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JURISDIÇÃO DIFERANTE O embate entre violência e justiça na democracia

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Jurisdição diferAnteO embate entre violência e justiça na democracia

Jurisdição diferAnteO embate entre violência e justiça na democracia

PRISCILA RAINATO ZHOURI Mestre em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2017)

Especialista em Direito Constitucional pelo Instituto para o Desenvolvimento Democrático – IDDE, pela “Ius Gentium Conimbrigae” – Centro de Direitos Humanos

da Faculdade de Direito de Coimbra (2012) e pelo Centro Universitário UNA (2013)Especialista em Gestão Jurídica e de Contencioso pela Faculdade IBMEC (2014)

Graduada em Direito pela Universidade FUMECAdvogada

Belo Horizonte2017

340.32 Zhouri, Priscila RainatoZ63j Jurisdição diferante: o embate entre violência e justiça na2017 democracia / Priscila Rainato Zhouri. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2017. 162 p.

ISBN: 978-85-8238-318-6 E-book: 978-85-8238-319-3

1. Positivismo jurídico. 2. Jusnaturalismo. 3. Normativismo jurídico. 4. Violência – Direito. 5. Violência e justiça. I. Título.

CDD (23.ed.) – 340.11 CDDir – 340.32

Belo Horizonte2017

CONSELHO EDITORIAL

Elaborada por: Fátima Falci CRB/6-700

É proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer meio eletrônico,inclusive por processos reprográficos, sem autorização expressa da editora.

Impresso no Brasil | Printed in Brazil

Arraes Editores Ltda., 2017.

Coordenação Editorial: Produção Editorial e Capa:

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Fabiana CarvalhoDanilo Jorge da SilvaResponsabilidade do Autor

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Álvaro Ricardo de Souza CruzAndré Cordeiro Leal

André Lipp Pinto Basto LupiAntônio Márcio da Cunha Guimarães

Bernardo G. B. NogueiraCarlos Augusto Canedo G. da Silva

Carlos Bruno Ferreira da SilvaCarlos Henrique SoaresClaudia Rosane Roesler

Clèmerson Merlin ClèveDavid França Ribeiro de Carvalho

Dhenis Cruz MadeiraDircêo Torrecillas Ramos

Emerson GarciaFelipe Chiarello de Souza Pinto

Florisbal de Souza Del’OlmoFrederico Barbosa Gomes

Gilberto BercoviciGregório Assagra de Almeida

Gustavo CorgosinhoGustavo Silveira Siqueira

Jamile Bergamaschine Mata DizJanaína Rigo Santin

Jean Carlos Fernandes

Jorge Bacelar Gouveia – PortugalJorge M. LasmarJose Antonio Moreno Molina – EspanhaJosé Luiz Quadros de MagalhãesKiwonghi BizawuLeandro Eustáquio de Matos MonteiroLuciano Stoller de FariaLuiz Henrique Sormani BarbugianiLuiz Manoel Gomes JúniorLuiz MoreiraMárcio Luís de OliveiraMaria de Fátima Freire SáMário Lúcio Quintão SoaresMartonio Mont’Alverne Barreto LimaNelson RosenvaldRenato CaramRoberto Correia da Silva Gomes CaldasRodolfo Viana PereiraRodrigo Almeida MagalhãesRogério Filippetto de OliveiraRubens BeçakVladmir Oliveira da SilveiraWagner MenezesWilliam Eduardo Freire

V

Aos que tornaram o solitário trabalho de tecer estas breves linhas

possível: aos meus pais Ricardo e Dulce e aos meus irmãos Lucas e Matheus, por serem o alicerce sem o qual seria impos-sível começar, ao amor da minha vida, Leonardo, pela inspiração, dedicação e compreensão, aos meus amigos, frater-nos e ao meu mestre, Álvaro Ricardo,

espelho, escada, trampolim.

