josÉ aparecido de oliveiratede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/820/1/dissertacao.pdfaparecido de...

171
JOSÉ APARECIDO DE OLIVEIRA ZEUS VERSUS PROMETEU: O embate discursivo nos artigos opinativos favoráveis e contrários à pesquisa com células-tronco embrionárias Universidade Metodista de São Paulo Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social São Bernardo do Campo – SP, 2008

Upload: others

Post on 28-Jun-2020

2 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

JOSÉ APARECIDO DE OLIVEIRA

ZEUS VERSUS PROMETEU:

O embate discursivo nos artigos opinativos favoráveis e

contrários à pesquisa com células-tronco embrionárias

Universidade Metodista de São Paulo

Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social

São Bernardo do Campo – SP, 2008

2

JOSÉ APARECIDO DE OLIVEIRA

ZEUS VERSUS PROMETEU:

O embate discursivo nos artigos opinativos favoráveis e

contrários à pesquisa com células-tronco embrionárias

Dissertação apresentada em cumprimento parcial às exigências do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Metodista de São Paulo, para obtenção do grau de Mestre. Orientador: Prof. Dr. Isaac Epstein

Universidade Metodista de São Paulo

Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social

São Bernardo do Campo – SP, 2008

3

FOLHA DE APROVAÇÃO

A dissertação ZEUS VERSUS PROMETEU: o embate discursivo nos artigos opinativos

favoráveis e contrários à pesquisa com células-tronco embrionárias, elaborada por José

Aparecido de Oliveira, foi defendida no dia 24 de março de 2008, tendo sido:

( ) Reprovada

( )Aprovada, mas deve incorporar nos exemplares definitivos modificações sugeridas

pela banca examinadora, até 60 (sessenta) dias a contar da data da defesa.

( ) Aprovada

(X) Aprovada com louvor

Banca Examinadora:

Prof. Dr. Isaac Epstein – UMESP ________________________________________________

Profa. Dra. Elizabeth M. Gonçalves – UMESP _____________________________________

Profa. Dra. Dinah Aguiar Población – ECA-USP ___________________________________

Área de Concentração: Processos Comunicacionais

Linha de Pesquisa: Comunicação Especializada

Projeto Temático: Trânsito da Comunicação Científica Primária (Interpares) para a

Comunicação Secundária (Comunicação Pública da Ciência)

4

EPÍGRAFE

Um homem que tenha algo a dizer e não encontre ouvintes

está em má situação. Mas pior ainda estão os ouvintes que

não encontrem quem tenha algo a lhes dizer.

(Bertolt Brecht)

5

AGRADECIMENTOS

Tenho uma enorme dívida com a profa. Graça Caldas, que muito contribuiu para os

apontamentos iniciais do projeto que resultou nessa dissertação mediante uma generosa

acolhida;

A outra dívida é com a profa. Elizabeth Gonçalves, que foi a orientadora primeira de toda a

pesquisa, mediante as exposições, tarefas e o apoio na elaboração de papers nos dois

semestres em que fui seu aluno. Esta dissertação buscou seguir todos os seus apontamentos e

sugestões;

Agradeço muitíssimo ao prof. Isaac Epstein, pela consistente e apropriada orientação, repleta

de paciência, sobretudo com contribuição nos aspectos que consolidaram a pesquisa;

E também à profa. Dinah Población, pela leitura atenta, disponibilidade e pertinentes

contribuições.

Não poderia deixar de relatar o quanto é imprescindível para a minha existência a companhia

afetuosa, fraterna e estimulante de Maísa Sangy, com quem tenho o privilégio de dividir as

tardes de sol, as noites de inverno e as manhãs desejadas.

Ao Deus supremo, poderoso, fiel e misericordioso, razão maior de minha vida e meu sustento

contínuo, o rochedo que, em Cristo Jesus, depositei minha confiança nos dias difíceis e

sombrios. A ele, honra, glória e louvor, pelos séculos dos séculos. Amém.

Essa pesquisa foi realizada com o apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de

Pessoal de Nível Superior (CAPES), da qual fui bolsista.

