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JULIANA DE MELLO MORAES RELIGIÃO E SUAS DIFERENTES RECEPÇÕES SELETIVAS: A participação do clero na Insurreição Pernambucana de 1817 Monografia apresentada ao Curso de História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. Profº Luiz Geraldo Santos da Silva Curitiba 2000

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JULIANA DE MELLO MORAES

RELIGIÃO E SUAS DIFERENTES RECEPÇÕES SELETIVAS: A participação do

clero na Insurreição Pernambucana de 1817

Monografia apresentada ao Curso de

História, Setor de Ciências Humanas,

Letras e Artes, Universidade Federal do

Paraná. Profº Luiz Geraldo Santos da Silva

Curitiba

2000

3

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO......................................................................................................................05

1 A RELIGIÃO E O CONTEXTO POMBALINO............................................................08

1.1 Reformismo e suas ascepções.........................................................................................10

1.2 O clero e o reformismo ilustrado...................................................................................12

1.3 O clero pernambucano...................................................................................................14

2 OS ECLESIÁSTICOS E A INSURREIÇÃO DE 1817................................................20

2.1 Liberdade e seu sentido na teologia insurgente...........................................................24

2.2 A teologia como pacificadora dos ânimos....................................................................26

3 AS DEFESAS DO CRIME DE LESA-MAJESTADE E A CONTRA

REVOLUÇÃO................................................................................................................29

3.1 O principal advogado da insurreição: Aragão e Vasconcelos...................................30

3.2 Algumas formas de encarar e compreender os valores religiosos............................32

3.3 O clero e a nova forma de encará-lo após o movimento de 1817..............................36

CONCLUSÃO.....................................................................................................................39

4

ABREVIATURA

DH – Coleção documentos históricos

5

INTRODUÇÃO

No ano de 1817 ocorre uma insurreição na capitania de Pernambuco que envolve

vários setores sociais do período1. Esse levante, encabeçado por grandes comerciantes e

proprietários de terra, contando, ainda com a participação efetiva de vários padres demonstra

claramente o descontentamento por que passava os habitantes desta região, refletindo desta

maneira toda uma “desarticulação” entre América Portuguesa e metrópole, durante o início do

século XIX. Esse grande descontentamento se faz claro a partir do momento em que se

compreende qual era o contexto que envolvia os participantes desta insurreição. Entre muitos

outros fatores, pode-se indicar os altos impostos2 cobrados através Companhia de

Pernambuco e Paraíba, que mesmo extinta na época da insurreição ainda atormentava os

comerciantes devido as suas dívidas arroladas para com esta há muitos anos e que

desempenhava, entre outras funções, o incentivo a aquisição de mão de obra escrava. A

própria situação climática do nordeste que enfrentava grandes secas periodicamente – em

1816 ocorreu uma grande seca - levava a uma grande escassez de meios de subsistência a

maioria dos seus habitantes.

Entre os elementos que perpassam a insurreição pernambucana se faz presente o

próprio esfacelamento do sistema colonial frente as mudanças ocorridas em toda a Europa3

1 “Os problemas postos pela crise do sistema colonial começavam a perpassar todas as esferas da vida social. Nem mesmo o clero escapava a

essa regra.” MOTA, C. G. Nordeste 1817. SP: Ed. Perspectiva, 1982. P. 25

2 Entenda-se que Portugal adotara, alguns anos antes, o regime do despotismo esclarecido - encabeçado por Pombal – e que a política

dirigida a colônia foi priorizada. Nessa perspectiva se explica a necessidade de “restabelecimento do controle nacional sobre a economia para

cobrir um dos principais centros brasileiros de comércio e produção, as capitanias de Pernambuco e da Paraíba.” MAXWELL, K. Marquês

de Pombal paradoxo do iluminismo. RJ: Paz e Terra, 1996.

3 A emergência da Inglaterra no mercado mundial é um destes fatores que ocasionaram mudanças e, segundo Carlos Guilherme Mota,

“assim, dentro dos quadros do nascente imperialismo inglês, ligado à Revolução industrial, é que se pode compreender a dinâmica dos dois

6

nesse período. Todo esse contexto de conflitos internos, entenda-se dentro da própria América

Portuguesa e Capitania, e externos na faceta da competição internacional por novos mercados

e novas formas de comércio refletem-se em Pernambuco neste período.

Um momento que retrata de forma incontestável essa situação conflituosa e complexa

porque passavam os habitantes coloniais é o levante de 1817. Esse movimento marca “a

primeira manifestação mais significativa de uma série de rebeliões que iriam marcar o trânsito

do Brasil do Antigo Sistema Colonial português para os quadros do Imperialismo da potência

mais industrializada da época (datas de referência: 1810 e 1827).”4 Assim, pode-se

compreender com esse levante uma série de elementos inéditos, não só religiosos – através da

Igreja Católica que desempenhava um papel fundamental nessa sociedade – mas, mesmo, das

novas idéias que invadiam o país através de livros5 e pessoas estrangeiras (franceses,

americanos e ingleses)6 realizadas pelos insurgentes pois, através da documentação

pertinente7 é possível vislumbrar uma série de fatores relativos a recepção das “novas” idéias

realizada pelos insurrectos.

Essa complexidade que envolve o movimento pernambucano é que o torna rico em

elementos passíveis de problematização, visto que ele está inserido num momento de

mudanças significativas não só na América Portuguesa mas na Europa, como também

expressou um desejo generalizado na Capitania pernambucana de alterações drásticas neste

local. Assim, através desta insurreição é possível encontrar traços peculiares ao período em

movimentos insurrecionais. As velhas linhas legadas pelo monopólio comercial, ainda atuantes no Nordeste, não interessavam nem aos

ingleses, nem aos representantes da grande lavoura e de uma incipiente burguesia comercial.” Ver nota 1, p. 18

4 Ver nota 1, p. 15

5 Como exemplo pode-se citar a Biblioteca Pública da Bahia que possuía 4000 volumes entre estes 3000 eram franceses. Ver nota 1, p. 32

6 Não pode-se esquecer que Pernambuco, mais explicitamente no Recife, o porto proporcionava um contato direto entre os habitantes da

Colônia portuguesa com pessoas de várias nacionalidades e, consequentemente, com novas formas de pensamento e elaboração da própria

realidade vivida.

7

que está contida, pois pode-se perceber nela uma expressão máxima de alguns sentimentos

que se faziam presentes neste momento. O que parece espantoso é o reduzido número de

estudos sobre este movimento que surge tão “exótico” ao olhar contemporâneo.

Um fator que chama a atenção dentro do levante pernambucano é o grande número de

padres que participaram e incitaram a população a se rebelar contra os ditames da Coroa

Portuguesa. O número de padres que participou efetivamente deste movimento espantou até

os contemporâneos deste8. Essa participação efetiva dos padres na insurreição contrasta

drasticamente com o objetivo português de purificação das práticas religiosas postas em ação

desde o início do período do despotismo esclarecido lusitano e, ao mesmo tempo, com a

relação Estado e Igreja que se mantinha ao longo do antigo regime.

7 Ver parte específica das fontes onde encontra-se relacionadas os documentos utilizados para a pesquisa.

8 “Sua Majestade o Rei me falou anteontem com a maior dos da má conduta de tantos eclesiásticos , dizendo-me que 25 estavam implicados

na desgraçada Revolução de Pernambuco. Aproveitei-me desta ocasião para dizer-lhe que de fato é por demais necessário que os bispos se

assegurem bem dos sujeitos antes de impor-lhes as mãos.” Carta de L. de Rossi a Consalvi. Arch. Secr. Vat., Seg. St. R. 251/1, 1817. Carta

citada por HAUCK, J. F.; FRAGOSO, H.; BEOZZO, J. º; GRIJP, K. V.D. E BROD, D. História da Igreja no Brasil. Petrópolis: ed. Vozes,

1980. Tomo II. P. 16

8

1 A RELIGIÃO E O CONTEXTO POMBALINO

Um dos aspectos que chama a atenção no levante pernambucano de 1817 é o número

de padres que participaram deste e incitaram a população a se rebelar contra os ditames da

Coroa Portuguesa. Esse aspecto espantou até os contemporâneos deste9 movimento.

Compreender como se deu esta participação e como foi realizada a recepção religiosa do

catolicismo no momento da insurreição e após esta, nos elucidam sobre diferentes aspectos

relacionados com o momento histórico em questão. A religião surge como passível de estudo

pois, a religião histórica (no caso a Religião Católica) tem suas práticas e crenças passíveis de

mudança em seu conteúdo em relação a mensagem original. No entanto, esta deve ser

compreendida referenciando-se as relações existentes entre a estrutura completa das formas

de produção e reprodução, da circulação e de apropriação da mensagem religiosa10.

