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Número 3 do K - Jornal de Crítica

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2 K Jornal de Crítica

Endereço: Rua Dona Ana, 10 A • V. Mariana • São Paulo • CEP 04111-070.Contato: [email protected] texto de K Jornal de Crítica pode ser reproduzido sem a prévia autorização, por escrito, de seus editorese/ou autores. As críticas e artigos assinados são de total responsabilidade de seus autores, não expressandonecessariamente a opinião dos editores.Edição de agosto de 2006 • Tiragem: 2.000 exemplares • Distribuição gratuita.Confira edição anterior em www.weblivros.com.br/k

K é um jornal mensal de crítica literária em suas mais diversas formas: resenhas, comentários, notas, ensaios, entrevistas,debates. Seu amplo corpo editorial guiará os trabalhos a partir de suas múltiplas preferências, descobertas e apostas,sem temer contradições. Como lema, a máxima de Kafka: “Tudo o que não é literatura me aborrece”.EDITORES: Carlos Felipe Moisés, Eduardo Sterzi, Fabio Weintraub, Franklin Valverde, Heitor Ferraz, Manuel daCosta Pinto, Reynaldo Damazio, Ricardo Lísias, Ricardo Rizzo, Tarso de MeloEDITORES DE ARTE: Regina Kashihara, Ricardo BotelhoJORNALISTA RESPONSÁVEL: Franklin Valverde • MTB 14.342

Calar a esf inge

EDUARDO STERZI

1. Nos Cadernos de João (os quais,reunindo material anteriormente publica-do em plaquetes de restrita circulação,ganharam sua forma definitiva em 1957),Aníbal Machado oferece-nos uma pode-rosa alegoria daquela cessação da tragé-dia que foi um dos motivos centrais domodernismo brasileiro: “Há outros meiosde fazer calar a Esfinge, além da respostacerta mas contraproducente que lhe deuÉdipo. Um deles consistiria em adormecê-la pelo canto. Mas à primeira pausa oudissonância, o monstro acordaria e sería-mos devorados; e não poderíamos susten-tar toda vida a continuidade melódica des-se canto. O melhor recurso seria o do pa-lhaço e do maldizente: mentir, intrigar,contar-lhe coisinhas e misérias de nossavida quotidiana, fazê-la enfim interessar-se pelas nossas insignificâncias. Quando,esquecida de sua função mitológica, elacomeçar a fazer perguntas menos dignas,é porque já estará corrompida. Corrom-pida e vencida. Sem mais se lembrar dapergunta a que Édipo respondera tão di-reitinho e que assim mesmo o desgraçara— a ele e a toda a inditosa família”.

Basicamente, aí se propõem as soluçõesda lírica (“canto”) e da comédia (“palha-ço”, “maldizente”). A solução da lírica,que é, antes de mais, a da música, revela-se inviável, porque sua eficiência depen-deria de uma “continuidade” que lhe éimpossível, aquela de uma melodia infinita,

K antecipa um excerto do ensaio “A prova dos nove: alguma poesiamoderna e a tarefa da alegria”, publicado no livro Travessias do pós-trágico: os dilemas de uma leitura do Brasil. O livro – organizado porEttore Finazzi-Agrò, Roberto Vecchi e Maria Betânia Amoroso – estásendo lançado pela editora Unimarco.

de um eterno acalanto. Qualquer “pausa”ou “dissonância” — precisamente aqueleselementos, tão importantes quanto a pa-lavra, de que a lírica, uma vez moderna,não pode se dissociar — despertaria omonstro. O êxito da solução cômica seriamais provável, visto que opera pela pró-pria descontinuidade característica da vidamoderna. Ademais, seu objetivo inicial,por meio do qual se pretende alcançar oescopo último de anulação da tragédia,não é entorpecer o monstro, o que com-portaria um esquecimento da questão fun-damental cuja resposta é a enunciação denossa própria contra-senha perante o enig-ma do mundo (só ao nos dizermos homenspassamos a sê-los, só aos nos refundarmosno lógos nos tornamos propriamente hu-manos: eis um dos préstimos supremos doconhecimento trágico), mas fazer o mons-tro “interessar-se pelas nossas insignificân-cias”, que melhor se mostram precisamen-te na exposição cômica. Pouco a pouco, agrave questão com que a Esfinge nos in-terpelava é não propriamente substituídapor “perguntas menos dignas”, mas nes-tas transformada. A resposta continuaráa mesma, porém com implicações bemmenos severas: porque não supõe mais ohomem como herói, como heros, mas ohomem como qualquer, como communis.É assim que levaremos a Esfinge a esque-cer-se de sua “função mitológica”, subtra-indo-a desse regime de significado abso-

luto, que é o da tragédia. Trata-se pro-priamente de se dissolver a mitologia noespaço da história (de acordo com aquelameta traçada por Walter Benjamin paraseu trabalho de historiador em Das Pas-sagen-Werk), fazendo o mito, aqui, des-cer ao nível do homem, corrompendo-o,vencendo-o. A possibilidade de o novoÉdipo responder mais uma vez “o ho-mem”, sem que esta resposta redunde nasua desgraça, é também aquela de o ho-mem encaminhar-se, verdadeiramentesem destino, literalmente desafortunado,à sua mais íntima graça: termo ambíguo,que deve nos interessar, aqui, na sua irre-dutível pluralidade de sentidos — o ho-mem rumando para seu próprio nome,àquele nome que lhe é dado por si mesmo(e não mais pelos deuses), gratuita e gra-ciosamente, isto é, alegremente.

2. Em outro fragmento do mesmo li-vro, no qual trata do fenômeno da semprecrescente profusão de escritos memoria-lístas, Aníbal Machado chega à conclusãode que, quase invariavelmente desinteres-santes para o leitor (com memorialistascada vez mais jovens, muitas vezes se temuma espécie de prematuro “balanço final”,uma “evocação de uma vida... que nãohouve”), estes escritos terminam por jus-tificar-se pela “pintura indireta” da vidasocial, ou, ainda, “quando o dado biográ-fico se dissolve em poesia”. O biograma— a inscrição pública da subjetividade eda individualidade – ocupa posição aná-loga à do mito no fragmento no anterior,e como aquele deve ser dissolvido: “Aqui,já não é mais memória, é superação do realpela evocação lírica ou pelo humor. O quefizemos passa a ser contado como aquiloque desejávamos fazer; o que nos aconte-ceu, como o que sonhávamos aconteces-se”. Dissolvida, pois, a individualidade,aqui também pelos procedimentos da líri-ca ou da comédia, o homem se coloca soba espécie do desejo e do sonho, que são,desde sempre, protesto. O conceito mes-mo de “memória” – da memória comoescrita, mas também como faculdade psí-quica – deve ser revisto: “No frágil troncoda vida vivida enxertamos a vida sonha-da. Uma recuperação imaginária do tempo

perdido. Muito mais visão criadora e devalor universal do que simples restitui-ção de um passado vulgar — forma frus-trada de matar a saudade. Esse recorrercontínuo ao passado constitui, ao cabo,um estratagema para dessolidarizar-nosdo presente e compor-nos uma fisionomiaque não nos deixe esquecidos no futuro.As ‘memórias’ estão surgindo. Narcoti-za-se o presente com o passado. Que ci-clo histórico, pessoal ou coletivo, estaráse fechando?”.

