jovens delinquentes paulistanos - antonio sérgio spagnol

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  • 7/21/2019 Jovens Delinquentes Paulistanos - Antonio Srgio Spagnol

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    Antonio Sergio Spagnol

    Os jovens que se envolvem com a delinqncia na cidade de So Paulo sem-pre chamaram a ateno de especialistas de diferentes reas, e a literatura dosltimos anos tem oferecido farto material para a elaborao de muitas anli-

    ses. Segundo alguns estudos, a primeira causa de mortalidade entre os jovensna faixa de 15 a 24 anos o homicdio. O nmero de jovens que morremassassinados no Brasil, segundo a Polcia Militar, quase sete vezes maior doque o nmero de vtimas de homicdios na populao total. No ano de2000, nas Febens do estado de So Paulo, a PM registrou o dobro de inter-naes de adolescentes acusados de prtica de homicdio e tentativa de ho-micdio. As explicaes para isso seguem vrias direes, passando pela de-linqncia, a excluso social, a cultura adolescente, as gangues de rua, at ocrime organizado.

    interessante notar tambm que essa violncia passou a ser o foco depreocupaes dos prprios jovens. Pesquisas mostram que para 49% dos

    jovens que habitam centros urbanos o principal medo e o que faz com quese sintam mais ameaados a violncia, independentemente da regio emque moram. Segundo dados da Fundao Perseu Abramo (2001), na re-gio metropolitana de So Paulo, 42% dos jovens afirmaram j ter vistopessoalmente algum assassinado, e em cada trs jovens um j foi assaltado.Outros estudos (cf. Digenes, 1998; Costa, 1993; Salem, 1995; Guima-res, 1998; Vianna, 1998) chamam a ateno para jovens que se agrupam

    Jovens delinqentes paulistanos

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    em gangues para suas prticas delinqenciais. No caso de Braslia, por

    exemplo, Waiselfisz (1998) mostra que, de todos os jovens internados nasFebens daquela cidade, cerca de 50% j pertenceram ou tiveram ligaescom gangues de rua, bandos ou quadrilhas1.

    Os internos da Febem de So Paulo que praticaram roubo ou furto re-presentam 67% do total, e a taxa daqueles que cometeram homicdios ficaem torno de 8,5% (cf. Febem, 2000). Mesmo assim, o homicdio a mo-dalidade de crime que mais chama a ateno da populao em geral e pro-voca reaes mais dramticas do que outros tipos de crimes, principalmen-te o homicdio que choca pela extrema violncia com que praticado. Oque mais impressiona a crueldade com que os jovens tratam suas vtimas.No somente matar, atirar ou esfaquear uma pessoa, mas tortur-la, cor-tar, furar, amassar, destruir seu corpo de maneira desumana, sem demons-trar nenhum sinal de arrependimento. Pelo contrrio e o que se mostraainda mais perturbador , parece haver prazer em matar, em destruir ooutro de maneira brbara e cruel. Essa preocupao com a forma como feito o crime, por parte de jovens ainda adolescentes, revestida de uma raivaextrema, revela algo inquietante nas relaes sociais. E a sociedade, de ma-neira geral, responde com preconceito e discriminao proporcionais vio-lncia cometida.

    A partir de uma pesquisa de campo realizada na cidade de So Paulo,no perodo de 1999 a 2002, tentei analisar esse fenmeno, que me pare-ceu to particular quanto amedrontador. O objetivo deste artigo reve-lar como se desenvolveu essa pesquisa e levantar questes relativas aocomportamento desses jovens, bem como esclarecer uma possvel rela-o com as chamadas gangues de jovens e o envolvimento de jovenspertencentes s classes mdia e alta na prtica de homicdios.

    A pesquisa teve incio com entrevistas com os internos na Febem Tatua-p, que relataram com riquezas de detalhes como cometeram seus crimes.

    Por meio dessas entrevistas, pude chegar a outros adolescentes em diferen-tes locais da cidade. Para o trabalho de campo limitei-me Zona Sul de SoPaulo, e a pesquisa se concentrou em bairros como Jardim ngela e CapoRedondo, com elevadas taxas de homicdio de uma maneira geral e quefiguram entre os mais violentos da cidade. O primeiro j chegou a ser con-siderado um dos bairros mais violentos do mundo. Tambm foi escolhida afavela de Paraispolis, que pode ser considerada um laboratrio de pesqui-sas, dados os inmeros estudos de que foi objeto. uma das maiores favelasda cidade e faz uma espcie de ligao entre os dois bairros citados e o

    1.O estudo de Dige-nes (1998), por exem-plo, mostra como seorganizam as ganguesda cidade de Fortale-za, Cear.

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    Antonio Sergio Spagnol

    Morumbi, bairro nobre da capital. Foram tomados tambm dois munic-

    pios da regio metropolitana de So Paulo, Taboo da Serra e Embu, am-bos na regio sul da cidade. Para efeito de comparao, foram utilizadostrs bairros considerados nobres na cidade, o prprio bairro do Morumbi,cercado pela favela de Paraispolis, e os bairros de Moema e Itaim-Bibi.

    Ao entrar nesse mundo, acreditava que meus personagens se escondiamnesses locais, mas percebi que, na verdade, sequer conseguiam sair deles.Caminhando entre os barracos das favelas e as casas mal acabadas da perife-ria, encontrava jovens armados que conversavam comigo tranqilamente,provocando uma sensao estranha: diante de um jovem manuseando umaarma, contando-me como ele matou suas vtimas, precisava concentrar-mena pesquisa proposta e, ao mesmo tempo, descobrir as rotas de fuga, dosbarracos, das vielas estreitas, como se tivesse que escapar a qualquer mo-mento. Uma sensao no muito diferente surgia ao entrevistar os jovensque habitavam as regies consideradas nobres da cidade: em Moema, noItaim-Bibi ou no Morumbi, os relatos dos jovens tambm provocam medoe estavam impregnados de desespero.

    No h estudos sobre a delinqncia entre os jovens pertencentes sclasses mdia e mdia alta. Entretanto, essa delinqncia existe, mas as in-formaes no chegam a pblico e seus familiares entram em cena imedia-

    tamente para que no haja a menor possibilidade de o adolescente ingressarna Febem como infrator. A mdia tambm colabora. As notcias que gerammaiores polmicas so as de crimes praticados por adolescentes oriundos daperiferia, principalmente se forem cometidos contra a classe mdia. Quan-to mais violento, sangrento e espetacular o crime, melhor para a mdia, poisele funciona como um forte atrativo. A violncia, apresentada sobretudocomo algo perturbador e descontrolado, pode denotar uma crise em rela-o ao Estado (cf. Michaud, 1998), que se apressa a apresentar inmerosprojetos visando reintroduo do jovem infrator sociedade. O papel da

    mdia, segundo Thompson (1999), provocar o medo, principalmente naclasse mdia, insistindo que a violncia oriunda das classes baixas. A in-teno alardear constantemente que a violncia est em todas as partes, atodos os momentos. Glassner (1999), um estudioso da mdia norte-ameri-cana, diz que a imprensa provoca o medo no no intuito de levantar odebate sobre a violncia, mas sobretudo para transform-la num eventodramatizado aos olhos da populao.

