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UMA LEITURA CONCEITUAL DA ESCRAVIDÃO E DAS DINÂMICAS DE MESTIÇAGENS SOB A PERPECTIVA DA HISTÓRIA CULTURAL Juliana Sabino Simonato Doutoranda em História Social da Cultura (Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG) [email protected] Bolsista da Fundação de Amparo a Pesquisa do Espírito Santo (FAPES) Resumo A presente proposta tem como objetivo apresentar uma reflexão sobre a temática da escravidão e das "dinâmicas de mestiçagens" no contexto territorial ibero-americano, durante o período colonial, sob o viés de análise da História Cultural. Os aspectos teórico-metodológicos utilizados para subsidiar a observação das fontes e a construção dos argumentos, terão como eixo uma perspectiva de comparações e conexões históricas. Dessa forma, ao analisar nuances do cotidiano das sociedades escravistas da Capitania do Espírito Santo, por meio de documentos manuscritos, contrapondo-as com outros espaços no mundo, estabelecendo diferenciações e similitudes, pretende-se contribuir para o diálogo e a reflexão sobre a História Cultural da Escravidão. Palavras-chave: Escravidão, Dinâmicas de Mestiçagens, História Cultural, História Conectada, História Comparada. Introdução A História Cultural pode ser definida como o campo do conhecimento historiográfico perpassado pelo conceito de Cultura. No entanto, faz-se necessário ressaltar que a noção de Cultura está marcadamente envolta em uma polissemia lexical. Ou seja, no decorrer do século XX, ocorreram novas redefinições e foram apresentadas novas abordagens conceituais que alteraram o viés teórico-metodológico de análise dos historiadores em relação à postura analítica que predominava no século XIX, fato que proporcionou a ampliação do espaço de investigação no âmbito cultural. A noção de cultura operacionalizada pelos historiadores do Oitocentos esteve restrita a aspectos elitizantes, tanto dos sujeitos como dos objetos de estudo. Durante esse período, os historiadores não se preocuparam em analisar e entender as manifestações culturais expressas por meio da cultura popular, tão pouco tinham a percepção de que os objetos materiais produzidos pelo homem estavam inseridos no conceito de cultura, mais precisamente formavam o que denominamos cultura material. Ademais, aspectos relacionados ao cotidiano não eram vislumbrados como aspectos culturais. Nessa perspectiva restritiva, a produção cultural estaria associada à ideia da necessidade de uma formação específica, como artista ou intelectual, para

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UMA LEITURA CONCEITUAL DA ESCRAVIDÃO E DAS DINÂMICAS DE

MESTIÇAGENS SOB A PERPECTIVA DA HISTÓRIA CULTURAL

Juliana Sabino Simonato

Doutoranda em História Social da Cultura

(Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG)

[email protected]

Bolsista da Fundação de Amparo a Pesquisa do Espírito Santo (FAPES)

Resumo

A presente proposta tem como objetivo apresentar uma reflexão sobre a temática da escravidão

e das "dinâmicas de mestiçagens" no contexto territorial ibero-americano, durante o período

colonial, sob o viés de análise da História Cultural. Os aspectos teórico-metodológicos

utilizados para subsidiar a observação das fontes e a construção dos argumentos, terão como

eixo uma perspectiva de comparações e conexões históricas. Dessa forma, ao analisar nuances

do cotidiano das sociedades escravistas da Capitania do Espírito Santo, por meio de documentos

manuscritos, contrapondo-as com outros espaços no mundo, estabelecendo diferenciações e

similitudes, pretende-se contribuir para o diálogo e a reflexão sobre a História Cultural da

Escravidão.

Palavras-chave: Escravidão, Dinâmicas de Mestiçagens, História Cultural, História Conectada,

História Comparada.

Introdução

A História Cultural pode ser definida como o campo do conhecimento historiográfico

perpassado pelo conceito de Cultura. No entanto, faz-se necessário ressaltar que a noção de

Cultura está marcadamente envolta em uma polissemia lexical. Ou seja, no decorrer do século

XX, ocorreram novas redefinições e foram apresentadas novas abordagens conceituais que

alteraram o viés teórico-metodológico de análise dos historiadores em relação à postura

analítica que predominava no século XIX, fato que proporcionou a ampliação do espaço de

investigação no âmbito cultural.

A noção de cultura operacionalizada pelos historiadores do Oitocentos esteve restrita a

aspectos elitizantes, tanto dos sujeitos como dos objetos de estudo. Durante esse período, os

historiadores não se preocuparam em analisar e entender as manifestações culturais expressas

por meio da cultura popular, tão pouco tinham a percepção de que os objetos materiais

produzidos pelo homem estavam inseridos no conceito de cultura, mais precisamente formavam

o que denominamos cultura material. Ademais, aspectos relacionados ao cotidiano não eram

vislumbrados como aspectos culturais. Nessa perspectiva restritiva, a produção cultural estaria

associada à ideia da necessidade de uma formação específica, como artista ou intelectual, para

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a classificação do indivíduo em sujeito cultural. No entanto, a noção de cultura, ao longo da

produção historiográfica do século XX, demonstrou algo inverso: todo ser humano, ao realizar

suas práticas costumeiras, no seu fazer cotidiano, produz cultura.

Ao deixar de reconhecer aspectos fundamentais, como os citados no parágrafo anterior,

a História Cultural em seus primórdios negligenciou a complexidade da noção básica de sua

gênese, por ela mais tarde revisitada com a contribuição da Antropologia 1 . importante

ressaltar que esses aspectos culturais elitistas continuaram compondo o campo de observação

dessa vertente historiográfica, todavia o conceito de cultura foi alargado, permitindo a

verificação de outros aspectos multifacetados da sociedade.

