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Educar para a vida Como a escola trata os jovens fora do padrão heterossexual e binário? Repórter: Júlia Orige É na escola que as crianças e adolescentes passam a maior parte do seu tempo e onde devem aprender, entre um e outro exercício de matemática, a viver. E a vida pode ser bem mais complicada do que a certeza de que dois mais dois sempre darão quatro. Uma parte essencial do aprendizado é a socialização, temos de aprender como nos relacionarmos com as pessoas. A escola pode ser vista como um espaço de socialização que deve usar a influência que tem para debater temas que problematizem a realidade. É assim que pensa a professora J. G.. Ela trabalha em uma escola particular no Córrego Grande, em Florianópolis, como professora das disciplinas de filosofia e sociologia. Para ela, a escola tem o compromisso de formar cidadãos cientes da diversidade social e garantir direitos iguais, respeito e acolhimento àqueles que se apresentam fora dos padrões heteronormativos. Heteronormatividade é como se nomeia o padrão de sexualidade aceito socialmente. Ou seja, meninos brincam de carrinhos e gostam de meninas e as meninas gostam de bonecas e querem ser mães. Diz respeito tanto à identidade de gênero como à orientação sexual.

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Educar para a vidaComo a escola trata os jovens fora do padrão heterossexual e binário?Repórter: Júlia Orige

É na escola que as crianças e adolescentes passam a maior parte do seu tempo e onde devem aprender, entre um e outro exercício de matemática, a viver. E a vida pode ser bem mais complicada do que a certeza de que dois mais dois sempre darão quatro. Uma parte essencial do aprendizado é a socialização, temos de aprender como nos relacionarmos com as pessoas. A escola pode ser vista como um espaço de socialização que deve usar a influência que tem para debater temas que problematizem a realidade. É assim que pensa a professora J. G.. Ela trabalha em uma escola particular no Córrego Grande, em Florianópolis, como professora das disciplinas de filosofia e sociologia. Para ela, a escola tem o compromisso de formar cidadãos cientes da diversidade social e garantir direitos iguais, respeito e acolhimento àqueles que se apresentam fora dos padrões heteronormativos.

Heteronormatividade é como se nomeia o padrão de sexualidade aceito socialmente. Ou seja, meninos brincam de carrinhos e gostam de meninas e as meninas gostam de bonecas e querem ser mães. Diz respeito tanto à identidade de gênero como à orientação sexual.

Em nenhuma das escolas onde trabalhou havia orientações em relação a gênero ou sexualidade. “As posturas adotadas se formulam no dia a dia da instituição, isso quando não é possível ignorar a ‘situação’”. J.G. aponta que não há clareza de que caminho se deve seguir em casos específicos, nem comprometimento com uma educação que não foque em binarismo de gênero (dois gêneros, menino e menina). “Isso é perceptível na atuação dos profissionais do ensino fundamental I com atividades de “meninos contra meninas”, ou na falta de estímulo da participação feminina em

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esportes ditos masculinos. Condutas divergentes ao padrão heteronormativo costumam acabar com a saída do aluno da escola, ‘por opção própria’, muitas vezes ele está sujeito a constrangimentos”. Ela complementa que não há, onde trabalha, no quadro de professores profissionais homossexuais ou transexuais e que isso é importante ser notado.

Em 2015, durante as votações para aprovação do Plano de Educação Estadual de Santa Catarina (PEESC), foi colocada uma proposta para inclusão de gênero e sexualidade na escola. Os Planos de Educação são compostos de metas, tanto o nacional quanto o estadual. As metas sobre sexualidade eram simples, abertas à interpretação das escolas. Programavam que entrasse nas aulas para o ensino fundamental e médio as pautas de homofobia, transfobia, lesbofobia. Estimulavam também o estudo de questões de gênero que promovessem a inclusão social. A proposta acabou saindo de pauta e o plano aprovado sem ela.

Como os alunos se sentem?