VI

suMário

PREFÁCIO ................................................................................................................. VIII

APRESENTAÇÃO .................................................................................................... XII

CAPíTulO 1INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 1

CAPíTulO 2DO JUSNATURALISMO AO POSITIVISMO JURÍDICO ............................. 72.1. Jusnaturalismo .................................................................................................... 7 2.1.1. John Mitchell Finnis .............................................................................. 172.2. Positivismo Jurídico .......................................................................................... 22 2.2.1. Ceticismo Ético ........................................................................................ 26 2.2.2. Positivismo Ideológico ............................................................................ 29 2.2.3. Formalismo Jurídico ............................................................................... 32 2.2.4. O Normativismo Jurídico de Hans Kelsen ........................................ 34 2.2.5. Positivismo Conceitual ou Metodológico ......................................... 39 2.2.5.1. Positivismo Inclusivista e Positivismo Exclusivista ....................... 42 2.2.6. John Austin ............................................................................................... 45 2.2.7. Herbert Hart ............................................................................................ 47 2.2.8. Joseph Raz ................................................................................................ 53

CAPíTulO 3NECESSIDADE DE IR ALÉM DO POSITIVISMO JURÍDICO ................... 563.1. Ronald Dworkin ............................................................................................... 613.2. Robert Alexy ....................................................................................................... 713.3. Ponto de chegada ou de começo? ................................................................... 78

CAPíTulO 4JEAN JACQUES DERRIDA- PORQUE DERRIDA? ..................................... 864.1. A “fundação mística do Direito” e a questão da violência ....................... 894.2. Desconstrução e Justiça ................................................................................... 99

VII

4.3. A Violência auto-repetidora do Direito e a Différance ............................... 1054.4. Análise do julgamento da Petição 3388/RR e do Recurso Ordinário em Mandado de Segurança n. 29.087/MS ..................................................... 1104.5. Democracia do Porvir ....................................................................................... 121

CONCLUSÃO .......................................................................................................... 130

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 139

Anexo a - A ................................................................................................................. 142

VIII

Prefácio

Temos assistido com enorme perplexidade aos acontecimentos políti-cos por que passa o Brasil nos últimos tempos. Um bombardeio de desco-bertas de um subterrâneo de crimes trouxe a luz as vísceras da política nacio-nal. Operações policiais com nomes os mais rocambolescos se sucedem nas telas de televisão. Meios de comunicação informam instantaneamente os fatos. Prisões preventivas, conduções coercitivas, acordos de leniência, cola-boração premiada se tornaram, de repente, expressões comuns do dia a dia.

De técnicos de futebol passamos todos a experts em Direito. Se antes sabíamos de cor os nomes da seleção brasileira de futebol, agora todos sa-bem os nomes dos Ministros de nossa Suprema Corte. Do arremesso de três pontos, para o agravo de instrumento; do saque no vôlei, para os embargos declaratórios; do salto carpado, para o habeas corpus.

Mas, nem tudo mudou: nos esportes, na política e agora no Direito nos tornamos meros torcedores! Direitos fundamentais são agora privilégios de alguns, os “humanos direitos”. As garantias constitucionais somente se apli-cam para os que abraçam as mesmas cores partidárias que abraçamos. Prisão para os adversários e votos de sucesso para meus companheiros.

Política, Moral e Direito assumiram diante das câmeras de Televisão e de celulares um caminho único. Indistintos. Um amálgama que atende casuistica-mente nossos gostos e preferências. Um retorno direto para um período arcaico no qual a lei do mais forte sempre prevalece. Pouco importando o quão bom possa ser o argumento, pois a força e a violência estão sempre prevalecendo.

Contudo, a força e a coerção também se mostraram insuficientes para a compreensão do fenômeno jurídico. O Direito se coloca sempre um passo adiante daquilo que aparentemente seria sua essência. Ele é mais do que me-ramente um conjunto de comandos mandamentais; ele é mais do que um conjunto de proposições que apresentam conectivos deônticos (é proibido, é autorizado); Ele é mais do que um conjunto de proposições implementa-das por uma ordem institucionalizada. Um conceito escorregadio que esta sempre a nos escapar.

IX

Nesse sentido, as duas principais correntes da Filosofia do Direito pa-recem perplexas e incapazes de dar conta desse fenômeno que nos acomete: Jusnaturalismo e o Positivismo Jurídico. E Priscila, na presente obra, assu-me exatamente o desiderato de atestar essa insuficiência, mostrando que o problema das mais variadas vertentes dessas correntes está quase sempre vinculada à percepção essencialista do conceito de Direito.