    Quando h debates, de maneira geral seguem divididos em duas fren-tes: uma defende que o aumento da criminalidade juvenil conseqncia

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    da falta de elaborao, por parte do Estado, de uma poltica eficaz no

    combate a esse tipo de infrao penal. Defendem o recrudescimento dosinstrumentos legais que inibem a ao criminal dos adolescentes e a dimi-nuio da idade penal, bem como maior severidade nas aplicaes daspenas e, muitas vezes, a idia da pena de morte, para alguns casos. A se-gunda frente discute o ECA Estatuto da Criana e do Adolescente, pro-mulgado em 1990 e sua real aplicao por parte do Estado. Acusam oEstado de omisso em relao ao estatuto e de no desenvolver uma pol-tica voltada para o bem-estar do adolescente infrator.

    Como fruto desses debates, surgiram diversas organizaes dispostas apropor solues prticas, principalmente quanto recuperao de menoresinfratores, como aqueles internados nas unidades das Febens de So Paulo.H tambm inmeros projetos direcionados aos jovens moradores de dife-rentes bairros da capital, especialmente os da periferia. A tentativa, de ma-neira geral, resgatar esse jovem do mundo da delinqncia e/ou no per-mitir sua entrada nele. Mas, apesar de todas essas iniciativas, o problemaparece persistir, e a delinqncia juvenil continua ganhando destaque epreocupando a sociedade, sobretudo a participao de jovens nos chama-dos crimes violentos.

    Os crimes cometidos por jovens de classe mdia que chegam mdia

    no so vistos, de uma maneira geral, como crimes cometidos por as-sassinos, monstros, homicidas, mas por jovens que apresentam al-gum problema que no conseguimos detectar. A questo principal quese discute nesses casos o tipo de educao ou problemas no detectadosnas relaes entre pais e filhos. A pergunta que se faz : Onde foi queerramos?.

    Apesar de encontrarmos jovens de classe mdia envolvidos com a cri-minalidade, a grande maioria dos adolescentes internados na Febem deSo Paulo oriunda da periferia da cidade e pertencente s classes traba-

    lhadoras pauperizadas2. Mas interessante notar que nessa mesma perife-ria encontramos adolescentes submetidos s mesmas condies sociais queem nenhum momento de suas vidas envolveram-se com o mundo do cri-me. Pelo contrrio, possuem muitas vezes um discurso de oposio aosdemais. No meio do caos em que se encontram, parece que ainda buscamuma normalidade de vida no binmio escola-trabalho, que lhes d ummnimo de esperana de melhoria de suas condies.

    fato tambm que a maioria dos adolescentes que cometem delitosno est sozinha nessas aes, mas conta com a colaborao de amigos,

    2.Regies como Cida-de Ademar, Jardim n-gela, Sapopemba e Ja-baquara, que so tam-bm as regies onde seconcentra o maior ndi-ce de desemprego. Es-ses jovens so os maisatingidos e a violnciaimpera nesse meio, oque os fora a se uni-rem em busca de segu-rana. Para alguns, per-tencer a um grupo podeser uma estratgia degarantia contra a violn-cia. Contudo, o mesmogrupo que d a sensa-o de segurana podese tornar uma ameaa,j que pode ter a cono-tao de bandidagemligada violncia (cf.Cardia, 1998): se a unioem grupos ou outras mo-dalidades de associaooferece num primeiromomento segurana, essamesma segurana podeser convertida em segre-gao por parte da co-munidade, que encara ogrupo como ao demarginais.

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    vizinhos e at mesmo de pessoas que mal conhecem. Essa unio, muitas

    vezes momentnea, considerada, na maior parte dos casos, uma espciede organizao entendida como gangue, bando ou quadrilha. A mdia,por sua vez, traz esse fenmeno para pauta do dia. H um grande alardesobre as atitudes desses adolescentes, principalmente quando envolve cri-me de morte ou crimes que caminham no sentido periferia-centro. Nosltimos anos, esse fenmeno passou a ser percebido como um problemasocial e ganhou estatuto de questo nacional.

    Contudo, a pobreza por si s no explica a violncia nessas reas, palcode nossa pesquisa, uma vez que os dados sobre outras regies da cidade,igualmente miserveis, apresentam um nmero menor de adolescentesinfratores. Alm disso, mesmo nas reas mais miserveis, apenas uma par-cela dos adolescentes envereda para o campo da delinqncia. Outros ele-mentos devem existir que indiquem as causas desse fenmeno.

    O modo de insero social dos jovens de diferentes gruposna cidade deSo Paulo pode ser distinto, mas h uma marca em todos eles: o uso da vio-lncia como forma maior de expresso. Apesar de esse tema ser consideradopreocupante no cenrio nacional, a violncia envolvendo adolescentes no assunto recente e nem menos debatido. O interesse da sociedade por essefenmeno vem do sculo passado e suas diferentes propostas de solues ca-

    minharam sempre juntas.

    As gangues

    A literatura norte-americana oferece-nos inmeros estudos sobre a for-mao de gangues de jovens delinqentes. A maioria aponta para o fato deque as gangues so coletivos formalizados nos quais o objetivo principal proporcionar ganhos econmicos e sociais a seus membros.

    Segundo Klein (1995), gangue pode ser qualquer grupo de adolescentes

    cujos membros sejam reconhecidos pelos moradores de determinado terri-trio como pertencentes a um grupo; identifiquem-se eles mesmos comopertencentes ao grupo; e tenham cometido um nmero mnimo de delitos,fazendo com que a comunidade local, bem como as autoridades, desenvol-vam em relao a eles e ao grupo atitudes negativas.

    Com a deteriorao das condies de vida das pessoas pertencentes sclasses trabalhadoras e do relacionamento delas com o Estado, alguns jo-vens desenvolvem estratgias para se tornarem empreendedores uma dessasestratgias formar gangues. Em vez de rejeitarem a cultura, adaptam suas

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    estratgias s oportunidades e aos recursos a que tm acesso. Em contra-

    partida, o Estado responde aprisionando e reprimindo seus membros, oque s faz fortalec-los cada vez mais. Assim, para Jankowski (1997), asgangues influenciam a estrutura social qual pertencem e a estrutura so-cial da qual esto separadas, assim como influenciam e sofrem influnciado meio no qual esto inseridas. Dessa maneira, o fenmeno das ganguesseria tanto uma resposta s condies estruturais da sociedade como parteintegrante dessas condies.

    O objetivo principal desse tipo de organizao proporcionar a seusmembros, basicamente, vantagens econmicas e sociais. Numa situaoestrutural como essa, as principais atividades da gangue, como organiza-o, destinam-se a assegurar os recursos financeiros necessrios para pro-porcionar lazer a seus membros (Idem, p. 30). Com a deteriorao dascondies de vida das classes menos favorecidas e o retraimento do Estadonas questes sociais, os adolescentes, principalmente aqueles oriundos declasses menos privilegiadas, buscam novas formas de sobrevivncia. Em vezde rejeitarem a cultura econmica prevalecente, as gangues aceitam os prin-cpios dessa cultura e adaptam suas estratgias s oportunidades e aos recur-sos que poderiam ter. Isso no significa que elas estejam empenhadas emacumular lucro, mas a perspectiva de ganhos, diante de uma situao eco-

    nmica incerta, atrai certo nmero de jovens, sobretudo os oriundos defamlias pobres.

    O jovem que deseja ingressar numa gangue deve passar por uma esp-cie de ritual de aceitao, que vai desde resistir a ser espancado at realizarpequenos furtos para satisfazer os interesses dos mais velhos. Ele deve se-guir uma hierarquia obedincia aos lderes e uso dos cdigos internos einformais para se comunicar. A unio que faz a fora do grupo. As ativi-dades econmicas cotidianamente desenvolvidas pelos componentes va-riam entre as diferentes gangues, e pode ir desde proteo aos comercian-

    tes do bairro at participao em prostituio, passando por roubos e assaltosdiversos (cf. Jankowski, 1991; Cohen, 1955).