6

SUMÁRIO Página

Introdução 10

I. Procedimentos teóricos-metodológicos 14

1. Procedimentos teóricos – a Análise de Discurso 16 2. As condições de produção 24

II. Aspectos científicos da pesquisa com células-tronco 29

1. Origens da pesquisa com células-tronco 29 2. Definição de células-tronco 31 3. Classificação e origem das células-tronco 32 4. Clonagem reprodutiva 32 5. Clonagem terapêutica 34 6. Potencial terapêutico das células-tronco 35 7. Desafios e reflexões sobre a clonagem terapêutica 39

III. Aspectos éticos e religiosos da pesquisa com células-tronco 41

1. Distinção entre ética, valores e moral 41 2. Histórico e definições do termo bioética 43 3. Uma ética aplicada 44 4. Uma ética principialista 45 5. Resistências de ordem moral – desafios de cunho ético 48 6. Fundamentos teológicos e doutrinários do discurso bioético 50 7. Secularização e modernidade 53

IV. Aspectos jurídicos das pesquisas com células-tronco 57 1. Biodireito – um novo paradigma de juridicidade 57 2. A regulamentação internacional 58 3. A regulamentação no Brasil e a Lei de Biossegurança 59 4. A ação direta de inconstitucionalidade – ADI 3510 64

V. Os diferentes tempos que envolvem as pesquisas com células-tronco 68

1. Tempo e história 68 2. Tempo da ciência 69 3. Tempo do jornalismo científico 70 4. Tempo da opinião pública 71 5. Tempo da decisão política 72 6. O tempo do consenso 74

7

VI. Análise de Discurso do corpus da pesquisa 79 VII. Conclusão 95

1. A tentação do saber restrito – Prometeu versus Zeus 95 2. Considerações finais 98

Referências 103

Anexos 114

8

RESUMO

A partir da perspectiva da Análise de Discurso de linha francesa, este trabalho analisa os

discursos especializados (científico, religioso, jurídico, jornalístico, político) presentes em

artigos na mídia massiva sobre a cobertura da Lei de Biossegurança, sobretudo a partir do

ajuizamento da ADI Nº 3510, pelo ex-procurador geral da República, Claudio Fontelles. Os

dados são artigos opinativos publicados nos jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo,

no primeiro semestre de 2005, bem como os documentos-fonte do Magistério Católico citados

(Evangelium Vitae; Declaração sobre a Produção e o Uso Científico e Terapêutico das

Células Estaminais Embrionárias Humanas; e a Instrução Donum Vitae,). Pretende-se

verificar o modus operandi da linguagem nestes discursos, sobretudo os aspectos ideológicos

de sua construção como elementos persuasivos. Os resultados da pesquisa permitem concluir

a presença de elementos dogmáticos nestes discursos, alinhados com o posicionamento

ideológico dos grupos aos quais pertencem os articulistas, bem como a presença de elementos

mítico-filosófico-religiosos, conforme a noção de Discurso Fundador, de Eni Orlandi.

Palavras-chave: análise de discurso, bioética, células-tronco, ciência e religião, divulgação

científica.

RESUMEN

El presente trabajo investiga los discursos especializados (científico, religioso, periodístico,

político) presentes en los artículos publicados por los medios de difusión masiva bajo la

cobertura de la Ley de Bioseguridad, tomando como referencia la Análisis del Discurso de

línea francesa, partiendo, sobretodo, de la valoración de la ADI No 3510, por el ex-procurador

general de la República, Claudio Fontelles. Los datos son artículos emisores de estados de

opinión publicados en los periódicos Folha de S. Paulo y O Estado de S. Paulo, durante el

primer semestre de 2005, así como en los documentos-fuente del Magisterio Católico

(Evangelium Vitae; Declaración sobre la Producción y el Uso Científico-Terapéutico de las

Células Estaminales Embrionarias Humanas, y la Instrucción Donum Vitae). Se pretende

verificar el modus operandi del lenguaje en los referidos discursos, fundamentalmente en lo

que concierne a los aspectos ideológicos de su construcción como elementos persuasivos. Los

resultados de la investigación permiten distinguir la presencia de elementos dogmáticos en

tales discursos, alineados con el posicionamiento ideológico de los grupos a los cuales

pertenecen los articulistas, así como la presencia de elementos mítico-filosófico-religiosos,

conforme a la noción de Discurso Fundador, de Eni Orlandi.

9

Palabras-clave: análisis de discurso, bioética, células troncales, ciencia y religión,

divulgación científica.

ABSTRACT

From the perspective of French Discourse Analysis, this work examines specialized

discourses (scientific, religious, judicial, journalistic, political) found in mass media featured

articles about the scope of the Biosafety Law, mainly about ADI # 3510 judged by the

Republic ex-solicitor general Claudio Fontelles. Its data are opinion featured articles issued in

the papers Folha de S. Paulo and O Estado de S. Paulo, in the first semester of 2005, as well

as the quoted source-documents from the Catholic Magisterium (Evangelium Vitae;

Document about the Production and Scientific and Therapeutic Utilization of Human

Embryonic Stem Cells; and the Donum Vitae Instruction). It’s intended to verify the language

modus operandi in these discourses, especially the ideological features found in their

construction as persuasive elements. The research results allow the conclusion that there are

dogmatic elements in these discourses, aligned with the ideology of the groups to which the

writers belong, as well as mythical-philosophical-religious elements, according to the notion

of Founder Discourse (Discurso Fundador) by Eni Orlandi.

