júlia vilhena r

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Page 1: Júlia Vilhena R

J Ú L I A V I L H E N A R .p a r a d o x o a m b u l a n t e . t u m b l r . c o m

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Deixo um pouco de mim

por onde passo para que nunca

venha eu a ser completa.

O 2 . J ú l i a V i l h e n a R .

“ “J ú l i a V i l h e n a R .

J ú l i a V i l h e n a R .

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Júlia Vilhena R.: Menina-mulher-

veleidade que faz do seu mundo a

mais perfeita utopia enquanto

lê.

“ “J ú l i a V i l h e n a R .

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PPorque tem muita gente querendo um amor perfeito e eu só quero um telefonema numa tarde de domingo perguntando se eu dormi bem. Eu quero um sussurrar ao pé d’ouvido quando eu clamar por amor embai-xo dos lençóis. Eu não quero nome e telefone do moço que conheci na feira de livros, eu quero contar as estrelas e entrelaçar os dedos meus nos dedos do homem que saiba ser menino e aprenda com os erros da

vida que errar é o primeiro passo para não perfeito ser: e que ele, este homem-menino-amor, que ele não queira a perfeição. Porque eu sou teimosia, carência e hedonismo e não quero viver a prisão de um amor infinito. Eu quero a certeza de um rock no acordar de uma quarta-feira no dormir da nossa aflição ao tocar dos lábios meus no cor-po seu e a calma de uma Bossa Nova “que você não liga se é usada” na lira silente do cego amor que ainda não me encontrou. Que eu, dessa vil tristeza da falta que faz

o amor, eu nunca quis e continuo a não querer um amor de realeza. Eu gosto mais das coisas pela metade, do Romeu e Julieta sem morte e da simplicidade que é necessária para plantar uma rosa na terra macia do jardim que flutua sobre a minha vontade de morar numa casa. Porque eu quero esquecer que um dia quis uma casa: eu quero um amor sem nojo nem medo, eu quero uma voz rouca tentando cantar ópera e rindo de si mesmo, eu quero ouvir a ‘nona sinfonia de Beethoven’ sem precisar sair de casa. Eu quero um professor de filosofia como marido, mas não que-ro casar e nem aprender filosofia: eu quero distância dessa vida exata que é a matemática diária de somar as minhas infelicidades. Eu quero alguém que me mostre que talvez eu esteja “querendo” demais. Eu quero uma aula diária de vida no abraço matinal e no beijo de despedida ao trabalho: eu quero um aconchego, um “chega pra cá”, um alguém que me ensine que para se tornar uma borboleta, não é só necessário o ca-sulo: é preciso, principalmente, sobreviver aos perigos da liberdade

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V

Vem cá solidão e me ensina que seu aumentativo pode amenizar a pa-cacidade dessa vida cíclica de desamores com a qual eu venho lidando. Porque disseram que a solidão é a pretensão de quem ficava escondido fazendo fita e eu não quero o peso da vida vaga e aguda que eu criei achando que a angústia do pouco que era e passei pras paredes de uma casa sem teto faria daquele todo de concretude e exatidão, amor. Mas

foi ilusão pintar as paredes de azul a achar que no fim do pintar surgiria ali um céu. Porque em todo nascer do Sol a gente se esquece de que a Lua também sabe brilhar e acaba que a vida fica nessa de não apagar. Eu lhe peço, pai, afasta de mim esse falar. Eu quero aprender a ser silêncio, sorriso e ópera. Eu quero aprender a ser o grito silente da lira da alma minha que não me lembro em que mundo perdi. Porque eu cai de mim, pai, e a tênue linha entre o que fui e o que sou é agora passado: não sequer sei mais ser. Porque, pai, a liturgia pra ser exata foi em

vão. Eu quero aprender a ser eu, pai, eu quero fazer do convívio comigo mesma algo pelo menos suportável: porque dizem que as metades são opostas, mas no fim, o amor faz de nós um todo.

