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HENRI CARRIÈRES JOSEPH DE MAISTRE. O MAL E A POLÍTICA Dissertação apresentada ao Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Ciência Política. Rio de Janeiro 2006

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HENRI CARRIÈRES

JOSEPH DE MAISTRE. O MAL E A POLÍTICA

Dissertação apresentada ao Instituto Universitário

de Pesquisas do Rio de Janeiro como requisito

parcial para a obtenção do grau de Mestre em

Ciência Política.

Rio de Janeiro

2006

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Banca examinadora

___________________________________________

Marcelo Gantus Jasmin (IUPERJ)

Orientador

___________________________________________

César Guimarães (IUPERJ)

___________________________________________

Bernardo Medeiros Ferreira da Silva (UERJ)

Rio de Janeiro

2006

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Sumário

Resumo ............................................................................................................................ 4

Agradecimentos .............................................................................................................. 5

Abreviações ..................................................................................................................... 6

Propósito do estudo ........................................................................................................ 7

1. Guiamento providencial........................................................................................... 12

Liberdade e sujeição ................................................................................................... 14 A presença da ordem .................................................................................................. 17 História e castigo ........................................................................................................ 23

2. O poder de criar........................................................................................................ 27

Os fundamentos da metapolítica ................................................................................ 27 O caráter divino das soberanias .................................................................................. 33

3. O cultivo do segredo ................................................................................................. 39 A corrosão da obediência ........................................................................................... 40 Dogmas políticos ........................................................................................................ 43 Itinerário maçônico..................................................................................................... 45

4. Natureza humana ..................................................................................................... 50 O pecado original........................................................................................................ 52 O Gênesis reescrito..................................................................................................... 54 “L’homme est dégradé et en a le sentiment”.............................................................. 57

5. O problema do mal ................................................................................................... 62

Histórico da questão ................................................................................................... 62 Uma teodicéia para o homem moderno...................................................................... 70

Bibliografia.................................................................................................................... 75

Obras de Joseph de Maistre ........................................................................................ 75 Demais obras .............................................................................................................. 75

Documentação suplementar: um capítulo das Considerações .................................. 81

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Resumo

Joseph de Maistre (1753-1821) foi um dos principais adversários intelectuais do

Iluminismo. Sua obra – cuja maior parte foi escrita depois da Revolução Francesa de

1789 – é uma das fontes mais importantes do pensamento reacionário. Nos séculos XIX

e XX, o legado filosófico de Maistre sofreu interpretações muito variadas. Houve

mesmo autores que nele viram um teórico precoce do totalitarismo. No entanto, essa é

uma posição que com o tempo se tornou menos e menos convincente. Maistre era um

homem do Antigo Regime: não é possível exigir dele simpatia pelo então nascente

liberalismo. Assim, o que hoje talvez ofereça maior interesse em sua obra é a teodicéia

que elaborou a fim de conferir algum sentido às convulsões politicas de seu tempo. Para

Maistre, a história é palco de crimes e expiações. Não há injustiça que escape à punição,

nem sofrimento gratuito. Na Revolução, toda uma sociedade foi punida pelos erros que

professou, notadamente o de que é possível ao homem refundar, à sua maneira, a si

mesmo e a sociedade de que é membro. Atualmente, Maistre pode ser visto como

alguém que, a uma distância de um século, anteviu as conseqüências desastrosas que

adviriam da tentativa de restaurar a ordem do mundo por meio da política.

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Agradecimentos

Inscrevo aqui a minha gratidão sincera às pessoas que contribuíram diretamente, de uma

forma ou de outra, nos últimos dois anos, para que me fosse possível concluir este

trabalho, iniciado em março de 2004: a dom José, O.S.B.; ao dr. Paulo Mercadante; aos

professores Richard Lebrun (Universidade de Manitoba), Pierre Glaudes (Universidade

Toulouse II), Marcelo Jasmin, Cesar Guimarães e Renato Lessa; ao amigo Élcio

Verçosa Filho (PUC-SP); à Maria Inês; à minha mãe; e ao meu querido e insubstituível

mestre Daniel Brilhante de Brito, que faleceu no Natal de 2004. Menção importante

cabe à FAPERJ, instituição da qual recebi uma bolsa de estudos durante parte do curso de

mestrado. Tampouco posso me esquecer do próprio IUPERJ, onde encontrei um ambiente

de muito estímulo para a minha pesquisa.

Os erros e as imperfeições desta dissertação são obviamente de minha inteira

responsabilidade.

Henri Carrières

Brasília, 2 de julho de 2006

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Abreviações

EM = Ecrits maçonniques

RP = Réflexions sur le protestantisme

SPe = De la souveraineté du peuple

CF = Considérations sur la France

EC = Essai sur le principe générateur des constitutions politiques

LE = Lettres sur l’Inquisition espagnole

SP = Les soirées de Saint-Pétersbourg (seguida de tomo e página)

ES = Éclaircissement sur les sacrifices

DP = Du pape

OC = Oeuvres complètes (seguida de tomo e página)

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Propósito do estudo

Joseph de Maistre é, para o pensamento político moderno, a figura emblemática do

“vencido da história”. Súdito do extinto reino do Piemonte-Sardenha, ele se tornou

conhecido graças à sua intensa atividade de ideólogo reacionário. De fato, até a

Revolução Francesa, Maistre, filho de um grande jurista, não passava de um respeitável

magistrado saboiano, além de bom pai (teve dois filhos, Rodolphe e Constance), amigo

dedicado e homem de vastíssimas leituras – sabia italiano, espanhol, inglês, alemão,

grego e latim. Nascido em 1753, era um típico indivíduo de seu tempo. Estava a par dos

debates travados nos círculos iluministas, interessava-se pelos avanços das ciências

naturais e até demonstrava certo apreço por reformas de cunho liberal. Freqüentava com

assiduidade os meios maçônicos da cidade em que viveu boa parte de sua vida, a pacata

e montanhosa Chambéry, hoje capital do departamento francês da Savóia. Sempre foi

muito religioso. Nutria profunda admiração pelos jesuítas. Malgrado sua fidelidade ao

trono sardo-piemontês, nunca escondeu a veneração que tinha pela França – sua língua,

história e cultura. Não fosse 1789, provavelmente não conheceríamos hoje o seu nome.

Teria vivido uma vida sem tribulações, todo voltado para os estudos e para os negócios

públicos de seu reino.

A Revolução Francesa, no entanto, desviou drasticamente os rumos de sua existência.

Obrigou-o a separar-se de sua família e a sair de Chambéry, dando início a um longo e

difícil expatriamento. Mas, acima de tudo, a Revolução despertou em Maistre sua

verdadeira vocação: a de pensador reacionário. Energias até então aparentemente

dispersas convergiram, de súbito, para uma intensa reflexão sobre o sentido de tudo

aquilo que vivia a Europa. Praticamente todos os livros que escreveu são posteriores a

esse evento de proporções e conseqüências formidáveis, que mudou a face do mundo.

Maistre se tornou, do dia para a noite, um dos fundadores do tradicionalismo político.

Muitos deploraram o caráter antimoderno de suas idéias, mas ninguém pôs em dúvida o

gênio do autor.

Engels e Marx disseram que merece o epíteto de reacionário todo aquele que quer girar

para trás a roda da história. De acordo com essa definição, Maistre foi sem dúvida um

reacionário. Mas o termo permite ainda um segundo sentido, igualmente válido para

Maistre: reacionário é aquele que reage. A obra maistriana, de fato, tem muito de

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resposta ao ideário iluminista, inspirador da Revolução. Não ignoro que o Iluminismo

foi um fenômeno intelectual dos mais complexos. Ele variou muito de país para país,

como salientou Gertrude Himmelfarb, e de autor para autor, como deixam claros os

excelentes estudos autorais de Isaiah Berlin. No entanto, para os fins desta exposição,

falarei do Iluminismo um pouco como se fosse um “bloco”. Trata-se de uma questão de

método: seria muito difícil, e talvez mesmo contraproducente, descer às minúcias de sua

história. Depois, é o próprio Maistre que se refere ao século XVIII como se ele

contivesse, a despeito de tantas nuances, uma certa unidade de espírito. Podemos

comparar nosso autor ao Velho do Restelo, do poema épico de Camões: não participa de

modo nenhum do entusiasmo pelo Progresso que arrebata a todos. Não se comove com

as razões que motivam a adesão de cada um. Restringe-se a dissecar a esperança e a

vaticinar os desdobramentos funestos de uma perigosa aventura.

Que Maistre tenha sido um vencido da história, não quer dizer que tenha morrido para

ela. Não foram poucos os que buscaram inspiração em suas idéias para elaborar um

programa de ação. Vistas em retrospecto, essas tentativas parecem terrivelmente

datadas. No Brasil, por exemplo, Jackson de Figueiredo – homem de grande inteligência

e vitalidade, fundador, na década de 1920, da revista A Ordem – tentou encontrar nos

escritos de Maistre os marcos para uma crítica de seu tempo. Chegou mesmo a escrever

o primeiro capítulo de um livro sobre Maistre, trabalho que a morte prematura o

impediu de concluir. Na verdade, nesse documento, publicado postumamente nas

páginas da revista católica, Jackson diz mais a respeito de si mesmo que do pensamento

maistriano. O fato, como aponta Clóvis Bevilácqua, é que

o teologismo francês do começo deste século [o XIX] não teve um eco vibrante e evocativo

de produtividade em nosso meio intelectual. Principalmente a feição pietista e rancorosa

que assumiu com o autor das Soirées de Saint-Pétersbourg, não era própria a conquistar

largas simpatias na sociedade brasileira, onde a benevolência se transforma quase em

apatia, onde raras vezes o zelo sincero ou farisaico obtém manifestações de sectarismo

militante (apud Cruz Costa, 1956:97-8).

Assim, apesar do interesse por Maistre manifestado por Jackson ou por alguns

tradicionalistas do Império, como dom Romualdo Seixas, a sua obra permanece ainda

largamente desconhecida no Brasil.

Em outras partes, porém, o “zelo sincero” de Maistre logrou fomentar o “sectarismo

militante” – a Action française de Charles Maurras talvez seja o primeiro exemplo que

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vem à mente para ilustrar o comentário de Bevilácqua. Mas o objetivo desta

investigação não consiste em reafirmar a tese, já muito debatida, e infelizmente ainda

muito aceita, de que Maistre, com seu “irracionalismo” e sua recusa dos pontos

cardinais da doutrina liberal, é uma das fontes intelectuais dos extremismos que fizeram

do século XX um dos capítulos mais negros da história da humanidade. Ao contrário,

penso que é de todo inapropriada uma associação automática entre os regimes

totalitários modernos e a teorização política de Maistre. O afã de culpabilizar nossos

predecessores pelos erros que nós mesmos cometemos foi um dos traços marcantes da

história intelectual do pós-guerra. Um exemplo famoso disso reside na tentativa de Karl

Popper de retratar Platão como um fascista avant la lettre. Nada ganhamos com essa

projeção de categorias contemporâneas sobre outras épocas. O entendimento do passado

não pode reduzir-se a um exercício de reordenamento interessado das idéias, de modo a

formar genealogias perfeitamente coerentes. As coisas não acontecem assim, de maneira

linear – os conceitos não evoluem como vagões nos trilhos. Se, por um lado, é

inevitável que a obra de um filósofo sofra as interpretações mais diversas, por outro não

é aceitável que essas mesmas interpretações desobriguem o estudioso de uma volta aos

documentos originais.

No caso de Maistre, cuja vida se encerrou em 1821, essa tarefa implica ainda um

esforço muito peculiar. Por se tratar de um autor que fala em nome de um mundo que já

não existe mais, há em suas obras toda uma counter-anthropology (Owen Bradley) que

exige uma flexibilidade mental invulgar. Não é fácil ler Maistre: ele pensa contra nós o

tempo todo. A soberania popular, o regime constitucional, a autonomia da razão, o

sonho da “paz perpétua”, a liberdade em face da tradição, a crítica aberta ao poder, a

igualdade social, o acesso desimpedido à informação e ao conhecimento, os direitos do

homem, a laicidade, a história como progresso, o estudo empírico do mundo natural, o

avanço do bem-estar, o diálogo e não a violência (que a figura do carrasco simboliza)

como fonte da legitimidade estatal – tudo isso Maistre atacou, inflexível, sentencioso e

rude. Mas ainda que essas posições hoje apresentem interesse apenas histórico, existe

algo por trás delas que continua a merecer nossa atenção. Não nos detenhamos no

Maistre obsoleto, porque, para além desse, existe um outro, trágico e profundo, que fala

coisas perfeitamente compatíveis com o nosso tempo e circunstância. Refiro-me ao fato

de que ele foi um pensador de primeira importância da relação entre a política e o

problema do mal. Essa é a idéia que guiará os passos desta pesquisa. Data do século

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XVIII a convicção de que o homem pode atuar no papel de demiurgo, recriando na

sociedade um mundo à parte, ou ao menos controlando as leis que supostamente regem

a dinâmica da vida social.1 A inteligência humana é suficiente, acredita-se, para deitar

os fundamentos de uma ordem consentânea com as exigências da razão esclarecida. O

peso dos séculos não mais se faz necessário para conferir respeitabilidade às

instituições. Pelo contrário. O selo do tempo é uma ostensiva marca de corrupção do

que quer que o carregue. O homem sacudiu o jugo do passado e fixou o olhar num

horizonte de contornos indefinidos e, ao que tudo indica, promissor. O caráter

necessário, permanente, do que sempre foi é desacreditado. A história não é a rocha em

que estão gravados os traços da natureza humana; assemelha-se antes a uma bola de

argila que as mãos podem plasmar, dando forma a novas criações. Imagina-se que a

condição decaída do homem pode ser revertida e o mundo, redimido.

Maistre, em seu papel de Velho do Restelo, surge para lembrar de um detalhe que

supunha fundamental: a presença inerradicável do mal no mundo e no homem. Quanto

mais se ampliam (graças à política) os meios de ação ao nosso alcance, parece que mais

desgraçados somos. A história é a política experimental, diz no prefácio de um

importante opúsculo. Tudo o que se tente fazer de novo, sem o amparo de antigas

certezas, está fadado ao fracasso. Deus se manifesta no mundo através do tempo: aquilo

que foi é um espelho da sua vontade. Não compete ao homem tomar, por sua própria

conta e risco, grandes iniciativas, sob pena de cair nas mãos de potências malignas.

Ficou célebre a fórmula maistriana segundo a qual a Revolução possuía caráter satânico.

A asserção não é difícil de explicar. Para Maistre, o poder de criar é uma prerrogativa

divina. O homem pode, no máximo, atuar como partícipe desse ato criativo, mas nunca

na condição de autor exclusivo do que quer que seja. Se violar essa regra fundamental,

dará à luz um monstro qualquer – um governo de inexcedível tirania, por exemplo.

Mas não bastava a Maistre afirmar a presença do mal entre nós. Era preciso também

justificá-la. Católico, tinha nos grandes pensadores cristãos, de Orígenes a Tomás de

Aquino, de Bossuet a Leibniz, os seus modelos. Se o universo é bom, porque há nele

1 “Men were gripped by the idea that the conditions, a product of faith, time and custom, in which they and they forefathers had been living, were unnatural and had all to be replaced by deliberately planned uniform patterns, which would be natural and rational” (Talmon, 1968:3).

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espaço para o mal? Pode a ordem emergir da mais completa e desesperadora desordem?

Durante mais de trinta anos, Maistre se dedicará à elaboração de uma teodicéia

designada para atender aos anseios do homem moderno. A história é vista pelo prisma

da “dialética do crime e da expiação” (Glaudes, 2006:5). O universo é um enorme

sistema de compensações no qual toda falta gera um castigo, que nem sempre recai

sobre o injusto. O universo é bom, e não obstante vemos nele o sofrimento da inocência.

Sofrimento, porém, que nunca se dá em vão, mas reverte em benefícios para o conjunto

dos homens. Como no Antigo Testamento, as comoções coletivas servem para expiar os

crimes coletivos. Maistre quis entender a Revolução Francesa à luz dessa terrível lógica

sacrificial, que nada nem ninguém poderia quebrar.

Para a idade de cujo nascimento foi testemunha ocular, enviou esta mensagem, que

quem desconsidera ou subestima o poder do mal torna-se dele vítima inerme.

*

No primeiro capítulo desta dissertação, falarei do providencialismo maistriano e da

forma como a história, por ser um campo de manifestação do sagrado, administra

expiações e recompensas. No segundo, abordarei sua crença na fragilidade das criações

puramente “humanas”, aí incluídas soberanias e constituições. No terceiro, veremos

como Maistre propõe o fortalecimento da autoridade, especialmente em seus aspectos

simbólicos, de modo a torná-la menos sujeita a uma perigosa interferência dos não-

iniciados nos mistérios da política. No quarto, trataremos de um assunto dos mais

importantes: a concepção de homem em Maistre e a maneira como articula o dogma do

pecado original com a política. Por fim, no último capítulo farei um breve histórico do

tratamento dado por algumas tradições e filósofos ao problema do mal (e, quando for o

caso, à sua solução). Assim poderemos situar um pouco melhor a teodicéia de Maistre,

sabendo no que inova e no que se mantém igual a outras. Para concluir, apresentarei, a

partir do que foi dito nos capítulos anteriores, uma crítica à leitura de que Maistre foi

uma espécie de Grande Inquisidor, bem como uma síntese daquilo que, em meu

entender, constitui o atrativo principal de sua obra para o nosso tempo, isto é, sua

teodicéia de contornos políticos.

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1. Guiamento providencial

Uma idéia-chave do pensamento maistriano é a medíocre capacidade que tem o homem

de assenhorar-se do processo histórico. A convulsão política que testemunhou a partir

de 1789 não representou, a seus olhos, uma chance para o exercício da liberdade dentro

de estruturas que, de ordinário, restringiam dramaticamente a margem do fazer humano.

Foi essa, ao contrário, uma das ilusões que combateu. A história, em Maistre, é uma

dimensão praticamente alheia ao nosso controle. Perscrutar os desígnios que a orientam,

e facilitar sua materialização, é possível e mesmo desejável; domar seu curso, porém, é

algo que ninguém razoável julgaria ser possível.

Com efeito, é constante, nas obras do autor, quando se refere às coisas humanas, o

contraste entre a grandeza dos fins e a impotência dos meios. O homem é retratado

como um pobre personagem que intenta a todo custo evadir-se das malhas do enredo em

que está metido, para ocupar a posição de autor. Situação que, para uns, é de uma

nobreza comovente, mas, para Maistre, oferece um espetáculo lamentável, pois em

nenhum outro momento o homem revela de maneira mais completa sua própria miséria.

Deixa, então, de ser sujeito paciente dos acontecimentos para assumir a condição, muito

menos interessante, de vítima da história.

Quer tudo isto dizer que Maistre negava aos indivíduos qualquer chance de atuar no

primeiro plano da história? Não exatamente. Bastar-lhes-ia, para tanto, uma inspiração

superior, apenas. Que emanasse da Providência.

Um dos tratamentos mais conhecidos desse tema está nas Considérations sur la France

(1797). É nessa obra que Maistre desenvolveu com bastante apuro (mas não pela

primeira vez) sua interpretação providencialista da Revolução Francesa. Ao fazê-lo,

partiu dos eventos que tinha diante de si para uma teoria sobre a dinâmica universal das

revoluções. Essa leitura encontra respaldo no genérico título do capítulo de abertura do

livro que lançou o nome de Maistre nos círculos cultos de então: “Das revoluções”. É

por isso que neste capítulo tratarei do providencialismo maistriano sem alusões

freqüentes aos fatos históricos que o conformaram. Mas frise-se que ele tinha

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consciência da originalidade de sua época; sabia que ela fundava algo de novo.2

A Providência de Maistre é fonte de conforto aos que a ela se unem. Em meio às

tribulações que sucedem ao colapso de um regime, tem-se a impressão de que a história

perdeu sua direção. Nenhum princípio existe que nos permita entrever a coerência das

ações dos homens. A carência de nexo desafia a racionalidade, e nos abandona

desarmados diante das situações mais inverossímeis. Maistre, porém, acreditava que a

ordem reina por toda parte, sempre, mesmo nos detalhes menos dignos de atenção. Nos

momentos de transe coletivo, o olhar experiente percebe, ou tenta perceber, certo de que

ela está presente, a harmonia que aos demais passa despercebida. O providencialista,

por isso, jamais desespera do futuro (o que não lhe poupa, contudo, de um certo

abatimento; foi o caso de Maistre sobretudo no fim da vida). Antes empenha suas

energias na apreensão da vontade que, pouco a pouco, percebe agindo no mundo. A

Providência maistriana é por demais sublime para dignar-se prestar contas de seus atos;

de modo que é preciso desvelá-la.

Artista da palavra escrita – e também conversador magnético, segundo relatos –,

Maistre impressiona o leitor tanto pelo estilo brilhante, em que amiúdam os oximoros,

como pela capacidade de concentrar numa só passagem múltiplas camadas de sentido,

nem todas facilmente visíveis, pelo menos não à primeira vista. Com efeito, já nas

linhas iniciais das Considérations, encontramos, com elegância e concisão admiráveis,

uma síntese de sua doutrina providencialista, que se desdobrará nesse livro e em outros,

ocupando muitas páginas:

Nous sommes tous attachés au trône de l'Etre suprême par une chaîne souple, qui nous

retient sans nous asservir.

2 “La Révolution n’est pas un événement, mais une époque”, escreveu Maistre no começo da década de 1790, no Discours à Mme. Marquise de Costa. 1789 marca ainda o início da “révolution la plus complète qui fut jamais” (SPe 479).

É oportuno esclarecer que Maistre não foi o único a lançar mão de uma interpretação providencialista da Revolução Francesa. Pouco meses antes de ele escrever o Discours, fora publicado o livro de Louis-Claude de Saint-Martin, Lettre à un ami, ou Considérations politiques, philosophiques et religieuses sur la Révolution française, cuja tese se assemelha bastante à de Maistre. Identifiquei algumas divergências dignas de atenção entre os dois argumentos – Saint-Martin, por exemplo, critica o envolvimento da Igreja com os poderes temporais, enquanto que Maistre o incentiva –, mas, em linhas gerais, me parece que os dois autores convergem para o mesmo lugar. Atualmente, não se pode afirmar com certeza se Maistre chegou a ler o livro de Saint-Martin, autor que conheceu pessoalmente e que admirava (Lebrun, 1988:143).

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Ce qu'il y a de plus admirable dans l'ordre universel des choses, c'est l'action des êtres libres

sous la main divine. Librement esclaves, ils opèrent tout à la fois volontairement et

nécessairement : ils font réellement ce qu'ils veulent, mais sans pouvoir déranger les plans

généraux. Chacun de ces êtres occupe le centre d'une sphère d'activité, dont le diamètre

varie au gré de l'éternel géomètre, qui sait étendre, restreindre, arrêter ou diriger la volonté,

sans altérer sa nature.

Aparecem nessa passagem as duas características fundamentais do providencialismo

maistriano. A primeira delas consiste na delicada ou até imperceptível sujeição dos

indivíduos a uma vontade que não é a sua. Quanto à segunda, trata-se da harmonia,

também dificilmente perceptível, presente mesmo nos maiores tumultos, a confirmar a

existência de uma orientação supra-humana. Devo, aliás, corrigir-me: no que diz

respeito a Maistre, não é exato falar em harmonia, e sim em tendência para a mesma. A

Providência não atua sozinha no mundo; precisa de nós para cumprir seus desígnios.

Somos livres para obedecê-la. Se, porém, demonstramos rebeldia – e aqui temos outra

matéria a pedir um exame cuidadoso –, entra em ação um sistema cósmico de

compensações que assegura o restabelecimento da ordem. Segundo Maistre, todas as

misérias que nos atingem, das guerras às doenças, passando pelas revoluções, são

conseqüência de uma falta de sintonia com os princípios por que devemos orientar

nosso comportamento. As ações humanas podem não ser espontaneamente

harmoniosas, mas cedo ou tarde o preço dos malfeitos é cobrado, a fim de que a justiça

prevaleça.

Dediquemos o restante do capítulo ao exame dos pontos que acabo de levantar.