Outra transformação relevante na análise conceitual foi a incorporação do entendimento

da cultural também como processo comunicativo, e não como a simples totalidade de bens

produzidos pelo indivíduo.

Esses avanços teórico-metodológicos possibilitaram que a noção de cultura fosse

constituída num universo de abrangência da História Cultural caracterizado por elementos

como a linguagem (comunicação), representações e práticas (práticas culturais realizadas por

seres humanos em relação uns com os outros e na sua relação com o mundo)2.

Dessa forma, a História Cultural, repensada ao longo do século XX, interessou-se pelos

sujeitos produtores e receptores de cultura. Além disso, passou-se a estudar os meios pelos quais

essa se produz e se transmite: as práticas e os processos. Ao fim e ao cabo, tal análise interessa-

se pela própria matéria-prima de seu fazer historiográfico: os padrões que estão inseridos nos

objetos culturais produzidos.

Torna-se importante ressaltar que a abordagem da História Cultural deve estabelecer um

diálogo com todas as dimensões da realidade histórica, passando por aspectos econômicos,

políticos, religiosos, biológicos, de representação, entre outros, para que a produção da narrativa

historiográfica seja a mais próxima da real reconstituição dos fatos.

1 Para os antropólogos, a cultura pode ser lida em vários níveis. No primeiro deles, compreende características de

comportamento que são exclusivas dos seres humanos em relação a outras espécies. Também traz consigo a noção

de comportamento aprendido e ensinado, em vez de instintivo. Num segundo nível, refere-se à capacidade humana

para gerar comportamentos e especialmente à capacidade da mente humana de gerar uma quase infinita

flexibilidade de reações, através de seu potencial simbólico e linguístico. Por isso, recentes interpretações de

cultura enfatizam a fonte cognitiva do comportamento humano. 2 Roger Chartier contribuiu de forma decisiva para a elaboração das noções complementares sobre representações

e práticas culturais instrumentalizadas pela História da Cultura. De acordo com seus argumentos a cultura (ou as

diversas formações culturais) poderia se examinada no âmbito produzido pela relação desses dois polos. Tanto os

objetos culturais seriam produzidos entre práticas e representações como os sujeitos produtores e receptores de

cultura circulariam entre esses dois polos, que certo modo corresponderiam, respectivamente, ao modo de fazer e

ao modo de ver. Duas noções que atualmente são imprescindíveis ao historiador da cultura.

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Em consonância com esses aspectos teórico-metodológicos, o presente artigo se propõe

discutir a temática da escravidão e o conceito de dinâmicas de mestiçagens numa perspectiva

cultural.

A análise das nuances relacionadas ao cotidiano das sociedades escravistas no universo

colonial, mormente do Espírito Santo, por meio de documentos manuscritos, numa abordagem

comparada com outros espaços no mundo, estabelecendo diferenciações e similitudes, no

intuito de verificar a existência de conexões históricas que interligam os circuitos mundiais da

escravidão, pretende contribuir para o diálogo, a reflexão e a produção de uma História Cultural

da Escravidão.

Desenvolvimento

A introdução de novas ideias e problematizações no decorrer do século XX levou os

historiadores a enriquecerem o campo teórico e metodológico de sua área de estudo. Em

decorrência da impossibilidade de examinarmos, no limite de espaço de que dispomos para esta

reflexão, as diversas correntes e abordagens que hoje atravessam o campo da História Cultural,

examinaremos uma única dessas correntes. O campo de estudos de História Cultural sobre o

qual nos debruçamos para analisar, com maior riqueza de detalhes, aspectos historiográficos

temáticos e conceituais, é aquele que se desenvolveu em torno de um grupo de historiadores

franceses que tem dois de seus principais representantes: Roger Chartier e Michel de Certeau.

Essa corrente historiográfica destacou-se a partir da construção de novos conceitos,

dentre os quais destacamos os de práticas e representações, consagrados nos estudos de Roger

Chartier sobre a história da leitura e suas considerações sobre teoria da História (CHARTIER,

1990, 1999, 2001 e 2002).

As noções de construção cultural e de apropriação cultural a partir das próprias

representações que interferem na realidade, construindo-a e desconstruindo-a, foram

estabelecidas principalmente por Michel De Certeau, ao estudar a reutilização e a (re)invenção

do cotidiano a partir das escolhas dos sujeitos e suas relações com a cultura material existente

em determinados contextos históricos (DE CERTEAU, 2000/2002, 2002, 2005). Tais ideias e

trabalhos fomentaram o debate sobre a “construção cultural” de conceitos como: classe, gênero,

comunidade, identidade, e de práticas como “(re)invenção” de tradições. Dessa forma, os

historiadores passaram a enxergar os estudos das práticas dos grupos sociais como

problematizações possíveis e não como premissas fechadas sobre temas históricos, ampliando,

assim, as condições de interpretação das ações e motivações dos sujeitos históricos.

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Consideramos também relevante salientar que toda essa efervescência teórica e

metodológica levou ao debate sobre a narrativa na História, suas estratégias discursivas e a

legitimidade da própria produção do conhecimento histórico, com o reconhecimento de

trabalhos de autores destacados como Hayden White, Laurence Stone e Peter Burke. Bem como

ao desenvolvimento de outras discussões importantes sobre memória e identidades, ampliando-

se os campos de estudo da História, com destaque, por exemplo, para a Nova História Política

e a História Oral (BURKE, 1992, 2002, 2005).

Na abertura dessas perspectivas teóricas e temáticas ligadas ao campo da História

Cultural foram e estão sendo desenvolvidos inúmeros trabalhos em todo o mundo e também no

Brasil que tem renovado a historiografia e o esforço sempre urgente de compreensão da atuação

e das demandas de novos sujeitos históricos em nossa sociedade.