“Já levei ovada por minha orientação sexual. Sou gay”, conta George Linden, aluno do terceiro ano do ensino médio do Catarinense, colégio particular jesuíta em Florianópolis. Ele defende que haja educação sexual e sobre gênero em sala de aula. Crê que as pessoas se sentiriam mais acolhidas e inclusas na sociedade, independente de suas características. George Linden acha que o ponto crucial é o ensino fundamental. Para ele, é quando os jovens desenvolvem suas identidades e deveriam, com a ajuda da escola, aprender ética, tolerância e respeito com os outros. Os adolescentes homossexuais relatam preconceito principalmente dos colegas, e quando parte dos professores é em forma de ‘piada’.

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Leonardo Magalhães, estudante da terceira fase do IFSC - Instituto Federal de Santa Catarina, constata que a única vez que se sentiu desrespeitado em aula foi quando uma professora lhe disse que engrossasse a voz. Leonardo atuou numa peça de teatro, em que interpretou uma travesti e quando foi fazer uma visita ao IFSC, caracterizado da personagem, ouvia “viado”, “traveco”, entre outros nomes pelos corredores. A coordenadora pedagógica do campus de Florianópolis, Camila Farias Fraga, afirma que não há nenhuma iniciativa da coordenação sobre preconceito relacionado à sexualidade, ou gênero. Ela explica que depende do caso chegar até o departamento, para que possa ser pensado. O Núcleo de Estudos sobre Sexualidade e Prevenção de Drogas (NESPD) cuida dessas questões, promovendo debates e palestras.

"Aqui é onde senta aquele veadinho? Que nojo, cada vez que ele abre a boca tenho vontade de socar”, ouvia Henrique Flores, que é namorado de Leonardo Magalhães, durante o primeiro ano do ensino médio no Autonomia, escola particular em Florianópolis. Mesmo assim ele afirma que nunca teve grandes problemas por ser gay e acredita que sua escola é um lugar diferenciado, sem preconceito por parte da diretoria. Hoje ele está no terceiro ano e para se prevenir desse tipo de situação mantém distância de alguns colegas, tanto verbal como visual.

Não é só quem não se enquadra no padrão que sofre preconceito. Situações machistas são comuns. Yasmin Azevedo estava em uma aula de redação no colégio Catarinense quando seu professor instruiu a turma a escrever um texto e como exemplo usou uma história sobre uma garota que foi estuprada pelos amigos. Yasmin achou extremamente machista quando o professor insinuou que a garota havia bebido e dado motivos para o estupro. “Isso não tá certo, não é porque ela estava bêbada que é motivo para os meninos

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mexerem com ela”, enfatiza. Mas, para ela, o pior mesmo acontece entre os colegas, em conversas sobre feminismo fora de aula. Yasmin pondera que raramente os alunos vão falar sobre problemas à coordenação e crê que, para os professores, seria uma perda de tempo falar de preconceito. “Eles querem dar a matéria deles, em pouco tempo, e os alunos têm de passar no vestibular, não podem pensar nesse tipo de coisa”. A educação para a vida parece ser deixada de lado, priorizando conteúdos formais.

Marli Peressoni é coordenadora do COC – Floripa, de ensino médio e cursinho pré-vestibular. Ela justifica que os professores são mais velhos e de vez em quando falam alguma piada machista. Porém, os casos são resolvidos mesmo em sala, a reação dos alunos é imediata. Marli destaca que nunca ocorreu algum caso de preconceito grave. Ela acredita que a nova geração já cresceu num mundo de diversidade e entende a pluralidade muito bem, não sendo necessária nenhuma medida por parte da escola.

A educação é sempre prioridade quando se fala de mudar o mundo. Todos concordam que ela é necessária. Mas qual educação tem em mente quem fala dela? Decorar fórmulas de química pode não ser o suficiente para a vida. Aprender a respeitar o próximo pode ser mais importante.