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José Carlos Vieira de Andrade
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CONSULTA
Na sequência das dúvidas de constitucionalidade suscitadas a propósito
de algumas normas da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, que aprova o
Orçamento de Estado para 2013 (LOE/2013), o Governo solicita o nosso parecer
sobre as seguintes questões:
1. A alteração das taxas gerais do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas
Singulares, prevista no artigo 186.º da LOE/2013, viola o disposto no artigo
104.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa?
2. A sobretaxa em sede de IRS, prevista no artigo 187.º da LOE/2013, viola o
disposto no artigo 104.º da Constituição ou ofende algum dos princípios
jurídicos constitucionais?
3. A contribuição extraordinária de solidariedade, prevista no artigo 78.º da
LOE/2013, viola regras ou princípios jurídicos da Constituição?
(Foram-nos fornecidos alguns estudos do Governo que estiveram na base
das propostas legislativas)
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PARECER
NOTA INICIAL
Solicita-se a nossa opinião jurídica sobre questões de constitucionalidade
relativas a medidas político-legislativas aprovadas pela Assembleia da
República, cuja conformidade com a Constituição foi posta em causa ou em
dúvida por entidades legitimadas para suscitar a sua fiscalização, em abstracto,
pelo Tribunal Constitucional.
Não se trata aqui, pois, da concordância ou discordância com essas
medidas legislativas, ou de pronúncia sobre a sua bondade política, que se
afere, por modos próprios, no espaço público democrático, num quadro de
liberdade de expressão e de participação – embora muitas vezes se confundam
na discussão as perspectivas e os fundamentos.
É dizer que, tal como o Tribunal Constitucional, teremos o cuidado de
não nos pronunciarmos sobre as “questões políticas” que estão aí envolvidas e
que poderiam turvar a argumentação jurídica e a solução judicial dos
problemas – designadamente, estando em causa “medidas de austeridade”
particularmente duras para a maioria dos cidadãos, sobretudo para os
trabalhadores contribuintes.
O parecer foi pedido com carácter de urgência, de modo que, em virtude
da escassez do tempo, nos limitamos a formular, em termos sintéticos, os
argumentos que julgamos fundamentais para o juízo de conformidade
constitucional das medidas contestadas, sem especiais preocupações de
sustentação dogmática ou de citação exaustiva da doutrina e jurisprudência
relevante.
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I. Considerações sobre o contexto da fiscalização
Antes de se proceder à análise e avaliação jurídico-constitucional das
medidas contestadas importa tecer algumas considerações abreviadas sobre o
enquadramento metodológico da fiscalização suscitada, sublinhando algumas
características específicas do seu objecto.
1. As condicionantes metodológicas da fiscalização abstracta sucessiva
1.1. Teremos em conta à partida, como postulado normativo, que, na
fiscalização jurisdicional de constitucionalidade de normas aprovadas pelos
órgãos legislativos democraticamente eleitos, o que se procura saber é se a
medida tomada contraria a Constituição, e não se estamos perante a “melhor
solução” na concretização do texto constitucional.
Na realidade, do princípio da separação de poderes – enquanto princípio
estruturante da organização democrática e pluralista do poder político, que
informa e baliza a distribuição de competências pelos órgãos de soberania e
impõe limites recíprocos ao exercício das funções estaduais – decorre uma
“preferência do legislador como órgão concretizador da constituição”1.
Por força desse princípio do favor legislatoris – que constitui um
verdadeiro limite funcional da jurisdição constitucional –, não compete ao
Tribunal Constitucional, no exercício dos seus poderes de controlo, verificar se
as medidas legislativas em causa são as que garantem a única ou a “melhor”
forma de realização dos preceitos constitucionais, mas apenas se as decisões do
legislador ofendem, ou não, o disposto nesses preceitos, respeitando o espaço de
livre conformação política que a mesma Constituição garante ao poder legislativo
democraticamente legitimado pela via eleitoral.
1 Expressão de Gomes Canotilho in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed., 2003, pp. 1310-1312.
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1.2. Acrescente-se que o mencionado espaço de livre conformação do poder
legislativo é mais amplo – e, consequentemente, o limite funcional ao controlo de
constitucionalidade mais intenso – quando os preceitos sob avaliação não
correspondem a normas legislativas típicas, gerais e abstractas, mas, sim, a
medidas político-legislativas concretas, designadamente medidas político-
económicas e sociais e político-financeiras e fiscais, como acontece com os preceitos
sub judice de que nos ocupamos.
Com efeito, a Constituição não só confia ao Governo a condução geral
das políticas económicas (artigo 182.º), reservando ao Parlamento aspectos
como a criação de impostos e a aprovação das bases de algumas dessas políticas
(artigo 165.º, n.º 1), como ela própria se limita a enunciar orientações e
princípios gerais em matéria de organização económica, não sendo possível
hoje afirmar que estas normas se reconduzem a “comandos de direcção de
políticas”, e, menos ainda, que caiba ao Tribunal Constitucional fiscalizar a
orientação dessas políticas – razão pela qual a formulação de um juízo
normativo de inconstitucionalidade só é possível segundo critérios de evidência
ou de manifesta desrazoabilidade das medidas legislativas adoptadas, em face dos
princípios jurídicos fundamentais constitucionalmente consagrados.
1.3. Ainda sobre as condicionantes metodológicas da fiscalização importa
lembrar que os preceitos constitucionais relativos aos direitos sociais – que são
em grande medida os que estão aqui em causa – gozam do valor jurídico
comum a todas as normas constitucionais imperativas, de onde resulta um dever de
legislar para tornar exequíveis esses preceitos, e de uma força irradiante que lhes
permite constituírem-se em parâmetro de controlo normativo apto a sustentar um
juízo de inconstitucionalidade nas situações em que o legislador adopte
medidas arbitrárias ou manifestamente desproporcionadas, designadamente na
restrição de direitos e prestações já legalmente consagradas – embora, como
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sempre defendemos, só excepcionalmente se possa deles retirar uma simples
proibição de retrocesso.
1.4. Por último, cumpre ainda assinalar, em consonância com a metódica
que tem sido adoptada pelo Tribunal Constitucional português, que os limites
funcionais do controlo de constitucionalidade são também mais intensos em
sede de fiscalização abstracta, em comparação com a fiscalização concreta, dado que
o Tribunal Constitucional actua aí em defesa de valores constitucionais
paramétricos perante um enunciado normativo, e não como juiz da alegada
violação real e efectiva das normas ou princípios constitucionais numa
determinada situação da vida. O mesmo é dizer que o juízo de avaliação da
conformidade constitucional da norma se encontra naturalmente limitado, no
caso da fiscalização abstracta, a um juízo sobre a potencialidade lesiva da
medida relativamente aos desígnios e princípios da lei fundamental – um juízo
que não tem o amparo da ponderação das circunstâncias do caso.
A declaração de inconstitucionalidade de uma norma com força
obrigatória geral pressupõe, por isso, a convicção sobre a radical discordância
da norma com as regras ou princípios constitucionais.
2. O contexto de excepcionalidade
2.1. Outra referência contextualizadora do juízo sobre a conformidade
das medidas da LOE 2013 com a Constituição reporta-se ao contexto excepcional
em que as mesmas são adoptadas e ao carácter extraordinário que revestem –
trata-se de preceitos que contêm medidas destinadas a vigorar num período de
tempo limitado, em situação de necessidade, não constituindo normas típicas
que pretendam regular em termos duradouros as relações jurídicas sociais que
constituem o seu objecto, nem definir aspectos estruturais ou permanentes das
políticas económicas e sociais.
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O contexto de emergência económico-financeira em que o país se encontra,
que foi já reconhecido pelo Tribunal Constitucional como condicionante especial,
a convocar entre os cânones hermenêuticos da conformidade constitucional das
medidas, em anteriores decisões de apreciação de medidas orçamentais
extraordinárias – referimo-nos aos Acórdãos n.º 399/2010, n.º 396/2011 e n.º
353/2012 –, deve estar igualmente presente, porventura por maioria de razão,
no exercício de verificação da constitucionalidade das actuais medidas, que são
também adoptadas naquele contexto e por causa daquele contexto.
E é assim, por duas ordens de razões: quer porque os elementos formais
que justificam o interesse público de excepcional relevo originador de medidas,
também elas excepcionais, no sentido do assegurar a melhor gestão financeira
dos recursos públicos, ainda se mantêm – referimo-nos à vigência do Programa
de Ajustamento Económico e Financeiro; quer porque substancialmente se
mantêm os pressupostos que conduziram ao pedido de financiamento do
Estado português junto do FMI/BCE/UE, exigindo a adopção de medidas
extraordinárias de correcção do deficit orçamental e de sustentabilidade
financeira do Estado – dado que o Estado português não consegue ainda
financiar-se de forma autónoma nos mercados financeiros, correndo o risco de
default.
É dizer que, tal como o Tribunal Constitucional, teremos de tomar em
conta esse carácter transitório, temporário e precário dos preceitos, e avaliar a
medida em que a situação de emergência em que são produzidos pode justificar
ou permite tolerar soluções excepcionais que constituam desvios a regras
comuns ou restrições especiais a direitos e expectativas legítimas das pessoas.
2.2. Sublinhe-se, contudo, que o estado de emergência económico-financeiro
não se reconduz a um estado de excepção constitucional no qual a Constituição
fique suspensa ou perca a sua efectividade e força vinculativa, mas, sim, a uma
necessidade de adequação do juízo de ponderação adoptado na apreciação das
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medidas, de modo a tomar na devida conta o interesse público de excepcional
relevo que a situação de emergência transporta.
A crise económica e financeira não suspende a Constituição, mas os
problemas de conflitos entre direitos e entre princípios jurídicos colocam-se em
termos diversos nas situações que possam ou devam ser reconhecidas como de
grave emergência, exigindo uma ponderação de valores e de interesses
adequada à realidade social do momento.
II. A alteração das taxas gerais do Imposto sobre o Rendimento das
Pessoas Singulares
Entre as questões suscitadas em um dos pedidos de fiscalização
encontra-se a da conformidade constitucional das novas taxas gerais de IRS,
previstas no artigo 68.º do CIRS, na formulação introduzida pelo artigo 186.º da
LOE/2013, tendo em consideração o disposto no artigo 104.º, n.º 1, da
Constituição. Mais concretamente, questiona-se a conformidade da alteração
daquele preceito da lei fiscal, que reduz de 8 para 5 os escalões de rendimento
tributável, procedendo a uma reformulação, quer dos respectivos quantitativos,
quer das taxas aplicáveis, com o “comando constitucional” que prescreve a
progressividade da tributação do rendimento pessoal.
1. A progressividade da tributação do rendimento constitui uma exigência
típica de um determinado modelo de justiça e de equidade substancial. Trata-se de
alcançar um modelo de justiça baseado na repartição dos encargos públicos em
função da capacidade que cada um tem de pagar (no princípio da capacidade
contributiva), o qual se subordina a duas regras essenciais – a da utilidade
decrescente do rendimento marginal e a da redistribuição da riqueza por via do
imposto.
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É a partir da ideia de utilidade decrescente do rendimento marginal que se
sustenta juridicamente a intervenção do Estado no exercício da função
redistributiva (do resultado económico global) através do imposto, garantindo a
igualdade no sacrifício e o aumento do benefício, visto que, ao tributar de forma
mais intensa os rendimentos mais elevados – aquelas franjas de rendimento que
têm menos utilidade para quem as recebe e que têm maior probabilidade de ter
sido alcançadas em razão de falhas de funcionamento do mercado na
distribuição do rendimento –, o Estado obtém mais receita, que pode afectar à
função redistributiva, alargando por essa via o leque de candidatos positivos à
fruição de prestações integradas nessa função redistributiva e aumentando a
coesão social e a justiça fiscal2.
Todavia, esta concepção quanto aos benefícios da progressividade, como
a história do direito fiscal eloquentemente revela, depende da conjuntura
económica em que se inscreve a tributação.
Por isso, alguns autores sustentam que a progressividade só formalmente
está associada à justiça fiscal, uma vez que a proliferação de esquemas de
planeamento fiscal, em consequência da abertura do mercado de capitais e da
globalização económica, associada à generalização de factos tributários
plurilocalizados e tributados ao abrigo de convenções para eliminação de dupla
tributação internacional, e ainda à inevitável quebra da unidade do imposto sobre o
rendimento das pessoas singulares – que exclui da tributação progressiva boa
parte dos rendimentos de capitais e de mais-valias (sujeitos a taxas liberatórias),
os rendimentos auferidos por residentes no estrangeiro, bem como por
residentes não habituais, residentes em outros Estados-membros da União
Europeia ou no Espaço Económico Europeu (sujeitos a taxas especiais) –,
2 V. Rafael Calvo Ortega, Hay un principio de justicia tributaria?, Cuadernos Civitas, 2012, pp. 63 e ss; Saldanha Sanches, Justiça Fiscal, 2010, pp. 32 ss.
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mostram bem a “crise” que hoje enfrenta a progressividade como critério de
justiça e equidade fiscal3.