Na década de 1980 foi quando surgiram alguns espaços iniciais de produção intelectual

brasileira. Posteriormente, essa produção se generalizou pelo Brasil com a ampliação dos

Programas de Pós-Graduação de Universidades Federais.

Em São Paulo, os polos dessas atividades foram principalmente a Universidade de São

Paulo (USP) e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

No âmbito da USP, destacaram-se os trabalhos da Laura de Mello e Souza sobre

feitiçaria nos tempos coloniais a partir dos processos da Inquisição (SOUZA, 1986); os de Mary

Del Priori sobre história das mulheres, da infância, das festas, do cotidiano no período colonial

(DEL PRIORI, 2000, 2001); os de Nicolau Sevcenko sobre história e literatura, cultura e

cotidiano no século XX (SEVCENKO, 1992, 2001, 2003); os de Elias Thomé Saliba sobre a

dimensão cômica da vida republicana (SALIBA, 2002); e os de Fernando Novais, que migrou

da História Econômica para os temas relacionados ao cotidiano e à vida privada (NOVAIS,

1997, 1998).

Na Unicamp, surgiram os trabalhos de Margareth Rago sobre a vida cotidiana e a

disciplinarização dos proletários e suas famílias, dos pobres e dos marginalizados em São Paulo,

por meio de jornais operários, entre outros documentos (RAGO, 1985). Mas, os trabalhos que

se destacaram foram os de Sidney Chalhoub sobre o cotidiano dos trabalhadores do Rio de

Janeiro em seus espaços de trabalho e de sociabilidade, como a fábrica, o lar, o botequim, as

habitações populares, as doenças; sobre a vida cotidiana dos escravizados nas últimas décadas

da escravidão; e sobre as relações entre história e literatura. (CHALHOUB, 1990, 1997, 2003a,

2003b, 2005).

No Rio de Janeiro, no âmbito das Universidades Federais, consolidaram-se os trabalhos

de Francisco Falcon, com papel de certa forma semelhante ao de Novais em São Paulo, pois

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deslocou seus estudos do campo da História das Ideias para o da História Cultural, atendo-se às

outras dimensões da cultura e do cotidiano. Nessa esteira, surgiram os trabalhos de Ronaldo

Vainfas, Ciro Flamarion Cardoso, Magali Engel, Rachel Soihet e Fernanda Bicalho, entre outros

(CARDOSO; VAINFAS, 1997).

Em outros espaços do Brasil, além do eixo Rio-São Paulo, surgiram outros estudos de

destaque, de historiadores brasileiros que buscaram inspiração nas trajetórias da História

Cultural, com a leitura e releitura de autores ligados a essa corrente historiográfica.

Ademais, tornaram-se referência as pesquisas de vários outros autores sobre família,

vida doméstica, relações de gênero. Somam-se ainda os trabalhos de outros historiadores que

redimensionaram os estudos sobre a escravidão no Brasil, a partir do estudo das relações entre

senhores e escravos. Nesse campo específico, podemos citar trabalhos como o de Eduardo

França Paiva (PAIVA, 2006), mormente suas reflexões sobre a sociedade mineira, em particular

as relações escravistas engendradas em seu universo colonial.

Uma análise do conjunto desses trabalhos acaba por demonstrar como o foco sobre a

cultura, a civilização e os costumes trouxe a emergência de novos temas e sujeitos da História,

com destaque para amplas abordagens sobre o cotidiano de vários grupos sociais pertencentes

ao mundo do trabalho, antes excluídos dos estudos históricos.

Nesse sentido, a abordagem da História Cultural nos favorece com um conceito de

cultura cada vez mais relacionado com “dinâmica”, e também como uma categoria classificada

como “internamente diversificada”. Os atores sociais são compreendidos como capazes de

circularem entre diversas alternativas, ou de se utilizarem criativamente de um variado

repertório de possibilidades culturais.

O dinamismo cultural é perceptível por meio do uso não apenas dos novos conceitos

como também de novas metáforas e maneiras de sentir os sistemas culturais. Das “regras

culturais” de um sistema, das quais tanto se falava em décadas anteriores em que predominava

a abordagem estruturalista, passam a ser preferidas expressões normalmente empregadas por

Pierre Bourdieu, como “performances”, “habitus”, e outras que coloquem em cena a mobilidade

dos atores, o dinamismo de suas práticas, sua capacidade de desempenharem distintos papéis

no universo cultural.

O advento de fenômenos mais amplos, como a globalização e a pulverização pós-

moderna de identidades, tem permitido que se veja, a partir de uma perspectiva móvel, o aspecto

relativo ao conceito de Identidade Cultural.

As “identidades fluidas” começam a ser sistematicamente investigadas pelos

historiadores como consequência do fato de que o mundo moderno impõe que os diversos seres

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humanos participem simultaneamente de vários grupos, além de seu desempenho cotidiano em

diversos papéis sociais.

O caráter de “construção” das identidades também tem sido bastante estudado.

Realidades que já foram tidas como dadas e definitivamente estabelecidas – como os gêneros

sexuais, as etnias, as nacionalidades, e diversos outros sistemas de pertencimento – são agora

vistas como inventadas. A quantidade de obras recentes que falam em “invenção” ou

“construção” de alguma realidade social ou cultural é bastante sintomática desta nova abertura

de reflexões.