    Essas explicaes sobre a formao das gangues, bem como a atuaode seus membros nas comunidades norte-americanas, mostram que o fe-nmeno proporciona ainda um vasto campo de pesquisa a ser investigado.O que parece ser um consenso nos estudos que grande parte da violnciadas gangues norte-americanas est relacionada s questes socioeconmi-cas. Para se manterem atuantes em meio deteriorao das condies devida e do caos urbano em que se encontram, os jovens unem-se em gan-

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    gues como estratgia de sobrevivncia e adaptam tais estratgias s oportu-

    nidades e aos recursos a que tm acesso.Nos Estados Unidos, as gangues ganharam espao e fama. Elas mantm

    relaes estreitas com a polcia, por exemplo, que as utiliza para expandirseu conhecimento em reas onde no consegue penetrar. Como no huma poltica pblica efetiva, as prises dos membros das gangues tornam-se um crculo vicioso. A polcia prende, mas algum tempo depois o jovemacaba sendo libertado. Assim, ambos a polcia e os membros das gangues so beneficiados. No caso da imprensa, tambm h benefcios mtuos: elase utiliza das gangues para obter histrias, pelas quais a comunidade podeser influenciada, e a gangue se utiliza da mdia para inserir-se no espao ur-bano e fortalecer-se.

    Todas as explicaes sobre as gangues norte-americanas, junto com aqui-lo que nos chega pela mdia impressa, e tambm o cinema, alimentam oimaginrio social a respeito da delinqncia juvenil e, de certa forma, in-fluenciam nosso olhar sobre os adolescentes infratores. Podemos pensarem gangues de delinqentes no Brasil, em especial na cidade de So Paulo,tal como existem nos Estados Unidos?

    No Brasil

    No caso brasileiro, a utilizao do termo gangue, quando se trata dedelinqncia juvenil, parece ser aleatria, especialmente por parte da mdia.Com ele se define qualquer grupo de jovens que pratique diferentes atosinfracionais. Quando um grupo detido, no raro o termogangue utili-zado para defini-lo, bastando que estejam presentes, no momento da de-teno, mais de trs jovens, mesmo que apenas suspeitos de um determi-nado ato infracional.

    Outro termo muito utilizado no Brasil bando, que geralmente em-

    pregado para designar um grupo de delinqentes organizado para um ob-jetivo comum e imediato, como um assalto, um resgate de prisioneiro ouum ataque, que seguido do desmantelamento do grupo.

    A quadrilha, grupo formado por pelo menos quatro elementos, reali-za aes semelhantes s do bando, mas no h necessariamente o des-mantelamento do grupo. As quadrilhas so compostas por um nmerorelativamente pequeno de pessoas, em geral jovens, que se organizamcom a finalidade de desenvolver atividades ilegais para o enriquecimentorpido de seus membros (Zaluar, 1997, p. 44). Isto configura um dos

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    pontos em comum entre as quadrilhas brasileiras e as gangues norte-ame-

    ricanas: a busca de enriquecimento rpido por vias ilegais.Interessante tambm a relao que os membros de uma quadrilha es-

    tabelecemcom seus vizinhos. No Brasil, essas relaes so bastante explci-tas. Um dos pontos referentes ao pertencimento de uma quadrilha a deter-minado bairro seu poder de interferir no cotidiano dos moradores (aodefinir, por exemplo, dias de luto, toque de recolher em escolas, em ruas, aabertura do comrcio etc.), constituindo o chamadopoder paralelo. Dianteda ineficcia da atuao do Estado na manuteno da ordem e da seguran-a, as quadrilhas tomam a dianteira, ora auxiliando os moradores da locali-dade, ora punindo com a expulso deste ou daquele morador, bloqueandoruas, fechando estabelecimentos, entre outras formas de sano. Os delin-qentes acabam ocupando o espao deixado pelo Estado, que no supri asnecessidades dos moradores, deixando-os merc daqueles. Grande parteaceita, ou obrigada a aceitar, esse poder em troca de certa proteo. Osque no aceitam so punidos. Um dos pontos principais dessa anuncia apromessa da quadrilha de defender os moradores contra bandidos de ou-tros bairros. Segundo Zaluar, que trata mais especificamente da cidade doRio de Janeiro, numa cidade cada vez mais dividida em territrios contro-lados por quadrilhas e comandos infestados de pequenos ladres e estupra-

    dores, a quadrilha local que respeita as regras de convvio com o trabalha-dor que exerce a segurana (1997, pp. 47-48).

    Dessa forma, o territrio ocupado, ao mesmo tempo que rea de se-gurana dos bandidos, torna-se, para os moradores, um espao protegidodas agresses de elementos da prpria rea e de bandidos de fora (Guima-res, 1998, p. 94). O poder dos traficantes aumenta quando conseguemdominar por completo o territrio, punindo os moradores que infringem asregras determinadas por eles.

    Na cidade de So Paulo, no so raros os casos de violncia que tm

    jovens como protagonistas que a mdia classifica como pertencentes agangues, quadrilhas etc. , e os motivos alegados so tentativa de invasoda rea ou simplesmente um olhar enviesado, constituindo os chamadoscrimes cometidos por motivos fteis.

    Os traficantes paulistas seguem o mesmo ritmo dos cariocas, apenascom alguns anos de atraso em relao ao controle e administrao dotrfico. Grande parte da violncia perpetrada pelos traficantes das fave-las paulistas tem tambm como causa o controle de territrios, disputade pontos de venda de drogas e vingana entre os grupos. Os jovens e

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    adolescentes, nesse contexto, participam como agentes e como vtimas.

    O jovem, especialmente morador da periferia, associa-se ao trfico, as-sim como quando se organiza em quadrilhas, como forma de ascensosocial rpida e de participao no mercado de consumo, inacessvel deoutra maneira.

    No caso da cidade de So Paulo, as quadrilhas, sobretudo de traficantesde drogas, no parecem ocupar o papel do Estado no que diz respeito aoauxlio s comunidades. No seguem a mxima de estar presente onde oEstado omisso. O controle maior direcionado ao trfico. A interfernciana comunidade grande no sentido de se fazer obedecer, como por exem-plo ao proibir a circulao de carros e pessoas numa determinada parte dafavela, fechar as portas dos estabelecimentos comerciais como forma derespeito a algum traficante morto ou impedir a passagem numa determi-nada rua da regio. Isso tudo imposto, salvo pequenas excees, e nada oferecido em troca, como ajuda aos doentes, reformas de casas ou constru-o de qualquer outro tipo de empreendimento que seja necessrio para acomunidade. A imposio das vontades dos traficantes respeitada pelomedo, e o silncio a resposta. Nesse contexto, a participao dos jovenscomo autores de crimes graves extremamente reduzida. Eles aparecemnum segundo plano ou como coadjuvantes dessas aes.

    Em So Paulo

    No pude constatar em minha pesquisa a presena de jovens organiza-dos em grupos com a finalidade de praticar crimes ou outras atividadesilcitas consideradas graves. Na cidade de So Paulo, pelo menos nas reaspor mim pesquisadas, no h indcios de jovens organizados emgangues,tal como esse fenmeno definido por pesquisadores.

    A preocupao principal em minha pesquisa reside nos jovens que prati-

    cam atos considerados graves, como os homicdios. Nos locais pesquisados,esses jovens no esto ligados a uma gangue ou a qualquer outro tipo degrupo. Eles esto, sim, ligados comunidade e se identificam como tal. Emseus discursos, pode-se encontrar a regio como caracterstica principal desua origem: Sou de Santo Amaro, Sou do Taboo, Sou do Capo.