Seguindo as diretrizes postas acima compreender as mudanças ocorridas não somente

em Portugal mas também na América Portuguesa no final do século XVIII e início do XIX é

necessário para entender como se deu a mudança de recepção da religiosidade católica. Esta

durante a insurreição pernambucana atinge uma de suas máximas expressões posto que o

clero, em massa, participa e colabora de várias formas com o levante como o vigário de

Mamanguape que “é acusado de que ofereceu a sua côngrua por toda a vida e gados para o

9 “Sua Majestade o Rei me falou anteontem com a maior dos da má conduta de tantos eclesiásticos , dizendo-me que 25 estavam implicados

na desgraçada Revolução de Pernambuco. Aproveitei-me desta ocasião para dizer-lhe que de fato é por demais necessário que os bispos se

assegurem bem dos sujeitos antes de impor-lhes as mãos.” Carta de L. de Rossi a Consalvi. Arch. Secr. Vat., Seg. St. R. 251/1, 1817. Carta

citada por HAUCK, J. F.; FRAGOSO, H.; BEOZZO, J. º; GRIJP, K. V.D. E BROD, D. História da Igreja no Brasil. Petrópolis: ed. Vozes,

1980. Tomo II. P. 16 como citado na introdução

10 BOURDIEU, P. “Gênese e Estrutura do campo religioso”. In: _____. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974.

9

serviço da pátria; (...)”11, ou o vigário de Itamaracá que é “acusado de que ia aos clubes; (...)

prendeu o juiz de fora de Goiana; com uma pistola na mão; (...)”12.

Tentar entender as mensagens contidas nas fontes estudadas, Coleção Documentos

Históricos, nos leva a averiguar qual era a instrução e a visão que tinham de si este clero

colonial e como, em momentos diversos, a mensagem religiosa foi utilizada com o fim de

valorizar e mesmo justificar diferentes formas políticas. Para tanto deve-se atentar para o fato

de que a Metrópole atravessava um período de grandes mudanças na sua política frente a

todas as suas formas de sua expressão. No caso, as reformas empreendidas por Pombal a

partir da segunda metade do século XVIII se refletem em todo o Império Português visto que

a política colonial teve alta prioridade neste período. Essa prioridade dada as colônias visava

restabelecer o controle nacional sobre a economia de todo o Império. Pernambuco recebeu

papel de destaque nesta nova política pois, era no período um dos principais centros de

comércio e produção na América Portuguesa13.

Essas reformas empreendidas pelo gabinete de D. José I mudaram de forma decisiva

todas as áreas de atuação governamental (educação, religião, economia, etc.). A educação do

estado Português também foi alterada pelas reformas pombalinas. Alguns elementos

referentes a estas mudanças são relevantes para a compreensão da atitude insurgente em

Pernambuco pois, como veremos as reformas pombalinas educacionais atravessam o oceano e

atingem Pernambuco já no final do século XVIII. Como esse tema – a educação e as reformas

pombalinas – tem uma grande complexidade nos deteremos nos elementos que se referem

11 DH, vol. 106, p. 206.

12 DH, vol. 106, p. 226

13 MAXWELL, Kenneth R. Marquês de Pombal: paradoxo do iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1996.

10

diretamente a teologia e as mudanças efetivas que ocorreram nesta na época cujas as

influências determinaram diretamente o clero pernambucano.

1.1 Reformismo e suas acepções

Compreender todas as influências geradas pelas reformas pombalinas na área da

educação seria inviável visto a complexidade do assunto. Destacar as influências ocasionadas

na teologia do período e como elas mudaram o enfoque religioso já nos basta para ressaltar os

meios pelos quais essa nova forma de conceber o mundo alcançou a América Portuguesa

legitimando o antigo sistema colonial neste momento de redefinição dentro das balizas do

reformismo ilustrado.

Em primeiro lugar é necessário atentar para o fato de que Portugal na segunda metade

do século XVIII atravessa uma grande crise econômica se comparada com as outras potências

emergentes européias (Inglaterra e França). Para enfrentar tal situação as reformas passam a

ser implantadas com o intuito de lançar luzes sobre Portugal calcando-se na “idéia de

progresso, de eficiência da estrutura administrativa, de observação científica da natureza e de

valorização do saber aplicado à busca da felicidade terrena e do bem-estar social”14. No que

tange a educação, em primeiro lugar, são expulsos os jesuítas, que eram a personificação do

antigo e atrasado sistema considerado falido neste momento, e visando, também, reduzir o

poder da Igreja submetendo-a diretamente ao Estado. “Basicamente: a reforma educacional

pombalina teve um objetivo altamente utilitário: produzir um novo corpo de funcionários

ilustrados para fornecer pessoal à burocracia estatal e à hierarquia da Igreja reformadas. Seria

14 TEIXEIRA, Ivan. Mecenato Pombalino e Poesia neoclássica. Edusp: São Paulo, 1999. P. 25

11

aqui, entre esses burocratas e clérigos recém-forjados, que as reformas pombalinas

encontrariam seus perpetuadores e defensores.”15 Nesse momento a Igreja realiza desta forma

uma mudança num esforço de adaptação a essa nova realidade estrutural, ou seja, marcada por

novas pressões exercidas pela burguesia emergente.

Com as mudanças realizadas por Pombal se esperava alcançar algumas metas e entre

as principais a serem alcançadas com a reforma educacional estão o de “trazer a educação

para o controle do Estado, secularizar a educação e padronizar o currículo.”16 Assim, se

esperava que “a educação preparasse o homem para uma atividade essencialmente

mercantilista”17 posto que o Império lusitano atravessava uma crise nesse setor.

O clero passa a ter sua formação modificada sob a égide das novas premissas

ilustradas. Ocorre na “teologia da luzes” então uma “refontização doutrinária, utilizando-se,

de modo especial, a Sagrada Escritura, os Concílios e os Santos Padres da Igreja; uma

aproximação metodológica entre razão e natureza, derivando daí toda temática que vai do

racionalismo ao experimentalismo; uma tendência ao ecletismo derivado especialmente da

contestação que se fez à escolástica decadente e às formas gongóricas de raciocínio e

expressão; e finalmente, uma ‘disfarçada’ caracterização hedônico/pragmática”18. Essas

características básicas assinalam mudanças profundas na forma pela qual o próprio

eclesiástico passa a se perceber dentro de sua sociedade pois é traçado um novo perfil de

cidadão (vassalo) que deve ser útil tanto ao Rei quanto a Nação e os eclesiásticos, enquanto

15 MAXWELL. K. Marquês de Pombal.... p. 110

16 MAXWELL, K. Marquês de Pombal... p.. 104 .

17 SIQUEIRA, Antônio Jorge de. Ilustração e descolonização. O clero na revolução pernambucana de 1817. Tese de Doutorado em História

Social. São Paulo: FELCH/USP, 1980. P. 28.

18 SIQUEIRA, Antônio Jorge de. Ilustração e descolonização.... p. 19.

12

funcionários da Coroa, não escapavam a este novo modelo de cidadão que tem na figura do

comerciante19 frente ao mercantilismo o protótipo ideal do vassalo de Sua Majestade.

Sendo funcionários da Coroa e, ao mesmo tempo, cidadãos, os clérigos tendem a se

dedicar mais ao estudo da teologia visto que o ensino se torna uma forma de alcançar a Deus

e, ao mesmo tempo, auxiliar o pároco a se dedicar ao bem estar de sua sociedade através de

seus conhecimentos adquiridos no estudo da teologia. “A espiritualidade se liga mais a uma

postura teológica.”20 A formação eclesiástica passa a se debruçar mais sobre o estudo e a

erudição.

1.2 O clero e o reformismo ilustrado

Visto que novas idéias passam a permear o trabalho religioso deve-se atentar para as

transformações palpáveis de tais mudanças. Em primeiro lugar o próprio curso de teologia da

Universidade de Coimbra é reformado e “a duração de cinco anos, no lugar das quatro

cátedras e três catedrilhas, até então existentes, foram criadas oito cadeiras, uma de história

eclesiástica, três de teologia dogmático-polêmica (as quatro, segundo a designação do

Estatutos, chamadas pequenas cadeiras), uma de teologia moral, uma de teologia litúrgica e

duas de escritura, na qual eram estudados o Antigo e o Novo Testamento, cadeiras estas

denominadas Grandes.”21 Através deste novo programa de teologia pode-se observar uma

tendência clara de “iluminar” os clérigos de forma que possibilite a estes uma utilidade ao

Estado e à Religião.

