arte seria um acontecimento6 (Ereignis) da verdade. O que temos no
ensaio uma compreenso da arte desde uma visada ontolgica.
A Esttica, que consagrou a essncia da arte a partir do par matria (- hyle) e forma
( morf)7 e do gnio criador, se v estremecida com a originalidade que Heidegger
trata desta questo. A arte, desde os esboos heideggerianos, no mais tida como a
representao da subjetividade do artista, ela nada representa8, mas sim, torna visvel. No
tocante a tal caracterstica, ou seja, de fazer ver, a arte, para Heidegger, mostra o horizonte
que, por ela mesmo, v-se aberto (erffnet).
O aberto (erffnet), ou melhor, o mundo (Welt) um tema constante na filosofia
hedeggeriana, ganhando vrias faces no pensamento deste autor9. No ensaio de 1935/36 o
5 HEIDEGGER, 1999, p. 50.
6 Segundo INWOOD (2002), Gerschehen um termo frequentemente relacionado com Ereignis, sendo tratado
como: acontecimento, incidente, evento (INWOOD, 2002, p. 3). Segundo Heidegger, o termo Gerschehen
advm da mesma raz que Geschichte (histria), e por isso, o termo usado na tentativa de instituir o sentido de
histria enquanto um evento, um acontecimento. Em vista desta compreenso, encontramos em MOOSBURGER
(2014) o termo Gerschehen sendo usado para designar a obra de arte enquanto um acontecimento histrico, e j
Ereignis para designar a obra de arte como um acontecimento, especfico, em que o Ser se determina. Entretanto,
em nosso trabalho utilizamos somente o termo Ereignis por compreend-lo na sua forma mais ampla, a saber:
enquanto um acontecimento que institui o Anfang, comeo, o essencializar do ser, a revelao inicial do ser
que nos permite pela primeira vez identificar os entes(INWOOD, 2002, p. 4). Desde esta perspectiva,
relacionamos Ereignis com a arte, a fim de caracteriz-la enquanto este acontecimento inaugural que desvela o
Ser histrico/historialmente. Com isso, tambm respeitamos a indicao da traduo de A origem da obra de arte
por Maria da Conceio Costa. 7 Como sugere MOOSBURGER (2014), a forma ( morf) se sujeitar ideia (). No captulo III
discutiremos sobre esta submisso. 8 Ver: SAFRANSKI, 2000, p. 351.
9 Segundo INWOOD (2002) a questo do mundo tem vrios matizes em Heidegger: a primeira abordagem se
apoia no mundo familiar, isto , cotidiano que circunda o homem, encontrada em Ser e Tempo (1927). A
segunda trata da discusso sobre o conceito de mundo, sendo elaborada em Sobre a essncia do fundamento
(1929), por fim, a terceira parte de uma comparao entre o homem como formador de mundo em contraposio
s coisas e explicitada em A origem da obra de arte (1935/36).
12
mundo (Welt) tratado em vista da obra de arte10
, e por isto, no deve ser pensado enquanto
um espao fsico, geogrfico que abriga os entes. Como nos esclarece Pasqua, o mundo no
consiste numa reunio de elementos distintos, mas numa totalidade articulada cujos elementos
se imbricam uns nos outros11
. Aqui, o mundo que instalado (Aufstellen) pela obra de arte,
tem como tarefa tornar evidente a identidade histrica de um povo.
No entanto, o instalar (Aufstellen) da arte no significa somente o fundar, o erigir de
um mundo, o mero colocar. Mais do que isso, a instalao de um mundo o instante desde o
qual a obra de arte se projeta como um espao aberto no qual ns e as coisas presentes no
mundo podemos nos revelar com uma nova feio, com uma nova identidade. Essa
instalao (Aufstellen) de mundo (Welt) diz, fundamentalmente, sobre o momento
constitutivo de ser, e assegurada na medida em que instaurada a sua dimenso ontolgica,
a saber: Terra (Erde)12
.
O mundo (Welt), por ser pensado em consonncia com o seu contrrio terra (Erde),
no pode mais ser tratado a partir das condies existenciais relativas ao ser-a (Dasein),
como em 192713
. H uma mudana no trato desta compreenso, e isto deve ser destacado. Em
A origem da obra de arte o mundo se mostra como um horizonte de significncia, desde o
qual o sentido de ser pode se desabrochar e se ocultar. O mbito de ocultamento representa a
sede de terra por esconder o mundo; este repousa sobre terra (Erde). Segundo Pessoa,
por esse encobrimento constitutivo do descobrimento, Heidegger indica que, de
imediato e na maioria das vezes, a presena tem a tendncia de se fixar numa
compreenso habitual dos entes, desviando-se de seu acontecimento existencial.
Fixando-se numa realidade j constituda de si e do mundo, a presena decai da
possibilidade aberta em sua compreenso de ser14
.
Desde esta perspectiva, a abertura de uma compreenso/interpretao possvel porque faz
parte do abrir o fechar. Isto , o mundo que tudo abre e a terra que tudo recolhe permite que
ns compreendamos a ns mesmos e as coisas que nos vem ao encontro.
10
De acordo com Safranski, a noo de arte atrelada de mundo porque o que ela desencadeia fecha-se em
um mundo prprio que permanece transparente para o mundo em geral, mas de modo que o ato formador da
imagem do mundo vivencivel como tal. Assim a obra apresenta ao mesmo tempo a si mesma como fora
doadora de sentido, que munda (weltet) atravs da qual o ente se torna mais ente. Por isso [...] a essncia da arte
o abrir no centro do ente um lugar onde tudo diferente do que de costume (SAFRANSKI, 2000, p. 352). 11
PASQUA, 1993, p. 35. 12
A arte compreendida como este acontecimento traz a problemtica acerca do seu lugar original. Para
Heidegger o espao essencial da mesma no propriamente um museu. A obra pertence ao mundo que por ela se
viu aberto, pois, a obra de arte na sua natureza essencial surge a partir do enraizamento neste mundo alicerado
em terra. 13
o contexto em que, de fato, o Dasein vive como Dasein (HEIDEGGER, 2004c, p. 105). 14
PESSOA, 2007, p. 85.
13
Gadamer chama a ateno para esta nova copertinncia do mundo, e para ele a
importante inteleco aberta pelo ensaio heideggeriano sobre A origem da obra de arte o
fato de a terra ser uma determinao necessria do ser da obra de arte15
, uma vez que a obra
de arte surge do conflito entre essas duas unidades essenciais16
. ao som do combate
(plemos) que a obra de arte revela inicialmente o que Heidegger denomina como a
mundanidade do mundo. Segundo Pasqua,
a mundanidade um conceito ontolgico. Designa a estrutura de um momento
constitutivo do ser-no-mundo. Porm, conhecemos este ltimo como sendo uma
determinao do Dasein (ser-a). A prpria mundanidade , por consequncia, um
Existencial17
.
Em A origem da obra de arte, esse conceito ontolgico ser tratado a partir da anlise
fenomenolgica que Heidegger faz da pintura de um par de botas18
. E Heidegger anuncia, por
meio da descrio fenomenolgica do quadro de Van Gogh, que na abertura do mundanizar
que [...]todas as coisas adquirem a sua demora e a pressa, a sua distncia e proximidade, a
sua amplido e estreiteza19
. O mundo revelado desde a mundanidade a partir do seu carter
circundante. Assim, o que aparece para ns no somente o par de botas, mas todo o mundo
campestre sob uma nova ordem, uma nova feio. E s aqui as botas podem ser o que so, isto
porque a obra assegura na solidez (Verllichkeit) que lhe prpria o ser das coisas. Segundo
Haar, a obra de arte:
[...] apresenta uma coeso, uma unidade orgnica to poderosa, que ela remete mais
a si mesma que a qualquer outro ente em seu mundo. Toda obra digna desse nome
retira-se do mundo, reflete-se em si mesma, e no entanto, mesmo estando voltada
sobre si mesma, como que mostra um mundo, faz ver de um modo novo nosso
universo cotidiano20
.
Compreender nos possvel porque nos oferecida uma compreenso prvia do que
seja o campo, a lida, o colher, o arar e a fatiga que nasce deste trabalho. Esta previdade, de
maneira nenhuma, est relacionada a uma anterioridade no tempo, mas diz respeito ao fato de
o homem/espectador j sempre possuir, como uma modalidade possvel do seu ser, essa ou
aquela compreenso dos entes que lhe vm ao encontro no mundo. Mas no que tange a
compreensibilidade da obra de arte enquanto tal, seria possvel a compreenso de seu
15
GADAMER, 2012, p. 338. 16
O ser-obra da obra consiste no disputar do combate ente mundo e terra (HEIDEGGER, 1999, p. 30). 17
PASQUA, 1993, p. 46. 18
Sobre a problemtica trazida acerca da interpretao heideggeriana ver Captulo III. 19
HEIDEGGER, 1999, p. 35. 20
HAAR, 2000, p. 6.
