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JUVENTUDE E TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS NA GUINÉ-BISSAU SORONDA ESPECIAL INEP - CORUBAL UNIOGBIS Gabinete Integrado das Nações Unidas para a Consolidação da Paz na Guiné Bissau

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JUVENTUDE E TRANSFORMAÇÕES

SOCIAIS NA GUINÉ-BISSAU

SORONDA ESPECIAL

INEP - CORUBAL

UNIOGBISGabinete Integrado das

Nações Unidas para a Consolidação da

Paz na Guiné Bissau

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Ficha Técnica

Titulo: “Juventude e Transformacoes Sociais na Guine-Bissau

Coordenacao: Miguel de Barros

Prefacio: Jose Machado Pais

Autores: Ana Margarete Gama, Catarina Laranjeiro, Carolina Hofs, Eric Gable, Estela Louca, Joana

Vasconcelos, Henrik Vigh, Lorenzo I. Bordonaro, Lucia Gerbaldo, Marina Padrao Temudo, Manuel Bivar, Miguel de Barros, Monica Vaz, Redy Lima, Rui Jorge Semedo, Silvia Roque

Revisao: Cristina Felix

Compilacao de Textos: Racinela da Silva

Acompanhamento: Magda Pinto Bull

Traducao: Dulce FernandesImagem da capa:

Fotografia de jovens raparigas no Bairro de Cuntum, arredores da cidade de Bissau, feita por Miguel de Barros

Edicao: INEP/CORUBAL

Concepcao grafica: Diogo Lencastre

Patrocinio: UNIOGBISImpressao:

Imprensa Nacional, EP.Tiragem:

1000 exemplaresISSN:

ISSN 1016-2836

1a Edicao (Maio de 2016)

Pedidos aoINEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa Servico de Publicacoes

Complexo Escolar 14 de Novembro Caixa Postal 112 – BissauRepublica da Guine-Bissau E-mail:[email protected]

www.inep.gw

A presente publicacao do livro “Juventude e Transformacoes Sociais na Guine-Bissau”, encomendado pela Assembleia Nacional Popular da Guine-Bissau (ANP) e o produto de contribuicoes de vários autores independentes devidamente identificados. O patrocínio para a publicacao do livro da ANP foi concedido pelo UNIOGBIS no âmbito do seu mandato de apoio às instituicoes nacionais nos esforcos

de construcao do Estado, e foi realizado em coordenacao com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP) em benefício da ANP no quadro da realizacao por esta ultima do seu Seminário sobre o papel da juventude na consolidacao da democracia na Guine-Bissau.

Especificamente em relacao a este livro, o apoio prestado pelo UNIOGBIS e exclusivamente para fins de publicacao do mesmo e os conteudos nele divulgados nao representam as opinioes nem implicam a responsabilidade do UNIOGBIS perante quaisquer pessoas ou entidades relativamente a qualquer das análises, avaliacoes, comentários, declaracoes ou conclusoes feitas pelos autores independentes “.

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Índice

Apresentação ......................................................................................................................... 5

Prefácio .................................................................................................................................. 9

DE PIONEIROS A RAPPERS: DINÂMICAS PROTAGONIZADAS PELOS JOVENS NA GUINÉ-BISSAU.................................................................................. 23

“O arado ou a caneta”: jovens balanta-nhacra, agricultura e o futuro ........................... 25Sai fora: juventude, desconexão e aspiração à mobilidade nas ilhas Bijagós (Guiné-Bissau) ............................................................... 49Sujeitos plurais: emergência de novos modelos de rapariga em Bissau? ..................... 77Jovens gerindo (im)possibilidades: a reprodução da desesperança em Bissau .......... 123Mobilização e mobilidade social – uma análise da milícia Aguenta .............................. 145Economia Informal e Estratégias Juvenis em Contexto de Contingência .................... 177Formação profissionalizante e emprego juvenil na cidade de Bissau: o caso do C.I.F.A.P .................................................................... 203O pan-africanismo de Cabral na música de intervenção juvenil na Guiné-Bissau e em Cabo-Verde ................................................................... 223Djidius de nova geração: o afro-mandinga e o “velho” conhecimento ......................... 255

CLUBES, ASSOCIAÇÕES E BANCADAS: DINÂMICAS PROTAGONIZADAS PELAS COLECTIVIDADES JUVENIS NA GUINÉ-BISSAU .............................................. 275