“Crise” que acaba também por abranger o entendimento, expressamente
afirmado pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 84/2003, de que “o
princípio da capacidade contributiva exprime e concretiza o princípio da
igualdade fiscal ou tributária na sua vertente de “uniformidade” – o dever de
todos pagarem impostos segundo o mesmo critério – preenchendo a capacidade
contributiva o critério unitário da tributação”.
Com efeito, quando Teixeira Ribeiro erigia a princípio de justiça fiscal a
repartição dos impostos fiscais exclusivamente segundo a capacidade de pagar4,
não tinha como quadro de referência, por não ser essa a situação económica da
altura, um sistema aberto onde a livre circulação de capitais, empresas e
pessoas permitia legitimamente a “fuga” dos rendimentos mais elevados
através de elaboradas manobras de planeamento fiscal.
Argumentos aos quais podemos juntar ainda a “facilidade” com que
actualmente se constituem empresas para a prestação de serviços de fins
múltiplos, um dos mais vulgarizados “esquemas de poupança fiscal”,
utilizados pelos profissionais liberais, que assim conseguem fazer “migrar” a
tributação dos rendimentos que, devendo ser tributados em IRS ao abrigo da
categoria B, acabam em grande medida tributados em sede de IRC, com taxas
muito inferiores – transformando o IRS num imposto que incide sobretudo
sobre rendimentos do trabalho dependente.
De resto, as dúvidas quanto às vantagens actuais da progressividade
encontram expressão escrita na doutrina em diversos ordenamentos jurídicos,
perante a generalizada e reconhecida volatilidade dos rendimentos altos.
3 Na equidade busca-se a justiça do caso concreto - Gabriele Bottino, Equità e Discrezionalità Amministrativa, 2004 – algo que se torna bastante difícil de efectivar no direito fiscal, sobretudo quando estamos no plano da igualdade horizontal do imposto, uma vez que o princípio da legalidade fiscal apenas permite trabalhar com grupos de contribuintes ou classes de rendimentos e não atentar na concreta situação pessoal de cada contribuinte. 4 Cf. Teixeira Ribeiro, «A justiça na tributação», Boletim de Ciências Económicas, vol. XXX, Coimbra, 1987, n.º 6.
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Em Itália, por exemplo, o fiscalista e actualmente juiz conselheiro da
Corte Costituzionale, Franco Gallo alerta precisamente para os efeitos do que
designa como “hemorragias fiscais”, termo que perfilha para denominar as
diversas medidas que os Estados se vêem obrigados a adoptar com o intuito de
não perder (ou até mesmo de reconquistar) alguns contribuintes ou alguns tipos
de rendimentos, em especial os rendimentos de capital, as mais-valias e alguns
rendimentos empresariais5. Fenómenos que ocasionam, muitas vezes, situações
em que a progressividade e as taxas mais elevadas acabem por tributar apenas
factos dotados de menor mobilidade, como o trabalho e os rendimentos
prediais, na tributação do rendimento, ou o consumo6.
Neste contexto, o ajustamento do sistema fiscal segundo parâmetros de
justiça envolve hoje um exercício complexo de análise comparada da
fiscalidade7, de análise económica e até de análise comportamental. São estes
vectores de análise e decisão política que estão subjacentes a propostas mais
modernas como as da adopção de um esquema de flat rate tax (imposto de taxa
fixa), associado a uma diferenciação do montante de dedução na base (em
função de elementos de personalização do imposto), que surgiram nos Estados
Unidos e foram adoptadas em alguns países europeus 8 , embora sempre
associadas às críticas que tipicamente se associam aos sistemas liberais, que
5 Entre nós, as taxas liberatórias e as taxas especiais constituem precisamente a forma de acomodar no nosso sistema fiscal este regime de dual income tax, hoje indispensável à competitividade dos países, e que também se deve entender compatível com o critério da unicidade do imposto estabelecido no artigo 104.º/1 da CRP. 6 Franco Gallo, Las razones del fisco. Ética y justicia en los tributos, Madrid, 2011, p. 141 e ss (em especial, nota 9). 7 Os estudos mais recentes revelam as virtudes da análise comparada da fiscalidade em que às discussões ideológicas tradicionais entre as orientações liberais apoiadas no critério do benefício e as orientações sociais ancoradas no princípio da capacidade contributiva, se sobrepõem novas propostas de análise baseadas na inter-relação entre a globalização dos factores económicos e identidade cultural da sociedade, que deve obrigar a um estudo da eficiência da equidade vertical do sistema ou da redistribuição a partir da progressividade. Trata-se, na expressão dos autores, de um equilíbrio (“trade-off”) entre a equidade e a eficiência, que nos é dado pela relação entre a fronteira da equidade possível e a fronteira da viabilidade, traçada a partir dos custos de eficiência da redistribuição por via do imposto progressivo – v. Avi-Yonah et alii, Global Perspectives on Income Taxation Law, 2011, p. 15. 8 Sobre o tema v., entre nós, Amaral Tomaz, “A redescoberta do imposto proporcional (flat tax)”, Livro em Homenagem a José Guilherme Xavier de Basto, 2006, p. 379 e ss.
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propõem a substituição do princípio da capacidade contributiva pelo critério do
benefício na repartição dos encargos tributários9.
Estas considerações permitem-nos compreender a enorme complexidade
que actualmente rodeia a decisão política na definição de um sistema fiscal,
justo e equitativo, apto a assegurar as finalidades que a Constituição lhe impõe
no n.º 1 do artigo 103.º - satisfazer as necessidades financeiras do Estado e
outras entidades públicas (função financeira) e assegurar uma repartição justa
dos rendimentos e da riqueza (função redistributiva)10.
Complexidade que justifica que a progressividade referida no n.º 1 do
artigo 104.º da Constituição não deva consubstanciar, sobretudo nos tempos
actuais, um comando fixo para o legislador democrático, mas um elemento a ter
obrigatoriamente em conta na conformação do imposto sobre os rendimentos
das pessoas singulares. As constituições limitam-se a “inspirar” o sistema
tributário através do princípio da progressividade e não devem ir mais além,
em detrimento do princípio democrático, que atribui ao poder legislativo a
determinação precisa da progressividade, dentro de uma ampla
discricionariedade11 – como de resto também acontece entre nós quando o
9 V. Franco Gallo, Las razones del fisco…, cit., pp. 143-144 e Sérgio Vasques, O princípio da equivalência como critério de igualdade tributária, 2008, p. 251 e ss. 10 Sobre a complexidade que hoje existe na realização de escolhas para a construção de um sistema fiscal justo, quando se sabe que os custos de acatamento discriminam a favor dos contribuintes mais ricos que facilmente se socorrem do planeamento fiscal para reduzir a sua carga tributária, onerando de forma ainda mais agravada os restantes contribuintes, o que origina sistemas formalmente justos, porque progressivos, mas materialmente injustos porque concentrados sobre a classe média – v. Fernando Araújo, Introdução à Economia, 3.ª ed., p. 529 e ss. 11 A expressão é de Rafael Calvo Ortega, Hay un principio de justicia tributaria…, pp. 65. O Tribunal Constitucional espanhol, chamado já por diversas vezes a apreciar a conformidade constitucional de normas tributárias que aparentemente violariam a progressividade – recorde-se que em Espanha o critério da capacidade contributiva e da progressividade constam do artigo 31.1. da Constituição – afirmou o seguinte: “En efecto (…) los recurrentes parten de una concepción errónea de la progresividad a la que apela el art. 31.1 CE que les lleva a la conclusión de que cualquier solución legal que resulte «menos progresiva» que la establecida en la Ley 18/1991 es contraria a la Constitución, cuando lo cierto es que la progresividad es una regla técnica matemática en la que pueden tener cabida multitud de combinaciones constitucionalmente lícitas (…) como tantas veces hemos dicho, la progresividad que reclama el art. 31.1 CE es del «sistema tributario» en su conjunto, es decir, se trata de «la progresividad global del sistema tributario» - Sentencia 19/2012, publicada no BOE de 12.03.2012.
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artigo 165.º, n.º 1, alínea i), conjugado com o artigo 103.º, nº 2, remete para o
legislador parlamentar a criação do sistema fiscal e a definição dos elementos
essenciais dos impostos.
Em suma, considerações suficientes para atestar o que, bem vistas as
coias, é o que já resulta do próprio texto constitucional – a progressividade do
imposto sobre o rendimento das pessoas singulares constitui uma directriz, que deve
ser cumprida pelo legislador, mas sem prejuízo de este, no quadro da liberdade
de conformação que a sua legitimidade democrática lhe confere e no âmbito da
autonomia que o princípio da separação de poderes lhe assegura, poder
determinar, em concreto, a medida da progressividade.
Assim – e mais uma vez destacando que a função do Tribunal
Constitucional no momento da fiscalização não é a de procurar averiguar se o
legislador adoptou a solução que na sua perspectiva garante a melhor
concretização do preceito constitucional, mas apenas a de verificar se a solução
adoptada, no âmbito da liberdade de actuação que o espaço de legitimação
democrática lhe confere, é, ou não, violadora das regras e dos princípios
constitucionais12 –, não será difícil concluir que a reformulação dos escalões de
rendimento e respectivas taxas de imposto constitui uma decisão legislativa que
não afronta o disposto no artigo 104.º, n.º 1, da Constituição, dado que não
deixa de consagrar escalões de tributação do rendimento, mantendo a
progressividade do imposto, ainda que em menor grau.
2. A manutenção da progressividade do imposto é, pois, um argumento em
si suficiente para afastar a inconstitucionalidade da norma.
Todavia, relativamente à LOE/2013, podemos acrescentar ainda que a
alteração das regras da “taxa adicional de solidariedade”, resultante da nova
12 Recorde-se que o Tribunal Constitucional foi chamado a pronunciar-se sobre a conformidade constitucional das taxas liberatórias e das taxas especiais, questão que deveria ter sido apreciada no Acórdão n.º 57/95, mas sobre qual acabou por não se pronunciar em razão das modificações entretanto sofridas pela redacção das normas, as quais, no entendimento do Tribunal, tornaram improfícua a sua fiscalização na versão que constava do objecto do pedido.
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redacção dada ao artigo 68.º-A do CIRS pelo mesmo artigo 186.º, torna a
tributação do rendimento das pessoas singulares mais progressiva, na medida
em que faz acrescer a taxa marginal máxima em 2,5% e 5% para os rendimentos
que ultrapassem, respectivamente, o valor anual de 80.000€ e de 250.000€.
De facto, a progressividade da tributação do rendimento das pessoas
singulares constitui uma orientação para o legislador e, simultaneamente, um
efeito, cuja concretização prática apenas pode medir-se a partir da análise global
da situação dos contribuintes – seja através da aplicação do índice de Kakwani (a
diferença entre o índice de concentração das quotas, ordenadas de acordo com o
rendimento antes da aplicação do imposto), seja pelo índice de Gini (rendimento
antes do imposto)13 –, e cuja avaliação em termos de justiça fiscal se há-de medir
pelo índice de redistribuição que aquele sistema proporciona14.
É, por isso, lícito concluir que o índice de progressividade e de
redistribuição do IRS, há-de ser avaliado, no que se refere à LOE/2013, tendo
em conta, de forma conjugada, a nova configuração das taxas resultante da
alteração ao artigo 68.º do CIRS, mas também o novo artigo 68.º-A do CIRS, cujo
sentido e alcance é precisamente o de aumentar a intensidade do sacrifício
exigido aos titulares de rendimentos mais elevados.
13 Para uma visão global da avaliação da progressividade do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares v. Onrubia Fernández / Picos Sánchez, Progressividad, Redistribución y Bienestar del IRPF Español en el período 1999-2007, Instituto de Estudios Fiscales, PT n.º 1/2012. 14 Entre os índices de redistribuição mais utilizados conta-se o índice de Reynolds-Smolensky que avalia a diferença entre o índice de Gini do rendimento antes do imposto e o índice de Gini do rendimento líquido resultante da aplicação do imposto - cf. Onrubia Fernández / Picos Sánchez, Progressividad, Redistribución y Bienestar…, cit., pp. 12-13
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III. A sobretaxa prevista no artigo 187.º da LOE/2013
1. A sobretaxa em sede de IRS
1.1. O legislador optou por sujeitar todos os rendimentos tributáveis em
sede de IRS a uma sobretaxa, prevista no artigo 187.º da LOE/2013, no intuito
confessado de garantir uma “igual proporcionalidade” na repartição dos
sacrifícios necessários para equilibrar o Orçamento Geral do Estado na actual
situação de emergência económico-financeira, pretendendo, desse modo, seguir
as orientações dadas pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 353/2012.
1.2. Ao invés da reformulação dos escalões analisada no ponto anterior,
que corresponde a uma opção de política fiscal ordinária, inscrita na LOE/2013,
mas cuja vigência se estende para além deste15, trata-se aqui da adopção de uma
medida extraordinária, com uma vigência limitada ao ano orçamental em causa, e
que se destina a acorrer a necessidades financeiras urgentes.
1.3. De acordo com o disposto no n.º 1 do referido artigo 187.º da
LOE/2013, será aplicada uma sobretaxa de 3,5 % sobre a parte do rendimento
colectável do IRS que resulte do englobamento nos termos do artigo 22.º do
CIRS, acrescido dos rendimentos sujeitos às taxas especiais constantes dos n.ºs
3, 6, 11 e 12 do artigo 72.º do CIRS, auferido pelos sujeitos passivos residentes
em território português, que exceda, por sujeito passivo, o valor anual da
retribuição mínima garantida.