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SSempre quis eu escrever poesias pois acho que fazem elas da alma de quem as escreve uma eterna lira. Tão pueril e singela a poesia de quem ama e tão doce essa coisa contraditória de se escrever em versos. Ver-sos de um sentir recôndito que faz arrepiar aqueles que sabem sentir. Mas talvez eu nunca tenha sabido sentir. Porque exijo eu daqueles que gosto o máximo que podem eles dar: peço à eles que sintam, que to-

quem, que cantem, que dancem. Mas eles, tão simples-mente humanos, eles não sabem que fazer um deles é automaticamente fazer todos. E talvez por acharem que requer labor extremo essa coisa tão maviosa, eles sequer olham pra flor vermelha em dia de Sol nos seus jardins e notam que há dentre aquela vida toda, uma gota-lágrima que não secou da chuva de ontem. Eles sequer sentem. Eles não deitam em suas camas durante uma tarde qual-quer de sábado e imaginam um céu cor-de-imaginação a

dizer-lhes para não esquecerem de que a Lua só brilha porque há ali o Sol e o Sol sequer reclama ou tentar fugir do rastro dela; para dizer-lhes que devem mesmo é amar. Talvez, quem sabe?, eles não devam amar e esses meus devaneios é que me façam não saber sentir. Ou quem sabe sei eu sentir e eles é que se enganam ao pensar que sentir é só fingir que o faz? Só sei que ouço o tocar de uma música-paixão na rádio que ouvem meus pais desde que quando era eu criança e sempre me lembro de que talvez não seja o céu exatamente infinito. Como é que sabem que não se chega ao fim algo em que eles nunca conseguiram chegar ao fim -ou ao “não fim”- para provar que não se acaba? Me disseram uma vez em manhã chuvosa em que o azul do céu agora era azul com cheiro amargo de dor e tempestade, que sentir era ir além do abjeto e ver numa pintura; numa página de livro; numa fotografia ou em qualquer coisa que faça prender os olhos à ela; o mais louco irreal daquela ilusão de achar. Ilusionismo, propriamente como tal, se trata de outra coisa. Mas quem disse que há diferença entre o que faz parecer o que não se é e o que não se faz parecer somente o que se é? As flores, sabe-se-lá porque, exalam doçura tanta que faz amar. Queria eu que fosse o mundo um pouco mais cheio de flores, para que ninguém se esquecesse de que, na verdade, não é o perfume que faz da flor cheirosa e sim a nossa suposição de que é cheirosa a flor. E pronto. Porque já disse Clarice que ela acreditava em anjos e porque o fazia, eles existiam. Quem sabe não se é só necessário acreditar? Deixa o sentir pra mais tarde.

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CComo um café. Amarga. Deliciosamente amarga. Azeda assim como a lira de quem ama. Porque ela é amor, é café, é do mais simples descer ou engasgar de quem bebe a ela, de quem bebe o sentir. Ela é inexatidão. “Um nó atado. Intransitivo.” Ela é aquilo que transborda desse coração de calidez que abraça o nosso corpo frio de quem sofre. Ela sofre tam-bém e isso a faz tão inteira que ela sequer chega a ser metade. Ela faz sentir. E talvez ela só o faça por não saber que sabe fazer sentir. E sabe.

Sabe tanto que quando escreve não escreve: sente. As palavras são dela a poesia, a alma. Ela se diz um canal. Mas como já disse, vejo-a mesmo como um café. Exagera-damente doce quando se quer sentir o gosto amargo da-quela escuridão e excessivamente azedo quando se pede açúcar. Ela é errada, humanamente errada. Ela faz do que é aquilo que sente e do que sou aquilo que ela sente. Ad-mito que sou hoje um pouco da doçura daquela flor e da leveza daquele anjo. Um pouco, só um pouco: porque ela

é tão extrema na beleza de ser o que ela é, que é quase impossível ser ela por completo. Ela é uma escada em que se pula os degraus pares, uma quinta-feira, um zaluzejo. Um zaluzejo que se falado certo se fica errado: porque o certo de ser ela é indesculpavelmente errada. Ela era uma menina que roubava livros e que hoje rouba o sentimento que se tem quando se lê o que ela é: ela sufoca, arranca o ar, exprime nas en-trelinhas tudo aquilo que se consegue sentir. E se consegue sentir tudo, e tudo se é exprimido e sufocado até que não reste mais ar. Ela é o sofri-mento de uma morte e a felicidade de não perfeito ser. Ela é, da mais vil e errônea felicidade de quem finge, a menina no canto com um livro na mão e o coração nos olhos. Ela é irreal. Encantadoramente irreal. Ela é uma borboleta que um dia foi lagarta e que esbanja no seu viciante voar a mais extrema beleza de ser livre, leve e solta. Mas ela é presa. Presa porque se prende ao que escreve, presa porque faz do que vive um so-nho e desse sonho a utopia de viver. Ela, talvez sem perceber, sequer vive: só sente e mente pra si mesma porque não vê que sentir a faz viver.