O presente toma, aqui, a forma de um“intervalo para respirar”. Mas, enquantose retoma o fôlego, não se tem, como emrelação à parousía cristã e metacristã (veja-se “The Second Coming”, de Yeats), ne-nhuma segurança quanto à natureza doque virá ou não virá: “Hora neutra entrea tutela suspensa do sol anterior e a pro-messa-ameaça dos tempos a seguir. Aban-dono do turbilhão adotivo, intervalo decalmaria, à espera da matilha desencadea-da...”. É neste intervalo de neutralidade —neste instante em que o homem conseguelibertar-se do “grande desespero” trágico-mítico e passa a lidar apenas com o “in-fradesespero” (“mais que impaciência,menos que angústia”) que delimita sua nuahumanidade — que se deve mobilizar aqui-lo que Aníbal designa “os nossos recursosde cá”: “Tudo o que, vago e indecifrado,ainda seja deste mundo... todas as forças,presenças e relações que constituem o nossoeu quotidiano desligado de suas raízestranscendentes, e à margem do divino per-dido”. Entre estes pobres recursos, Aní-bal destaca: “a chegada de uma carta, aingestão de um alcalóide, um telefonema,o acender de uma lâmpada, a aparição deuma mulher”.

Do reconhecimento de que estes são ospobres recursos que nos cabem, emerge afigura do “homem em preparativos”, aque-le que se aparelha para o mundo por vir,inseguro quanto às possibilidades de con-cretização de seus desejos e sonhos. “Andosempre em preparativos”, diz este perso-nagem que é a figuração mesma do homocommunis. “Acumulo material, encomen-do peças. Junto o necessário. Tomo todasas providências. E trato também da orna-mentação.” A nota de humor deste desta-

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que à “ornamentação” não perturba a “se-riedade” e a “paixão” com que o homemse prepara “para qualquer coisa que aindanão aconteceu”. O certo é que tanta pre-paração por fim talvez se revele inútil, comosugere a conclusão do fragmento intitula-do precisamente “Homem em preparati-vos”: “Não. Nunca serei inaugurado”. Emoutro fragmento, Aníbal escreve: “Consu-mimos o melhor tempo da vida a apalpar oterreno, reunir dados, instalar sondas, ar-mar os aparelhos, ajuntar material. Tudopara começarmos a viver. Quando se apro-xima o dia da prova — que dia? que prova?— nossas armas estão caducas, o celeiroapodrecido. Vem-nos então a revolta con-tra as extorsões do tempo; depois, a des-confiança de que fomos logrados. E nãonos conformamos em reconhecer que nalonga prorrogação com que disfarçamos onosso medo de viver estava a própria reali-zação de nossa vida. Viver é o mesmo quepreparar-se para viver”.

3. Aníbal diz num aforismo: “As coi-sas ardentemente esperadas chegam-nosfrias”. Dissolver o mito e a memória pre-para o caminho para a dissolução da idéiade futuro e do perpétuo adiamento queela comporta. O tempo da alegria é, ina-diavelmente, o presente. O homem só co-nhece realmente, como lugar e tempo, oaqui e o agora: “Não te embales muito namiragem do longe e do depois, a fim denão perderes o que arde invisível no pertoe sopra em silêncio no agora”.

Murilo Mendes, no seu “Murilogramaa Aníbal Machado”, detecta na obra e vidade seu amigo (e primo) o descerramentode um “novo espaço / cósmico / coopera-tivo” no qual “até mesmo as máquinasamam”. E se pergunta: “Que língua se es-creverá / Se falará neste outro mundo?”.

No verso de Murilo, “outro mundo” éuma expressão ambígua: nomeia a um sótempo o opaco lugar agora ocupado porum Aníbal morto (o poema é de 1964) eaquele “novo espaço” por ele descortina-do. Quanto à língua, porém, ali escrita efalada, não parece haver dúvidas, apesarda interrogação retórica: é a língua em quese encontram homens e máquinas-aman-tes, não a língua dos anjos, mas a língua,ainda, dos “nossos recursos de cá”. Mes-mo na morte, esta língua — a língua deum “novo espaço” e de uma nova poesia— ainda é vida.

E d u a r d o S t e r z i é d o u t o r e m Te o r i a e H i s t ó r i aL i t e r á r i a p e l a U N I C A M P. P u b l i c o u e m 2 0 0 1 s e up r i m e i r o l i v r o d e p o e m a s , P ro s a . O r g a n i z o u ,r e c e n t e m e n te , o v o l u m e D o c é u d o f u t u r o : c i n c oensaios sobre Augusto de Campos (2006).

PÁDUA FERNANDES

No segundo semestre de 2005, um li-vro de poesia inteiramente voltado à inva-são do Iraque pelos EUA — uma questãoda esfera pública internacional. Na primeirametade de 2006, outro livro: um longopoema sobre o amor e o exílio, evocandoOvídio. O leitor se surpreenderá com asdiferenças entre ambos, mas a diversidadee a feracidade são conhecidas marcas doescritor português Alberto Pimenta.

O primeiro, Marthiya de Abdel Hamidsegundo Alberto Pimenta (Lisboa: &etc)continua a temática geopolítica desse po-eta, que já escreveu sobre a ONU, prisio-neiros de guerra, o mercado financeiromundializado... Desta vez, porém, o au-tor cria um alter ego iraquiano que refletesobre “as botas” dos ianques que pisotei-am seu país.

Trata-se de uma poesia antiimperialis-ta, tanto no conteúdo quanto na forma:Pimenta dá a voz ao outro também ao re-fletir e transformar a herança da poesialírica árabe (penso especialmente nos di-vãs), e espelha a dualidade entre Oriente eOcidente, o passado babilônico e o pre-sente muçulmano, a paz e a guerra, como

ALBERTO PIMENTAdiz no último poema (ou última parte, seconsiderarmos o livro como uma só poe-sia): “Não sei/ Se tornarei a ver/ As cara-vanas/ Que de madrugada/ Atravessam odeserto/ Em frente/ Às ruínas de Palmira//Ou/As azenhas milenares/ De Hama/ Achiar de esforço/ Quando elevam/ A águado oponte/ Até ao aqueduto/ Que encimaa cidade// Ou/ A paisagem/ Aos pés domonte Kasyun/ Coberta de estrelas/ Quecaíram/ E se fizeram/ Pura luz esparsa:/ Acidade de Damasco// […] Já ouvi dentrode mim/ Um trovão/ Fender-me a alma.//Para a unir de novo/ Não sei o que tereide enfrentar.”