    Apesar de haver uma grande identificao com seus bairros e regio, no hidentificao com grupos ou gangues. Eles circulam pelos bairros comomoradores, mas no como pertencentes a esse ou aquele grupo, e os relatosmostram tal independncia:

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    Resposta A meu... num tem essa de grupo... de gangue... aqui cada um por si.

    Se eu tenho uma treta cum camarada, eu v l e vejo o que d... v cham?...ningum no! comigo memo...

    Pergunta Voc nunca se envolveu com uma gangue aqui do Capo ou de Santo

    Amaro?

    Resposta Eu no... nunca vi esse negcio.

    Pergunta Mas como, se voc falou que fez um assalto e estavam em quatro?

    Resposta Ah! Mas tudo camarada daqui... sem esse negcio de gangue. A gente

    tava aqui e falamo: vamo faz?... A Zito [um amigo] disse: vamo cham mais

    gente. Chamamo mais dois e falei: t afim da fita? T? isso... fizemo. Depois

    cab... isso a... t ligado?

    Pergunta Mas esses dois no eram seus amigos?

    Resposta Amigo?... ah, amigo assim... daqui, n? T ligado? Tavam sem faz

    nada, a veio com a gente! Depois acab... se pintar outra fita quem sabe a gente

    vai de novo (R. S., 17 anos, Capo Redondo, internado trs vezes na Febem Ta-

    tuap por roubo).

    Pergunta Aqui no Taboo no tem gangue?

    Resposta Gangue?... Bem... o pessoal fala, n? O trfico... coisa e tal.

    Pergunta No... eu estou falando de jovens como voc, 16, 17 anos... que se

    juntam em grupos pra fazer uma fita...

    Resposta Eu no conheo... Eu sempre fiz sozinho... quer dizer... de vez em

    quando, c sabe... a gente faz junto.

    Pergunta Como funciona....

    Resposta A gente cumbina com um, com outro... o que tiv livre vai e quem tiv

    a fim, n? Mais da s... cab, se pint de novo... (W. P., 16 anos, Taboo.)

    Os jovens envolvidos na criminalidade agem segundo a expectativa domomento, no h uma pr-elaborao de planos ou uma hierarquia. Os

    que atuam em grupos no se sentem obrigados a se submeter a uma estru-tura hierrquica, a rituais de aceitao ou de qualquer outro tipo paraparticipao na prtica de delitos. O que h em So Paulo, em compara-o, so quadrilhas, similares s existentes em outras capitais, mas a pre-sena de jovens na estrutura geral delas secundria em quantidade e im-portncia. So poucos os adolescentes que controlam grupos de trfico nacidade. Os jovens quadrilheiros atuam como mensageiros, olheiros, entre-gadores (avies) de drogas e at como matadores de clientes endividados emoradores que se opem ao trfico. No ocupam o papel de grandes che-

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    fes, de controladores do trfico ou mesmo da boca de fumo. Eles se

    reconhecem nessa posio ao se referirem aos comandantes por pais,pois eles so, na verdade, filhos do trfico.

    O trfico no deixa nenhuma dvida quanto forte atrao que exercesobre uma parte dos jovens da periferia. As entrevistas realizadas com jo-vens infratores em diferentes bairros de So Paulo indicam que esse fasc-nio pela delinqncia se expressa no desejo de dominar, impor sua vonta-de ao outro, e visto por todos os demais membros como uma atitude degrande relevncia. Num roubo ou num assalto, por exemplo, levar o frutodo roubo no to importante quanto humilhar o outro durante a ao dominar da forma como bem entender, segundo eles. A satisfao aps aao criminosa pode ser notada quando recontam detalhes, para eles pr-prios, daquilo que presenciaram. O relato dos jovens os identifica comopertencentes ao grupo e legitima a ao. Acredito que essas aes podemindicar que as relaes baseadas num princpio de reciprocidade esto decerta forma rompidas e podem, assim, fazer emergir outros laos sociais,baseados no fascnio pelo poder de destruio.

    Destruio

    Para a populao em geral, muito mais compreensvel a ao de umindivduo que rouba para sobreviver, que no tem o objetivo especficode matar o outro, mas se apossar de bens materiais, do que em relaoquele que anda armado e faz do roubo sua profisso e da morte do ou-tro um meio de obteno de prazer, um capricho. So os chamados cri-mes insensatos, segundo Katz (1988).

    Um jovem internado na Febem Tatuap relatou como ele e um amigoterminaram com a vida de seu ex-patro. O jovem trabalhava numa loja deferramentas na regio central da cidade de So Paulo havia dois anos. Se-

    gundo ele, seu patro, de cerca de 60 anos, agia sempre como se ele, ado-lescente, fosse um qualquer, sempre falando duro e de cara feia. Diver-sas vezes o patro, que morava sozinho e tinha apenas uma empregada,mandou que levasse compras pessoais at sua casa. Por detestar essa ativi-dade, nutria a vontade de um dia poder assaltar aquela casa e, como ohomem morava sozinho, acreditava que no encontraria grandes dificul-dades. A idia ganhou fora quando o jovem foi demitido, segundo ele,sem mais nem menos. Convidou um amigo da rua para a empreitada.Chegaram armados, de madrugada, e seguiram pela porta lateral, onde o

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    rapaz sempre deixava as compras. Enquanto ele e o amigo reviravam a sala,

    foram surpreendidos pelo proprietrio, que, espantado com a presena doex-funcionrio, questionou o porqu daquilo. Os rapazes no responde-ram e iniciaram uma sesso de espancamento descontrolada. Segundo ele,chutavam tudo que viam na frente, apesar de armados.

    Com uma esptula de abrir cartas, fizeram vrios furos no corpo dohomem, que faleceu no centro da sala em meio a uma poa de sangue. Oadolescente, ento, ergueu um vaso de flores do tamanho de um balde esoltou-o sobre a cabea do ex-patro, j morto. Antes de sair, o jovemvoltou e pisou com a ponta do p no sangue que estava no cho.

    Pergunta Por que voc pisou no sangue?

    Resposta Aquele homem pisou ni mim por dois anos, fui l e pisei nele.

    Pergunta O que vocs levaram de l?

    Resposta Nada... a vida dele.

    Pergunta Voc acha que precisava matar seu ex-patro?

    Resposta Acho... ele sabia quem eu era.

    Pergunta Por que voc no atirou nele?

    Resposta Porque da era mais rpido. Ele precisava apanh! (P. S., 17 anos, Febem

    Tatuap).

    Outro jovem, este de classe mdia, relatou um caso ocorrido com ele eseu amigo:

    Resposta Tava eu e um amigo meu l na [avenida] Faria Lima, perto da Dacon.

    Tava dando uma banda l e a a gente pensou em pegar um carro pra gente ir at o

    Guaruj dar umas volta na praia. Era o qu? Umas dez horas e era sbado ainda. A

    a gente viu um vio num Vectra estacionando numa esquina, assim, perto da

    avenida. Era um vio que tava manobrando devagarzinho... olhamo e falamo: A,

    esse a?. Amigo meu falou: S se for agora!. Eu tava com uma arma, meuamigo tinha um 38. Eu fui na porta do motorista e enquadrei. A, tio, sai! Sai! O

    vio falou: Que sai o qu? Sai voc, moleque!. Porra, eu falei! Qual que

    desse vio?... Sai da, meu! Meu amigo tentou abrir a outra porta, mas tava

    travada. A, dei um grito A, sai da vio, se no vou estourar a sua cabea! A ele

    parou e ficou olhando pra mim assim... E no saiu... coloquei o cano encostado no

    vidro e atirei... acho que foi na barriga dele, ele caiu assim pra trs... a caimo

    fora...