Liberdade e sujeição

É comum entre os estudiosos de Maistre comparar a já citada passagem das

Considérations com outra, de Bossuet, no Discours sur l'histoire universelle (1681). De

acordo com o sermonista, o surgimento e a morte dos impérios dependem, afinal, “das

ordens secretas da divina providência”. A metáfora das rédeas comparece para ilustrar

os limites do nosso agir: “Deus toma do alto dos céus as rédeas de todos os reinos; ele

tem todos os corações em suas mãos: ora restringe as paixões, ora as deixa sem freio, e

com isso revolve todo o gênero humano”. Comenta Lowith (1949:138) que, em

Bossuet, “[i]nvoluntarily and unconsciously, all temporal events co-operate eventually

in the fulfilment of [God’s] eternal purpose”. A história política é um capítulo da

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história religiosa, e, por isso, tanto nações quanto homens estão sob o comando de uma

instância que lhes é superior, e que tem idéias bastante precisas a respeito da direção a

tomar. Em Maistre, observamos a mesma noção de que os indivíduos, não menos que as

coletividades, foram investidos de uma missão específica, um chamamento que não

podem recusar. Muitas vezes, o conteúdo da missão é algo de misterioso, e, crendo agir

por sua própria conta e risco, o homem apenas concorre para a consecução de objetivos

que não estabeleceu. Haverá falta de liberdade nesse quadro? No entender de Maistre,

não, porque sua concepção de liberdade é a mesma de Paulo: livre é o homem que age

segundo o espirito divino (SP I 324). O simples poder de fazer não basta, em si, para

caracterizar uma situação de verdadeira liberdade; ele é tão-somente um “sinal

exterior”, a conseqüência material de uma vontade intangível (SP I 323).

No mundo visível, seja ele o da natureza ou o da sociedade, encontramos somente

efeitos; esse é um Leitmotiv maistriano, reação evidente à ciência experimental. Nas

palavras de Émile Dermenghem (1946:166), “o espírito é tudo [para Maistre], a chave

do universo, o princípio do movimento, a fonte da vida”.

O homem, portanto, não é a causa atuando sobre a marcha dos governos, que se explica

antes pela “intervenção necessária de uma potência sobrenatural” (SP I 214). A

realidade tem dois planos, e nós vivemos no mais subalterno deles: daí nossa estéril

condição de criaturas que são determinadas mas não determinam, ou só o fazem de

maneira acessória. Todo ensaio de demiurgia política está, por isso, condenado ao

fracasso. Jamais saberíamos coordenar o sem-número de fatores que, reunidos, dão

origem e asseguram a longevidade de um governo ou regime. Acompanhando a

confusão inextricável das vontades individuais, Maistre diz lobrigar um pastor invisível,

que tange o rebanho dos homens até um paradeiro certo. Acidentes vários tumultuam a

viagem, persuadindo os membros do rebanho de que o rumo foi perdido. Mas, por fim,

descobre-se que cada um desses acidentes cumpriu um papel específico para a boa

conclusão da jornada.

Nas Soirées, o Senador, personagem que simboliza o cristianismo oriental, chama a

Providência de “espírito reitor”. Sua função: animar os impérios e empregar os homens.

Se, de fato, o mundo avança sob o signo da ordem, impossível supor que para algum de

nós possa haver uma exceção. Nenhuma vida é desprovida de sentido e equivale ao fio

de uma trama arranjada com perfeição. Mesmo quando não é possível descobrir a razão

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de nosso emprego, ou o sentido exato do que fazemos, sabemos – ou pelo menos o

providencialista sabe – que, seja qual for caso, somos um instrumento em mãos

inteligentes.

Diante dessa atribuição irrevocável e arbitrária de papéis, um leitor pode concluir que

Maistre é um organicista, palavra que evoca forte apego ao imobilismo social, de resto

comum às “escolas reacionárias” dos mais variados países, como observa Robert Nisbet

(1966:182): “No single element is more central to the social philosophies of Burke,

Coleridge, and Carlyle in England, to Bonald, Maistre, and Balzac in France, and to

Haller and Hegel in Germany than that of social hierarchy”. No entanto, pelo menos no

que diz respeito a Maistre, a referida noção de “emprego” tem suas raízes numa

convicção sincera de que cumprimos um mandato conferido por uma instância que

precede a própria sociedade. O fato de que haja uma hierarquia social é apenas um

reflexo disso, e não o mais importante. Maistre se apóia na idéia de Providência em

parte para condenar, como essencialmente corrompido, todo intento de operar grandes

mudanças por meio da política. É um recado muito claro aos seus contemporâneos.

Chegamos a este mundo com ele já organizado. Cumpre ao homem – e ao homem

político, sobretudo – adequar-se à situação que encontra, ao invés de tentar recriá-la

apenas para descobrir que, por orgulho e incompreensão, rompeu sua harmonia

profunda. A ação não deve originar-se numa vontade puramente individual, mas precisa

ir ao encontro do querer providencial, como atesta a seguinte passagem:

Si tout le monde attendoit le choix au lieu de s'efforcer à le déterminer par tous les moyens

possibles, je me sens porté à croire que le monde changeroit de face. De quel droit ose-t-on

dire: je vaux mieux que tout autre por cet emploi; car c'est ce qu'on dit lorsqu'on le

demande? De quelle énorme responsabilité ne se charge-t-on pas? il y a un ordre caché

qu'on s'expose à troubler. Je vais plus loin; je dis que chaque homme, s'il examine avec soin

et lui-même et les autres, et toutes les circonstances, saura fort bien distinguer les cas où

l'on est appelé, de ceux où l'on force le passage (SP I 213-4).

Existe em Maistre uma notória tensão entre a liberdade humana e a divina vontade.

Nenhum dos dois pólos há de prevalecer de maneira absoluta e irresistível, explicação

contida nesta curiosa passagem de 1817, que vale a pena citar, porque nela o autor se

defende da acusação de fatalista (trata-se de uma carta a um amigo):

Je ne suis pas fataliste, Dieu m'en préserve ! L'homme doit agir comme s'il pouvait tout, et

se résigner comme s'il ne pouvait rien. Voilà, je crois, le fatalisme de la sagesse. Si un

homme tombe au milieu d'un fleuve, certainement il doit nager, car s'il ne nage pas, il sera

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certainement noyé, mais il ne s'ensuit pas qu'il aborde où il veut, car le courant conserve

toujours ses droits (apud Lafage, 1998:108).

O governo da sociedade, sendo um campo de atuação do divino, requer, no mínimo, um

horizonte modesto de ambições; de outro modo haverá uma superposição de

competências, se podemos dizer assim. A política oferece a cada um de nós uma

possibilidade luciferiana de desempenhar um papel muito superior ao permitido pelas

nossas forças. Daí a necessidade – não é isso o que Maistre nos diz implicitamente? – de

um certo treinamento espiritual para o exercício do governo: o homem reina sobre a

terra porque se parece com Deus (SP I 233). Surge então a questão central da liga do

império com o sacerdócio, que abordaremos mais para a frente. Que tenha o soberano

consciência de suas responsabilidades, a fim de saber quando atende a um chamado ou

“força a passagem”. Neste caso, lutará em vão com os planos gerais da Providência, à

maneira do homem que, dentro de um rio de águas agitadas, se debate inutilmente,

tentando controlar a própria trajetória. De fato: a Providência pode mais que os homens

e isto é particularmente visível nos momentos de transição histórica. Então sucede o

espetáculo dos líderes que, buscando impor sua própria vontade, na verdade executam

com zelo involuntário um programa que ignoram. Por isso mesmo, porque atuam (sem o

saber) sob a supervisão providencial, não se deparam com adversidades que não sejam

facilmente superáveis (CF 96). Tudo isso é maravilhoso, porém se processa com uma

discrição igualmente notável. Maistre não faz segredo de sua admiração pelo arranjo

sutil que faz com que creiamos em nosso arbítrio precisamente quando é inoperante.

“Os homens não conduzem a revolução, mas a revolução emprega os homens”, diz ele,

assumindo que o sentido dos grandes movimentos históricos se coloca, na maior parte

do tempo, acima do entendimento daqueles que parecem dirigi-los (CF 98).

A presença da ordem

O mundo de Maistre é o do Timeu, de Platão, em nada parecido com o de Demócrito ou

Epicuro. O entrechoque incessante de átomos, no plano físico, ou de homens, no plano

social, não aponta para o caos total, mas confirma, ao fim e ao cabo, o influxo de uma

lógica espantosa sobre o reino da contingência em que estamos confinados. Novo

paradoxo, formulado com termos que se contradizem, bem ao jeito de Maistre: por toda

parte, e especialmente na Revolução, “podemos admirar a ordem na desordem” (CF

103). O autor se compraz com a constatação de que nenhum revolucionário sobrevive

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ao monstro que ajudou a criar. A administração das penas e das recompensas se

processa aqui mesmo, enquanto vive o homem, garantindo, afinal, o equilíbrio dos

pratos da balança da Justiça. Não há ato de rebeldia sem punição. Tampouco há – como

veremos no momento oportuno – sangue inocente que, uma vez derramado, deixe de

lavar os crimes por outros cometidos. Graças ao princípio da reversibilidade, o justo

paga pelas faltas do criminoso e fortalece o império do bem.

Para tratar do tema da ordem, Maistre se volta com afinco para a natureza – tentativa,

talvez, de levar sua contra-revolução para o “subversivo” terreno das ciências exatas,

cujo desenvolvimento contribuiu para minar as cosmovisões tradicionais. Vejam-se,

com efeito, nas Soirées, suas meditações sobre aritmética sagrada, ou aritmosofia. Para

onde quer que se olhe, lá está a simetria, a proporção, a conformidade. Tudo isso a

denunciar um toque inteligente nas coisas que nos cercam. E, como princípio regulador

da ordem, o número. Ele separa o que está confundido e organiza, perante a nossa razão,

as impressões tumultosas dos nossos sentidos. Nada resiste ao seu poder de transfigurar

o disforme em coisa harmoniosa e bem-feita – o grito em canto, o salto em dança (SP II

442-3). Em 1799, em Veneza, já como emigrado, Maistre contraiu malária duas vezes,

em dois meses consecutivos. O que anotou em seu diário ilustra bem o que estamos

dizendo: “É impressionante que eu tenha pego febre no dia 2 de julho e no dia 2 de

agosto e que ela tenha durado 4 dias em ambas as ocasiões; a ordem está por toda parte”

(apud Lebrun, 1988:162).

O amor que a inteligência tem pela ordem se faz patente, de acordo com Maistre, nos

quadros mais ordinários que possamos imaginar. Uma tropa uniformizada, marchando

disciplinadamente, encanta os olhos, ao contrário do que ocorreria caso os mesmos

soldados envergassem roupas comuns e evoluíssem dispersos. Apreciamos, num

interior, a disposição correta dos móveis, e, numa mesa, a arrumação simétrica dos

pratos, copos e talheres. O náufrago que alcança uma ilha e nas suas areias encontra

desenhada uma figura geométrica sabe imediatamente que está em um lugar habitado.

De igual modo, o homem, no mundo, depara-se, inclusive em seu próprio corpo, com

uma abundância desses sinais, que só uma vontade inteligente é capaz de produzir.

Maistre se assombra, em especial, com a onipresença do número três e seu potencial

ordenador:

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[...] il est écrit dans les astres, sur la terre, dans l’intelligence de l’homme, dans son corps;

dans la vérité, la fable; dans l’Evangile, dans le Talmud, dans les Védas, dans toutes les

cérémonies religieuses, antiques ou modernes, légitimes ou illégitimes, aspersions,

ablutions, invocations, exorcismes, charmes, sortiléges, magie noire ou blanche; dans les

mystères de la cabale, de la théurgie, de l’alchimie, de toutes les sociétés secrètes; dans la

théologie, dans la géometrie, dans la politique, dans la grammaire, dans une infinité de

formules oratoires ou poétiques qui échappent à l’attention inavertie, en un mot dans tout

ce qui existe (SP II 445).3

Ordem e universo, ordem e história. O acaso, uma suposição desmentida a cada

segundo, que barra o caminho para uma compreensão superior da realidade. A crise

abismal de seu tempo compele Maistre a praticar um vigoroso exercício de introspecção

e a buscar, nas ciências herméticas e no misticismo – ou na mistificação, como podem

atalhar seus críticos –, respostas para a perplexidade que o tortura, diante de uma

Europa em ruínas. Sua obra é um testemunho magistral da angústia que acometeu um

espírito dos mais sensíveis e religiosos no umbral da Idade Positiva (Comte). O amparo

que descobriu ou forjou para si foi a certeza de que tanta devastação traía a interferência

de um Deus furioso, em vias de preparar a redenção das suas criaturas pelo caminho do

sofrimento. Tocqueville, pouco depois do filósofo saboiano, atribuirá à Providência o

desejo de espalhar a democracia no mundo, pondo fim a séculos e séculos de um

esquema social de rígida estratificação. Maistre, diversamente, acreditou numa epifania

próxima, num completo redressement histórico, numa palingenesia inauguradora de

uma fase áurea, prenhe de espiritualidade, da existência humana sobre a terra.

Falar a respeito do providencialismo de Maistre obriga-nos a recordar as meditações que

consagrou ao fenômeno profético. Na 11ª palestra das Soirées, colocou na boca do

Senador um notável discurso acerca desta “eterna doença do homem”, a saber, o desejo

de conhecer o porvir. Que este se desvela parcialmente com alguma antecipação, não

duvida Maistre. Invoca, a favor de sua tese, a popularidade da astrologia judiciária, os

antigos e seus oráculos e, mais modernamente, Maquiavel, que acreditava, ele também,

que todo grande acontecimento na vida de uma cidade ou país não sucede antes de sua

respectiva predição (SP II 575). Isto é recorrente em Maistre: se determinado fato —

especialmente quando religioso — está presente em diferentes culturas e em diferentes

3 Mais detalhes da aritmosofia de Maistre podem ser econtrados em Dermenguem (1946:155-70).

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épocas, tem-se aí base suficiente para tomá-lo a sério, por mais que possa suscitar

embaraço e dúvida no homem moderno:

Le matérialisme qui souille la philosophie de notre siècle l’empêche de voir que la doctrine

des esprits, et en particulier celle de l’esprit prophétique, est tout-à-fait plausible en elle-

même et de la plus mieux soutenue par la tradition la plus universelle et la plus imposante

qui fut jamais (SP II 549).

Esse “espírito profético” confere a seu possuidor a capacidade de situar-se num plano

que está para além do tempo, em que se fundem passado, presente e futuro. O homem

“é, por natureza, estranho ao tempo”, embora a ele se encontre submetido (SP II 550).

Nenhum estranhamento, pois, deve causar a vocação profética: ela atende a uma

necessidade espontânea e muito humana de romper a jaula do tempo. Parece-me

provável que o autor pense, em parte, em si mesmo quando trata de profetas e profecias:

afinal, ele próprio ousa, nos seus escritos, interpretar sinais e antever o futuro. As

palavras do Senador, como em outras partes das Soirées, amiúde exprimem os

pensamentos íntimos de um Maistre que, por prudência ou reserva, evita falar na

primeira pessoa. Mas não há margem para dúvida quanto ao fato de que ele se julgava

membro do seleto grupo de “homens espirituais” que já sentia, mesmo que um tanto

confusamente, a chegada de uma grandiosa e benéfica contra-revolução:

Comme les poètes qui, jusque dans nos temps de foiblesse et de décrépitude, présentent

encore quelques lueurs pâles de l’esprit prophétique, qui se manifeste chez eux par la

faculté de deviner les langues et de les parler purement avant qu’elles soient formées, de

même les hommes spirituels éprouvent quelquefois des momens d’enthousiasme et

d’inspiration qui les transportent dans l’avenir, et leur permettent de pressentir les

événemens que le temps mûris dans le lointain.

[...] car il faut nos tenir prêts pour un événement immense dans l’ordre divin vers lequel

nous marchons avec une vitesse accélérée qui doit frapper tous les observateurs. Il n’y a

plus de religion sur la terre: le genre humain ne peut demeurer dans cet état. Des oracles re-

doutables annoncent d’ailleurs que les temps sont arrivés. [...] Il n’y a peut-être pas um

homme véritablement religieux en Europe qui n’attende dans ce moment quelque chose

d’extraordinaire [...]

Une nouvelle effusion de l’Esprit saint étant désormais au rang des choses les plus raison-

nablement attendues [...] (SP II 554, 548 e 560).

Segundo o estudioso jesuíta Pierre Vallin (1993:64), Maistre “se insere na grande

corrente, diversa e rica, dos milenarismos cristãos”. Para Pranchère, ele representa “a

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utopia reacionária de uma regeneração da monarquia no seio de uma revolução

religiosa mundial” (apud Glaudes, 2006:12). Com efeito, Maistre apresenta uma versão

modernizada, própria para as circunstâncias políticas de fins do XVIII e princípio do

XIX, do milenarismo (ou quiliasmo) judaico-cristão. Essas duas religiões possuem uma

concepção histórica muito particular, que favorece o surgimento, de tempos em tempos,

e em condições de opressão e désarroi, de uma poderosa crença na mudança iminente,

radical e benfazeja do curso da história. Segundo Norman Cohn, a primeira

manifestação do quiliasmo judaico se deu em meados do século II a.C., quando a

Palestina passou ao duro domínio da dinastia sírio-helenística dos Selêucidas. O

monarca Antíoco Epifânio, cujo reinado durou de 175 a 164, notabilizou-se por sua

devoção à cultura grega e ira contra o judaísmo, ao ponto de intentar suprimi-lo. O

Livro de Daniel, escrito durante a revolta dos Macabeus, contém, para Cohn (1957:4), o

modelo do que viria a ser “the central phantasy of revolutionary eschatology”. O mundo

caiu nas garras de um tirano maligno, não humano, mas diabólico. Suas vilezas e

crueldades vão num crescendo, para desespero das vítimas, que, fracas e assustadas, não

têm condições de lhe opor nenhuma resistência. A situação chega ao fim quando Deus

se deixa tocar pelas súplicas de seu povo e intervém, secundado pelos santos cuja fé não

esmoreceu. O governante ímpio é derrubado e, com tal, tem início uma nova era de

glória e justiça para os eleitos.

Ainda segundo Cohn, a febre quiliasta dos judeus arrefeceu com o passar dos séculos.

Ou, melhor dizendo, foi contraída pelos cristãos: o “sonho de Daniel” os impressionou

sobremaneira. Com efeito, vários foram os que se entregaram, nas horas de perseguição,

à esperança da vinda iminente do messias. No século IV, porém, as autoridades

eclesiásticas optaram – com base em razões nada estranhas à política – por reprimir tais

movimentos. “The Catholic Church was now a powerful and prosperous institution,

functioning according to a well-established routine; and the men responsible for

governing it had no wish to see Christians clinging to out-dated and inappropiate

dreams of a new earthly Paradise”, escreve Cohn (id., 14). Orígenes, o mais influente

teólogo do paleocristianismo, já tentara, no século III, apresentar o quiliasmo como

fenômeno individual, não coletivo: o advento do Reino dar-se-ia na alma do crente ao

invés de na sociedade (ibid., 13). (Maistre, que muito o admirava, não o seguiu, pois,

nesse ponto.) No século V, Santo Agostinho afirmou, em A Cidade de Deus, que o

milênio se consumara com a fundação da Igreja. Em 431, o Concílio de Éfeso chancelou

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essa posição e classificou toda recaída milenarista como superstição intolerável.

Mesmo assim, a crença milenarista não morreu. As escatologias cristãs atravessaram a

Idade Média. Ganharam novo folêgo com as profundas alterações sociais que se

processaram na Europa durante o século XI: adensamento populacional, renascimento

urbano, proliferação da indústria, fluxos migratórios etc.. É de interesse mencionar a

obra do monge calabrês Joaquim de Flora (c. 1130-1202). Diz Cohn que ele foi o inven-

tor de um sistema profético que “was to be the most influential one known to Europe

until the appearance of Marxism”. A interpretação joaquimita da história repartia o

tempo em três fases, a Idade do Pai, ou da Lei; a Idade do Filho, ou do Evangelho; e a

Idade do Espírito, que marcaria o ápice do desenvolvimento espiritual da humanidade.

Nesta última e redentora idade, todos os homens teriam, segundo Flora, um

conhecimento direto de Deus, e viveriam em estado de constante e intensa adoração de

seu criador. A primeira idade durara de Adão a Abraão, a segunda de Elias ao Cristo e a

terceira, que principiara com São Bento, estava prestes a terminar (ibid., 99-103).

O vínculo dessa doutrina com as ideologias modernas é profundo, segundo Cohn:

[...] it is unmistakably the Joachite phantasy of the three ages that reappeared in, for

instance, Auguste Comte’s idea of history as an ascent from the theological through the

metaphysical up to the scientific phase; and again in the Marxian dialectic of the three

stages of primitive communism, class society and a final communism which is to be the

realm of freedom and in which the state will have withered away. And it is no less true – if

even more paradoxical – that the phrase ‘the Third Reich’, as a name for that ‘new order’

which was to last a thousand years, would have had but little emotional significance if the

phantasy of third and most glorious dispensation had not, over the centuries, entered into

the common stock of European social mythology (ibid., 101).

Esse breve excurso pela história do milenarismo judaico-cristão tem o objetivo de

alertar para um certo fundo comum – se aceitamos a tese de Cohn – entre o pensamento

maistriano e as ideologias modernas (no caso em tela, o positivismo, o comunismo e o

nazismo). É óbvio que estas e aquele não são a mesma coisa. Mas, ainda assim, nem

Maistre, nem os ideólogos modernos, escaparam à influência do quiliasmo, do sonho de

uma concretização, neste mundo, de um certo ideal, fosse ele de caráter religioso ou

secular. Indício de que as extremidades de um arco político podem tocar-se quando é

acentuado seu conteúdo milenário, produzindo talvez, na prática, resultados igualmente

desastrosos.

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História e castigo

Vale a pena lembrar o subtítulo das Soirées: “Palestras sobre o governo temporal da

Providência”. Nada mais preciso. Essa obra, como já dissemos, representa o ponto alto

de duas décadas de reflexão acerca da suposta condução da história por Deus. O

principal desafio do autor durante todos esses anos consistiu em conciliar, sempre de

uma perspectiva a um só tempo religiosa e filosófica, a suprema bondade divina com o

desfile de horrores que é a história. Tornou-se Maistre, como antes dele fizera Leibniz,

o “advogado de Deus”.

Objeto a que dedicou particular atenção foi a guerra. Com efeito, em que outro

momento na vida dos indivíduos ou das coletividades as coisas parecem mais sombrias,

mais injustas, mais vazias de sentido? Em que outro momento tem-se tão forte

impressão de que o autor do universo detesta suas criaturas, ao ponto de permitir que se

destruam reciprocamente? O absurdo da guerra incitou Maistre a examinar longamente

o problema. A conclusão a que chegou foi de todo diferente daquilo que expôs Voltaire

no verbete “Guerre” de seu Dictionnaire philosophique (1764). Ele não viu outra coisa

nos conflitos militares senão o resultado da cobiça e da insensibilidade dos governantes.

Por razões alheias ao interesse de seus súditos, os monarcas não hesitam em promover

gigantescas carnificinas. A legitimar tanta insensatez, lá está a “religião artificial” (isto

é, revelada, por isso “imposta” à razão), de princípios opostos aos da “religião natural”,

que nunca permitiria aos homens vir a tais extremos de vileza.

O contraponto voltaireano é importante porque realça os contornos particulares das

elucubrações de Maistre sobre a guerra. Estas apontam, em primeiro lugar, para o seu

caráter natural. Os projetos de paz perpétua, como o formulado por Saint-Pierre em

1713, jamais terão êxito, pensava Maistre: eles contrariam leis inerentes à condição

humana. Essa percepção foi expressa de modo lapidar no capítulo III das

Considérations, um dos mais fascinantes do livro: “L’histoire prouve malhereusement

que la guerre est l’état habituel du genre humain dans um certain sens ; c’est-à-dire que

le sang humain doit couler sans interruption sur le globe, ici ou là, et que la paix, pour

chaque nation, n’est qu’un répit” (CF 114). Uma idéia já mencionada anteriormente e

que o autor reitera a cada instante em sua obra é a de que o homem não pode ser causa

de nada que saia um pouco das fronteiras do ordinário. A tese segundo a qual basta um

comando dos governantes para que os batalhões marchem é por ele descartada como

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ingênua e simplista. Nascido e formado no Antigo Regime, Maistre sabia que os reis

absolutos não são dotados de poder absoluto. Suas vontades devem ser minimamente

compatíveis com as de seus súditos. Devem manter-se dentro do que chamou de

“círculo das coisas aprovadas pela opinião” (SP II 376). E esse círculo não são os

monarcas que o traçam. A guerra é, afinal, um enigma enquanto tentamos compreendê-

la somente em termos humanos. Eis aí um tema recorrente no pensamento

“conservador”: a recusa em acreditar que todos os fenômenos do mundo podem ser

abarcados por meio de uma explicação positiva. Com eles, o sentido do mistério

permanece vivo. Um véu cobre a realidade; sem antes o levantar, nada entendemos dela.