Lançado na Mesquita de Lisboa, o li-vro foi boicotado por livrarias em Portu-gal, país que não enviou soldados, mas queteve poetas (como Vasco Graça Moura) queapoiaram abertamente a invasão do Iraque.

O segundo livro, Imitação de Ovídio(Lisboa: &etc), aparentemente habitariaem mundo diverso do Marthiya. Mas não:ambos marcam-se pelo engajamento em (econtra) um tempo hostil. Neste, o elocu-tor dirige-se a sua amada e está exilado deseu lugar, de seu tempo, e até mesmo daspalavras. Na epígrafe escolhida, da oitavaelegia do livro IV de Tristia de Ovídio, selê que o destino foi propício no passado,mas agora traz infortúnios (Pimenta po-deria ter escolhido, devido a sua posiçãomarginal no sistema literário português,outro trecho dessa obra: ingenio sic fugaparta meo, isto é, o talento foi a causa deseu exílio).

A hostilidade do tempo atual reflete-se na capa, baseada em colagem do autor,Nela, se vêem dois corpos que naufragamentre rasuras e restos de texto de lingüísti-ca — a rasura chega a obscurecer o logo-tipo da editora.

Os tempos atuais naufragam, presos a“ideias que/ ao nascer/ já não são nascen-tes/ e / vão todas em direção ao poente”(p. 9). Entre elas, as de Heidegger, o “po-bre demente” (p. 15 e 21). Os homens es-tão perdidos “carregando/ males/ e mails”(p. 22), enquanto a pobreza aumenta: “por

exemplo e/ a propósito,/ há mais/ miséria/que há vinte anos// e então/ já havia/ estedito:/ há/ mais miséria/ que/ há vinte anos”(p. 44-45). O que dizer a respeito, se “ohomem/ não é o senhor da verdade/ e areligião/ está de volta” (p. 46), pelo que“não há/ mais nada/ que pensar” (p. 46).Entre hoje e amanhã, abre-se um espaço“que não é o da eternidade” (p. 24).

A obra, um poema dividido em quatropartes (I, II, III e a sua soma, VI), buscaoutras idéias, contra a decadência dessemundo que começa a apodrecer: “elas es-patifam-se/ contra os ossos do crânio/ etrazem à boca/ sangue tirado ao coração:// não é assim, amor?” (p. 12). Como as“palavras/ são dispositivos/ apenas sani-tários” (p. 52), o livro busca escrever como corpo: “os lanhos, todos eles,/ abrem-se/ com a língua” (p. 34).

Todavia, Pimenta não se ilude com aspolíticas do corpo, cujo potencial eman-cipatório parecem ter¡se esgotado nas dé-cadas de 1960 e 1970. O elocutor dirige-se à amada, com a ponta do dedo rodeia-lhe “a esfera” de saliva (p. 62), mas nãosabe o que, a quem, e se ainda poderia di-zer. O livro termina com a interrogação:“e tu?/ tu sabes?” (p. 63).

O desencanto, pois, marca esta obra(outro paralelo com Ovidio, além do amore do exílio): “poesia/ propriamente dita/não há meio de acontecer,/ é como matarum pássaro ontem/ com uma pedra/ atira-da hoje” (p. 59), sem tirar-lhe, contudo, ainquietação. É preciso responder à pergun-ta: “poderemos ainda/ colaborar/ para quea morte/ não seja/ a melhor forma de li-bertação?” (p. 61).

Pádua Fernandes é autor de O palco e o mundo eorganizador de A encomenda do silêncio, antologia dapoesia de Alberto Pimenta.

e as políticas emancipatórias

Pimenta não se ilude com as políticas do corpo

Uma poesia antiimperialista, no conteúdo e na forma

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sociam a natureza da pesquisa de lingua-gem à natureza do desejo sexual: “O bran-co apaga tudo — as cores deste gozo/Eo próprio gozo/neste poço/cala/o somda água”.

Para Edilberto Coutinho (O Globo,19/fev./1984), “Max Martins se revela, nesteCaminho de Marahu, além de poeta, umpesquisador e crítico, na linguagem deDécio Pignatari e dos irmãos Campos, (...)com seus parâmetros mais remotos (den-tro da modernidade) em Mallarmé — porexemplo — ou, mais recentemente e deforma mais ostensiva, em Ezra Pound”.

Um livro-folder, ou um livro-pôster,assim era 60/35 em sua primeira edição,em 1986. Os dezoito poemas que o com-põem parecem confirmar as imagens utili-zadas em seus livros anteriores. Como dizo verso de Edmond Jabès, que serve demote para o autor, “tu és aquele que es-creve e que é escrito”. Nestes poemas per-cebem-se decisões quase sólidas na cons-trução dos versos (“Escrevo duro/escrevoescuro”). Característica que constitui suadiferença quando comparados a Marahu,onde, ao mesmo tempo que retorna a te-

mas e imagens anteriores, parececair em um pessimismo ab-

soluto da linguagem (“Po-nho na tua boca as cin-zas/da minha insígnia”).Marahu encerra, crono-logicamente, a lista doslivros reunidos em Nãopara consolar (1992).1

Em 1983, Haroldo deCampos, por carta, acusao recebimento dos livrosde Max Martins por oca-

sião de sua indica-ção para uma

bolsa da fundação Guggenheim, e afir-ma ter feito “uma leitura — dada a po-sição do crítico como leitor — não o pri-meiro, o único ou o último de uma obra,mas aquele movido por um especial in-teresse interpretativo”.

Max Martins pertence à geração de 40,dos autores paraenses que liam WilliamCarlos Williams, Wallace Stevens e PaulValéry, entre outros. Estes poetas perten-ciam à chamada “Academia dos Novos”,grupo do qual faziam parte defensoresdo Parnasianismo, e que só viriam a seinteressar pelas inovações trazidas pelosmodernistas brasileiros após a morte deMário de Andrade, em 1945.

Sendo assim, teriam passado peloModernismo nacional sem ao menos seaperceberem do fato, como menciona oprofessor Benedito Nunes, também umdos poetas da chamada “Academia dosNovos”, à qual Max pertencia:

Nada sabíamos da passagem de Mário deAndrade por Belém em 1927 e muito me-nos da existência de seus correspondentes

paraenses, mais interessados nos estudosde folclore do vajante paulista do que napoesia “futurista” da Paulicéia desvairada.

Embora já tivesse dezoito anos de idade, oModernismo ainda não ingressara emnossas antologias escolares. Vivíamos,durante a Segunda Guerra Mundial, uma

época de isolamento provinciano; sendoo transporte aéreo precário e raro, Be-lém ligava-se às metrópoles do sul quase

que só pela navegação costeira dos Ita.Isso tudo justifica, mas não explica nos-so retardamento literário de jovens ver-

sejadores acadêmicos.2

A lacuna observada a partir da fala deBenedito Nunes, no que diz respeito à re-lação dos escritores paraenses com o pro-jeto modernista da semana de 22 e com oeixo Rio-São Paulo, pode ser justificada apartir da influência direta recebida doModernismo europeu, que os fez construirmais tarde a sua própria revolução.