Estamos, assim, apesar da localização do preceito, perante uma verdadeira
sobretaxa – isto é, uma taxa adicional que incide sobre a mesma base tributável
(neste caso a base tributável alarga-se ainda a alguns tipos de rendimento
15 Sobre a admissibilidade de normas extravagantes e/ou «cavaliers budgétaires» nas leis que aprovam o Orçamento do Estado v. acórdão do TC n.º 141/2002.
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sujeitos a taxas especiais: às gratificações, aos rendimentos da categorias A e H
auferidos em actividades de elevado valor acrescentado por residentes não
habituais, a certas mais-valias e a aos rendimentos de capitais auferidos por
entidades sem estabelecimento estável em Portugal e domiciliadas em regimes
fiscais mais favoráveis, vulgo “paraísos fiscais”16) – liquidada autonomamente,
mas segundo as mesmas regras da liquidação do IRS.
A sobretaxa é liquidada, anualmente, pela Autoridade Tributária e
Aduaneira e está complementada, nos casos dos rendimentos das categorias A e
H (artigo 187.º, n.ºs 3 a 7 da LOE/2013), com uma retenção na fonte por conta da
sobretaxa – retenção à taxa de 3,5% sobre o valor da retribuição que exceda o
valor da retribuição mínima mensal garantida.
2. O problema do respeito pelos princípios gerais da tributação do rendimento
das pessoas singulares
Põe-se o problema de saber se a sobretaxa respeita as normas e os
princípios constitucionais da tributação do rendimento das pessoas singulares.
2.1. A primeira dúvida diz respeito à conformidade da medida com o
princípio da progressividade do imposto.
Apesar de estarmos perante uma taxa fixa de 3,5%, a verdade é que a
tributação decorrente da aplicação desta sobretaxa apresenta uma estrutura
progressiva e não proporcional de tributação, que é consequência da dedução na
base do valor anual da retribuição mínima mensal garantida, por sujeito
passivo (quando os contribuintes sejam casados, beneficiam ambos da
dedução).
Quer isto significar que a sobretaxa respeita o princípio da capacidade
contributiva e, nessa medida, isenta de tributação o valor anual da retribuição
16 Cf. artigo 72.º, n.ºs 3,6,11 e 12 na redacção dada pelo artigo 186.º da LOE/2013.
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mínima garantida (6.790 €), que assim equivale à isenção do mínimo de existência,
um limite mínimo para a tributação (artigo 70.º do CIRS).
Como esta dedução na base tributável é a mesma para todos os
rendimentos, a sobretaxa, que é fixa (3,5%), à medida que aumenta o
rendimento, incide sobre montantes cada vez maiores em percentagem desse
rendimento, de modo que o resultado é o de uma estrutura progressiva do
imposto em termos de taxa efectiva17.
Assim, por exemplo, um rendimento anual de 15.000€ vai sofrer,
subtraída a isenção-base, uma taxa efectiva de 2,05%, enquanto um rendimento
anual de 35.00€, após a referida subtração, suportará uma taxa efectiva de 2,88%
e um rendimento de 45.000€ já é tributado a 3,01%.
Isto significa, por conseguinte, que a taxa efectiva suportada pelos
sujeitos passivos é progressiva, embora nunca atinja a alíquota de 3,5%.
2.2. Para além da estrutura progressiva, a sobretaxa respeita também o
princípio da universalidade, adaptando-o, como parece ser adequado, à finalidade
do sacrifício, o que explicará a sua incidência subjectiva – incide
maioritariamente sobre os residentes em território português, por estar em
causa o cumprimento de objectivos financeiros extraordinários em matéria de
défice orçamental do Estado Português, ao qual devem ser chamados a dar o
seu contributo os residentes, categoria que inclui em regra os nacionais e outros
que aqui exercem as suas actividades económicas com carácter de estável.
Apesar desta tendência, é importante destacar que a sobretaxa, dentro
dos limites do princípio da praticabilidade, se estende ainda a alguns rendimentos
auferidos em regra por não nacionais, como é o caso dos residentes não
habituais que exercem actividades de elevado valor acrescentado e que, mesmo
17 Progressividade que é semelhante àquela que existe nos regimes de flat tax com dedução na base, que permitem a escolha, não só da taxa, mas também da ou das deduções, fixas ou variáveis – cf. Robert E. Hall e Alvin Rabushka, os ideólogos da Flat Tax, sublinham as vantagens deste modelo – v. The Flat Tax, Hoover Institution Stanford University (recurso on-line http://www.hoover.org/publications/books/8329).
José Carlos Vieira de Andrade
17
com prejuízo para a atractividade do país, são chamados a participar desta
tributação por razões de igualdade.
2.3. É, aliás, de sublinhar que a sobretaxa em apreço não só respeita como
promove a universalidade e a unidade do imposto, dado que, quanto à sua
incidência objectiva, abrange rendimentos que, em regra, ficam sujeitos a taxas
especiais mais favoráveis (com prejuízo para essa universalidade e unidade) –
referimo-nos, nomeadamente, aos rendimentos de capitais pagos por entidades
localizadas em paraísos fiscais e aos acréscimos patrimoniais não justificados.
E lembre-se ainda que esta medida é acompanhada, em sede de medidas
estruturais (e não apenas extraordinárias, como é o caso da sobretaxa aqui em
análise), de uma elevação dessas taxas especiais de 25% para 28%, que visa
colocar a tributação destes rendimentos em linha com a taxa média do IRS.
2.4. Por sua vez, os princípios da equidade e da justiça fiscal parecem ser
cumpridos pelo legislador, tendo em conta, desde logo, a preocupação em
isentar o mínimo para uma existência condigna da incidência da sobretaxa.
Estes princípios são ainda reforçados com a consagração, no artigo 187.º,
n.º 2, da LOE/2013, da possibilidade de deduzir à colecta um montante
equivalente a 2,5% do valor da retribuição mínima mensal garantida para cada
dependente que não seja sujeito passivo de IRS – uma solução que permite
discriminar positivamente as famílias com dependentes a cargo e assim se
harmoniza também com o princípio constitucional da consideração fiscal da
família18.
3. O respeito por outros princípios jurídicos
A instituição da sobretaxa de IRS pode ainda ser avaliada em função do
respeito por outros princípios jurídicos, designadamente, os princípios gerais 18 De resto, em linha com a técnica tributária da flat tax – cf. a dependents’ allowance da flat tax em Robert E. Hall e Alvin Rabushka, The Flat Tax, p. 170.
José Carlos Vieira de Andrade
18
da proporcionalidade e da proibição do arbítrio, da segurança jurídica e da
protecção da confiança.
Desde logo, verifica-se que a alíquota corresponde a 3,5%, o que
representa exactamente 1/14 de 50%, ou seja, visa reintroduzir para o ano de
2013 uma medida de efeitos semelhantes à sobretaxa extraordinária que foi
adoptada em 2011, sem que fosse suscitada a questão da sua
inconstitucionalidade.
Por outro lado, é também uma medida substitutiva do corte de um dos
subsídios dos trabalhadores em funções públicas, que o Tribunal Constitucional
declarou inconstitucional no Acórdão n.º 353/2012, por violação do princípio
da igual proporcionalidade. Terá sido por essa razão de garantir uma repartição
mais equitativa dos sacrifícios que se procedeu à substituição daquela medida
por uma que estivesse em linha com as orientações do Tribunal no referido
aresto – abrangendo, de forma igual e em igual medida (excepcionado, como
exige o princípio da proporcionalidade, a salvaguarda do mínimo para uma
existência condigna), não só os trabalhadores do sector público como os do
sector privado, e ainda todas as categorias de rendimentos das pessoas
singulares sujeitas a IRS.
Em geral, a sobretaxa apresenta-se como uma medida extraordinária que
visa aumentar a receita fiscal de forma a garantir, no actual contexto de
emergência económico-financeira, o cumprimento das metas em matéria de
equilíbrio orçamental no ano de 2013.
É, pois, uma medida que deve ser analisada no conjunto das medidas
que vêm sendo adoptadas nos sucessivos Orçamentos do Estado para fazer face
à situação específica e temporária em que nos encontramos – e que o Tribunal
Constitucional tem avaliado nesse enquadramento económico-social,
sublinhando que a tutela jurídica dos direitos e interesses dos cidadãos,
assegurada por princípios como o da segurança jurídica e o da protecção da
confiança legítima, não pode deixar de ser ponderada com o interesse público
José Carlos Vieira de Andrade
19
de excepcional relevo que as medidas visam prosseguir, interesse eminente que
pode justificar que das mesmas não decorra uma ofensa grave e intolerável às
normas e aos princípios constitucionais.
Seguindo o entendimento e o método da ponderação do Tribunal, não
parece que possa concluir-se pela inconstitucionalidade da sobretaxa de IRS que
acabamos de analisar, visto que não se pode afirmar que a medida seja
manifestamente excessiva, desproporcionada ou arbitrária, em razão da
finalidade que a justifica, somada à sua transitoriedade.
IV. A contribuição extraordinária de solidariedade
O artigo 78.º da LOE/2013 consagra uma das medidas mais polémicas no
espaço público – a contribuição extraordinária de solidariedade (CES) –, cujo
enquadramento exige uma análise mais pormenorizada, embora a urgência e a
economia do texto apenas nos permitam destacar os aspectos essenciais que
hão-de ser convocados para a ponderação do juízo final sobre a sua
conformidade com a Constituição.
É que, embora a medida seja adoptada com fundamento no contexto
excepcional e extraordinário da situação de emergência económico-financeira, e
o seu alcance seja limitado no tempo, ela, em bom rigor, acaba por se
reconduzir a uma medida que, em parte, bem poderia ser enquadrada no
contexto das inevitáveis reformas estruturais que todos os países europeus
actualmente estão a desenvolver no sentido de dotar os respectivos sistemas de
segurança social da necessária sustentabilidade, reconfigurando e tornando mais
justo o princípio do Estado Social, de acordo com o princípio da solidariedade
intergeracional.
José Carlos Vieira de Andrade
20
1. O sistema de reformas português como sistema de Pay-As-You-Go (PAYG)
1.1. Tal como sucedeu com a maior parte dos regimes de protecção social
da Europa, também o sistema português evoluiu de um regime de seguros
sociais de base profissional e sectorial para um sistema de repartição (também
designado como sistema de PAYG), em que as pensões passaram a ser
suportadas por contribuições pagas pelos trabalhadores no activo e pelas
entidades empregadoras.
O entusiasmo gerado pelo novo modelo foi enorme, e dele eram
esperados inúmeros benefícios, entre os quais um reforço da função
redistributiva, na medida em que abria a possibilidade de muitos passarem a
receber benefícios que não estavam associados à proporção daquilo com que
tinham contribuído 19 , contrariamente ao que aconteceria nos regimes de
seguros sociais baseados num sistema de capitalização, em que cada
pensionista contribui para a sua própria conta reforma.
O êxito do sistema, fundado sobre os generosos princípios sociais do
modelo social europeu, dependia, porém, de algumas variáveis fundamentais:
crescimento económico, baixas taxas de desemprego e uma esperança média de
vida moderada – pressupostos que como mais tarde se percebeu, acabaram por
comprometer gravemente a solvabilidade do sistema e que, por essa razão,
exigem reformas estruturais contínuas, às quais nos havemos de referir mais à
frente.
1.2. Antes, contudo, importa perceber em que medida esta transformação
do sistema altera a natureza jurídica das prestações que garantem o
19 Um exemplo ilustrativo é dado por Fernando Ribeiro Mendes, que relata o caso de uma das primeiras pensionistas da segurança social dos Estados Unidos, Ida May Fuller, que descontara durante três anos apenas para o esquema PAYG instituído por Roosevelt, nos anos 30, pagando até se reformar um total de 25,75 dólares, tendo-se reformado com uma pensão mensal de 22,54 dólares e que faleceu em 1975, tendo recebido um total acumulado de pensões de 22.888,92 dólares – v. Segurança Social o Futuro Hipotecado, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2011, p. 65.
José Carlos Vieira de Andrade
21
financiamento da Segurança Social e as razões pelas quais aquele dispõe de um
Orçamento Separado, de acordo com o princípio da autonomia orçamental,
consagrado no artigo 105.º, n.º 1, alínea b) da CRP.
Comecemos por lembrar que o sistema adoptado em Portugal é o
denominado Sistema Contributivo – sistema em que as contribuições pagas pelos
beneficiários (futuros) e pelas entidades empregadoras devem cobrir, pelo
menos, cerca de 75% das despesas, não suportando o Orçamento do Estado
mais do que uma quota de 25%20.
Desse modo, o financiamento do regime contributivo da Segurança Social
(que engloba as pensões de velhice, invalidez, regime especial de protecção na
invalidez e pensão de sobrevivência), integrado no subsistema previdencial21,
repousa maioritariamente sobre o princípio da solidariedade de base profissional,
contando no seu financiamento com receitas que provêm dos trabalhadores e
das entidades empregadoras, devendo o mesmo assentar fundamentalmente no
autofinanciamento ou na auto-sustentabilidade22, como se percebe pelo Orçamento
da Segurança Social.