Key words: discourse analysis, bioethic, trunk cells, science and religion, scientific

publicizing.

10

INTRODUÇÃO

Em recente entrevista, a geneticista Mayana Zatz comentou o paradoxo da ignorância

científica que cerca a maioria esmagadora das pessoas que, mesmo vivendo cercadas de

benefícios da alta tecnologia, desconhecem o funcionamento da ciência e são vítimas da

manipulação de informações sobre panacéias da indústria farmacêutica (ZATZ, tv, 2006).

Em um mundo onde a ciência e tecnologia passaram a fazer parte do cotidiano das

pessoas, a demanda por informações sobre Ciência e Tecnologia (C&T) se traduz no anseio

popular em acompanhar os progressos e os desafios da vida contemporânea: cercadas de

objetos, aparelhos e serviços de tecnologia, as pessoas tornaram-se consumidoras não só de

C&T, mas também de informações sobre C&T. Essas inovações estão incorporadas no

cotidiano de tal forma que “a tecnociência insinua-se até em nossas maneiras de pensar

(microcomputadores), de fazer amor (pílula anticoncepcional), de dar a vida ou de ir para a

morte (bio ou tanatos tecnologia)”, nas palavras de Chrétien (1991, p. 17).

O desconhecimento sobre a ciência afasta o grande público das decisões sobre o rumo

da pesquisa científica, mesmo com os esforços decorrentes do trabalho de divulgação

científica, empreendida não só por jornalistas, mas pelos próprios cientistas, educadores,

autores de ficção científica, etc. Todos conscientes do desafio de partilhar um conhecimento

antes restrito a pesquisadores, mediante recursos lingüísticos, retóricos e visuais, de forma a

alcançar a audiência do grande público (EPSTEIN, 2001, p. 253).

Essa mediação entre especialistas e não-especialistas, realizada por estes profissionais

com escolhas lexicais e formações discursivas próprias (FIORIN, 2001, p. 32), ganha maior

destaque quando a divulgação científica precisa levar o debate científico ao grande público ou

atraí-lo para o mesmo, pois nem só de declarações e feitos de cientistas se alimenta o

noticiário sobre ciência e tecnologia (BELDA, 2003, p. 21). Surge então a questão da validade

da função social, segundo Gnerre (1998, p. 23), das linguagens especiais, que “excluem da

comunicação as pessoas da comunidade lingüística externa ao grupo que usa a linguagem

especial, cuja função é reafirmar a identidade dos integrantes do grupo reduzido com acesso à

linguagem especial”.

É o que ocorreu, sobretudo nos primeiros seis meses de 2005, quando a sociedade

brasileira debateu e a Câmara dos Deputados aprovou a Lei de Biossegurança, que autoriza,

em território brasileiro, o uso de células-tronco embrionárias em pesquisas destinadas à cura

ou tratamento de doenças degenerativas. Tão logo foi aprovada a lei, restou aos segmentos

11

contrários um instrumento jurídico que barrasse a permissão legal para as pesquisas. Foi

impetrada então a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3510), ajuizada pelo ex-

procurador-geral da República, Claudio Fontelles, em maio de 2005. Caberá ao Supremo

Tribunal Federal, provavelmente em março de 2008, apreciar a ADI 3510 e manter ou não a

permissão para as pesquisas com células-tronco embrionárias.

O debate ético que envolveu as pesquisas com células-tronco trouxe para a arena do

jornalismo científico formadores de opinião como juristas, religiosos, lideranças políticas,

cientistas, jornalistas, além do público leigo, que enviou à redação comentários sobre os

discursos emitidos em artigos nos jornais. Tal debate nos remete não somente à função

informativa do jornalismo científico, mas também à sua função social, conforme Wilson

Bueno (1984, p. 37), capaz de inserir a sociedade e os cientistas em um debate com vistas aos

interesses e objetivos da produção científica.