Imagem, auto-representação e memória coletiva dos filhos de antigos combatentes da guerra de libertação na Guiné-Bissau .............................. 277Organizações juvenis e clubes de desenvolvimento cultural: a construção da sociedade na Guiné-Bissau ............................................................... 291Associativismo juvenil enquanto estratégia de integração social: o caso da Guiné-Bissau ................................................................... 313O voluntariado juvenil na Guiné-Bissau: do conceito à prática ..................................... 331Lógicas de organização e acesso ao mercado do trabalho informal juvenil no contexto migrante ........................................................................... 347Guiné-Bissau: constrangimentos e possibilidades da acção juvenil no exercício da democracia participativa ................................................ 363

Os autores .......................................................................................................................... 381

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Prefácio

“Um tiro kada dia”: dos futuros herdados aos futuros desejados

Eneke, o pássaro, diz que desde que o homem aprendeu a disparar sem falhar, ele aprendeu a voar sem se empoleirar.(Chinua Achebe, Quando Tudo se Desmorona)

No prefácio desta obra, que em boa hora me chegou às maos, co-meco por felicitar os seus autores tanto pelas pesquisas realizadas quanto pelas aprendizagens que me proporcionaram. Eles foram meus guias de uma viagem de descobertas. Sem a sua companhia estas notas soltas nao teriam existência. Na verdade, ao ler o presente livro senti-me um via-jante imaginariamente transportado a uma realidade que se desvela pela forma etnograficamente acutilante como e captada e descrita. Vi-me num país saído de uma guerra de libertacao colonial e posteriormente de uma guerra civil (1998/1999), onde os jovens travam, quotidianamente, as suas proprias lutas de libertacao e emancipacao. Num tecido social marcado pela pobreza economica, o desemprego faz com que muitos jovens vivam em situacao de grande precariedade, por vezes cansados de fazer nada, sem meios de subsistência. Com alguma sorte consegue-se um tiro kada dia, ou seja, uma refeicao diária. Mas o que doi mais? A morte de fome? A morte de guerra? Ou a morte social?

Observacoes de acontecimentos aparentemente anodinos acabam por se revelar de profundo significado sociologico e antropologico. Há achados etnográficos que nos cativam, difíceis de apagar da memoria.

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Nao nos iremos esquecer, certamente, daquele velho que vagueia pelas ruas disputando com caes vadios restos de comida nos caixotes do lixo. Alguem lhe grita zombeteiramente: bluuuuuuufo! Descobriremos entao que a carga insultuosa da palavra blufo e dirigida a quem, apesar da adul-tez conferida pela idade biologica, permanece acorrentado a um estatu-to de menoridade. Um blufo e alguem que e alvo de escárnio social por encerrar, em si mesmo, uma contradicao. É um homem sem o ser. Por-quê? Porque um homem sem mulher nao e homem em terra de roncos de macho (ronku di matchu). Um blufo ficou à margem do fanadu (ritual de circuncisao), marca de um rito de passagem para a idade adulta. Com Henrik Vigh descobriremos que o termo blufo descreve uma especie de “castracao social”, uma incapacidade de assuncao da condicao de adulto, uma subalternidade propria de quem nao se consegue libertar do estatuto de jovem, uma disritmia entre a idade cronologica e a idade social, enfim, uma “moratoria social”.

Na Guine-Bissau descobriremos outras tensoes sociais. Por exem-plo, tensoes geracionais, elas proprias reflexo de uma outra tensao, a que resulta do confronto entre tradicao e modernidade. Qual o significado, por exemplo, dos retiros semanais numa densa floresta por parte dos mais velhos habitantes da aldeia Manjaco de Katama? Eles discutem o presente, os problemas da aldeia, mas à luz de crencas do passado. Nessas reunioes, onde se fazem libacoes, saltam à vista as hierarquias gerontocráticas. Os mais velhos têm os seus assentos marcados e sao eles que fazem as inter-pelacoes aos espíritos. Os homens mais novos servem cântaros de vinho de palma aos mais velhos, e so no final beberricam as borras sobrantes. Mas em algumas associacoes juvenis o poder gerontocrático e consciente-mente questionado, por jovens e ate por criancas. Sketches que missioná-rios catolicos produziam nos tempos do colonialismo para ridicularizar as crencas ancestrais nos “adivinhos” sao agora realentados com semelhan-tes encenacoes caricaturistas. Veja-se como os mais velhos trajam, a partir das descricoes de Eric Gable. Eles usam chapeus e casacoes ao estilo mili-tar das potências colonizadoras. Exibem relíquias do poder colonial, res-significadas em novos contextos de uso, arrevesadas na apropriacao que delas se fazem. Essas relíquias sao tambem ostentadas como símbolos da modernidade, o mesmo se podendo dizer dos chapeus desportivos que, vindos das terras da emigracao, aterram nas cabecas dos velhos guardioes

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da tradicao. Nao estamos simplesmente perante “tentativas pateticas de urbanidade”, estamos tambem perante apropriacoes esteticas da moder-nidade. A fronteira entre o tradicional e o moderno e tambem uma ponte de fluxos entre o que a fronteira supostamente separa.