19Ibdem. P. 33

20 Ibdem. p. 20

21 CARVALHO, Laerte Ramos de. As reformas pombalinas da instrução pública. São Paulo: Saraiva, 1978. P. 159/160.

13

Uma obra que tem uma elevada importância para a compreensão da formação do

clero deste período, e que foi bem analisada por Jorge Siqueira, intitulada Instrucção Pastoral

sobre os Estudos Fysicos do seu Clero do Bispo Cenáculo escrita em 1786 mostra-nos em

profundidade o cerne pedagógico da ilustração teológica. Em primeiro lugar esta obra ressalta

a necessidade de uma pedagogia simples e direta que se abstenha de pressupostos metafísicos

e dúvidas. Assim, “a fundamentação filosófica devia basear-se naquilo que se considerava

como sólido, real e matérias-graves.”22 Percebe-se também nesta mesma obra um projeto

claro para a formação intelectual eclesiástica onde podemos ressaltar alguns pontos:

necessidade de estudos da realidade física e natural tornando desta forma a ciência física e a

natural conveniente especialmente ao eclesiástico pois a partir desta ele pode “se atrever com

sagacidade e sabedoria a êrros populares”23; a história natural, a hidro-teologia, a cosmogonia,

a astronomia, os conhecimentos anatômicos, as ciências e as artes, os conhecimentos

matemáticos e, ainda, os conhecimentos geográficos fazem parte desta obra.

Estas matérias, consequentemente, expressam alguns aspectos necessários para a

formação de um clérigo na concepção do Bispo de Beja.

Racionalismo e experimentalismo, o retorno às fontes, o relevo da metodologia e o

gosto pela erudição seriam premissas que todo o clérigo deveria ter consigo neste momento.

O que torna essa obra relevante para o desenvolvimento deste trabalho está na

aproximação que o Bispo de Beja (Frei Cenáculo) passou a ter com o Padre Azeredo

Coutinho, futuro Bispo de Olinda, que estudou na Universidade de Coimbra em 1775

freqüentando o curso de Filosofia e Letras, onde conhece Cenáculo. Padre Azeredo Coutinho

22 SIQUEIRA, Antonio Jorge de. Ilustração e Descolonização... p. 62

23 VILLAS BOAS, Frei Manuel do Cenáculo. Instrucção pastoral do Excellentissimo, e Reverendissimo Senhor Bispo de Beja sobre estudos

fysicos do seu clero. Lisboa, Na regio Off. Typografica, 1786. Anpud: SIQUEIRA, Antonio Jorge de. Ilustração e descolonização...

14

estudando em Coimbra nesse período recebe uma forte influência das novas idéias

“iluminadas” a respeito da teologia “ilustrada”. Quando retorna a Pernambuco e, torna-se

Bispo da diocese, cria em 1796 o Seminário de Olinda. Padre Azeredo Coutinho, sendo Bispo

de Olinda, torna-se o responsável pela administração e inspeção do Seminário desta cidade.

A partir deste local, os ideais aprendidos pelo Bispo na sua estada na Universidade de

Coimbra e na sua amizade com Cenáculo, são disseminados na América Portuguesa

influenciando todo o clero pernambucano e, ao mesmo tempo, formando uma nova geração

de eclesiásticos moldados no pensamento teológico “ilustrado” da época. Assim, “nos

percursos entre a metrópole e a colônia, elaborou-se, em termos de teologia , uma linguagem

comum, de tal modo que o projeto seminarial do Bispo Coutinho, ..., se identifica com aquele

projeto posto pelo Bispo de Beja.”24

Levando em conta esta aproximação entre as duas formas teológicas faz-se necessária

um breve estudo das conseqüências e realizações do Seminário de Olinda no período anterior

a insurreição e qual a sua influência causada nestes novos clérigos.

1.3 O clero pernambucano

O Seminário de Olinda foi de extrema importância para a formação de um clero

instruído sob a égide do despotismo ilustrado na América Portuguesa no qual o “principal

lema era a união entre as sociedades civil e cristã.”25

Baseado neste lema podemos notar que não somente formar padres mas cidadãos que

cooperassem com o “bem-estar social” era o intuito deste Seminário erguido no Nordeste da

24 Siqueira, Antonio Jorge de. Ilustração e descolonização e ... p. 21

15

América Portuguesa para disseminar as “luzes”. Essa disseminação implica em repassar aos

eclesiásticos todo o aparato conceitual que encerra tal visão a respeito da sociedade, da

teologia em si e, do próprio modo de encarar a si mesmo enquanto cidadão e funcionário da

Coroa. Essas idéias, já discutidas anteriormente, passam a se tornar presentes entre os clérigos

nordestinos que estudavam no Seminário olindense. Contudo é importante ressaltar que a

“Ilustração existe apenas como um modo supostamente específico de pensar e agir: como

possível conjunto de atitudes e não como uma seqüência de fatos, uma guerra, um

terremoto...”26 Desta maneira, não deve-se esquecer que essas idéias disseminadas pelo

Seminário se espalhavam já há algum tempo (final do século XVIII) em Pernambuco

chegando nas suas máximas na Insurreição de 1817.

Assim, junto ao Estado, a Igreja passa a ocupar um papel importante na educação dos

coloniais. É nessa perspectiva que se cria o Seminário de Olinda baseado numa educação

iluminada visando atender aos desígnos do novo sistema – do despotismo esclarecido – que

impera na Metrópole.

Um aspecto importante de tal educação concentra-se no ponto da união entre

sociedade civil e cristã. Nesta deve-se observar que o clérigo tem uma “função” definida para

desempenhar tal papel. E qual seria esta “função”? Nas palavras do próprio Azeredo Coutinho

no seu texto intitulado Estatutos do Seminário Episcopal de Nossa Senhora da Graça da

cidade de Olinda de Pernambuco:

... se persuadem da grande verdade de que o bem, ainda mesmo temporal, e particular de cada um está ligado e dependente do bem geral da sociedade e que, por isto, está cada um

25 SIQUEIRA, Antonio Jorge de... p. 98

26 TEIXEIRA, Ivan. Mecenato Pombalino e Poesia neoclássica. .. P. 25.

16

obrigado a trabalhar com todas as suas forças para o bem e conservação do Estado e a ser bom cidadão pelo seu mesmo interesse.27

Para realizar tal tarefa – de promoção do bem-estar social - um eclesiástico deveria

então utilizar a retórica (que desempenha um papel essencial nesta perspectiva) para persuadir

as pessoas quanto a sua causa e atrair as vontades das suas “ovelhas”. Duvidar que as

aspirações do Bispo de Olinda não tenham se concretizado inteiramente seria minimizar a

importância de tal entidade – Seminário de Olinda – na formação do clero pernambucano.

Acredita-se que realmente tenha ocorrido uma mudança nesta área pois como veremos adiante

a “arte de persuadir” se torna uma das marcas mais perceptíveis deste clero, inclusive durante

o levante de 1817. Neste vemos que persuadir os ânimos era uma acusação constante imposta

aos eclesiásticos:

Frei João da Conceição Loureiro, franciscano, preso a 10 de junho de 1817. É acusado (...); de ter feito fala à comunidade a persuadí-la.28 João Cavalcante de Albuquerque, vigário do Cabo, preso a 24 de maio de 1817, certidão (...). É acusado (...); de proclamador a favor da rebelião; (...)29 Padre José Filipe de Gusmão, coadjutor de Nossa Senhora do Destêrro de itambé. Preso a 2 de junho de 1817, certidão (...) É acusado de ler proclamações e pastorais rebeldes na missa; de ser declamador contra El-Rei, de ser sedutor e persuador. (...)30

Esses exemplos são apenas três entre muitos outros e, como nos lembra Siqueira “daí

se infere uma religião persuasiva, própria dos tempos seus e não uma religião guerreira

(ideologia das armas) que prevalecera até então.”31

27 Estatuto do seminário episcopal de N. Senhora da Graça da cidade de Olinda de Pernambuco. ANPUD: SIQUEIRA, Antonio Jorge de.