Daí vem a pergunta:

Seroit-il possible que l’effusion du sang humain n’eût pas une grande cause et de grands

effets? Qu’on y réfléchisse : l’histoire et la fable, les découvertes de la physiologie moderne

et les traditions antiques, se réunissent pour fournir des matériaux à ces méditations. Il ne

seroit pas plus honteux de tâtonner sur ce point que sur mille autres plus étrangers à

l’homme (CF 120).

Se, à maneira de Voltaire, vinculamos o problema da guerra a rivalidades de ordem

política, sinal é de que ainda não o penetramos. Para Maistre, sua verdadeira raiz é a

corrupção dos homens, que, por sua vez, os leva a praticar os crimes mais horrendos.

Cada um desses crimes, na proporção em que amplia a presença do mal entre nós, pede

uma compensação. A guerra oferece essa oportunidade numa escala apropriada às

imensas maldades perpetradas diariamente e em toda parte. Ela representa uma “terrível

purificação”, que lava – com sangue – os pecados do mundo. Mas não é qualquer

sangue, qualquer sofrimento, qualquer vítima que tem o condão de redimir as faltas do

homem. O universo exige em especial, a fim de restaurar o próprio equilíbrio, a vida do

inocente. Os méritos de uma pessoa sem culpa são reversíveis em favor de uma outra,

esta culpada. Em seu Éclaircissement sur les sacrifices – curto ensaio redigido para

acompanhar as Soirées –, Maistre faz uma erudita jornada por várias culturas antigas e

tradições religiosas com o propósito de mostrar a universalidade da crença nas virtudes

expiatórias do sacrifício. O cristianismo foi a religião que confirmou esse “dogma

universal” e lhe conferiu suprema dignidade, ao corrigir os abusos que dele faziam

nações pagãs. As macerações a que certas ordens religiosas submetem seus membros se

justificam também por aí: trata-se de fazer com que as privações do justo paguem pelos

erros do mau.

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Ademais de seu efeito purificador, as guerras ensejam, de acordo com Maistre, o

florescimento do espírito humano (idéia que seria retomada, no século XX, por Louis

Lavelle, em seu pungente ensaio Le mal et la souffrance). Decerto não é original a idéia

de que a prosperidade sempre ameaça turvar, num indivíduo, a noção do quanto são

frágeis as realizações de seu povo. Sabe-se que um importante fator de mudança

histórica reside na decadência de elites que, se um dia exibiram espírito de iniciativa e

austeridade, a partir de um certo momento, sob a influência corrosiva do êxito, se

transformaram em grupos acuados e corrompidos. Impõe-se, então, o desafio: recobrar a

vitalidade ou perecer. Caso se escolha a primeira alternativa, a única solução que

Maistre reconhece é também a mais drástica de todas: “(...) lorsque l’âme humaine a

perdu son ressort par la mollesse, l’incrédulité et les vices gangreneux qui suivent

l’excès de civilisation, elle ne peut être retrempée que dans le sang” (CF 118). A guerra

restitui ao homem aquilo que perdera em tempos de paz: uma atitude grave diante da

existência. Uma vez desbastado o “excesso de civilização”, a parte sublime da “árvore

do gênero humano” pode ser vista em ação mais uma vez: “Or, les véritables fruits de la

nature humaine, les arts, les sciences, les grandes entreprises, les hautes conceptions, les

vertus mâles, tiennent surtout à l’état de guerre” (CF 119).

Maistre, apologista da guerra? Apesar de tudo, seria precipitado dizê-lo taxativamente.

Ele celebra, é verdade, o “enthousiasme du carnage” que se apodera de um soldado

quando na frente do inimigo. Também observa, surpreso, que em várias sociedades os

feitos militares, embora cruentos, são fonte de glória legítima para os seus autores. E

nunca o cristianismo se mostra “mais sublime, mais digno de Deus e mais apropriado ao

homem, senão durante a guerra” (SP II 389). Mas tudo isso precisa ser ponderado à luz

de outras afirmações suas, como as contidas numa carta de 1817 que enviou ao seu

antecessor na embaixada da Rússia, o conde de Vallaise. “Mas o diabo carregue todo

inventor de novos meios de matar”, exclama, para logo em seguida deplorar a espiral

militarista em que haviam caído as nações européias (OC XIV 23-4).

Seja como for, os sentimentos contraditórios de Maistre diante do espetáculo incessante

da violência humana não prejudicaram a coerência de sua filosofia da guerra,

intimamente ligada à doutrina providencialista que elaborou ao longo de seus últimos

trinta anos de vida. De um lado, a vontade divina; do outro, o homem, aferrado à mania

de sempre “argumentar contra seu pai” (SP I 217). Sua rebeldia lhe custa caro: os

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crimes que em decorrência dela comete não passam em branco. Das doenças às

convulsões políticas, todo sofrimento é resultado do desacerto e do desequilíbrio de sua

natureza, dilacerada entre o bem e o mal, a luz e a treva, o espírito e a carne.

Está certo pois Georges Steiner quando afirma que, para Maistre, “história é castigo”

(apud Pranchère, 2001a:293).

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2. O poder de criar

A reformulação completa da ordem política de uma sociedade é um dos tabus do

tradicionalismo. O homem vem ao mundo e já o encontra disposto de uma certa forma,

obedecendo a uma certa hierarquia. A permanência é um princípio de primeira

importância. O desejo de interferir naquilo que existe à nossa volta supõe uma falsa

onisciência: é como se conhecêssemos por dentro o funcionamento do complexo

mecanismo da sociedade. Mas, para Joseph de Maistre, só o criador dispõe de

informações completas sobre o sentido do que criou. No plano mais amplo das

coletividades, ele afirma que o homem não só ignora seu funcionamento como é incapaz

de nele engendrar o que quer que seja. Se insiste em cruzar essa fronteira, age como

Prometeu e, por isso, merece um castigo à altura. Critica, por se tratar de uma tarefa

exclusivamente sobre-humana, a criação de constituições, sobretudo a partir de

princípios abstratos, nunca antes postos em prática, e também a criação de soberanias,

como se isto fosse possível. O político de Maistre demonstra superioridade na medida

em que consegue manter-se fiel à tradição, rechaçando conscienciosamente toda

invenção original. Ele é prudente o bastante para não abandonar jamais o círculo das

coisas testadas pela história. Trata-se não de negar a mudança, mas de saber permanecer

imóvel enquanto ela ocorre. A sociedade não evolui pela mão do homem, e sim pela

mão do tempo, que atua de maneira invisível, com lentidão e segurança.

Os fundamentos da metapolítica

Escrito em 1809 e publicado em 1814, o Essai sur le principe générateur des

constitutions politiques é uma das obras mais representativas do pensamento político de

Maistre, não obstante seu reduzido tamanho. Aí encontramos teses já contidas no

capítulo VI das Considérations (“De l’influence divine dans les constitutions

politiques”), só que mais desenvolvidas. A publicação desse opúsculo não se deu em

hora oportuna. 1814 foi o ano da ascensão de Luís XVIII ao trono francês. Esse

soberano não desfez todas as inovações introduzidas pela Revolução. Aceitou conviver

com um parlamento e se comprometeu com a observância da Carta Constitucional de

junho de 1814. Ora, o opúsculo de Maistre é um ataque feroz ao princípio liberal de

submeter o governo de uma nação a um documento escrito. Por isso, exigiu do editor

que o livro fosse publicado anonimamente. Não foi atendido, o que lhe causou enorme

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dissabor. Afinal, ambicionava tornar-se alto conselheiro dos príncipes da Europa. O

Essai tinha tudo para comprometer sua reputação logo perante o principal deles, no

momento da restauração da monarquia na França (Lebrun, 1988, 196-7).

De todo modo, a intenção inequívoca do Essai foi solapar qualquer pretensão à

possibilidade de uma demiurgia política bem-sucedida. Bateu-se, em especial, com a

noção de constituição moderna, entendida como “a ordenação sistemática e racional da

comunidade política através de um documento escrito no qual se declaram as liberdades

e os direitos e se fixam os limites do poder político” (Canotilho, 1997:46).

Toda exposição sobre o conservadorismo costuma enfatizar o valor que seus partidários

atribuem à experiência histórica, bem como sua aversão às teorias que, desconsiderando

o passado, tratam da forma ideal de organizar a sociedade.4 Esse aspecto, de fato, é

verdadeiro e importante. No entanto, dando-lhe excessiva ênfase, corre-se o risco de

transmitir uma imagem distorcida da filosofia política maistriana. Albert O. Hirschman

(1992:13), por exemplo, chega ao ponto de reduzir todo o conflito entre entusiastas e

críticos da Revolução de 1789 a uma simples recusa, por parte destes, em aceitar a

“afirmação da igualdade perante a lei e dos direitos civis em geral”.5 Para contornar

esse tipo de conclusão, que a meu ver falseia o quadro dos pontos em debate, o

itinerário de nossa análise deve partir daquilo que, no caso de Maistre, constitui o mais

importante em sua crítica ao século XVIII, a saber, seu caráter irreligioso e prometéico.

Ele decerto concordaria com a definição de Iluminismo e de Idade da Razão segundo a

qual os termos “embody a denial of cognitive value to spiritual experiences, attest to the

atrophy of Christian transcendental experiences and seek to enthrone the Newtonian

method of science as the only valid method of arriving at truth” (Voegelin, 1975:3).

Quando se trata de um autor como Maistre, mesmo um debate aparentemente tão alheio

às coisas da religião, como a necessidade ou não de uma constituição escrita, precisa ser

visto por esse ângulo. “Não haveria teoria contra-revolucionária sem Deus”, observou

bem Gérard Gengembre (1989:13). First things first.

4 Veja-se, por exemplo, Cecil (1928). 5 Para Hirschman, conservadores são, de modo geral, todos aqueles que se opuseram ou se opõem às três fases – civil, política e econômica – do desenvolvimento do conceito moderno de cidadania, segundo o esquema proposto em 1949 por T. H. Marshall.

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Já na abertura do Essai, lemos que

Une des grandes erreurs d’un siècle, qui les professa toutes, fut de croire qu’une

constitution politique pouvoit être écrite et créée à priori , tandis que la raison et

l’expérience se réunissent pour établir qu’une constitution est une oeuvre divine, et que ce

qu’il y a précisément de plus fondamental et de plus essentiellement constitutionnel dans

les lois d’une nation ne sauroit être écrit (EC 1).

Essa é uma profissão de fé de claros contornos antimodernos, que afirma os limites da

ação política e da inteligência humana. Não somos nós os autores da sociedade em que

vivemos, nem, por extensão, os artífices da nossa história. Na melhor das hipóteses, o

homem pode agir como um instrumento inspirado da razão divina; na pior, debate-se

em vão para fundar uma nova realidade que, por contrariar os desígnios dessa razão,

está condenada ao fracasso. Numa época ansiosa por abandonar o fardo do pecado

original nos escombros de uma sociedade que supunha opressora, Maistre entendeu que

era sua missão restituir um certo senso de gravidade em face da existência que só a

crença em um referencial absoluto, sobre-humano, é capaz de conferir: “Après un siècle

entier de futilités criminelles, il est temps de nous rappeler ce que nous sommes et de

faire remonter toute science à sa source” (id. IX).

A fonte a que se refere é Deus, naturalmente. Dele emanam as principais leis a que o

homem deve obediência e que tiram toda a força de sua autoridade do fato mesmo de

que nenhum homem as fez. Às constituições escritas, Maistre prefere as leis que cada

pessoa traz no próprio coração, por infusão divina.

Maistre avançou no Essai contra uma das causas mais caras à Revolução Francesa, a

soberania popular, freqüentemente associada à noção de constitucionalismo. Cabe

recordar que não chegou a negar ao homem a capacidade de agir sobre a sociedade e,

até certo ponto, transformá-la, mas sempre na condição de co-participante da ação

divina. “Parce que l’homme agit, il croit agir seul; et parce qu’il a la conscience de sa

liberté, il oublie sa dépendance” (ibid. 14). A investidura dos soberanos é feita por

Deus, jamais pelo homem. Sua resistência obstinada à noção de soberania popular deve-

se tanto à rejeição da proposta segundo a qual o poder temporal tem suas raízes neste

mundo como ao receio dos resultados de uma política que dispensa a sanção divina.

Transformar as coisas é muito simples; o problema consiste em querer transformá-las

para melhor e sem nenhuma assistência de Deus. Nesse caso, a ação do homem “é

negativa e só produz destruição” (ibid. 62).

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A política é o reino do efêmero por excelência, sabemos. Por isso, pode parecer um

contra-senso a insistência de Maistre em advertir para a necessidade de os homens

deixarem as portas abertas para a eterna e imutável Providência nesse terreno. Afinal,

como ela se manifesta? Segundo Maistre, Deus interfere na história por meio do tempo,

que carrega dentro de si as circunstâncias. Estas são inumeráveis, e os resultados de suas

combinações mais ainda. A verdadeira constituição política de uma nação surge a partir

da sedimentação secular de ações e idéias que homem ou assembléia constituinte

nenhuns podem sequer sonhar em controlar. Leiamos esta explicação imagética da tese

de Maistre, escrita por um dos raros brasileiros que estudaram o conjunto de sua obra:

As grandes nações são como as grandes florestas tropicais, em que a ramagem

impenetrável, o cipoal denso e as lianas enredadas apertam-se, enroscam-se e dependuram-

se em festões pelos troncos nodosos e seculares. O caminhante desatento não reflecte que

está ali estratificado o trabalho imemorial do tempo, e que a paz e o silêncio daquela

opulenta e engalanada vegetação é o teatro das mais variadas transmutações da vida! Mas o

esperto pensador desvenda, como fundo de tantas maravilhas, a mão soberana, embora

oculta, da inefável Omnipotência (Correia, 1957:18).6

O exemplo máximo dessa sabedoria política, que consiste em não amarrar a um texto

escrito o organismo político nacional, é a Inglaterra. Leitor de Edmund Burke, Maistre

deixa evidente a sua admiração pela pátria da common law, lugar de vicejante espírito

público, onde ainda vigia como pedra de toque das práticas e das instituições a política

experimental, isto é, a história, como gostava de dizer.7 É que o excesso de

racionalidade, quando se trata de reformar um grande corpo coletivo, pode mostrar-se,

pior que inútil, danoso. Uma das marcas da inteligência de Maistre é que jamais ele se

contenta apenas em mostrar a ponta do fio de um raciocínio. Percebemos o prazer que

sente em desenvolver algum lampejo original até às últimas conseqüências, de

6 Esse texto de Alexandre Correia é uma brochura de apenas 59 páginas que enfeixa uma série de artigos publicados pelo autor entre 1921 e 1922 na revista A Ordem, fundada por Jackson de Figueiredo. Trata-se de um trabalho que, embora pioneiro, escrito com base na obra completa publicada de Maistre, peca pelo número excessivo de citações e caráter apologético. 7 No Essai Maistre prefere tratar da constituição inglesa, nada falando da “antiga constituição” dos fran-ceses, à qual dedica todo um capítulo nas Considérations. Um bom quadro do que seria essa antiga cons-tituição nos é dado pelo historiador Funck-Brentano (1956:I,19): “L'ancienne France n'a pas connu le système législatif qui, par les décisions d'une assemblée délibérante ou d'un pouvoir constitué, trace aux hommes les voies à suivre. On vivait à la façon des ancêtres: 'Les vieux faisaient ainsi'. La 'coutume', les 'coutumes', voilà la loi, une loi durable, indiscutée”.

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preferência para chegar a alguma conclusão mais ou menos extravagante que

surpreenda o leitor e o deixe embaraçado. Assim, a par de uma crítica ao racionalismo

da filosofia social de então, encontramos no Essai um eloqüente elogio da imperfeição e

do absurdo em política. Toda execução de uma “melodia” constitucional está sujeita a

dissonâncias. Devemos lamentá-lo? “Le défaut est un élément de la perfection possible”

(ibid. 67). Só uma cabeça como a sua, afeita aos paradoxos, é capaz de encarar com

normalidade a idéia de que certas falhas nos alicerces de um edifício político

contribuem para que seja... mais estável.

Um dos argumentos mais interessantes e persuasivos de Maistre contra as constituições

escritas emerge de um paralelo que traça entre a história política e a história eclesiástica.

Num apaixonante ensaio sobre Maistre, repleto de boas idéias, Émile Cioran (1957)

afirmou que o saboiano, de tão dogmático e autoritário, era capaz de preferir o papa ao

Cristo (acusação que repetirá Isaiah Berlin, com outros termos). Mas a leitura do Essai

obriga-nos a relativizar o juízo do escritor franco-romeno. A instituição de dogmas é,

para Maistre, uma iniciativa problemática, que se justifica porém diante de graves

comoções. Como quer que seja, é algo a lamentar. Assim como as sociedades registram

por escrito direitos desde sempre existentes no momento em que sofrem contestação,

uma religião só se sente compelida a deitar no papel dogmas quando vê a dúvida pesar

sobre aquilo que antes era plenamente aceito. Assim, o Concílio de Trento representou

uma violência que a Igreja Católica infligiu a si mesma a fim de sobreviver a um golpe

ainda mais duro, desfechado pelos protestantes. E jamais passou pela cabeça de Maistre

celebrar tais crises. Outra asserção de Cioran a pedir revisão é a de que Maistre, ao

vituperar contra os heréticos, drenava uma importante fonte de fervor religioso, porque

é precisamente a rebeldia e a cegueira dos heterodoxos que fortalece os bons cristãos na

fé. Ora, como estamos vendo, é bem o contrário. Os papéis de um concílio convocado

para condenar uma heresia qualquer têm como efeito direto o empobrecimento da

verdadeira espiritualidade, na medida em que se substituem à iluminação interior do

crente. Maistre explora como exemplo o próprio Novo Testamento, que é uma narrativa,

e não uma coleção de dogmas. Com relação aos evangelistas, diz ele: “On lit bien dans

leur admirable histoire: Allez ! Enseignez ! Mais, point du tout, enseignez ceci ou cela”

(ibid. 21). É que de nada vale a palavra desacompanhada de inspiração. Nem mesmo as

Sagradas Escrituras podem valer muita coisa se a leitura que fazemos delas é um ato

mecânico, do qual se ausentaram o coração e a tutela divina. “Si la Parole,

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éternellement vivante ne vivifie l’écriture, jamais celle-ci ne deviendra Parole, c’est-à-

dire Vie” (ibid. 35). Do mesmo modo, de que adianta a uma comunidade uma obra-

prima de constituição se seus cidadãos não possuem um pingo de espírito público?

Entendamos, ademais, que sua crítica às leis escritas tem relação direta com sua

veneração pela linguagem, à qual atribui (como Bonald e Hamann) origem divina. E a

política moderna foi o palco da prostituição desse dom de Deus. Daí, em parte, esse

desprezo característico pelos termos supostamente rebarbativos que tomaram de assalto

a linguagem ordinária. Alexis de Tocqueville conta, no seu relato autobiográfico sobre

as agitações de 1848, que, candidato à assembléia constituinte, se recusou a tratar em

seus discursos os eleitores por “cidadãos”, preferindo chamá-los de “senhores”. Maistre:

“Ce fut dans une de leurs orgies législatrices que des brigands inventèrent ce nouveau

titre [de cidadão]”, que veio ocupar o lugar das antigas fórmulas de cortesia (CF 130).

Mais uma vez ele surpreende o homem do século XVIII apossando-se de uma

prerrogativa divina, a de dar nome às coisas, como se onomaturgo (criador de nomes)

fosse (EC 82). No entanto, como de hábito, a diferença entre o resultado da ação

humana e o da divina é simples de detectar, visto que a distância entre um e outro

equivale à que separa o chumbo do ouro. “Que l’on y fasse bien attention, les noms les

plus respectables ont dans toutes les langues, une origine vulgaire. Jamais le nom n’est

proportionné à la chose; toujours la chose illustre le nom. Il faut que le nom germe, pour

ainsi dire, sans quoi il est faux” (id. 89). A crítica ao fausto artificial, aquele que

claramente tenta compensar uma pretensão infundada, não se limita, em Maistre, ao

idioma. Ele aproveita a oportunidade para escarnecer do Odéon de Paris, o teatro-

monumento inaugurado em 1782. Quando existe a necessidade de erigir um “temple à la

Musique, sous le nom sonore et antique d’Odéon; c’est un preuve infaillible que l’art est

en décadence [...]” (ibid. 88).

A crítica maistriana da total nulidade das leis escritas comporta apenas uma única e

venerável exceção, o código mosaico. Por razões óbvias, tal legislação se coloca fora

“do círculo traçado em volta do poder humano” (ibid. 46). Por isso ela já dura mais de

três mil anos. Ressalte-se, de passagem, o respeito de Maistre pelo judaísmo, que é

admirável. Em nenhum momento deixou-se iludir pelas teorias conspiratórias que

fizeram longa e triste carreira depois da Revolução Francesa. A tese conspiratória das

Mémoires pour servir à l'histoire du jacobinisme, publicados entre 1798 e 1799 em

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Hamburgo pelo abade Augustin Barruel, não provocaram senão exasperação em Maistre

(Lebrun, 1988:170-1). Sua tolerância relativa estendia-se também às demais religiões,

inclusive o islã, e era fruto do sentimento sincero de um homem a quem fazia sofrer a

idéia de uma vida sem vínculo com uma realidade transcendente. As palavras que

reserva a Maomé em seu De la souveraineté du peuple exprimem grande admiração

pela figura do profeta. Só mesmo a estreiteza de espírito dos seus contemporâneos para

conceber a suspeita de que toda uma civilização pudesse provir de um embuste original,

comentário talvez endereçado ao Voltaire que troçou do Maomé “mercador de

camelos”. Porque “si les fondateurs de nations, qui furent tous des hommes prodigieux,

se présentaient devant nous; si nous connaissions leur génie et leurs moyens, au lieu de

parler sottement d’usurpation, de fraude, de fanatisme, nous tomberions à leurs genoux,

et notre nullité s’abimerait devant le caractère sacré qui brillait sur leur front” (SPe

345).

O caráter divino das soberanias

E quanto às soberanias? Pode o homem criá-las segundo sua vontade e conveniência?

Essa questão recebeu de Maistre um longo tratamento, em diversos textos. As páginas

anteriores já adiantam um pouco da resposta do autor. De certa forma, podemos

entender sua obra como um esforço contínuo para deprimir o homem e mostrar-lhe que

só é digno ao tomar consciência de sua nulidade. Nulidade que o proíbe de empreender

exitosamente qualquer ação de resultados mais grandiosos. A elaboração de

constituições políticas, vimos agora, é um exemplo desse tipo de ação. Constituir do

nada uma soberania é outra atividade que tampouco se deixa realizar por indivíduos

ordinários, desassistidos por Deus.

Já nas Considérations verificamos um esforço de teorização em torno do tema da

soberania. Mas é sobretudo nas obras De la souveraineté du peuple (cujo manuscrito

leva os anos de 1794, 1795 e 1796) e Du pape (1819 e, para a segunda edição,

consideravalmente revista, 1821) que Maistre expôs em mais detalhes suas reflexões a

esse respeito.

Os escritos políticos de Maistre são, em grande medida, uma reação a 1789 e ao

enciclopedismo. Esse caráter reativo não representa, de modo nenhum, um demérito,

mas explica o formato dialógico de seus livros. Maistre não tira suas idéias do vazio ou

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de inspirações súbitas, desligadas do mundo. Sua filosofia nasce do choque entre aquilo

em que acredita e os novos valores que se afirmam no cenário intelectual europeu. É por

assim dizer um exercício de “demolição criativa”. Afinal, ele não somente rejeita as

teses de Voltaire, Condorcet, Locke, Rousseau, Condillac, Hume, Diderot etc., mas

busca tornar conhecidas, perante o público cultivado de então, as suas próprias posições.

“Suas”, é claro, no sentido de que deu a elas roupagem verbal: Maistre quer que

acreditemos que nada diz de original, que tudo o que sabe são verdades difusas, ao

alcance da inteligência de qualquer um.