Em decorrência dessa efervescência da História Cultural, podemos perceber uma

diversificação dos domínios temáticos, como a História da Guerra, a História Urbana, a História

da Religião, História da Escravidão, e tantas outras abordagens. Nessa perspectiva, a cultura

surge como resposta eficaz ao entendimento do fato político, econômico ou social. A

interpenetração do cultural está intrinsecamente relacionada à análise historiográfica de outros

segmentos da sociedade, demonstrando que, cada vez mais, torna-se necessária a compreensão

de diferentes objetos, sejam eles, por exemplo, políticos ou econômicos, para que se consiga

construir uma narrativa histórica sob nova perspectiva cultural, mais rica e mais complexa.

No intuito de melhor demonstrar a importância dessa conexão entre as abordagens

culturais e políticas ou econômicas em um domínio escolhido, utilizaremo-nos da temática

relacionada à violência, entendida tanto nas formas organizadas de violência como as desordens

espontâneas dos motins, distúrbios e linchamentos, que são narrativas produzidas e inseridas na

corrente historiográfica da “História da Guerra”. Nessa vertente analítica, a guerra e os

confrontos militares não serão observados sob a ótica tradicional do fenômeno político, mas,

sobretudo, considerado como uma manifestação cultural.

Dessa forma, os padrões culturais relativos à guerra serão tangenciados pelo olhar do

historiador que se debruça sobre o tema. As categorias de análise vislumbradas para o

entendimento do contexto serão: a forma como se guerreia, o sistema de trocas materiais e

culturais que a guerra propicia, o estilo e o artefato guerreiro como formas simbólicas.

Ao historicizar os aspectos culturais de uma determinada sociedade, o historiador

começa a visualizar o emergir de um novo universo que começa enxergar a partir da

historiografia cultural da guerra. A mudança do campo de observação permite a produção de

uma historiografia que já não examina mais os castelos e fortalezas de um ponto de vista

exclusivamente defensivo, para evocar também a sua dimensão simbólica, ostentatória,

imaginária. O exercício teórico-metodológico possibilita o surgimento de reflexões

socioculturais sobre o papel da guerra na reorganização demográfica e social, oferecendo saídas

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para grupos de indivíduos que não encontram lugar definido na estabilidade do sistema social.

Tal concepção metodológica, que estabelece uma estreita conexão entre o social e o

cultural, permite a elaboração de diversos argumentos explicativos em relação a vários

fenômenos, dentre eles: a emergência dos cavaleiros andantes na Idade Média, os samurais no

Japão, ou mesmo a ocorrência de um determinado perfil social entre os conquistadores

espanhóis e portugueses que se lançaram à aventura ultramarina nos primeiros séculos do

período moderno.

A guerra já não pode ser vislumbrada como uma mera expressão política, mas como

uma prática cultural. Na verdade, ela própria produz cultura, cria imagens, estabelece

identidades, elabora metáforas que serão por vezes fundamentais às próprias sustentações dos

regimes políticos.

Por isso, a História Cultural tem permitido o desenvolvimento de um novo olhar sobre

objetos que, ao longo de décadas, haviam sido beneficiados como um tratamento historiográfico

estritamente econômico, político ou demográfico.

A abordagem cultural tem permitido, cada vez mais, que o campo historiográfico esteja

aberto a novas conexões, com outras modalidades historiográficas e outros campos de saber, ao

mesmo tempo em que tem proporcionado aos historiadores um rico espaço para a formulação

conceitual. Faz-se necessário ressaltar que sua expansão, por conseguinte, vai muito além dos

objetos e processos habitualmente tidos por culturais.

Nesse sentido, dentro dos limites impostos pelo artigo, nos propomos a realizar um

exercício conceitual sobre a análise da temática da escravidão e das dinâmicas de mestiçagens,

sob um viés propiciado pela História Cultural, objetivando um redirecionamento do olhar do

historiador sobre esse objeto de estudo.

Consideramos os avanços da produção historiográfica sobre a temática, contudo não

podemos deixar de ressaltar que algumas análises produzidas caracterizam-se por

simplificações e generalizações empobrecedoras das realidades vividas por todos aqueles

agentes históricos que estiveram submetidos, na condição cativa, durante o escravismo

moderno.

Essas interpretações, muitas vezes equivocadas e anacrônicas, produzidas sem

historicidade e temporalidade, são frutos de argumentos forjados ao final do escravismo, no

século XIX, por pessoas, inclusive intelectuais ligados ao movimento abolicionista, que

acabaram por distorcer a escravidão, e suas complexidades culturais, para atender seus

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interesses e ideais. A aplicação de conceitos, como o “cor”, “qualidades” e “condições”,

passaram a ser utilizados nesse momento histórico, como símbolos de distinção, mas não se

respaldavam simplesmente na diferenciação na cor da pele, ou seja, na reducionista dicotomia

negros e brancos conformada no Oitocentos.

A proposta do artigo é provocar uma verticalização da análise sobre o tema, por meio

da revisitação de fontes relacionadas à escravidão, com o uso do aporte teórico e avanços

metodológicos proporcionados pelos estudos desenvolvidos, ao longo dos últimos 30 anos, que

possibilitaram a produção de livros. A leitura das contribuições analíticas existentes pode

contribuir para a revisão do olhar histórico sobre as fontes manuscritas, e até mesmo a utilização

de outras, por vezes esquecidas pelos historiadores, como as iconográficas.

Em decorrência da complexidade do assunto referente à história dos africanos e o mundo

do trabalho, para realizarmos o pretendido no artigo, optamos por fazer um recorte temático

que abarcará as discussões sobre as questões relativas aos negros e aos mestiços libertos na

sociedade ibero-americana.

A proposta consiste em analisar aspectos comparativos do cotidiano vivenciado por

esses sujeitos históricos, de qualidades (negros e mestiços) e condições (escravos, livres e

libertos) diversificadas que viveram na América portuguesa e na América Espanhola durante os

séculos XVII, XVIII e XIX.