As tensoes geracionais agudizaram-se durante a guerra civil. Enquan-to bastantes jovens integraram a milícia Aguentas que apoiava o presiden-te Nino Vieira, os mais velhos apoiavam a Junta Militar que se identificava com os antigos combatentes do movimento de libertacao colonial. Dife-rentes geracoes tomando partido por diferentes facoes, expressao belica de tensoes sociais com marcas geracionais. Testemunharemos, aliás, como as memorias libertadas pelas fotografias dos espolios pessoais dos com-batentes da guerra de libertacao colonial ecoam, conflituosamente, nas representacoes e imaginários dos filhos desses ex-combatentes. A trans-missao dessas memorias inscreve-se num complexo processo de ajuste de contas entre distintas temporalidades historicas que se emaranham en-tre vivências de guerra e sobrevivências de memorias, reconstruídas com a passagem do tempo. Deste modo, no proprio campo dos imaginários sociais associados às crencas populares e religiosas, as tensoes intergera-cionais recrudesceram, sinal de acentuadas descontinuidades geracionais. Jovens balantas comecaram a converter-se a correntes do cristianismo nao catolico em ruptura com a tradicao. A recente atracao dos jovens por movimentos profeticos parece corresponder a uma dissensao em relacao às velhas crencas em torno das feiticarias e adivinhacoes, frequentemente associadas a males de inveja e a nefastas influências espirituais. Mas há os que continuam sentindo o controlo espiritual e religioso do poder geron-tocrático, intranquilos quanto a eventuais represálias de vivos ou mortos.

Os jovens clamam por participacao social e uns quantos conseguem um significativo envolvimento em partidos políticos, sindicatos e, sobre-tudo, em organizacoes nao-governamentais ou associacoes de base legal ou comunitária. Para eles, o associativismo juvenil tem permitido a con-cretizacao de oportunidades de participacao e integracao social, rasgando horizontes de realizacao pessoal, mantendo viva a plausibilidade de futuros desejados. No entanto, a falta de apoios ao movimento associativo juvenil, entre outras razoes, tem gerado formas de participacao à margem do as-sociativismo estruturado. O exemplo mais conhecido e o das chamadas bankadas, constituídas por jovens maioritariamente do sexo masculino,

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em grande parte desempregados, que se reunem informalmente em alguns bairros de Bissau. As bankadas, por uns vistas como grupos bem inten-cionados, por outros tomadas como “bandos de gente ociosa”, constituem um vivo exemplo de participacao social espontânea, nao apenas na sua dimensao sociabilística, mas tambem na sua dimensao mais cívica quando, por exemplo, se congeminam brigadas de apoio para limpezas de ruas ou ajuda a membros necessitados. Na verdade, o que se vê nas bankadas nao depende apenas do ponto de vista ou da bondade do olhar, tambem decor-re da realidade que se olha na forma como e olhada: há bankadas do mal e bankadas do bem, umas ligadas a práticas delinquentes, como o tráfico de droga; outras orientadas por uma participacao cívica e convivialista. Con-fundir umas com outras e cair num equívoco metonímico.

Outras oportunidades de participacao juvenil ocorrem em deba-tes radiofonicos, particularmente na Rádio Jovem de Bissau, ou atraves de expressividades culturais, como as dos musicos de rap, onde a palavra cantada se assume como denunciadora das dificuldades e miserias sociais sentidas pelos jovens no dia-a-dia. Como veremos, nas letras das musicas rap denuncia-se a desorganizacao do país, a corrupcao, o dinheiro esban-jado à toa, o narcotráfico, os negocios ilegais, o crime organizado, a fome, as privatizacoes, a tirania, o sofrimento, o sufoco. Testemunharemos tam-bem que no rap kriol(u) o pan-africanismo de Amílcar Cabral nao deixa de estar presente, sendo francamente aceite no universo dos jovens gui-neenses e cabo-verdianos. Os discursos de Cabral chegam a intercalar-se com as batidas musicais de rap, num sampling politizado e memorialístico onde velhos dilemas identitários se revigoram numa idealizada “ verdade”, heranca dos filhos da terra (fidjus di tchon).