Graça Caldas (2004b) questionou recentemente a falta de trabalhos que se propuseram

a analisar o papel do jornalismo científico numa perspectiva política e econômica, em que as

relações de poder envolvendo as políticas científicas e tecnológicas fossem, de fato, objeto de

debate. Em assuntos polêmicos, como a clonagem e transgênicos, em que a própria

comunidade científica divide-se com argumentos contrários e favoráveis, a opinião pública

fica confusa, sem conseguir tomar decisão.

No caso do embate sobre as pesquisas com células-tronco, a opinião pública se dividiu

ao se deparar com dezenas de enunciados, todos pretensamente favoráveis à vida, numa

guerra entre fervorosos ligados a uma ideologia ético-religiosa radical de um lado, bem como

arautos ufanistas com promessas de longevidade e cura para moléstias degenerativas, do

outro. O grande público, beneficiário primeiro da discussão, observou de longe os discursos

repletos de estratégias retóricas estranhas ao embate acadêmico que deve ocorrer entre ciência

e religião, entre ética e compromisso social, isentos de interesses coletivos ou particulares.

Houve mais espaço para o dogmatismo e o fundamentalismo religioso e científico.

Dada a heterogenia do discurso científico presente nesses artigos, bem como a noção

de polifonia, conceitos pertinentes à Análise de Discurso, surgiu um problema para a

compreensão dos elementos discursivos da narrativa jornalística, sobretudo no embate

ocorrido entre os diversos atores sociais sobre a liberação ou não de pesquisas com células-

tronco embrionárias.

A presente pesquisa teve como objetivo geral examinar como foram construídos os

diferentes discursos presentes nos artigos (religioso, político, jurídico, científico, ético)

favoráveis ou não sobre as pesquisas com células-tronco embrionárias, publicados nos jornais

12

Folha de S. Paulo e o Estado de S. Paulo, no primeiro semestre de 2005. Buscou-se verificar

se foram formulados e construídos a partir dos contextos específicos de seus emissores (bispo,

ministro, jurista, cientista, jornalista, equipe editorial, etc.), tendo em vista que o discurso de

divulgação científica é uma apropriação social do discurso científico na medida em que o

reformula segundo lógicas midiáticas em um discurso próprio, conforme Belda (2003) e

Zamboni (2001). A partir deste, surgiram dois objetivos específicos:

• Avaliar de que forma os diferentes atores envolvidos no embate sobre a

pesquisa sobre células-tronco embrionárias se apropriaram dos discursos

especializados pertinentes ao grupo político-social a que pertencem, e o

reformularam com vistas a atrair a atenção e a simpatia da opinião pública,

com vistas a influenciar a decisão do Supremo Tribunal Federal na apreciação

da ADI 3510;

• Identificar como foram construídos os discursos pró e contra a pesquisa com

células-tronco e em que bases científico-ético-religiosas eles se

fundamentaram.

Com base nas questões iniciais e no levantamento bibliográfico preliminar, foi

possível testar algumas hipóteses centrais que norteavam este trabalho e outras derivadas:

1. Apesar de seu caráter dialógico, os discursos pró e contra a pesquisa com células-

tronco embrionárias são dogmáticos1, ou seja, não estabelecem uma relação dialética

com seus oponentes, e tendem a desqualificar a argumentação oponente, quer por

argumentos científicos, quer por argumentos religiosos, quer por argumentos éticos;

2. Os discursos pró e contra a pesquisa com células-tronco embrionárias são enunciados

a partir de um contexto político-social específico, o que faz com que seus atores

1 Utilizamos este termo a partir da definição, por extensão de sentido, do Dicionário Eletrônico Houaiss: qualquer pensamento ou atitude que se norteia por uma adesão irrestrita a princípios tidos como incontestáveis; que se apresenta com caráter de certeza absoluta. A obra de Bakhtin marca a célebre oposição entre discurso monológico e discurso dialógico. Monológico é o discurso de uma só voz, e dialógico ou polifônico, o discurso de múltiplas vozes. Essa oposição tornou-se célebre principalmente pelo fato de que ela permite denunciar discursos dogmáticos, uma vez que todo discurso dogmático é necessariamente monológico, já que ele quer fazer com que se ouça nele apenas uma voz, isto é, a sua (AMORIM, 2002). Poderíamos também utilizar, por derivação de sentido, o termo fundamentalismo – qualquer corrente, movimento ou atitude, de cunho conservador e integrista, que enfatiza a obediência rigorosa e literal a um conjunto de princípios básicos – mas o mesmo possui sua acepção mais voltada a conotações religiosas, dado que, primeiramente, nomeia o movimento conservador de diferentes tendências protestantes no início do século XX nos Estados Unidos.