Ilustração e descolonização... p. 99

28 DH, vol. 106, p. 145. Grifo nosso.

29 DH, vol. 106, p. 149. Grifo nosso.

17

Partindo desta premissa de “religião persuasiva” devemos observar a configuração

deste clero nordestino para melhor compreendermos como se deu a insurreição e em qual

quadro se dá o levante. O bispado de Pernambuco na época administrava uma grande

extensão geográfica. Entre as paróquias coladas estavam: “no Ceará, 24; no Rio Grande do

Norte, 11; na Paraíba, 22; na comarca das Alagoas, 14; na do Rio São Francisco, 18; no

distrito de Pernambuco, 26 e no de Minas Gerais, 6. Distribuídas pelas 121 paróquias havia

mais de 600 capelas e igrejas em que se celebravam os atos do culto, muitas das quais,

principalmente em Pernambuco, servidas por capelães próprios. Para facilidade do governo e

melhor serviço tinham sido criadas 4 vigararias. (...) com os seus respectivos vigários da vara

e provisores, todos dependentes do vigário geral do bispado.” 32

Desta forma podemos observar que o bispado de Pernambuco tinha, além de uma

imensa área geográfica, um grande número de párocos colados e não colados. Estima-se que

na época da insurreição o número de clérigos espalhados pelo bispado fosse de 12033. Esse

número diz respeito somente ao clero secular pois, tem-se ainda um número aproximado de

24 conventos de diversas naturezas (Beneditinos, Capuchos, Carmelitas Marianos e

Turoneses e Congregados do Oratório) e três Ordens e Irmandades34.

Partindo destes números pode-se perceber que muitos eclesiásticos estavam longe do

centro da paróquia e, consequentemente, tinham uma vivência religiosa diferente dos seus

30 DH, vol. 106, p. 155. Grifo nosso.

31 SIQUEIRA, Antonio Jorge de. Ilustração... p. 102

32 BARATTA, Cônego José. Apontamentos para a história eclesiástica de Pernambuco. In: R. I. ª H. G. PE, 24 (115-118) : 319-428.

ANPUD: SIQUEIRA, Antonio Jorge de. Ilustração e descolonização... P. 115

33 SIQUEIRA, Antonio Jorge de. Ilustração e descolonização... P. 113

34 números contidos na tese de Siqueira. Ibdem p. 116-117

18

pares urbanos. Um dos pontos de destaque do livro História da Igreja35 está na falta de

identidade da Igreja colonial brasileira frente as mudanças ocorridas no início do século XIX

e, ao mesmo tempo, frente a Roma. Essa idéia pode ser repensada se imaginarmos que não

seria uma falta de identidade desta Igreja “tupiniquim” característica única e, sim, que havia

uma diferença entre pensar a religião em todas as suas acepções e crenças. Essa Igreja

colonial não se encaixava de maneira alguma nos moldes “tridentinos” evocados por Roma

neste período, mas tinha sua identidade própria dentro dos limites e das dificuldades do “viver

em colônias”. E, essa identidade, pode ser percebida através do levante pernambucano, onde

um número aproximado de 70 clérigos36 participaram do levante em prol de um objetivo

comum: persuadir seus paroquianos a se rebelar contra El-Rei negando suas posições de

vassalos de sua majestade e exigindo separação entre Metrópole e Colônia.

Essa união eclesiástica em torno da insurreição ocasionou também uma unidade no que

toca ao conteúdo doutrinário religioso destes padres o qual pode-se resumir em alguns pontos:

“A) mostrar-lhes como é antiga a situação de opressão; B) vantagens da nova política: não ser

mais governado por ladrões; C) nítida idéia de um partido ‘dos de cá’ ( opondo-se

naturalmente ‘aos de fora’)”37. Esses pontos nos mostram que além de unidos para alcançar

sua “libertação” os eclesiásticos pernambucanos mantinham uma união teológica e doutrinária

– através de opiniões similares - para persuadir a população a sua causa. “A leitura dos Autos

da Devassa nos induz a concluir que a insurreição de 1817 não surgiu ‘ex abrupto’ (...). Há

35 N HAUCK, J.; FRAGOSO, H.; BEOZZO, J.; VAN DER GRIJP, K. e BROD, B. História da Igreja no Brasil. Petrópolis: Ed. Vozes,

1980. Tomo II. P. 13

36 Número estimado por Siqueira. O autor chegou a essa conclusão examinando os autos da devassa de 1817, os números contidos no livro

do Padre Joaquim Dias Martins e pela lista elaborada por Com. A.. J. de Melo. Pp. 212-213-214

37 SIQUEIRA, Antonio Jorge de. Ilustração e descolonização ... P. 168

19

margem, portanto, para suspeitar que a insurreição foi fruto de um trabalho doutrinário e que

se espalhou sorrateiramente, antes e durante o evento.”38

38 SIQUEiRA. Antônio Jorge de. Ilustração e descolonização... P. 176

20

2 OS ECLESIÁSTICOS E A INSURREIÇÃO DE 1817

Como já foi observado, o número de clérigos que participaram ativamente da

“revolução” de 1817 foi grande. Não somente nas listas de acusação mas em quase toda a

documentação referente ao levante, temos abundantes exemplos desta participação. Perceber

como se deu a recepção religiosa por estes eclesiásticos durante este momento de rebeldia

colonial clareará alguns pontos relativos a religiosidade pensada na época.

Essa religiosidade expressa, enquanto manifestação de um pensamento generalizado

de rebeldia e contestação, uma nova forma de perceber a realidade pela qual atravessavam

estes clérigos. O que diferenciou-os dos demais coloniais e como foi possível esta inversão

dos valores católicos são questões profundamente pertinentes, pois, como já indicado, a Igreja

era parte intrínseca do Estado português. Além de fazer parte do Estado, ajudava ainda a

justificar e a afirmar o poder real. Num primeiro momento é interessante ressaltar que o clero

tinha uma “capacidade de organização que ultrapassava os limites locais.”39 Isso possibilitou

que, além de conquistar os ânimos para a causa rebelde, os clérigos participassem ativamente

da insurreição até mesmo chefiando guerrilhas.

Visto dentro do conceito do despotismo ilustrado - eclesiásticos cidadãos e cristãos -

que persuadem através das palavras, não espanta suas atitudes destemidas ao realizar ações

ditas militares nesta ocasião insurgente, pois, como transparece na documentação, andar com

pistolas e ameaçar pessoas fazia parte da concepção religiosa/cidadã destes padres:

E perguntado pelo fato de aparecer armado com uma pistola na mão à entrada do juiz de fora na dita fortaleza, e que a sua autoridade não valia.

39 MOTA, C. G. Nordeste 1817... p. 224

21

Respondeu quanto à pistola era verdade tê-la ele respondente na mão esquerda, e que enquanto ao juiz de fora, só dissera: Creio Senhor que a sua autoridade não existe. E perguntado se êle réu levantara a voz e dera: Vivas a Religião, à Pátria e à Liberdade. Respondeu que só gritara: Viva à Pátria e à Religião.40

Estas perguntas foram realizadas num processo verbal de réus de conspiração e por

isso deve-se claramente desconfiar das respostas do Padre pois ele dependia destas para

provar sua inocência. Contudo, o que se vê é um caso onde a Religião e Pátria são palavras

que mesmo ditas num momento de desejo à liberdade, tornam a se unir na defesa. Isso mostra

que estas esferas estavam intimamente ligadas para o réu. Se estas esferas andavam juntas no

pensamento colonial no início do novecentos não pode-se deixar de lado o fato de que

considerar as “realidades cultural, política e religiosa como pertencentes a planos

relativamente distintos já começa a se delinear: uma capacidade de diagnóstico mais eficaz e a

utilização mais cuidada de conceitos permitirá à sua geração entender melhor o tempo

vivido.”41 Esse delineamento ainda está no início e, se a religião era então cidadã e capaz de

abrir caminhos para uma suposta emancipação colonial, percebe-se que a recepção religiosa

efetuada por estes réus era extremamente contraditória em relação aos desejos “ilustrados”

lusitanos. Mas o que possibilitou essa inversão entre religião posta e a realmente praticada e

pensada? Novamente devemos lembrar o contexto em que se deu estas ações. Pernambuco

atravessava uma das suas maiores crises financeiras propiciadas pela grande seca de 1816 e,

ao mesmo tempo, seus habitantes viviam num estado de “descontentamento constante”42

gerados por fatores como dívidas oriundas da já falida Companhia Geral de Pernambuco e

Paraíba, carência de gêneros de subsistência e, ainda os próprios conflitos sociais ocasionados

40 DH, vol. 102, 70.

41 MOTA, C. G. Nordeste 1817...

22

pela maior estratificação social neste período, no qual o número de homens de cor livres

pobres que perambulavam não só pelos sertões mas que se inseriam em vários setores sociais

neste momento, geravam uma série de contradições na já complexa realidade colonial.43