Tambem na musica, a tradicao oral concorre com as sonoridades das culturas juvenis. A musica rap rivaliza com ritmos tradicionais como o Gumbé (na Guine-Bissau) ou o Batuku (Cabo Verde). De forma nao ne-cessariamente conflituosa, os sons tradicionais do balafon, do nguelim ou do djembe cruzam-se com os do violao, da mesma forma que o rap coabi-ta com o reggae, com o kizomba ou com a musica sertaneja brasileira. As artes da palavra persistem mas tambem se renovam, abrindo-se a novas experiências. O djaliá (em mandinga), continua a ser um artesanato de palavras e de sons que os mestres djidius mandingas transmitem aos mais novos; porem, entre os jovens urbanos as palavras, como o proprio mi-

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crofone que as amplifica, sao armas de arremesso que se vestem de novas roupagens simbolicas. Como quer que seja, novas e velhas artes da palavra e do canto convergem para uma mesma denuncia: a dos problemas so-ciais, economicos, políticos ou morais. Por outro lado, a arte djaliá galga fronteiras, deixando de estar confinada às tradicionais aldeias afro-man-dingas, afirmando-se no universo da musica popular e da world music.

Com o virar do seculo as transformacoes acentuam-se. Ao mesmo tempo que as classes de idade ganham novos significados, os rituais de passagem para a vida adulta, como o fanadu, vao perdendo relevância, o mesmo se podendo dizer em relacao aos banhos de lama ou à inicia-cao sexual dos jovens por mulheres casadas. Os signos de modernidade sao visíveis no modo como alguns jovens exploram o mundo dos lazeres, especialmente aos fins-de-semana. A expressao que usam para o diverti-mento - comer o mundo - e como se a diversao lhes alimentasse um desejo com fome de conhecer e viver o mundo. Nao so o mundo entre portas, o das discotecas, cinemas, bares, campos pelados de futebol ou concos (quartos que acolhem relacionamentos amorosos); mas sobretudo outros mundos que lhes chegam atraves da televisao e das narrativas dos que an-daram pela Europa. A comunicacao com o mundo exterior nao e todavia fácil. Os meios de transporte sao precários e o acesso à televisao limitado. Alguns jovens continuam a sentir-se um “nada” no meio do nada. Terra do nada, com gente que e nada porque nada tem.

Os signos da modernidade tecem identidades culturalmente estiliza-das, atraves de investimentos na imagem corporal (roupas e acessorios), como os bones de basebol, os tenis de marca, os oculos Ray Ban made in China ou as calcas ajustadas que acentuam as silhuetas corporais das Cla-ra di Sabura (as “Claras das Festas”). Estes ventos de aparente modernida-de coexistem com persistentes modelos tradicionais de masculinidade, os ronku di matchu, comprovados pelas conquistas sexuais, fonte de status do afamado garanhao. As Clara di Sabura aproveitam para protagonizar uma mobilidade ascendente, em ambiente de “festas” e discotecas. Resvalando frequentemente para a prostituicao, algumas delas nao deixam de contar com a cumplicidade dos pais e dos proprios namorados, todos eles bene-ficiando dos granjeios que a fuga à miseria economica possibilita. Mas há tambem aqueles outros jovens que vendo a debandada das Clara di Sabu-ra para os bracos dos ronku di matchu, mais lamentos exacerbam pela sua

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triste sina de vida. Sem trabalho e dinheiro nao há acesso a mulheres nem a casamento. Entre eles paira uma ameaca social, a de se tornarem blufos.

Todos os investimentos corporais com que os jovens estilizam a sua imagem sao sinais de uma ocidentalizacao exibida porque desejada. Os amuletos e talismas foram substituídos por telemoveis e águas de cheiro. Poderia mesmo falar-se de um pos-colonialismo cultural onde o branku (branco) aparece como um ícone de referência cultural, a mimetizar. Dis-so nos daremos conta ao descobrirmos a valorizacao da marca do branku quer ela apareca timbrada em remedios ou escolas: mesinho di branku, skola di branku, vida di branku... Mesmo quando, no âmbito dos projetos de voluntariado para a cooperacao, jovens estrangeiros tomam contacto com jovens guineenses, as aprendizagens mutuas, de natureza intercul-tural, nao deixam duvidas sobre quem gostaria de “calcar os sapatos do outro”.

Veremos que os jovens da Guine-Bissau se encontram encalacrados entre futuros herdados, onde pesa a tradicao, e futuros desejados de onde se libertam os sonhos da modernidade. Na logica da pequena agricultura familiar – que Chayanov tao bem estudou em finais do seculo XIX – as mais velhas geracoes da sociedade balanta-nhacra socializavam os jovens para trabalhar a terra ou cuidar do gado, desmobilizando-os da escola. Entretanto, o maior investimento na producao de caju, dado o incremen-to da procura, libertou muitos jovens das bolanhas (terrenos de cultivo do arroz), muito mais exigentes em mao de obra. Os jovens debandaram para a cidade. Os velhos, inconsoláveis, incriminam o caju pelo fomento à “preguica”.