Consideramos que as dimensões espaciais e temporais anteriormente circunscritas são,

de certa maneira, muito amplas e a realização de tal tarefa demonstra-se como uma atividade

audaciosa. No entanto, parece-nos não ser a tarefa impossível quando selecionamos

metodologias de pesquisa e conceitos que nos permitirão analisar, refletir e elaborar argumentos

extensos, mas sem incorrer no risco de realizar grandes generalizações e de criação de contextos

históricos inexistentes, prática de uma antiga história comparada e pautada em modelos

históricos ideais.

A história comparada proposta nesse exercício teórico-metodológico envolve a

operacionalização de dois ou mais objetos de análise, observados em suas historicidades e

temporalidades. O objetivo não é tornarem iguais os elementos selecionados para a comparação.

Nesse sentido, a analogia nos servirá para indicar e abordar as similitudes entre sociedades,

história e cultura, bem como identificar padrões de distinção. As comparações são importantes,

e, com certeza, inevitáveis, por revelarem o intenso trânsito de pessoas, costumes, valores,

tradições e outros aspectos culturais relevantes, possibilitando a transposição de universos

culturais entre as quatro partes do mundo.

O propósito do artigo, além de exercitar as comparações de territórios e territorialidades

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ibero-americanas, se propõe também a operacionalizar conceitos que nos permitem realizar

conexões históricas, que podem ser definidas como as inter-relações que se dão entre contextos,

ideias e crenças, práticas, formas de organização religiosas e étnicas, conformando relações

inter e intragrupos e culturas. Este movimento no eixo de reflexão será relevante para que

possamos pensar as circulações, os trânsitos, os circuitos, a mobilidade e as dinâmicas de

mestiçagens numa abordagem de análise global (REVEL, 2010).

Essa vertente historiográfica, defendida pelo historiador indiano Sanjay Subrahmanyam,

pode contribuir para uma reflexão teórico-metodológica, que se contrapõe ao modelo

eurocêntrico da História, ao demonstrar a relevância de cada cultura na formação da sociedade

moderna, sobretudo porque nenhum grupo humano foi apenas influenciado culturalmente, sem

que houvesse trocas e mesclas. A presença de léxicos, nas diversas partes do mundo, demonstra

que não houve simples sobreposição, imposta ou incutida cotidianamente, de tradições culturais

da Europa sobre os demais espaços mundiais. Além disso, através dessa perspectiva é possível

reinventar as interpretações geográficas globais, considerando as transformações que se davam

através das suas histórias conectadas (SUBRAHMANYAM , 1997).

Em consonância com essa corrente historiográfica, Serge Gruzinski, em seus estudos

sobre a colonização da América Espanhola, provoca o historiador a construir uma narrativa em

proporções planetárias, mediante a possibilidade de elaboração de diversos itinerários pelos

quais transitam os atores sociais, principalmente aqueles denominados pelo pesquisador francês

como passeaur culturels3. A reconstrução desses trânsitos e a sua amplitude podem nos revelar

a identificação de manifestações de mesclas e misturas culturais.

Na perspectiva de não reproduzir antigos e novos erros, procuraremos apresentar

algumas reflexões sobre os temas, escravidão e dinâmicas de mestiçagens, de forma

comparativa, no entanto com a preocupação de estabelecer conexões entre os mundos ibéricos,

para tanto nos utilizaremos de uma escala de observação global, ampliando-se o campo de visão,

alargando-o numa perspectiva de macro-história, mas sem esquecer as questões microscopias

relativas às particularidades locais.

No intuito de dar início às discussões sobre o assunto relacionadas aos libertos e

mestiços na região ibero-americana, propomos uma reflexão a respeito da existência de uma

3 Para Gruzinski o termo “passeaur' é utilizado para classificar os agentes da miscigenação, tanto biológica como

cultural, entre distintas sociedades. Nesse sentido, o 'passeaur culturels” poderia ser traduzido como mediador

cultural, ou seja, indivíduos ou objetos que seriam capazes de aproximar hábitos, práticas, conhecimentos,

fazendo-os se misturar, e que ao se engendrarem, ofereçam condições para que desse processo surjam novos

significados, novas funções. A ideia de produção de mestiçagens perpassa por esses indivíduos que primam por

serem catalisadores e ativam dispositivos, tanto biológicos como culturais, em suas passagens pelo mundo

(GRUZINSKI, 2003).

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legislação específica que garantisse visibilidade jurídica a esses indivíduos.

De acordo com Maurício Valiente Ots (2008-2009), o Direito indiano, de origem

castelhana, não garantiu, ao longo de todo processo de colonização, a existência de mecanismos

que permitissem a inserção dos libertos, de origem africana e mestiços, na organização de sua

estrutura político administrativa. Os negros, mulatos e zambos4 libertos estavam numa posição

de submissão aos espanhóis, como determinou a Recopilação das Leis dos Reinos das Índias

(1680-1681).

Em contrapartida, com relação aos índios, foram adotadas medidas protetivas que

resguardavam a segurança jurídica desses sujeitos históricos, acontecimento que deu origem a

uma conformação administrativa denominada de República dos Índios, organizada em separado

da espanhola, mas unida sob a autoridade comum da Coroa.

Essa situação desigual entre as categorias sociais existentes nesse contexto histórico

levam-nos a verificar a existência de uma dicotomia jurídica: a normatização do tratamento

indígena versus a invisibilidade jurídica de negros e mestiços libertos.