    Pergunta Na Faria Lima? Ningum ouviu?

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    Antonio Sergio Spagnol

    Resposta Ah! Quando o homem caiu pra trs saimo correndo... no vi ningum...

    Pergunta O homem morreu?Resposta No sei... acho que no... (P. J., 18 anos, Morumbi, duas passagens pela

    Febem por roubo. O pai advogado e possui um carro modelo Vectra, mesmo

    modelo que ele pretendia levar da vtima).

    Esses dois crimes no se enquadram no que poderamos considerar moti-vao para o roubo ou mesmo vingana, como no primeiro caso. Apesar defigurar como roubo, eles transcendem as justificativas de aquisio mate-rial. Para estudar essas aes devemos levar em considerao a dinmicaemocional que envolve o crime em si e tambm as prprias definies queo jovem apresenta aos outros, isto , a auto-imagem que ele elabora. Se-gundo Katz (1988), devemos prestar ateno nos fatores que relacionam osimbolismo do mal e as emoes de desvio, assim como nas caractersticasda prtica na cena onde o crime ocorreu.

    Os jovens, sobretudo os que habitam a periferia e esto envolvidos eminfraes graves, passam boa parte do dia sem fazer absolutamente nada.Geralmente, aps um assalto, um crime ou outra participao numa aograve, eles se retirampor um perodo, ficando fora de combate, afastados,por algumas semanas, enquanto consomem o fruto do assalto. Os que tra-

    balham com o trfico esto mais ocupados no final da tarde e noite, quan-do todos os gatos so pardos. Normalmente passam o dia vendo televiso,

    jogando bola nos poucos campos de terra que ainda existem na periferia,dormem, soltam pipa, usam droga e fazem sexo. Nada incomum vida damaioria dos adolescentes, principalmente se se acrescentasse o item escola aessa lista. Uma vida que, se analisada por quem est fora dela, de certa formaparece at hedonstica.

    Os jovens que entrevistei, apesar de levarem uma vida em que o crimeviolentofaz parte de seu cotidiano, conseguem combinar outros tipos de

    aes entre um crime grave e outro. O que caracterstico que suas ativi-dades esto entrecortadas pela delinqncia, o que os obriga a levar umavida difusa, na qual praticamente tudo o que fazem est envolvido poraes ilcitas, desde suas relaes mais pessoais, familiares, at o espao emque transitam. O que os seduz a prpria ao criminosa. Essa talvez seja agrande diferena entre os criminosos jovens e adultos. Os jovens vivem essaqualidade sedutora da ao delinqente; j os adultos, agem mais racional-mente antes e depois da ao. O jovem busca emoes, enquanto os adul-tos fazem de sua vida criminosa uma profisso. Um jovem internado na

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    Febem Tatuap relatou o seqestro relmpago de uma jovem, prximo ao

    bairro do Butant, zona oeste de So Paulo:

    Resposta Camarada nosso j tinha dado a fita pra nis. Eu e outro cara a esperamo

    a dona sair, era cedinho, assim sete hora, acho. M caso, cara. Ela foi tirando o

    carro assim de r, quando saiu na calada enquadramo, cara. Tirei o trezoito

    assim, meu! Num tem outra. Ela ficou vermelha, comeou a tremer, assim. E eu

    vai, vai, vai!

    Pergunta O que voc sentiu na hora? Lembra?

    Resposta , meu! Senti uma coisa assim, esquisita. O dedo ali, cara, hum, num

    sei no. O diabo atenta, num atenta? D uma vontade de apert. Mas eu s dei

    uma assim [um soco] na cabea dela. A a gente foi no carro dela at o banco, mas

    fui assim, na mai adrenalina, cara! Falt isso pra apertar o cano! (W. A., 16 anos,

    Paraispolis, internado na Febem por esse seqestro, que acabou na porta do caixa

    eletrnico, onde foram pegos pela polcia).

    Esses jovens levam uma vida com uma significao especial e, alm demanterem uma estrutura temporal aberta (no h o que fazer com o dia ecom a noite a no ser reafirmar a delinqncia), tambm organizam umaestrutura social que engendra as diferentes linhas de ao. Vivem, assim,

    constantemente entre dois plos de instigao social. Por um lado, h aopresso institucional que a todo instante lhes cobra a obedincia ordeme os aconselha a seguir o caminho da regenerao. Por outro lado, notm como fugir do mundo da delinqncia. Devem por essa via atualizarperiodicamente seu repertrio de prticas deliqenciais, ampliar seu raiode ao e de contato. Estender seu currculo, se tornar cada vez mais auda-cioso, enfrentar todos e todas as circunstncias com que se defrontam emseu caminho tortuoso (Adorno, 1991, p. 208).

    A classificao de desviantes, que os outroselaboram, s vem de encon-

    tro s suas expectativas. H um forte apelo entre esses jovens de se configu-rarem entre os seus como uma espcie de outsiders. A forma de andar, osgestos com os braos, com as mos, as grias utilizadas, no so caractersti-cas apenas do jovem da periferia, mas tambm esto presentes, pelo menosem parte, entre os adolescentes das classes mais abastadas. Utilizam o corpocomo forma de linguagem. Os jovens da classe mdia imitam os jovensda periferia, identificando-se com as roupas, a linguagem, o gestual, o rapque invadiu os condomnios dos bairros nobres da cidade. Ser tachado demarginal pelos outros chega a ser uma conquista. De maneira geral, o pri-

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    meiro passo na maioria das carreiras desviantes a omisso de um ato no

    conformista. No proposital, no h por trs disso uma inconformidadeintencional (cf. Becker, 1973).

    Em diversos momentos da pesquisa pude constatar que os jovens se sen-tiam eufricos em relatar com riqueza de detalhes os assaltos, as mortes, asaes. Era praticamente impossvel anotar tudo o que falavam: as entradasnas casas, as fugas, as mortes das pessoas como se tivessem cometido atoshericos e a aceitao por parte dos outros, tudo reafirmava esse herosmo.

    Apesar de internados na Febem, o relato possua a mesma emoo. Ainternao era apenas um detalhe, como se houvesse a necessidade de reafir-mar na negao. H momentos esparsos de resignao, de solido, mas queso rapidamente suplantados pelas descries de seus crimes e pela esperan-a de sair da instituio. So momentos em que esses jovens transcendemum dilema existencial, que relacional e interno (o que sentem), identida-de exterior (o que pensam deles).

    O espao fsico interfere tambm nessa construo, uma vez que umespao de desprazer, principalmente a periferia. um espao que sensibi-liza negativamente o sujeito, que passa ento a lutar contra toda situaodesencadeadora de desprazer a fim de conseguir um equilbrio entre prazere desprazer (cf. Lorenz, 1988). Um dos resultados dessas aes que o

    homem no investe em empreendimentos que prometem ganho de pra-zer a longo prazo. O que resulta uma impaciente demanda de satisfaoimediata a cada novo desejo (Idem, p. 46). Entre um momento desejantee outro, h o vazio que precisa ser preenchido. a sensao de vazio queassinala o momento em que preciso preencher os espaos interiores (cf.Sissa, 1999), o que no significa matar, mas tambm beber, comer, fazersexo etc. Ou, de outra forma, matar a fome, matar a sede, matar o outro,o que se realiza fora dele. Essa sensao, relacionada com o outro, depen-dente do outro, est tambm vinculada ao campo do ertico.