Uma versão que crê em suposições metafísicas que descreveriam um poder místico entre signo e significante, seja ele coisa ou um estado de coisas. O que transparece a substância da rosa nas quatro letras desse subs-tantivo? O que denota o direito de propriedade, entendida como um poder místico do homem sobre uma coisa?

O conceito de direito surge das mais diferentes visadas, tanto no jusna-turalismo quanto no positivismo, como um ser que simplesmente se apre-senta. Uma ocorrência que se dá pela consulta à letra do dicionário ou do Google. E, mesmo os avanços da Filosofia Analítica, assumidos por jusna-turalistas do escola de John Finnis e positivistas da estirpe de Hart e Raz, se mostra(ra)m incapazes de entender o porquê da violência transbordar do direito. Um transbordamento advindo não apenas da marginalidade de Estados arbitrários, mas também de Estados que procuram não estar à mar-gem da legitimidade.

Conceber a validade de um sistema jurídico constitui um esforço co-mum entre jusnaturalistas e positivistas. De um lado, o limite do direito seria a legitimidade daquilo que escapa à injustiça extrema, dirão os jusnaturalistas (Radbruch). De outro, o limite do direito impõe a conformidade com regras pressupostas (Kelsen), sociais de reconhecimento (Hart) ou de preemptividade normativa (Raz). Ambas as propostas buscam um limite que sempre nos dirá o que é válido, inclusive aquilo que faz legítima a violência. Todas teorias, cada uma a seu modo, concebem essa validade dentro de uma ordem jurídica legítima, que é ao mesmo tempo Estado de Direito e Estado Democrático.

Democracia surge também como um modelo no qual a regra da maio-ria se estabelece como matriz. Ela se torna a arena pela qual os dissensos razoáveis em torno da moral, da ética, da religião e da economia são resol-vidos pela maioria. E, deliberações majoritárias se tornam por um passe mágica aquilo que legitima o uso da violência. Ela assume uma condição de modelo regulador, jamais alcançado, mas sempre buscado pela modulação do que se entende por legítimo no Direito.

Validade do Direito e legitimidade da Autoridade – que formula e que aplica a norma – convergem sobre essa ideia reguladora. E, com ela, a com-preensão do código binário de inclusão (lícito) e da exclusão (ilícito).

X

Entretanto, essa violência analisada pelas teorias tradicionais do Direi-to vela um outro nível, uma outra dimensão de violência. Uma violência que é congênita ao Direito. Uma violência que exclui a possibilidade de rediscussão do Direito pela preclusão, pela coisa julgada ou pela decadência. Uma violência presente no descarte da tese perdedora da minoria. Uma vio-lência velada, ambígua, que se esconde no e pelo discurso de belas palavras, tais como justiça, ordem, Direito e Democracia.

Essa violência de que falamos é e ‘não é’ a violência que se apresenta na coa-ção. Ela está e não está presente na violência da legítima defesa. Não a violência que se apresenta no uso regular da força. O esforço de dizer sobre a legitimidade da violência esconde uma outra violência. Uma violência no Direito que não viola o Direito. Uma violência que antes de negar acaba por afirmar o Direito.

Uma violência que a ‘re-velação’ incomoda visceralmente, pois nos obriga reconhecer mais do que a violência no Direito, mas algo inteiramen-te novo: que o Direito é violência! Que não há Direito sem violência e que não há violência sem Direito.

Isso nos remete para a fábula de La Fontaine, O lobo e o Cordeiro. O segundo bebia água do córrego quando é surpreendido por um lobo, um pouco acima no curso do regato. Esse o questiona pelo absurdo de sujar sua água. O Cordeiro lhe responde que tal seria impossível, pois ele estava abaixo da correnteza. Sem se dar por satisfeito, o lobo insiste na alegação de ofensa afirmando que o Cordeiro o caluniara ano passado. E recebe como resposta o argumento de que a ofensa era impossível, pois o Cordeiro tinha apenas seis meses de idade. Não se dando por satisfeito, o Lobo disse que a calúnia partiu do irmão do cordeiro. Ao que recebe a informação de que ele era filho único. Já alterado, a fera disse que a ofensa partira ou do seu pai ou avó, melhor, que não importava mais a argumentação e o devorou.