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OO dia começava sem muito entender que o fazia. O dia, tão certamente mudo e surdo em si mesmo era naquele lirismo estranho e nada lírico uma exata piada. Porque aquele menino, que era mais sorriso que me-nino, ele nunca foi muito de silêncio. A tarde, que nem sempre caia com a música calma que caberia melhor numa história de 45 minutos antes do nada, era mais dia pra ele do que a manhã em si. Ele se arrumava pro trabalho como quem pedia pra ser olhado, daquele jeito meio manso

meio atirado, de uma maneira tão Rock quanto calmaria, mas ele não calava e não se cansava de repetir “Please won’ t you tell me it’s got to go”, ele sentia falta de uma vida conjunta, mas gostava de dizer que era inteiramen-te livre e que da liberdade ele gozava. Gostava de dizer que o seu hedonismo preferia a vida de alguém que pode voltar depois das dez sem ser olhado de cima a baixo à procura de um beijo na camiseta branca, mas no fundo se via em seu sorriso torto que ele queria uma mão a entrela-çar as tuas nas noites de frio. Ele dizia, talvez sem saber

que o fazia, por um olhar quase tão cego quanto o amor, que o encostar na parede de um corpo nu que ele amasse fazendo do teu uma perfeita junção de calidez era o querer dele desde que ele não tinha mais. Talvez ele não soubesse amar porque amava. E só. Ou quem sabe eu enxergue nele só o que eu queira enxergar? Eu nunca o vi, mas sinto essa tua essência inexata só de imaginar tua voz nas palavras que ele escreve. A graça dele está no quão homem ele consegue ser sem deixar de ser menino: e esse tua contrariedade me encanta. Ele parece viver numa veleidade completa, numa utopia quase tão real quanto a realidade em si: ele faz do mais duro e real viver um idílio em si. Ele é lindo. Consegue entender o quão lindo ele é? Ele é horrorosamente lindo. E é essa coisa contrária que mais me encanta no que ele é: eu me encontro nele.

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EEu só quero seus olhos cor de amor nos meus me pedindo pra ficar mais cinco minutos em vez de correr pro trabalho nessa minha estafante ma-nia de chegar antes do “cedo” e uma voz mansa falando ao ouvido que quer fazer do corpo meu a peça do quebra-cabeça que é o corpo seu. Porque eu sou crítica, rigidez e prolixidade e quero a perfeição no mais imperfeito ser que souber amar para que eu possa perceber que a per-feição é uma ilusão de quem desconhece o amor. Eu quero a boca tua

na minha enquanto as tenras batidas do mar ao longe se faz silêncio. Quero toque, sentimento e canção. Quero po-der gritar que o Rock atual é uma blasfêmia ao Rock real e ser aplaudida pela inexistente platéia do nosso amor e quero também que saibamos ser eternamente crianças e humanos para que nunca nos esqueçamos de que é ne-cessário labor para se construir uma vida a dois, mas que o importante mesmo é o amor. Eu quero uma fotografia numa tarde de quarta em dia importante nenhum para que um dia eu possa ver que era aquele o dia importante em

si. Porque eu sou exigência, confusão e querer e não quero mais o gosto amargo dessa vida de quase. Eu quero um café da manhã na cama e um secar dos olhos quando em lágrimas estiverem eles. Quero um amor sem culpa e nem dor e um lirismo completo de vida. Eu quero um bem querer, um chamego, um pulo na piscina com jeito de criança que quer molhar a outra mas que no fundo acha sexy a birra da que foi molhada. Quero a pirraça de um menino-homem que não aceita as injustiças do mundo junto da minha vontade de mudar o mesmo. Eu quero um olhar com ar de futuro e quero que saiba ele fazer de mim mulher quando for preciso ser menina e menina quando for preciso ser mulher: eu quero que ele me mostre que podemos sim ser várias versões de nós mesmos.

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Do poema do corpo, da poesia da alma. Da calma. De um passado dito como esquecido. Das jaças do quão falso é este esquecimento. Amor, eu tenho de lhe perguntar: o que devo eu fazer para saciar a essa sede

de vingança contra mim mesma? Da vizinha estereotipada de donzela: tolice precoce. Desse frio. Desse coração in-domado. Falta carinho amor, nessa antítese de ser o que sou, falta clareza, amor, falta clareza. No folheto sobre signos, diz o mesmo de sempre: uma fase de mudanças. Será que não percebem que de novo só quero o que ainda não tenho? Excelso e sublime sempre aquilo que não exis-te. Dessa vil tristeza, tão reles, tão suja: ó amor, coloque um pouco mais de açúcar nesse amargo café da vida.