Os autores sublinham o facto de a autonomia orçamental – a existência de
um orçamento próprio da segurança social, desagregado do orçamento do
Estado – consubstanciar também uma autonomia financeira, que se fundamenta
no facto de se tratar de um sistema contributivo em que as receitas hão-de provir,
maioritariamente, dos beneficiários do sistema, e na sua auto-sustentabilidade,
devendo gerar as receitas necessárias para pagar as prestações devidas sem necessidade
de recorrer ao Orçamento do Estado23.
20 Neste sentido, v. Sousa Franco, Finanças do Sector público - Introdução aos Subsectores Institucionais (Aditamento de Actualização), AAFDUL, 2003, p. 135. 21 Já o subsistema de solidariedade (não contributivo) que abrange a pensão social de velhice, a pensão social de invalidez, a pensão de viuvez, o complemento por dependência, o complemento especial de pensão, o suplemento especial de pensão, o acréscimo vitalício de pensões e o complemento por cônjuge a cargo, é financiado por transferências do Orçamento do Estado e por consignação de receitas fiscais. 22 V. João Loureiro, Adeus ao Estado Social?, Coimbra, 2010, p. 264. 23 V. Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 4.ª edição, Vol. I, 2007, pp. 1105-1106.
José Carlos Vieira de Andrade
22
Também o regime previdencial da Caixa Geral de Aposentações, que
abrange o pessoal admitido na função pública até 2005, contempla pensões de
velhice, invalidez e sobrevivência e é financiado pelas contribuições dos
beneficiários, cabendo ao Orçamento do Estado suportar a diferença entre as
receitas das contribuições e as despesas com as pensões.
1.3. Para além do mencionado princípio da solidariedade, também o
princípio da coesão ou justiça intergeracional constitui um dos princípios
estruturantes do financiamento da segurança social, o qual obriga a desenhar
um esquema de repartição equitativa entre gerações e dentro das mesmas
gerações.
Dele decorre a necessidade de se tomar em consideração o aumento da
esperança média de vida nos países mais desenvolvidos e as consequências que
daí hão-de resultar para o financiamento do sistema de repartição – apesar de
não dever confundir-se o princípio da justiça intergeracional com o princípio da
sustentabilidade intergeracional, pois pode acontecer que um sistema não tenha
problemas de sustentabilidade a médio prazo, mas, ainda assim, o esquema de
financiamento em que assenta se não traduza num esquema de justiça
intergeracional24.
Este princípio de justiça obriga a analisar os montantes das contribuições
e os montantes das pensões, os anos de contribuição, a forma de cálculo das
pensões e uma projecção sobre a esperança média de vida – factores que se
incluem no denominado cálculo actuarial, mas que acabam sempre
desvirtuados por decisões de natureza política.
Aliás, se foi o princípio da sustentabilidade intergeracional que motivou
o alarme dado pela OCDE na década de 90 quanto à iminência de terríveis
défices nos esquemas de pensões vigentes, o princípio da justiça intergeracional é
um dos elementos-chave para a ponderação dos esquemas de transformação
24 Nesse sentido, v. João Loureiro, Adeus ao Estado Social?, cit., p. 279.
José Carlos Vieira de Andrade
23
dos sistemas de segurança social, ao pôr em evidência que, em alguns casos,
houve medidas que se traduziram na obtenção de pensões desproporcionadas,
sem qualquer correspondência com a carreira contributiva e que hoje oneram
excessivamente as gerações de contribuintes actuais.
Conhecem-se exemplos de pensões obtidas antes do tempo normal e com
montantes com fraquíssima relação com a carreira contributiva, sem que se
prossigam escopos sociais como aqueles que podem ser assinalados às pensões
sociais atribuídas no quadro do subsistema de solidariedade25.
Isto significa, portanto, que o princípio da justiça intergeracional deve hoje
integrar o leque de instrumentos da hermenêutica constitucional na hora de
analisar e avaliar juridicamente medidas de restrição de pensões, ainda que se
trate de restringir pensões anteriormente atribuídas, e mesmo que não se trate
de medidas adoptadas em contexto emergência e por causa do estado de
emergência económico-financeira – como veremos a seguir, é este o caminho
seguido em diversos ordenamentos jurídicos europeus, que actualmente
enfrentam problemas de sustentabilidade, mas também de justiça, semelhantes
aos nossos.
Aliás, sendo o sistema actual um sistema de repartição, não basta repartir
a conta, é necessário reparti-la com justiça, o que pode obrigar, em
circunstâncias críticas, a algumas reponderações dos montantes das pensões já
atribuídas, não sendo impensável, por isso, que a doutrina e o Tribunal
Constitucional venham a ter de mitigar o entendimento comum quanto à
irrevisibilidade das situações jurídicas consolidadas26, construído a partir da
25 Cf. João Loureiro, Adeus ao Estado Social?..., pp. 110-111. Entre as hipóteses limite referidas na obra relativamente à legislação anterior, destaca-se “a possibilidade concessão, aos 26 anos, da chamada subvenção mensal vitalícia a um jovem deputado, eleito pela primeira vez aos… 18!”. 26 Vale a pena sublinhar a este propósito, que a dificuldade em lidar com o estatuto dos “direitos adquiridos” nesta matéria não se confina hoje, como sugerem Gomes Canotilho e Vital Moreira em anotação ao artigo 63.º da CRP, à articulação do texto constitucional com instrumentos internacionais como a Convenção da OIT n.º 48 e 128 - Constituição da República Portuguesa anotada…, 2007, pp. 81 –, pois a União Europeia tem estado especialmente atenta aos problemas que se colocam na garantia de um nível elevado de protecção da socialidade no espaço europeu, o que justificou a constituição do denominado Método Aberto de Coordenação –
José Carlos Vieira de Andrade
24
qualificação das pensões atribuídas (leia-se do montante individualmente
fixado para uma pensão) como “caso decidido” (Acórdão n.º 658/97) ou
“direito adquirido” (Acórdão n.º 867/97), que seria intocável – isto, tendo em
conta que, tratando-se de uma relação jurídica duradoura, pode justificar-se,
também nesta matéria27, conferir algum relevo jurídico à alteração anormal ou
imprevisível das circunstâncias no quadro da garantia de princípios jurídicos
fundamentais, no caso, de justiça e de equidade e também de sustentabilidade
do sistema28.
2. A natureza das contribuições
2.1. A passagem do regime de capitalização ou de seguros para um
sistema de repartição há-de ter igualmente consequências jurídicas no
respeitante à natureza jurídica das contribuições pagas pelos beneficiários e
pelos empregadores.
cf. COM (2000), 622 final –, no âmbito do qual se procura garantir a efectividade das liberdades do Tratado sem comprometer a sustentabilidade dos diferentes regimes de protecção social dos Estados-membros – v. Giubboni, Diritti e solidarietà in Europa. I modelli sociali nazionali nello spazio giuridico europeo, Bolonha, 2012. 27 Nas actuais sociedades de risco, a estabilidade das normas e dos actos administrativos que as aplicam é posta em causa, em geral, nas relações jurídicas duradouras, pela alteração significativa das circunstâncias económicas e sociais (incluindo a superveniência de conhecimentos técnicos e científicos), que condiciona e de algum modo enfraquece não apenas as expectativas, mas os próprios direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares, mesmo que determinados por decisões administrativas ou contratualmente assegurados (v. o caso da renegociação das PPP). E também o direito ao montante da pensão, fixado administrativamente, como direito vitalício, poderá sofrer a erosão do tempo no contexto das transformações profundas operadas na economia e na sociedade, no plano nacional e no plano global. 28 Nesse sentido, justamente, João Loureiro, Adeus ao Estado Social?, cit., pp. 272 e ss e 279. O autor chama igualmente a atenção para a circunstância de que a nossa jurisprudência constitucional tem sido alheia ao tema da justiça intergeracional, colhendo-se apenas, no Acórdão n.º 437/06, uma referência ao conceito de “solidariedade intergeracional”, embora, em nosso entender, num sentido que não é o mais correcto, pois o Tribunal parece subscrever o entendimento de que existe uma solidariedade entre gerações, quer nos sistemas de capitalização, em que o indivíduo paga contribuições em função de um cálculo de prestação futura, quer nos sistemas de repartição, em que as suas contribuições são fixadas em função das necessidades financeiras do sistema para sustentar as pensões dos reformados nesse momento.
José Carlos Vieira de Andrade
25
Embora se continue a subscrever na jurisprudência o entendimento
tradicional, nos termos do qual as contribuições pagas pelas entidades
empregadoras são impostos e as quotizações suportadas pelos beneficiários se
aproximam de seguros obrigatórios, a verdade é que há algum tempo que a
doutrina vem sublinhando a necessidade de ter em conta as diferenças
decorrentes da alteração do sistema.
Percebe-se que haja uma diferença entre os sistemas em que o
financiamento da segurança social é garantido por impostos – como é o caso da
Dinamarca, onde não existe, por isso, autonomia financeira e orçamental, nem
vale a regra da auto-sustentabilidade do sistema –, e aqueles, como o alemão e o
português, em que esse financiamento resulta e deve em princípio resultar,
exclusivamente, das contribuições pagas por empregadores e beneficiários29.
A doutrina sublinha a natureza parafiscal do nosso sistema, por se tratar
de contribuições coactivas, destinadas a uma entidade autónoma do Estado, a
quem este confiou a gestão do sistema de segurança social. O regime é, assim,
concebido como parte integrante das novas finanças, promovidas como
complemento ao Estado fiscal, em consequência da diversidade de funções,
resultante da sua expansão em áreas económicas e sociais.
Interessa sobretudo destacar que estamos perante prestações coactivas,
exigidas por via de autoridade, em favor de organismos autónomos de base não
territorial, afectas a fins de ordem económica, profissional ou social, situadas fora
do orçamento de Estado30 - são estas características que permitem assinalar a
natureza especial (contributiva) e parafiscal destas contribuições, que lhes
garante hoje, ao nível da classificação das receitas públicas, um lugar autónomo
relativamente aos impostos31.
29 Cf. Nazaré da Costa Cabral, O financiamento da segurança social e suas implicações redistributivas (enquadramento e regime jurídico), Lisboa, 2001, p. 63. 30 Colhemos este entendimento em Nazaré da Costa Cabral, O financiamento da segurança…, cit., p. 64. 31 V. instrumentos de harmonização tributária e, em especial, a classificação das receitas públicas pela OCDE.
José Carlos Vieira de Andrade
26
2.2. Neste sentido, há muito que autores alemães sustentam que as
contribuições para a segurança social se devem inscrever numa categoria tributária
própria, que não se enquadra nem no regime dos impostos (pois não se trata de
satisfazer necessidades financeiras públicas em função da capacidade
contributiva), nem das taxas ou dos preços (pois não lhes assiste qualquer
contraprestação específica), nem das contribuições especiais (na medida em que
não se trata de satisfazer qualquer “despesa especial ocasionada”, nem de
devolver à comunidade um enriquecimento injustificado decorrente de
intervenções públicas), nem mesmo de contribuições profissionais (pois não
têm na sua origem um acto de vontade colectiva).
Estaremos perante tributos especiais, que se destinam a financiar um
orçamento autónomo e que se legitimam por princípios próprios: i) o princípio
da segurança (a necessidade de providenciar cuidados públicos em situações de
incerteza como a velhice, a invalidez e o desemprego); ii) o princípio da
resposta social (o que no sistema alemão significa uma nova dimensão
constitucional em matéria de protecção jurídica); iii) o princípio da igualdade
social (promoção de níveis de resposta equivalentes para riscos iguais)32.
Na doutrina germânica acrescenta-se ainda que estas “contribuições” se
regem por princípios próprios, diferentes dos princípios tributários gerais,
dando especial destaque ao princípio da equivalência na segurança jurídica
(versicherungsrechliche Äquivalenzprinzip) e ao princípio da solidariedade de grupo
(Prinzip der Gruppensolidarität)33.
2.3. Com efeito, as contribuições pagas por trabalhadores e empregadores
para os regimes contributivos da segurança social não são, em rigor, impostos,
desde logo por não se regerem pelo princípio da capacidade contributiva. Hoje, 32 Cf. F. Kirchhof , «Finanzierung der Sozialversicherung», in Isensee/ Kirchhof, Handbuch des Staatsrechts V, 2007, pp. 1452-1453. 33 Cf. P. Kirchhof , «Nichtsteuerliche Abgaben», in Isensee/ Kirchhof, Handbuch..., cit., 2007, pp. 1140-1141.
José Carlos Vieira de Andrade
27
a fixação da “taxa social única” deixou de obedecer às modulações que
caracterizavam os “prémios de seguro” ao nível de sector, empresa e profissão,
estando o respectivo valor uniformizado a partir de um coeficiente aplicável ao
valor da remuneração mensal34.