Um dos mais interessantes filósofos da contemporaneidade, Jacques Derrida, faz uma interpretação única dessa história. Mais do que uma nova releitura, uma desconstrução de uma fábula de crianças capaz de mostrar que Jusnaturalistas e Positivistas não percebem que o Direito foi, é e será fundado por um ato de violência. Derrida atesta que a instituição do Di-reito se dá sempre por um ato de força física e/ou política que estabelecerá um plano normativo sempre favorável aos Senhores do Poder, o Soberano.

Para ele, a soberania não se marca pela capacidade de moldar a regra, mas fundamentalmente a de superá-la sempre que for da conveniência do Soberano. Maioria de votos ou bons argumentos jamais impedem o Sobera-no de se impor com, no e pelo Direito, assim como não impedem o Lobo de devorar o Cordeiro.

XI

E, sendo assim, a democracia assume sempre uma condição de promes-sa jamais cumprida. Um modelo regulador que nada regula. Um Direito cuja validade se esconde em uma legitimidade inexistente na Autoridade. Uma circularidade de validade e legitimidade sempre velada e nunca desve-lada. Uma denúncia aterradora para a clássica Teoria do Direito.

A chocante constatação de que sempre te(se)remos lobos ou cordeiros e de que essa relação não se “re-solve” não conduz o franco argelino a pos-turas cínicas (Carl Schmitt), apologéticas (de todos que preferem a postura do avestruz de ignorar a fábula e insistir no devaneio sonho de se alcançar o Graal kantiano de democracia) ou cético do pragmatismo. Seria possível pensar uma democracia que não fosse sonho/pesadelo? Será que podemos mostrar aos marxistas que o Lobo não desaparece pela ditadura do pro-letariado? Será que devemos andar sempre em círculos em busca de uma promessa liberal que não se realizará?

Nesse cipoal de dúvidas, Priscila encontra seu caminho no ‘rastro’ do ‘traço’ ‘diferAnte’ da ‘desconstrução’ de Derrida: a ‘democracia por vir’. Uma picada de luz nesse jogo de sombras. Um cantinho de sombra na luz cegante do logocentrismo. Claridade na e com a escuridão do traço de uma mulher que se põe na escrita da Fenomenologia.

Fenomenologia que atesta o valor novo, renovado e criador na e da reprodução do que já foi dito por alguém. A lição de uma escrita é sempre uma ‘re-escrita’. De que uma tradução é sempre uma criação. Ler Derrida é uma atitude possível. Mas, deixar de ler a releitura de Priscila, um pecado, pois seu ‘recado’, nessa obra, traz o novo da arena brasileira no século XXI.

A promessa da novidade já se cumpre na obra pelo esforço de ir além das pegadas na floresta (jus)natural. A promessa da imitação que forja pela nega-ção positiva(ista) do que sempre se repete. Há uma ‘democracie à avenir”? Il y a uma “democracy to come”? ‘There is’ uma democracia por vir? Se soubesse te diria? Mas se te dissesse a antecipação seria legítima ou mais uma promessa não cumprida? Melhor seguir com Priscila. Melhor a urgente leitura da escrita de “Jurisdição Diferante: o embate entre violência e justiça na democracia”.

ÁLVARO RICARDO DE SOUZA CRUZProcurador da República em Minas Gerais. Mestre em Direito Econô-mico e Doutor em Direito Constitucional. Pós-Doutor em História. Professor da Graduação e da Pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Vice-presidente do Instituto Mineiro de Direi-to Constitucional. Membro do Instituto de Hermenêutica Jurídica (IHJ).