    A periferia muito feia. Os jovens que habitam essas regies, em mui-tos casos, sentem-se envergonhados de mostrar suas residncias. A ima-gem sempre impregnada de negativismo, desvantagens em relao aosoutros bairros e, conseqentemente, s outras pessoas. Eles demonstramisso num discurso misto de revolta e orgulho: revolta por estarem aban-donados nessa situao e orgulho pela tentativa de impor-se por essenegativismo.

    O jovem pertencente classe mdia tem tambm esse mesmo posi-cionamento e os mesmos dilemas. A imagem que prevalece para o senso

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    comum a de que so na verdade um bando de rebeldes sem causa,

    mas o sentimento de falta o mesmo do dos jovens da periferia. Osrelatos so os mesmos.

    Segundo Bourdieu, pode-se representar o mundo social em forma deespao (e vrias dimenses) construdo na base de princpios de diferencia-o, ou de distribuio, constitudos pelo conjunto de propriedades queatuam no universo social considerado, quer dizer, essas propriedades po-dem conferir, ao detentor delas, fora ou poder nesse universo (2000, pp.133-134). Cada um dos agentes estaria em posio relativa nesse espao,cada um numa regio determinada dele, e ali os indivduos estabelecemsuas relaes. Assim, o espao pode ser descrito tambm como conjuntode relaes de foras objetivas impostas a todos os que entram nesse campoe irredutveis s intenes dos agentes individuais, ou mesmo s interaesdiretas entre os agentes. O que existe, portanto, um espao de relaes oqual to real como o espao geogrfico (Idem, p. 137). tambm nesseespao que os jovens se relacionam e traam seus objetivos de vida. a quefalam sobre suas aes e planejam seus crimes. Esse espao funcionacomo estilo de vida e, portanto, no um espao qualquer, mas est forte-mente marcado e preenchido de signos inclusivos, que demarcam a pre-sena do controle daquele territrio pelo grupo ou comunidade [...]. O

    espao tende a ser lido assim a partir das categorias absolutas nosso e de-les, alis como os demais valores associados a essa dinmica (Costa Go-mes, 2002, pp. 64-65).

    A representao que o jovem tem do mundo social e a construo daviso de mundo oriunda dessa percepo constituem a viso de sua prpriaposio nesse mundo sua identidade social (cf. Bourdieu, 2000). Oproblema surge quando essa identidade se defronta com a realidade. Isto, seus anseios e suas vontades so cerceados diante do real, impossibilitan-do a ele de ser um indivduo, tomado aqui no sentido dado por Horkhei-

    mer de que no significa simplesmente a existncia sensvel e espao-temporal de um membro particular da espcie humana, mas, alm dissotudo, a compreenso de sua prpria individualidade como um ser huma-no consciente, inclusive o reconhecimento de sua prpria individualida-de (1976, p. 139). Contudo, tanto na periferia como na zona central, aindividualidade pressupe um sacrifcio no que diz respeito realizaodos anseios pessoais que ele prprio percebe como difceis de serem reali-zados diante da carncia a sua volta. E, segundo Horkheimer, o podersocial hoje mais do que nunca mediado pelo poder sobre as coisas. Quanto

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    mais intensa a preocupao do indivduo com o poder sobre as coisas,

    mais as coisas o dominaro, mais lhe faltaro os traos individuais genu-nos, e mais sua mente se transformar num autmato da razo formaliza-da (Idem, p. 141).

    Uma das alternativas correr riscos, buscar ideais a todo custo. Se eleconsegue algo que traga benefcio, na esfera legal da jurisdio, sentir-se-integrado; caso contrrio, a resposta negao ser a violncia. Os jovensinvestem nos riscos e ao mesmo tempo, paralelamente, refletem sobre suaexistncia. Em muitos casos esse investimento contra outros jovens quepossuem uma imagem inversa deles, ou seja, o que ele busca o que ooutro , o que o outro tem. No raro os jovens da periferia se referiremaos jovens de outras regies mais abastadas com termos como riquinho,boyzinho, mauricinho, para desmerec-los, ou ento como cuzo,bundo, para agredi-los. Ou ainda, numa mistura dos dois: boyzinho-cuzo, mauricinho-bundo.

    Numa ao violenta, como um homicdio, esses jovens buscam a todocusto reverter os signos visveis de desvantagens no jogo da insero so-cial (cf. Cassab, 2001) e, sorrindo, negam o sofrimento diante do danocausado. A equao invertida e a integridade inviolada, pelo menos na-quele momento. Na verdade, eles esto vingando os outros fracassos, para

    obter o respeito que lhes devido, ou que acreditam que lhes devido(cf. Katz, 1988).

    Para Sennet (1999), o capitalismo provocou um processo de corrosodo carter, sobretudo naquelas qualidades que ligam os seres humanos unsaos outros e do a cada um deles um senso de identidade sustentvel. Aspessoas passaram a agir da maneira como o sistema se impe, isto , ele nopermite que as pessoas desenvolvam experincias ou construam uma ima-gem positiva de suas vidas. O carter, como diz Sennet, concentra-se sobre-tudo no aspecto a longo prazo de nossa experincia emocional. So traos

    pessoais que valorizamos em ns mesmos e pelos quais buscamos que osoutros nos valorizem, e que dependem de virtudes estveis como a lealdade,a confiana e a ajuda mtua. Contudo, nota o autor, essas caractersticasesto desaparecendo com o capitalismo moderno. As pessoas que no seenquadram nesse novo processo capitalista so jogadas para fora do sistemae, o que parece ser um agravante, sentem-se inferiorizadas e humilhadasdiante do fracasso. Estar inserido numa sociedade em que a superabundn-cia vital e ao mesmo tempo ser excludo dela suscita sentimentos de humi-lhao e tambm de ressentimento (cf. Oliveira, 2000) para com o outro.

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    Da mesma forma que a sociedade o segrega, o jovem reage atacando-a com

    o isolamento. A violncia sempre uma resposta a outra violncia, assimque as coisas so percebidas (cf. Dadoun, 1998).

    Um jovem que participa do trfico de drogas no bairro do Capo Re-dondo explica seus dois trabalhos anteriores ao trfico da seguinte maneira:

    Resposta Tinha que t l sete da manh. Chegava j tomava dura, t ligado? A, t

    atrasado, t atrasado. Tinha que fic carregando caixa at as oito, nove, depois

    ficava empacotando at as cinco. E s dura, s dura. Ia pro almoo, voltava, a t

    atrasado, t atrasado. Uma vez um saquinho tava furado, caiu a mantega de uma

    mulher, ele veio me empurrou, sai! Na frente de todo mundo. Que jeito, meu? At

    a dona fal: a, no foi nada. C qu o qu?

    O outro eu era ajudante de pedrero. Mas ali meu, era que o pesado era comigo, t

    ligado? Carrega aquilo, aquele outro. Pega o tijolo, a faz a massa. E o vio ficava l,

    faa isso, faa isso. Tudo eu, t ligado? Ganhar o qu? Sai! Isso no vida! E tem

    tambm esse negcio de primeiro grau. Tem primeiro grau? Tem segundo grau?

    V se fuder! (P. W., 18 anos, Capo Redondo).

    Para ter um tnis de marca que pode proporcionar-lhe satisfao e pres-tgio diante de seus iguais, um jovem no v nenhum problema em tirar a

    vida de outra pessoa, mesmo que seja a de um jovem como ele. H inme-ros casos na mdia sobre homicdios de jovens que se recusaram a entregarum bon de marca, um tnis da moda ou outro acessrio qualquer a umdelinqente.