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Da poesia, do beijo, da plateia e canção. Dos sorriso a meia boca, dos olhares tão mais que muitas palavras, do hedonismo que fazia de nós visão de preguiça, do dia de ontem que foi jogado fora a dormir. Do não ter feito. Do gramado ressequido ao lado da árvore nunca plantada: de novo, do não ter feito. Do casulo a espera das teias produzidas na fase de pupa que no passado foi a fase chamada presente: e novamen-te, do não ter feito. Tanto tempo perdido, tão ociosas as nossas tardes vazias. Da petulância de ser o que sempre fomos: do estresse alheio,

do por a alheta nós mesmos. Tão tolos nós, tão fracos e insanos: Camoniamente num mundo feito de mudanças a conquistar qualidades - a diferença é que das qualidades esquecemos-nos. Tão pequenos os nossos passos para tão grandes sonhos. Tão tolos nós, volto a dizer, que dei-xamos a vida que nunca tivemos passar. Ó, amor, sejamos um pouco menos cruéis com nós mesmos: chegou a hora de pararmos de fugir do nosso amor, chegou a hora de pararmos de fugir dessa meia vida - talvez seja melhor

deixar o despertador tocar.

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Silente a voz que grita a dor, amor, silente o quase canto da minha pro-lixidade. Um lirismo completo, maviosidade em alta quando se trata de nós - ou da dor. Não dá mais, pequeno, e você sabe do que eu digo: o ciúme faz de nós desconfiança, o ciúme faz de nós tão tolice quanto di-zemos os outros ser. Não cabe mais poeira embaixo do tapete, amor, não cabe mais. Me diz, meu amor, por que faz tanto frio embaixo dos lençóis? Sempre tanto carinho, sempre tanto o que consideram suficiente para

nada dar errado: mas deu, deu errado. Da afeição, do amor, do desejo, da maior e mais completa recíproca do sentir, do toque, da calidez, do hedonismo mútuo fazen-do canção e paz - da ingenuidade de pensar que havia o que nunca houve. Será? Foi tudo da farsa e da procura cega pelo amor desconhecido? Será que foi tanto que, na verdade, nunca chegou a ser? Ah, amor.. eu queria tanto entender porque só amar (ou fingir que o faz) não é o su-ficiente.

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EEm exato, a contradição. Uma antítese do que também sou. Subtendida em mim mesma. Gosto de cafés e palhas secas no telhado das casas de campo, gosto de tudo que num processo de morte desperta: gosto do surpreendente tanto quanto a ele temo. Crítica, extrema e completamen-te crítica. Sincera, hedonista e masoquista além do normal masoquismo humano que insiste na dor somente pelo prazer de ver que algo (mesmo que a dor) é estável. Vê a simplicidade da coisa de ser o que eu sou? Vê a ambiguidade nesse infinito de três cacos e nove folhas brancas

extendidas na mesa da sala? Sou o exórdio de uma his-tória sem continuação ou o final de uma que jamais veio a começar. A dança no encalço da canção silente. Uma espécie de áurea inexata que no seu âmago apresenta so-mente cacos desconexos a colidir com eles mesmos - uma explosão de partículas imaginárias. O medo de temer, en-fim - falta-me coragem para ser covarde. Excelsa, penso eu, essa capacidade que tenho de fazer exatamente o que incomoda aos outros: é magnífica a sensação de que você

está a fulgurar no meio de uma multidão de gente igual: e você ali, di-ferente, estranha, indesculpavelmente errada. É boa essa coisa de ser exatamente o que não sou.

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T

Tão negligente com o que faz: queima a sua camisa preferida com ferro quente e derrama o café quase frio no piso de madeira do corredor. E corre com pano pra cá, corre com pano pra lá - e vai se esquecendo do ferro na roupa. Frita um ovo e esquece de colocar sal, liga pra lavanderia num domingo às onze da noite e reclama com o vento como os estabele-cimentos fecham cedo. Desmazela a si mesmo com sua calça rasgada e

uma sandália de dedo. Fuma um cigarro e não se permite chorar: tão frágil, tão tolo. Abre as gavetas com fundo fal-so do armário da cozinha e se esquece de que já bebeu todo o whisky. Tão imaturo, displicente para comigo tanto quanto eu sou para com ele: e me irrita essa competição de muda de quem é mais bobo. E eu sempre estive tão perto, tão colada ao corpo dele: coitado, não me vê, não me sente. Mas agora estamos juntos, é só fechar os olhos e pronto: somos tão nós quanto nunca chegamos a ser.