14
discurso21
? Ora, segundo Fragoso22
, ns compreenderemos o discurso aberto pela obra se, de
fato, estivermos abertos para tal discurso, pois, a pintura agora me fala porque me coloco
nessa postura e me permito que a referida experincia de abertura acontea23
.
Na interpretao que Heidegger faz do par de botas, o que a abertura
(Erschlossenheit) faz aparecer so as coisas desde a sua instrumentalidade, ou melhor, da sua
serventia24
. Com a relao proposta entre coisa (das Ding), instrumento (Zeug) e obra de arte,
o ensaio de 1935/36 se articula para esclarecer a especificidade desta relao. Em A coisa e a
obra o filsofo reconduz as noes de coisa, propostas pela tradio metafsica, para o
conceito de ser-para (um-Zu)25
.
Segundo Heidegger, a coisa (das Ding) fora compreendida em pocas distintas
diversamente: na Antiguidade romana26
, enquanto a coisa mesma (res), na Medieval, como
feixe de impresses, e, por fim, no Modernidade objeto material27
. No entanto, Heidegger
defender que essas imbricaes so reguladas pela serventia (Dienlichkeit). Esta o trao
fundamental para que a coisa ganhe o seu ser, a sua determinao. E, por meio deste trao
que a coisa se revela como isso ou aquilo, o que surge no encontro do homem com as suas
possibilidades de ser. E, nesse encontro tanto o homem, quanto as coisas ganham juntos o seu
ser, a sua determinao. Desta forma, a coisa compreendida por Heidegger desde o seu carter
de serventia, pe por terra as diferentes concepes da tradio.
Desde esta perspectiva, nos possvel dizer que a coisa pensada a partir da sua
serventia se mostra como um produto para28
(Erzeugnis Zeugnis fr), isto : a serventia
evidencia a coisa como um produto fabricado (Anfertigung) para isto ou aquilo, e que nos
esboos elaborados por Heidegger em 1935 entendido como apetrecho. O apetrecho ganha
21
FRAGOSO (2014) estabelece um contraponto afirmao, exposta em 1935/36, de que foi a obra de Van
Gogh que ditou a compreenso que Heidegger apresentou acerca dela. Para Fragoso, a compreensibilidade desta
obra foi possvel porque o prprio Heidegger nos lana a uma abertura hermenutica e fenomenolgica. Mais
detalhes em: FRAGOSO, apud WU, 2014, p. 50-53. 22
Idem. 23
Ibidem, p. 52. 24
Como defende MOOSBURGER (2008), ser a partir da problemtica suscitada acerca do que uma coisa
que [neste] ensaio de Heidegger ir centralizar a obra de arte como uma forma de no-encobrimento
(MOOSBURGER, 2008, p. 35). 25
Como exposto por FIGUEIREDO (2005), embora a anlise heideggeriana seja sobre um par de sapatos,
sapatos que se do a partir da sua serventia, que no caso do exemplo seria para a lida da camponesa com o
campo, a obra de arte ultrapassa este nvel ntico, na medida em que o valor dos mesmos d-se numa esfera
ontolgica. So os sapatos de Van Gogh que nos tornam aptos a, retornando experincia cotidiana, atribuir
algum sentido a ela (FIGUEIREDO, 2005, p. 455). 26
A compreenso de substncia no corresponde a experincia original grega que pensava a coisa como aquilo
que sempre apareceu e de cada vez existe como aquilo que ocorre. 27
HEIDEGGER, 1999, p. 17-19. 28 Ser-para (um-zu) um termo utilizado em Ser e Tempo (1927) no 15: O ser dos entes que vem ao encontro
no mundo circundante, para referir ao carter da manualidade, exprimindo o plano constitudo do conjunto
utensilirio, que se revela no uso e no manuseio.
15
a sua determinao de ser no uso e no manuseio que dele fazemos. Apetrecho e obra so
fabricados pelas mos do homem. Como distingui-los ento?
Certamente, o produzir da obra pelo artista, seja concebido maneira da [...]
est condicionado recepo da obra, compreenso do ser que ela entreabre29
. Os gregos
valiam-se desta mesma noo tanto para dizer acerca da manufatura, quanto para dizer sobre a
arte. Heidegger, ao beber desta fonte, estabelece a relao entre o apetrecho e a obra a partir
daquilo que est no cerne da tcnica, a saber: o tirar o vu, o revelar do ente. O fio que conduz
esta relao se afina na medida em que aquilo que vem frente pelo fabricar do utenslio se
difere daquilo que a obra revela. O que aparece se mostra sob aspectos diferentes. E o artista
aquele que se deixa afetar por aquilo que a arte30
mostra.
A obra de arte pertenceria ao mbito do que Heidegger chama de acontecimento
apropriativo (das Ereignis) e no ao artista, como, em geral, a Esttica sugere31
. Segundo
Vattimo32
, Ereignis advm de sich ereignen, isto , aparecer, ocorrer. Em 1935/36 este
ocorrer est relacionado ao comeo, ou melhor, revelao do ser. A arte diz essencialmente
sobre este aparecimento, esta origem. Nesse sentido, a arte se mantm prxima do prprio
acontecimento da verdade, ganhando o sentido de ser o lugar em que se pe-em-obra a
verdade, na medida em que a arte, em sua essncia, entendida como um lugar de
emergncia de mundo por meio da verdade.
Todo caminho que Heidegger percorre nas prelees de 1935/36 orientado pela tese
principal de que a arte a abertura desde a qual a verdade pode ser manifestada. Porm, essa
verdade no corresponde a uma adequao entre a coisa e o intelecto33
, mas diz respeito a
uma verdade mais original que, para Heidegger, est ligada s condies do desvelar e velar
do ser. Por isto, a obra de arte se v configurada no movimento do par mundo e terra, no
29
NUNES, 1998, p. 401. 30
Como nos esclarece Vernant, no so verdadeiramente artistas, artesos, os autores da obra que produzem.
Eles nada criam. [...] A obra possui mais perfeio do que aquele que a produz; o homem menor que a sua
tarefa (VERNANT, apud NUNES, 1998, p. 401). 31
MOOSBURGER (2014) nos diz que com a entrada da arte no horizonte da esttica, a arte afasta-se de sua
origem, e passa de uma experincia onde o acontecimento da verdade est em obra para uma simples vivncia
de um sujeito apreciador de obras de arte (MOOSBURGER, 2014, p. 55). 32
VATTIMO, 2000, p. 66. 33
Seguindo o curso de 1925/26 a verdade no se encontra nem na proposio, ou ainda, que no adequao,
assim como era definida pela tradio. A verdade h muito foi pensada com a adequao, e esta o modo como
o verdadeiro pode ser aplicado tanto na coisa (res), quanto ao enunciado, isto , verdadeiro. No entanto,
Heidegger defender que para que esta noo tradicional se d, faz-se necessrio, primeiramente, que o ente se
manifeste enquanto tal, desta forma, h um acontecimento que possibilita a verdade enquanto adequao, e a este
acontecer Heidegger denominou de apofntico, que em 1927 fora pensado como alethia.
16
descobrir e no encobrir do Ser. A este movimento foi dado o nome de alethia, isto , de
verdade. A partir disto, Heidegger afirma que a arte [...] um acontecer da verdade34
.
Perante esta formulao, a nossa dissertao se estruturar em torno dos esboos
heideggerianos acerca da noo de verdade, a fim de trazer luz (Holen) o esclarecimento
para a questo-chave do nosso trabalho. Esta se singulariza como relao entre arte e verdade.
Para tanto, o trabalho se dividir em trs captulos, respeitando a ordem cronolgica em que
os conceitos de verdade aparecem no escopo da filosofia de Martin Heidegger. Passemos,
ento, para a estruturao dos captulos.
No primeiro captulo, intitulado Da verdade da proposio verdade do logos:
buscando o sentido original para a verdade, evidenciaremos o movimento heideggeriano de
reconduo da verdade ligada ao enunciado para um sentido mais originrio enquanto
mostrao de ser (logos). Esta mostrao est alicerada na intuio, e, em 1927, ser
pensada a partir do mbito da facticidade (Faktizitt) do ser-a (Da-sein). Para tanto,
assumimos como principais obras estudadas os escritos: Lgica: a pergunta pela verdade
(Logik: Die Frage nach der Wahrheit, 1925/26), e obra Ser e Tempo (Zeit und sein, 1927).