A vontade popular e o sistema representativo são as pretensas quimeras cuja cabeça

quer decepar (SPe 312-3). Uma e outra lhe parecem falácias criadas com o fim de

legitimar a revolta social e os crimes que dela decorrem.

O primeiro passo de Maistre consiste em mostrar que uma soberania – definida como

este “poder absoluto que pode fazer o mal impunemente” (SPe 417) – nasce do

consórcio entre a vontade providencial e o consentimento dos homens. O primeiro

termo é, de longe, o mais importante, porque coube a Deus desejar que fôssemos

sociáveis. O próprio autor, a fim de ilustrar seu raciocínio, traça um paralelo bastante

elucidativo, quando escreve: “[...] dire que la souverainté ne vient pas de Dieu parce

qu’il se sert des hommes pour l’établir, c’est dire qu’il n’est pas le créateur de l’homme

parce que nous avons tous um père et une mère” (SPe 313).

Importa notar que, embora se utilize de uma linguagem religiosa em sua démarche,

Maistre deixa espaço para que façamos uma interpretação secularizada de suas palavras.

A substância do poder é a mesma, sempre. A soberania pode trocar de mãos, para o bem

ou para o mal de um povo, mas não pode nunca sair das mãos de quem quer que seja,

pois já existe, naturalmente. “La souveraineté est toujour prise, jamais donnée” (SP II

460). Maistre pode acreditar que, aos olhos da Providência, Luís XVI é mais querido

que uma Assembléia Constituinte formada por bacharéis provincianos e clérigos

demagógicos e semi-instruídos. Mas o fato é que tanto aquele como estes são capazes

de exercer o poder, desde que consigam tomá-lo. A soberania permanece a mesma;

mudam, entretanto, os indivíduos ou grupos que a controlam, que contam com o “poder

de fazer o mal impunemente”.

Obviamente, o autor não é insensível às vantagens e benefícios desta ou daquela forma

de governo. Mas evita recomendar alguma, em especial, como a mais apropriada. Cada

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povo tem um gênio específico e se vê a braços com circunstâncias peculiares (inclusive

climáticas...), que o obrigam a procurar uma fórmula institucional adequada. Mas

procurar não é bem a palavra. Assim como ocorre com as constituições, os melhores

governos são aqueles que surgem espontaneamente, no silêncio, na paz, na obscuridade,

à distância das comoções violentas, através de um longo e incontrolável processo de

cristalização (SPe II 357). Que elementos aí influem? Não há novidade na resposta: “La

nature, le temps, les circonstances, c’est-à-dire Dieu” (ibid. 354).

É à luz do que Maistre diz sobre a soberania que devemos entender sua crítica ao

governo representativo. O centro decisório de uma comunidade política não pode sofrer

divisões. Ele deve repousar, necessariamente, num ponto único. Maistre olha com

ceticismo para a possibilidade de restringir a soberania por meio do estabelecimento de

soberanias concorrentes. Sempre haverá, afirma ele, uma instância derradeira, que

ordena sem ser contrariada, que julga sem ser julgada, que inflige dano sem temer

represália. A pulverização desse ímpeto decisório há de resultar, quase que fatalmente,

na sua destruição, lançando a sociedade no caos.

De Alexis de Tocqueville (L’Ancien régime et la Révolution) a Bertrand de Jouvenel

(Du Pouvoir), é longa e rica a tradição de observadores que se voltaram para a

dissecação do fenômeno do aumento do poder estatal. Maistre também participa, até

certo ponto, dessa corrente. Antes dos socialistas, rira bastante com a ficção do sistema

representativo, que equivale, na prática, segundo ele, a abrir mão da soberania efetiva.

Dissolver o poder no terceiro-estado, que, como pretendeu Sieyès, se confunde com a

nação, significa retirar definitivamente das mãos do povo qualquer chance de exercer

alguma influência na política. Não sem ironia, o autor das Considérations surpreende a

si mesmo concordando com o Babeuf que, em 1796, perante o júri que o condenaria à

morte, solta estas palavras: “Je crois le gouvernement actuel usurpateur de l’autorité,

violateur de tous les droits du peuple qu’il a réduit au plus déplorable esclavage” (CF

128). Com a república, o povo trocou de soberano, mas não passou a ser ele mesmo

soberano. Para que todos os franceses viessem a exercer um mandato legislativo, cada

um deles teria de esperar, segundo os cálculos de Maistre, sessenta mil anos, na melhor

das hipóteses. (CF 127) Enorme ganho! O título de cidadão, que, conforme já

mencionamos, tomou o lugar das antigas formulas de cortesia, não muda a realidade

iniludível de que os súditos continuam a sê-lo.

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Mas mesmo admitindo, no plano teórico, a possibilidade de uma democracia perfeita,

ainda assim não teríamos chegado ao melhor dos mundos políticos. Vejamos a definição

maistriana de democracia total: “une association d’hommes sans souveraineté” (SPe II

465). Numa sociedade em que todos têm poder, ninguém tem poder. Numa sociedade

em que a lei emana do povo, simplesmente não há lei, porque cada indivíduo sentir-se-á

livre para violar a norma que estipulou para si mesmo. Segundo Maistre, é necessário

que haja, em benefício da unidade do corpo social, uma distância grande e visível entre

quem governa e quem é governado. Assim, em primeiro lugar, impõe-se a presença de

uma “force coercitive” capaz de sujeitar os desobedientes. Em segundo lugar,

[...] il importe infiniment que les hommes qui gouvernent soient séparés de la masse du

peuple par cette considération personnelle qui résulte de la naissance et des richesses : car si

l’opinion ne met pas une barrière entre elle et l’autorité, si le pouvoir n’est pas hors de sa

portée, si la foule ouvernée peut se croire l’égale du petit nombre qui gouverne, il n’y a plus

de gouvernement : ainsi l’aristocratie est souveraine ou régissante par essence ; et le

principe de la Révolution française heurte de front les lois éternelles de la nature (SPe 355).

Perfeito antidemocrata, todavia, Maistre não é. Concede que determinados povos, em

determinadas épocas, puseram-se à altura de um Estado republicano (SPe 486). Mas tais

episódios são clarões na história, episódios fugazes em que uma coletividade demonstra

aptidão para um sábio e prudente autogoverno. O fato é que, para Maistre, o surgimento

de uma democracia e a ascensão da “canalha” são, com uma ou outra exceção, a mesma

coisa. Como Burke, deplorou a qualidade intelectual das figuras que, com a Revolução,

passaram ao proscênio da sociedade francesa. A era da “carrière ouverte aux talents”

jamais será capaz de igualar, em mérito, os nomes mais eminentes do Grand siècle

francês. Aliás, o tema do declínio da inteligência na era democrática será, depois de

Maistre, um tema bastante comum entre autores “conservadores” mais próximos de nós,

como Simmel e Ortega y Gasset.

Teme ainda Maistre a corrosão da justiça no regime democrático, que enseja a

rivalidade dos mais pobres contra os mais ricos: “Dans une ville où on est mis à

l’amende pour avoir mené um cheval au trot, on peut tuer um homme impunément,

pourvu que l’assassin soit né dans une boutique” (SPe 471). O autor, que pertencia à

classe togada do Reino do Piemonte-Sardenha, chocado com o arbítrio que se instalara

na França, concluiu que uma experiência democrática conduz à impotência dos

tribunais. Não só os ricos seriam prejudicados, mas os estrangeiros também. Um

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governo moldado para atender ao desejo do maior número haveria de esbarrar, pensava,

no orgulho e no egoísmo não de um punhado de nobres, mas no de uma multidão de

indivíduos.

Diante desse quadro, a pergunta fundamental nas Considérations, levantada no capítulo

IV, é a seguinte: vale a pena trocar de governo, demolindo o antigo e conhecido edifício

da monarquia? É razoável a expectativa de que uma revolução, e em particular a de

1789, traga liberdade às pessoas? Claro que não. A célebre afirmação de que a

Revolução é “radicalmente má” (mauvaise radicalement) é, na verdade, uma forma de

dizer que ela é incapaz de qualquer feito duradouro, porque o mal é a negação do ser.

Assim, corretamente interpretada, essa fórmula metafísica transmite uma mensagem das

mais pragmáticas. Maistre insiste no caráter inteiramente negativo e portanto

inteiramente estéril da época revolucionária valendo-se de um oximoro, figura que é

uma das marcas de seu estilo e que maneja com maestria: a Revolução, para ele, é a

“impureza em estado puro” (pure impureté).

Mas a questão de se vale a pena trocar de governo é secundária, em importância, a uma

outra, reveladora do quanto é avessa a simplismos a política maistriana. A Revolução é

filha do erro sobretudo porque se apega ao princípio de que se pode alterar a natureza

da soberania. O verdadeiro problema reside não no tipo de governo ou no arranjo das

instituições, mas na tendência do poder à tirania. Como ensina o Livro de Samuel,

lembrado por Maistre em mais de uma ocasião, é sempre terrível a vida do súdito – não

há que esperar suavidade da relação entre governantes e governados.

Samuel expôs todas as palavras de Iahweh ao povo, que lhe pedia um rei. Ele disse: “Este

será o direito do rei que reinará sobre vós: Ele convocará os vossos filhos e os encarregará

dos seus carros de guerra e de sua cavalaria e os fará correr à frente do seu carro; e os

nomeará chefes de mil e chefes de cinqüenta, e os fará lavrar a terra dele e ceifar a sua

seara, fabricar as suas armas de guerra e as peças de seus carros. Ele tomará as vossas filhas

para perfumistas, cozinheiras e padeiras. Tomará os vossos campos, as vossas vinhas, os

vossos melhores olivais, e os dará aos seus servos. Das vossas sementes e das vossas vinhas

ele cobrará o dízimo, que destinará aos seus eunucos e aos seus servos. Os melhores dentre

vossos servos e vossas servas, e de vossos adolescentes, bem como vossos jumentos, ele os

tomará para o seu serviço. Exigirá o dízimo dos vossos rebanhos e vós mesmos vos

tornareis seus servos. Então, naquele dia, clamareis contra o rei que vós mesmos tiverdes

escolhido, mas Iahweh não vos responderá, naquele dia!” (1 Sa. 8,10-17).

O desafio crucial da política consiste, pois, em descobrir meios para “restringir o poder

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do soberano sem destruí-lo”, numa situação que fique a meio caminho entre os abismos

igualmente indesejáveis da tirania e da anarquia (DP 131). Maistre, amigo de governos

fortes, traçava uma analogia entre a infalibilidade do papa (doutrina que acolheu antes

da própria Igreja, que só o faria em 1870, no Concílio Vaticano I) e a irresistibilidade do

soberano. O filósofo Jean-Yves Pranchère (2001b) observou que há uma série de

impropriedades nessa comparação, e uma delas é que o papa, ao se pronunciar ex

cathedra, fixa definitivamente um dogma, enquanto que o potentado pode voltar atrás

numa decisão. Mas, objeções à parte, o que quero ressaltar é que Maistre, apesar de

atribuir à soberania origem divina – no sentido de que nasce junto com a sociedade,

também produto da vontade de Deus – e defender o princípio da autoridade, não chega

ao ponto de abraçar a idéia de uma soberania descontrolada. “Les souverains ne

commandent efficacement et d’une manière durable que dans le cercle des choses

avouées par l’opinion; et ce cercle, ce n’est pas eux qui le tracent” – essas são as

palavras do vetusto Senador em resposta a um assomo absolutista do Cavaleiro (SP II

376).

Com essa passagem, colocamo-nos diante de outro importante aspecto da filosofia

política de Maistre: o governo de uma nação é assunto importante demais para que fique

nas mãos de não-iniciados que desconhecem sua natureza íntima, seus limites e

possibilidades.

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3. O cultivo do segredo Maistre foi um esoterista da política. Acreditava que a condução dos negócios de uma

nação exigia saberes especializados, além de uma intuição de ordem superior. Partia do

princípio – ou da constatação – de que são poucos os que efetivamente imprimem rumo

a uma sociedade. O povo, ou a massa de indivíduos destituídos de grande riqueza ou

talentos extraordionários, não exerce nenhuma influência significativa sobre os assuntos

públicos mais importantes. Hoje obedecem a este soberano, amanhã a um outro, e a

mudança, por mais atordoante que seja, não dá origem a nenhum movimento amplo e

coordenado de contestação. Já em seus primeiros escritos pós-revolucionários, Maistre

insiste no tema de que somente as elites ou as minorias organizadas possuem espírito de

iniciativa. Somente elas podem conceber e executar planos mais ambiciosos, mudar ou

conservar algo nos planos político, religioso e intelectual.

O exclusivismo com que tratava o mundo do poder e da inteligência levou Maistre a

considerar inaceitáveis quaisquer tentativas de discutir abertamente questões políticas e

doutrinárias. O debate livre, no qual todos podem falar sobre tudo, certamente não

constituía, para ele, o mais saudável dos hábitos. Envoltas no manto do segredo, as

discussões que determinam o curso da história se livram de olhos profanos e mãos

profanadoras. A “transparência” exibe ainda outro sério inconveniente: ela corrói a

obediência e destrói o respeito. O homem não se submete aos valores plantados à

sombra da dúvida. Se posso colocar em questão a solidez de um princípio, de um

dogma, de um símbolo – eles perdem, ato contínuo, sua força moral. Tais princípios,

dogmas ou símbolos podem ser tanto civis como religiosos, esferas, aliás, que se

superpõem, em Maistre. Quando uma delas perde sua credibilidade perante os olhos de

um povo, graças à ação irresponsável de “intelectuais” que romperam seu voto de

silêncio, a outra logo se deixa contagiar. O trono e o altar andam par a par; a derrocada

de um é a miséria do outro. Talvez aí resida a explicação para o olhar consciente que

Maistre dedicava a um só tempo à política e à religião. Repetiria, com aprovação

indubitável, esta máxima de Donoso Cortés, se a tivesse conhecido: “En toda gran

cuestión política va envuelta siempre una gran cuestión teológica”.

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A corrosão da obediência

Data de 1798 o ensaio Réflexions sur le protestantisme dans ses rapports avec la

souveraineté, no qual Maistre quis fazer da Revolução Francesa uma conseqüência de

outro evento que abominou com todas as suas forças: a Reforma. A história recente da

Europa explicar-se-ia pelo combate incessante do espírito de insurreição característico

dos protestantes com as soberanias européias. A transcrição de suas palavras mostra que

não há exagero nessa interpretação: “Le grand ennemi de l’Europe qu’il importe

d’étouffer par tous le moyens qui ne sont pas de crimes, l’ulcère funeste qui s’attache à

toutes les souverainetés et qui les ronge sans relâche, le fils de l’orgueil, le père de

l’anarchie, le dissolvant universel, c’est le protestantisme” (RP 219).

Sua interpretação acerca das conseqüências dessa formidável ruptura na história do

Ocidente não é propriamente original. Pelo menos Condorcet já investira na mesma

linha, em seu Esquisse d’un tableau historique des progrès de l’esprit humain (1793). A

análise que traça da Reforma é muito parecida à que fará Maistre, poucos anos depois.

Com a ressalva de que o juízo final que emitem é totalmente oposto. Condorcet

(1988:197), como bom philosophe, celebra a derrocada da autoridade tradicional da

Igreja, responsável, a seu ver, pelo seqüestro do cristianismo e pela prática despudorada

do “maquiavelismo religioso”. É como se, mergulhados no cinismo, os religiosos

pensassem: “De fato, não acreditamos na religião, nos dogmas e nem na legitimidade do

nosso poder, mas é necessário que o maior número possível de pessoas continue a fazê-

lo” – esse credo aliás se parece bastante com o do Grande Inquisidor, personagem do

famoso livro russo. Consiste, em síntese, em libertar a si mesmo do erro ao mesmo

tempo em que o outro é deliberadamente privado da verdade. Condorcet atribui, pois, à

Reforma um caráter benigno: arrancou o homem dos laços da mentira. Mais que isso:

deu o passo inicial para tornar o indivíduo senhor de sua própria inteligência. Mas não

realizou o trabalho por completo. Condorcet reconhece que o ambiente intelectual nas

comunidades reformadas não permitia uma completa liberdade de pensamento. Ainda

assim, surgia na Europa um cenário menos rígido que, se não beneficiava todos os

homens, ao menos propiciava mais espaço para o exercício das faculdades intelectuais.

O primeiro estímulo fora dado para que os homens, agora de olhos abertos para as

opiniões religiosas preconcebidas, em breve submetessem a exame crítico as imposições

de ordem política.

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E é esse o ponto central da censura que Maistre dirige ao protestantismo. Ele não afirma

que as elites religiosas manipulam a crendice popular a fim de com isso obter a

perpetuação de seu próprio poder. Nosso autor foi um espiritualista sincero, que até fez

comentários de (comedido) apreço por outras religiões diferentes da cristã. Mas lhe

exasperava a idéia de uma vulgarização dos saberes que buscava com afinco desde a

juventude. Estes não estariam ao alcance de todas as inteligências. Abri-los seria matá-

los. Textos sagrados entregues nas mãos dos crentes, que assim poderiam lê-los e

interpretá-los a seu modo – eis aí uma proposta aberrante, que faria do cristianismo um

carnaval de absurdos e caprichos, de contra-sensos e heresias: “Or, si la religion est

fondée sur um livre, si nous devons être jugés sur ce livre et si tous les hommes sont

juges de ce livre, le Dieu des chrétiens est une chimère mille fois plus monstrueuse que

le Jupiter des païens” (RP 227). A revelação da revelação (no seu dizer) é antes de tudo

uma obra do tempo e do concurso ininterrupto de inteligências autorizadas. É obra da

razão coletiva, não da individual. Esta é a aranha que destrói tudo o que lhe cai na teia.

Aquela se assemelha mais ao bicho-da-seda que, com paciência e discrição, produz o

fino material que impressiona por sua beleza e utilidade.

Maistre é sem dúvida um reacionário, no sentido de que muito de seu pensamento surge

da reação a um estado de coisas, histórico ou filosófico, que lhe inspira profunda

aversão. Sua doutrinação política é construída, bloco a bloco, em oposição às idéias que

vê triunfar à sua volta. Do mesmo modo, sua doutrinação religiosa – que não pode ser

separada da política – consiste, em medida considerável, numa resposta meticulosa aos

desafios com que se deparava o cristianismo de então. Desafios que podiam partir tanto

do exterior, isto é, dos movimentos deístas, como do interior do próprio cristianismo,

nomeadamente dos protestantes.

Veja-se, por exemplo, o que diz a respeito das superstições (SP II 520-8). Nadando ao

arrepio de uma corrente histórica que desejava tudo desmistificar, ele tomou partido

pela sobrevivência destas noções preconcebidas em matéria de religião, comuns

sobretudo nas classes populares. A justa medida pode ser perigosa quando se trata de

questões relativas ao plano espiritual: melhor é cultivar o exagero, o excesso, o

irrazoável mesmo, de modo a preservar o principal, que é a firme adesão à tradição,

mesmo que por meios nada positivos. Maistre não arroga para si o papel de libertador

de consciências. Sua posição decorre de uma certa humildade perante as coisas: quem

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pode saber ao certo a verdade sobre o mundo? Por que condenar aquilo que repugna à

razão dos intelectuais mas captura a intuição das pessoas simples? A superstição nos

mantém prudentemente afastados das fronteiras que separam a ortodoxia da heteredoxia

ou da mera descrença. Ademais, provavelmente encerra verdades que, mesmo

distorcidas, continuam a ser verdades. Sua função é pois benéfica: assegura a obediência

e protege, envolto em camadas de fantasia, um núcleo de verdade que, doutra forma,

estaria exposto à ação corrosiva da razão particular. O indivíduo supersticioso é

superior ao lógico, porque se encontra mais aberto para acolher as verdades não-

demonstráveis, ainda que não as compreenda perfeitamente. É claro que Maistre não

parou por aí; vimos no capítulo anterior a atenção que dedicou à iluminação da letra

pelo espírito. Mas uma interpretação possível de seus textos aponta para esta direção:

nem todos possuem as aptidões necessárias, de espírito e de intelecto, para desventrar

dogmas e superstições, recolhendo seus ensinamentos em estado puro. Conclui o autor,

então, que é melhor, nesses casos, acreditar, enquanto não se atinge uma intelecção

profunda dos ensinamentos em jogo.

Seria interessante tentar uma comparação da superstition de Maistre com o prejudice de

Burke, apresentado de maneira vigorosa nas Reflections on the Revolution in France

(1790). Apesar de semelhanças evidentes entre as duas noções, é válido lembrar que a

superstição tem valor sobretudo religioso, embora demonstre sua utilidade também no

campo político. Burke, por sua vez, com seu prejudice, pensa em primeiro lugar em

tradições sociais e costumes. Ele não era, como Maistre, um homem voltado sobretudo

para as questões metafísicas. Em Burke, a religião é pensada pelo prisma da política.

Com Maistre, ao contrário, o ponto de partida é sempre a religião – e o de chegada é

sempre a política.

Se a verdade não está ao alcance de todos, se ela pode mesmo degenerar-se quando

discutida por quem não a apreendeu adequadamente, então é preciso que seja mantida

em segredo relativo. É preciso que o acesso a ela custe um pouco de esforço, de modo a

afastar os aventureiros descompromissados. Esse é o argumento que dá base à defesa do

latim como língua oficial da Igreja por Maistre. Quanto ao povo, “s’il n’entend pas les

mots, c’est tant mieux. Le respect y gagne, et l’intelligence n’y perd rien. Celui qui ne

comprend point, comprend mieux que celui qui comprend mal” (DP 128). Graças ao

latim – cuja história se confunde com os momentos mais gloriosos da civilização

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européia – têm os sábios uma língua franca na qual podem dialogar entre si e comunicar

suas descobertas (Copérnico, Keppler, Descartes e Newton escreviam em latim). Os

fiéis, a seu turno, têm uma garantia de que encontrarão, onde quer que estejam, o

mesmo rito, celebrado com as mesmas palavras, provocando a mesma reverência. Por

isso, “sous tous les rapports imaginables, la langue religieuse doit être mise hors du

domaine de l’homme” (id.).

Dogmas políticos

Se a Reforma foi uma heresia religiosa, a Revolução Francesa foi uma heresia civil. Se

a Reforma pôs em cheque a legitimidade dos papas, a Revolução fez o mesmo com a

soberania dos reis. No século XVI, a verdade dos dogmas sofreu forte contestação,

perdendo, só por isso, a força de sua autoridade. No século XVIII, chegou a vez dos

dogmas políticos. O simples fato de que já não inspirassem obediência automática em

todos se mostrou suficiente para dar início à derrocada do edifício absolutista. A

estabilidade social se prende, de acordo com Maistre, à adesão maciça a um certo elenco

de crenças, de valores, de tradições. A “ideologia” teria mais poder que outros

elementos quando se trata de assegurar a continuidade do estado de coisas existente. Sua

defesa da Inquisição, talvez a parte mais odiosa de sua obra, é a ilustração perfeita desse

ponto. Com enorme penetração, Maistre percebeu que aliciar corações e mentes é de

fundamental importância para a manutenção de um regime, qualquer que seja ele. Tal

constatação, para o autor, decorre do senso de realidade; não se tratava de uma vileza

ordinária para o uso de príncipes inescrupulosos. Toda soberania tem a obrigação de se

proteger, o que inclui, naturalmente, os princípios sobre que assenta. Aqueles que os

criticam abertamente “doivent être rangés incontestablement au rang de plus grands

criminels” (LE II). Contra eles, contra os rebelados, a soberania pode lançar mão dos

meios mais violentos: “toute sévérité est innocente, si elle est nécessaire” (RP 226).

Os excessos encontram perdão, se ajudam a evitar um mal maior. Em sua apologia da

perseguição religosa espanhola, Maistre observa que os tribunais voltados para a

proteção dos costumes foram sempre comuns na história, desde a Antigüidade. Sem

eles, a dissolução de qualquer comunidade vem a passos largos. Sem eles, a monstruosa

razão individual toma o lugar do bom senso nacional, e logo a fidelidade que liga

governados a governantes é destruída. No caso da Espanha, “si la nation a conservé ses

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maximes, son unité et cet esprit public qui l'a sauvée, elle le doit uniquement à

l'Inquisition” (LE IV). Toda a Europa teria recolhido os benefícios de uma instituição

que, estivesse ainda ativa, teria evitado um sem-número de mortes. Com um punhado de

processos envolvendo os autores que corromperam a inteligência do século XVIII,

nenhuma revolução teria perturbado a história daquela parte do mundo.