    Ter uma arma tambm concede poder e prestgio. Atrai a ateno dequem se sente inferiorizado e tambm de potenciais companheiras, quevem nisso um sinal de status. Para manter-se nesse meio e satisfazer seudesejo de aquisio, o jovem delinqente comete outros pequenos crimesque caracterizam o seu cotidiano. Ele leva uma vida especialmente seduto-

    ra para quem quer ter algo, e consegue t-lo grande parte do tempo. Essespequenos crimes vo desde sair de um bar sem pagar at furtar lojas oupessoas na rua, e muitas vezes exercem uma atrao independentementedo ganho material: furtar um doce na padaria, levar uma pea de roupaqualquer na loja e sair sem pagar, furtar revistas das bancas etc. No ovalor da mercadoria que justifica o roubo, mas sim o prazer de faz-lo. Omesmo acontece com o vandalismo e as depredaes, aes que no satis-fazem o desejo de aquisio, mas o desejo de pratic-las. Praticar o ato oque importa. Para jovens que picham muros ou monumentos, no a

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    pichao em si que lhes proporciona prazer, mas a proibio do ato. Por-

    tanto, quanto mais alto o local, mais difcil o acesso, mais ilcito o ato,maior o prazer. Um doce furtado da padaria mais gostoso do aquelecomprado. Isso transpassa a questo material. O prazer que os crimes sofurtivos e freqentemente emocionam os praticantes.

    A emoo do furto criada basicamente em trs momentos: primeiro,esse tipo de ao gera a experincia de ser seduzido pelo ato ilegal, ilcito, oque torna o sujeito pertencente a um meio, isto , a algummeio, j queno se sente pertencente a nenhum; segundo, provoca a reconquista dasemoes, o que o torna normal; e, por fim, a apreciao do significadoreverbera uma emoo de euforia (cf. Katz, 1988). Contudo, esse estilo devida impe ao jovem uma constante vigilncia que determina seus passos eobjetivos de vida, que passa a ser entrecortada pelo inesperado. Ele vivenuma espcie de matar ou morrer que toma conta de seu cotidiano.

    Esse processo no afeta somente jovens pobres da periferia, mas envol-ve tambm jovens de bairros mais abastados da cidade. Na pesquisa, noencontrei um nmero elevado de jovens nesses bairros que j tivessempraticado assassinatos. Mas os poucos encontrados demonstram a mesmaindiferena para com suas vtimas que os da periferia, com grande envol-vimento na criminalidade. O que os iguala pertencerem mesma faixa

    etria e o que os diferencia so as classes sociais distintas. O relato de umjovem de 16 anos, morador do Itaim-Bibi e estudante de um colgio cat-lico do Morumbi, esclarecedor. Ele nunca foi internado na Febem, masdisse j haver sido preso duas vezes pela Polcia Militar, uma por roubo eoutra por agresso. Mas os dois casos, segundo ele, no deu nada. Tudofoi resolvido com os advogados do pai.

    Resposta A gente tava indo pra [rua] Funchal e entramo numa banca que tem l

    perto e ficamo ali olhando. Tinha uma p de revista legal. Saca aquela do Batman,

    aquela grandona, nova, do Cavaleiro das Trevas? Ento, queria levar aquela. Faleipro cara: V levar essa daqui... posso pagar depois? O cara riu e falou: Claro que

    no! C acha que eu v deixar voc levar a revista assim na manha? Nem fudendo!

    Aquele jeito dele, cara... aquele jeito, meu... nem falei nada... dei um soco na cara

    dele, meu... ele espatifou no canto da caixa dele. Tava com meu canivete, devia era

    ter dado uns furo nele. A sorte era que tinha uma p de gente l fora. A, ele quis

    levantar, pisei na cara dele! [Rindo] Ah! Seu bosta! A, v levar a revista que eu

    quiser aqui e cale sua boca, fal? Peguei um livro que tinha assim na prateleira e

    taquei nele assim. Ele ficou l resmungando...

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    Pergunta O que voc fez com a revista?

    Resposta A do Batman? Sei l... acho que nem levei... no levei nada no...[rindo] deixei l, mas foi um barato! (V. R.,16 anos, Itaim-Bibi).

    A questo no somente o roubo, como nesse caso, mas a indiferenadescrita, a arrogncia e o desprezo para com o outro. a revelao da carn-cia de referenciais, buscados constantemente, numa espcie de procura in-sacivel.Esses referenciais no so encontrados claramente demarcados nosistema social. Pelo contrrio, o caos em que vivem fsica e psicologicamen-te indica que a sociedade no organizada por apenas uma referncia dis-cursiva, mas por diferentes discursos. Embora seja demandado por eleescolher entre duas formas dominantes do lao social, a reivindicao ou oconformismo, o adolescente identifica um terceiro modo entre exigir e re-signar-se. Esta terceira sada a infrao, um misto de subverso do poderdo outro e de busca de tutela social (Oliveira, 2000, p. 106).

    Mas voltemos ao prazer de matar.A emoo em cometer um ato desviante, como, por exemplo, uma

    simples pichao de muros ou pequenos furtos em lojas ou residncias,est presente em jovens tanto de classes mais baixas como nos de abasta-das. So as emoes furtivas, como j apontou Katz (1988), que surgem

    quando uma pessoa tacitamente procura uma experincia na qual ela sejaseduzida pelo desejo, pelo ato ilegal, acompanhado de uma sensao deeuforia aps a realizao do ato. Com um pouco de esforo podemos com-preender essas pequenas ilegalidades cometidas cotidianamente. Mas comocompreender o prazer que alguns adolescentes sentem ao matar? E, maisainda, com requintes de crueldade. No somente matar o outro, masdestruir seu corpo.

    Em maro de 2000, trs adolescentes de 9, 16 e 17 anos mataram comrequintes de crueldade outras duas crianas, uma menina de 8 e seu irmo

    de 9 anos3. O crime ocorreu no municpio de So Roque, no interior doestado de So Paulo. Os dois irmos foram convidados a passear pelos trsamigos e acabaram entrando num matagal. Ali foram seviciados com paus,pedras e cips encontrados na mata. Cada um dos adolescentes teria dadotambm dez pauladas na cabea dos dois irmos, alm de obrigarem ascrianas a comerem fezes. A menina, antes de morrer, teria sido violentadapelos trs adolescentes. Para a polcia, o mais velho teria dito: Nis trs que matamo. Pegamo um toco e batemo na cabea deles. Quando ques-tionados, um deles disse: Quando nis entr no mato, nis entr com a

    3.Folha de S.Paulo,Menino de 9 diz quematou menina de 8,22/3/2000, pp. 3-1; Re-vista poca, Pequenosassassinos,27/3/2000,p. 47.

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    inteno de mat. No sabiam explicar por que mataram duas crianas

    amigas deles. O que impressionou o delegado foi a tranqilidade dos garo-tos enquanto estavam sendo interrogados.

    Podemos dizer que o mundo moderno, alm de isolar o indivduo e se-greg-lo de certos aspectos da convivncia social, possibilita uma manipula-o do poder em determinados casos. Na ao estrita do assassinato, pode-mos perceber certa sensualidade na elaborao do ato. Para Katz (1988), issos possvel nos indivduos com um esprito de criminalidade, ou seja, sonecessrias uma prtica no modo de ao executiva, uma criao simblicaque define a situao e uma fina esttica em reconhecer e elaborar uma possi-bilidade sensual. Intimidar o outro, por exemplo, uma das formas de cri-minalidade mais essenciais ao desafio moral de um indivduo, o ato de im-por-se sobre o outro desde a fala at a destruio do corpo do inimigo. No somente destruir o outro, mas destruir seu corpo para o social.