O pouco conhecimento dos fatoresexternos, leia-se contextuais, gerou umaprodução em que ignorar os acontecimen-tos fora das fronteiras estritamente regio-nais talvez tenha sido mais que uma sim-ples opção. Para os “jovens versejadores”de Belém do Pará, era muito mais simples,e mesmo mais próximo, ler os franceses,ingleses e alemães do que os paulistas.

Até meados do século XX, os mora-dores de Belém viviam em condições bas-tante singulares — uma cidade repleta delivrarias, bares e cafés franceses. Catálo-gos bibliográficos inteiros de editoras fran-

NÃO PARA CONSOLARDENYSE FIGUEIREDO CANTUÁRIA

Max Martins nasceu em Belém do Paráem junho de 1926. Exerceu cargos públi-cos até o momento de sua aposentadoria, àqual o Inamps incorporou outra: a de es-critor, obtida há alguns anos e transforma-da, de imediato, no primeiro caso de escri-tor que se aposenta e recebe benefícios porter exercido, por mais de trinta anos, a poe-sia. Hoje é diretor de um núcleo de cursosna área de linguagem verbal, aberto a estu-dantes de nível médio, universitários e in-teressados na literatura de um modo geral,conhecido como Casa da Linguagem.

Lançou seu primeiro livro, O estranho,em 1952 (edição do autor). Desta ediçãomuitos exemplares se perderam, pois oresultado da impressão, muito precáriaàquela época, não tendo agradado ao poe-ta, deveria ter sido jogada fora, a seu pe-dido. Porém o garoto encarregado da ta-refa, penalizado, deixou alguns exempla-res nas soleiras dos casarões por onde pas-sara a caminho do incinerador público,contrariando assim a ordem expressa dopoeta. Graças a esse fato, O estranho co-nheceu uma repercussão a posteriori, porocasião das doações de acervo das gran-des famílias de Belém a bibliotecas de uni-versidades e instituições.

O estranho refletia a percepção, mes-mo que tardia, do modernismo, principal-mente da musicalidade de Cecília Meire-les, e do coloquialismo estilizado de Car-los Drummond de Andrade em Algumapoesia, bem como do livro O homem esua hora, de Mário Faustino. (“O pão dossábados/E as aventuras de Mário e Juve-nal/Já não te comoverão/Na tristíssimavolta ao lar paterno”)

Em Anti-retrato (1960), nota-se a evo-lução para o trato com temas que se tor-nariam recorrentes em seus poemas — evo-lução essa impulsionada, de resto, pelaaproximação entre as formas de constru-ção da prosa e da poesia postulada porFaustino em seus estudos sobre poética.(“Já é tudo pedra/os dias, os desenganos./Rios secaram neste rosto, casca/de barro,areia causticante”)

Este projeto de escrita vai se aperfei-çoar uma década depois em H’era (1971)

com, entre outros fatos, a declaração ex-pressa em seus poemas da preferência porautores nacionais como Drummond, Jor-ge de Lima e Guimarães Rosa, e por es-trangeiros como Dylan Thomas, WilliamAlden e Henry Miller. (“Palavras famin-tas pedem bis, e o X/de Hamlet e HenryMiller me visava;/velhas rezavam, se reve-zavam/em cantos, panos, palinódias”)

Em O risco subscrito (1976), os poe-mas de Max Martins ganham um tom maisuniversalizante, já anunciado no livro an-terior. Aqui, a preocupação com a lingua-gem se torna o próprio assunto do poe-ma; o ritmo bem marcado delimita agorauma nova relação formal com o espaçoem branco da página. O que BeneditoNunes, na apresentação do poeta, chamade “ensaio de espacialismo”, principal-mente em “O ovo filosófico”:

“o olho do ovo ........ o ovo do olho”.

Em Caminho de Marahu(1983), a opção pelos te-mas eróticos transfor-ma-se em um objetode pesquisa e críticapara o poeta. A in-fluência de João Ca-bral e dos movimen-tos de vanguarda,como a poesia con-creta e o poema-pro-cesso, redunda em umcerto estranhamentoda linguagem dostextos, que as-

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cesas (Hachette, Garnier etc.) abasteciama cidade de livros de Racine, Molière, bemcomo de John Milton, Jonathan Swift ouGoethe, devidamente vertidos para o fran-cês. Nesse contexto, produziam-se modosde pensar que em nada se afinavam comas revoluções propostas pelo grupo mo-dernista de 22.

As condições geográficas e financeirasextremamente favoráveis criaram um con-texto facilitador para a absorção direta doModernismo europeu pelos poetas paraen-ses, fazendo com que eles criassem sua pró-pria Revolução Modernista. O encontromesmo com o restante da produção nacio-nal dar-se-á apenas após 1945, com a leitu-ra de, principalmente, Faustino, Drummond,Mário e Oswald de Andrade.

Quanto à familiaridade dos poetas pa-raenses com a poesia em língua inglesa, érevelador o comentário de Elizabeth Bishopquando diz: “a coisa mais engraçada quedescobri é que em Belém, veja só, a poesiaamericana é muito mais conhecida e esti-mada do que aqui no Rio — em parte por-que é bem mais perto dos Estados Unidos,e em parte porque um poeta chamadoRobert Pack (creio eu) viveu lá, não sei porquê, por dois ou três anos. Na verdade,achei os três ou quatro poetas que conheciem Belém na semana que passei lá muitomais simpáticos e menos ressentidos, ou láo que seja, do que os daqui — e menos aber-tamente antiamericanos”3.

Muito provavelmente, o Robert Packde quem fala Bishop, em referência vaga,trata-se, na verdade, do poeta Robert Sto-ck, citado por Benedito Nunes no prefá-cio de Não para consolar. Stock viveu emBelém entre 1952 e 1962, e foi o respon-sável pela introdução, via traduçõesmanuscritas “livres”, de poetas como:Hopkins, Eliot, Pound, Marianne Moore,Dylan Thomas, a própria Bishop, WilliamCarlos Williams, Cummings, WallaceStevens, assim como clássicos do porte deShakespeare, Coleridge, Keats, Blake eEmily Dickinson.

1 MARTINS, Max. Não para consolar: poe-mas reunidos 1952-1992. Belém, CEJUP,1992. 351p.

2 NUNES, Benedito. Max Martins, Mestre-Aprendiz. In: MARTINS, Max. Não paraconsolar. Belém, CEJUP, 1992. p. 17-8.

3 BISHOP, Elizabeth. Uma arte: as cartas deElizabeth Bishop.Seleção e organização deRobert Giroux. São Paulo: Companhia das

Letras.1995. p. 719.

D e n ys e F i g u e i r e d o C a n t u á r i a é m e s t r e e mComunicação em S emiótica pela PUC-SP, c om t esesobre a poesia de Max Mar tins e Age de Car valho.