No quadro de todas estas transformacoes, nem sempre e fácil para os jovens mapear o futuro. O futuro imaginado esbarra frequentemente com a reproducao da desesperanca, num cepticismo induzido nao apenas por uma pobreza generalizada mas tambem pela descrenca nos políticos que chegam ao poder para, supostamente, dele se servirem. Nao sabendo como desenvencilhar-se dos futuros herdados, os jovens lastimam a “má sorte”, como se a vida, tomada como um jogo, estivesse regulada pelo des-tino ou acaso (alea). A falta de esperanca e a consciência de que a sorte e ingrata condensam-se numa locucao crioula que expressa um modo de vida: coitadesa. A linguagem dá voz ao social, expressando sentimentos de vitimizacao, desespero, abandono e resignacao. Um atraso de vida diante

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de suas possibilidades. Um futuro bloqueado que fecha as portas à espe-ranca, prolongando a dependência dos jovens em relacao aos familiares, numa especie de “moratoria social”.

Contudo, a coitadesa de vida nao impede os jovens de projetarem futuros (“eu quero sair daqui”) e de reivindicarem pensar por sua propria cabeca: kada kin pa si kabesa. Entre os Balanta, e por influência do mo-vimento profetico Ki-yang-Yang, generaliza-se o desejo imperativo, visto como necessidade, de “sair do escuro”, “mover-se para diante”, “abrir os olhos”. Sair do escuro significa para os jovens da Guine-Bissau vislumbrar um horizonte de vida, alimentar esperanca em relacao ao futuro. Sair do escuro pode passar por chegar a Dacar ou a Conacri, antes de se aportar à fantasiada Europa. Qualquer apeadeiro serve para manter viva a chama da esperanca, qualquer lugar de trânsito e apetecível se nele se experimentar a sensacao de “ver Franca”. A emigracao, seja ela por canoa ou aviao, e um exemplo vivo do mover-se para diante: sair do domínio da família ou escapar aos futuros herdados que já nao sao futuro, ainda que o sonho da emigracao se possa tornar um pesadelo pelas dificuldades de integracao nas sociedades de destino. Como quer que seja, nao e apenas a sobrevi-vência economica que está em jogo. É tambem, como veremos, o desejo de participacao numa “cidadania da modernidade”.

Maioritariamente analfabetos antes da libertacao do colonialismo, os jovens da Guine-Bissau encontram-se hoje mais escolarizados. Jovens cujo destinado herdado era o pilão de madeira para as raparigas ou o arado para os rapazes – quando nao nasciam com o destino tracado de ladrões de vacas – sonham agora com uma caneta ou um computador, isto e, com a possibilidade de frequentar a escola. Veremos que o abandono do arado a favor do computador alarmou os que pensam que “agora os comedores sao mais do que os lavradores” dada a escassez de gente para lavrar os campos e cuidar do gado. No entanto, a producao de arroz viria a ser retomada em terrenos bolanha (o chamado arroz malú, na língua balanta, ou arroz de bolanha, em crioulo). A mudanca pode tambem acontecer na estrutura de persistências que resistem à mudanca o que ocorre quando os jovens – ao abrirem os olhos – se assumem como protagonistas dessa mudanca. Como veremos, há jovens balanta-nhacra que, tendo trocado as tabancas (aldeias rurais) pela cidade, voltaram às origens, de olhos mais abertos, protagoni-

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zando importantes mudancas, abrindo negocios, exigindo escolas locais. Desse modo repudiam a tese da preguica que lhes e imputada.

Vencendo antigas resistências, os pais passaram paulatinamente a apoiar a escolarizacao dos filhos e ate das filhas, outrora acusadas de abra-carem a escola para fugirem a casamentos negociados. Aliás, engravidan-do antes do casamento com jovens da sua idade, algumas raparigas evitam casamentos arranjados com noivos mais velhos e bem da vida (ou menos mal): uma ameaca à sonhada autonomia (kada kin pa si kabesa). Outras, pelo contrário, casam com quem melhor lhes permita sair da coitadesa de vida. Deste modo, as fugas a casamentos impostos, podendo ser um claro sinal de emancipacao, podem tambem ser alvo de crítica social quando as raparigas sao olhadas como interesseiras ao procurarem que o seu destino mude atraves de um uso estrategico da sexualidade, como acontece com as Clara di Sabura (“Claras das Festas”). Mas há tambem as que desespe-ram com a espera. Alguns pretendentes nao passam de vagas promessas, pois nao conseguem, por muito que se esforcem, condicoes economicas para constituir família. Os seus parcos rendimentos nao mais permitem do que esporádicos encontros sexuais, a jusante dos quais desembolsam para as companheiras algum dinheiro para “compras de feira”. Neste caso, a fidelizacao afetiva tem por base de sustentacao uma fidelizacao econo-mica: dar para a feira. Se o dinheiro falta e tambem elevada a probabilida-de de a moca se escapar.