O que diferencia os eclesiásticos, em boa medida, da maioria da população era sua

formação intelectual. Não pode-se esquecer que a grande maioria da população era

analfabeta44, e essa formação clerical já vista, nos moldes ilustrados, propiciou a estes meios

para compreender melhor o mundo em que estavam inseridos. Livros proibidos por Roma,

principalmente aqueles referentes a Revolução Francesa, a partir de 1815, eram lidos e

disseminados por toda a América Portuguesa45 e, logicamente também em Pernambuco no

ano de 1817. Essa distância de Roma propiciava aos padres coloniais uma certa “liberdade”

no que tange as doutrinas e as suas práticas. Isso não lhes encerra na características de leigos

como afirma Hauck et. Al.46 pois, como nos lembra Durkheim todas as religiões são

verdadeiras47 e, assim, a religiosidade destes padres não deve ser percebida como leiga mas

sim como diferente dos moldes impostos no momento por Roma. Na verdade, sua recepção

seletiva – como expressa o termo de Bourdieu – se dá num contexto alhures daquele da Itália

e de qualquer outra parte do mundo. Desta forma, se torna até lógico imaginar estes clérigos

com armas em punho defendendo e reivindicando o que, para eles, era seu direito, uma vez

que, como indica a Pastoral escrita e distribuída por entre os párocos no período do Governo

insurgente:

42 Essa expressão retirada do livro de LEITE, G. Pernambuco 1817 que analisou de forma precisa o contexto e as realizações do governo

insurgente.

43 Ver Coleção documentos históricos vols. 92, 102, 103, 14, 105, 107.

44 Esse aspecto é bem ressaltado por MOTA, C. G. Nordeste 1817....

45 HAUCK, J.; FRAGOSO, H.; BEOZZO, J.; VAN DER GRIJP, K. e BROD, B. História da Igreja no Brasil... P. 77

46 Ibdem. P. 13

47 DURKHEIM. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 07

23

(...) as ovelhas do Recife conduzidas pela mão do Onipotente vieram em socorro dos seus irmãos e que em um instante e sem anteriores medidas e disposições se despedaçaram as cadeias, que há trezentos anos arrastamos. Cumpre pois entoar sem perda de tempo em todas as Matrizes ante o Senhor Sacramentado o grande Hino Te Deum Laudamos em ação de graças pela salvação de tantos bons patriotas e regeneração política deste belo país.(...)48

Assim, visando o bem-estar dos cidadãos esses clérigos não deixam de expressar o que

lhes foi posto durante sua educação fundamentada nas balizas do reformismo ilustrado

lusitano. O que muda é a recepção desta mesma teologia, que torna-se base para as idéias de

emancipação política de Pernambuco, visto que seus habitantes e o clero em geral, sentiam-se

descontentes com a Metrópole, dada sua ineficácia administrativa neste momento, conhecido

como período de crise do antigo do sistema colonial Português.

A religião surge como elemento de justificação de uma nova política que atendesse

aos desejos das elites coloniais pernambucanas e mesmo do povo que se torna seguidor – ou

que é feito seguidor pela persuasão – dos clérigos “ilustrados”, que se tornaram

disseminadores das idéias libertárias. Tais idéias, em suma, foram captadas de maneira

diversa da esperada pela teologia “pombalina”.

Essa religiosidade se expressa de maneira superficialmente igual tanto antes quanto

pós-insurreição mas, se observarmos os discursos nos diferentes momentos, notar-se-á que de

forma sutil ela é direcionada para fins diversos. Um dos exemplos dessa diferenciação na

recepção teológica está no sentido dado a palavra liberdade durante o levante.

48 DH, vol. 103, p. 57.

24

2.1 Liberdade e seu sentido na teologia insurgente

No que se refere a palavra liberdade muito presente em toda a documentação utilizada

neste trabalho, observa-se que nas pastorais escritas durante o Governo Provisório e em todos

os depoimentos de clérigos, tal expressão aparece com um sentido próprio ao contexto em que

se expressa.

Para os coloniais libertar-se da Coroa portuguesa significava ver-se livre da exploração

realizada por Portugal, como lembra Glacyra Leite e, ao mesmo tempo, tornar-se responsável

pelo seu próprio destino. Essa nova perspectiva posta durante o governo insurgente, conhecido

como Governo Provisório, aflora na documentação tanto teológica quanto de outros tipos.

Tentar-se-á observar nestas pastorais este aspecto da palavra liberdade.

Essa palavra aparece diretamente ligada a Deus, ou seja, “a nossa liberdade foi obra de

Deus”49. Essa ligação entre liberdade e o ser Onipotente deixa transparecer a utilidade que

tinha essa teologia libertária: convencer os párocos que sua libertação era algo divino e

inspirado por Deus. Sendo de inspiração divina não deveria ser contestada, da mesma forma

que, anteriormente, a vontade de El-Rei era a vontade do Senhor.

Uma mudança profunda ocorre no sentido dado ao local de justificação do poder: antes

o Rei agora o novo governo. Tal justificação era natural posto que os padres participaram

ativamente da insurreição. Assim, pode-se perguntar: como muda tão rápido a opinião

divina? Talvez essa mudança não tenha ocorrido de uma maneira abrupta, mas foi cultivada

durante anos dentro da própria Igreja que, como já foi colocado, durante a disseminação das

idéias ilustradas lusitanas, proporcionou um ampliamento da perspectiva de atuação dos

49 DH, vol. 103, pp. 60-61

25

clérigos, funcionários de um Estado e também responsáveis pelo bem-estar da sua sociedade.

A opinião divina não mudou; o que muda é a recepção da mesma idéia que se focaliza de

maneira diversa de acordo com o fim que deseja alcançar.50

Assim, Deus antes justificava o poder do Rei lusitano, agora justifica o poder do

Governo Provisório pois, como já foi visto era “ obra de Deus” a liberdade alcançada com o

levante.

Libertar-se da Coroa era para os clérigos parte de uma idealização para o completo

bem-estar dos habitantes da América Portuguesa. Esse objetivo sendo alcançado com a ajuda

de Deus passava a ser digno tanto materialmente, pois propicia uma melhora social, quanto

espiritualmente, já que Deus faz parte desta libertação.

Se a liberdade passa a ser divina, o estado em que se encontravam os habitantes da

capitania também se enquadrava num estado divinizado pois, na pastoral já citada:

nossas ovelhas habitantes do Recife conduzidas pela mão do Onipotente vieram em socorro de seus irmãos e que em um instante e sem anteriores medidas e disposições se despedaçaram as cadeias, que há trezentos anos arrastamos. Cumpre pois entoar sem perda de tempo em tôdas as Matrizes ante o Senhor Sacramentado o grande Hino Te Deum Laudamos em ação de Graças pela salvação de tantos bons patriotas e regeneração política deste belo país.51

Essa pastoral muito nos revela pelo conteúdo que nos passa. Ela foi escrita por

Bernardo Luiz Ferreira Portugal que, além de colaborador do Governo rebelde, era

Governador do Bispado de Pernambuco e Deão da Sé. Desta maneira podemos notar nos

50 Segundo Bourdieu a religião histórica, no caso a Cristã, tem suas práticas e crenças passíveis de mudança em seu conteúdo, em relação a

mensagem original, somente compreendidas se referenciadas à estrutura completa das relações de produção, de reprodução, de circulação e

de apropriação da mensagem, e por referência a história desta estrutura.

51 DH, vol. 104, pp. 90-91

26

escritos deste padre, que tinha grande importância no Bispado pernambucano, que as

conquistas rebeldes eram vistas pela Igreja católica como sinônimo de libertação, salvação e

regeneração se comparadas a situação anterior, ou seja, de Colônia. Mas se as condições eram

no período insurgente melhores que anteriormente, o que ainda faltava para completar o

estado de “alegria” que imperava no momento? Porque os clérigos tanto ressaltavam a

necessidade de paz52 entre os habitantes durante a insurreição? Esse desejo a paz presente na

documentação indica a existência de pouca coesão entre a população e, ao mesmo tempo, uma

fragilidade na estrutura social. Para amenizar estes desentendimentos a Igreja se empenhou

em pacificar os ânimos de suas “ovelhas”. Para tanto as pastorais editadas durante o levante

são exemplares.

2.2 A teologia como pacificadora de ânimos

Como já foi indicado, os padres nesse período aparecem na documentação como

persuadores da população à rebelião, sendo, deste modo, agentes de disseminação dos

predicados insurgentes. Os clérigos após o levante mantém um caráter primordial para a

sustentação e pacificação das suas “ovelhas” uma vez que eles tiveram um papel relevante na

insurreição, pois através da palavra, foram capazes de inspirar e modificar opiniões.