TARSO DE MELO

Entre as comemorações do 80.ºaniversário do poeta Max Martins, des-tacam-se a exposição de páginas de seusdiários (colagens, desenhos, escritos) namelhor galeria de sua cidade, a Sol In-formática, e a tradução integral do livroPara ter onde ir para o alemão (Der OhrtWohin — trad. Burkhard Sieber, Berlim:Kato Kunst & Verlag, 2006).

Para homenageá-lo, reapresentoaqui, com pequenas alterações, um tex-to escrito sob o impacto de seus Poe-mas reunidos: 1952-2001 (Belém: EdU-FPA, 2001), de que tomei conhecimen-to em 2003. Desde então, eles estão naminha cabeceira.

Há um Max Martins que conhece-mos: aquele parceiro do poeta Age deCarvalho em A fala entre parêntesis, li-vro escrito à maneira de renga e incluí-do no volume ROR, em que Age reuniusua obra até então na prestigiosa cole-ção Claro Enigma, editada pela Duas

MAX MARTINS: 80 ANOSCidades. A parceria, semdúvida, resultou num beloconjunto de poemas, masque é apenas a ponta de umiceberg constituído por maisde uma dezena de livros. Ehá um outro Max Martins,aquele que faz falta às dispen-sáveis listas de maiores poetasdaqui e dali, de hoje e de on-tem. Sim, repito, dispensáveis,mas, já que insistem em existir,delas deveria constar o nome des-te que é um poeta magistral.

Uma ressalva, aqui, merece serfeita: o fato de Max Martins, na sualonga vida na poesia, não ter procu-rado (até onde sei) os caminhos edi-toriais do Rio ou São Paulo, fez com

que seus livros todos passassem estranhosà poesia produzida no Brasil de 1952 (anode estréia do poeta) até hoje. Mesmo comreedições de suas “obras completas” comoa de 1992, em Não para consolar, e estaque há pouco a Editora da UniversidadeFederal do Pará colocou nas estantes: Poe-mas reunidos: 1952-2001.

O livro agora reúne toda a produçãode Max Martins (inclusive o citado A falaentre parêntesis, com Age de Carvalho),mais um livro novo, Colmando a lacuna,com sua produção até 2001, tudo issoapresentado por um longo ensaio de nin-guém menos que Benedito Nunes, amigopessoal de Max desde a adolescência,quando o crítico também se arriscava napoesia numa turma que incluía MárioFaustino e outros. O texto de BeneditoNunes, uma análise, sim, mas com muitode depoimento, revela em detalhes o pro-gresso dessa turma que, como é fácil per-ceber, era bastante promissora.

Em meio a eles, havia Max Martins.Max não se destacou como Benedito Nu-nes, um dos mais importantes professo-res e críticos entre nós, nem como MárioFaustino, que numa passagem relâmpa-go — poeta, tradutor, crítico e incansáveldivulgador de poesia na sua mítica “Poe-sia-Experiência” — fez o suficiente paragravar seu nome em qualquer repertório

sério da literatura moderna no Brasil.Max fez um percurso muito diferente: de1962 até 1990 foi inspetor administrati-vo e bibliotecário da Fundação Nacionalde Saúde, sempre em Belém, onde atual-mente divide sua vida “entre o amor pelafamília e o trabalho na Casa da Lingua-gem com a amiga (também escritora) Ma-ria Lúcia Medeiros, os intermináveis sa-raus na casa do amigo Benedito Nunes,um ou outro copo de vinho com os ami-gos no Bar do Parque, sua cabana na praiado Marahu, na ilha do Mosqueiro, as idasao velho continente para visitar o tam-bém amigo e eterno parceiro de poesia,Age de Carvalho”, como afirma a prof.Ângela Maroja à orelha do livro.

Mas é possível perceber nos seus Poe-mas reunidos que Max nunca duvidou dapoesia e manteve sempre com ela uma re-lação muito viva, não deixando que seurelativo isolamento (ainda que esta pala-vra pareça muito pesada) implicasse umapoesia também isolada. Entretanto, comosua presença é muito silenciosa (de modoinjusto, mas aparentemente voluntário),

Conhecimento do mundo“Para ele, cultivar a poesia significaestudá-la, e estudá-la, cultivar o conhe-cimento do mundo através dela. Essecultivo estudioso tornou-se, menoscomo erudição livresca do que comoum ato de atenção à vida, o capítuloquase único da biografia do poeta, naqual as relações de convivência e ami-zade têm catalisado momentos de cria-ção. Nessa criação descontinuísta, osciclos se entrosam, cada qual conser-vando algo daquele que o antecede eesboçando o seguinte”.

Benedito Nunes

“Max Martins, mestre-aprendiz”, dez/

1991 (a íntegra do excelente ensaio pode

ser lida no seguinte endereço:

http://www.culturapara.art.br/maxmartins/

opiniao_01.htm)

COLA

GEM

DE

MAX

MAR

TINS

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deixemos este espaço para que a poesia deMax Martins se apresente: proponho, as-sim, uma espécie de “resenha-antologia”cruzando sua obra desde 1952, com OEstranho, quando o poeta chega (em li-vro) ao mundo, que pode ser bem repre-sentado por “Do poema da infância, I”:

“Que cabelos prende o laço róseo/ flu-tuando entre nuvens?/ (A menina do la-çarote é loura, morena ou rica?)/ Em quemala estará a Pierrot cor de jerimum?/Velocípede – revolução – Felisberto deCarvalho –/ Angelita dos quadris more-nos e peitos em embrião/ Não me vejomenino sem Marieta”.

Vê-se, aí, um poeta cuja influência deCarlos Drummond de Andrade e MuriloMendes é clara — o ponto de vista do poe-ta diante da vida, na verdade, parecia fun-dir as duas influências ao lançar o enfa-do de Drummond (por exemplo, o de“Cidadezinha qualquer”) na típica verti-gem do olhar que Murilo empreendia aseus objetos. Aliás, Max, no poema aci-ma, lembra muito de perto o Murilo vo-yeur de diversos poemas em que focalizauma certa descoberta da libido na distanteJuiz de Fora.

Em 1960, quase dez após a estréia, opoeta lança seu segundo livro, Anti-retra-to, e volta a situar no horizonte de seus tex-tos a idéia de estranhamento: o interlo-cutor a que o poema se dirige pode servisto, sem muita ginástica, como a pró-pria poesia, com cuja dor e perigos o ain-da jovem poeta Max Martins (com pou-co mais de trinta anos) se “corrige” e ali-menta um “uso particular, estranho”:

“Alheio — contudo tão próximo./ Emti busco a dor que me corrige/ na tarde/em um a um dos teus perigos/ que reduzoem flor para meu uso/ particular, estra-nho./ O teu grotesco/ na impossibilidadede me deter/ já me consola./ Ajusto asbotas que me levam ímpar/ calejado,/ degravata e triste” (“O estranho”).