Sair da tabanka e migrar para a praça (a parte mais urbanizada da ci-dade de Bissau) era e continua a ser o sonho de muitos jovens guineenses. No entanto, na cidade nem todos conseguem sobreviver, caindo uns na miseria e outros - como os chamados thugs - na delinquência e violência, regulada por codigos de etica grupal. Na praça o trabalho escasseia e o que se encontra e precário ou ocasional (surni), pequenos biscates que apenas permitem a sobrevivência. A frustracao de alguns destes jovens leva-os, como vimos, a equacionarem o retorno à tabanca, nao para se reencon-trarem com o passado mas para o transformarem, abrindo um negocio proprio ou arranjando um terreno para cultivarem arroz ou semearem caju e outras fruteiras. Sementes de um futuro difícil de alcancar, sempre sujeito às tormentas de herancas passadas, como os males de inveja e os ataques de feiticaria: praga nos cultivos, porcos a morrer, enfermidades subitas e de difícil cura. As raparigas nao têm a vida mais fácil do que

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os rapazes. Enquanto muitos destes sobrevivem com o parco dinheiro que lhes vem dos surni, as mocas que arranjam algum dinheiro sao logo acusadas de bandidagem, isto e, de envolvimento com homens a troco de ajudas materiais.

Os jovens da Guine-Bissau usam uma expressao, relativamente re-cente no crioulo guineense, que expressa a capacidade de contornar si-tuacoes difíceis fazendo uso da criatividade, da imaginacao e do sentido de improvisacao. Dubria e a expressao. Henrik Vigh conta como um dos jovens entrevistados lhe deu uma preciosa definicao corporal de dubria, muito mais sugestiva do que qualquer definicao nominal. Ele movia o cor-po como se numa sessao de boxe tentasse esquivar o corpo a murros e gol-pes invisíveis. Esta movimentacao corporal, de uma agilidade artística, e sugerida por uma expressao corrente no Brasil, a ginga. O capoeirista tem ginga. O futebol afro-brasileiro tem ginga. O samba tem ginga. A baiana tem ginga (“como ela requebra bem!”, desabafa Dorival Caymmi em sua conhecida musica sobre o que a baiana tem). Na capoeira, ginga refere-se a um balanceamento do corpo que combina movimentos de ataque e de-fesa, de ofensiva e esquiva. O termo gingão tambem era aplicado a fadistas desordeiros e a putas fadistas da Lisboa boemia do seculo XIX, mulheres de pelo na venta e faca na liga. Em Portugal, a palavra refere-se ainda a um remo apoiado num encaixe da popa de um barco e que o fazia nave-gar. A ginga pode considerar-se uma arte, toda ela feita de astucias. Uma vez que a arte e por natureza criativa, a ginga - tal como a dubria - sonda e cria oportunidades. É um engenho de exploracao de acasos, imprevis-tos, contingências. Embora na capoeira a ginga seja pensada como uma arte corporal, inscrita numa espacialidade (a roda), na verdade ela tam-bem arrasta uma arteirice mental feita de instintos, de combinacoes, de movimentos. É precisamente essa ideia que Henrich Vigh pioneiramente desenvolveu (Navigating Terrains of War), para ilustrar a forma como os jovens guineenses se movem em terrenos adversos. Dubria e pois relativa-mente equivalente a desenrascanço, termo bastante conhecido em Portu-gal. Aliás, dubria parece ter origem no termo francês débrouiller (sair de dificuldades, de um embaraco), um modo de fazer pela vida, no pressu-posto de que a vida e uma realidade por fazer.

Entre os jovens da Guine-Bissau veremos que a criatividade da du-bria se manifesta, por exemplo, na capacidade de dar vida nova ao que

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e velho, reciclando o desperdício, como acontece com a construcao de brinquedos a partir de latas de cafe, de leite ou de papas - latas de alumínio que, devidamente trituradas, tambem podem dar origem à construcao de panelas. Ou entao pode ganhar-se a vida empunhando a máquina foto-gráfica, cada fotografia retratando simultaneamente a realidade fotografa-da e a sobrevivência do fotografo. Ou entao pode ganhar-se a vida mon-tando uma banca com tomadas para recarga de baterias de telemoveis. As mulheres nao ficam à margem da dubriagem. Elas sao conhecidas como bideiras, mulheres que fazem pela vida (fasi bida), havendo entre elas um forte espírito de interajuda.