Tendo em mente as características descritas pertencentes a estes padres é importante

pensar que sem o suporte religioso pouco seria conseguido durante o levante, posto que ao

editar as pastorais estes clérigos imputavam a si a qualidade de pacificadores da população

52 DH, vol. 103, p. 58; DH, vol. 103, p. 56.

27

nordestina, como pode-se notar nesta passagem da pastoral elaborada e disseminada durante a

insurreição:

Encarregados, Católicas, ovelhas Pernambucanas, do Governo Espiritual deste Bispado, não devemos poupar trabalhos que tendam a conduzir ao sumo bem, e portanto vos fazemos certos em nome de Jesus Cristo, que não pode haver felicidade espiritual sem um exato cumprimento das virtudes e da caridade, do amor recíproco para com todos os homens, que a perfeição da Religião Cristã que felizmente professamos, está toda pendente da prática desta grande virtude, que Jesus Cristo de cuja moral Ele só deu lições, e exemplos, expirando entre tormentos, injuriado, e exacerbado de todo um povo, quase no fim do tirânico suplício, querendo dar provas do amor, que tinha aos homens, deprecou a seu Eterno Pai pelos ímpios assassinos; que é impossível gozar-se das vantagens que nos franqueia a Religião Cristã, e o mais perfeito e feliz dos Governos Patrióticos, sem reciprocamente nos amarmos, sem quebrarmos as vergonhosas muralhas da antecipação que nos podem separar da amizade e fraternidade de todos os homens, que aqui vivem e vierem habitar, seja qualquer for a sua Pátria, ou religião, e Profissão. Ordenamos a todos os reverendos párocos, pregadores assim seculares como regulares, que nos seus sermões, práticas, catecismos se empenhem na demonstração destas eternas verdades. (...)53

Nesta pastoral o tom de conciliação surge evidente pois, como lembra Carlos

Guilherme Mota, essas pastorais teriam realmente um tom conciliatório. Jorge Siqueira

também destaca essa qualidade das cartas. Mas qual seria então o objetivo desta conciliação?

Posto que estavam rebelados e deveriam a partir deste momento viver a liberdade conquistada,

a melhor atitude a tomar para pacificar os ânimos era conciliar-se com os portugueses

moradores na capitania. Essa conciliação não deveria ocorrer somente entre portugueses e

pernambucanos, mas entre todos os homens independente de “Pátria, ou Religião, e

Profissão.” Essa insistência vista na pastoral parece confirmar a vontade do Bispado de

Pernambuco em refrear desentendimentos e brigas no interior da sua paróquia. Essa

pacificação seria básica para a manutenção do estatuto de libertos da Coroa portuguesa, dado

que neste momento a coesão social interna era requisito primordial para a conservação de tal

situação. Essa vontade expressa de coesão social se exprime na pretensa igualdade entre

53 DH, vol. 103, pp. 56-57.

28

diversos profissionais, religiosos e nacionalidades. A religião se expressa então no sentido de

unir os diversos estratos sociais para atingir um objetivo comum que seria a descolonização.

Assim, como coloca Bourdieu, a religião contribuí para a “perpetuação e para a

reprodução da ordem social”54 que no contexto em questão seria a perpetuação e ordenação

desta população, agora livre dos ditames da Coroa portuguesa, mas que estava, paralelamente,

vivendo uma nova e inédita situação. Perpetuar e reproduzir este efeito de paz na capitania era

um dos objetivos deste clero insurgente que persuadia, através de sua retórica, suas “ovelhas”

para a manutenção da rebelião.

Se a teologia e a sua propagação eram utilizadas para apaziguar os pernambucanos

deve-se atentar para o fato de que também foi utilizada para justificar a liberdade conquistada.

Enfim, a teologia insurgente utilizou-se de todo o aparato conceitual que foi disseminado

durante anos na América Portuguesa pelo despotismo ilustrado para levar – persuadir – a

população pernambucana ao levante, à libertação, bem como a mantê-la coesa na defesa da

república contra um inimigo externo e comum: o absolutismo monárquico português.

54 BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: ed. Perspectiva, 1974. P. 70

29

3 AS DEFESAS DO CRIME DE LESA-MAJESTADE E A CONTRA REVOLUÇÃO

O envolvimento do clero na insurreição pernambucana já não é enfim fator de

discussão. Tanto o clero regular quanto o secular participaram ativamente do movimento de

1817. Essa participação foi considerada essencial para o desenvolvimento e eclosão do

levante, como coloca Jorge Siqueira que, realizando uma “leitura ao inverso” da defesa dos

réus de crime de lesa majestade escrita por Aragão e Vasconcelos, constata a importância que

representava as ações dos padres ilustrados para o sucesso e curso da insurreição55.

Uma das maneiras de perceber quais as formas utilizadas por este clero para participar

do levante e, ao mesmo tempo, como se viam e pensavam após o evento se encontra nas

defesas datadas entre 1818 e 1819. Um material vasto e pouco estudado como nos ressalta

Carlos Guilherme Mota56. Essas defesas elaboradas com apreço e dedicação pelos

advogados, a maioria de Pires da Franca e Antônio Luís de Brito Aragão e Vasconcelos,

contém uma série de elementos reveladores sobre a existência e participação dos eclesiásticos.

Enfim, “as defesas realizadas pelos advogados aproximavam os revolucionários do sistema,

na mesma medida em que, enquanto homens do sistema, modernizavam suas maneiras de

percepcionar as realidades vividas. Como resultado final, modernizara-se o sistema, e os

revolucionários reencontravam suas posições perdidas temporariamente.”57

Apesar da grande quantidade e do vasto conteúdo destas defesas deve-se atentar para a

importância que o advogado “ilustrado” tem nestes escritos pois, além do objetivo máximo de

defender o réu, para realizar esta tarefa ele deixa transparecer suas opiniões e gostos. Separar,

55 SIQUEIRA, A. J. de Ilustração e descolonização... p. 167.

56 MOTA. C. G. Nordeste 1817... p. 201

57 ibdem, p. 208

30

então, o que é de opinião do advogado e o que foi realizado pelo réu, no caso clérigos, é um

primeiro passo para a releitura destes documentos.

3.1 O principal advogado da insurreição: Aragão e Vasconcelos

Num primeiro momento deve-se destacar a educação e a grande erudição do bacharel

Aragão e Vasconcelos, principal advogado dos réus padres participantes da insurreição. Ele

estudou na Universidade de Coimbra e, durante várias passagens nas defesas dos insurrectos

de 1817, deixa transparecer claramente suas leituras. Citava filósofos como Aristóteles,

Brissot, Hobbes, Bentham, entre outros. Sempre que achava necessário recorria a

historiadores e imperadores da Antigüidade, como Tertuliano, Plínio, Hipócrates e Tito Lívio.

Todos esses autores foram necessários para entender a sociedade brasileira no seu tempo,

“dentro dos limites culturais e mentais do Brasil –Reino, e das deformações de sua profissão,

bem como da sua condição social, foi obrigado a recorrer a uma bibliografia extensíssima,

que impressiona pela quantidade e pela qualidade, (...).”58

Todo esse aparato bibliográfico utilizado pelo advogado esclarece sua formação

acadêmica. Educado nos moldes do despotismo ilustrado lusitano ele não deixa de

transparecer em suas defesas algumas características já vistas nesse trabalho. Na defesa do

conhecido Frei Caneca o advogado não êxita em justificar a participação de tal religioso

utilizando um argumento de seu período, pois o Frei “não regeu a vontade mas a coação e se

revolução tentaram fazer foi através de persuasão pelas palavras e não através do

58 Ibdem, p. 210.

31

constrangimento pelas armas.”59 Nesse ponto é interessante notar que além das afirmações e

atitudes ilustradas dos clérigos, dentro dos limites possíveis durante a repressão, tem-se

mascarada as mesmas idéias. Os mesmos pontos são utilizados para justificar a insurreição e,

após esta, para retirar uma acusação de participação do levante.