O tema dos intelectuais, uma constante do pensamento “conservador”, também é

examinado por Maistre. São eles, afinal, que, em sua interpretação, investiram contra os

dogmas políticos e religiosos e solaparam as colunas que sustentavam o trono e o altar.

Maistre reconhece que muitos dos philosophes são homens de gênio. Mas acrescenta:

são homens de gênio que abusaram do próprio gênio e, por isso, nunca tiveram nenhum

rasgo de sublimidade. São os mais culpados entre os culpados. Voltaire é a

personificação dessa “prostitution réfléchie d’un génie crée pour célébrer Dieu et la

vertu” (SPe I 238). Mesmo o aspecto físico do autor do Dictionnaire philosophique

parece um reflexo de seu talento maligno:

Voyez ce front abject que la pudeur ne colora jamais, ces deux cratères éteints où semblent

bouillonner encore la luxure et la haine. Cette bouche. – Je dis mal peut-être, mais ce n’est

pas ma faute. – Ce rictus épouvantable courant d’une oreille à l’autre, et ces lèvres pincées

par la cruelle malice comme un ressort prêt à se défendre pour lancer le blasphème ou le

sarcasme (id., id.).

Uma característica que bem define as inteligências que contestam é sua impaciência

com aquilo que não compreendem. O respeito de Maistre pelos dogmas políticos ou

religiosos nasce menos da obtusidade – seria, aliás, totalmente inapropriado acusá-lo

disso – que de um movimento de cautela diante das coisas que se acham há muito

tempo no mundo. Daí a oposição que estabelece entre a “razão” e o “senso comum”.

Aquela exige motivos claros e coerentes para embasar o comportamento humano; este

admite supostos absurdos, desde que façam a vida social funcionar melhor. Lembramos

aqui mais uma vez de Burke, que oferece a seguinte reflexão em sua Letter From the

New to the Old Whigs (1791): “Political problems do not primarily concern truth or

falsehood. They relate to good or evil. What in the result is likely to produce evil is po-

litically false; that which is productive of good, politically true”. Quanto à compreensão

plena desse “verdadeiro” ou “falso”, ela nem sempre é garantida. Podemos sair

desconcertados do confronto com os princípios de um regime ou de uma doutrina. Mas,

como disse Maistre,

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[p]eu importe [...] qu’on puisse opposer à des vérités prouvées certaines subtilités dont le

raisonnement ne sait pas se tirer sur-le-champ; car il n’y a pas de moyen infaillible de

donner dans les erreurs les plus grossières et les plus funestes que de rejeter tel ou tel

dogme, uniquement parce qu’il souffre une objection que nous ne savons pas résoudre (SP

II 241).

Nesse trecho se revela o homem que duvidava de sua própria inteligência quando esta se

achava em oposição à Igreja ou a verdades “inspiradas”. No plano intelectual, Maistre

observava a submissão que exigia de outros homens de letras – ainda que não o fizesse

sem temeridade, como atesta sua freqüentação de meios não raro anticlericais, como o

maçom e o esotérico. Ocupemo-nos agora deste assunto.

Itinerário maçônico

Seria impossível tratar do pensamento político de Maistre, sobretudo pela perspectiva

que elegemos, sem investir alguma atenção no exame de sua trajetória maçônica – uma

tarefa que se tornou um pouco mais simples depois dos estudos pioneiros de autores

como Émile Dermenghem e Jean Rebotton (em quem me baseio para os parágrafos

seguintes). Esses estudiosos se destacaram no campo da crítica maistriana seja pela

interpretação informada que elaboraram dos escritos maçônicos de Maistre, seja pelo

trabalho de resgate e edição de obras escassamente conhecidas ou mesmo inéditas do

saboiano.

Usualmente associada a projetos ateístas ou subversivos – lembre-se, por exemplo, de

Augustin Barruel e sua feroz propaganda antimaçônica –, a maçonaria contou, no século

XVIII, com ramificações de caráter profundamente religioso. Em sua obra Les sources

occultes du romantisme, Auguste Viatte historiou, com abundante documentação, o

intenso e subterrâneo movimento esotérico que capturou, em toda a Europa, o interesse

de numerosas pessoas de elevada inteligência. Esse movimento se desenvolveu

paralelamente ao iluminismo deísta, mas não obteve a mesma publicidade, e nem

mesmo hoje é objeto de muitos esforços investigativos. Ora, além de ser um dos autores

recenseados por Viatte, Maistre encontrou, precisamente na maçonaria, um espaço

privilegiado de busca e de discussão de saberes divinos, misteriosos, esotéricos. Já com

21 anos (em 1774) achamo-lo membro da loja de obediência inglesa Saint-Jean des

Trois Mortiers, em Chambéry, sua cidade natal. Não se sabe com precisão nem quando,

nem por quê ingressou na maçonaria. Há várias hipóteses. Talvez a mais verossímil seja

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a de que procurava um espaço privilegiado para o convívio com a alta sociedade local e

para a troca de idéias. Como indivíduo ambicioso e dominado pela curiosidade

intelectual, Maistre possivelmente enxergou na maçonaria boas oportunidades de

progresso social e enriquecimento pessoal.

Em 1778 rompeu com a Saint-Jean, possivelmente por causa do declínio dessa loja.

Ligou-se então, sempre em Chambéry, e com o nome de Josephus a Floribus, à recém-

fundada La Sincerité, que deu origem ao Rite Écossais Rectifié (Rito Escocês

Retificado, R.E.R.), por sua vez inspirado no rito alemão da Stricte Observance

Templière (Estrita Observância Templária, S.O.T.). É importante mencionar, em se

tratando da R.E.R., o comerciante lionês Jean-Baptiste Willermoz, mentor desse rito.

Segundo Rebotton (1983:23), ele acreditava que a maçonaria “était dépositaire de

connaissances transcendantes transmises d’âge en âge, depuis la Révelation primitive de

Dieu à nos premiers parents, à une élite secrète d’initiés. Retrouver ce message allait

être la grande affaire de sa vie”.

Não cabe entrar aqui nos detalhes do pensamento doutrinário de Willermoz ou de outras

figuras de relevo dos meios esotéricos da época, como Louis-Claude de Saint-Martin ou

Martinès de Pasqually. O objetivo dessa breve introdução aos começos de Maistre na

maçonaria é tão-somente situar o leitor, para que melhor compreenda sua Mémoire au

duc de Brunswick, de 1782. O duque Ferdinand de Brunswick (ou frater a Victoria) se

tornou em 1777 o chefe da maçonaria ligada à S.O.T. Em 1780, a fim de implantar

alguma ordem na S.O.T., fez circular entre seus irmãos maçons um papel em que

propunha estas questões:

1) L’Ordre avait-il pour origine une société ancienne et quelle était cette société?

2) Y avait-il réellement des Supérieurs Inconnus et lesquels?

3) Quelle était la fin véritable de l’Ordre?

4) Cette fin était-elle la restauration de l’Ordre des Templiers?

5) De quelle façon le cérémonial et les rites devaient-ils être organisés pour être aussi

parfaits que possible?

6) L’Ordre devait-il s’occuper de sciences secrètes?

Maistre tomou muito a sério a tarefa de responder a essas questões, e redigiu um

extenso documento que, apesar do empenho do autor, provavelmente não foi lido pelo

duque (Rebotton, 1983:45). Certo é, de todo modo, que suas propostas não obtiveram

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nenhuma ressonância na maçonaria da época. Mas sem dúvida são ilustrativas do papel

que atribuía a essa minoria organizada de que participava. Graças à Mémoire, sabemos

também quais os propósitos que, no seu entender, eram dignos de ocupar a atenção dos

homens de boa vontade.

O segredo, como veremos, é uma das tônicas desse texto. A deliberação ampla e aberta

sequer é cogitada, embora algumas das idéias discutidas afetassem os rumos de todo um

continente. Quanto mais grandioso e necessário um projeto, menos deve estar exposto à

curiosidade alheia, e menor deve ser o número de pessoas envolvidas em sua

consecução. Na terceira palestra das Soirées de Saint-Pétersbourg, o Conde diz ao

Cavaleiro, o mais jovem dos três amigos: “Vosso espírito, bem o sei, parece ainda se

recusar a certos conhecimentos; mas é unicamente porque toda verdade requer

preparação”. Nem todos se acham em condições adequadas para o confronto com certas

realidades. Apresenta-se ainda, mais uma vez, o problema do mal e da corrupção da

natureza humana. Sendo em reduzida quantidade os homens dedicados à prática do bem

e à procura da verdade, é danoso a qualquer empresa que a ela se associe qualquer um,

indiscriminadamente.

[...] le grand but de la maçonerie sera la science de l’homme. Mais comme nous ne saurions

prendre des précautions trop rigoureuses, afin de prévenir par le choix et par l’examen des

personnes l’avillissement de l’initiation maçonique, il est necessaire de donner à nôtre

société des bûts secondaires qui puissent occuper des hommes de différens caractères et

nous mettre à même de les juger (EM 97-8).

Nosso autor propunha que a maçonaria fosse dividida em três graus. Nos dois primeiros,

estariam os irmãos voltados para esses “fins secundários” (mas nem por isso

irrelevantes). Ao terceiro grau só teriam acesso os que revelassem uma profunda

afinidade com essa “ciência do homem”. Nas palavras de Maistre,

[...] l’ordre deviendroit une des institutions les plus utiles à l’humanité, si, toute la

maçonerie étant divisée en trois grades, le Ier avoit pour but les actes de bienfaisance en

général, l’étude de la morale et celle de la politique générale et particulière; le second, la

réunion des sectes chrétiennes et l’instruction des gouvernements; le 3e, la révélation de la

révélation ou les connoissances sublimes dont nous nous occupons (id. 98).

De maneira veemente, Maistre rechaçou, em favor do cristianismo, todos os vínculos da

maçonaria com ritos iniciáticos pagãos. Mais ainda, quis estabelecer funções muito

claras para a organização a que pertencia. A fachada caritativa – que não seria apenas

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fachada, mas a atividade “exterior” principal da maçonaria e de todos os irmãos de nível

inferior – tornaria mais simples a aceitação das lojas da S.O.T. pelas autoridades

constituídas. A reunião das igrejas já se punha alguns degraus acima da caridade. E é

válido ressaltar que durante toda a sua vida Maistre acalentou este sonho. Queria

fortalecer o cristianismo fazendo anglicanos e ortodoxos retornarem ao “tronco

original” de que se teriam desprendido. Acreditava que havia enormes semelhanças

entre ambos e a Igreja Católica, semelhanças que facilitariam esse retorno. “[L’]église

anglicane est plus catholique qu’elle ne pense elle-même” (RP 234). No que concerne à

Igreja Ortodoxa, deixou esta bela passagem nas Soirées, em que afirma ser grego em

matéria de religião:

Je ne plaisante point du tout, je vous l’assure : le symbole des apôtres n’a-t-il pas été écrit

en grec avant de l’être en latin? Les symboles grecs de Nicée et de Constantinople, et celui

de saint Athanase ne contiennent-ils pas ma foi? Et ne devrois-je pas mourir pour en

défendre la vérite? J’espère que je suis de la religion de saint Paul et de saint Luc qui

étoient grecs. Je suis de la religion de saint Ignace, de saint Justin, de saint Athanase, de

saint Grégoire de Nysse, de saint Cyrille, de saint Basile, de saint Grégoire de Nazianze, de

saint Epiphane, de tous les saints en un mot, qui sont sur vos autels et dont vous portez les

noms, et nommément de saint Chrysostôme dont vous avez retenu la liturgie. J’admets tout

ce que ces grands et saints personnages ont admis; je rejette tout ce qu’ils ont rejeté; je

reçois de plus comme évangile tous les conciles œcuméniques convoqués dans la Grèce

d’Asie ou dans la Grèce d’Europe. Je vous demande s’il est possbile d’être plus grec (SP I

255).

A volta das igrejas ao statu quo ante bellum não recebe, até onde pude ler, mais que

algumas menções breves, embora muito significativas. As razões de Maistre para

acreditar em plano tão ambicioso (e mesmo inconcebível, nos dias atuais) talvez fossem

de ordem política e religiosa, simultaneamente. Reunidas, as “seitas cristãs”

multiplicariam suas forças para fazer recuar o avanço do filosofismo irreligioso. E, com

esse gesto de aproximação, reparariam o lamentável erro que foi seu divórcio. Mas essa

é uma região totalmente hipotética.

Hipotética também, porém do maior interesse, é a leitura de Jean-Louis Darcel (2001)

segundo a qual Maistre considerava a si mesmo, antes de tudo, um conselheiro de

príncipes, que falava para os gabinetes, não para assembléias ou ajuntamentos:

[...] his works were not intended for publication, but [...] their first destination was to

enlighten the sovereign, to weigh on his choices or those of his entourage. We are in the

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presence of warnings or pleas produced by an expert in political science and a mystical

Freemason who is unveiling his secrets to his privileged reader, in principle all-powerful

(Darcel, 2001:121).

As Considérations sur la France, apenas para dar um exemplo, teriam como contexto

imediato a divisão do meio maçônico: de um lado, o Grande Oriente, favorável à

doutrina revolucionária; e, do outro, o R.E.R., com suas inclinações esotéricas. O

manuscrito das Considérations trazia uma dedicatória a Niklaus-Friedrich von Steiger,

opositor inflexível da Revolução e importante magistrado de Berna, onde Maistre então

se encontrava exilado. Segundo Darcel, Maistre talvez tivesse elaborado a obra tendo

von Steiger em mente – seria uma forma de dar prosseguimento às conversações que

mantinham desde 1793. Instado por outras pessoas a publicar o manuscrito, Maistre

teria retirado a dedicatória.

Seja dito, contudo, que alguns de seus escritos eram destinados a um público amplo.

Talvez o melhor exemplo disso sejam as Lettres d’un royaliste savoisien à ses

compatriotes. Como explica Richard Lebrun (1988:122), foram escritas

between April and July 1793; the first appeared in mid-May, the second and third in June

and July, and the last on 20 August. His ostensible and immediate purpose, as revealed in

the Lettres themselves and in his efforts to ensure their distribution in French-occupied

Savoy, was to revive royalist sentiment in the province and to help prepare the way for its

reconquest by the monarchy and its Austrian ally.

Apesar disso, Darcel pensa que as Lettres (cinco, no total), enviadas à corte sardo-

piemontesa, em Turim, por ordem do próprio Maistre, talvez tivessem entre seus

leitores potenciais os maçons do reino. Seja como for, ao fim e ao cabo os esforços de

Maistre para disseminar seu libelo contra-revolucionário fracassaram. Daí para a frente,

seus livros tomarão rumo diferente, tornando-se extremamente densos, voltados menos

para uma compreensão “pragmática” que filosófica e teológica dos acontecimentos que

assaltavam o mundo cuja morte dizia testemunhar.

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4. Natureza humana

Em seu ensaio O conceito do político, Carl Schmitt (1996:61) chamou a atenção para

[...] the remarkable and, for many, certainly disquieting diagnosis that all genuine political

theories presuppose man to be evil, i.e., by no means an unproblematic but a dangerous and

dynamic being. This can be easily documented in the works of every specific political

thinker. Insofar as they reveal themselves as such they all agree on the idea of a problematic

human nature, no matter how distinct they are in rank and prominent in history. It suffices

here to cite Machiavelli, Hobbes, Bossuet, Fichte [...], de Maistre, Donoso Cortés, H. Taine

[...].

Schmitt tinha alguma razão no que diz respeito a Maistre, cuja formação católica levou-

o, com efeito, a pressupor, em suas obras, que a corrupção humana sempre se refletiria

no mundo das instituições políticas. Nas palavras de Rommen (1950:80-1), mais

precisas que as de Schmitt, por demais tendentes à generalização,

[t]he Catholic thinker contends that man’s nature is not evil. His theology tells him that the

original goodness has not been utterly destroyed by the Fall. But it tells him, too, that, as a

consequence of original sin, man is always tempted to perfidy, selfishness, and

uncontrolled passions which help dissolve the human community.

Persuadir o mundo de que, embora essencialmente bons, trazemos todos o estigma de

um pecado primitivo, sem que dele possamos nos livrar por um simples ato de negação,

foi uma preocupação constante para Maistre. Isso não apenas porque via como tarefa

natural dedicar-se a um tema de que sempre se ocuparam os homens de religião;

Maistre, lembre-se, não pregava necessariamente para convertidos. Uma de suas

motivações para reafirmar, de modo adaptado à época, a crença na maldade humana

residia decerto nas objeções feitas por muitos a esse dogma fundamental do Ocidente

cristão. Obviamente, não se pode reduzir a discussão, pelo menos não no que diz

respeito a esse tópico, a uma rivalidade binária entre Maistre e o “Iluminismo”. As

concepções acerca da natureza humana podem variar enormemente dependendo do

autor que se tenha em mente, como lembra Isaiah Berlin (2000:276-7):

[...] not every French Encyclopaedist or German rationalist believed that men were by

nature good, and ruined only by the follies or wickedness of priest or rulers, or by crippling

institutions. Some, like Montesquieu and Helvétius, each in his own fashion, believed that

men were born neither good nor bad, but were largely moulded by environment or

education or chance, or all of these, into what they became. Others, like La Mettrie and at

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times Voltaire, believed that men were by nature cruel, aggressive and weak, and had to be

restrained from developing these undesirable dispositions by deliberately imposed

disciplines. [...] Some believed that natural environment – climate, geography, physical and

physiological characteristics of a scarcely alterable kind – exercised a causal influence that

wholly determined human behaviour; others believed in the almost unlimited power of

education and legislation, as weapons that men held in their own hands. [...] Some, like

Voltaire and Condorcet, paid attention to historical development; others, like Helvétius and

Holbach, did not. Some, like d’Alembert and Condorcet, based their hopes upon the

progress and application to human affaits of mathematics and natural sciences; others, like

Mably, Rousseau, Raynal, Morelly were inclined towards primitivism and dreamt about the

restoration of a simple, innocent, pure-hearted society of ‘natural’ men, free from the

deleterious influence of the corrupt life of the great cities and the tyranny of organised

religion [...].

No entanto, a unir todas essas posições, havia certas convicções partilhadas. Uma delas,

sempre segundo Berlin, era a de que, com aplicação e boa vontade, seria possível

encaminhar a humanidade para um futuro mais saudável e harmonioso. É à luz desse

traço comum que devemos estudar a obra de Maistre. Se criticou nominalmente vários

filósofos das Luzes, ele também se bateu com o “espírito” que, a despeito de diferenças

pontuais, os irmanava.

Debates em torno da natureza humana – se boa, se má; se divina, se desligada de

qualquer fundamento transcendente; se histórica ou perfeitamente a-histórica – eram

muito mais comuns no século XVIII do que hoje em dia. Ao abordar esse tema, Maistre

não trilhava pois uma nova seara, mas tentava abrir espaço nos debates ilustrados para a

visão do problema que considerava a mais tradicional e a mais ajustada à realidade das

coisas. Se, na base de qualquer filosofia política, existe uma concepção particular do

homem, então não há, para o pensador social, como furtar-se a um excurso pelo campo

da antropologia filosófica. E, como todos os “serious political thinkers, Maistre has be-

fore his mind a view of the nature of man” (Berlin, 1991:124). Foi justamente ao expor

essa “visão da natureza do homem” que Maistre escreveu algumas das páginas que mais

perplexidade causaram aos leitores, por causa de seu tom pavorosamente sombrio. Mas

antes de abordá-las convém explorar um pouco melhor o lado doutrinário do dogma

católico do pecado original e as objeções que veio a sofrer no século XVIII,

especialmente por parte de Rousseau.

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O pecado original

Essa expressão tem dois sentidos distintos.8 O primeiro deles diz respeito à falta

cometida por Adão, narrada no Gênesis (“A mulher que puseste junto de mim me deu

da árvore, e eu comi!”). O segundo, do qual tratarei neste capitulo, refere-se aos

resultados dessa falta, à degeneração que, desde o erro adâmico, se tornou inseparável

da condição humana.

A aceitação do pecado original, mancha hereditária que a todos os homens alcança pelo

simples fato de serem homens, não se deu de maneira inconteste pelos cristãos dos

tempos antigos. Duríssimo, sem dúvida, é resignar-se a sofrer uma punição por um

crime que não se cometeu. Insurgiram-se contra isso os pensadores religiosos que,

inspirados nas idéias de Pelágio (século IV), defenderam os seguintes pontos:

1º Adão teria morrido de qualquer forma, pecando ou não. Ele somente, e não toda a

humanidade, sofreu dano por seu ato de desobediência.

2º Adão não transmitiu o pecado aos homens, mas a morte.

3º Os homens não participam do pecado original a partir do momento em que nascem,

mas apenas na vida adulta, ao imitarem Adão.

Tais proposições foram rejeitadas com veemência pela Igreja, que, por meio de seus

teológos, respondeu (faço a exposição do modo mais breve possível):

1º São Paulo é claro ao dizer que todos os homens depois de Adão sofreram e sofrem,

quando nada porque morrem, as conseqüências da queda: “Eis por que, como por meio

de um só homem o pecado entrou no mundo e, pelo pecado, a morte, assim a morte

passou a todos os homens, porque todos eles pecaram” (Rm. 5,12).

2º O capítulo aludido fala, com toda evidência, não apenas de morte, mas de pecado

(“De modo que, pela desobediência de um só homem, todos se tornaram pecadores”, lê-

se mais adiante).

3º O pecado original é, assim como a morte, transmitido por geração, não por imitação.

Seria contraditório que o homem já estivesse fadado a morrer antes mesmo de “imitar”

8 Baseio-me amplamente, para esta exposição, em Harent (1911).

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Adão, pecando. Ademais, mesmo os homens que nunca tiveram notícia da história da

queda pecam; como poderiam fazê-lo, nesse caso, por imitação?

O parecer de Santo Agostinho sobre o dogma em questão tem grande valor, quando

nada porque ele foi um dos principais adversários do pelagianismo. Étienne Gilson

(2001:154) resume sua posição:

Transgressão à lei original, o pecado original teve por conseqüência a rebelião do corpo

contra a alma, de onde vêm a concupiscência e a ignorância. A alma foi criada por Deus

para reger seu corpo, mas eis que é, ao contrário, regida por ele. Voltada desde então para a

matéria, ela se farta com o sensível e, como é de si mesma que extrai as sensações e as

imagens, esgota-se com fornecê-las. Como diz Agostinho, ela dá algo da sua substância

para formá-las. Esgotada por essa perda de substância, revestida de uma casca de imagens

sensíveis, a alma não tarda a cessar de se reconhecer; chega ao ponto de não crer em mais

nada, senão na realidade da matéria e a se considerar, ela mesma, um corpo. É isso, não o

corpo, que é o túmulo da alma, e é esse, também, o mal de que cumpre se libertar.

O pecado original já foi comparado a uma “morte da alma”, análoga à morte corpórea

da qual não podemos escapar. Essa morte espiritual consiste numa privação da graça

que, santificando o homem, o faz voltar seus olhos para Deus e viver na obediência dos

princípios divinos. O pecado original, contudo, não destruiu o livre-arbítrio: cada

indivíduo tem o poder de desejar seu “reerguimento”, seu retorno a uma condição

superior, e pode mesmo alcançá-la caso o favoreça a vontade de Deus. Com efeito, se se

reúnem tanto a vontade humana como a divina, se há um encontro do livre-arbítrio com

a graça, então é possível triunfar, ainda que parcialmente, sobre a força do pecado

original. Para voltar a Santo Agostinho, Étienne Gilson diz que um momento-chave do

itinerário espiritual desse pai da Igreja foi

a descoberta do pecado, de sua incapacidade de reerguer-se sem a graça da Redenção e de

seu sucesso em fazê-lo com esse socorro divino. Compreende-se, pois, que ele tenha

insistido, desde o início da sua carreira doutrinal, na necessidade da graça, e com uma força

premente de que não se conhecia mais exemplo desde são Paulo. As controvérsias

antipelagianas, que começaram por volta de 412, apenas estimularam-no a insistir nela com

mais força ainda (id.).

O pecado original deve ser entendido como um estado de constante privação da graça

divina, e não como um ato (que este foi cometido uma única vez, por Adão). De acordo

com a doutrina católica, não somos, cada um de nós, pessoalmente responsáveis pelo

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pecado original; mas, por uma lei da solidariedade, participamos, ainda hoje, da falta

cometida pelo primeiro homem, pelo pai dos homens.