XII

APresentAção

Nem tudo que reluz...vermelho paz e branco sangue

A folha em branco e nela todas as hipóteses. Junto da folha em branco, o convite, o chamado de Priscila Zhouri. Junto do chamado, do convite, uma sorte de possibilidades abre-se. O outro, a outra, estão logo ali, logo aqui. É sempre aquele e aquela que “me passam à frente”, solicitam-me a mim en-quanto nele guardam todo o segredo. O que haveria por detrás desse convite que agora colore esta página, que em verdade, nunca foi branca? O branco, a cor branca, o branco dos olhos. O branco da luz. O branco da cegueira de Sa-ramago. O branco entre o ponto final e o que restaria por vir. O manto bran-co de Jesus. O branco que designa opressão. O branco que domina as cores. O branco que é ausência de cor, soma de todas as cores. O branco soberano. O branco que me afeta agora, no silêncio branco que se abriu após o convite. O espaço em branco. O branco que está ali, sem estar, como condição de todas as coisas, em palavras derridianas de “quem quer que seja” (“quiconque”). À espera do que vem, daquilo que vem. O branco que é a paz dentro de uma cer-ta tradição cristã. Mas o branco que também é luto dentro do hinduísmo. O branco que é herança portanto. O branco que também é rendição. O branco que evoca a pomba da paz, que como o lobo, lembrado já no prefácio, chegam sempre sem se deixarem notar, passos brancos. Uma trazendo a paz o outro anunciando o próprio embate, a guerra.

Mas estávamos a dizer que Priscila Zhouri nos honrou com seu convite, e se falamos do branco, foi também para dizer que sua escrita, seu texto, é uma mostra interessante de uma dupla obrigação que assume a democracia por vir que ela trabalha a partir de Derrida. Priscila Zhouri atende ao que fala Derrida quando diz dessa democracia que está aqui, porém sempre a reclamar o que vem, reclamada pelo que vem, obsediada pelo que vem; ela atende ao reclame da desconstrução, herda enquanto cria, deixa-se ouvir, deixa vir – Priscila je suis, para não perdermos a hipótese da quase tradução com que Derrida joga em vários momentos mas de maneira especial em “L’animal que dane je suis”

XIII

e que indica a lembrarmos que “je suis” em francês é a primeira pessoa do pre-sente do indicativo do verbo “être”, ser, e do verbo “suivre”, seguir. E daí que a autora atende às noções derridianas e trabalha o problema da metafísica da presença, emoldura-se através do texto e o texto devolve-a enquanto outra. Isso nos conta em suas conclusões: “Há algo de estranho, algo que parece mover--se no interior das páginas desse livro, algo como a bipolaridade de alguém que passo a passo constrói um edifício, para, ao final, demoli-lo. Será que foi demolido? Foi isto que este trabalho es propôs a fazer? Se a resposta do leitor for afirmativa, a desconstrução não aconteceu.”

E haveria maneira de efetivarmos essa cisão, esse corte, essa separação entre autor e obra? Entre sujeito e objeto? Priscila percorreu as mais diversas referências do pensamento jurídico de um certo ocidente para talvez respon-der que não. O não é uma figura do branco, ou é sem razão que as pessoas dizem: “não há cor, a parede está em branco”. Mas o branco são todas as cores não é mesmo? Quando Priscila parte dos confins do pensamento jurídico apresentando os mais variados fundamentos das escolas as mais diversas, quem poderia esperar – porém, há sempre as apresentações, deveria não dizer, calar-me em branco silêncio – que ela nos brindaria ainda com uma hipótese que vem? Se os alicerces estavam ali tão claros, em “brancas nuvens”, desde os Estóicos, passando por Platão, Aristóteles, não deixan-do de fora o pensamento medieval e na “modernidade” tudo aquilo que se chamou jusracionalismo, ou como prefere a autora, “jusnaturalismo de cunho racionalista”; lidou ainda coma chamada New School of Nature Law, apresentada a partir de John M. Finnis e trouxe ao branco de suas páginas as várias matrizes do positivismo jurídico, não se esquecendo de lançar seus olhos ainda sobre Dworkin e Alexy.

Mas quem poderia imaginar? A imaginação também é um jeito de lin-guagem. Priscila nos faz imaginar o que ainda restaria daquilo que restou dito. E para isso ela questiona em um dos capítulos do livro: “Jean Jacques Derrida – Porque Derrida?” Eu não me atreveria a discutir essa questão, a questão do nome, do nome próprio, da interjeição lançada, mas sugiro que o leitor se deixe atender. A resposta que Priscila aduz é ao mesmo tempo um convite e uma obrigação. Por isso Priscila je suis, ela é/segue o comando que conduz seu pensamento: deixa vir o que vem, abre os flancos e apresenta-nos uma democracia por vir, aposta nela, com toda esperança e desconfiança com que apostamos em todo por vir, em tudo aquilo que está entre uma promessa e uma espera.