Mesmo que tentasse compreender e ajustar os rebeldes ao sistema, Aragão e

Vasconcelos teve grandes dificuldades para realizar esta tarefa. Num período de mudanças

dentro do sistema colonial esse homem por vezes se inclui nos moldes reformistas e por vezes

nos moldes liberais que começam a ecoar na América Portuguesa. Contudo suas

características vistas na sua época guardavam “maiores afinidades com o reformismo

ilustrado do que com o liberalismo propriamente dito.”60 Mesmo que necessitasse inverter as

ações de seus réus, esse advogado as conhecia muito bem e para isso necessitou utilizar além

da extensa e já citada bibliografia, todos os valores tanto sociais, como políticos e religiosos

para garantir a liberdade dos culpados do crime de lesa majestade. Interessante é observar a já

tênue separação feita pelo advogado dos campos políticos e religiosos. “A consideração das

realidades cultural, política e religiosa como pertencentes a planos relativamente distintos já

começa a se delinear: uma capacidade de diagnóstico mais eficaz e a utilização mais cuidada

de conceitos permitirá à sua geração entender melhor o tempo vivido.”61 Neste aspecto deve-

se ressaltar que essa maneira de perceber a realidade, ainda não fazia parte de toda a

população e, sim, de uma minoria letrada e educada. No caso grande parte do clero,

principalmente urbano, se encaixa nestas características, o que nos leva a levantar a hipótese

que, também eles, se percepcionavam em esferas separadas da política, tornando passível o

59 Ibdem, p. 206

60 Ibdem, p. 218

61 Ibdem, p. 223.

32

estudo dos valores propriamente religiosos dos participantes eclesiásticos do levante numa

concepção, em parte, distinta da política. Alguns destes valores religiosos postos nesta época,

e mesmo, como se enxergavam estes eclesiásticos do início do novecentos, podem ser notados

nas defesas elaboradas cuidadosamente por Aragão de Vasconcelos tendo como pano de

fundo os valores do despotismo ilustrado português.

3.2 Algumas formas de encarar e compreender os valores religiosos.

Conseqüência da grande quantidade de clérigos insurrectos foi o grande número de

defesas destes. As defesas escolhidas para análise são aquelas que Aragão e Vasconcelos

elaborou. Através destes documentos as ações realizadas pelos religiosos é interpretada de

maneira a atenuar e a retirar seu caráter rebelde. Assim, para interpretá-las deve-se, antes de

mais nada, atravessar a opinião do advogado e, após isso, rever o que era para o “sistema

colonial” passível de perdão e de enquadramento dentro de seus parâmetros. Essa

diferenciação entre valores do réu, da sociedade em questão e do advogado devem ser levados

em conta para penetrarmos nas ações e na forma de pensar a religião destes eclesiásticos.

A defesa de Frei Joaquim do Amor Divino Rabelo Caneca e de Frei José Maria

Braine62 é exemplar neste aspecto, pois os dois freis participaram ativamente da insurreição

chefiando guerrilhas e treinando para estas. Para justificar, ou melhor, desmentir tais ações

efetuadas pelos religiosos, o advogado teve de utilizar uma série de estratégias e, devido a

isso, manobrar um número grande de valores postos para essa sociedade. Num primeiro

momento as testemunhas devem ser postas em dúvida. Para tanto o recurso da inveja e da

62 DH, vol. 105, pp. 214-227

33

hostilidade entre os membros da própria congregação63 é viável, pois Frei José de Santa

Tereza,

Jura que sabe por ver que o réu se mostrou adido ao partido rebelde, que era muito amigo de Padre João Ribeiro, do qual trazia ordens vocais; que aprendeu o exercício militar no pátio da Ordem Terceira próximo à partida da expedição do Sul. Estas expressões = adido, influído no serviço, rebelde = é taxa geral com que se qualificou a todos e mui fácil de se impor, nós também poderíamos dizer que a testemunha o foi. Se a testemunha fosse livre asserverar ex cátedra uma qualidade do réu então bastaria dizer que sabe; mas quando a lei quis a prova do que a testemunha o não diz, logo é seu dito em vão. (...) A verdade é que o réu foi nomeado por ofício dirigido do Prior Frei Antônio de São José Olanda, que não admitiu escusa por se não comprometer, mas foi nomeado para capelão da tropa. A testemunha porém quis na primeira ocasião que se lhe abriu vingar-se do réu pela reprovação que fez à este religioso de gramática latina, quando em tempo do Provincial Frei Antônio de Santa Bárbara lhe foi ordenado que o examinasse.

Além deste conflito interno utilizado aqui para amenizar e destituir a testemunha de

sua real intenção, vemos também a força que expressões como rebelde, influído e adido

tinham como sinônimos de pessoas participantes da insurreição. Num país onde as palavras

tinham grande peso o testemunho e expressões como “ouvir dizer” eram, além de recorrentes,

importantes para o desenvolvimento e encaminhamento de um processo jurídico. Neste

depoimento a testemunha “sabe por ver”, o que dá ao seu saber uma maior força e

veracidade. Como desmentir tais afirmações? Primeiro, colocando que no momento do

levante todos poderiam se enquadrar enquanto rebeldes pois, se o poder foi tomado por um

breve tempo e, nesse tempo, todos estiveram sob sua tutela, quem não poderia ser classificado

de adido?

63 No livro Rubro Veio de Evaldo Cabral de Mello, capítulo 5, o autor cita algumas destas brigas internas entre congregações e

nacionalidade (portuguesa e brasileira). “(...) os beneditinos já não farão alarde de pendores nativistas, embora no século XVIII ainda

persistisse certa prevenção contra o mosteiro de Olinda, tanto assim que a Ordem era acusada de bloquear matreiramente aos abades de

Pernambuco o acesso ao provincialato baiano.” P. 236

34

Em segundo lugar, o ressentimento da testemunha por ter, a um tempo passado, sido

reprovado, numa matéria importante como a gramática latina, pelo réu. Sem intencionar o

advogado nos deixa um registro de que nem tudo era somente “fraternidade e afinidades”

dentro das ordens religiosas. As disputas individuais e os casos de desconfianças parecem

reais. Assunto pouco estudado e, que não é o objeto deste trabalho, mas indispensável pois é

uma observação que visa esclarecer algumas das relações entre estes personagens do trabalho.

Como nota Evaldo Cabral de Mello “o assunto permanece ainda virgem e a pobreza da

documentação de que se dispõe a respeito não é de molde a encorajar a investigação; o clero

teve sempre o cuidado de não comprometer suas posição aos olhos do povo cristão, tratando

zelosamente de escamotear seus conflitos internos e de impor-lhes a regra do ‘perpétuo

silêncio’.”64

Além desta aparição inusitada de uma rixa individual interna na ordem religiosa, surge

como curiosidade ainda neste mesmo documento, a justificação da não possibilidade de Frei

Caneca ser um capitão de guerrilhas, pois, nas palavras de Aragão e Vasconcelos,

Entendemos por capitão de guerrilhas um comandante maioral ou capataz de determinado ou indeterminado número de homens que fazem a guerra de correrias que interceptam bagagens e enfraquecem o inimigo e como pode haver um aparato e ações desta natureza privativas ao conhecimento de um só homem? (...) O réu foi nomeado para acompanhar o exército na qualidade de sacerdote para os exercícios próprios de sua profissão, seu estado religioso, a sua aplicação literária nenhuma relação tinha com os furores e vida turbulenta das arenas, (...)65

Um delineamento do papel do eclesiástico na sociedade colonial é traçado pelo

advogado quando levanta a questão dos “furores e da vida turbulenta” não coincidentes com a

vida religiosa. O que para a época e, para Pernambuco em especial, não era uma realidade

64 MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro veio. O imaginário da restauração pernambucana. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. p. 236

65 DH, vol. 105, p. 219-220

35

fixa, pois vários foram os religiosos que participaram ativamente de guerrilhas. Durante a

restauração pernambucana muitos foram os clérigos que participaram da resistência e das

guerras. “Quem melhor encarnou no imaginário nativista o clérigo belicoso, de armas em

punho a bater-se contra os invasores hereges, foi o beneditino pernambucano, frei João da

Ressurreição, por alcunha o ‘frei Poeira’ pelo seu vezo em animar a soldadesca aos gritos de

‘Avança, avança, e vá tudo em uma poeira’.”66 Assim, vê-se que para os nordestinos freis,

padres, etc. não eram somente tidos por pessoas pacíficas e munidas de boa retórica mas, sim,

poderiam mui bem oferecer seus serviços bélicos para lutar por uma causa que lhes agradasse.