Este, quase, já era Max Martins: “Alheio— contudo tão próximo”, mas ele chega-ria mesmo à voz dura de sua poesia apenasno seu livro de 1971, H’era, com poemasde uma densidade imagética e sonora semmuito parentesco na poesia produzida porsua geração (claro, situá-lo em geração éum tanto impróprio, mas é importanteter em mente que Max Martins é apenasum pouco mais novo que João Cabral deMelo Neto e da mesma faixa etária que,entre outros menos famosos, Haroldo deCampos, Décio Pignatari, Augusto de Cam-pos, José Paulo Paes e Ferreira Gullar),como este:

“Amor: a fera/ no deserto ruminan-do/ esta lava dentro do peito/ dentro da

pedra/ dentro do ventre// amor lavra/ naplanura rastejando/ sulcos de febre-areia/planta no teu sexo/ o cacto que mastiga/o falo que carregas/ sobre os ombros/como um santo/ um juramento/ esta ser-pente” (“Amor: a fera”).

O poema, para Max Martins, já nes-ta época ganha a feição que o distingue,possivelmente, até nos livros mais recen-tes: o poema, para ele, é este espaço ten-so — o amor é fera, lava, febre, cacto,serpente. O curso de cada poema seu étenso; a evolução de sua obra é tensa. Daíter razão Benedito Nunes ao afirmar que“a poesia de Max,longe de ter tidoum curso evoluti-vo tranqüilo, de-senvolveu-se aossobressaltos, des-cont inuamente ,em surtos de cria-ção que formamsucessivos ciclos”,sem, contudo, dei-xar de notar, comigual razão, que“Não obstante ast rans formaçõespor que tem passa-do, um fundo deoriginalidade dis-tintiva interliga asdiferentes fasesdessa poesia, atra-vessando suas cri-ses. A descontinui-dade da evoluçãoacoberta a conti-nuidade de certasmatrizes ou cons-tantes, perdurá-veis, com modifi-cações, em seus di-versos ciclos”.

Mesmo quan-do Max Martins,em seus livros mais recentes, adota umreferencial Zen, em poemas perpassadospor koans originalíssimos, não se perdeeste conteúdo tenso, ou seja, o motor desua evolução continuaria a ser a crise per-manente que o poeta se impõe diante dalinguagem e de seus temas. No livro de1980, O risco subscrito, decerto após al-guma crise daquelas a que o crítico se re-fere, escreve:

“Se escrevo: o corvo/ (neste galhoseco) estorvo/ o céu de sua verdade/ azul-primeira/ E o vôo/ travo/ negro no bran-co/ Turvo-o// Pois que escrevendo o cor-/(voraz hieróglifo) – isto/ não é um corvo/ou um cavalo// mas um nome/ descarna-

do: o homem/ que assino em cruz/ e empalha habito/ escrito// Ou o túmulo/ deum desconhecido (oculto) osso/ tíbio”(“Glifo”).

É o mesmo Max, como sempre andan-do sobre o fio tênue que o leva de umlivro a outro, sendo ladeado por aquelacontinuidade e por aquela descontinuida-de apontadas por Benedito Nunes em seutexto esclarecedor, republicado agoracomo prefácio à edição dos Poemas reu-nidos, mas escrito em 1991 e originalmen-te publicado no volume que reuniu a po-esia de Max no início dos 1990, Não para

consolar. Assim opoeta chega, tam-bém, a Caminho deMaharu, em 1983,quando emplacaesta definição:

“Teu nome é nãoem cio e som farpa-dos/ Cilício escrito,escrita ardendo, den-tro/ se revendo/ fera/do silêncio úmido selambendo, lábil/ la-biríntima/ lâmina seferindo/ se punindo”(“(poesia)”).

Tomado por esse“Cilício escrito”,Max Martins, àsvésperas de comple-tar sessenta anos deidade e trinta e cin-co de poesia, em1985, lança os poe-mas de 60/35:

“Sem tom nemsom/ – não tonsura-da/ Oculta de si pró-pria/ e de seu nome/cega// no seu ovo aletra–/ aranha so-nha/ sabe:// Guardao silêncio/ antes do

incêndio” (“Negro e negro”).Max Martins espalha por seus poe-

mas diversas dicas para a interpretaçãode seu modus operandi. No poema aci-ma, por exemplo, ao dizer que “a letra-aranha”, num texto marcadamente me-talingüístico, “Guarda o silêncio / antesdo incêndio”, é bastante claro com rela-ção à poética que construiu até então eque ainda desenvolve.

Aproximações entre o fazer artísticoe a “técnica” das aranhas já foram bas-tante exploradas (numa canção de Cae-tano Veloso, num poema de Paulo Le-minski), mas Max não se contenta e, nasua analogia, a aranha não é o poeta, mas

a própria letra: não é o poeta que tece opoema, é o poema que tece a si mesmo,num jogo de ocultações entre silêncio eincêndio. Marahu Poemas, de 1991, re-vela outro jogo:

“Entre ferrugens pontas/ de cigarroslata/ vazia/ de Coca-Cola restos/ cocô degato lírios” (“Detrás de tudo (para JoãoMendes)”).

O poeta, ao revelar a flor entre detri-tos, revela muitas outras coisas de suapostura diante da vida, do mundo, do ho-mem, da poesia. Num outro arco, porexemplo, neste gesto pode ser lida algu-ma esperança com relação a soluções paraaquele “rancor da idade na carga do poe-ma” a que ele se refere em outro texto.Assim, a marca que ele descerra nos seuspoemas mais recentes, os de Colmando alacuna, de 2001, é a de um poeta que,com os precisos e reiterados golpes de sualinguagem, consegue encontrar algumarespiração entre os maciços destroços denossa condição atual, como neste poemaem que Max arrola os “bens” de sua ca-bana-exílio:

“2 formigas – operárias/ ápteras/ ounovatas, não/ de fogo mas/ noturnas, do-ces/ 1 grilo/ (depois aprisionado/ pela ara-nha, morto/ ao amanhecer)/ O canto dumgalo/ e outro galo/ A saracura. A tarde/ 2gaviões molhados/ encolhidos no pau daárvore/ pensos// Garças/ sobre as pedras/negras da praia/ Os urubus/ o boto mor-to/ um cão medroso, sapos/ sapos/ sapos/1 goteira/ sapos/ chuva/ o sol/ vindo domato/ às 7/ da manhã/ A noite/ a escuri-dão o vento as velas/ de Lao-tsé/ Tho-reau/ e o meu cajado de bambu rachado/o chão/ folhas úmidas” (“Marahu: pri-meira relação”).

Sua poética, Max Martins já a defini-ra num “Soneto” de seu primeiro livro:“os universos / Que transfiguro em flor epedrarias” – daí em diante o que fez foiafiar as ferramentas, seja inicialmentecom o diálogo formador com Mário Faus-tino, Benedito Nunes e outros, seja nasúltimas décadas em seu constante entre-tecer de falas com Age de Carvalho. De-pois de muito trabalho transfigurador, talconjunto de “flor e pedrarias” certamen-te faz de Max Martins, ao completar oi-tenta anos, um poeta muito maior do queseu silêncio/incêndio permite crer. Suacontribuição, se devidamente valorizada,colocaria Max no centro da discussãosobre poesia entre nós: mas ele não pre-cisa disso, nem merece que perturbemosseu sossego de mestre.