Guardemos essa idéia de um homem que, sem ser o autor do pecado que ensejou a

queda, paga por ele e vive num estado inferior, de degradação, o qual não pode

abandonar com suas próprias forças. Será fundamental para melhor compreendermos a

antropologia maistriana.

O Gênesis reescrito

Publicado em 1755, o Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les

hommes projetou o nome de Jean-Jacques Rousseau no firmamento literário europeu.

Esse livro também marcou época para o pensamento político, na proporção em que

ofereceu uma poderosa interpretação da história humana como sucessão de injustiças

provocadas pelo fato abominável da desigualdade social. Embora não se ocupe de

assuntos religiosos, o Discours tem, segundo a leitura de Jean Starobinski (1969:19), à

qual me filio, uma natureza profundamente religiosa e, de certo modo, exegética:

[...] formulé comme une révélation de l’humain, ce Discours est tout entier un acte

religieux d’une sorte particulière, qui se substitue à l’histoire sainte. Rousseau recompose

une Genèse philosophique où ne manquent ni le jardin d’Éden, ni la faute, ni la confusion

des langues. Version laïcisée, “démythifiée” de l’histoire des origines, mais qui, en

supplantant l’Écriture, la répète dans un autre langage.

O Discours seria, portanto, uma transladação, no plano secular, de um esquema

religioso firmemente ancorado na mentalidade ocidental. Podemos talvez dizer que o

sucesso da ideologia rousseauniana, e mesmo de outras ideologias modernas, se deve ao

seu parentesco profundo com uma filosofia da história já de há muito consolidada em

nossa cultura. Mudam os personagens, muda o cenário e muda a iluminação, mas o

roteiro conserva algo que prontamente reconhecemos, mesmo sem o saber. Há talvez

em todo pensamento revolucionário elementos profundamente tradicionais que,

provocando no espectador um sentimento de déjà-vu, lhe debilitam a resistência e

conquistam sua adesão. Não se deve subestimar o apego dos homens aos valores ou às

instituições que o tempo fez veneráveis. Apenas o ingênuo acredita que pode dispensar

as aparências e proceder a uma demolição completa de tudo à sua volta. Sentimo-nos, a

maior parte de nós, seguros num ambiente de previsibilidade, onde tudo se mantém

mais ou menos constante. Mesmo os reformadores mais radicais precisam cuidar em

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manter ao menos a casca das coisas, enquanto atuam, aí sim agressivamente, na

substância do que encerram.

O jardim edênico, a falta primitiva, a entrada do pecado no mundo – nada disso está

ausente da grande alegoria que é o Discours.

Esse “jardim edênico”, bem se sabe, é o estado de harmonia perfeita do homem com a

natureza. Trata-se de uma criação hipotética destinada a recriar o que existira antes do

surgimento da história, um tempo fora do tempo, do qual não restam indícios

documentais. O método de que se vale Rousseau para conhecer essa época idílica – na

qual os homens eram mais fortes e resistentes, a comida farta e as doenças raras, como

na Cocanha dos medievais – é por assim dizer o imaginativo. Ele mesmo, Rousseau,

que se acreditava pouco afetado pelos males da civilização, inspecionava a própria alma

à procura dos sentimentos que povoariam os homens pré-históricos: “pour peindre la

constitution originelle de l’homme, c’est vers son propre coeur qu’il se tourne” (id.:21).

Mas o homem não permaneceu para sempre nessa santa simplicidade: a própria

natureza, obrigando-o a experimentar situações de escassez e desconforto, mostrou-lhe

as vantagens do trabalho cooperativo. Associando-se, o homem deu o primeiro passo no

caminho de sua perdição. Os benefícios da divisão do trabalho (expressão que

Rousseau, contudo, não emprega) rapidamente se tornam conhecidos desses primitivos

que, isolados num primeiro momento, começam a cooperar uns com os outros,

premidos pela necessidade. Com a divisão, instala-se, pouco a pouco, a desigualdade,

fonte de todos os nossos males. Eis uma descrição da queda em termos puramente

sociais, conforme observa Sertillanges (1948:241), na mesma linha de Starobinski: “la

conception du péché n’est guère différente, chez Rousseau, de ce qu’elle est dans la

théologie chrétienne, sauf que le point de vue proprement surnaturel fait défaut”. Com a

formação das primeiras comunidades, que marcam o abandono de sua condição

autárquica, o homem expulsa a si mesmo do paraíso em que vivia feliz sem o saber.

Adeus ao imediatismo dos sentidos e ao prazer singelo de sua satisfação. As

disparidades naturais de talento, força e habilidade se farão sentir de modo inequívoco.

Os melhores são alçados às posições de poder, aos fracos resta uma subalternidade

humilhante. O indivíduo não constitui mais uma unidade que se basta. Para reparar esse

dano formidável, surgem estes lenitivos que até hoje enfeitiçam o homem: poder,

riquezas, prestígio... A sociedade civil nasce com o estigma indelével da injustiça. Suas

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leis não-escritas determinam, de maneira inapelável, que haverá mestres e escravos,

ricos e pobres, que a velha inocência foi perdida para sempre. Nem mesmo a saúde que

tinha no estado selvagem o homem recobrará (aliás, seria interessante inventariar os

pensadores modernos, incluindo Maistre e Marx, que fazem depender a saúde ou a

moralidade dos indivíduos do tipo de sociedade que integram).

Apesar de seu “otimismo antropológico” (Starobinski), Rousseau também pode afirmar

que o pecado entrou no mundo, mas por meio da desigualdade. Esta é, para ele, a

primeira e a principal fonte de nossos males (id.:10). O homem nasce bom, porém a

sociedade o transforma na criatura egoísta e dissimulada que conhecemos. A filosofia

da história de Rousseau tem, à semelhança do cristianismo, uma idade de ouro seguida

de uma catástrofe e à espera de uma redenção, sob a imagem de uma nova ordem civil,

em moldes menos injustos. A humanidade, com efeito,

pouvait se ressaisir si elle consentait à organiser un État conforme à la nature, et, par

l’éducation, la vie morale et le travail, à créer la civilisation véritable. Cela supposé, on peut

tout attendre de l’avenir, y compris l’avènement d’une sorte de parousie comme celle dont

rêvent les mystiques chrétiens (Sertillanges, 1948:241).

Os modernos, descristianizando-se, rousseaunizando-se, não deixaram para trás o

milenarismo bíblico.

Atente-se, por fim, ao fato de que Rousseau guarda ainda importantes pontos de contato

com os filósofos que, mais ou menos na mesma época, estudaram as faculdades

cognitivas do homem (Locke, Hume, Condillac, Buffon etc.). Descobrir o modo pelo

qual conhecemos se afigurava decisivo para estabelecer, em primeiro lugar, a verdade

sobre a natureza humana, e em segundo, a validade de nossas proposições acerca do

mundo à nossa volta. No entanto, como observa Starobinski, Rousseau introduz, em

relação a esses filósofos, duas inovações dignas de nota. A primeira delas foi a projeção

de um estado de ignorância completa (ou “tábula rasa”, como diria Locke) na história, e

não num homem hipotético. O selvagem de Rousseau se aproxima, de certa forma, das

crianças que ainda não assimilaram os dados dos sentidos; o genebrino teoriza, pois, em

cima da “infância da humanidade”, e não da infância tout court (Starobinski, 1969:22).

Ele confere contornos coletivos a uma hipótese formulada para descrever uma situação

individual. A segunda inovação diz respeito à ênfase que dá à dimensão histórica

quando se trata de compreender o homem. Uma dimensão histórica da qual se faz

ausente qualquer perspectiva providencialista; nada de inteligência diretora ou eterno

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geômetra. Apenas o homem, com a constituição que lhe é própria, ocupa as páginas de

Rousseau. Essa constituição não é a mesma desde sempre. Ela se revela à medida que o

tempo passa, que a história acontece. Como diz Starobinski (id., 23), “[à] travers les

vicissitudes du devenir historique, l’homme actualise ses facultés virtuelles : il n’est pas

d’emblée un animal raisonnable ; il devient raisonnable en cessant d’être animal”.

Tendo aprendido um pouco sobre a natureza humana (e como se projeta na história)

segundo Rousseau, já estamos prontos para abordar a antropologia maistriana e melhor

perceber o contraste imenso entre as idéias do saboiano e as de seus contemporâneos, ou

pelo menos aqueles mais fortemente influenciados por Rousseau.

“L’homme est dégradé et en a le sentiment”

Seria difícil exagerar a centralidade do dogma do pecado original no pensamento

político de Maistre. Essa é a base de seu pessimismo histórico que tanto o afasta dos

doutrinadores progressistas de ontem e de hoje. Quando tratamos, no capítulo II, do

poder humano de criar, tangenciamos o tema; agora podemos abordá-lo diretamente,

estudando algumas das passagens em que Maistre fala daquilo que é próprio do homem,

que nele sempre esteve contido, de maneira imutável, em todos os momentos da

história. Porque, ao contrário de Rousseau, ele não exige da história que revele novos

dados sobre a natureza humana. A história é, sim, a tela em que se projeta a vontade

providencial; o tempo, de acordo com sua bela definição, é o “primeiro-ministro de

Deus no departamento do mundo”. Mas o homem, esse já tem sua constituição dada

desde o começo da história. Sua natureza corruptível não há de sofrer uma regeneração

por quaisquer meios “mundanos”, e em especial políticos. Maistre não atribui

(corretamente) ao homem de hoje a culpa pelo que fez Adão. O problema é que “tout

être qui a la faculté de se propager ne sauroit produire qu’un être semblable à lui” (SP I

130). Um homem doente, de humores viciados, transmite à sua descendência a moléstia

que o acometeu: “Si donc un être est dégradé, sa postérité ne sera plus semblable à l’état

primitif de cet être, mais bien à l’état où il a été ravalé par une cause quelconque”

(id.).Verdadeira para o mundo físico, essa máxima também o é para o mundo moral.

Para Vallin (1993:59), percebe-se aí a influência de Malebranche em Maistre, nessa

aproximação das conseqüências do pecado original com uma doença, uma degradação

física.

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A reforma do homem – uma idéia que Maistre não abraça. Rousseau ainda podia se

considerar como alguém à margem da civilização e, portanto, um pouco menos viciado.

Maistre não alimenta a mesma certeza, nem a respeito de si, nem a respeito de outrem:

“Il n’y a point d’homme juste” (SP II 435).

Se nenhum de nós é justo, tal se dá por causa de uma “dégradation accidentelle qui ne

sauroit être que la suite d’un crime”, a pena por uma infração gravíssima. O homem não

é mau porque Deus o criou assim. É mau porque escolheu submeter-se ao império do

mal. Mas a submissão, apesar de tudo, não foi completa:

Tous sont dégradés, mais l’ignorent ; l’homme seul en a le sentiment, et ce sentiment est

tout à la fois la preuve de sa grandeur et de sa misère, de ses droit sublimes et de son

incroyable dégradation. Dans l’état où il est réduit, il n’a pas même le triste bonheur de

s’ignorer : il faut qu’il se contemple sans cesse, et il ne peut se contempler sans rougir ; sa

grandeur même l’humilie, puisque ses lumières qui l’élèvent jusqu’à l’ange ne servent qu’à

lui montrer dans lui des penchans abominables qui le dégradent jusqu’à la brute (SP I 133).

O homem socrático, olhando para si mesmo, descobria a própria ignorância, e nessa

descoberta identificava o começo da sabedoria. O homem maistriano percorre um

itinerário semelhante, mas, ao final, descobre-se impuro, e essa descoberta é porventura

o primeiro passo na direção da santidade. A antropologia filosófica de Maistre não é,

afinal, de todo sombria... As criaturas inteligentes possuem três faculdades: percepção,

razão e vontade. As duas primeiras, embora combalidas, permanecem íntegras; apenas a

terceira tem por assim dizer o pé quebrado. Situação sofrida aquela em que nos

encontramos: temos consciência da nossa degradação e da nossa sublimidade, mas

carecemos de força para abandonar uma e fazer prevalecer a outra. O homem “ne sait ce

qu’il veut ; il veut ce qu’il ne veut pas ; il ne veut pas ce qu’il veut ; il voudroit vouloir.

Il voit dans lui quelques chose qui n’est pas lui et qui est plus fort que lui”. No

Éclaircissement sur les sacrifices, Maistre vai mais fundo nessa dualidade que, segundo

acredita, faz parte de nossa natureza, dualidade do princípio sensível e do intelectivo . A

fim de provar o caráter universal dessa crença num homem que é dois, recorre aos

autores antigos e mesmo a outras religiões, como a egípcia (EC 388-9). Tudo para

convencer-nos de que somos arena para o confronto de duas alternativas não apenas

diferentes, mas opostas. No entanto, é importante frisar que essas duas forças não

possuem o mesmo valor. Como explica Dermenghem (1946:193),

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Il ne s’agit pas d’un dualisme radical où deux principes, placés sur le même plan, auraient

même degré de realité. Un seul possède à proprement parler l’existence, puisqu’il est

l’expression intégrale de la vie, et que dès lors tout ce qui au monde possède de réalité ou

d’être ne saurait procéder que de lui ; l’autre consiste simplement en une volonté de haine

et de mort, infini négatif, si l’on veut, dans le sens où négatif implique un néant de vie, et

par suite d’existence. Mais il ne saurait par cela même constituer, en dehors des êtres créés,

un principe réel, effectivement réalisé en soi. Il n’existe que par son action dans l’univers et

par la haine éternelle qu’il a vouée à la vie.

A erradicação do mal – supondo que ela seja possível – deve ter início dentro do próprio

homem, com o predomínio de sua parte divina sobre a deteriorada, condenada, mais dia,

menos dia, à destruição. “L’homme est mauvais, horriblement mauvais”, e a sociedade

não é a culpada disso (SP I 135).

Numa coisa Maistre e Rousseau são parecidos: no método “introspectivo” de que se

valem. Nosso autor sabe que o homem é um ser decaído porque essa é uma “verdade de

sentimento e de experiência”. Proclamam-no as civilizações, os séculos, os atos de cada

homem. Não é incomum, quando argumenta, que Maistre faça o leitor sentir-se um

perfeito desatento, caso se ponha em desacordo com ele: “Como? não sentistes jamais

isto de que vos falo?”. Comporta-se, a maior parte do tempo, como um iniciado, como

alguém que detém conhecimentos oriundos da própria experiência e de uma observação

cuidadosa do mundo. Seu tom, por isso, é sentencioso e professoral. Quem não o

compreende sofre de despreparo; tem o rosto voltado para o chão. Afinal, “rien de si

intrinsèquement plausible que la théorie du péché originel” (SP I 136).

O estado que esse pecado engendrou não é agravado pela vida em sociedade ou, como

diria Rousseau, pela civilização. Os selvagens, eles sim, são criaturas brutais, diz

Maistre. Não é à luz do Novo Mundo que examina a Europa. Esforça-se por inverter

essa perspectiva e dar o troco ao selvagem (como se este alguma culpa tivesse pelo uso

que fizeram de sua imagem...). O pensamento dito reacionário é, por vezes, um jogo de

espelhos: reflete, de maneira trocada e não raro caricatural, as fantasias mais caras ao

Iluminismo, como deixa claro o seguinte trecho:

On ne sauroit fixer un instant ses regards sur le sauvage sans lire l’anathème écrit, je ne dis

pas seulement dans son âme, mais jusque sur la forme extérieure de son corps. C’est un

enfant difforme, robuste et féroce, en qui la flamme de l’intelligence ne jette plus qu’une

lueur pâle et intermittente. Une main redoutable appesantie sur ces races dévouées efface en

elles les deux caractères distinctifs de notre grandeur, la prévoyance et la perfectibilité. Le

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sauvage coupe l’arbre pour cueillir le fruit, il dételle le boeuf que les missionaires vienent

de lui confier, et le fait cuire avec le bois de la charrue (SP I 144).

Maistre aceita, pois, o convite de Rousseau e imagina os habitantes do continente

americano como vivendo num estado de natureza pré-histórico. Mas, ao invés de

superiores, esses habitantes demonstram uma defasagem moral absurda em comparação

com o civilizado. Sofreram, ao que tudo indica, uma segunda queda, devido a alguma

prevaricação cuja memória se perdeu nos tempos mais remotos; tiveram um Adão

próprio. O não-selvagem conservou, pelo menos, sua consciência moral: erra, mas sabe

que erra. Peca, mas seu coração sofre por isso. Caiu, mas tenta reerguer-se. O selvagem,

não. O estado de natureza é, na verdade, uma caverna com as entradas obstruídas. A luz

do sol não lhe penetra o interior. Nenhuma chance de que as formas originais sejam

contempladas no lugar das sombras. Assassinos, bêbados e preguiçosos – assim Maistre

vê o selvagem americano, oferecendo sua interpretação pessoal desses homens que,

desde o início da era moderna, intrigaram as melhores inteligências da Europa, de

Montaigne a Rousseau.

Até surpreende que, diante de juízo tão violentamente desfavorável, tenha aprovado os

métodos pacíficos empregados pelos religiosos em trabalho missionário na América

Latina.

De todo modo, não é numa suposta condição pré-social que o homem encontrou ou há

de encontrar a unidade perdida. Somos criaturas condenadas a viver umas com as

outras. Esse fato não pode ser alterado, porque decorre “directement de la nature

humaine”: “L’homme, en sa qualité d’être à la fois moral et corrompu, juste dans son

intelligence, et pervers dans sa volonté, doit nécessairement être gouverné ; autrement il

serait à la fois sociable et insociable, et la société serait à la fois nécessaire et

impossible“ (DP 129 e 130).9 O governo não é visto propriamente como um castigo, e

sim como algo necessário à domesticação dos nossos impulsos menos nobres. Voltamos

à nossa estrutura dialógica: uma parte de nós quer o bem; outra, o mal. A parte que quer

9 Compare-se a passagem citada com esta, de Rommen (1945:76): “Since St. Augustine, it has been common doctrine that, even if Adam had not sinned, there would be state and law, and that in the state of pure nature before the Fall men would have organized themselves in a state. State is therefore independ-ent of grace”. Se as palavras do autor de fato expressam fidedignamente o pensamento político católico, então Maistre estaria em desacordo com o mesmo.

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o bem controla nossa volição; a parte que quer o mal comanda nossos atos.

(Dermenghem, pensando em termos anatômicos, diz que a primeira parte seria

simbolizada pelo nervo simpático, e a segunda, pelo sistema cérebro-espinhal.) Assim,

“[l]’homme étant juste, au moins dans son intention, toutes les fois qu’il ne s’agit pas de

lui-même, c’est ce qui rend la souveraineté et par conséquent la société possibles” (DP

129).

Em síntese, as misérias de nossa condição não existem por causa do governo; este, ao

contrário, é que existe por causa delas, para minorá-las, para impor freios à corrupção

humana. O homem é mau quando age, e quando age com ambição perpetra os crimes

mais horríveis. A política é um meio insuficiente para extirpar o mal de nossas vidas.

Mais que isso: dado o poder que confere ao homem, ela tem o condão de agravá-lo

numa escala inacessível ao indivíduo isolado e inerme.

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5. O problema do mal

O problema do mal é reconhecidamente um dos mais sérios que se apresentam à

inteligência humana, “la question la plus tragique qui se rapporte à l’essence des choses

et à la constitution de l’univers” (Dermenghem, 1946:189). Julgo que não é um exagero

dizer que cada um de nós começa a pensar no mal desde muito cedo, a partir do instante

em que adquirimos alguma consciência do que se passa no mundo. E, se pensamos nele

com tanta insistência, é porque somos, todos nós, em momentos que se alternam, na

maior parte das vezes de maneira incerta e confusa, sujeitos e objetos do mal. Conhecer

as opiniões de um filósofo ou homem de religião acerca do problema do mal é, com

freqüência, o caminho mais curto para desvendar o cerne de sua doutrina ou sistema, a

parte-chave que ilumina todas as demais e lhes confere a devida coerência. Susan

Neiman (2002) chegou mesmo a reescrever a história mais recente da filosofia, de

Leibniz a Freud, partindo da hipótese de que o problema do mal é a força motriz do

pensamento moderno. Mas, embora estude um bom número de autores, ela deixa de

lado Joseph de Maistre, cujo nome sequer é mencionado em seu livro. Sua inclusão, no

entanto, seria a meu ver plenamente justificável. A idéia que orienta a presente

investigação é justamente a de que o melhor e o mais importante da obra de Maistre

consiste num estudo aprofundado do problema do mal. Um estudo que tem como pano

de fundo uma fase histórica revolucionária. Muitos autores se ocuparam do problema do

mal, mas a peculiaridade de Maistre reside no modo engenhoso e fascinante como

relacionou esse problema com a política.

Histórico da questão

O renomado tomista e frade dominicano Antonin Gilbert Sertillanges escreveu uma das

histórias mais completas e abrangentes disponíveis sobre o problema do mal. Tomando

essa obra como ponto de partida, será importante para os nossos propósitos inspecionar,

de maneira resumida, o que se disse a respeito do problema do mal na tradição judaica,

na cristã e entre alguns filósofos modernos e iluministas.

Segundo Étienne Borne (2000:14), “[l]a tradition philosophique distingue entre le ‘mal

physique’ ou douleur et le ‘mal moral’ ou faute, dont il est clair qu’ils appartiennent à la

condition humaine”. Com efeito, essa distinção aparece no pensamento judaico,

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assumindo embora contornos coletivos. Os profetas têm a atenção voltada para as

desgraças e os crimes públicos; crêem que os acontecimentos relativos à sua

comunidade refletem, de modo ampliado, aquilo que sucede na alma dos indivíduos e

no próprio universo (Sertillanges, 1948:153). Surge com grande força no Antigo

Testamento a meditação sobre o tema do rigor de Deus com seus filhos e das punições e

vinganças que, bem como as ofensas, se processam sempre em um plano coletivo; o

indivíduo não é por assim dizer o alvo expiatório de nada, porque não é responsável por

nada; ele é a parte inseparável de um todo que, este sim, é objeto de culpa ou fonte de

virtude.

Para Sertillanges, três são os livros que, com a possível exceção dos Salmos, tocam mais

diretamente no problema do mal, a saber, Eclesiastes, Sabedoria e Jó. Este último, em

especial, constitui um exemplo extraordinário das dúvidas torturantes que, tomado pelo

desespero, o justo castigado lança aos pés de Deus. Trata-se de um “examen de

conscience de Dieu fait par l’homme” (ibid.:163). Com a história de Jó, torna-se mais

patente que nunca a suposta contradição entre um criador infinitamente bom e sábio e

um mundo em que se multiplicam os danos e as dores. Para resolver o enigma, a

história em questão oferece, em primeiro lugar, a resposta de que o mal (ou, mais

precisamente, aquele que o personifica) só atua dentro dos limites que Deus lhe impõe –

“Satan même ne vas que jusqu’au bout de sa chaîne” (ibid.:id.). Em segundo lugar,

temos a reação de Jó a tantos infortúnios: um “heroísmo moral” extremado, um

sacrifício voluntário em nome da vontade divina cujos desígnios não compreendemos,

mas aos quais nos sujeitamos, acreditando em sua finalidade depuradora e benigna. Para

muitos, a tal “paciência de Jó” ainda hoje é a melhor solução diante do problema do

mal. Nessa terapêutica, trata-se a ferida que o sentimento de revolta abriu aplicando-se

nela compressas de resignação embebidas no senso do incompreensível.

A irrupção do cristianismo na história contribuiu decisivamente para a reformulação do

problema do mal. Com ele sobrevém, na interpretação comprometida de Sertillanges

(ibid.:171), “la constatation des faits tels qu’ils sont par rapport à notre humanité telle

qu’elle est”. O cristianismo é uma religião que concilia, como bem observa o

dominicano, os extremos do pessimismo com os do otimismo: vivemos, sim, num vale

de lágrimas, mas não estamos condenados a ele. Contudo, vale frisar que a essência da

mensagem cristã não se confunde, em hipótese nenhuma, com o gnosticismo, doutrina

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que afirma o caráter malévolo da criação, a indignidade da carne e a inimizade do

criador em relação a suas criaturas. Seríamos todos, do ponto de vista gnóstico,

miseráveis encerrados em duas prisões, o corpo e o mundo, brinquedos de que dispõe

um demiurgo malvado, decaído, para satisfazer seus caprichos pervertidos. O

cristianismo, ao contrário, fala de um Deus zeloso, cujas obras são todas adoráveis.