Mais, como veremos em seguida, o valor das contribuições passou a ser
determinado, no quadro das reformas legislativas que visam garantir a
sustentabilidade do sistema, a partir de fórmulas pré-estabelecidas
(estabilizadores automáticos), autónomas relativamente a decisões de âmbito
político, e cujo valor é o resultado das necessidades do sistema e dos critérios de
repartição dos respectivos encargos globais segundo o princípio da justiça
intergeracional e visando o cumprimento do princípio da auto-sustentação do
sistema.
Não há, portanto, nenhuma identificação, nem mesmo proximidade com
o imposto.
3. O sistema de pensões e as inevitáveis medidas de sustentabilidade e de justiça
intergeracional
3.1. O disposto no artigo 63.º da CRP não pode deixar de ser interpretado
em consonância com as medidas e os princípios que universalmente vêm sendo
gizados para garantir o direito fundamental à protecção social, no qual se inclui o
direito a pensões de reforma.
A preocupação em instituir sistemas públicos de protecção social
sustentáveis tem merecido a atenção e o estudo de diversas organizações
internacionais, de entre as quais destacamos o Banco Mundial e a OCDE.
Com efeito, foi o Banco Mundial que, em 1994, apresentou uma primeira
proposta no sentido de os sistemas de protecção social na Europa passarem a
assentar em três pilares, abrindo assim caminho para a privatização parcial dos
34 Sobre as consequências da mudança v. Fernando Ribeiro Mendes, Segurança Social o Futuro…, cit., 2011, pp. 62-63.
José Carlos Vieira de Andrade
28
sistemas públicos 35 . Esta proposta foi recentemente actualizada para um
sistema de cinco pilares, que teria a seguinte configuração: i) pilar zero – regime
não contributivo que garante o mínimo para uma existência condigna (luta
contra a pobreza); ii) Pilar 1 – regime contributivo, auto-sustentado, que é capaz
de substituir uma parte dos rendimentos do trabalho para situações de reforma
e pré-reforma; iii) Pilar 2 – regime contributivo, de capitalização virtual, que
satisfaz um nível de protecção mais elevado na substituição dos rendimentos do
trabalho; iv) Pilar 3 – regime voluntário, contributivo e de capitalização; v) Pilar
4 – não financeiro que consiste em prestações de familiares, ou de outras
instituições ligadas à protecção social em matéria de saúde e apoio ao bem-
estar36.
Em Portugal coexistem hoje também três pilares no sistema de segurança
social:
a) um primeiro pilar – constituído pelos regimes previdenciais que visam a
substituição de rendimentos do trabalho geridos pelo Estado (Regime Geral da
Segurança Social e a Caixa Geral de Aposentações) ou por entidades privadas
(os chamados regimes satélites, entre os quais se incluem os bancários do
ACTV), de natureza contributiva, de cariz normalmente obrigatório. A
solvência deste pilar é assegurada pelas contribuições de trabalhadores e
empregadores. É um regime de repartição, ou seja, PAYG;
b) um segundo pilar de iniciativa empresarial (pensões de reforma de
regimes profissionais complementares), que corresponde aos rendimentos
proporcionados maioritariamente por Planos de Pensões criados segundo
regimes previdenciais de natureza complementar (em regra junto de
seguradoras ou de sociedades gestoras de planos de pensões), promovidos
pelas empresas ou outras entidades colectivas a favor dos seus trabalhadores,
trata-se de um sistema de capitalização; 35 Sobre os três pilares na proposta do Banco Mundial v. Fernando Ribeiro Mendes, Segurança Social o Futuro…, 2011, pp. 79. 36 Cf. Robert Holzmann, Richard Paul Hinz and Mark Dorfman, Pension Systems and Reform Conceptual Framework, World Bank, 2008.
José Carlos Vieira de Andrade
29
c) um terceiro pilar, de iniciativa privada individual e em regra encorajado
por benefícios fiscais à poupança.
3.2. Estas propostas têm igualmente eco nos trabalhos publicados pela
OCDE, onde numa publicação recente são apresentados os problemas que os
sistemas europeus – sobretudo o 1.º pilar, baseado no sistema PAYG –
enfrentam em matéria de sustentabilidade, com um crescente aumento das
contribuições devidas perante uma redução drástica das contribuições pagas,
revelando um gap financeiro muito significativo37.
Entre os instrumentos mais comuns utilizados para a tentativa de
reposição da sustentabilidade do sistema contam-se: i) os ajustamentos no valor das
pensões – uma medida que, entre nós, tem sido implementada nas diversas
reformas, mas afectando apenas os direitos em formação, os quais, de acordo
com a jurisprudência do Tribunal Constitucional, não gozam de uma protecção
legítima de expectativas capaz de neutralizar estas medidas de sustentabilidade
atendendo ao fim legítimo que as mesmas visam assegurar38; ii) os ajustamentos
na idade da reforma – medidas também adoptadas entre nós na recente reforma
da segurança social que voltou a elevar a idade da reforma; iii) os ajustamentos
no valor das contribuições – o que também será aplicado entre nós com a elevação
do valor da taxa social única; iv) a constituição de um fundo de reserva – medida
igualmente adoptada entre nós com a criação do Fundo de Estabilização
Financeira da Segurança Social39.
Entre as medidas mais enérgicas, contam-se: i) a adopção de mecanismos de
ajustamento automático à esperança média de vida e à idade da reforma – como aquele
que foi adoptado por Portugal na recente reforma de 2006; ii) a introdução no
regime contributivo de um sistema de capitalização nocional (o notional defined
contribution pension system) – adoptado pela Itália, Suécia e Polónia, onde são
37 Referimo-nos a OCDE, Pensions Outlook 2012, OCDE, 2012. 38 Cf. Acórdão n.º 188/2009. 39 Cf. OCDE, Pensions Outlook 2012…, pp. 53.
José Carlos Vieira de Andrade
30
criadas contas individuais para cada indivíduo, como no regime de
capitalização, cujo valor vai crescendo segundo a valorização nocional
determinada pelo sistema40; iii) a criação de estabilizadores automáticos – sistemas
que são accionados quando a ratio de financiamento do sistema se reduz abaixo
de um nível de risco pré-determinado e a partir do qual são desencadeados os
mecanismos previstos na cláusula, de forma automática (caso da maioria dos
países que dispõem deste sistema) ou condicionada (caso do Canadá), sistemas
que podem envolver um aumento das contribuições (caso da Alemanha41) ou
também uma redução do montante das pensões já em pagamento (caso da
Suécia42) e que pode ser temporário (caso do Japão)43.
Em Espanha discutem-se neste momento os mecanismos que irão ser
adoptados para garantir a sustentabilidade do sistema de segurança social44 ,
também ele profundamente abalado com a recente crise económica e financeira.
3.3. Esta breve alusão às reformas em curso em diversos ordenamentos
jurídicos europeus visa apenas ilustrar a extrema complexidade que hoje
envolve a gestão sustentável do sistema de segurança social universal – o
denominado primeiro pilar –, quando é certo que o mesmo se deve subordinar
a um regime de auto-financiamento para o qual não foi devidamente dotado
financeiramente, nem juridicamente conformado com os princípios da
sustentabilidade.
Por essa razão, acompanhamos os autores que questionam a doutrina
dominante, segundo a qual os direitos constituídos em matéria de pensões são
intocáveis no que respeita aos seus montantes, sustentando que este ponto de
40 Sobre o sistema italiano v. Igor Guardiancich, Current pension system: first assessment of reform outcomes and output, European Social Observatory, 2010. 41 Cf. Axel Börsch-Supan / Christina B. Wilke, «The German Public Pension System: How it was, how it will be», NBER Working Papers Series, Working Paper 10525, p. 47. 42 Sobre o caso sueco v. Ole Settergren, The Automatic Balance Mechanism of the Swedish Pension System, Swedish National Social Insurance Board (NSIB). 43 Cf. OCDE, Pensions Outlook 2012…, cit., p. 66. 44 Cf. Devesa Carpio et alii, “El factor de sostenibilidad en los sistemas de pensiones de reparto: alternativas para su regulación en España”, in Actuarios, n.º 31, 2012, p. 48 e ss.
José Carlos Vieira de Andrade
31
partida não pode hoje, em face das exigências do princípio da justiça
intergeracional, ser considerado intocável ou inquestionável45.
4. A CES como uma medida extraordinária, de justiça intergeracional
maioritariamente localizada no lado da despesa
4.1. É com base nos dados e nas reflexões e informações precedentes que
nos propomos analisar e avaliar a conformidade constitucional da CES, prevista
no artigo 78.º da LOE/2013, começando precisamente por enunciar os seus
pressupostos essenciais.
Trata-se, na justificação do Governo, de uma redução das pensões superiores
a 1.350 €, realizada através de uma medida extraordinária e temporária, que
visa garantir a sustentabilidade do sistema nacional de segurança social durante
o ano de 2013, em que aquele está sujeito a especiais exigências financeiras no
que se refere a prestações em matéria de subsídios de desemprego e apoio à
pobreza – procurando-se, com esta medida, pelo menos, reduzir as
transferências do Orçamento do Estado para o Orçamento da Segurança Social,
sobretudo no que se reporta ao pagamento das pensões (dos sistemas
contributivo e não contributivo), cuja solvabilidade está também enfraquecida
em consequência da significativa redução das contribuições motivada pelo
aumento do desemprego.
A medida consiste na aplicação das seguintes reduções:
- 3,5 % do valor total das pensões de valor mensal entre 1.350 e 1.800€;
- de 3,5 % sobre o valor de € 1.800 e 16 % sobre o remanescente das
pensões de valor mensal entre € 1800,01 e € 3.750, perfazendo uma taxa global
que varia entre 3,5 % e 10 %;
- 10 % sobre a totalidade das pensões de valor mensal superior a € 3.750;
45 Referimo-nos uma vez mais em especial a João Loureiro, Adeus ao Estado Social?..., cit., pp. 272-273.
José Carlos Vieira de Andrade
32
- 15% (a somar aos 10%) sobre o montante que exceda 12 vezes o valor do
IAS (€ 5.030,64) mas que não ultrapasse 18 vezes aquele valor; e
- 40% (a somar aos 10%) sobre o montante que ultrapasse 18 vezes o
valor do IAS (€ 7.545,96).
No que diz respeito ao âmbito de aplicação a medida abrange:
a) todas as pensões integradas no primeiro pilar da protecção social, ou seja,
todas as prestações dos regimes públicos, financiadas segundo o sistema PAYG;
b) parte das pensões integradas no segundo pilar da protecção social, ou
seja, os regimes complementares de iniciativa colectiva, públicos (de
capitalização) ou privados, mas, neste caso, não se aplicando à componente de
reembolso de capital, o mesmo é dizer, à parte relativa às contribuições do
beneficiário para os referidos regimes complementares de reforma;
A medida não abrange os benefícios gerados pelo terceiro pilar da protecção
social, ou seja, os regimes complementares de iniciativa individual.
Vale a pena ainda sublinhar os seguintes elementos de facto, constantes
de documentos fornecidos oficialmente pelo Governo:
- 91,9% dos pensionistas não são abrangidos pela medida, uma vez que
auferem pensões inferiores a 1350€, o que significa que o universo dos
destinatários é de apenas 8,1% dos pensionistas, abrangendo os que auferem
pensões de valores mais elevados;
- entre os 8,1% abrangidos pela medida estão 2,8% do total de
beneficiários da segurança social e 33,2 % do total de beneficiários da CGA,
daqui se inferindo que a medida tem maioritariamente como destinatários
pensionistas da função pública, um sistema que tem hoje menor solvabilidade, em
razão do agravamento da sua situação em 2011, quando o número de
pensionistas aumentou de 330 mil para 453 mil, ao mesmo tempo que o tempo
médio de serviço relevante para a pensão (anos contributivos) diminuiu de 32
para 29,8 anos;
José Carlos Vieira de Andrade
33
- entre os abrangidos pelas reduções de 25% e de 50% estão apenas 2430
pensionistas, correspondendo 965 ao sistema de segurança social e 1465 à Caixa
Geral de Aposentações.
É em face da estrutura legal da medida e destes dados reais, que importa
analisar a sua conformidade constitucional.
4.2. Trata-se, em nosso entender, de uma medida que opera
maioritariamente do lado da despesa, pois do que se trata, essencialmente, é de
aplicar às pensões do sistema contributivo que apresentam menores “rácios”
(rationes) de sustentabilidade uma redução extraordinária anual do respectivo valor,
da mesma natureza e equivalente à redução remuneratória prevista no artigo
27.º da mesma LOE/2013 (redução dos salários dos “trabalhadores em funções
públicas”) que vem sendo aplicada anualmente desde 2011.
A redução é equivalente na medida em que as reduções remuneratórias dos
salários daqueles trabalhadores se aplicam a partir dos 1.500€ e nas pensões essa
redução é aplicada às que tenham um valor superior a 1.375€, sendo essa
diferença neutralizada com o desconto que as remunerações sofrem de 11% a
título de taxa social única, o que acaba por equiparar os valores aos quais se
aplicam os coeficientes de redução.
Não estamos, portanto – no domínio das pensões pagas ao abrigo do 1.º
pilar –, perante um imposto, mas sim perante uma redução extraordinária, por
um ano, das prestações públicas pagas aos pensionistas.