    A sensualidade mostra-se nessa ao brutal, na forma como se mata, naatitude e no significado de toda a cena onde se desenvolve o acontecimento.

    Atirar em algum, esfaquear um corpo, cortar partes dele4, esmagar a carneso atos que parecem envolver toda uma sensualidade recheada de significa-dos. Como o jovem que matou seu ex-patro e antes de sair pisou em seusangue, numa atitude derradeira de esmagar seu corpo (j sem vida), ou o

    garoto que assaltou o nibus e tentou escrever seu nome no rosto do moto-rista. So tentativas de expurgar algo dentro de si, numa ao envolvidacom a sensualidade. Por isso esses jovens provocam o terror. Segundo Elias(1990), o terror est no centro da questo do pudor: o terror de se tornarvulnervel agresso do outro e, mais especialmente, aos gestos de superio-ridade de um outro mais forte.

    Os garotos aqui citados, assim como a maioria dos outros jovens queconcederam entrevistas, relatam suas aes com certo grau de resignao.No esto revoltados com a nova situao, aceitam o destino como se j

    estivesse traado e houvesse sido passado a eles sem questionamentos.Como o caso de um jovem que, para roubar pouco mais de dezoito reais,

    matou um senhor com um tiro na cabea porque ele o olhou assim (decima para baixo) o olhar de um superior para um inferior, de um melhorpara um pior. O desprezo do jovem para com o outro, ao atirar na cabea desua vtima, reverteu essa hierarquia. Sentiu-se humilhado apenas com umolhar, mas era um olhar recheado de signos, um olhar que o colocava fora deseu espao, fora de seu mundo. E se para retornar ao seu universo e restabe-lecer as relaes for necessrio o aniquilamento do outro assim ser. Se-

    4.Porque precisomat-lo, tambm, sim-bolicamente, mat-lopara a sociedade, matar

    a possibilidade de suamemria como pessoa.No apenas retir-locomo corpo fsico, mastambm mat-lo para asociedade (Martins,1996, p. 21).

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    Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2296

    gundo Eliade, o que caracteriza as sociedades tradicionais a oposio que

    elas subentendem entre o territrio habitado e o espao desconhecido eindeterminado que o cerca. O primeiro o mundo, o resto uma espcie deoutro mundo. Se os deuses tiverem de espancar e de esquartejar um mons-tro marinho ou um ser para poderem criar o mundo a partir dele o ho-mem deve imitar essa ao (Eliade, s/d, p. 64). dessa maneira que simbo-licamente o homem funda o seu prprio mundo.

    No possvel afirmar que a crueldade e o desprezo pela vida de outremsejam traos caractersticos do comportamento dos jovens de hoje auto-res de infraes penais graves , principalmente pela escassez de estudoshistricos e antropolgicos que contemplem esse fenmeno. Mas podemosrefletir sobre a atualidade dessa forma de comportamento. Quanto cruel-dade, enquanto acontecimento, ela talvez traduza um momento de rupturanas relaes.

    A emergncia da crueldade como expresso recorrente da violncia indi-ca que algo se rompeu na sociedade brasileira, uma interrupo de propor-es considerveis, uma vez que atravessa os mais distintos campos do dis-curso, das relaes de poder e das possibilidades de conhecimento e de

    justificativa racional para tais acontecimentos.A crueldade rompeu com o vu de uma sociedade a brasileira cuja

    identidade esteve at recentemente marcada pela no-violncia, pela reso-luo pacificada dos conflitos e das tenses nas relaes sociais, pela prefe-rncia pela reforma e pela conciliao. A ruptura discursiva indica que pre-ciso rever mitos e fabulaes; mais do que isso, preciso incorporar aviolncia e uma de suas manifestaes a crueldade com que adolescentes e

    jovens adultos praticam crimes violentos como trao identitrio dessa so-ciedade. E ela pode indicar tambm que est ocorrendo uma profunda in-terrupo nas relaes de poder e de dominao tradicionais nessa socieda-de. As imagens de passividade e sujeio incontestes dos dominados e das

    classes populares parecem ter se esfumaado no ar. As aes dos jovens quecometem infraes podem sugerir expresses radicais de mudanas nas re-laes hierrquicas e de dominao. Aqueles que tradicionalmente manda-vam podem, na atualidade, se converter em vtimas potenciais, ou as vti-mas podem estar mesmo entre iguais, entre pessoas que vivem sob asmesmas condies adversas de existncia. O desejo de destruir o outro, deimpor uma humilhao degradante, indica no apenas a vontade de des-truio material do corpo da vtima, mas tambm de destruio de certaconfigurao de relaes de fora sociais cujo campo de gravitao o corpo

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    Antonio Sergio Spagnol

    social. Eliminar o corpo do outro pode significar, entre outras coisas, o de-

    sejo de constituio de um novo corpo social, isento dos hbitos tradicio-nais de mando e obedincia. Pode igualmente traduzir disposies sociais,que at h pouco estavam sob a epiderme do corpo social, no sentido de so-terrar as formas tradicionais de poder, mando e autoridade, em favor denovas modalidades de sujeio cujos contornos no possvel, no momen-to, circunscrever.

    Esses adolescentes e jovens adultos, autores de crimes graves, podemestar assumindo o papel de porta-vozes dessa nova alteridade em constitui-o, cujos sinais toscos e grosseiros se espelham na crueldade e na imposiode sofrimento s suas vtimas.

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    Antonio Sergio Spagnol

    Resumo

    Jovens delinqentes paulistanos

    Os jovens que se envolvem em infraes graves na cidade de So Paulo chamam a aten-

    o pela crueldade com que praticam seus atos. So jovens tanto da periferia como de

    bairros mais abastados. A mdia alardeia esses eventos focando principalmente os jovens

    da periferia. Fala-se tambm em gangues na cidade, mas a pesquisa na qual este artigo se

    baseia no pde encontrar esse fenmeno. As entrevistas revelam as diferentes formas de

    atuao desses jovens e a crueldade com que praticam suas aes. Essas aes indicam

    que as relaes baseadas num princpio de reciprocidade esto rompidas, deixando

    emergir outros laos sociais baseados no fascnio pelo poder e pela destruio do outro.

    Palavras-chave: Delinqncia juvenil; Homicdios; Gangues; Adolescentes infratores;

    Jovens delinqentes; Crueldade.

    Abstract

    A Study on delinquent youths in the city of So Paulo

    The youths envolved in serious infractions in So Paulo city get the attention for the

    cruelty with that they practice those actions. They are young, as much of the periph-

    ery as of wealthier neighborhoods. The media collaborates boasting those events fo-

    cusing mainly the youths of the periphery. It is also spoken in gangs in the city, but the

    research could not find that phenomenon. Through interviews we can notice the

    different forms of performance of those young ones and the cruelty with that they

    practice their actions. Those actions indicate that the relationships based on reciproc-

    ity are broken letting to emerge other social bows ruled through power attraction and

    the destruction of the other.

    Keywords: Juvenile delinquency; Homicides; Gangs; Adolescents offenders; Delin-

    quents youths; Cruelty.

    Texto recebido em 19/11/2004 e aprovadoem 2/3/2005.

    Antonio Sergio Spagnol doutor em Sociologiapela FFLCH-USP e au-tor de O desejo marginal(Arte e Cincia, 2001).E-mail: [email protected].