Novamente o advogado torce uma realidade para justificar as ações de seu “cliente”. E, por

maior que pareça a ironia, outro fator desmentia e amenizava a participação do réu no

levante, nas palavras do mesmo advogado:

E como poderia o réu escapar ao império da força a que outros muitos não escaparam? Ou todos os que obedeceram, são réus e então não há um só inocente, ou o réu contra quem se não refere, senão ao fato contraditório em si mesmo do comando em Utinga deve entrar na linha geral dos constrangidos. O dito vago de testemunhas lhe não pode empecer, elas são tão cúmplices, como o réu, e este tem com eles, a mesma causa. Obedeceram à força, a que não se pode resistir. E poderia o réu esquivar-se ao mandato do governo se o seu prelado não o fez, tendo todas as faculdades? Se aqueles que tinham a profissão das armas cederam ao violento império da força como resistiria o réu que não tinha meios e que não ia destinado a empregar seus serviços contra o Estado.67

Frei Caneca surge como executor das suas tarefas religiosas no papel de coagido e

inocente. Como se rebelaria contra o Estado? Seu papel nesta sociedade era o de ser fiel a

Deus e ao Príncipe. Não fazia parte da lógica maior esse religioso seguir com os insurrectos

por livre e espontânea vontade. Foi com os rebeldes para o Sul desempenhar seu papel de

capelão e, não de comandante ou guerrilheiro. Nesse momento, num esforço de salvar o réu, o

66 MELLO, Evaldo Cabra de. Rubro veio. ... p. 234

67 DH, vol. 105, p. 222. Grifo nosso.

36

advogado acaba traçando um perfil do profissional da religião. Separando-o do político à

medida que o julgava incapaz de promover contestação da realidade vivida e, ao mesmo

tempo, de religioso enquanto pessoa afastada de tumultos e atividades belicosas e não

pacíficas.

Se houve um esforço para compreender e atenuar essa participação do clero na

insurreição, também ocorreu uma nova forma de vislumbrar estes mesmos clérigos pelos

indivíduos que fizeram a contra-revolução, ou seja, os reformistas.

3.3 O clero e a nova forma de encará-lo após o movimento de 1817

Passada as convulsões geradas pela revolta, presos os indivíduos que se consideravam

culpados, entre estes muitos clérigos. Inicia-se as defesas e o alastramento das opiniões e

lembranças sobre o fato ocorrido. No calor dos acontecimentos algumas cartas, e mesmo nos

autos da devassa gerados pelo levante, surgem as diversas opiniões que se formaram sobre o

clero pernambucano, e de toda a América Portuguesa, após a insurreição.

Numa carta de autoria incerta, estima-se que tenha sido escrita por um português68,

onde o autor desejava esclarecer e narrar os acontecimentos ocorridos na capitania

pernambucana no ano de 1817, as opiniões sobre o clero e de como foi vista sua participação

no levante, são claras e não deixam o mínimo de dúvidas:

Deixaram seduzir-se todos os vigários, não falo nos da praça porque esses há muito os havia iludido sua própria imaginação, mas os de todas as cidades, vilas e povoações do interior.

68 Esta conclusão e de José Honório Rodrigues, historiador, responsável pelas introduções dos volumes utilizados para esta pesquisa

intitulada Coleção Documentos Históricos.

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O guardião de São Francisco, muitos dos principais carmelitas, e outros, foram introduzidos, e o plano era ordinário, que sendo os chefes do partido os comandados depois da coisa declarada obedeceriam por força ou por vontade. A pretensão geral é que eles também tinham emissários no rio e Bahia, mas como interpretar se é ou não verdade? Pela verdade temos alguns fatos, algumas conjeturas, e pelo contrário só há a invisibilidade das cartas, ou papéis que os descobrissem mas como supresar papéis quando as coisas se tratam bocalmente, e que importa fossem por escrito quando os correios e particulares estavam desprevenidos? Os fatos que temos são: O Padre José Joaquim de Almeida e Castro, falecido antes da revolução, consta Ter estado no Rio quando foi despachado vigário para o bispado do Maranhão e aí tratara planos revolucionários com diversos padres de Minas, servindo-lhe de canal o D..., seus parentes, etc. (...) O dito Virgínio se contentou com a Campina Grande, não pelo rédito que é uma mera bagatela e em um sertão meio agreste, mas pela posição, extensão de terreno, e quantidade de seus habitantes. Pregou que cheio de sentimentos filantrópicos, ele mesmo queria instruir a mocidade de toda a paróquia e circunvizinhanças, e com efeito teve muitos discípulos, que ele ia fazendo outros tantos prosélitos do seu partido.69

E continua em outra carta (estima-se pelo teor que seja o mesmo autor):

Pela dissolução e vilania a que se tem arrastado o clero, a reforma dele é uma das coisas a mais precisa. Estudante algum se poderá mais ordenar sem passar por um rigoroso exame, não só do que lhe é necessário saber para exercício e defensa do seu ministério, mas também de um comportamento digno de ser Ministro de Jesus Cristo. (...) Os vigários que não forem justificados verdadeiros e dignos pastores das ovelhas de suas paróquias devem ser demitidos. (...) O clero é o ramo mais pernicioso (devendo ser o mais saudável) que tem o Estado nesta cidade, ou para melhor dizer em toda a capitania, não porque ele seja abertamente anti-realista, mas por qualquer padre ou frade o estragador das consciências, o profanador do altar e todavia gritando que sem o clero não pode existir o trono. Eu assento que eles assim clamam entre o povo crédulo, não para o bem do mesmo Estado que os sustem, mas para se fortificarem em bom conceito, número, e suas vidas depravadas.70

Nesta carta vários elementos presentes em todo o trabalho transparecem com uma

clareza admirável. O eclesiástico sendo o aliciador, persuadir pela palavra as suas ovelhas

como uma das suas principais aptidões. Enganar o povo através da palavra, enganar vista no

sentido do colonizador. O grande número de religioso que se rebelaram e se tornaram

69 DH, vol. 107, p. 234-235

70 DH, vol. 107, pp. 237 e 245

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inimigos do reino lusitano... A contradição da inexistência de trono sem religião mas, ao

mesmo tempo, a rebelião deste mesmo segmento contra o Estado que os sustenta...

Esses aspectos levantados pelo autor das cartas, numa fúria e consternamento notáveis,

mostra que dentro dos moldes do despotismo ilustrado, o ideal de Igreja subordinada ao

Estado, não teve a mesma recepção aqui na América Portuguesa. As mesmas idéias e

ensinamentos que objetivavam “ilustrar” o Reino tiveram um impacto inverso nesta sociedade

original e diferente. Padres cidadãos e, ao mesmo tempo, incrivelmente “racionais” foram

criados pela educação “ilustrada” tida como exemplar em Portugal. No Nordeste as novas

idéias e paralelamente uma nova forma de encarar a realidade proporcionaram a estes

religiosos o poder de contestar aquilo que parecia lógico e incontestável em outros momentos

históricos.

Todas estes elementos causaram mudanças na perspectiva de como se enxergava o

clero, e de como ele era visto pelos favoráveis ao sistema colonial. Uma mudança era

desejada pelos portugueses, que não tiveram muito tempo para realizar tal tarefa, pois alguns

anos depois a tão estimada separação aconteceria.

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CONCLUSÃO

Analisar todas as influências causadas pelas reformas pombalinas na América

portuguesa é um objetivo altamente difícil e complexo. Alguns elementos foram privilegiados

nesse trabalho que tentou perceber algumas destas influências na religião católica colonial, e

como esta mesma religiosidade recepcionou tais idéias.

Tanto as novas formas de educação quanto a própria idéia de uma sociedade melhor

modificaram-se após as reformas realizadas pelo Gabinete de Dom José I. Aqui na América

Portuguesa elas se refletiram de maneira diversa, visto que a realidade por que atravessavam

os coloniais era diversa daquela de Portugal no final do século XVIII e início do século XIX.

O Nordeste, e em especial Pernambuco, era um local de extrema movimentação, não

somente de pessoas mas, também, de mercadorias. A falta de gêneros de subsistência e uma

grande parcela da população sendo pobre, gerava um constante estado de “alerta” nas

autoridades locais. Misturada a toda esta complexidade social, surge neste ponto o Seminário

de Olinda, que visava ilustrar o clero nordestino. Qual o sentido desta ilustração na América

Portuguesa? Além de letrar e educar os futuros eclesiásticos dos sertões, este seminário foi a

baliza para alterar de forma radical a visão que tinham de si e de sua realidade esses

religiosos. Essa nova forma de encarar a realidade faz com que, numa contradição na

perspectiva colonizadora, eles se rebelem contra El-Rei e exijam uma separação com a Coroa

Portuguesa. Os reais motivos de tais desejos talvez ainda não estejam completamente

revelados mas, um pouco do que desejavam e pensavam estes religiosos podem ser vistos na

documentação que, infelizmente, quase toda foi elaborada pela repressão, com isso ocultado

uma série de elementos ainda obscuros sobre tal movimento. Mas, antes de procurar a

40

verdade final, pretendeu-se abrir mais fenda nesta religiosidade tão exótica ao olhar

contemporâneo.

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FONTES

Coleção Documentos Históricos volumes: 102, 103, 105, 106, 107.

BIBLIOGRAFIA

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