Veja-se que a categoria do reformado é muito semelhante à dos
funcionários públicos (mais até à dos funcionários públicos stricto sensu do que
à dos actuais trabalhadores em funções públicas, que são contratados), pois em
ambos encontramos uma situação jurídica estatutária, isto é, posições jurídicas
complexas, que formam um conjunto ordenado de direitos e deveres, derivados
directa ou indirectamente, de um único facto ou acto jurídico. O conteúdo das
posições jurídicas é definido por lei – e não regulado por contrato – e aplicado
José Carlos Vieira de Andrade
34
em bloco normativo a todos os que se encontrem em determinadas
circunstâncias.
Este status dos pensionistas é hoje ainda mais evidente quando se analisa
o sistema tal como se encontra estruturado – um regime de repartição, baseado
no sistema de PAYG –, onde se regista uma inevitável triangulação da relação
jurídica, cabendo ao Estado assegurar, simultaneamente, a solvabilidade do
sistema (sustentabilidade financeira) e a justiça intergeracional, através dos
instrumentos que referimos anteriormente, dos quais resulta o carácter
dinâmico da situação jurídica do pensionista, com a inerente sujeição a
alterações normativas46, mesmo quanto ao montante da pensão47.
4.3. A configuração geral da medida – medida essencialmente do lado da
despesa – é todavia contrariada pelo facto de abranger também uma parte (a
respeitante às prestações realizadas pela entidade empregadora) das pensões do
regime complementar colectivo do segundo pilar.
É certo que o fundamento apresentado pelo legislador para a sustentação
da medida – a extensão da “redução” a este tipo de prestações - a “coloca”
ainda, tendencialmente, no contexto dos esquemas financeiros públicos, pois os
Fundos de Pensões abrangidos por estas medidas são maioritariamente Fundos
de Pensões de origem pública, constituídos por empresas públicas, e, nessa
medida, o “capital” que se procura atingir neste esforço extraordinário para
garantir a sustentabilidade do sistema de segurança social em contexto de
emergência é ainda, maioritariamente, de fonte pública – e resta saber se o
46 V. a Sentença do BVerfG de 28.02.2008 - 1 BvR 2137/06, em que, a propósito da subida das taxas moderadoras a pagar pelos pensionistas, se afirma que estes não têm direito a que se mantenham no futuro as regalias que lhes são concedidas, quando seja necessário reduzi-las para equilibrar o sistema, nem o legislador está nesses casos necessariamente obrigado a estabelecer um regime transitório. 47 Está em causa, como vimos, a visão tradicional da doutrina e da jurisprudência (em nosso entender segundo pressupostos que hoje já não se verificam) de que os direitos adquiridos são inquestionáveis quanto ao montante da pensão.
José Carlos Vieira de Andrade
35
princípio da praticabilidade48 inviabilizaria ou não que a medida pudesse ser
desenhada para abranger apenas a parte correspondente ao substrato público
dos Fundos de Pensões de origem pública.
Todavia, e não desconsiderando a preponderância da fundamentação
apresentada, a verdade é que, nesta parte, a medida – que, recorde-se, não
abrange a parte da capitalização assegurada pelo trabalhador – não tem a
natureza de uma redução da pensão, ou seja, não se pode dizer que consubstancia
uma redução directa da despesa do sistema de pensões, uma vez que é
necessário que esses Fundos de Pensões efectuem a referida “redução da
pensão” e a entreguem, posteriormente, às entidades que gerem os sistemas de
segurança social.
Estaremos, nesta parte, perante uma contribuição extraordinária de
solidariedade, mas, ainda assim, em nosso entender, não perante um imposto.
Com efeito, compulsando novamente a noção de contribuição para a
segurança social a que nos referimos, comprovamos que a “redução das pensões
complementares” consubstancia uma contribuição, e não um imposto, pois
estamos prestações coactivas, exigidas por via de autoridade, em favor de
organismos autónomos de base não territorial, afectas a fins de ordem
económica, profissional ou social, situadas fora do Orçamento de Estado. Trata-se é,
neste caso, de uma contribuição que tem a particularidade de ser exigida aos
beneficiários actuais do sistema complementar, e apenas no que respeita a uma
parcela desse benefício. Uma particularidade que exige a comprovação da sua
adequação e proporcionalidade no âmbito do contexto de excepcional
emergência em que nos encontramos.
É uma contribuição extraordinária, na medida em que se trata de uma
contribuição criada por uma norma orçamental (e não por cavaliers budgétaires),
o que significa que caduca no fim do ano, carecendo uma sua hipotética 48 O princípio da praticabilidade foi já reconhecido pela jurisprudência do Tribunal Constitucional no domínio da tributação fiscal – v. Acórdão n.º 306/2010, onde se afirma que o princípio da praticabilidade “conduz à exclusão não só das soluções impossíveis de levar à prática mas também das soluções economicamente insustentáveis”.
José Carlos Vieira de Andrade
36
renovação de nova aprovação parlamentar – o mesmo é dizer que se trata de
um sacrifício especial decretado pelo período temporal de um ano49.
E pode dizer-se que é “de solidariedade”, na medida em que as receitas da
contribuição extraordinária que incide sobre a parte das pensões
complementares de base colectiva referente ao capital contributivo da entidade
empregadora se destina a financiar o Orçamento da Segurança Social, mais
precisamente o sistema público do 1.º pilar, sujeito no ano de 2013 a um acréscimo
extraordinário de esforço financeiro para garantir o pagamento das prestações
do regime contributivo da Segurança Social e da Caixa Geral de Aposentações50.
Importa ainda sublinhar que, mesmo nesta sua extensão ao segundo
pilar, a medida não pode ser entendida como um imposto de classe que agrava de
forma extraordinária os rendimentos da categoria H, pondo em crise o princípio
da unidade do IRS.
De facto, são diferentes a finalidade e o alcance da CES e do imposto
sobre o rendimento.
Se atentarmos no âmbito de incidência da categoria H do IRS (artigo 11.º
do CIRS), veremos que são abrangidos pelo imposto todas as pensões, quer as
que integram o primeiro pilar (alínea a)), quer as que integram o segundo pilar
(alínea b)), quer ainda as que fazem parte do terceiro pilar (alíneas c) e d)) – ou
seja, também se incluem no âmbito da tributação as pensões que resultem de
sistemas de capitalização de iniciativa individual, bem como as que integrem o
sistema complementar de iniciativa colectiva, quer sejam devidas em função
49 Recorde-se que este argumento foi já expendido pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 396/2011 para sustentar a não inconstitucionalidade das reduções remuneratórias dos trabalhadores em funções públicas, precisamente por se reconduzir a uma medida orçamental, de carácter temporário – “estamos perante medidas de carácter orçamental, com o regime correspondente. Consequentemente, por força de regra constitucional (artigo 106.º, n.º 1, da Constituição), elas não podem gozar de vigência que não seja a anual. Nem é necessário determinar expressamente o termo final da sua vigência, pois este está definido constitucional e legislativamente (artigo 4.º, n.º 1, da Lei de Enquadramento Orçamental)”. 50 A medida possibilita ainda a “libertação” de receitas do Orçamento Geral do Estado destinadas à satisfação das prestações do sistema previdencial não contributivo e do sistema de solidariedade, igualmente sujeitos a um esforço financeiro extraordinário em razão do aumento das despesas com o apoio ao desemprego e às situações de pobreza e inclusão social.
José Carlos Vieira de Andrade
37
das contribuições pagas pela entidade empregadora, quer das contribuições
pagas pelos beneficiários de acordo com um sistema de capitalização. Neste
caso – na tributação em IRS destas categorias de rendimentos – o que está em
causa é a tributação de rendimentos, em função da capacidade contributiva dos
respectivos titulares (pensionistas de todos os sistemas), que assim são
chamados a contribuir, em condições de igualdade (tal como os restantes
indivíduos que auferem rendimentos de qualquer categoria), para acorrer às
despesas públicas gerais, sendo a receita dessa tributação integrada no
Orçamento Geral do Estado51.
Ora, na CES ficam fora do âmbito do sacrifício o terceiro pilar e a parte
do segundo pilar respeitante às contribuições realizadas pelos pensionistas – o
que, desde logo, afasta a possibilidade de estar aqui em causa o princípio da
capacidade contributiva, pois não é essa a razão nem a medida do sacrifício.
A contribuição aplicada a parte do segundo pilar apenas se pode
justificar pelos princípios da justiça e da igualdade52, com fundamento nos quais se
pretende abranger neste sacrifício uma parte dos Fundos de Pensões
constituídos a partir de dinheiros de origem pública, embora nesse ímpeto
acabe incluir igualmente Fundos de Pensões constituídos por entidades
empregadoras privadas53.
Podemos concluir, portanto, que a CES configura uma medida de redução
de despesa (artigo 78.º, n.ºs 1 e 2), complementada por uma contribuição
extraordinária de solidariedade (artigo 78.º, n.º 3), visando a contenção da despesa
pública do Orçamento da Segurança Social (equiparada, no essencial, à medida 51 Veja-se que a tributação das pensões faz sentido, mesmo no sistema da capitalização, na medida em que as contribuições não são tributadas. 52 Recorde-se que o Tribunal Constitucional no acórdão n.º 396/2011 considerou critério de igualdade para a limitação do universo dos trabalhadores abrangidos pela redução remuneratória, aqueles que fossem “pagos com dinheiros públicos”, o que terá levado o legislador agora a querer abranger nesta medida também todos os pensionistas pagos indirectamente com dinheiros públicos, embora acabando por abranger também os que são pagos com dinheiros privados das entidades empregadoras. 53 No caso das reduções do 1.º pilar, a contribuição também não se funda na capacidade contributiva, mas no encargo que essas pensões representam para o orçamento da segurança social.
José Carlos Vieira de Andrade
38
de contenção da despesa pública do Orçamento de Estado através da redução
dos salários), que obedece a um critério de proporcionalidade e se fundamenta no
princípio da justiça intergeracional – num ano de aumento extraordinário das
despesas do orçamento da segurança social, seria adequado e proporcional
chamar todos os beneficiários do sistema de segurança social que o possam
fazer a contribuir para a sustentabilidade do mesmo.
4.4. Qualificada a medida na sua complexidade e desenhado o respectivo
contexto, podemos avaliar a sua conformidade com a Constituição, tendo em
consideração os princípios jurídicos convocados.
As considerações anteriores já nos permitem afastar, de forma liminar,
algumas das dúvidas suscitadas.
4.4.1. Não procedem, desde logo, quanto a nós, as censuras que se
baseiam na qualificação da CES como imposto, designadamente, o alegado
incumprimento da exigência constitucional de unidade de tributação do
rendimento das pessoas singulares, ou a desconsideração da capacidade
contributiva ou da igualdade tributária – como já vimos, não estamos perante
um imposto degenerado ou um “imposto de classe”, pois que se trata, no
essencial 54 , da redução extraordinária e temporária de prestações estaduais
destinada a assegurar o orçamento da segurança social, equivalente à redução
dos salários dos “trabalhadores em funções públicas” que vem sendo aplicada
anualmente desde 2011.
4.4.2. Depois, é hoje claro que a medida também não fere a garantia
fundamental do direito de propriedade, mesmo entendida esta em sentido amplo,
pois não atinge direitos patrimoniais sobre bens concretos dos pensionistas.
54 Nem mesmo na parte que se estende ao segundo pilar, embora aí se possam suscitar dúvidas quanto aos fundos de iniciativa colectiva genuinamente privada.
José Carlos Vieira de Andrade
39
Como vimos, a CES incide essencialmente sobre as pensões pagas em
regime de PAYG, o que significa que estamos perante prestações públicas
financiadas pelos contribuintes do sistema actualmente no activo e não por
capitais próprios dos pensionistas55.
Na parte em que abrange sistemas de capitalização (sistemas
complementares, públicos e privados de iniciativa colectiva) as contribuições
dos beneficiários estão expressamente excluídas do âmbito de aplicação da
medida – e os regimes de iniciativa individual não são abrangidos pela medida.
4.4.3. Por fim, é evidente que o sacrifício que a medida em causa encerra
não afecta a garantia fundamental do mínimo para uma existência condigna, só por
lapso se podendo afirmar o contrário, quando a CES não se aplica a mais de
90% dos pensionistas.
Com efeito, não só a aplicação da medida apenas se encontra prevista para
pensões de valor mensal superior a 1.350€, como o n.º 6 do artigo 78.º estabelece
uma cláusula de salvaguarda pela qual se impede que da aplicação do disposto
naquele regime resulte uma prestação mensal total ilíquida inferior a 1.350€,
caso em que o valor da redução ou da contribuição será apenas o necessário
para assegurar a percepção do referido valor.
4.5. Centraremos, por isso, a análise na eventual violação do princípio da
proporcionalidade, em especial quanto à proibição do excesso, bem como do
princípio da protecção da confiança legítima – é que, ainda que seja temporária, está
em causa uma intervenção legislativa restritiva ou desvantajosa, ou, na
perspectiva dos pensionistas, a diminuição de prestações legalmente previstas e
devidas.