Na dubriagem vive-se o agora, um presente amarrado aos obstácu-los que o impedem de ser vivido com dignidade. Como se ultrapassam os obstáculos? Da mesma forma que a ocasiao faz o ladrao, a contingên-cia possibilita a sobrevivência. Por isso mesmo, a dubriagem e típica de economias informais fortemente marcadas por contextos de contingência, como acontece em Bissau, onde, por efeito da concorrência de trabalha-dores imigrantes de países vizinhos (Guine-Conakry e outros) a taxa de desemprego juvenil se eleva a cerca de 50%, bem mais elevada do que no interior do país (perto de 20%). O trabalho informal dos imigrantes da sub-regiao ocidental africana que chegam a Bissau nao deixa de ser abor-dado no presente volume. É vê-los puxando caretas, carrinhos de mao outrora usados nos trabalhos da construcao civil. Quase tudo os caretas transportam, de arroz a milho, de porcos a galinhas, de frutas a carvao.

Como veremos, sao nesses contextos de contingência que se deli-neiam estrategias de sobrevivência, muito orientadas pela circulação, o trajeto como parte constituinte do projeto de vida. A oferta de produtos vendáveis persegue a potencial procura em lugares de trânsito: um pas-seio publico, uma esquina ou entroncamento, uma rotunda, uma berma de estrada, uma varanda ou frente de quintal, enfim, qualquer terreno acessível. Outra modalidade de circulacao e a propria venda ambulante. Os modos de ganhar a vida sao variados. Disponibilizacao de telemoveis para chamadas de urgência, lavadeiras ambulantes ao domicílio, servicos de beleza em tendas montadas para o efeito, cafes ambulantes, limpeza e concerto ambulante de sapatos, confeccao e venda de cestos, producao e comercializacao de hortalicas ou docarias, venda ambulante de tecidos, refrigerantes ou bebidas alcoolicas, etc. No entanto, os futuros desejados

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passam sobretudo pela emigracao, sendo especialmente acalentados so-nhos de profissionalizacao nos domínios culturais ou desportivos. Há jo-vens que acalentam o sonho de ser jogadores profissionais de futebol na Europa ou de viverem da musica, como compositores e interpretes.

Esbocando, para concluir, uma reflexao teorica sobre alguns dos achados desta publicacao, diria que e na sobrevivência do dia-a-dia (um tiro kada dia) que se gera a tensao entre o futuro herdado e o futuro de-sejado. O futuro herdado tende a seguir os padroes do passado, quer os que caracterizam as estruturas economicas produtivas, quer os que se tra-duzem em crencas tradicionais que se refletem nas decisoes dilemáticas da vida quotidiana. É este futuro herdado, que emerge das engrenagens de socializacao familiar e comunitária, que as velhas geracoes procuram inculcar nos descendentes. Os jovens gostariam de o descartar mas ele volta a dar cartas, como uma sombra do passado. O futuro herdado perse-gue-os teimosamente, e um futuro feito de persistências, como se estivesse aprisionado ao vaticínio dos feiticeiros, eles sim, detentores do futuro. Os jovens mobilizam-se entao para denunciar o que nos futuros herdados os impede de chegar aos futuros desejados. A denuncia surge nas letras do hip-hop e em outras expressividades musicais.

As dificuldades em alcancar os futuros desejados faz emergir a pos-sibilidade de futuros ensanduichados, isto e, futuros que, projetando reali-dades almejadas, nao deixam de estar condicionados por realidades per-sistentes. Sao futuros que resultam de uma tensao entre futuros herdados e futuros desejados. Os primeiros encontram-se estruturalmente enrai-zados; os segundos sao guiados por experiências reflexivas, socialmente partilhadas, em cenários de incerteza que, apesar de tudo, nao deixam de alimentar a esperanca. Nos futuros ensanduichados, a metáfora da esca-daria ajuda-nos a perceber como chegar aos futuros desejados. Passo a passo, degrau a degrau, um tiro kada dia. A tensao surge tambem entre as táticas do dia-a-dia, determinadas pelas contingências do quotidiano, e as estrategias delineadas para alcancar o futuro desejado. Este nao se deixa agarrar sem os pes bens assentes na terra. Sem esse assentamento, o futuro torna-se utopico. Faltando-lhe um topos de alicerces, o futuro torna-se irrealizável. Desse topos faz tambem parte o realismo das proje-coes do futuro. Porem, nao so desse realismo – ou seja, dos pes assentes na terra – depende a concretizacao do futuro desejado. Depende tambem

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das vicissitudes que decorrem de como a aleatoriedade do futuro coletivo impende sobre os futuros subjetivamente idealizados.