Em Lgica: a pergunta pela verdade, formulada uma crtica compreenso da
noo grega de logos pela tradio. Esta, segundo Heidegger, reconduziu o termo grego para
o enunciado, isto , para a proposio, e em consequncia disto o logos perdeu o seu sentido
como mostrao de Ser. E, enquanto mostrao de ser, a pergunta em 1925/26 ligada
verdade. Com o intuito o de fundar a noo de verdade numa esfera mais original, Heidegger
reala que a mostrao anterior enunciao, sendo esta ltima secundria e no original,
como se acreditava ser.
As elaboraes de 1925/26 desconstroem o vnculo tradicional entre proposio e
verdade, destacando a relao entre contedo proposicional e intuio, defendendo que a
principal funo da verdade intuitiva trazer presena o que por ela, uma vez, intudo.
Com isto, temos que a verdade no enunciado funda-se no estatuto fenomenolgico da relao
entre pensado e apario. Em Husserl, isto foi pensado como relao entre visado e intudo. A
base da noo de verdade neste esboo heideggeriano apresenta um enfoque fenomenolgico
explcito, o que claramente resulta da influncia de Husserl. Desde o horizonte da
fenomenologia, os entes se mostram com seus respectivos horizontes de apario. E o que
deve ser enfatizado no seno o prprio ato de apario do mundo e no o de uma relao a
priori entre conscincia e objeto.
34
HEIDEGGER, 1999, p. 57.
17
O modo de acesso compreenso desse horizonte de mostrao da verdade d-se sob a
forma da facticidade (Faktizitt). Dentro da facticidade esta abertura (Erschlossenheit) ser
pensada enquanto modo do ser-a (Dasein) ser no mundo, e d-se (es gibt) a partir da
estrutura existencial do ser-a (Dasein), ser-descobridor (Entdeckend-Sein). Assim, o ser-a
(Dasein) capaz de abrir-se e desvelar sentido para si e para as coisas com as quais ele lida. O
descobrir possvel desde a compreenso/ interpretao. Esta ltima, nada mais do que a
realizao de uma possibilidade de ser no desempenho de uma ocupao/preocupao a partir
de um comportamento adequado.
Justamente em Ser e tempo enfatizado o interpretar/compreender o espao
originrio de constituio de sentido. Isto porque, destas condies prvias surge a abertura
originria chamada por Heidegger de disposio (Verfgung). Desde esta perspectiva, temos
ento que o ser-descobridor (Entdeckend-Sein) o fundamento, em 1927, para a verdade.
Mas para que acontea a apropriao do comportamento, reclamado que o ente seja
desvelado. Este carter de desvelamento ser pensado enquanto alethia. Esta se v tratada
como dinmica do velar e do desvelar, sendo que o que se faz velado , para Heidegger, o
mais originrio. Este jogo pensado enquanto abertura (Erschlossenheit). Esta no somente
revelao, mas igualmente, decadente e encobridora.
A fim de pensar acerca da especificidade da alethia, abrimos o captulo II, intitulado
de Verdade e liberdade: sobre a essncia da verdade, com a questo do desvelamento do ser
enquanto possibilidade de manifestao do ente. Para isto, enfocamos como obras principais,
Sobre a essncia da verdade (Vom Wesen der Wahrheit, 1930), e A essncia da liberdade
humana: introduo filosofia (Vom Wesen der menschlichen Freiheit. Einleitung in die
Philosophie, 1930), em vista de pensar acerca da essncia da verdade enquanto liberdade,
bem como acerca de sua antiessncia.
Em Sobre a essncia da verdade (Vom Wesen der Wahrheit, 1930) nos apresentada a
seguinte formulao: a abertura que mantm o comportamento, aquilo que torna
intrinsecamente possvel a conformidade, se funda na liberdade. A essncia da verdade a
liberdade35
. Assim, com intuito de fundamentar a relao liberdade-verdade, Heidegger
retoma a verdade da proposio introduzindo que a verificao se cumpre na manifestao do
ente. Para que esse ente se manifeste, nesta elaborao, preciso que se estabelea o que o
filsofo denominar como fundamento ontolgico da liberdade, a saber: o deixar-ser
(Gelassenheit). Esta seria uma estrutura de sentido, na qual o ser-a (Dasein) habita. O tema
35
HEIDEGGER, 1989b, p. 127.
18
da liberdade aparecer atrelado ao ser-a por meio da transcendncia. Esta se revela na
capacidade que o ser-a tem de, sempre e de novo, ultrapassar-se. O horizonte da
transcendncia do ser-a (Dasein) ser tematizado a partir do carter ontolgico que funda a
possibilidade das coisas virem ao nosso encontro no mundo. Este carter ser possvel desde o
que Heidegger denominou de deixar-ser (Gelassenheit), que nada tem de subjetivo, ou seja,
no se trata da vontade ou no vontade do ser-a. Trata-se, sobretudo, de uma condio
necessria para a sua estruturao enquanto projeto.
Em A essncia da liberdade humana: introduo filosofia (Vom Wesen der
menschlichen Freiheit. Einleitung in die Philosophie, 1930), Heidegger fundar tal condio
na espontaneidade do ser-a (Dasein). E a partir do carter espontneo, a liberdade
autonomia do homem frente ao horizonte de sentido que surge. neste horizonte que o ser-a
se encontra projetado. No se trata de uma escolha, mas de uma condio de ser,
especificamente, do a do ser. Por isso, a liberdade ser o abandono do ser-a s suas prprias
condies de possibilidade. entrega ao aberto, e esta entrega tanto pode deixar-ser que o
ente seja (desvelado), quanto no o seja (velado). O que Heidegger acaba por evidenciar que
faz parte da estrutura da verdade, pensada a partir da sua essncia, o jogo de mostrar e se
esconder.
Tal jogo ganha um lugar especial nas elaboraes de 1935. E este espao recebe o
nome de obra de arte. Com isto, caminhamos para o nosso ltimo captulo que nasce com o
ttulo de Sobre a verdade e a arte. Assumimos a tarefa de esclarecer a formulao de que a
arte um acontecimento da verdade, apontando algumas das consequncias que tal
formulao traz para o mbito da esttica e para a tradio metafsica de modo geral. A obra
acontece a partir de um combate originrio, entre mundo (Welt) e terra (Erde). Em vista disto,
esclareceremos acerca da natureza deste par essencial. Por fim, buscaremos demonstrar o
desvirtuamento da noo de alethia. As obras principais deste captulo so A origem da obra
de arte (Der Ursprung des Kunstwerkes, 1935/36), e Ser e verdade (Sein und Wahrheit,
1936/37).
A arte se mostra, em 1935/36, como um dos modos originrios de a verdade acontecer.
Aqui, a arte pensada enquanto este espao devido ao seu carter produtor (potico) de
sentido. Nela, defende Heidegger, est em jogo a manifestao do ser. Esta manifestao foi
pensada como verdade, e advm do combate entre mundo (Welt) e terra (Erde). Como
veremos, este par responsvel pela instituio da arte enquanto obra de arte, j que a partir
do desvelamento de mundo e da ocultao de terra que a obra de arte se origina. A noo de
mundo exposta em contraposio de terra e estes contrrios se complementam. O mundo
19
que tudo abre e a terra que tudo retrai do condies, a partir de um combate, para que a obra
ganhe sua natureza enquanto histrica, ou seja, enquanto o que institui uma poca da histria
do Ser36
. nessa luta de contrrios que se d a condio para determinao dos entes no
universo das artes. O ser gerado na obra de arte como resultado do combate entre mundo e
terra. A obra ento, nada mais do que o resultado desta tenso. Mundo e terra do
corporeidade ao desvelamento e velamento, medida que faz imergir a clareira (Lichtung)
verdade.
A verdade ser tratada como esse espao, esta clareira que ao mesmo tempo mostra,
mas tambm esconde. Ela sinaliza e ao mesmo tempo simboliza o mundo que foi por ela
aberto, mas que tambm esconde. A arte enquanto abertura da mundo no, mais, estaria ligada
s condies do ser-a. Mas igualmente originria, na medida em que a arte ser responsvel
pela revelao de sentido e identidade ao ser-a e ao mundo. Por este copertencimento, a arte
se revela sob o estatuto de um acontecimento, a saber: Ereignis (acontecimento apropriativo),
vendo-se transfigurada como momento de ecloso de Ser. Este acontecimento revelao de
mundo em torno do qual e a partir do qual tudo se recolhe. Em vista disto, a arte ganha seu
aspecto histrico/historial, j que se trata da prpria abertura dentro dos seus aspectos
culturais, sociais, etc, e, igualmente da possibilidade desta abertura vir a ser em sentido
historial.