55 Ao contrário do que se afirma, a pensão não corresponde às contribuições efectuadas durante a vida de trabalho. O direito à pensão aproxima-se assim do direito ao salário dos trabalhadores em funções públicas, também quanto à integridade do salário.
José Carlos Vieira de Andrade
40
É certo que se trata de direitos sociais, cujo conteúdo não está definido
nem é determinável ao nível constitucional, mas, como já dissemos, a
concretização legal desses direitos confere aos direitos a prestações deles
derivados uma capacidade de resistência às mudanças normativas que
impliquem uma diminuição do seu grau de realização – devendo estas ser
justificadas.
4.6. Começando pela eventual ofensa ao princípio da proporcionalidade,
importa testar, em primeiro lugar, a adequação da medida.
Essa adequação parece efectivamente demonstrada em face dos números
que hoje constam do orçamento da segurança social e que revelam a situação de
iminente insustentabilidade em que o mesmo se encontra.
É que, mesmo após a reforma de 2006 – na qual se incluiu um sistema de
cláusula automática de sustentabilidade (altamente penalizadora para os futuros
beneficiários) e se constituiu o Fundo de Estabilização Financeira da Segurança
Social –, não foi ainda possível dotar o sistema de auto-suficiência financeira que
permita enfrentar situações excepcionais de crise económico-financeira como a
actual, onde a redução drástica do universo dos contribuintes da segurança
social torna insuficientes estas receitas para garantir a satisfação das despesas
crescentes com as pensões.
Por essa razão, faz todo o sentido que a medida extraordinária tenha sido
construída essencialmente do lado da despesa e no âmbito deste sistema
financeiro e orçamental.
A estes dados soma-se o facto já mencionado de a medida não atingir, em
nenhuma circunstância, o mínimo para uma existência condigna,
salvaguardando o rendimento mensal mínimo ilíquido de 1350€ - facto que
reforça a adequação da medida no que respeita à selecção do universo dos
destinatários da mesma.
José Carlos Vieira de Andrade
41
4.6. Embora, em regra, o Tribunal Constitucional não esteja em condições
de avaliar a necessidade das medidas político-financeiras adoptadas pelo
legislador na realização dos direitos sociais56 - no caso, teria de avaliar se o
legislador poderia ou não ter adoptado outra medida igualmente adequada e
que fosse menos onerosa para a posição jurídica dos pensionistas abrangidos
pela medida pelo legislador –, pode afirmar-se que qualquer medida alternativa
teria sempre (pelo critério da adequação) de ser adoptada no âmbito do
orçamento da segurança social, pois o princípio do auto-financiamento do sistema
a isso obrigaria.
Ora, não é necessário um juízo de prognose muito elaborado para
compreender que, caso se pretendesse deixar intocado o valor das pensões,
todo o esforço de financiamento da sustentabilidade teria de ser imputado aos
actuais contribuintes e futuros beneficiários – uma solução que se nos afigura
objectivamente desrazoável e desproporcionada, atentando na circunstância de
estes já não poderem sequer vir a beneficiar das mesmas condições (mais
favoráveis) de que beneficiam os actuais pensionistas.
4.7. Resta, então, saber se a medida viola o princípio da proibição do
excesso.
A este propósito, podem distinguir-se diversos segmentos da norma que
estabelece a medida.
No que respeita ao artigo 78.º, n.º 1, pode dizer-se com alguma segurança
que consubstancia um esforço proporcional relativamente ao fim, pois a maior
parte dos destinatários da medida fica sujeita a um decréscimo do valor das
pensões que não se pode considerar exagerado em termos absolutos (atinge, no
máximo, 10%).
56 Esta dimensão da necessidade percebe-se e impõe-se no âmbito do controlo das restrições legislativas de direitos, liberdades e garantias (artigo 18.º, n.º 2, da CRP), cujo conteúdo é constitucionalmente determinável pelo juiz.
José Carlos Vieira de Andrade
42
Por outro lado, a medida, ao garantir a percepção de um valor de pensão
de 1350€, não se comprova ser exagerada em termos relativos, já que estes
beneficiários mantêm ainda uma posição privilegiada relativamente ao
universo maioritário dos pensionistas, que recebe menos que isso (recorde-se,
mais uma vez, que 91,9% dos pensionistas não são abrangidos pela medida) –
até por comparação, porque sujeita os pensionistas a um esforço equivalente
àquele a que estão sujeitos os “trabalhadores pagos com dinheiros públicos”57.
A equiparação no sacrifício dos indivíduos pagos com dinheiros públicos
é, porém, quebrada no artigo 78.º, n.º 2, que estabelece taxas adicionais de 15% e
de 40%, aplicáveis às pensões de montante superior a, respectivamente, 12
vezes o valor do IAS (5.030,64€) e 18 vezes o valor do IAS (7.545,96€) – um
universo que, segundo o Governo, abrange apenas 2430 pensionistas,
correspondendo 965 ao sistema de segurança social e 1465 à Caixa Geral de
Aposentações (uma distribuição reveladora da situação efectivamente mais
favorecida de que beneficiam os pensionistas da Caixa Geral de Aposentações,
onde as pensões são em média mais elevadas do que na Segurança Social e que
agora explica que eles sejam os principais atingidos com as medidas de
sacrifício).
As taxas são, nestes casos, de grande impacto e põe-se de facto o
problema de saber se não serão excessivas, tendo em conta que as minorias
também têm direitos e que não basta dizer que é pequeno o número de pessoas
atingidas para justificar a medida.
No entanto, tendo em consideração que o valor de 12 x IAS corresponde
à pensão máxima agora definida pela lei para as pensões da Segurança Social, e
que se trata de uma medida extraordinária e temporária, é razoável sustentar
que a redução significativa (ou muito significativa) deste pequeno universo de
pensões se pode fundamentar no princípio da justiça intrageracional, pois do que
se trata é de impor um sacrífico mais intenso, neste contexto extraordinário,
57 Cf. o critério adoptado no Acórdão n.º 396/2011.
José Carlos Vieira de Andrade
43
àqueles que vêm beneficiando (e hão-de continuar a beneficiar) de condições
privilegiadas que justificaram a atribuição daqueles valores de pensões – desde
logo da aplicação de fórmulas de cálculo que apenas tomaram em consideração
os melhores anos e não toda ou uma parte significativa da carreira
contributiva58 – condições de que os actuais contribuintes e futuros pensionistas
não poderão beneficiar em razão das novas regras adoptadas na reforma do
sistema, tendo em vista dotá-lo de sustentabilidade financeira.
É neste enquadramento que se há-de efectuar o juízo de ponderação
quanto à proporcionalidade da medida, no que respeita às taxas mais elevadas
da redução do valor das pensões.
Um juízo que deve também ser articulado com o que diremos em
seguida quanto ao esforço efectivo que é pedido a estes pensionistas e que não
pode deixar de ser avaliado em função do rendimento líquido que sobra após a
tributação, seja por razões matemáticas, dado que a redução do valor da pensão
significa também uma redução da matéria colectável e, portanto, do valor do
imposto a ser pago posteriormente, seja por razões de adequação social, dado
que o rendimento líquido pode ter ainda um valor muito significativo – razão
pela qual a proporcionalidade stricto sensu da medida há-de basear-se,
essencialmente, no sobre-esforço que resulta dessa diferença e não deve
desprezar o valor real do rendimento sobrante.
4.8. De facto, uma correcta avaliação da proporcionalidade da medida
não pode deixar de atentar no efectivo esforço financeiro que a mesma representa
para os respectivos destinatários, baseando-se num juízo comparativo entre o
valor líquido recebido pelos pensionistas com e sem as reduções da CES, após a
aplicação das restantes medidas de austeridade e as novas regras de tributação
em sede de IRS – pois que, como vimos, o corte decorrente da CES diminui o
rendimento colectável e, portanto, o imposto a pagar. 58 E também, em alguns casos, de regras especiais, excepcionalmente generosas, aplicáveis no âmbito de certas entidades públicas.
José Carlos Vieira de Andrade
44
Assim, concluímos, por exemplo59, que um pensionista que receba uma
pensão mensal de 1500€ (a qual será reduzida para 1447,5€/mês com a CES)
sofre, com a aplicação das regras do OE/2013 (incluindo CES, o corte no 14.º
mês e outras regras de tributação), uma tributação de cerca de 18,69% do seu
rendimento bruto, e que, sem a aplicação da CES, a tributação sempre seria de
16,48%, o que significa que, em rigor, este pensionista sofre um esforço financeiro
acrescido de 2,2% em razão da aplicação da CES. O pensionista que receba
mensalmente 2.000€ de rendimento bruto, sofre, com a aplicação das regras do
OE/2013 uma tributação de cerca de 22,86% do seu rendimento bruto, e que,
sem a aplicação da CES, a tributação sempre seria de 20,2%, o que significa que,
em rigor, este pensionista sofre um esforço financeiro acrescido de 2,66% em razão
da aplicação da CES.
E mesmo naquelas pensões que são abrangidas pelas taxas (acumuladas)
de 25% e de 50%, o sobre-esforço que resulta da aplicação da CES, embora seja
bastante mais acentuado, é de 11,73% para quem receba uma pensão mensal de
10.000€ brutos – sendo de salientar que o valor mensal da pensão será, nesse
caso, reduzido para 4.718€/mês (em vez de 5.892€/mês), valor que, apesar de
tudo, não é irrisório e dificilmente será atribuído no futuro com a aplicação das
novas regras.
Trata-se, portanto, de um sacrifício relevante (ou “enorme”), mas que
poderá não ser desproporcionado se sopesarmos esses valores, por um lado,
com o facto de estarmos perante um sacrifício extraordinário e temporalmente
limitado e, por outro lado, com as regras generosas, mas insustentáveis, que
permitiram a fixação de valores elevados de pensões a determinadas gerações,
actualmente suportados por outras gerações, que, no futuro, não poderão
beneficiar do mesmo nível de protecção financeira na reforma.
59 As contas feitas são da nossa inteira responsabilidade, esperando que estejam certas: têm em conta a aplicação das regras do IRS, da sobretaxa e, quando aplicável, da taxa adicional de solidariedade.
José Carlos Vieira de Andrade
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4.9. Diga-se, em acréscimo, que, como decorre do que vimos dizendo, a
medida também se não afigura de tal modo desproporcionada que, ainda que
só temporariamente, torne a imposição tributária, no seu todo, confiscatória ou
sufocante, nem mesmo no que respeita às pensões iguais ou superiores a
10.000€, em que a tributação final, incluindo contribuição e imposto sobre o
rendimento, pode ultrapassar a taxa de 50%.
Não se pode negar a consagração constitucional de um direito de
resistência fiscal perante impostos confiscatórios (artigo 103.º, n.º 3, 1.ª parte), e,
embora o texto constitucional não estabeleça expressamente um limite máximo
para a tributação, esse limite pode ser extraído, de forma indirecta, do direito
fundamental à propriedade privada consagrado no artigo 62.º, mais
concretamente do princípio aí imanente de proibição da sua apropriação
pública sem fundamento válido e ou devida compensação, associado à
liberdade de iniciativa privada reconhecida no artigo 61.º, n.º 1.
No entanto, pelas razões que referimos anteriormente – a desagregação
da uniformidade da base tributável, em consequência da nova conformação dos
factores económicos, que se movem em espaços amplos de liberdade de
circulação e de escolha à escala global –, a avaliação do carácter confiscatório da
tributação não se compagina hoje com uma análise simplista das taxas
aplicáveis aos rendimentos (seja a taxa efectiva ou a taxa marginal máxima),
pois a “mão redistributiva do Estado”, que cumpre a função de correcção face à
redistribuição do mercado, pode, tendo em conta as circunstâncias e o tempo,
como o Tribunal Constitucional Alemão recentemente afirmou, ultrapassar a
“barreira psicológica” dos 50%, sem que a tributação deva ser considerada
confiscatória60 – designadamente, no caso da tributação de rendimentos mais
60 O BVerfG abandonou a tese do limite dos 50% (“Halbteilungsgrundsatz”), que, aliás, apenas tinha sido afirmada, em certo momento, a propósito da tributação do património, e não do rendimento – cfr. a Sentença de 18.01.2006 – 2 BvR 2194/99,
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elevados, se, olhando ao rendimento disponível do contribuinte, se concluir que
o rendimento líquido, após a tributação, é ainda de montante significativo61.
Tanto mais que uma das finalidades constitucionais da tributação dos
rendimentos no quadro do Estado Social é a da diminuição das desigualdades
(artigo 104.º, n.º 1)62, importante sobretudo em países, como o nosso, em que,
como se comprova nos últimos relatórios da OCDE, é enorme o leque de
rendimentos e crescente a desigualdade social.
4.10. Refira-se, por último o problema de saber se, apesar de tudo, não
será a medida inconstitucional por violação do princípio da protecção da confiança
legítima, dado que os pensionistas adquiriram o direito a uma pensão nos
termos legais em vigor na época, tendo confiado em que poderiam contar
vitaliciamente com os montantes estabelecidos ou, pelo menos, em que estes
não sofreriam reduções em medida exorbitante.