Com relação à produção normativa a respeito de escravos africanos ou negros e mestiços

libertos na América Portuguesa, podemos afirmar que também se constituiu um ordenamento

jurídico aberto. Ou seja, inexistiu uma regra geral ou uma codificação legal específica para o

assunto. A legislação, relativa não somente à escravidão, mas a todos os outros assuntos, tinha

em vista a resolução de cada caso, sem pretensões de universalidade.

Na verdade, na Ibero-América, adotou-se essa forma casuísta5 de produção normativa,

no mínimo, até meados do século XVIII. Os textos normativos eram editados para responder a

demandas próprias da realidade escravista colonial ou para buscar incrementar o Erário régio.

O caráter tradicional consistia justamente no constante recurso ao conteúdo dos

“códigos” metropolitanos ou, ainda, nas disposições baixadas em momentos anteriores e

mesmo para regiões diferentes do império, cujo teor era recuperado ou adaptado para dar conta

de situações similares às que haviam motivado sua edição pregressa6. Em decorrência dessa

similitude entre a conformação dos ordenamentos jurídicos ibero-americanos, encontramos na

legislação portuguesa, datada de 1755, e publicada em 1757, durante o período de governo de

D. José I, representado primeiro ministro, o Marquês de Pombal, uma ordenação denominada

4 Zambos era a denominação usada no México para a mistura biológica entre o negro e o índio. 5 Na concepção casuísta, o agrupamento normativo é erigido fundamentalmente com um sentido ordenador, no

mais das vezes, quando a acumulação ou a dispersão normativa o reclama; constituem, portanto, um ponto de

chegada de modo algum exercem um caráter prioritário (TAU ANZOÁTEGUI, 1992). 6 Na ordem jurídica do Antigo Regime prevaleceu a crença de que se devia encontrar a solução justa para cada

caso concreto.

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Diretório dos Índios, que também determinava orientações quanto à organização dos índios em

solo luso.

Apesar de se referirem a historicidades e temporalidades distintas, as situações

exemplificadas demonstram a ocorrência de práticas “nascidas” em locais diferentes, mas

pautadas em discursos ideológicos de integração do indígena ao universo colonial ibero-

americano.

Com objetivo de entender a inexistência de uma legislação específica com relação à

condição jurídica de negros e mestiços libertos, procedemos à leitura de textos A Escravidão (A

Política, Livro I, Cap. 2), escrito por Aristóteles e as Partidas de Afonso XI, o Sábio (1252-

1284). A reflexão sobre os argumentos dos autores demonstrou a existência de uma

preocupação com a preservação da instituição escravista. Esses debates de cunho jurídico a

respeito do uso da mão de obra escrava no mundo do trabalho nos demonstram a preocupação

com a manutenção do sistema escravista e sua anterioridade na conjuntura social formada na

Europa, África e Ásia antes do século XV.

O reflexo desse discurso de justificação pode ser percebido nas normativas, relacionadas

ao tema da escravidão, que parecem ter sido maior preocupação das monarquias ibéricas, pois

os códigos elaborados para serem aplicados no universo colonial estavam voltados a assegurar

situações que envolviam os negros, como eram classificados os africanos e seus descendentes.

A preocupação administrativa da Coroa Espanhola em relação à população colonial

expressava-se em regulamentar o regime de utilização da mão de obra escrava, relegando a

situação jurídica dos negros, mulatos e zambos libertos e seus descendentes. O padrão de

classificação de negros incluía tanto os escravos como os libertos, assim como os mulatos e

zambos.

Com relação à estratificação da mestiçagem, Maurício Valenti Otis (2008-2009)

assevera que no século XVIII, crônicas, descrições e representações pictóricas7 procuraram

retratar o processo de mistura biológica e cultural de um progressivo “branqueamento” dos

descendentes de africanos.

7 As imagens representam as castas mexicanas e foram cedidas pelo professor Eduardo França Paiva.

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As imagens comprovam a existência jurídica de estratificação social vigente na América

Espanhola, dessa forma pertencer a uma casta significava receber um conjunto de proibições e

discriminações, ou seja, um comportamento social e cultural, tanto em âmbito familiar como

profissional8. Contudo, não foram elaboradas normas específicas com relação à participação

da população livre de ascendência africana na sociedade colonial espanhola.

Ao contrário, a legislação passou ao largo de prever como lidar com impasse gerado

com o aumento das alforrias ou manumissões. O resultado disso foi uma série de conflitos,

8 Os comportamentos sociais e culturais, conformadas no espaço ibero-americano, podem ser percebidas através

das indumentárias utilizadas pelos indivíduos representantes de cada casta retratada nas imagens. O processo de

“dinâmicas de mestiçagens” pode ser percebido, não apenas pela visualização das misturas biológicas, que

promoviam o “embranquecimento”, pois a diferenciação não se respaldava simplesmente em critérios de cor da

pele, mas em decorrência dos usos de símbolos de distinção, que devem ser analisados como representações de

poder. Ou seja, a existência das “dinâmicas de mestiçagens” não pressupõe a indistinção social ou cultural. Ao

contrário, os próprios mestizos/mestiços faziam uso dessa prática cultural para se diferenciarem e, ao mesmo tempo,

ascenderem socialmente. (PAIVA, 2012).

Figura 4 - Mestizo e índia nasce o coyote

Fonte: Catálogo Castas Mexicanas - Paiva

Figura 3 - Negro e índia nasce o lobo (zambo) Fonte: Catálogo Castas Mexicanas - Paiva

Figura 2 - Espanhol e índia nasce o mestizo

Fonte:Catálogo Castas Mexicanas - Paiva

Figura 1 - Espanhol e negra nasce o mulato

Fonte: Catálogo Castas Mexicanas - Paiva

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como fuga de escravos e movimentos contestatórios, que promoveram uma discrepância entre

a ordem administrativa vigente e as práticas de governo.