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D

Dança pequena, dança esse medo que tens de errar. Rodopia no en-calço dos teus próprios pés. Firmeza nos passos, postura e expressões frágeis dessa mulher-menina forte que és. Põe-se na alheta desse mun-

do, foge de ti mesma, pequena. Faz dessas antíteses de ideias que tem sobre o que és algo mais concreto: faz de ti só uma, só isso, simples mesmo com luxo, mas simples. Subverte de si mesma, volte à tona do palco da vida com o qual você brinca. E sorri, doce menina, envolve-se com o vento calado e ouve as tenras batidas do mar nas pe-dras rochosas. Se encontra ali, achou-se? O mar, tão só e pueril, como você. Dança pequena, só dança: deixa o sentir pra mais tarde.

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E

Extrema. Aquela ponte partida ao meio na estrada pela metade. Pouco mais que uma, e muito menos que duas. Pedaços do que quero me tornar no dia que passar a ser algo. A vida no-turna entre as matizes dos poucos e falhos lampiões que refletem na água do lago obscuro a cor das flores quase vivas. E seguindo toda uma liturgia com escopo nenhum, as casas de festa vão se tornando pouco a pouco o lar de todos os corações incontidos no peito dos meio amantes, meio o mesmo. E no fim do dia, eu percebo que o que eu faço, se resume em fugir de mim mesma.. E só.

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EE em todo acordar haviam as mesmas coisas: um pé de sapato no canto do quarto, uma xícara com café a esfriar na mesa da sala e três tipos de vida a disputarem aquele dia - dentre a nula, a barulhenta e a isenta dos dois, sempre ganhava aquela que nada tinha: as três. O nulo sempre foi a comprovação da existência do que se anula, e o barulho a prova de que o silêncio não tem perpetuidade o suficiente para durar eternamen-

te, mas que existe. E aquilo que é isento de nada e de barulho, é tanto os dois quanto não é nenhum - e assim, a vida dela começava numa manhã sempre sem forma exa-ta. Haviam os amores na rua, e a falta do amor que doía e era inerente a ela mesma: como sempre, haviam os dois e o nada a perseguir a mente ora prolixa, ora calada, ora as duas ou nada da menina que nunca aceitou ser igual por nunca realmente ter sido, mas ao mesmo tempo nunca ter deixado de ser. Difusa, calada, estresse, calma, um para-

doxo em ser aquilo que era. Ela temia o que conhecia e também o que desconhecia: porém, ao mesmo tempo, não temia nada - gostava mesmo era de ser oposta ao que também era por saber que já era tudo e nada com a mesma intensidade. Disseram-me uma vez que deve ser compli-cado pra ela viver, eu afirmo que sim. Uns conhecem sem saber, outros desconhecem achando conhecer: mas a única que realmente sabe a nostalgia e a beleza de ser como ela é, sou eu - afinal, eu e ela não so-mos nada além das mesmas.

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Epístolas de um falso amor. Cigarros entre deixar-se acesos ou permitir que a água faça deles passado: o ápice da loucura interna de uma mu-lher faz ganhar vida o que antes era somente a falta dela. E vai seguin-do, pondo o corpo a beirágua inerte num chão de fotos retalhadas que representam com exatidão o que um dia foi amor, e hoje é só lembrança. A dor se estica, roda, volta e diz ao vento para impulsioná-la para fora

daquele corpo tão fraco: mal sabe ela que está sendo cul-pada por deixar esse mesmo corpo, fraco. - Ao que é inerente a angústia? - A nada.- Como pode nada fazer doer?- No nada, não tem. E é isso que faz doer: a falta.Alguns chamam-a de fraca, outros dizem que não aguen-tariam ser ela. O que nenhum deles sabe, é que ela nem mesmo existe.

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É E M V O C Ê S Q U E M E A C H O !

m e a c h e i . t u m b l r . c o m n a o d i g i t e . t u m b l r . c o m

P R O J E T O :