Deve começar por lembrar-se que o Tribunal Constitucional formulou e
tem adoptado consistentemente critérios para determinação do que deve
entender-se, em geral, por protecção da confiança legítima, que transcrevemos
em uma das suas formulações mais densas: “para que para haja lugar à tutela
jurídico-constitucional da «confiança» é necessário, em primeiro lugar, que o
Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de
gerar nos privados «expectativas» de continuidade; depois, devem tais
expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro
lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspectiva
de continuidade do «comportamento» estadual; por último, é ainda necessário
que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a
61 Na mesma decisão, o Tribunal alemão considera que o limite da progressividade é determinado pela proporcionalidade e tem como limite-regra “o prejuízo essencial no êxito económico” (“darf (…) nicht so weit gehen, dass der wirtschaftliche Erfolg grundlegend beeinträchtigt wird”). 62 Nesse sentido, pronunciando-se contra o limite dos 50%, em defesa do princípio do Estado Social, v. o voto de vencido de Böckenförde à Sentença do BVerfG de 22. 6. 1995 - 2 BvL 37/91.
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não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa. Este
princípio postula, pois, uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da
comunidade na estabilidade da ordem jurídica e na constância da actuação do
Estado. Todavia, a confiança, aqui, não é uma confiança qualquer: se ela não
reunir os quatro requisitos que acima ficaram formulados a Constituição não
lhe atribui protecção” (Acórdão n.º 128/2009).
Como resulta da jurisprudência do Tribunal, há duas ideias
fundamentais que devem ser ponderadas na aplicação prática do princípio.
Por um lado, a ideia de que o princípio do Estado de Direito Democrático
implica um mínimo de certeza e de segurança jurídica, que tem de valer e ser
respeitado por todos no quadro da comunidade política – na perspectiva das
pessoas, isso significa a protecção das suas expectativas legítimas, isto é, da
confiança depositada nas regras jurídicas definidas pelo Estado e, em especial,
pelo legislador.
Por outro lado, a ideia complexa de que o interesse público fundamental
da comunidade prevalece, em princípio, sobre os interesses particulares, e de
que o legislador democrático que o interpreta dispõe, nos termos da
Constituição, de uma liberdade de conformação das relações jurídicas – na
perspectiva do legislador, isso significa a possibilidade de introduzir
modificações na ordem jurídica em sentido desfavorável às expectativas das
pessoas se assim o exigir um interesse público prevalecente.
Assim, em geral, não será legítima uma mutação da ordem jurídica que
afecte expectativas legítimas em termos com que, razoavelmente, os
destinatários das normas não possam contar, por ser intolerável, arbitrária ou
demasiado opressiva. Pelo contrário, será admissível a afectação de expectativas
jurídicas legítimas, quando ela seja ditada pela necessidade de salvaguardar
direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se
prevalecentes segundo um critério de proporcionalidade.
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O Tribunal Constitucional também já teve oportunidade de se
pronunciar várias vezes sobre o alcance do princípio em matéria de segurança
social, designadamente no Acórdão n.º 188/2009, a propósito das modificações
no regime da segurança social, que implicaram, como vimos, regras mais
desfavoráveis sobre as condições de aposentação, o cálculo de pensões e a idade
da reforma – tendo então sintetizado a evolução da sua jurisprudência sobre o
problema.
Desde logo, a jurisprudência constitucional, tal como a doutrina,
reconhece que a Constituição consagra o direito à segurança social, mas é
omissa sobre o sistema de pensões e prestações do sistema, de modo que o
legislador dispõe de uma ampla margem de conformação na concretização
daquele direito, no quadro dos princípios constitucionais – isso incluiria o
poder de alterar as condições e requisitos de fruição e de cálculo das prestações
sociais e, designadamente, das pensões, em sentido desfavorável aos
beneficiários, desde que o interesse público o justificasse, nomeadamente para
assegurar a sustentabilidade financeira do sistema (v., por exemplo, o Acórdão
n.º 509/2002).
Nesta linha de entendimento, Tribunal Constitucional tem repetidamente
afirmado que os contribuintes para os sistemas de segurança social não
possuem um direito à não-frustração de expectativas jurídicas ou à manutenção
do regime legal em relações jurídicas duradoiras ou relativamente a factos
complexos já parcialmente realizados – e, concretamente, não possuem
qualquer expectativa legítima na pura e simples manutenção do status quo
vigente em matéria de pensões (cfr. o Acórdão n.º 99/99 e, mais recentemente,
os Acórdãos n.ºs 302/2006 e 351/2008).
Até agora, porém, no entanto, o Tribunal Constitucional só se tem
pronunciado relativamente às expectativas dos contribuintes para a segurança
social, titulares de “direitos em formação”, que distingue das situações dos que
já passaram ao estatuto de aposentados, que seriam titulares de “direitos
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adquiridos” – e que, por isso, não têm sido abrangidos pelas mudanças
desfavoráveis do sistema.
Como dissemos atrás, não é de excluir que o Tribunal Constitucional
venha a ter de defrontar-se com esse novo problema – designadamente, o de
saber se é constitucionalmente legítimo que o legislador, fundado no princípio
da justiça intergeracional, reduza o montante de pensões atribuídas, no
contexto da necessidade de garantir a (auto)sustentabilidade do sistema da
segurança social.
No entanto, não é disso que se trata aqui, já que a CES constitui uma
medida extraordinária de solidariedade, que reduz temporariamente as pensões
de valor mais elevado, com a finalidade de garantia, pelo lado da despesa, da
sustentabilidade do sistema prestações públicas de segurança social – no que
respeita ao primeiro pilar, corresponde até, na sua maior parte, a uma
suspensão do pagamento, que vai a par da redução dos salários dos
trabalhadores em funções públicas.
Esta redução afecta expectativas legítimas e consolidadas de alguns
pensionistas, devendo o Tribunal Constitucional avaliar se há, no caso, uma
afectação de expectativas legítimas em termos com que, razoavelmente, os
destinatários das normas não pudessem contar, por ser intolerável, arbitrária ou
demasiado opressiva, ou se há uma razão impreterível de interesse público que,
em termos de proporcionalidade, deva prevalecer sobre essas expectativas.
Por nossa parte, concluímos, com base no que atrás se disse, que não se
comprova o carácter desproporcional da medida, tendo em conta, numa
ponderação abstracta de valores, o seu limitado âmbito subjectivo, o seu
carácter não excessivo ou de excesso justificado, bem como, acima de tudo, o
seu carácter transitório e o peso do interesse público imperioso em que se
fundamenta.
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V. CONCLUSÕES
A partir das reflexões feitas e com base na argumentação aduzida,
formulamos as seguintes conclusões, em resposta à Consulta:
1. A reformulação dos escalões de rendimento e respectivas taxas de
imposto determinada no artigo 186.º da LOE/2013, especialmente se conjugada
com a alteração da “taxa adicional de solidariedade” operada pelo mesmo
preceito, não afronta o disposto no artigo 104.º, n.º 1, da Constituição, dado que
não deixa de consagrar escalões de tributação do rendimento, mantendo a
progressividade do imposto, ainda que em menor grau – é assim, tendo em
conta que a progressividade do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares
constitui uma directriz que deve ser cumprida pelo legislador, mas sem
prejuízo de este, no quadro da liberdade de conformação que a sua
legitimidade democrática lhe confere, poder determinar, em concreto, a medida
da progressividade, sendo totalmente anacrónica e desprovida de sentido a ideia
de que uma redução dos escalões poderia configurar um retrocesso
constitucionalmente proibido.
2. A imposição, pelo artigo 187.º da LOE/2013, da sobretaxa de 3,5%
sobre todos os rendimentos tributáveis em sede de IRS:
a) não ofende o princípio da progressividade do imposto, porque assegura
uma taxa efectiva progressiva, a partir da dedução, na base do rendimento
colectável, do valor anual da retribuição mínima garantida;
b) respeita e até promove a universalidade e a unidade do imposto, dado
que, quanto à sua incidência objectiva, abrange rendimentos que, em regra,
ficam sujeitos a taxas especiais mais favoráveis;
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c) cumpre os princípios da equidade e da justiça fiscal ao isentar o mínimo
para uma existência condigna da respectiva incidência;
d) não viola os princípios da proporcionalidade e da proibição do
arbítrio, da segurança jurídica e da protecção da confiança, visto que não se
pode afirmar que a medida seja manifestamente excessiva, desproporcionada
ou arbitrária, em razão da finalidade que a justifica, somada à sua
transitoriedade.
3. A contribuição extraordinária de solidariedade (CES), criada pelo artigo
78.º da LOE/2013, embora represente uma medida adoptada com fundamento
no contexto excepcional e extraordinário da situação de emergência económico-
financeira, e o seu alcance seja limitado no tempo, deve ser avaliada também no
contexto da sustentabilidade do sistema de segurança social e da necessidade
da sua reforma de acordo com os princípios da solidariedade e da justiça
intergeracional.
3.1. A CES abrange todas as pensões integradas no primeiro pilar da
protecção social (regimes públicos, financiados segundo o sistema PAYG, e parte
das pensões integradas no segundo pilar da protecção social (regimes
complementares de iniciativa colectiva, públicos ou privados) – mas não se aplica
às contribuições do beneficiário (no segundo pilar) e não abrange os benefícios
gerados pelo terceiro pilar da protecção social (regimes complementares de
iniciativa individual).
3.2. A CES implica uma redução das pensões superiores a 1.350€,
abrangendo apenas 8,1% dos pensionistas, e a parte deduzida abate ao
rendimento líquido sujeito a tributação em IRS.
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3.3. A CES configura uma medida de redução de despesa (artigo 78.º, n.ºs 1 e
2), complementada por uma contribuição extraordinária de solidariedade (artigo
78.º, n.º 3), visando finalidades específicas parafiscais, no quadro da contenção
da despesa pública do Orçamento da Segurança Social.
3.4. A CES não configura um “imposto de classe”, mas uma contribuição
solidária no contexto de um sistema, equivalente, no que respeita ao primeiro
pilar, à redução dos salários dos “trabalhadores em funções públicas” que vem
sendo aplicada anualmente desde 2011 – não estando em causa o cumprimento
das exigências constitucionais de unidade de tributação do rendimento das
pessoas singulares, nem havendo a desconsideração da capacidade contributiva
ou da igualdade tributária.
3.5. A CES não fere a garantia fundamental do direito de propriedade, mesmo
entendida esta em sentido amplo, pois não atinge direitos patrimoniais sobre
bens concretos dos pensionistas, dado que incide essencialmente sobre as
pensões pagas em regime de PAYG, financiadas pelos contribuintes do sistema
actualmente no activo e não por capitais próprios dos pensionistas – e, na parte
em que abrange sistemas de capitalização, as contribuições dos beneficiários
estão expressamente excluídas do âmbito de aplicação da medida, e os regimes
de iniciativa individual não são atingidos pela medida.
3.6. A CES não afecta a garantia fundamental do mínimo para uma
existência condigna, visto que abrange apenas as pensões de valor mensal
superior a 1.350€ (não se aplicando a mais de 90% dos pensionistas) e estabelece
uma cláusula de salvaguarda pela qual se impede que da sua aplicação resulte
uma prestação mensal total ilíquida inferior a esse valor de 1.350€.
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3.7. A CES não viola o princípio da proporcionalidade, nas suas
dimensões de adequação – são evidentes as necessidades de financiamento do
sistema financeiro da segurança social –, de necessidade – é óbvio que este é o
único tipo de medida capaz de contribuir no imediato para o objectivo do auto-
financiamento do sistema.
3.8. A CES também não ofende o princípio da proporcionalidade em
sentido estrito ou da equidade no que respeita às taxas estabelecidas no artigo
78.º, n.º 1, pois o sobreesforço efectivo que representa – sobretudo tratando-se
de uma medida excepcional e temporária e tendo em consideração que é
parcialmente compensada pela redução do valor do IRS a pagar –, não se pode
considerar exagerado em termos absolutos ou relativos. E, relativamente às
taxas mais elevadas constantes do n.º 2, há a considerar que a redução
“enorme” desse pequeno universo de pensões se pode de algum modo
fundamentar no princípio da justiça intrageracional, pois se aplica àqueles que
vêm beneficiando (e continuarão a beneficiar) de condições relativamente
privilegiadas que justificaram a atribuição daqueles valores de pensões –
sobretudo tendo em conta que o rendimento líquido, após a tributação, é ainda
de montante significativo.
3.9. Finalmente, a CES também não põe em causa o princípio da
segurança jurídica, na dimensão da protecção da confiança legítima, decorrente do
Estado de Direito Democrático.
A redução de rendimento que comporta, ainda que temporária, afecta
realmente as expectativas legítimas e consolidadas de alguns pensionistas, mas
não em termos com que, razoavelmente, estes não pudessem contar, dado que
não é intolerável, arbitrária ou excessiva, e há uma razão impreterível de
interesse público que, em termos de proporcionalidade, deva prevalecer sobre
essas expectativas.
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É isso que resulta, numa ponderação abstracta de valores, do limitado
âmbito subjectivo da medida, do seu carácter não excessivo ou de excesso
justificado, bem como, acima de tudo, do seu carácter transitório e do peso do
interesse público imperioso em que se fundamenta.
Tal é, salvo melhor, o nosso parecer.
Coimbra, 21 de Janeiro de 2013