Uma das estratégias utilizadas pela Coroa Espanhola para lidar com essas tensões,

geradas pela invisibilidade jurídica dos negros, mulatos e zambos libertos, foi a sua inclusão

social por meio da participação desses indivíduos nas milícias espanholas, com dispensa de cor.

Exemplo dessa prática foi a determinação da aplicação da Real Cédula, em 10 de fevereiro de

1795, que garantia a dispensa de cor aos pardos e a possibilidade de ascender socialmente a

determinados ofícios:

“[...] sino também de la mano y poder que se han adquirido los pardos com el

estabelecimento de milícias regladas y dirigidas por oficiales de su misma clase em lo

econômico, máxima que se adoptó por bien fundada y que la experiencia va

manifestando que ha de venir a ser la ruína de la América, porque no siendo capaces

de resistir a la invasión exterior de un enemigo poderoso y sobrando as de blancos

para contener la esclavitud y mantener la paz interior del país, sólo sirvem aquellas

para formetar la soberaria de los pardos dándoles organización, jefes y armas para

facilitarles un revólución. (RODULFO CORTES, 1978, p. 95)

A dispensa de cor, para participação nas milícias, significou para a minoria urbana um

inegável instrumento de ascensão social, permitindo a possibilidade de mobilidade na sociedade

espanhola estratificada em castas. No entanto, a medida gerou reações, principalmente, na elite

crioulla de Caracas, que temia a reação dos os pardos após serem equipados com armas e

adquirirem os conhecimentos sobre organização bélica.

Na América Portuguesa também foram conformadas milícias negras e mestiças,

mormente no intuito de proceder à defesa do “nordeste açucareiro”, do Rio de Janeiro, das

capitanias do sul, das minas de ouro e diamantes. Suas atividades estavam voltadas para o

controle dos caminhos, autorização para o abastecimento de vilas e arraiais, na proteção de

localidades contra ataques quilombolas, de salteadores e índios guerreiros.

Dessa mesma forma, como ocorrido em território espanhol, negros e pardos libertos

poderiam assumir as patentes de Capitão, Tenente e Alferes. A possibilidade de assumir uma

patente militar favorecia a mobilidade social, mesmo numa sociedade extremamente

hierarquizada, e garantia-se a ascensão social, além da formação de uma rede clientelar, por

meio do apadrinhamento, enlaces matrimoniais e sociabilidades entre os sujeitos históricos que

faziam parte deste mesmo universo colonial.

O historiador Francis Albert Cotta (2010) assevera que os administradores coloniais

temiam a formação dessas milícias de negros e pardos livres, pois muitos consideravam também

a possibilidade de organização dos negros em prol de uma revolta contra a Coroa Portuguesa.

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Na revolta ocorrida em Vila Rica, 1720, o Conde de Assumar, Dom Pedro Miguel de Almeida,

utilizou-se de dessa força militar, contudo, por diversas vezes, registrou: “receio de vir até aqui,

um outro Palmares de Pernambuco”.

O ofício expedido, em 20 de maio de 1800, pelo governador da Capitania Régia do

Espírito Santo, Antônio da Silva Pontes, a Dom Rodrigo de Souza Coutinho, Secretário de

Estado e Marinha e Ultramar, especifica assuntos relacionados à instituição escravista e à

prática de alforria e manumissões, que se relacionam com os problemas relativos à dicotomia

jurídica, ao pragmatismo político-administrativo das Coroas Ibéricas e às dinâmicas de

mestiçagens ocorridas no universo colonial ibero-americano.

[…] Este foi o primeiro passo por julgar a propriedade dos escravos de maior

importância e portanto, a optei com preferência a todas as outras urgências do Estado.

Sendo somente a refletir que o escravo (os escravos) nesta colônia se achão (acham)

extremamente caros a proporção dos interesses que produzem, sendo o atual motivo

de sua carestia a enorme exportação, que se faz da Bahia para Monte Videu

(Montevidéu) e Buenos Aires dos escravos Mina. Eu tenho a honra de ter sido

testemunha de que V.Exª desaprova este comercio (comércio) não obstante a forma de

pesos duros que ele tem feito cunhar na casa da Moeda da Bahia. São (Se) bem ouvi

sempre do Senhor Martinho de Melo, que Deus tinha a Glória, e provar energicamente

o interesse que [nos] pudesse provir por sem monte meio, que aumenta os braços de

um vizinho, sempre ambiciozo (ambicioso), contudo, o negócio da escravatura, para

as colônias espanholas, está como devasso, assim na Bahia, como no Rio de Janeiro,

segundo se asseveram os comandantes dessa Praça [Vila da Victória]. Outro motivo é

que a liberdade testamentária de munirem todos os escravos como legado Pio, sendo

sucedido ficarem livres escravos, que não eram ainda batizados e todos estes depois

de livres abandonam a agricultura, e se dão a uma espécie de tráfico de revendas de

frutos, que descem das Roças, e ficam portanto, uns braços inúteis. A lei Romana, que

coabitou as manumições (manumissões) testamentárias, devia ter em vista semelhante

objetivo. Isto é o que se me figura ponderar sobre a dita liberdade testamentária. E

porque sendo a manumição (manumissão) assim legada, sua doação causa mortes,

parece conveniente ao serviço de Santa Alteza Real o dirigir estes legados de modo,

que [deixarão] sobre alguns anos de serviço, em que também tenhão (tenham)

adquirido educação cristã e civil os indivíduos sobre que se cabe a referida doação.