Coube a Santo Agostinho o mérito de ter sido o primeiro a sistematizar, com enorme

sofisticação intelectual, a visão cristã a respeito do mal. Na época, a popularidade de

que desfrutava o maniqueísmo – o próprio Agostinho conta em suas Confissões que

durante algum tempo aderiu a essa heresia – o fez dedicar cuidados especiais à refutação

da crença de que o bem e o mal são dois princípios iguais em força, que se digladiam

pelo controle do universo. Para Santo Agostinho, tudo o que existe, se existe, é bom. O

mal surge com a corrupção que se instala nas coisas e as degrada. Mas “ainda quando

corrompida, a natureza, enquanto natureza, não deixa de ser boa”. A afirmação está no

tratado sobre A natureza do bem, concebido como um opúsculo contra o maniqueísmo.

No homem, “espírito racional”, a corrupção advém de um desregramento da vontade,

pois

“[t]al é o dom concedido por Deus às criaturas mais excelentes, a saber, os espíritos

racionais, que, se o quiserem, podem subtrair-se à corrupção; ou seja, se se conservam em

perfeita obediência ao Senhor seu Deus, permanecem unidos à sua incorruptível beleza; se

todavia não querem conservar-se nessa obediência, sujeitam-se voluntariamente à

corrupção do pecado, e involuntariamente padecerão a corrupção por alguma pena” (S.

Agostinho, 2005:11).

O pecado consiste não “no apetecer uma natureza má, e sim na renúncia de outra,

superior, de sorte que o mal é essa mesma preferência, e não a natureza de que abusa ao

pecar” (id.:49). O pecado é, pois, na visão agostiniana, uma escolha mal feita, de um

bem inferior em detrimento de outro superior. Essa escolha tem conseqüências severas,

e, “se Deus lhes aplica [aos pecadores] a pena devida, não há nenhuma iniqüidade de

sua parte, porque a natureza se torna mais ordenada quando o pecador justamente geme

sob suplício do que quando impunemente se regozija no pecado” (ibid.:13).

Com Santo Agostinho, Santo Tomás de Aquino é o outro grande articulador da visão

cristã sobre o mal. Diz Sertillanges que um de seus grandes méritos foi a introdução,

nessa matéria, do conceito de privação. Ganhou reforço, pois, a tese de que o mal não

existe em si mesmo, e precisa de um suporte para mostrar-se ao mundo. O mal só

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adquire consistência no momento em que começa a parasitar um sujeito bom. Ele não

tem – e aqui Santo Tomás toma emprestado conceitos aristotélicos – uma causa formal

(capaz de, à maneira de Deus, criar uma natureza), apenas uma causa material. Isto é, o

mal não pode surgir do nada, nem progredir sem estar agarrado a alguma coisa. É

impossível conceber, por exemplo, a cegueira em estado puro; ela necessita de um

homem com olhos saudáveis para vir à tona, como privação de uma vista que, até então,

funcionara bem.

Deus, por certo, é o criador do livre-arbítrio de que dotou os homens, mas não é o

responsável direto pelas decisões tomadas por esse mesmo livre-arbítrio. Quando um

ato está privado dos fins que a uma criatura racional convém perseguir, então ele é mau

(ou pecaminoso, se se preferir) em certa medida. A partir desse esquema, a doutrina

tomista concluiu que

“Dieu n’est pas [...] cause du péché non plus que d’aucun mal, bien qu’il soit cause

première de l’action pécheresse en sa positivité, ainsi qu’il est Cause première de tout le

reste. Et la causalité de Dieu fait retour en ce qui concerne la sanction. Car tout péché com-

porte une sanction. C’est une sorte de revanche, de réaction de l’ordre troublé contre celui

qui le trouble. Le Chef de cet ordre est ici le premier auteur de la sanction, bien qu’il agisse

par intermédiaire, et c’est à lui finalement qu’il faut l’attribuer comme à sa Cause première”

(Sertillanges, 1948:201).

Na era moderna, encontraremos filósofos que, embora penetrados de racionalismo,

ainda consideram as grandes questões religiosas – e em especial o problema do mal –

merecedoras da atenção da filosofia. É o caso, por exemplo, de Descartes. Em alguns

momentos de suas Meditações metafísicas, parece que lemos, na verdade, Santo Tomás

de Aquino. Ou Santo Agostinho, quando afirma, por exemplo, na “Meditação quarta”,

que as imperfeções do universo concorrem, por paradoxal que isto seja, para a sua maior

perfeição: “Mais je ne puis pas [...] nier que ce ne soit en quelque façon une plus grande

perfection dans tout l’Univers, de ce que quelques-unes de ses parties ne sont pas

exemptes de défauts, que si elles étaient toutes semblables” (Descartes, 1979:151). Por

outro lado, erro e pecado se divorciam em Descartes: das faltas do raciocínio, ele há de

cuidar; das faltas morais, que outros se ocupem delas:

“[...] il est à remarquer que je ne ne traite nullement [...] du péché, c’est-à-dire de l’erreur

qui se commet dans la poursuite du bien et du mal, mais seulement de celle qui arrive dans

le jugement et le discernement du vrai et du faux ; et que je n’entends point [...] parler des

choses qui appartiennent à la foi, ou à la conduite de la vie, mais seulement de celles qui

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regardent les vérités spéculatives et connues par l’aide de la seule lumière naturelle”

(idem:52).

Para Descartes, o homem que erra o faz porque não soube subordinar sua vontade à

razão. Ele faz da dúvida uma companheira inseparável, se não de todos nós, ao menos

daqueles que desejam conhecimentos inteiramente sólidos. Observo, à margem, o

abismo que separa Descartes e Maistre: este depositava sua confiança em tudo o que

contivesse o mais mínimo indício de verdade. Descartes, ao contrário, rejeitava, como

enganoso e incerto, tudo o que não se lhe afigurasse à prova de dúvidas.

Na senda aberta pelo cartesianismo, Pierre Bayle avançou o quanto pôde.10 Foi um

advogado enfático da impossibilidade, e mesmo da inconveniência, de conciliar “fé” e

“razão”. Do contrário, o problema do mal sempre faria a primeira sucumbir à segunda.

Porque, do ponto de vista da lógica e do bom senso, o maniqueísmo, segundo Bayle, faz

muito mais sentido que a crença cristã na infinita bondade divina. Não sem ironia,

penso, esse autor nos diz que, para proteger os seus princípios doutrinários, o cristão

precisa evitar refletir demasiado sobre a própria religião...

No seu Dictionnaire historique et critique, cuja primeira edição data do fim do século

XVII, Bayle retomou, no artigo “Pauliciens”, o vetusto argumento de que o mundo é

palco do confronto de dois princípios, o bem e o mal, e de que nós, homens, ora nos

voltamos para o primeiro, ora sucumbimos ao segundo. Ao contrário de muitos dos

autores que o antecederam, Bayle desenvolve o seu raciocínio sem se valer de termos

técnicos ou grandes sutilezas. Aí reside, aliás, a tremenda influência desse pensador: na

maneira despretensiosa, porém envolvente, com que tenta persuadir o leitor. Bayle

nunca é aborrecido. Ele tem o condão de fazer a questão mais complicada e distante

virar algo simples e premente ou um tema apropriado para discussão em sociedade.

Sobre a pergunta essencial – “la manière dont le mal s’est introduit sous l’empire d’un

souverain Être infiniment bon, infiniment puissant” –, Bayle diz que todas as respostas

dadas a ela pelos “ortodoxos” são não apenas insatisfatórias, mas totalmente contrárias

às “lumières naturelles” dos homens. De acordo com Neiman (2002:119), o problema

10 A título de curiosidade, recordo que Bayle julgava Maistre inferior, em inteligência, ao irmão Xavier (cf. Dermenghem, 1946:207n).

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do mal consistia, para Bayle, no fato de que não é possível conciliar numa fórmula

coerente as seguintes proposições:

1. O mal existe.

2. Deus é benevolente.

3. Deus é onipotente.

Quanto à primeira proposição, a experiência de todos os dias comprova sua exatidão,

pensava Bayle. As outras duas, porém, não se coadunam. Se Deus é bom, não pode ser

que haja coisas más no mundo; portanto, Deus não é todo-poderoso e disputa o controle

do universo com uma divindade maligna. Por outro lado, se Deus é onipotente, não é

bom, porque não há como conceber que tantas misérias sejam obra de um criador zeloso

de sua criação.

Mas e o livre-arbítrio? Não é ele que, dando liberdade ao homem, permitiu a entrada

dos males de culpa e de pena (maux de coulpe et de peine) no mundo? Diz Bayle que, se

o homem não é responsável o bastante para fazer bom uso desse dom, nunca deveria tê-

lo recebido: “[o]n connoit par la lumiere naturelle qu’il est de l’essence d’un bienfaiteur

de ne point donner des graces dont il sait qu’on abuseroit de telle sorte, qu’elles ne

serviroient qu’à la ruïne de celui à qui il les donneroit” (Bayle, 1730:627). O livre-

arbítrio não é pois uma dádiva, mas um atalho para a danação. Como preservar a

imagem de um Deus amigo dos homens que, no entanto, espalha armadilhas à frente

deles?

O erudito e meticuloso Bayle atraiu, com suas elucubrações sobre o mal, a atenção de

outro homem tão erudito e meticuloso quanto ele: Leibniz. Cristão piedoso, não quis

deixar sem resposta os argumentos alinhavados no Dictionnaire. Escreveu, por isso,

diretamente em francês, uma obra de fôlego, à qual deu o título de Essais de théodicée

sur la bonté de Dieu, la liberté de l’homme et l’origine du mal. A palavra “teodicéia”

foi uma invenção do próprio Leibniz. Ela surgiu da reunião de dois vocábulos gregos,

Deus e justiça. O termo é novo, ao contrário da missão do autor, que, como ele mesmo a

define no prefácio, consiste em elaborar um arrazoado em defesa de Deus. Trata-se,

como observou com perspicácia Jacques Brunschwig (1969:10), de um prometeísmo às

avessas.

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A teodicéia de Leibniz faz de Deus um supermatemático que pode conceber uma

infindade de mundos possíveis, mas termina por eleger apenas um – o melhor de todos

(Voltaire, sabemos, deliciou-se com essa opinião). E mesmo neste existe o mal, seja

físico, seja moral. Como Santo Tomás, Leibniz acreditava que o mal é uma simples

privação, algo que se instala na periferia das coisas criadas e as explora. Em sentido

figurado, há entre o mal e o bem relação semelhante à que associa a sombra à luz. A

dosagem de cada um se dá segundo a sabedoria divina, que traz ao mundo o máximo

possível de perfeição.11 E, de resto, nem devíamos – censura Leibniz – fixar-nos tanto

no que há de errado com o mundo: por que não abrir os olhos para as graças que nos

rodeiam?

“Dans cette vie, beaucoup se plaignent, en général, que la nature humaine soit exposée à

tant de maux, ne songeant pas assez que la plupart de ces maux viennent de la faute des

hommes, qu’en realité nous n’avons pas assez de reconnaissance pour les bienfaits de Dieu

envers nous, et que notre attention se tourne plutôt à nos maux qu’à nos biens” (Leibniz,

1969:434).

O homem que, à maneira de Bayle, se deixa seduzir pela ficção zoroástrica, dá mostra

de pouca sabedoria: não abre os olhos e prefere ceder às explicações que exercem apelo

imediato ao senso comum. Algo, aliás, que não envergonha Bayle nem um pouco, ele

que declara ter aversão pelos jogos mentais muito complicados que só servem, no

fundo, para mascarar realidades óbvias. E mesmo Sertillanges (1948:237), malgrado a

simpatia que demonstra por Leibniz, não se furta ao comentário taxativo: “Leibniz

relève le débat, mais pour le porter dans les nuées d’un rationalisme irréel aux

prétentions paradoxales [...] toute cette métaphysique n’apporte aux hommes aucune

consolation dans leurs maux”. De fato, inexiste em Leibniz, filósofo por demais sereno,

aquele nervosismo necessário a alguém que se ocupa de uma questão das mais

dramáticas. Maistre, em sua teodicéia, é, quanto ao temperamento, o oposto de Leibniz,

pois no autor dos Serões de São Petesburgo a placidez dá lugar a um cristianismo

atormentado; ela não tem lugar numa religião que adora um Deus que se serve de meios

cruentos para restabelecer a ordem e o equilíbrio no mundo. O melhor dos mundos

11 Como não é possível entrar aqui em detalhes no assunto do Deus matemático de Leibniz, remeto o leitor ao artigo de David Blumenfeld (1995), no qual, aliás, estão indicadas algumas das contradições em que o filósofo se enreda com a sua teodicéia.

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contém uma dose extraordinária de brutalidade, com doenças, guerras e cataclismos.

Como disse Stéphane Rials, Maistre é um Leibniz trágico.

Por fim, é de interesse deter-se um pouco no que diz Voltaire acerca do problema do

mal. Como de hábito, esse autor desperta sentimentos ambíguos. Por um lado, é de uma

arrogância sem trégua: tudo o que o homem disse ou pensou, desde o começo dos

tempos, lhe parece ridículo e absurdo. Ninguém escapa ao seu sarcasmo. Sua falta de

sensibilidade diante de mitologias e religiões é enervante. As alegorias mais ricas de

significados transformam-se, aos seus olhos, em narrativas pueris, próprias para os

homens de antigamente, que possuiríam a singular mania de enganarem a si mesmos o

tempo todo. A favor de Voltaire, pode-se dizer que, com a veia satírica que lhe é

própria, é capaz de impor limites à especulação exagerada e ociosa. E, de fato, toda

discussão em torno da origem do mal corre o risco de perder-se no abstruso e no

fantasioso. O ridículo, nesses casos, é um meio eficaz para restaurar a sobriedade dos

contendores. Enquanto a realidade e a filosofia (ou a teologia) não se puserem de

acordo, este alerta de Voltaire (1994:106) permanece de importância indiscutível: “La

question du bien et du mal demeure un chaos indébrouillable pour ceux qui cherchent de

bonne foi ; c’est un jeu d’esprit pour ceux qui disputent : ils sont des forçats qui jouent

avec leurs chaînes”.

Recusando as explicações tradicionais, Voltaire prefere aderir ao ceticismo corrosivo de

Bayle. Entre acreditar que vivemos no “melhor dos mundos” ou que somos obra de uma

divindade cruel, ele se limita a parar no meio do caminho e a constatar as misérias da

vida e as forças insuficientes da razão humana para compreender a fundo tudo o que a

cerca. Seu poema sobre o terremoto de Lisboa de 1755 dá uma formulação lapidar às

suas idéias sobre o mal. É uma composição notável, que conclui pela necessidade de

não desesperar em face do sofrimento. Uma atitude de melancólica resignação,

temperada pela esperança de dias melhores, é a nossa única saída, é tudo o que nos

resta:

Un jour tout sera bien, voilà notre espérance ;

tout est bien aujourd’hui, voilà l’illusion.

Voltaire achou inútil prosseguir nos questionamentos sobre o mal. Mas é claro que

outros, depois dele, aceitaram esse desafio. Motivados, desta vez, não por um terremoto,

mas por uma revolução.

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Uma teodicéia para o homem moderno

Maistre é importante para o nosso tempo porque dedicou todo o poder da sua

privilegiada inteligência à construção de uma justificativa para a existência do mal no

mundo. Essa justificativa ganhou muito de sua força postumamente, no século XX, em

face dos abismos de crueldade e destruição a que o homem chegou – a desilusão com a

idéia de progresso histórico obriga a considerar sob novas luzes o pessimismo

maistriano. Além disso, sua teodicéia tem um forte lado político. Não foi nenhum

grande sofrimento pessoal, nem uma catástrofe natural, o motivo principal que o levou a

refletir sobre a economia moral do mundo – foi uma revolução. Foi, portanto, o caos

político de uma sociedade, que terminou por levar à emergência de um novo mundo.12

Foi uma situação de revolta radical, não apenas contra uma certa ordem social, mas

contra uma certa visão do homem. Daí as impressões contraditórias que a obra de

Maistre nos causa. Podemos dizer que ele era um magistrado severo e patriarcal

agarrado a um punhado de superstições; que era um desesperado envolvido com a

restauração impossível de um mundo em ruínas; que, não tendo compreendido o caráter

do novo pensar que surgia, provou-se um obtuso de estilo brilhante. Mas é só isso?

Parar aí seria uma injustiça que, a esta altura, já não podemos mais cometer. Maistre é

antes o velho tradicionalista que nos obriga a considerar a dimensão trágica das coisas,

o lugar central que ocupa na existência dos homens e das sociedades.

Tudo à nossa volta é angústia e sofrimento. O mundo geme, porque nada está no devido

lugar. A natureza humana vive arqueada sob o peso da tensão que opõe, dentro de cada

um, a corrupção aos impulsos mais nobres. Acende-se, num momento, uma intuição: há

um princípio justo e ordenador que converte a dor em expiação necessária. Mas logo se

esvai essa intuição. É como a chama de uma vela exposta ao vento: treme por um

instante e logo se apaga. Maistre deu a si mesmo a missão de falar em defesa dessa

chama, de protegê-la das numerosas evidências que depõem contra a suposta verdade de

que é o trêmulo reflexo.

12 A Revolução “n’est pas le désordre que quelque coup de main heurex pourrait circonscrire, puis, rédui-re ; elle est l’expression d’un ordre nouveau qui repose sur une cohérence idéologique, qui établit un consensus social de l’ex-Tiers Etat devenu Nation et qui, de ce fait, tend à la permanence” (Darcel, 1989:17).

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Não o confundamos com um ingênuo e devoto providencialista. Ele mesmo tomou

precauções para que isso não ocorresse, deixando claro que não ignorava as desgraças

sem-fim que povoam a história e a trajetória individual de cada um. Maistre faz deste

mundo o palco das disputas que determinam o triunfo da justiça e a derrota do mal. Para

ele, é mais importante a vitória do bem que a felicidade dos bons. Essa vitória, que não

fica, portanto, adiada para algum ponto fora do tempo, é possível graças ao dogma da

reversibilidade, que se apóia nos sofrimentos da inocência para o benefício dos

culpados. É a partir desse alicerce que Maistre ergue o edifício da sua teodicéia. Não há

sofrimento inútil, nem penitência desnecessária; tudo serve ao propósito de uma

contínua expiação. O homem sofre porque é homem; se não sofresse, seria Deus

(Soirées II 438). Mesmo o sofrimento do justo requer uma relativização, pois, a rigor,

não existe homem perfeitamente justo. (id., 436).

Mas é claro que a ira divina se volta sobretudo contra os francamente perversos, os

prometéicos, que acreditam poder trocar a ordem das coisas. Estes têm na política um

meio de ampliar formidavelmente os meios de que dispõem para a prática do mal. A

política, aliada a uma visão escatológica e materialista da história, pode tornar-se fonte

de misérias indizíveis. Vista retrospectivamente, a obra de Maistre parece uma

advertência daquilo a que a humanidade estaria sujeita caso tentasse operar a sua

própria redenção por vias “mundanas”. O peso do castigo se colocaria à altura da falta

cometida. A impotência da razão diante da realidade, a incapacidade humana de fundar

a ordem em que quer viver, nossa falta de preparo para a liberdade... Temas de grande

complexidade e que encontram, em Maistre, um analista dedicado e perspicaz. Os

homens, por serem maus, não têm direito a grandes aspirações. Resta-lhes tão-somente

uma cautelosa progressão por caminhos bem conhecidos, os caminhos da tradição, cujos

limites são os do trono e do altar, isto é, do aceito pelas autoridades temporais e

religiosas. A história é campo de atuação do divino; tentar qualquer interferência nela é

o plano mais perigoso que se possa conceber, pois implica lidar com forças cujo poder

desconhecemos. A inspiração é mesmo diabólica, embora, ao final, a Providência saiba

tudo recolocar nos caminhos que são os seus. Da confusão nasce a ordem, do mal o

bem, das provações a redenção. Momentos há em que os crimes, pela magnitude que

assumem, já não podem ser imputados a simples indivíduos, ainda que sejam eles

tiranos à frente de nações poderosas.

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“Ceux qui ont établi la République, l’ont fait sans le voulour et sans savoir ce qu’ils

faisoient ; ils y ont été conduits par les événemens : un projet antérieur n’aurait pas réussi.

Jamais Robespierre, Collot ou Barère, ne pensèrent à établir le gouvernement

révolutionnaire et le régime de la Terreur. Ils y furent conduits insensiblement par les cir-

constances, et jamais on ne reverra rien de pareil. Ces hommes, excessivement médiocres,

exercèrent sur une nation coupable le plus affreux despotisme dont l’histoire fasse mention,

et sûrement ils etoient les hommes du royaume les plus étonnés de leur puissance” (CF 96).

Perceba-se que o “reacionarismo” de Maistre não provém principalmente de um feroz

orgulho de casta (que ele o tinha, sem dúvida). A bile de um autor não é suficiente para

que seja digno de atenção. Outro é o fator que fez com que algumas de suas obras se

tornassem clássicas. O problema central de sua atividade intelectual não é descobrir

como fazer para girar no sentido contrário a roda da história. Mudam-se os tempos, mas

permanecemos os mesmos – esse é o ponto que defende, essa é a base de sua política. O

homem moderno abandonando o dogma do pecado original, liberou forças que, ao fim e

ao cabo, terminarão por esmagar-nos todos.

Maistre foi um desses autores que desceram à raiz das coisas e que trataram a maior

parte do tempo de assuntos vitais. Uma certa imagem de intolerante e rancoroso torna

fácil a interpretação distorcida de suas palavras. São temíveis as conseqüências dessa

distorção. O exemplo mais visível disso é o ensaio de Isaiah Berlin, “Joseph de Maistre

and the Origins of Fascism”. A tese do famoso professor é a de que já encontramos em

Maistre os fundamentos do totalitarismo fascista. Berlin classifica Maistre como

representante do “irracionalismo”. Aproxima-o, por exemplo, de Georges Sorel, o

teórico das “mitologias políticas”. Diz que o autor das Soirées é infenso ao liberalismo e

à democracia. Muito disso é verdade, mas não basta, a meu ver, para fazer de tiranos

como Hitler e Mussolini epígonos espirituais de Maistre. “Men are not responsible for

the careers of their ideas: still less for the aberrations to which they lead”, afirmou o

próprio Berlin (2000:16) em outra ocasião, a propósito de Vico e Herder. O

“irracionalismo” de Maistre é antes um supra-racionalismo, como já tivemos a

oportunidade de ver. Ademais, não é possível comparar o antiliberalismo maistriano

com os antiliberalismos do fim do século XIX e primeiras décadas do XX. Maistre tinha

como referência a Europa dos reis. Não propôs nada como a criação de um partido de

massas (algo até impossível para sua época) ou a idolatria de líderes humanos. Sua

reação em face dos vários mistérios da vida humana não consistiu numa fuga para a

frente, à maneira dos grandes ditadores modernos. Já se observou que as distopias do

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século passado tencionaram construir, mais que uma sociedade, um homem novo. Ora,

como situar Maistre na origem desse delírio prometéico? Não foi ele precisamente o

inimigo dos inimigos da tradição, daqueles que julgaram possível converter a natureza

humana em algo que jamais se vira na história? A racionalidade macabra dos campos de

extermínio e da rede de prisões do Gulag pode ser um desdobramento das idéias do

homem que se bateu contra a aliança da razão amoral com a política do progresso

indefinido? Zygmunt Bauman (1998) argumentou que a “solução final” estava inscrita

no leque de possibilidades aberto pelo Iluminismo. Segundo o sociólogo, os horrores

contemporâneos não são uma negação das Luzes, mas a manifestação de uma de suas

faces mais hediondas. Não disse Maistre um pouco a mesma coisa, isto é, que a busca

de um horizonte histórico de inexcedível justiça decorre de uma ingenuidade criminosa

diante do feitio da natureza humana e dos limites da ação política? Maistre não teceu

planos para acabar com o sofrimento. Ele afirmou, ao contrário, que devemos aceitá-lo

como parte deste mundo, como importante para nossa elevação, como necessário à

expiação dos males de que somos a um só tempo vítimas e instrumento.