Entre os jovens da Guine-Bissau o futuro desejado encontra-se su-jeito a fortíssimos constrangimentos estruturais, de natureza economica e ideologica. Por isso mesmo, entre eles pesa o temor e a descrenca. Des-crenca derivada das amarras do presente sobre o futuro, impedindo-o de se soltar, como se ele viesse dado como uma mera heranca do passado, uma profecia do presente, um futuro herdado. O desprendimento deste futuro pressupoe um corte, uma passagem, um salto: dos meios rurais para a cidade; da cidade para o estrangeiro. Este e o sentido dos projetos de emigracao acalentados por uma grande parte dos jovens guineenses e que transparece em sua linguagem nativa: sair do escuro, mover-se para diante, comer o mundo... A emigracao torna-se ela propria um futuro desejado que medeia a concretizacao do desejo de outros futuros. Para muitos jovens guineenses, a vida e uma coitadesa, aparecendo enrascada num conjunto de forcas do destino ou do acaso. Porem, a pobreza e o expediente facil-mente se acasalam. É em contextos de sobrevivência que surge a cultura de improvisacao (dubria), feita de criatividade e astucia. É desse modo que se reinventa o quotidiano, mediante uma navegacao entre regras e con-trarregras, explorando oportunidades num terreno onde elas escasseiam, criando na rede das regras as suas proprias pertinências. Daqui deriva o sentido do desenrascanco (dubria). Uma vida enrascada e propria de quem vive em dificuldades, delas mesmo surgindo o desafio do desenrascanco. Os futuros desejados mobilizam vontades, colocando à prova desafios e ca-pacidades. É no enfrentamento destes desafios que se criam possibilidades para uma descolonizacao dos futuros herdados que impedem ou ameacam os futuros desejados. É nesta trilha que se veem muitos jovens guineenses, ao sentirem-se credores do futuro que idealizam.

Se tomarmos o passado como um espaco de aglomeracao de expe-riências e o futuro como um horizonte aberto a um novo campo de ex-periências (Koselleck, Le Futur Passé) a problemática do tempo consiste em sabermos como os campos de experiência passados se refletem nos horizontes de espera futuros. Entre os jovens da Guine-Bissau, a proble-mática do tempo e vivida de uma forma tensa. A tradicao, protagonizada pelas velhas geracoes, tende a dilatar o arco temporal entre o campo de ex-periências e os horizontes de espera. Os mais velhos temem as aceleracoes

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do tempo e das mudancas que podem colocar em causa o seu domínio. Invocam feiticarias e pragas, acusam o caju de fomentar a preguiça, censu-ram as mocas mais ousadas de bandidagem. No entanto, os jovens querem sair do escuro, desejam participar numa cidadania da modernidade. Nes-te caso, criam-se apetências subjetivas para uma antecipacao do futuro, isto e, para a vivência de novas experiências. Essas apetências subjetivas sao sinalizadas pelos jovens guineenses atraves da metáfora que expressa a vontade de comer o mundo. Embora muitos jovens guineenses vivam uma “moratoria social” - ou, justamente, por causa dela - há vontade de mudanca. E ela está acontecendo. Contudo, as apetências subjetivas de mudanca esbarram tambem com as condicoes objetivas para a concre-tizar. O que entao persiste e uma tensao entre a experiência e a espera. O futuro e pelos jovens chamado a atualizar o presente, mas frequentemente ele e simulado como ilusao, num cenário de sentimentos contraditorios de esperanca e temor, de anseios e inquietacoes. Em casos extremos, o desespero da espera torna improvável a esperanca no futuro. Quando as-sim acontece, o futuro sucumbe perante as necessidades de sobrevivência quotidiana que exigem que a fome se mate dia-a-dia, um tiro kada dia...

E termino. Embora esta obra seja constituída por capítulos entre si distintos - quer pelas distintas problemáticas, aproximacoes metodologi-cas ou desigual densidade teorica - os estudos de caso reunidos dao que pensar por sua riqueza e diversidade, bem como pelas narrativas descriti-vas e analíticas, de forte pendor antropologico. Ao ler muitos dos contri-butos que integram este livro senti-me em terras da Guine-Bissau, sem na realidade nunca lá ter estado. Espero que o presente prefácio, ressonância de achados etnográficos e de questionamentos teoricos que o leitor irá encontrando ao longo das páginas que se seguem, seja como um cais de embarque para reveladoras descobertas. Aliás, os leitores que tenham sal-tado a leitura deste prefácio nao deixarao, tambem eles, de se descobrirem viajantes, navegando e sentindo-se navegados por realidades em transfor-macao onde se joga o futuro dos jovens da Guine-Bissau.

José Machado PaisInvestigador Coordenador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de

Lisboa e Professor Convidado do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa