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Jusnaturalismo e Direito Natural. Prof. Wagno O. de Souza. Resumo. 1. Direito Natural A) Fase antiga: o Direito Natural é a participação da comunidade humana na ordem racional do universo. Para os estóicos, por exemplo, a participação dos seres vivos na ordem universal se dá por meio do instinto, nos animais, e por meio da razão, nos homens. Para essa fase, o Direito de natureza é às vezes interpretados como instinto e as vezes como razão ou como inclinação racional. Para os medievais o direito natural é a participação humana da na ordem universal que é Deus (que essa ordem seja Deus – panteísmo – ou que venha dele). O recurso à natureza e à ordenação que ela prescreve às relações humanas é inicialmente uma instância polêmica contra as leis “convencionais”, aquelas que a “maioria” chama de justiça. As leis convencionais assim entendidas por alguns dos sofistas eram uma ameaça às leis prescritas pelo Direito Natural. O Direito Natural seria uma instância de apelação contra as leis convencionais, e no fundo era superior a qualquer convencionalismo humano. Era esse o caráter infalível próprio do Direito Natural de Platão, Aristóteles, juristas romanos e escritores medievais. Platão definiu o Direito ao definir a justiça como aquilo que possibilita que um grupo qualquer de homens, mesmo que bandidos ou ladrões, conviva e aja com vistas a um fim comum (Rep., 351 C). Essa é uma visão do Direito enquanto técnica da coexistência humana. Aristóteles já qualificava o Direito Natural tomando como referência a coexistência justa, racionalmente perfeita. Para Aristóteles o Direito é o melhor e em toda parte o mesmo. O Direito fundado na convenção e na utilidade é semelhante às unidades de medidas que variam de um lugar para outro. O Direito Natural seria como o fogo que queima do mesmo modo e em toda parte. B) Fase moderna (jusnaturalismo): o Direito Natural é a disciplina racional indispensável às relações humanas, mas independe da ordem cósmica e de Deus. Com Grócio, o Direito Natural foi levado ao mesmo plano racional da matemática, para onde Descartes quis levar a filosofia. Para Grócio, o Direito Natural existiria independente da existência de Deus, assim como a matemática. Mas o jusnaturalismo (Direito Natural moderno) nem sempre esteve fiel às formulações de Grócio. Recebeu a participação de vários outros pensadores.

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Jusnaturalismo e Direito Natural. Prof. Wagno O. de Souza. Resumo.

1. Direito Natural

A) Fase antiga: o Direito Natural é a participação da comunidade humana na ordem racional do universo. Para os estóicos, por exemplo, a participação dos seres vivos na ordem universal se dá por meio do instinto, nos animais, e por meio da razão, nos homens. Para essa fase, o Direito de natureza é às vezes interpretados como instinto e as vezes como razão ou como inclinação racional.

Para os medievais o direito natural é a participação humana da na ordem universal que é Deus (que essa ordem seja Deus – panteísmo – ou que venha dele).

O recurso à natureza e à ordenação que ela prescreve às relações humanas é inicialmente uma instância polêmica contra as leis “convencionais”, aquelas que a “maioria” chama de justiça. As leis convencionais assim entendidas por alguns dos sofistas eram uma ameaça às leis prescritas pelo Direito Natural.

O Direito Natural seria uma instância de apelação contra as leis convencionais, e no fundo era superior a qualquer convencionalismo humano.

Era esse o caráter infalível próprio do Direito Natural de Platão, Aristóteles, juristas romanos e escritores medievais. Platão definiu o Direito ao definir a justiça como aquilo que possibilita que um grupo qualquer de homens, mesmo que bandidos ou ladrões, conviva e aja com vistas a um fim comum (Rep., 351 C). Essa é uma visão do Direito enquanto técnica da coexistência humana.

Aristóteles já qualificava o Direito Natural tomando como referência a coexistência justa, racionalmente perfeita. Para Aristóteles o Direito é o melhor e em toda parte o mesmo. O Direito fundado na convenção e na utilidade é semelhante às unidades de medidas que variam de um lugar para outro. O Direito Natural seria como o fogo que queima do mesmo modo e em toda parte.

B) Fase moderna (jusnaturalismo): o Direito Natural é a disciplina racional indispensável às relações humanas, mas independe da ordem cósmica e de Deus. Com Grócio, o Direito Natural foi levado ao mesmo plano racional da matemática, para onde Descartes quis levar a filosofia.

Para Grócio, o Direito Natural existiria independente da existência de Deus, assim como a matemática.

Mas o jusnaturalismo (Direito Natural moderno) nem sempre esteve fiel às formulações de Grócio. Recebeu a participação de vários outros pensadores.

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2. Teóricos do jusnaturalismo.

1. Pufendorf.

• Foi sincretista: tentou estabelecer um vínculo entre o Direito Natural, enquanto independente de uma ordem superior e a reta razão oriunda de Deus.

• Foi também um dos responsáveis por uma concepção dogmática e imutável do Direito, já que para ele as leis deveriam seguir os ditames da matemática.

• O seu sincretismo uniu as doutrinas de Hugo Grócio e Hobbes ao dizer que a lei natural deriva dos ditames da reta razão, no sentido de qeu o intelecto humano é capaz de compreender com clareza, a partir da observação de nossa condição.

2. LOCKE.

• Não acreditava na existência de leis inatas, mas isso não significa que ele deixou de enxergar outras leis, além da lei positiva. Para Locke, as leis naturais não são inatas, mas se encontram impressas na mente humana, estão na natureza e podem ser conhecidas facilmente, por meio do uso da razão.

• Locke não possui uma visão pessimista do estado de natureza. Este não é o estado de guerra, onde o homem é lobo do próprio homem, como quis Hobbes, mas um estado de paz. Essa paz somente seria quebrada pela ausência de um juiz que julgasse os conflitos.

• Convivem simultaneamente o Estado Civil e o Estado de Natureza. O Estado Civil deve ser erigido para fazer valer e proteger os Direitos Naturais do homem.

• A guerra de um contra o outro é o que levam os homens a criarem as leis e o próprio Estado.

• A propriedade é algo que se possui desde o Estado de Natureza. • É finalidade do Estado Civil a defesa do direito supremo do homem: a

propriedade. • A família antecede a sociedade política, mas anterior a ela está a

propriedade. • Para Locke a ordem natural é: • PROPRIEDADE INDIVIDUAL – FAMÍLIA – SOCIEDADE POLÍTICA. • Direito de resistência.

3. HOBBES.

• Teórico do poder soberano. • O estado de natureza propicia amplo uso da liberdade, que passa a ser

irrestrito, a ponto de uns lesarem os outros.

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• Não há controle racional do homem no estado de natureza, como afirmava Locke.

• No estado de natureza há o estado de guerra de uns contra os outros: o homem é lobo do próprio homem.

• A igualdade é o grande mal que leva os homens a provocarem danos uns sobre os outros. É aí que surge a necessidade do Estado.

• O Estado é um artifício humano para o aperfeiçoamento da natureza, e a superação do estado de natureza.

• É a convenção que cria o Estado: este é um acordo de vontades; é um pacto, que dá início à vida civil.

• A ditadura de um é preferível à ditadura de todos. • Para ele, obedecer às leis civis emanadas do soberano é uma forma de

jusnaturalismo.

4. ROUSSEAU

• Resgate do homem por si mesmo, através do postulado do bom selvagem, cheio de nostalgia do passado e de uma vida campesina.

• Se a bondade é intrínseca à natureza humana, o estado cívico só pode corresponder a um estado degenerado da convivência humana.

• O Contrato Social é um pacto, ou seja, uma decisão dos homens em conjunto para formação da sociedade civil e do Estado.

• O Contrato Social é justiça, pois é um pacto deliberado conjuntamente pelos homens.

• O Contrato Social é um escambo, uma troca, entre liberdade natural e utilidade comum. O homem poderia escolher viver em sua situação inicial, isto é, em seu estado de natureza, ou por meio da convenção fundar uma sociedade.

• Para Rousseau, o contrato, ou pacto, representa a união de forças de muitos contra a força de um déspota, ou de uma multidão desorganizada e desunida.

• O contrato aparece como uma forma de proteção e garantia de liberdade, e não o contrário.

• A noção de contrato social está governada pela idéia de Bem Comum. • A vontade de todos é a somatória dos interesses e vontades particulares;

a vontade geral é mais que a vontade de todos: ela é aquela que visa o interesse comum.

• A vontade geral não está lastreada na idéia de unanimidade. Ela não é geral por ser unânime, mas porque nela estão contadas todas as idéias, todas as discordâncias que participam do todo. A vontade geral surge da participação de todos, com a formação de um consenso da maioria.

• Um atentado contra as partes da vontade geral é, na verdade, um atentado contra o todo e vice-verso.

• O interesse particular fica tão subsumido no interesse geral que fica indecifrável se um possível atentado seja dirigido ao todo ou ao particular.

• A convenção não e o fim das tormentas humanas, mas o início.

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• O Contrato é bom ou mau? Por um lado o contrato representa a chame para a conservação do homem, mas, de outro lado, é a chave que aprisiona o homem à sociedade civil.

• Para Rousseau, a causa de todos os males humanos são as próprias invenções humanas, e que a forma de se corrigir todo tipo de desvio seria a manutenção do estado de natureza do homem: na vida simples, pura e uniforme, sem tropeços e contratempos, sem mandos e desmandos, sem ordem e desordem, estaria a verdadeira felicidade humana.

• A passagem do estado de natureza ao estado cívico se dá de maneira brusca, e isso implica na perda da liberdade natural.

• Os Direitos civis surgem com o contrato social; os direitos naturais são anteriores ao contrato, preexistindo a qualquer convenção social.

• A passagem do natural ao contratual implica na perda de liberdade para o Estado.

• As leis naturais são mais perfeitas que as leis humanas. • O homem em si é bom (por natureza), e a sociedade o corrompe (por

convenção). • A única sociedade não artificial, e, portanto, natural, é a sociedade familiar. • Paradoxalmente, para Rousseau, a liberdade natural é aquela do mais forte

sobre o mais fraco. No natural não há limites entre um e o outro. O contrato seria uma forma de fazer valer a igualdade natural. Mas somente um contrato justo poderia garantir ao homem aquela acepção de justiça como que natural.

• Não é de Deus a origem da ordem, daí o seu jusnaturalismo, mas da soberania do contrato, a saber, da soberania popular que aspira ao bem comum da vontade geral, pois as leis são emanações da vontade geral.

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O Leviatã de Thomas Hobbes1

Leviatã é o nome de um mostro marinho citado no capítulo 40 do livro de Jó. O filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679) fez uso desse vocábulo para designar o “Estado”, bem como intitular sua obra política. Escrita na França, conforme atesta Richard TUCK, organizador e revisor da edição que compõe a coleção “Clássicos Cambridge de Filosofia Política” (Martins Fontes, 2003), Leviatã é considerada a maior obra de filosofia política da língua inglesa.

A exemplo de Locke, Rousseau e Maquiavel, Hobbes participa do contíguo de pensadores conhecidos como “contratualistas”. Para esse conjunto de filósofos, o Estado não está aí como que advindo de uma ação divina. Não. O Estado existe porque o homem o criou. Isso também significa que a “sociabilidade” não advém de uma condição natural ou de uma natureza humana: é o homem o autor da sociedade e do Estado, sendo este resultante de um contrato. Logo, por conseqüência, o homem é artífice de sua condição e destino – e não Deus, como acreditavam os principais pensadores medievais. Portanto, sendo assim, o homem pode conhecer por si mesmo tanto sua presente realidade de miserável, quanto os meios de alcançar a paz e a tranqüilidade social.

Na coletânea de textos que compõem Leviatã, Thomas Hobbes contesta alguns filósofos gregos. Enquanto para Aristóteles (384-322 a.C.) os homens são, por natureza, políticos, para Hobbes, o Estado é uma artificialidade, nada tendo de natural. A máxima hobbesiana é a de que o homem é mau por natureza e é o lobo de seu próximo. Cada homem tende a se apropriar de todas as coisas de que necessita para sobreviver. Por natureza, nada há como limite que regulamente tal apropriação; justiça e injustiça são qualidades relativas aos homens em sociedade, não ao homem natural.

No capítulo XIII Hobbes diz que nada há que diferencia “o meu e o teu”, mas somente o fato de que a cada um pertence aquilo que for capaz de o guardar. Eis então a triste condição em que o homem foi colocado pela natureza. A saída para tal dificuldade se dá, por um lado, pelo instinto, que configura o desejo de viver existente em cada homem, bem como o desejo de evitar a guerra contínua para salvar a vida. Por outro lado, a Razão, que é entendida como um instrumento através do qual o homem racionaliza tais instintos. É aí que nascem os preceitos da razão geral, que impedem os homens de fazerem aquilo que seja prejudicial para sua própria vida, bem como evitar os mesmos de indisporem dos meios de que necessitam para a boa vida.

Tais preceitos compõem o que Hobbes designou como “leis da natureza”. No Leviatã estão relacionadas dezenove delas. A primeira ordena que os homens se esforcem por buscar a paz. Mas a recomendação acerca da paz de que fala o filósofo inglês não é o tipo de conselho pacificador a qualquer preço, pois buscar-la somente é recomendada quando a mesma está ao alcance. Caso contrário, aconselha-se o usufruto de todos os recursos e benefícios de uma guerra para a defesa. O segundo preceito da “lei da

1 Resenha do livro: TUCK, Richard (org.). Leviatã. Trad. João Paulo Monteiro & outros; revisão da edição brasileira de Eunice Ostrensky. São Paulo: Martins Fontes, 2003. (Clássicos Cambridge de Filosofia Política). Publicado em O Popular em 2004.

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natureza” é a de que todos devem renunciar ao direito sobre tudo, a saber, o direito a que todos têm por natureza, já que tais direitos levam os homens às contendas.

Um outro tópico interessante presente no texto organizado por Tuck (Martins Fontes, 2003) são as recomendações religiosas de Thomas Hobbes (Cf. título “Da República Cristã”, parte 3, capítulo XLIII, p. 489). O título é bem interessante: “Do que é necessário para entrar no reino dos céus”. O filósofo inglês trata do caso onde há conflito entre “ordens” diferentes, divina e humana. A recomendação é a de que os homens, acima de qualquer coisa, devem, primeiro, obedecer a Deus. Os prejuízos advindos disso são acompanhados pelos conselhos de Jesus Cristo citados por Hobbes (Mt 10,28): “Não temais aqueles que matam o corpo, mas não podem matar a alma”, (Ibidem, p. 490). Mas em caso de haver possibilidade de obedecer às leis dos homens, considera-se injusto aquele que não o faz, quando a salvação não está sob ameaça.

Por certo, ao ler Leviatã, a edição oportunamente organizada por Tuck, o leitor confirmará a atualidade do pensamento hobbesiano. Primeiro, acerca do papel do Estado na contenção da violência. Para o pensador inglês, o poder soberano (O Estado) existe para impedir o “estado de natureza” e permitir a coexistência entre os homens, considerando que, se deixados à mercê de sua pura índole, esses indivíduos intentariam uns contra a vida dos outros. Mesmo que o conceito de “estado de natureza” em Hobbes possa ser questionado, ao menos o que de sua filosofia deriva, em muito pode ser sugestiva para os vieses que os governos atualmente vêm enfrentando.

Ademais, o livro organizado pelo professor Richard Tuck inclui anotações diversas para o público não familiarizado com a obra de Hobbes. Trata-se de uma gama de recomendações bibliográficas a todos os interessados em obter mais informações sobre a vida e as obras do filósofo inglês.