Tarso de Melo é poeta, aut or de Planos de fuga eoutros poemas (Cosac Naify).

Carta de Age de Carvalhopara Max Martins

Grande notícia: consegui, gravadonum cassete de hora e meia os poe-mas do Celan lidos pelo próprio! jáestou providenciando uma cópia parati e aos amigos da Estrela. LeituraMagistral.Ouvi Celan recitando seus poemaspela primeira vez, voz profunda, do-lorosa, bem articulada, o R, o CH ale-mão nítidos. Pude adivinhar o homemtriste e angustiado atrás daquela voz.Pensei em sua morte. Emocionei-me.Anotei com cuidado os títulos dospoemas enquanto ele ia lendo. Ouçoo ruído do virar de página, às vezes arespiração numa pausa de um poemapara outro. Aqui ele está presente, res-pira, respira, nunca abandona estelado. Longa gravação, uma hora emeia ouvindo-o. Lê dentro do poema,pois só ele existe, o real aqui. Sintoisso enquanto escuto-o. E o estalo ab-surdo do toca-fitas ao final da grava-ção. De volta ao lugar-nenhum.

Beijos nossosAge.

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Música possível, Fabiano Calixto. São Paulo: CosacNaify, 2006, 96 p.

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Em Música possível, terceiro livro-solo de Fabiano Calixto, recém-publi-cado na coleção de poesia “Ás de colete”(São Paulo: Cosac Naify; Rio de Janei-ro: Viveiros de Castro Editora, 2006),reencontramos organizadas de modo di-verso algumas das linhas de força queatravessavam a obra pregressa do au-tor: abertura às novas configurações daexperiência urbana (flagrada muitasvezes em seus aspectos mais violentos edesintegradores); observação do coti-diano vazada por epifanias, economiaconstrutiva frequëntemente apoiada emtécnicas de corte e elipse e interpolação;reiteradas alusões e diálogos intertex-tuais. Em relação aos livros anteriores,cumpriria então destacar a entrada dealguns elementos aparentemente novose um rearranjo talvez imprevisto de tra-ços antigos.

O volume atual se divide em quatroseções desiguais: “Música possível” — amais extensa, que dá título ao livro — ;“Ônix” — poemas que evocam Pernam-buco, estado onde o autor nasceu, e asraízes afro-brasileiras de Calixto (v.“Canção para minha Avó Preta” e poe-mas sobre Oxumaré, Iemanjá e Exu) — ;Flauta azul — poemas familiares, diálo-gos com amigos — e “Poesias reunidas”— seção metalingüistica, de diálogoscom outros poetas (Drummond, MuriloMendes, Haroldo de Campos, Leminski,Iessiênin...).

Conquanto seja grande a tentação denos dedicarmos aos elementos novos —como a incorporação de temas ligadosao imaginário negro, reunidos sob a égi-de da pedra escura, ônix, com poderesde talismã — optamos por nos concen-trar na seção inicial pelo que ela dá apensar sobre os valores mais gerais queorientam essa poética e sobre a visão doautor quanto ao papel da arte no des-concerto do mundo.

Revelador nesse sentido é o título“Música possível” que, tomado assimfora de contexto, poderia sugerir um re-baixamento do desejo pelas condições darealidade. Seguindo essa linha de racio-cínio, a música possível indicaria o par-co quinhão de consonância em lugares ecircunstâncias em que “o áspero é maisfreqüente/ que a música [...]” (p. 64),para usar um verso do próprio Fabiano.No entanto, a própria epígrafe por eleescolhida para abrir o volume apontaquem sabe para uma relação mais con-traditória entre música e aspereza: “Amúsica se embala no possível, no finitoredondo, em que se crispa/ uma agoniamoderna.”. Os versos são de Drum-

mond, saídos do poema “Canto órfico”,de Fazendeiro do ar (1954), invocam ocitaredo trácio numa atitude nostálgica,mas lúcida, atenta ao fato de que, nestemundo em que foi desfeita a unidadeáurea entre palavra, canto e dança, aaspereza também pode ser música, a cris-pação pode embalar.

Mas voltemos aos versos de Calixto.Eles atestam de modo inequívoco a per-cepção de múltiplas asperezas da expe-riência urbana numa megalópole injus-ta como São Paulo, neste começo do sé-culo XXI. Falam, por exemplo, de tele-fones públicos destruídos, cães envene-nados, ratos defecando, figos apodrecen-do, paisagens abortadas, mendigos e cri-anças em situação de risco etc. Ocorrecontudo que, em muitos deles, a músicapossível é aquela que vem para desfazer(mesmo que por pouco tempo) a tensãocriada pela descrição desses objetos e si-tuações. São as árvores do estacionamen-to que desviam a atenção do poeta do“distúrbio dos espaços” (p. 9), a luz dosol “acariciando flores no vitral” ouacendendo a tristeza nos olhos da ama-da cujo debruçar-se na janela deflagrauma “geometria particular” (p. 19) con-tra o caos do mundo; a “flor de chuva”sob a “corola de nuvens” redimindo “avida minúscula” (p.22). Em “Uma bibli-oteca: leituras” (p. 36), repete-se o mes-mo movimento: o poeta observa a rata-zana comendo restos de milho no esgo-to em frente, recebe notícias da guerraem Bagdá, mas se esquiva da tensão pelosocorro de um “lençol de brisa” e restosde sonho.

Elementos do lirismo mais tradicio-nal são mobilizados contra as precarie-dades do real. É como se a percepção dainstabilidade presente nos bairros po-bres, nos meninos à deriva e em tudo oque apodrece fosse obliterada por péta-las, coisas que germinam, chuvas quecaem, luzes e brisas, ou pelas referênci-as musicais, plásticas e literárias. Buco-lismo regressivo? Defesa estetizante? Acidade é desmedida, mas os tijolos dafaculdade são de um “rubro velasquia-no” e a professora palestra entre “semen-tes de canafístula” (“Poema n.o 5, p. 27);o bairro é pobre e violento, mas “De-bussy trilhassonoriza o silêncio” (“Pre-lúdio”, p. 30).

Não se trata de julgar o grau de afe-tação ou o caráter postiço dessas refe-rências, mas sim de perceber a função

lenitiva que elas desempenham. A arteaqui é refúgio, até mesmo quando o poe-ta se sacrifica, pagando um preço altopela poesia (“Quanto”, p. 20), já que aauto-imolação lhe confere alguma gran-deza em meio à miséria reinante.