[…] Vila da Victória, 20 de maio de 1800.9

O documento nos revela em sua constituição inicial uma das principais preocupações

das coroas ibéricas em relação ao sistema colonial: a manutenção da escravidão. A medida

tomada por Silva Pontes se insere numa tentativa de resgatar escravos rebelados no sítio de

Itapoca, de propriedade de Francisco Homem de Azevedo. A sua reação enérgica tem como

objetivo resguardar os interesses dos proprietários de cativos e dinamizar a economia da

Capitania Régia do Espírito Santo.

9 Ofício o governador da Capitania do Espírito Santo, Antônio Pires da Silva Pontes, ao Secretário de Estado da

Marinha e Ultramar, Dom Rodrigo da Silva Coutinho, a informar que, logo de sua posse como governador, fez

diligências para recolher cativos rebelados no sítio de Itapoca, de propriedade de Francisco Homem de Azevedo.

Arquivo Ultramarino – CTA: AHU – Espírito Santo. Cx. 08, Doc. 013. Transcrito por Enaile Flausina Carvalho.

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Os seus argumentos consideram que a carestia dos preços dos escravos, e consequente

escassez da mão de obra, ocorria em decorrência do intenso volume de exportação de cativos

dos portos do Rio de Janeiro e Bahia para Montevidéu e Buenos Aires, fato que acarretava um

desequilíbrio entre a oferta e a procura da mercadoria. Outra questão retratada pela fonte diz

respeito à relação entre diminuição da mão de obra escrava e o crescente número de libertos

por manumissões. A preocupação de Silva Pontes estava em criar mecanismos que pudessem

exigir que esses libertos fossem mantidos em atividades agrícolas, fundamentais para o

interesse econômico da Capitania, dentro da ótica do sistema colonial.

No entanto, assim como os negros, mulatos e zambos libertos de outros territórios da

Ibero-América, a condição de liberdade levava esses sujeitos a buscarem outros mecanismos

que lhe permitissem maior mobilidade social, principalmente se deslocando para o espaço

urbano para dedicar-se às atividades comerciais. Ao se dedicarem à revenda de frutos,

procuravam se especializar no intuito de se distanciarem de seu passado escravista, além de

poderem acumular capitais para compra da alforria de seus familiares que vivam na condição

de escravos.

Por outro lado, Silva Pontes solicitava ao Governo Português medidas que impedissem

aos libertos se afastarem das atividades vinculadas ao cativeiro, nomeadamente a agricultura.

A falta de uma legislação específica para regular as relações dos negros e mestiços libertos

explica esse tipo de manifestação dos homens públicos que estavam à frente da administração

na Capitania.

As tensões engendradas nesse contexto demonstram como o pragmatismo político,

gerado por uma produção normativa casuísta, era imputado pelos governos ibéricos, e

propiciava um reconhecimento social da condição dos negros e mestiços libertos, em uma

sociedade estruturada em uma organização social rígida e estratificada.

A fonte demonstra que a instituição da escravidão era um elemento cultural aceito pelos

indivíduos que viviam no universo colonial Ibero-americano, reforçado pelos representantes da

administração lusa e aceito por aqueles que viviam na condição de escravos. Contudo, tal fato

não os impedia de traçarem estratégias que garantissem alcançar a liberdade e mecanismos que

garantissem a mobilidade daqueles que se tornaram libertos. A especialização, por meio de

atividades ligadas ao mundo do trabalho, contribuíam por garantir essa ascensão social, da

mesma forma que aqueles indivíduos que foram incorporados às milícias nos diversos espaços

da Ibero-América.

Considerações Finais

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O estudo da escravidão e das dinâmicas de mestiçagens, sob o viés da História Cultural,

em um período de longa duração, no decorrer dos séculos XVI ao XIX, nos possibilitaram um

panorama de conjuntura processual dos temas em análise.

Apesar das diferenças em relação aos espaços e às temporalidades analisadas, o fio

condutor conceitual permitiu ao exercício teórico-metodológico vislumbrar as questões que

permearam as relações socais e culturais no universo Ibero-americano. Além disso, trouxe a

lume os caminhos construídos por esses sujeitos históricos em relação à resolução dos impasses

provocados pelas tensões entre os interesses dos distintos grupos sociais.

Consideramos como fato revelador do estudo a verificação da complexidade desse

universo cultural, desmistificando a ideia conceitual de uma sociedade hierarquicamente rígida,

que se desvela sob uma dinâmica mestiça. Como afirma Eduardo França Paiva (2009), entender

o universo colonial, principalmente no que diz respeito aos aspectos relativos ao tema da

escravidão, requer a retirada de “filtros” que impeçam, a nós historiadores, apreender a

entrelaçada “rede de fios invisíveis” envoltos em torno do desejo de se alcançar a liberdade.

Nesse sentido, o universo colonial Ibero-americano é marcadamente caracterizado por

uma cultura mestiça, que coexiste com projeções de pureza de sangue e originalidades étnico-

culturais, numa efervescência histórica provocada pelos encontros de mundos distintos. Torna-

se necessário entender que a construção desse novo mundo deu-se por meio de um trânsito de

culturas, provenientes dos processos de europeização e africanização do mundo americano, e

que permitiram a circulação cultural numa perspectiva global, o que nos afasta de construir

explicações meramente microanalíticas para esses fenômenos históricos que almejamos

compreender cientificamente.

FONTES PRIMÁRIAS

Arquivo Ultramarino – CTA: AHU – Espírito Santo. Cx. 08, Doc. 013.

FONTES SECUNDÁRIAS

A Escravidão (A Política, Livro I, Cap. 2), Aristóteles.

Partidas de Afonso XI, o Sábio (1252-1284).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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