Aos poucos, a arte perde seu carter em vista no s do mercado da arte e da sua
estetizao, mas tambm, do desvirtuamento pelo qual a noo de verdade passa. Com o
intuito de evidenciar a mudana da essncia da verdade, lanaremos mo da compreenso que
Heidegger traz acerca do primado da ideia sobre a noo de desvelamento. De acordo com o
filsofo, presente na Alegoria da caverna, de Plato, o trao deste primado, j que, de
acordo com Heidegger, naquele espao (o da caverna) a ideia que orienta o olhar do
prisioneiro. L, na caverna, Plato deixa evidente que o Ser s acessvel sob a forma de
ideia, precisamente, a do Bem (agaths). O olhar dos prisioneiros regulado pela retido
(orthtes) a esta ideia, e esta retido (orthtes) responsvel por concordar o olhar com a
ideia da coisa visada.
Nas elaboraes de Heidegger, a verdade como correo impossvel de ser pensada
sem a verdade como desvelamento. Para ele, a alethia o fundamento da verdade platnica,
ou seja, verdade enquanto correo. E a cegueira, a dissimulao e a errncia, renegadas por
Plato, so, para Heidegger, momentos da verdade, verdade essa que Heidegger chamou de
36
Ver CAMPOS (1992) para mais detalhes sobre a compreenso de arte enquanto aquela que institui o Ser em
uma poca.
20
mais originria. Para ns, a possibilidade de ir ao que mais originrio, dar-se- por meio da
arte. Ao final deste caminho o que assim se espera, perante a envergadura da questo, ter
aberto um espao para pensar e questionar acerca da importncia da relao entre arte e
verdade.
21
2 CAPTULO I - DA VERDADE DA PROPOSIO VERDADE DO LOGOS: BUSCANDO O SENTIDO ORIGINAL PARA A VERDADE
a partir da problemtica que se faz presente em Lgica: a pergunta pela verdade
(Logik: Die Frage nach der Wahrheit)37
, obra de 1925-26, que fundamentamos o nosso
primeiro passo no sentido de compreender os matizes que a questo da verdade38
assumiu no
decorrer da filosofia de Martin Heidegger. Este escrito resultado do retorno de Heidegger a
Lotze e a sua noo de validade.
guisa de esclarecimento, atentemos para o fato de que anteriormente Lotze j havia
influenciado Husserl na interpretao que esse ltimo faz da doutrina das ideias e da lgica
platnica. Entretanto, como nos explica Jean-Franois Courtine39
, o conceito de validade em
Husserl ganhar clareza na crtica empreendida ao psicologismo. Nela elaborado o
arcabouo conceitual de uma cincia dos vividos da conscincia a fenomenologia que se
ampara metodologicamente na busca de validade universal40
. Heidegger herdeiro desta
filosofia e nos seus escritos de 1925-26 interroga a identificao proposta pela tradio
metafsica entre juzo/proposio, por um lado, e verdade/ validade, por outro. Mediante isso,
foi necessrio a Heidegger resgatar uma relao mais originria para tais conceitos.
A obra heideggeriana comea com a tentativa de contrapor a lgica tradicional e a
lgica, denominada por Heidegger, de filosofante, a fim de evidenciar que houve um
enfraquecimento do pensamento grego com a diviso feita, posteriormente, entre ,
e , originando respectivamente as disciplinas Lgica (), tica () e Fsica
(). Como consequncia desta diviso, o enquanto lgica foi reconduzido para o
enunciado, isto , para a proposio, perdendo, segundo a crtica heideggeriana, o seu tnus, o
seu sentido vivo como mostrao de ser. Como nos adverte Courtine, fez-se mais do que
preciso que este sentido fosse resgatado, e para tanto, segundo Heidegger,
se queremos conquistar um conceito mais vivo da lgica, isso quer dizer que nos
necessrio interrogar de maneira mais penetrante aquilo de que ela cincia. [...] O
37
Escrito do perodo de Marburg, semestre de inverno de 1925-26. 38
Todas as tradues das citaes em lngua estrangeira, especificamente, dos textos 1925 e 1927, foram feitas
pela autora. 39
COURTINE (1996). 40 Como sabido, o que ligou Husserl filosofia foi o desejo de estabelecer uma cincia rigorosa, o que o conduziu de problemas matemticos aos cursos de Franz Brentano, durante os anos de 1884 a 1886, em Viena.
Isso marca incisivamente uma nova fase no pensamento de Husserl, em que entusiasmado pela Filosofia,
resolveu dedicar-se exclusivamente a ela, no impulso veemente de lhe encontrar uma fundamentao, capaz de
sustentar tambm todas as outras cincias (FRAGATA, 1962, p. 12).
22
tema da lgica a palavra, pela ptica de seu sentido fundamental: fazer/deixar ver o
mundo, o ser-a humano, o ente em geral41
.
Ora, por estar guiado por esta tarefa que Heidegger desloca a pergunta inicial sobre o
estatuto da lgica como cincia para a pergunta acerca da verdade42
. Deste modo,
encontramos na obra de 1925-26 uma anlise sobre o modo como a verdade foi tratada desde
Aristteles. Heidegger incidir sua anlise, especialmente, sobre a Metafsica, a fim de rev-
la.
Observamos ento que a verdade ao longo da tradio foi caracterizada como a
verdade da proposio. Esta noo v-se fundamentada a partir de duas teses, que,
principalmente, nos esclareceriam a questo sobre o lugar da verdade: 1) [...] o lugar da
verdade a proposio; 2) a verdade concordncia do pensamento com o ente43
.
Certamente, aqui a verdade abrigada na proposio e por isso pensada como uma
determinao, uma qualidade da mesma. Esta compreenso da proposio como condio de
possibilidade da verdade enquanto tal vinculou-se a Aristteles.
Segundo essa interpretao, foi este filsofo grego que definiu, pela primeira vez, o
conceito de verdade, concretamente, como concordncia do pensamento com o ente44
. No
entanto, Heidegger, nos seus estudos da referida obra aristotlica, nos alerta sobre o equvoco
de vincular tal concepo de verdade filosofia aristotlica. Sobre isto Heidegger nos diz:
nem Aristteles exps as primeiras teses que citamos, nem ele ensina de fato nem
indiretamente, o que elas afirmam45
. E, devido a isso, Heidegger props uma reviso para
esse conceito de verdade que se v assinalado nas teses citadas inicialmente.
Esclareamos: se a proposio verdadeira significa que a enunciao, ao ser
pronunciada, deve se conformar com o que intudo, isto , com aquilo que se manifesta. A
palavra intuir tem suas razes no latim intueor, significando o olhar para, o voltar-se para, o
contemplar. Em Heidegger, h uma correspondncia entre o interpretar e o intuir, uma vez
que Deuten e Deutung sugerem [uma] intuio ou uma inferncia inspirada [...] em nada
alm de um sinal46
. Assim, ambos os termos so usados de maneira informal. Entretanto, nos
41
COURTINE, 1996, p. 21. 42
Para o nosso autor a lgica compreendida desde o entendimento grego tornou-se a cincia responsvel pela
mostrao do ser no mundo, j que o foi tratado como fora geradora de revelao de ser. Essa fora no
seno pensada por Heidegger como abertura (Erschlossenheit), ou melhor, como um acontecimento da verdade. 43
HEIDEGGER, 2004b, p. 108. 44
Idem. 45
Idem. 46
INWOOD, 2002, p. 98. Esta noo ser desenvolvida em Ser e Tempo (Sein und Zeit, 1927) e pensada como
Zeichen. O sinal assume uma forma privilegiada em relao ao seu correlato ntico: a remisso (Verweisung);
ambos esto ligados instrumentalidade dos objetos. Especialmente, o primeiro assume a condio de mostrar,
23
escritos de 1925-26, o intuir empregado de maneira muito especfica, em que descrito
como uma conduta constituinte da estrutura do psquico47
, da qual a intencionalidade faz
parte. A fim de melhor elucidar a apropriao da relao entre intencionalidade e intuio,
faz-se necessrio um excurso pelas filosofias de Brentano e Husserl, com as quais Heidegger
dialoga.
2.I.1 Sobre o conceito de intencionalidade em Brentano
Como nos esclarece Mario Ariel Gonzlez Porta, a noo de intencionalidade
problematizada no contexto do sculo XIX por Franz Brentano, sendo tratada nos escritos de
1862 de modo mais geral, simplesmente, como afirma Heidegger, como um dirigir-se a
algo48
. No entanto, em 1874, especialmente, em Psicologia do ponto de vista emprico
(Psychologie vom empirischen Standpunkt) que a intencionalidade ser estudada de forma
mais sistmica, nela o intencional
[...] aparece como propriedade de certos objetos e no de atos ou da relao da
conscincia com algo. [...] Intencionalidade um atributo dos objetos da conscincia
e no uma relao da conscincia a uma entidade exterior a ela49
.
Justamente, por tentar estabelecer o estatuto da intencionalidade que Brentano investiga os
modos pelos quais possvel apresentar uma outra relao entre o que se d externa e
internamente conscincia, rompendo a subordinao dos fenmenos psquicos aos
fenmenos fsicos, com o fim ltimo de fundamentar a psicologia enquanto cincia. Isso
de revelar algo. O sinal est ligado ao sentido encoberto. J a remisso pensada como a relao que tecida
como referncia de uma coisa a outra. Segundo Inwood, a noo de sinal um regresso filosofia husserliana.
Nas Investigaes Lgicas (Logische Untersuchungen, 1901) esta noo pensada enquanto signo (Zeichen).
Serra, em Do sentido da lembrana em Edmund Husserl, nos diz que Husserl marca uma distino entre os
signos, a fim de pensar acerca da manifestao do sentido. Ora, no interior do gnero o signo (Zeichen)
diferencia-se entre indicao (Anzeichen) e expresso (Ausdruck); por sua vez, no interior da espcie indicao
(Anzeichen), Husserl distingue entre indicao no sentido de marca ou sinal e indicao em sentido prprio. O
primeiro tipo (marca ou sinal) ocorre, por exemplo, no caso de monumentos que remetem pessoa ou coisa
atravs deles representados, bem como traos de memria que remetem situao rememorada. J a indicao
em sentido prprio se d, para Husserl, quando tais signos, ao se tornarem pensados, atuam como indcio para
outro signo ou representao (SERRA, 2009, p. 4). 47
Especificamente na sua obra Psicologia do ponto de vista emprico. No que diz respeito questo da verdade,
no psicologismo a verdade se v confundida com as prprias operaes mentais de cada indivduo (STEIN,
2006, p. 26). Isto , a verdade se v fundada na realidade da conscincia e da representao. Contra este
psicologismo Husserl prope a teoria que liga a verdade idealidade da conscincia e da representao. 48
HEIDEGGER, 2004b, p. 83. 49
PORTA, 2014, p. 33.
24
ocorre via o recurso tradio metafsica, por um lado, e aos resultados da psicologia
emprica experimental, por outro50
.
Observemos que Brentano no s consagra a Psicologia enquanto cincia, mas,
sobretudo, influencia o nascimento de uma nova corrente, qual seja: a fenomenologia.
Heidegger encontra-se entusiasmado com os avanos que Brentano traz para o pensamento de
sua poca, e nas elaboraes de 1925-26 lana mo da noo de intuio. Nesta, o intuir ser
tratado como [...] ter o prprio ente captando-o em seu estar corporalmente presente51
, ou
seja, o tender da conscincia para a coisa. O que Heidegger deseja mostrar desde essa
perspectiva o movimento de apario do ente, e neste movimento relativo proposio est
em jogo um voltar-se, um referir-se a algo que previamente j se mostrou.
No tocante a tal compreenso, a verdade da proposio nada mais do que expresso
da intuio. Este novo horizonte que se estabelece a partir da relao entre verdade e
conhecimento ser fruto da influncia de Husserl sobre Heidegger, j que a noo de verdade
na fenomenologia husserliana, ao vincular o idealismo e o intuicionismo, afirmou-se, para
Heidegger, como o enunciar a si mesmos dos fenmenos52
. Em Heidegger, a verdade sai da
alada da proposio medida que, primeiramente, o intudo deve ser descoberto. Aos poucos
se desconstri o vnculo tradicional entre proposio e verdade, e se estabelece a partir da
relao entre contedo proposicional e intuio uma nova forma para se pensar a questo da
verdade.
A intuio deve trazer presena o que por ela intudo. Essa compreenso de
verdade intuitiva remonta ao que os gregos53
chamavam de verdade notica. Notico deriva
de (noein) que, por sua vez, representa a capacidade imediata de perceber, de intuir. Por
esse lado, a verdade notica coincide com uma apreenso imediata da realidade ou da verdade
de um objeto, isto , um tipo de cognio semelhante percepo sensvel, e que, por isso,
recebe um carter intuitivo e direto. Direto porque o (nos) capaz de captar esta mesma
realidade. Desta maneira, esta analogia descrita em 1925-26 entre verdade da intuio e
50
SERRA (2010), em Prolegmenos para uma crtica do (in)consciente, descreve que para Brentano, os
fenmenos psquicos so o mesmo que fenmenos conscientes, eles so em si evidentes, sendo que conscincia
sempre conscincia de algo. Este princpio fundamental da teoria da intencionalidade de Brentano remete sua
tese de que todo e qualquer fenmeno psquico ou uma representao, ou pressupe uma representao. [...]
Brentano contesta, com isso, que os fenmenos psquicos pudessem ser determinados seja por estmulos
externos, provenientes do mundo fsico como afirmavam os psicofsicos , seja por estmulos e representaes
inconscientes, como formulara Herbart (SERRA, 2010, p. 145). 51
HEIDEGGER, 2004b, p. 89. 52
Esse anunciar sugere Heidegger em Ser e Tempo (Sein und Zeit, 1927) que seria o acontecimento da verdade
enquanto alethia. 53
Especificamente Parmnides.
25
verdade notica se justifica na medida em que ambas ganham a sua verdade a partir da
relao fenomenolgica entre pensado e apario54
. Vejamos o que Heidegger nos diz:
isto , a proposio verdadeira porque membro da relao que verdade. [...] A
relao de identidade entre o intudo e o intencionado. A validade no sentido de ser
da verdade da proposio, est agora reduzida verdade em si, no sentido de
identidade. Da resulta que a verdade da proposio no sentido de validez um
fenmeno derivado que se fundamenta na verdade da intuio55
.
Muito embora tenhamos retomado Aristteles para pensar esta relao de identidade
entre a coisa e suas determinaes, no tocante a tal relao, Heidegger nos diz que ela que
fundamenta o contedo daquilo que se v anunciado, ou seja, intudo, por isso, verdadeira.
O que fica demonstrado que a verdade da proposio legada pela tradio derivada da
verdade da intuio56
. Certamente, este destaque se justificar porque neste momento
verdade uma determinao do conhecimento. Mas, o conhecimento se determinou
como intuio. [E] nem todo o conhecimento uma intuio, mas a intuio um
autntico conhecimento57
.
Assim, a verdade da proposio, sendo derivada, no poderia ser pensada como o lugar, o
abrigo da verdade. A impostao heideggeriana uma resposta crtica de Husserl ao
psicologismo, como mostraremos a seguir.
2.I.1.1 Do psicologismo a uma fenomenologia transcendental
Foi a partir da necessidade de se estabelecer uma teoria do psiquismo mais metdica e
sistemtica que Brentano ocupou-se de algumas teorias tradicionais, a saber: 1) a aristotlica,
2) a de Stuart Mill, e por fim 3) a herana positivista.
Decerto, influenciado pelos estudos aristotlicos, Brentano ganha preciso conceitual e
a concepo ontolgica necessria para o desenvolvimento do seu projeto de transformar a
psicologia dos fenmenos psquicos em uma cincia. Sob influncia de Mill, Brentano
desenvolve um interesse pela lgica e pela filosofia da linguagem, o que mais tarde
54
Para Husserl, fora pensado como uma relao entre visado e intudo (gemeint e angeschaut). 55
HEIDEGGER, 2004b, p. 96. 56
Aqui a intuio ser pensada como capacidade de captar o intudo, esta captao no se limitaria a nenhum
mbito especfico, ou a um ente que esteja presente corporalmente. Segundo Heidegger, esta compreenso ampla
e fundamental da intuio foi pensada de maneira radical por Husserl. 57
HEIDEGGER, 2004b, p. 97.
26
caracterizar, tambm, o seu sistema. E, por fim, com a leitura de Comte e outros autores
positivistas, Brentano ganha o tnus emprico58
necessrio para a fundao da sua psicologia.
Para Brentano, Comte merecedor dos crditos por ter reformulado a cincia. De modo geral,
sob tais influncias o pensar brentaniano adquire [...] um carter antiespeculativo, uma
preocupao com a clareza e a preciso conceitual, uma ateno experincia, em suma, uma
aspirao cientfica59
.
Para Brentano, somente os fenmenos podem ser objetos do conhecimento. E
mediante isso, ele distinguir dois tipos de fenmenos, quais sejam: os fsicos e os psquicos.
Segundo Andr Dartigues60
, o modo como percebemos os fenmenos que possibilita um
conhecimento sobre os mesmos, bem como a sua classificao. Dentro da classificao
proposta por Brentano os fenmenos fsicos so aqueles estudados pelas cincias naturais, j
os psquicos pela psicologia. Mais tarde, Husserl propor que a afirmao da primazia dos
fenmenos psquicos substitui (ersetzt) o dualismo cartesiano.
Acerca da intencionalidade dos fenmenos psquicos, esclarece-nos Teixeira:
[...] o dar-se de um fenmeno psquico na percepo interna envolve em si um
componente relevante que no encontrvel em fenmenos fsicos que so dados na
percepo externa. Se, por um lado, ver uma cor um fenmeno especificamente
psquico por aparecer como contendo em si uma cor vista, por outro lado a cor um
fenmeno especificamente fsico por se dar justamente como o objeto de um
fenmeno psquico, nomeadamente como um objeto de uma percepo externa61
.
Isso equivale a dizer que os atos psquicos esto corelacionados a um objeto visado, este
ser chamado por Brentano de objeto imanente. O que temos, a partir de Brentano, uma
ligao entre o conceito de intencionalidade e os fenmenos psquicos. preciso notar que o
conceito de intencionalidade assumir traos peculiares, a princpio porque por meio dele
que Brentano estabeleceu a diferena entre fenmenos fsicos e psquicos. Alm disso, a
teoria da intencionalidade ser, tambm, desdobrada como fundamento ontolgico por
Brentano, em princpio como base para a psicologia emprica.
Ora, colocar frente o projeto de refundar a psicologia empiricamente significa
reconduzir a noo de intuio pensada pela tradio para uma base intencional e, em seus
limites, ontolgica. Em outras palavras, a tarefa brentaniana seria a de reelaborar a noo
58
defendido neste artigo de PORTA (2014) que o carter emprico da cincia j estava presente em
Aristteles, no entanto, em Comte que Brentano encontra o impulso essencial deste mtodo empirista, j que
caracterstico da filosofia positivista , a admisso da experincia como critrio para que se d a verdade. 59
Ibidem, p. 15. 60
DARTIGUES (1972). 61
TEIXEIRA, apud PORTA, 2014, p. 134.
27
tradicional, especificamente da Escolstica, segundo a qual [...] a alma toma conhecimento
das coisas recebendo em si prpria exclusivamente a forma (specie) dessas coisas e, [] assim,
que uma coisa enquanto conhecida ou aprendida pela mente toma o modo de ser especfico de
uma coisa concebida ou de ser objeto da conscincia62
. Brentano se apropria dessa
formulao para afirmar a realidade do prprio ato intencional. Isto , ao ato de representar
cabe, sobretudo, atribuir objetividade ao seu correlato, ou seja, estabelecer um estatuto
objetivo para o corelato intencional.
Ao defender a relao intencional para os objetos da conscincia Brentano introduz
um novo elemento nesta noo, medida que a intencionalidade adquire uma dimenso
cognitiva. Todavia como depois acentuaria Husserl em sua crtica ao psicologismo ,
Brentano manteria o objeto do conhecimento em princpio subordinado a leis psicolgicas e,
indiretamente, empricas. O carter de verdade nesta relao, necessariamente, deve depender
das operaes da conscincia, para assim o conhecimento ser validado. Nasce, aqui, ao
mesmo tempo, a admirao de Edmund Husserl pela teoria da intencionalidade, bem como o
interesse por desvalidar o psicologismo. Para isso, [...] preciso reconhecer, contra ele [o
psicologismo], que a conscincia no nenhum vivido psquico, nenhum entrelaamento de
vividos psquicos, nenhuma coisa, nenhum anexo (estado, atividade) em um objeto natural63
.
Ao compreender a conscincia como uma atividade psquica em direo ao objeto,
porm sem aprofundar fenomenologicamente as modalidades de correlao e sem radicalizar
a primazia dos fenmenos psquicos, o psicologismo adquire um carter limitativo. Essa
compreenso reducionista estabelecida a partir de Brentano primeiramente atribuda
ausncia de distino entre ato e contedo do ato, uma distino que, nas Investigaes
Lgicas (Logishe Untersuchungen, 1901), Husserl se ocupar em esclarecer e precisar. Como
ficou demonstrado em Fragata64
, essa definio equivocada se deve porque
[...] confundem-se as leis lgicas com os juzos no sentido de atos de juzo, nos
quais elas possivelmente se manifestam, ou seja, as leis como contedo do juzo
com os prprios juzos65
.
As leis lgicas sero tratadas por Husserl como ideias, j a distino dos atos fatuais,
exemplificada como exemplo da calculadora. Sabemos que as leis da aritmtica no
conseguem explicar o funcionamento da mquina de calcular, j que para Husserl a mquina
62
Ibidem, p. 135. 63
Ibidem, p. 38. 64
FRAGATA, 1962, p. 34. 65
HUSSERL, apud FRAGATA, p. 35.
28
regida pelas leis da mecnica. Semelhantemente, as leis aritmticas que fundamentam o
contedo do ato de calcular no poderiam ser confundidas com os modos usados para
calcular; isto equivale a dizer que as operaes mentais usadas para calcular so distintas das
leis que as regem.
A estrutura lgica destas leis independe das operaes mentais do indivduo, o que no
significa, de acordo com Fragata, que as leis lgicas no se manifestem por meio de atos
psicolgicos, mas os pressupostos psicolgicos ou componentes da afirmao de uma lei no
se podem confundir com os elementos lgicos do seu contedo66
. Isso porque as estruturas
lgicas so vlidas a priori, e por isso no poderiam ter seu fundamento justificativo por
induo67
. Embora tais leis serem conhecidas na experincia da conscincia, fundar sua
origem empiricamente seria um equvoco.
O primeiro mpeto de um direcionamento filosfico renasce68
com Husserl. Este
movimento se desdobra, inicialmente, com o pensamento de que a conscincia descreve,
simplesmente, os fenmenos. Com isso, o que quer a fenomenologia elucidar o como, isto ,
de que maneira a objetividade se constitui a partir da intencionalidade e da intuio. Este a
partir, citado anteriormente, sugere um abandono69
, por parte de Husserl, do pressuposto
brentaniano de que as coisas no so constitudas nos atos intencionais. Em consequncia
disso, Husserl defender que a coisa que se d, em si mesma, conscincia70
, porm no
enquanto coisa emprica (Ding), mas enquanto constituindo-se pela correlao entre
intencionalidade dos atos e correlato intuitivo.
2.I.1.2 Pressupostos da fenomenologia husserliana
Caberia ento fenomenologia descrever e analisar as modalidades daquilo que dado
na conscincia como vivncia. Para tanto, preciso um retorno s coisas mesmas (Zu Sachen
selbst) como Husserl descreveu. Esclarece-nos Depraz que no se trata de um retorno ao ideal
cnico, como h muito se tem pensado, j que comum a essa ltima corrente ater-se coisa
66
Ibidem, p. 38. 67
Ibidem, p. 40. 68
Sabemos que o termo fenomenologia foi usado pela primeira vez por Jean Henri Lambert, entretanto, com
Husserl que ele revigorado. 69
O primeiro pressuposto a que Husserl alude de que todos os fenmenos ou so fsicos ou so psquicos. [...]
Rompendo com esse pressuposto [...] a reduo fenomenolgica pode mostrar como a palavra conscincia perde
todo o sentido psicolgico (MOURA, 2006, p. 44). Esse axioma brentaniano corresponde a uma atitude a que
Husserl denominar de natural (natrliche Eingestellung). Esta consiste, em linhas gerais, em assumir como
existente o mundo comum em que vivemos e como nos oferecido. 70
Com isso a coisa ganha um aspecto objetivo, independente da atividade psicolgica do sujeito. Ver: DEPRAZ
(2011).
29
de modo fragmentado, ou seja, particularizado. Os cnicos limitam-se ao que se d de maneira
contingente, ou melhor, passageira na realidade. Tampouco, ainda segundo a autora, caberia
pensar num regresso aos ideais positivistas [...] de prender-se ao fato entendido como dado
bruto, interditando-se todo o exame de essncia das coisas71
.
Deste modo, este retorno seria primeiramente prpria relao entre a conscincia e o
que se torna objeto para ela e, mais tarde, como nos esclarece Capaldo, seria um regresso
prpria experincia72
pr-reflexiva do mundo da vida73
(Lebenswelt). O regresso relao
intencional conduzir ao primeiro tipo de reduo74
, que reduo dessa experincia prvia
dada em [...] meu vnculo com a realidade que me cerca. Em outros termos, a conscincia do
mundo condio de uma possvel conscincia de si75
.
Para que acontea esse retorno, to necessrio para o desenvolvimento do mtodo
husserliano, preciso ir at a fonte de aparecimento destas coisas, e esta fonte no seno os
prprios fenmenos. Isto , preciso que voltemos o nosso olhar para aquilo que aparece
antes de qualquer pressuposio ou preconceito, aquilo que se faz manifesto. A apreenso dos
fenmenos , sempre que possvel, deve ser feita de maneira direta por meio de uma intuio76
que apreenda a essncia (Wesensschau). Devido a esse tipo de intuio, denominada eidtica,
a fenomenologia husserliana ser pensada como eidtica. Consoante Rochus Sowa, o mtodo
de Husserl se caracteriza como
doctrine de lessence des phnomnes transcendantaux rduits, [...] est une
phnomnologie pure en tant quelle est une phnomnologie eidtique, science a
priori qui se manifeste par des noncs descriptifs non empiriques77
.
J um passo a frente, como Husserl sistematiza em Ideias para uma fenomenologia pura e
para uma filosofia fenomenolgica (Ideen zu einer reinen Phnomenologie und
71
Ibidem, p. 27. 72
Esse termo descrito em CAPALBO (2007) como a evidncia no predicativa. [] a conscincia de estar em
presena das coisas tais como so nelas mesmas (CAPALBO, 2007, p. 8). 73
Trata-se de um conceito que pensado enquanto ndice nico e solo de nossa inscrio prtica, sensvel e
comunitria enquanto sujeitos encarnados. Nasce da necessidade vital de reenraizar as abstraes cientficas em
seu ambiente imediato e prtico (DEPRAZ, 2011, p. 119). 74
Cabe acrescentar que h trs tipos de reduo, a saber: reduo psicolgica, reduo da essncia, e por fim a
epoch transcendental que, esclareceremos, brevemente, no decorrer do trabalho. 75
CAPALBO, 2007, p. 34. 76
Trata-se de um procedimento em que o conhecimento funda-se na intuio, isto , partir da apresentao da
coisa visada desde sua essncia dada de modo evidente conscincia, isto , partir da coisa mesma. Esta se d
na intuio perceptiva e na intuio eidtica, de modo pr-predicativo e se elabora judicativamente, na intuio
categorial. O vigor da fenomenologia husserliana nasce na esfera do indizvel, daquilo que ainda no se viu
reduzido pela compreenso subjetiva e mediana do homem. Ver: MOURA (2006). 77
Doutrina das essncias dos fenmenos transcendentais reduzidos. [...] esta uma fenomenologia pura tanto
que uma fenomenologia eidtica, cincia a priori que manifesta os enunciados no-empricos (SOWA, 2013,
p. 228 - traduo nossa).
30
phnomenologischen Philosophie, 1913), Husserl defende que o acesso essncia tambm
d-se por meio de outros atos noticos, especialmente pela percepo. Esta recebe um
primado frente s outras modalidades noticas, j que por meio dela o objeto apreendido em
maior concretude, no modo da presentificao (Gegenwrtigung). Por hora, a doao ser
pensada a partir dos termos Gebung, Gegebenheit, a fim de significar o processo pelo qual
um objeto ou uma vivncia advm na conscincia78
. Com o direcionamento ao que se doa e
visando trazer manifestao o teor eidtico, a fenomenologia husserliana rompe com o
psicologismo e, aprofundando as modalidades de intuio das essncias79
, ganha o seu rigor e
o seu carter fundador.
Perante isso, Husserl assume ser preciso esclarecer os fundamentos e a prpria
natureza disso que se faz manifesto, a saber: o fenmeno. preciso discriminar, pr entre
parnteses o que nos apresentado como Husserl iria formular na teoria da reduo , para
no cair na armadilha do psicologismo. Mas, como discernir, isto , como exercitar o olhar a
fim de deixar de lado os pr-conceitos?
Primacialmente, o ideal husserliano de filosofia corresponde ao projeto de
esclarecimento da possibilidade da essncia da validade objetiva do conhecimento80
. Essa
objetividade esteve inicialmente ligada distino operada pelo filsofo na obra de 1900 entre
contedo do conhecimento e atos psquicos, ou seja, so descritos os atos da conscincia e os
diversos modos pelos quais temos acesso ao aparecer das coisas que so vividas por ns81
.
Conforme Capalbo, o subjetivo no o psquico [em Husserl], mas sim os mltiplos modos
de doao [...] na experincia de todo o objeto82
.
Nesse sentido, a intuio , portanto, definida pela presena da realidade mesma do
objeto enquanto conhecido, ou seja, pela adequao entre o objeto e o seu conhecimento
meramente pensado83
. Pode-se dizer que, no movimento do conhecimento, a intuio
implica a adequao entre o objeto que aparece e o juzo que dele feito. Surge com isso uma
necessidade de distino entre os atos intuitivos.
78
DEPRAZ, 2011, p. 117. 79
Eidtico o que qualifica e intuio e a variao. [] teoria das essncias, no abstratas e separadas do
sensvel, mas dadas elas mesmas de forma intuitiva a partir de uma intuio sensvel. Pela variao analiso os
traos de um objeto e lhe recolho a essncia, eliminando o contingente e retendo o necessrio (Ibidem, p. 118). 80
Jogando por terra o relativismo advindo com a teoria psicologista. 81
Vimos que compreender como as coisas aparecem para ns foi questo mote do pensamento de Husserl, esta
questo aparece em vrios momentos da sua filosofia, perpassando obras da juventude, bem como da sua
maturidade. 82
CAPALBO, 2007, p. 202. 83
FRAGATA, 1962, p. 55.
31
Certamente, na intuio sensvel ou percepo (Wahrnehmung) o objeto apresenta-se
em pessoa, isto , aparece vivamente (leibhaft) em sua corporeidade84
. As outras modalidades
de intuio que engloba os atos de imaginao (fantasia, lembrana) so derivadas desta.
Nestas modalidades, o objeto no se faz presente de modo direto, e a intuio refere-se ao
objeto de maneira indireta ou medida que o representifica. Quanto natureza do objeto, foi
estabelecida por Husserl a seguinte diviso: 1) sensvel, 2) categorial, 3) universal. Os
sensveis so dados, originalmente, em uma intuio singular, e este tipo de objeto
apreendido em sua singularidade por meio de perfis ou perspectivas em que o apreendemos
em fases ou momentos. J a intuio categorial so as afirmaes, isto , os juzos que
fazemos acerca de tais objetos assim constitudos. E, por fim, na modalidade universal ou
das essncias, trata-se da intuio em que apreendida a essncia ou unidade ideal do
objeto85
.
Essa diviso se entende melhor a partir da diferenciao introduzida por Husserl para
melhor compreender a relao entre contedos vividos e intencionalmente visados, pensados
por Husserl enquanto noesis e noema. Conforme Depraz:
noesis (conhecimento) esta forma subjetiva que anima o contedo afetivo das
vivncias hilticas86
, e as tornando assim acessveis a ns, cognoscveis. Noema
designa o plo objetivo do processo de conhecimento, a saber, o objeto entendido
como unidade de sentido para a conscincia87
.
A noesis recebe o aspecto subjetivo da vivncia, pensada como todos os atos da
conscincia, como por exemplo: o perceber, o lembrar, o imaginar, e se v correlacionada
com o objeto que por ela percebido, lembrado, imaginado. J o noema ser pensado como
os modos de ser do objeto juntamente com os seus predicados, muito embora ele no se
confunda com os objetos apreendidos em cada fase da conscincia, j que unidade de
sentido ideal88
.
Para Husserl, a evidncia a condio, o fundamento da verdade, j que a predicao
s verdadeira quando expressa um vnculo com o correlato ideado, isto , quando podemos
estabelecer a relao entre pensamento e doao objetiva. Em contrapartida, a relao entre
noema e noesis, levaria a precisar as diversas modalidades em que a verdade se constitui.
84
Ibidem, p. 57. 85
Ibidem, p. 62. 86
Encontramos em DEPRAZ (2011) uma ideia geral do que seja a hyl. Este um termo grego que significa
matria em Aristteles, embora em Husserl, a hyl assuma a conotao de [...] vivncia sensvel, afetiva e
imanente, habitando passivamente a minha conscincia de sujeito (DEPRAZ, 2011, p. 118). 87
Ibidem, p. 119. 88
STEFFEN (2009).
32
Verdade pensada desde a sua constituio como movimento de significao intencional
dirigido a uma das modalidades de intuio.
Com essa relao entre verdade e intencionalidade temos a base da fenomenologia
husserliana, que dever ser transcendentalmente fundamentada. Nesse sentido, o mtodo
fenomenolgico proposto por esse filsofo se solidifica em trs modos, a saber: 1) converso
reflexiva que permite colocar entre parnteses as validades existenciais a partir do modo como
nos relacionamos s afeces mundanas, dirigindo nosso olhar para os prprios atos e
correlatos 2) a variao eidtica que desdobra o horizonte de possibilidades do que dado
fenomenologicamente 3) a epoch transcendental que a radicalizao das duas redues
anteriores.
Sob influncia da fenomenologia husserliana, Heidegger teria assimilado que todas as
vivncias do mundo se do na e pela conscincia, deste modo, s temos conscincia de um
objeto a partir da intuio (Intuition, Anschauung). Compreenso esta que, todavia, s seria
possvel, segundo Heidegger, na medida em que este contedo intuitivo j se apresentou
enquanto aquilo que .
2.I.2 Sobre a analtica da facticidade
Igualmente, a fenomenologia ser a base do projeto filosfico de Heidegger.
inegvel a mudana de mtodo entre os textos por ns analisados de 1925-26 e o de 1927.
Delineamos que, no primeiro, Heidegger desenvolve seus argumentos a partir de um enfoque
fenomenolgico ntido, e por outro lado, temos em 1927 o desenvolvimento de uma analtica
da temporalidade.
preciso notar que tanto para Heidegger, quanto para Husserl [...] a fenomenologia
[...] cincia originria, cincia de tendncia radical89
. Segundo Casanova90
, Heidegger se
aproxime da fenomenologia de Husserl, ao entender esta segundo os modos como os entes se
mostram com os seus respectivos horizontes de apario, abrindo mo de uma relao a priori
entre conscincia e objeto, o que permite enfatizar o ato de apario do prprio mundo (Welt).
Tambm nesse sentido, Stefani91
ressalta que Heidegger igualmente visa
deixar que as coisas apaream, que se manifestem como so, sem que se projetem
nelas as prprias categorias do sujeito que conhece. Nesse sentido, Heidegger e
89
PAIVA, 1998, p. 20. 90
CASANOVA (2002). 91
STEFANI (2009).
33
Husserl tm a mesma inteno: regressar s prprias coisas. Porm, Husserl busca
um saber apodctico atravs da reduo eidtica, estabelecendo um campo de ideias
fora do espao e do devir. Heidegger carregou essa herana husserliana na utilizao
do mtodo da previdade: antes de enunciar algo verdadeiro, eu j estou em contato
com a verdade. nesse novo campo aberto pela fenomenologia que Heidegger
vislumbra o meio vital do ser-no-mundo92
.
notvel a admirao de Heidegger pela crtica husserliana ao psicologismo. Embora,
para Heidegger, no fique evidente, dentro do pensamento husserliano, que conscincia
intencional conferido o estatuto mais preliminar de aparecimento do ser. Heidegger defende,
em 1927, especificamente em Ser e Tempo (Sein und Zeit)93
, que o aparecimento dos entes d-
se, preliminarmente, no horizonte ocupacional. Este se far tema da sua hermenutica da
facticidade (Faktizitt). Como assinala Pggeler94
:
Heidegger funda a fenomenologia no entender da vida ftica, na hermenutica da
facticidade. A fenomenologia se converte para ele em fenomenologia
hermenutica. O sentido do ser daquilo que Husserl entendia como Eu
transcendental determinado por Heidegger como existncia ftica, em si mesma
hermenutica, a fenomenologia transcendental husserliana se converte em
fenomenologia hermenutica em Heidegger95
.
Com isso, temos a ciso entre Heidegger e seu mestre, na medida em que Heidegger
prope como fundamento para tal articulao a analtica da existncia96
, com isto, o
transcendental husserliano , justamente, substitudo pela estrutura ser-a (Dasein). Assim, a
questo se desdobra segundo os matizes das estruturas existenciais que, de acordo com
Barreto: [...] originariamente precedem e possibilitam uma teoria do conhecimento97
.
A hermenutica da facticidade ganha relevncia porque vista como modo de
articulao mais primrio do sentido. Desta maneira, o que temos nos escritos de 1927 a
reunio de duas vias estruturais que se copertencem, como defende Casanova98
:
[...] por um lado, a compreenso de ser em geral enquanto elemento constitutivo do
ser-a e, por outro lado, a compreenso fctica do mundo enquanto horizonte
primrio de realizao do ser-a99
.
92
Ibidem, p. 50. 93
proposto por BARRETO (2008) que nesta obra ser (Sein) no outra coisa que tempo (Zeit), [...] na
medida em que tempo designado como pr-nome para verdade do ser (BARRETO, 2008, p. 1). 94
PGGELER, apud PAIVA (1998). 95
Ibidem, p. 20. 96
HEIDEGGER (1977), trata-se de uma analtica da existncia porque, como acrescenta Heidegger, era preciso
tematizar o ser-a a partir da sua existncia. 97
BARRETO, 2012, p. 12. 98
CASANOVA (2002). 99
Ibidem, p. 4.
34
Estas possibilidades sero descritas desde uma analtica existencial. importante notar
que nessa analtica a estrutura subjetiva usada de modo geral pela tradio metafsica100
abandonada, e substituda pela decodificao dos existenciais do ser-a (Dasein)101
.
Heidegger, ao tratar esta estrutura existencial como um lugar privilegiado para a manifestao
de sentido, contrape, segundo Barreto, o entendimento kantiano de que essa manifestao
aconteceria nas [...] condies extradas da determinao categorial dos entes102
.
Justamente, o que temos de herana da tradio, de modo geral, o ente sendo tratado como
ser, no entanto, esboa Heidegger, preciso estabelecer uma diferena ontolgica, a fim de
mostrar que o ente no o ser.
defendido na obra de 1927 um carter antecipativo para o horizonte de sentido do
ser. Partindo do pressuposto de que este carter prvio faz parte, obviamente, da condio de
compreenso do ser-a (Dasein), Heidegger encontra a justificativa necessria tanto para
descontruir essa m compreenso tradicional que tende a entender o ser como o ente, quanto
para por em prtica a sua analtica da existncia. Em Heidegger, ser-a ganha o estatuto de
ente privilegiado, isto porque ele
no apenas o ente que traz consigo a possibilidade de compreenso de algo assim
como o ser, [...] mas tambm vem tona essencialmente como o ente que j sempre
se movimentou no interior de uma compreenso103
.
Essa compreenso se articula muitas das vezes de maneira no terica, habitualmente o modo
como interpretamos o mundo no ocorre por meio de uma exegese, mas a partir do modo
como as coisas se do para ns. Este dar-se se mostra desde o mundo da ocupao em que os
entes vm ao encontro desde a sua instrumentalidade. Por isso, defendido nesta
hermenutica, a saber, da facticidade (Faktizitat), que na cotidianidade o sentido revelado
de maneira mais antecipativa.
Esta a base para o desenvolvimento de qualquer compreenso sobre o Ser104
, e mais
tarde, sobre a verdade. No que diz respeito noo de verdade, exatamente no texto
heideggeriano de 1925-26 que o filsofo defender que, para que haja a verdade, faz-se
necessrio que acontea uma compreenso prvia daquilo que se v intudo. neste texto que
100
Especificamente uma discusso como modo com que a subjetividade foi tratada em Descartes e Kant. 101
Em VEIGA (2012) encontramos uma anlise pormenorizada da analtica existencial, j que a dimenso
cotidiana em que tecido o a do ser revelaria o pr da existncia. 102
BARRETO, 2008, p. 4. 103
CASANOVA, 2002, p. 3. 104
Interesse primeiro da filosofia heideggeriana pensar o sentido desse Ser e no sobre o homem, dessa forma,
equivocado tratar tal filosofia como filosofia da existncia e no como ontolog