A apoteose do ensaio de Berlin é a comparação de Maistre com o Grande Inquisidor, de

Dostoiévski. Toda a obra maistriana seria um reflexo do sermão desse jesuíta

inequivocamente ateísta que pensou em condenar o próprio Cristo à fogueira. O tema

principal da legenda do Grande Inquisidor é, de acordo com Ellis Sandoz (2000:104), a

liberdade. Dostoiévski descobriu este “importante princípio” da filosofia política: os

homens sofrem porque são criaturas espiritualmente livres (id., 105). Ivan Karamázov

encarna o protótipo do “rebelde metafísico”, que busca no homem a solução dos

problemas humanos. Por meio do Grande Inquisidor, ele repartiu a humanidade em dois

grupos. Um deles, minoritário, seria composto de uma elite onisciente, incumbida de

criar um universo de mentiras para que o segundo grupo – em que entrariam os demais

homens – vivesse à margem de toda angústia, escorados em certezas falsas e com o

estômago satisfeito. Com um argumento que lembra Bayle, o Grande Inquisidor ataca o

cristianismo no que oferece de mais valioso: a capacidade de realizar escolhas morais.

Bayle dizia que não é prova de benevolência dar a uma pessoa uma coisa que usará para

o seu próprio mal. Revela-se de uma perversidade incurável a mãe que deixa a filha

adolescente ir a uma festa na qual certamente será seduzida. Dando à filha uma

liberdade de que não podia usufruir com responsabilidade, concorreu para sua desgraça.

Porque era óbvio que cederia. O Grande Inquisidor, do mesmo modo, censura o Cristo

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por não ter lançado mão dos seus poderes sobrenaturais para impressionar os homens e

fazê-los crer. Deu-lhes dúvida em vez de certeza, e a liberdade de oscilar entre uma e

outra. Somos, porém, fracos demais para resistir aos atrativos do mal. “Man’s greatest

anxiety is to be rid of his freedom”, diz Sandoz, parafraseando o Grande Inquisidor.

Quando Berlin afirma que a legenda como que prefigura as experiências totalitárias, tem

razão. Mas não é possível comparar seu discurso com o pensamento maistriano. O

Grande Inquisidor é fruto da imaginação do tipo de homem que Maistre combateu com

todas as forças: o intelectual materialista que acredita no poder redentor da política para

extirpar o mal do mundo e remoldar nossa natureza, agora privada de sua dimensão

moral. Em Maistre, isso é impossível: o homem está condenado ao sofrimento porque,

antes disso, foi condenado à liberdade. Uma liberdade à qual não pode renunciar, nem

mesmo em favor de uma sociedade cujo governo queira desempenhar o papel de

consciência coletiva, arcando sozinho com o peso dos erros, como na distopia de Ivan

Karamázov.

Sim, Maistre foi um amigo da autoridade e é inútil qualquer tentativa de tentar conciliá-

lo com os princípios da democracia moderna. Foi um homem do Antigo Regime, com

nenhuma simpatia pelo liberalismo. Não devemos julgá-lo pelo que não tentou ser.

Tampouco é o caso de buscar em Maistre lições a respeito de como devemos nos

organizar e resolver os problemas próprios do nosso tempo. Ele não é, nessa

perspectiva, um contemporâneo nosso. Mas o é de outra forma, ao anunciar que política

não é remédio para tudo. Ela está subordinada a valores de outra ordem, que a

transcendem. Foi, por paradoxal que isto pareça, um pensador político que pensou

contra a política. Foi um pensador que, para falar como Pierre Manent, não soube

examinar a natureza sem considerar a graça, e vice-versa. Como Jano, o deus bifronte,

olhou ao mesmo tempo para duas direções opostas, uma conduzindo a Atenas, a outra a

Jerusalém. Inútil e perigoso, para Maistre, separar as duas. Dedicou-se aos problemas do

mundo sem contudo imaginar que são os únicos existentes. O Maistre que no fim do

XVIII e no começo do XIX podia ter alguma atualidade, o Maistre monarquista e

ultramontano – este envelheceu, já não tem nada a nos dizer. Mas o Maistre que, aos

olhos de seus contemporâneos, parecia patologicamente sombrio e pessimista, este

avultou com o passar do tempo, até atingir, no umbral do século XXI, a estatura de um

verdadeiro profeta.

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Documentação suplementar: um capítulo das Considerações

Nota explicativa. – Embora disponível nas principais línguas ocidentais, as

Considerações sobre a França permanecem, até onde sabemos, inéditas em português,

como, aliás, praticamente todas as obras de Joseph de Maistre. O texto a seguir

corresponde ao capítulo terceiro desse livro. Numas poucas páginas, o autor apresenta

as linhas gerais da sua visão de como o princípio sacrificial atua na história, garantindo,

por meio da violência, a compensação do crime e o restabelecimento da ordem do

universo. Trata-se de uma primeira versão, ainda muito abreviada, de sua teodicéia. É

nas Soirées que retomará o assunto, agora de maneira muito mais detida e complexa.

Esse capítulo é também um exemplo de como Maistre recorria à história para desfazer

qualquer esperança em dias melhores para a humanidade. As guerras, como buscou

mostrar, sempre nos acompanharam; por que haveria de ser diferente no futuro? A

princípio, Maistre riscara os parágrafos em que evoca dezenas de guerras e massacres.

Depois, no entanto, mudou de idéia, e decidiu manter a passagem.

A edição original utilizada para a tradução foi a estabelecida por Jean-Louis Darcel,

publicada pela P.U.F. em 1989.

Da destruição violenta da espécie humana

Infelizmente não estava de todo enganado esse rei do Daomé, no interior da África, que

dizia recentemente a um inglês: Deus criou este mundo para a guerra; todos os reinos,

grandes e pequenos, sempre a fizeram, ainda que sobre diferentes princípios.1

A história desgraçadamente prova que, num certo sentido, a guerra é o estado habitual

do gênero humano; isto quer dizer que o sangue humano deve correr sem interrupção

sobre o globo, neste ponto ou em outro, e que a paz, para cada nação, é apenas um breve

descanso.

Podemos citar o fechamento do templo de Janus, sob Augusto, ou um ano (790) do

belicoso reinado de Carlos Magno em que ele não foi à guerra.2 Podemos citar um 1 The History of Dahomey, by Archibald Dalzel, Biblioth. brit., maio de 1796, vol. 2, nº I, p. 87.

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breve interlúdio depois do Tratado de Ryswick, em 1697, e um outro igualmente curto

que se seguiu ao de Carlowitz, em 1699, durante os quais nenhuma guerra houve, não

apenas na Europa mas em todo o mundo conhecido.

Mas tais épocas não passam de instantes. Ademais, quem pode saber o que acontecia no

mundo todo neste ou naquele período?

O século que ora finda começou, para a França, com uma guerra cruel, encerrada apenas

em 1714 pelo Tratado de Rastadt. Em 1719, a França declarou guerra à Espanha; o

Tratado de Paris a concluiu em 1727. A eleição do rei da Polônia reacendeu o conflito

em 1733; a paz sobreveio em 1736. Quatro anos depois, irrompeu a terrível guerra da

sucessão austríaca, que se prolongou até 1748, sem trégua. Oito anos de paz começavam

a cicatrizar as feridas de oito anos de combate quando a ambição da Inglaterra obrigou a

França a pôr-se em armas. A Guerra dos Sete Anos é bem conhecida. Depois de quinze

anos de descanso, a Revolução Americana precipitou novamente a França numa guerra

cujas conseqüências nem mesmo toda a sabedoria humana seria capaz de predizer.

Firma-se a paz em 1782; sete anos depois estoura a Revolução, que continua, tendo

custado, até aqui, talvez três milhões de homens à França.

Assim, a considerar somente a França, temos, em oitenta e seis anos, quarenta de

guerra. Se houve nações mais felizes, outras o foram muito menos.

Mas não basta examinar um ponto no tempo e no espaço. É preciso relancear esta longa

sucessão de massacres que mancha todas as páginas da história. Veremos a guerra

grassar sem interrupção, à maneira de uma febre que não cede, marcada por momentos

de exacerbação assustadora. Rogo ao leitor que acompanhe este painel desde o declínio

da República Romana.

Mário extermina, em uma batalha, duzentos mil cimbros e teutões. Mitrídates ordena a

degola de oitenta mil romanos. Sila desforra-se e mata noventa mil de seus homens em

um combate travado na Beócia, onde ele mesmo perde dez mil. Logo assistimos às

guerras civis e às proscrições. Augusto fecha por um curto período o templo de Jano,

mas o reabre pelos séculos a seguir, ao estabelecer um império eletivo. Alguns bons

2 Histoire de Charlemagne, por M. Gaillard, t. II, livro I, cap. V.

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príncipes deixam respirar o Estado, mas a guerra nunca tem fim, e sob o império do

bom Tito seiscentos mil homens perecem no cerco de Jerusalém. A destruição de

homens operada pelas armas dos romanos é verdadeiramente aterradora.3 O Baixo

Império não apresenta outra coisa que não seja uma série de massacres. A começar por

Constantino, que guerras, que batalhas! Licínio perde vinte mil homens em Cibalis,

trinta e quatro mil em Adrianópolis e cem mil em Crisópolis. As nações do norte

começam a marchar. Francos, godos, hunos, lombardos, alamanos, vândalos e outros

povos, cada um a seu turno, atacam o Império e o dilaceram. Átila passa a Europa à

espada e a reduz a cinzas. Os franceses matam-lhe duzentos mil homens perto de

Châlons, e os godos, no ano seguinte, infligem-lhe baixas ainda mais consideráveis. Em

menos de um século, Roma por três vezes sofre invasão e pilhagem e, numa revolta que

se alevanta em Constantinopla, são degoladas quarenta mil pessoas. Os godos

conquistam Milão e matam trezentos mil habitantes. Totila comanda o massacre de

todos os habitantes de Tivoli e outros noventa mil homens durante o saque de Roma.

Surge Maomé; o gládio e o Alcorão percorrem dois terços do globo. Os sarracenos se

espraiaram do Eufrates ao Guadalquivir. Eles destruíram de cima a baixo a vasta cidade

de Siracusa, perdendo trinta mil homens nas cercanias de Constantinopla, na mesma

batalha naval, e Pelágio tirou a vida de vinte mil deles num combate terrestre. Essas

perdas não queriam dizer nada para os sarracenos, mas o seu ímpeto esbarrou no gênio

dos francos nos campos de Tours, onde o filho do primeiro Pepino, no meio de trezentos

mil cadáveres, uniu ao seu nome o epíteto terrível que ainda o distingue. O islamismo,

levado à Espanha, encontrou nesse país um rival indomável. Nunca talvez se vira tanta

glória, grandeza e carnificina. O confronto dos cristãos com os muçulmanos, na

Espanha, é um combate de oitocentos anos. Várias expedições, e mesmo várias batalhas,

chegam a custar vinta, trinta, quarenta e até noventa mil vidas.

Carlos Magno sobe ao trono, e combate durante meio século. Ano após ano, ele decreta

para que lugar da Europa expedirá a morte. Presente por toda parte e por toda parte

vitorioso, esse rei esmaga nações de ferro como César esmagava os homens efeminados

do continente asiático. Os normandos dão início a essa longa série de devastação e

crueldade que ainda hoje nos faz tremer. O imenso legado de Carlos Magno se

3 Montesquieu, Esprit des lois, livro XXIII, cap. XIX.

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estilhaça: a ambição o cobre de sangue, e o nome dos francos desaparece na batalha de

Fontenay. A Itália inteira é saqueada pelos sarracenos, enquanto normandos,

dinamarqueses e húngaros arrasam a França, a Holanda, a Alemanha e a Grécia. As

nações bárbaras se estabelecem, afinal, e se domesticam. Nessa veia não corre mais

sangue, e uma outra se abre no mesmo instante, com as cruzadas. A Europa em peso se

precipita sobre a Ásia. As vítimas passam a ser contadas às dezenas de milhares. Gengis

Khan e seus filhos subjugam e assolam o globo, da China à Boêmia. Os franceses, que

haviam cruzado contra os muçulmanos, agora o fazem contra os heréticos: é a guerra

cruel dos albigenses. Batalha de Bouvines, em que trinta mil homens perdem a vida.

Cinco anos depois, oitenta mil sarracenos sucumbem no cerco de Damiette. Guelfos e

gibelinos inauguram essa luta que por longo tempo deveria ensagüentar a Itália. A

chama das guerras civis se acende na Inglaterra. Vésperas sicilianas. Nos reinados de

Eduardo e Filipe de Valois, França e Inglaterra se confrontam com violência inaudita, e

abrem uma nova era de matanças. Massacre dos judeus. Batalha de Poitiers. Batalha de

Nicópolis: o vencedor tomba sob os golpes de Tamerlão, que repete Gengis Khan. O

duque de Borgonha assassina o duque de Orléans, e tem início a sanguinolenta

rivalidade das duas famílias. Batalha de Agincourt. Os hussitas levam fogo e sangue a

uma grande parte da Alemanha. Maomé II reina e guerreia por trinta anos. A Inglaterra,

repelida para dentro de suas fronteiras, se dilacera com as próprias mãos. As casas de

Iorque e Lancastre a banham em sangue. A herdeira da Borgonha junta com a casa da

Áustria suas posses, num contrato de casamento em que está escrito que os homens

degolarão uns aos outros durante três séculos, do Báltico ao Mediterrâneo. Descoberta

do Novo Mundo: é a sentença de morte para três milhões de índios. Carlos V e

Francisco I fazem sua aparição no teatro do mundo: cada página da história dos dois é

rubra de sangue humano. Reinado de Suleimão. Batalha de Mohatz. Cerco de Viena.

Cerco de Malta. Etc. Mas é das sombras de um claustro que sai um dos maiores flagelos

do gênero humano: Lutero se apresenta, e depois dele Calvino. Guerra dos camponeses.

Guerra dos Trinta Anos. Guerra civil da França. Massacre dos Países Baixos. Massacre

da Irlanda. Massacre de Cévennes. Jornada de São Bartolomeu. Assassínio de Henri III,

de Henri IV, de Maria Stuart e de Carlos I. Por fim, nos dias presentes, temos a

Revolução Francesa, que corre da mesma fonte.

Não levarei adiante esse hórrido painel: o século atual e o passado são bem conhecidos.

Podemos remontar ao berço das nações, vindo até os nossos dias, ou examinar os povos

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em todas as posições possíveis, da barbárie à mais refinada civilização: sempre

encontraremos a guerra. Por essa causa, que é a principal, e pelas demais que a ela se

juntam, a efusão de sangue humano nunca é suspensa no universo. Ora é copiosa numa

superfície extensa, ora é abundante numa superfície reduzida, de modo que se mantém

mais ou menos constante. Mas de tempos em tempos sobrevêm acontecimentos

extraordinários que a aumentam prodigiosamente, como as guerras púnicas, os

triunviratos, as vitórias de César, a irrupção dos bárbaros, as cruzadas, as guerras de

religião, a sucessão na Espanha, a Revolução Francesa etc. Se tivéssemos tabelas

computando esses massacres, segundo o modelo das tabelas metereológicas, quem sabe

não descobriríamos uma lei, ao cabo de alguns séculos de observação?

Buffon provou cabalmente que uma grande parte dos animais está condenada a morrer

de maneira violenta. Ele poderia, ao que tudo indica, ter estendido ao homem sua

demonstração. Mas temos ainda a possibilidade de endereçar-nos aos fatos.4

Há razões para duvidar, ademais, de que essa destruição violenta seja, de fato, um mal

tão grande quanto se acredita. No mínimo, trata-se de um desses males que entram

numa ordem de coisas em que tudo é violento e contra a natureza, e que produzem

compensações. Em primeiro lugar, uma vez que a alma humana tenha perdido sua força

por causa da preguiça, da incredulidade e dos vícios gangrenosos que sucedem ao

excesso de civilização, só em sangue ela pode temperar-se de novo. Não é fácil explicar

com precisão por que a guerra produz efeitos distintos, segundo circunstâncias distintas.

Mas vemos com bastante clareza que é possível considerar o gênero humano como uma

árvore que uma mão invisível poda o tempo todo, e que amiúde se beneficia dessa

operação. Na verdade, se atingimos o tronco, ou se a poda é exagerada, a árvore pode

morrer: mas quem conhece os limites da árvore humana? O que sabemos é que uma

extrema carnificina não raro vai de par com uma população excessiva, como se viu

4 Consta, por exemplo, do relatório feito pelo cirurgião-chefe dos exércitos de S.M.I., que, dos 250 mil homens empregados pelo imperador José II contra os turcos, de 1º de junho a 1º de maio de 1780, 33.543 haviam sucumbido às doenças, e 80 mil à espada (Gazette nationale et étrangère de 1790, nº 34). Consta-tamos também, por um cálculo aproximativo feito na Alemanha, que, em outubro de 1795, a guerra atual já custara um milhão de homens à França e meio milhão às potências coligadas (excerto de um periódico alemão, no Courrier de Francfort de 28 de outubro de 1795, nº 296).

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sobretudo nas antigas repúblicas gregas e na Espanha sob o domínio árabe.5 Os lugares-

comuns sobre a guerra nada significam. Não é preciso ser muito erudito para saber que

quanto mais homens são mortos, menor quantidade deles resta no presente; assim como

é verdadeiro que quanto mais galhos são cortados, menos sobram na árvore. Mas são as

conseqüências da operação que devemos considerar. Ora, sempre de acordo com a

mesma comparação, podemos observar que o jardineiro habilidoso dirige o corte

buscando menos o viço da árvore que sua frutificação; são frutos o que ele quer, e não

madeira ou folhas. Ora, os verdadeiros frutos da natureza humana, as artes, as ciências,

as grandes empresas, as elevadas concepções, as virtudes másculas, se devem

principalmente ao estado de beligerância. Sabemos que as nações só alcançam o ponto

máximo de grandeza de que são suscetíveis depois de longas e sanguinolentas guerras.

Assim, o ponto radiante dos gregos foi a época terrível da guerra do Peloponeso. O

século de Augusto sucedeu imediatamente a guerra civil e as proscrições. O gênio

francês foi desbastado pela Liga e lustrado pela Fronda: todos os grandes homens do

século da rainha Ana nasceram em meio a comoções políticas. Em resumo, diríamos

que o sangue é o fertilizante desta planta chamada gênio.

Não sei se quem repete que as artes são amigas da paz realmente sabe do que está

falando. Seria necessário, ao menos, explicar e circunscrever a proposição, pois não

vejo nada menos pacífico que os séculos de Alexandre e Péricles, de Augusto e Leão X,

de Francisco I, de Luís XIV e a rainha Ana.

Seria possível que a efusão de sangue humano não tivesse uma grande causa e grandes

efeitos? Reflitamos sobre o tema: a história e a fábula, as descobertas da fisiologia

moderna e as tradições antigas, se reúnem para oferecer material a tais meditações. Não

há mais vergonha em caminhar às cegas nessa vereda que em tantas outras mais alheias

ao homem.

Trovejemos contra a guerra, e assumamos a missão de inspirar nos Soberanos o horror a

ela. Mas não cedamos aos sonhos de Condorcet, filósofo tão caro à Revolução, que

5 A Espanha, por essa época, contava até quarenta milhões de habitantes; hoje, não passam de dez. “Ou-trora, a Grécia florescia no seio das guerras mais cruéis; o sangue corria aos borbotões, e todo o país esta-va coberto de homens. Parecia, diz Maquiavel, que, em meio aos assassínios, proscrições e guerras civis, nossa República se tornara mais poderosa etc.” Rousseau, Contrat social, liv. III, cap. IX.

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empregou sua vida no propósito de preparar o infortúnio da geração presente, legando

bondosamente aos nossos netos a perfeição. Existe um único meio de conter o flagelo

da guerra, que é comprimir as desordens que conduzem a essa terrível purificação.

Na tragédia grega de Orestes, Helena, uma das personagens da peça, é subtraída pelos

deuses ao justo ressentimento dos gregos e colocada no céu ao lado de seus dois irmãos

para com eles servir de sinal salvífico aos navegantes. A beleza de Helena, diz o autor,

foi apenas um instrumento de que se valeram os deuses para semear a discórdia entre

gregos e troianos, e fazer o sangue correr, a fim de estancar6 sobre a terra a iniqüidade

dos homens, que se tornaram muito numerosos.

Apolo dizia com propriedade: são os homens que juntam as nuvens, para em seguida se

queixar das tempestades. “É a ira dos reis que põe a terra em armas; é a ira dos céus que

põe os reis em armas.”7

Bem percebo que, em meio a todas estas considerações, somos continuamente

assaltados pelo quadro fastidioso dos inocentes que perecem como se culpados fossem.

Mas, sem entrarmos numa questão das mais profundas, podemos ainda considerá-la

unicamente sob o prisma de sua relação com o dogma universal, que remonta às origens

do mundo, da reversibilidade dos sofrimentos da inocência em benefício dos culpados.8

Foi desse dogma, segundo me parece, que os antigos derivaram o costume dos

sacrifícios, que praticaram em todo o universo, e que julgaram úteis não apenas aos

vivos, mas também aos mortos: costume típico, que o hábito fá-nos considerar sem

espanto, mas cuja raiz nem por isso é fácil de tocar.

6 Ώς Άπαντλοϊεν. 7 [NT] Tradução livre destes versos do poeta francês Jean-Baptiste Rousseau (1670-1741): C'est le courroux des rois qui fait armer la terre, C'est le courroux des cieux qui fait armer les rois. 8 Eles sacrificavam, literalmente, pelo repouso das almas; e tais sacrifícios, diz Platão, são de grande eficácia, de acordo com o que afirmam cidades inteiras, e também os poetas, filhos dos deuses, e os pro-fetas, inspirados pelos deuses. Platão, De Republica, liv. II.

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Os devotamentos, muito famosos na antigüidade, procedem do mesmo dogma. Décio

tinha fé em que o sacrifício da sua vida seria aceito pela Divindade, e que ele podia

assim contrapesar todos os males que ameaçavam sua pátria9.

O cristianismo veio consagrar esse dogma, infinitamente natural ao homem, ainda que

se afigure impossível atingi-lo por meio da razão.

Assim, pode ter havido no coração de Luís XVI, bem como no da celeste Elisabeth, um

certo movimento, uma certa aceitação, capazes de salvar a França.

Ouvimos, por vezes, a pergunta: De que servem essas austeridades terríveis praticadas

por certas ordens religiosas e que valem também como devotamentos? Isso equivale a

perguntar de que serve o cristianismo, uma vez que ele repousa inteiramente sobre esse

mesmo dogma, dilatado, da inocência pagando pelo crime.

A autoridade que aprova essas ordens escolhe alguns homens e isola-os do mundo, para

que deste sejam os condutores.

Nada há senão violência no universo; mas somos logrados pela filosofia moderna que

diz que tudo vai bem, quando, na verdade, tudo está conspurcado pelo mal e, num

sentido muito verdadeiro, tudo vai mal, uma vez que nada ocupa seu devido lugar. A

tônica do sistema da nossa criação tendo baixado, todas as outras notas baixaram

proporcionalmente, segundo as regras da harmonia. Todas as criaturas gemem10, e

tendem, com penas e dores, a uma outra ordem de coisas.

Os espectadores das grandes calamidades humanas são inevitavelmente conduzidos a

essas tristes meditações. Mas não deixemos esmorecer o nosso ânimo: não há castigo

que não purifique; não há desordem que o AMOR ETERNO não volte contra o princípio do

mal. É suave, em meio à ruína geral, pressentir os planos da Divindade. Nunca veremos

tudo durante a nossa viagem e amiúde nos enganaremos. Mas em todas as ciências

possíveis, excetuando-se as exatas, não estamos reduzidos a conjecturar? E se nossas

9 Placulum omnis deorum iræ... Omnes minas periculaque ab diis superis inferisque in se unum vertit. Tito Lívio, VIII, 9 e 10. 10 Epístola de São Paulo aos Romanos, VIII, 22 e seguintes.

O sistema da Palingenesia de Charles Bonnet têm alguns pontos de contato com esse texto de São Pau-lo; mas semelhante idéia não o levou a penar em uma degradação anterior. Mesmo assim, ambas se har-monizam muito bem.

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conjecturas são plausíveis, se têm a seu favor a analogia, se se apóiam sobre idéias

universais; se, sobretudo, são consoladoras e fazem de nós pessoas melhores, o que lhes

falta? Se não são verdadeiras, são boas; ou antes, visto que são boas, não são elas

verdadeiras?

Depois de ter considerado a Revolução Francesa de um ponto de vista puramente moral,

voltarei minhas conjecturas para a política, sem olvidar, porém, o objeto principal da

minha obra.

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