Desejo de refúgio que não impede,antes complementa, poemas de feiçãomais participante (com direito à epígra-fe retirada das canções de protesto dosanos 1970), como o fraquíssimo “Poe-ma 39”, fecho da primeira seção, em queo autor reúne série de marginalizados(gays, judeus, palestinos, chicanos, ne-gros, mulheres...) sob um mesmo gritoabstrato de insurreição, “coágulo demel” no mar morto.

A orientação por tais valores tam-bém pode ser flagrada no plano da for-malização, em que a aspereza na pon-tuação e a sintaxe muitas vezes quebra-diça, parentética, são compensadas peloveludo aliterativo de versos como “apoça podre elucida o dia/ sacia a sededos pássaros/ onde um lilás se fixa/ porausência” (p.41).

Claro que isso não impede a presen-ça de poemas bem realizados, como “Omorcego” e “Oratório”, em que os ex-pedientes líricos não estão a serviço doabafamento de tensões e conflitos, comoprocuramos sugerir aqui. De qualquerforma, para quem vinha de um livromais conseqüente e afinado, como erao caso de Fábrica, lançado há seis anos,o saldo obtido neste Música possíveldeixa a desejar.

Fabio Weintraub é poeta e editor, aut or de Novoendereço (Nankin).

Poeta pernambucano Fabiano Calixto

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Anti-heróis americanosRE YNALDO DAMA ZIO

Num dos muitos ensaios interessan-tes do livro Aventuras no marxismo(Companhia das Letras, 2001), MarshallBerman responde a uma crítica de PerryAnderson a Tudo que é sólido desman-cha no ar afirmando que os intelectuais— especial e contraditoriamente os deesquerda, segundo ele — correm o riscode “perder o contato com a substância eo fluxo da vida cotidiana”. Para ilustrarseu argumento, Berman relata, entreoutros episódios, a visita constante àsruas de sua infância no Bronx, agora de-cadentes e semidesertas. O autor se co-move ao perceber que mesmo ali, numbairro quase em ruínas por causa de umareforma urbana desastrosa, a vida aindapalpita entre inquilinos heróicos, famí-lias negras e latinas. Sua conclusão, naesteira de uma reflexão que remonta aBaudelaire e Benjamin, é a de que preci-samos “ler os sinais nas ruas”.

Pensei nesse belo conceito de “fluxoda vida cotidiana” ao ler as histórias emquadrinhos de Robert Crumb e HarveyPekar, publicadas entre 1976 e 1983 narevista American Splendor e reunidasem recente edição brasileira. Os dois seconheceram em Cleveland, quando

Crumb já conquistara alguma famacomo artista e passava por um momen-to difícil na carreira, enquanto Pekaramargava o anonimato colecionando etrocando discos. O interesse por jazz eblues antigos os aproximou. Entre visi-tas a sebos, trocas de LPs, cervejas e ca-minhadas, Harvey e Crumb se tornaramamigos e parceiros. Crumb passou a ilus-trar as crônicas de Harvey, que por suavez vendeu a coleção de discos para ban-car o primeiro gibi.

É justamente da substância da vidacotidiana, do rumor e do odor das ruas,que falam essas histórias. A começar davida dos próprios autores, que protago-nizam inúmeros pequenos-grandes mo-mentos do livro. Encontros e diálogosabsolutamente realistas, sem narcisismoou grandiloqüência. Aliás, os narrado-res têm o mesmo peso na narrativa queo de pessoas comuns, pobres, anônimos,burocratas, velhos, doentes, perdidos efodidos em geral.

Os textos de Pekar nascem da falacrua e corrente das pessoas nas ruas, comsotaque e erros de gramática, sonhos epirações, gírias e manias, numa diversi-dade poética ao mesmo tempo bruta e

comovedora. Pekar não faztipo para representar aspessoas comuns, tampoucocria tipos a partir de umavisão edulcorada de páriase oprimidos, mas simples-mente anota suas falas,capta-lhes o contorno e de-sentranha a ficção do dia-a-dia sem heroísmo e semaura, sem mediações false-adoras, ou estetização damiséria. Nem parece ficção. A força dascrônicas como retrato de acontecimen-tos aparentemente tão desinteressantesestá justamente no seu choque de realis-mo, ou em seu estatuto de verdade. Ain-da que seja uma realidade mesquinha ebanal, onde tudo é rebaixamento, anti-clímax, monótono e vulgar.

Um dos momentos, digamos, “filo-sóficos” do livro acontece quando o nar-rador discorre sobre a arte de escolher amelhor fila no supermercado, levandoem conta fatores como a eficiência docaixa, o número e o tipo de pessoas nasua frente, bem como as coisas que es-tão levando no carrinho. Num outro epi-sódio, o rabugento, porém espirituoso,funcionário público Sr. Boats declama noelevador lotado os versos de Elinor Wyle:“Evite a manada fétida,/ do rebanho fujacom asco...// Viva como a ave estóica,/ aáguia do penhasco”.

A vida flui, as coisas acontecem aosabor de forças que nos escapam, rumampara lugar nenhum e assim é nos traçospesados, mas enxutos, de Crumb. As pes-soas têm olheiras, rugas, e furos apare-cem nas camisetas em seus desenhos. Ve-lhos e negros pobres são representadoscom dignidade, pelo simples fato de exis-tirem e de exprimirem o que pensam, domodo como pensam, sem nenhum gran-de objetivo ou moral definitiva a atin-gir. Nada poderia ser mais antagônicoao mito bélico e imperialista de naçãomais poderosa do planeta. Na verdade,a vida é uma grande merda em Cleve-land. As personagens são pobres e feias,como no mundo real. Não há nada deespecial em ser americano e ninguém naspáginas de Crumb e Pekar demonstra fa-zer parte de uma missão redentora uni-versal, como a de um inverossímil SuperHomem, por exemplo.

Os personagens são figuras que en-contramos em repartições e hospitais pú-blicos, nas esquinas, no boteco e noaçougue, nos ônibus, sentados nas cal-çadas ou perambulando por uma Histó-ria sem rosto, sem teleologia. Talvez sejaa verdadeira expressão do american dre-am, ou seria melhor dizer nightmare?Problemas corriqueiros como falta degrana, projetos que não dão certo, pe-quenos gestos de afeto, aporrinhações notrabalho, conversas com estranhos, vo-zes que se perdem com a vida de milha-res de pessoas submersas no tal fluxo docotidiano: essa a matéria de que é feita arealidade, a substância do mundo real eda ficção.

A preocupação de Berman com a in-capacidade dos intelectuais, que comen-tei no início, de certo modo ecoa nas his-tórias triviais de Harvey Pekar e nas ilus-trações realistas de Robert Crumb, emque se pode ler os sinais nas ruas porintermédio da fala de seus habitantes decarne e osso.

Reynaldo D amazio é editor e poeta, autor de Nuentre nuvens (Ciência do Acidente).

Bob & Harv – dois anti-heróis ame-ricanos. Harvey Pekar e RobertCrumb. São Paulo: Conrad, 2006.Tradução de Maria Diehl Bandarra.

Robert Crumb ilustrou as crônicas de Harvey Pekar

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