Esse trabalho, como a democracia por vir, guarda um segredo, ele aponta, indica, envolvendo-se na indicação e com ela se confundindo.

XIV

O branco é mesmo uma miríade de possibilidades. Sem contar que a Priscila, e foi a primeira vez que usei o artigo definido “a” que significa tanto para um trabalho que cuida do termo différance. A Priscila, dizia eu nesta apresentação, e mais uma vez nos complicamos, pois o “a” tam-bém é negação, das cores? O “a”, ausência, branco, que nos abre a todas as cores, a toda a “escritura”. Como é difícil me desvencilhar da Priscila agora que estou/sou/sigo n(a) apresentação. Apresentar uma ação talvez seja não aparecer. É hora de irmos. Alguma vez estivemos aqui? Ou ainda caberia sussurrar em brancas palavras sobre aqueles índios que foram objeto de discussão no trabalho e que mancham a brancura do branco do manto que envolve o soberano? O “soberano tribunal da federação”? A Priscila não deixou de estar nesse branco quando mostrou-nos suas faces. Talvez em alguns momentos ela tenha aproximado algumas certezas do vermelho, que teria outras tantas voltas mas que deixamos aqui apenas como provocação, apesar de sabermos que o soberano tem a condição da mutação - ele pode fazer da vergonha sangue. A desconstrução ao aconte-cer no direito mostra isso.

Deixemos de cores tantas e tantas voltas. Só não deixemos de agradecer à Priscila pelo convite, também de nos desculparmos por tantas cores, con-tudo, se há aqui algo que precisa ser dito, é que a obra requer uma leitura aberta às cores que vem, elas serão sempre outras, e nisso consiste nossa es-perança e nosso convite para quem chega, mesmo que nem sempre o branco seja paz e o vermelho sangue:

Branco e Vermelho

A dor, forte e imprevista, Ferindo-me, imprevista,

De branca e de imprevista Foi um deslumbramento, Que me endoidou a vista,

Fez-me perder a vista, Fez-me fugir a vista,

Num doce esvaimento. Como um deserto imenso,

Branco deserto imenso, Resplandecente e imenso, Fez-se em redor de mim.

XV

Todo o meu ser, suspenso, Não sinto já, não penso, Pairo na luz, suspenso...

Que delícia sem fim! Na inundação da luz

Banhando os céus a flux, No êxtase da luz,

Vejo passar, desfila (Seus pobres corpos nus

Que a distancia reduz, Amesquinha e reduz No fundo da pupila)

Na areia imensa e plana Ao longe a caravana Sem fim, a caravana

Na linha do horizonte Da enorme dor humana, Da insigne dor humana...

A inútil dor humana! Marcha, curvada a fronte.

Até o chão, curvados, Exaustos e curvados,

Vão um a um, curvados, Escravos condenados, No poente recortados, Em negro recortados,

Magros, mesquinhos, vis. A cada golpe tremem

Os que de medo tremem, E as pálpebras me tremem

Quando o açoite vibra. Estala! e apenas gemem,

Palidamente gemem,

A cada golpe gemem, Que os desequilibra.

Sob o açoite caem, A cada golpe caem,

Erguem-se logo. Caem,

XVI

Soergue-os o terror... Até que enfim desmaiem,

Por uma vez desmaiem! Ei-los que enfim se esvaem,

Vencida, enfim, a dor... E ali fiquem serenos, De costas e serenos.

Beije-os a luz, serenos, Nas amplas frontes calmas.

Ó céus claros e amenos, Doces jardins amenos, Onde se sofre menos,

Onde dormem as almas! A dor, deserto imenso,

Branco deserto imenso, Resplandecente e imenso, Foi um deslumbramento. Todo o meu ser suspenso,

Não sinto já, não penso, Pairo na luz, suspenso

Num doce esvaimento. Ó morte, vem depressa,

Acorda, vem depressa, Acode-me depressa,

Vem-me enxugar o suor, Que o estertor começa. É cumprir a promessa.

Já o sonho começa... Tudo vermelho em flor...

Camilo Pessanha, in ‘Clepsidra’

Coimbra, primavera, 2017.

BERNARDO G.B. NOGUEIRAProfessor da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coim-bra. Doutorando em Teoria do Direito na PUC/MG.