13

estejam constrangidos a emitir posições conforme o grupo político-social a que

pertencem, o que revela o posicionamento ideológico dos mesmos;

Hipóteses derivadas:

1. Os discursos pró e contra a pesquisa com células-tronco embrionárias são constituídos,

muitas vezes, de argumentos com fundamentações ético-religiosas oriundas de outros

documentos ou saberes;

2. Os discursos pró e contra a pesquisa com células-tronco embrionárias não são

estanques, o que revela seu caráter de intertextualidade. Eles se apóiam em outros

discursos, diferentes de suas temáticas centrais. O discurso de fundamentação ética se

apóia no discurso religioso; o discurso jurídico se ampara tanto no discurso ético e

religioso, como também no discurso científico.

A importância deste trabalho consiste em oferecer uma contribuição ao estudo e

prática do Jornalismo Científico, sobretudo em seu papel social de informar e formar a

opinião pública, trazendo o público leitor de ciência e tecnologia para o campo da discussão

sobre a política científica, com vistas a qualificá-lo para que, por meio de seus representantes

políticos ou militantes sociais, tornar-se sujeito ativo no processo de formulação de políticas

públicas de C & T para o país.

Outro dado que justifica o interesse pela pesquisa está em mensurar a participação de

diferentes atores sociais que se juntam ao campo da divulgação científica, esta não mais

restrita aos profissionais da ciência ou da própria comunicação. Toda vez que a ciência e suas

políticas são alvo de questionamentos de cunho ético ou moral, diferentes segmentos da

sociedade se juntam para procurar influir no processo decisório que irá trazer o ordenamento

jurídico sobre a questão – o que traz a possibilidade de geração de consenso e democratização

da ciência.

Por outro lado, a pesquisa também é relevante por determinar como os discursos que

pretensamente se dizem a favor vida ou do todo social, dos valores éticos ou em defesa do

desenvolvimento científico e sua capacidade de prolongar ou melhorar a vida, tem um mesmo

matiz – o dogmatismo, além de representarem primeiramente interesses coletivos alheios aos

propostos por seus emissores.

14

CAPÍTULO I – PROCEDIMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

Tendo em mente que a linguagem é usada pela mídia como elemento persuasivo, pois

ao refletir a realidade ela a “desvia, interpreta, reformula, de modo a criar condições para que

o leitor venha a interpretar a realidade sob o mesmo prisma” (CALDAS, 2004a, p.3), bem

como o papel persuasivo dos artigos assinados publicados na grande imprensa, redigidos por

colunistas convidados, este trabalho toma a Análise de Discurso de Linha Francesa como

metodologia de pesquisa.

A Análise de Discurso, sobretudo as noções pós-estruturalistas da Linha Francesa,

possuem forte ênfase na relação entre linguagem e ideologia, matizes substanciais para as

formações discursivas. O pós-estruturalismo rompeu com as visões realistas da linguagem e

rejeitou a noção de sujeito unificado coerente, mediante a noção de que os discursos são

historicamente construídos a partir de recursos lingüísticos preexistentes (GILL, 2002, p.246),

O rápido interesse pela análise de discurso, nos últimos anos, é tanto uma

conseqüência, como uma manifestação da “virada lingüística” que ocorreu nas artes,

humanidades e nas ciências sociais. A “virada lingüística” foi precipitada por críticas ao

positivismo, pelo prodigioso impacto das idéias estruturalistas e pós-estruturalistas, e pelos

ataques pós-modernistas à epistemologia (GILL, 2002, p.245).

A análise de discurso nos estudos atuais está em um terreno de encontro de disciplinas

(FERREIRA, 2003, p. 263). Essa interdisciplinaridade reforça também a necessidade de uma

revisão bibliográfica para estudar os diferentes discursos encontrados no discurso de

divulgação científica, uma vez que os discursos religioso, jurídico, político, etc, possuem

características discursivas próprias.

(...) uma série de atores sociais que se apropriam de trechos do discurso científico para apoiarem publicamente seus discursos, persuasivos no sentido de seus interesses. E, ao envolver interesses opostos, o debate público instalado por esses atores sociais dinamiza, do ponto de vista retórico, argumentativo, o noticiário científico, que passa a influenciar as decisões de política científica (BELDA, 2003, p.21).

Este interesse interdisciplinar é útil, pois o corpus da pesquisa abrange discursos

especializados emitidos em artigos assinados por diferentes autoridades que se inseriram no

debate sobre a pesquisa com células-tronco embrionárias. Neste embate, cada discurso

especializado trouxe para si a autoridade da comunidade que representa, o que corrobora para

a noção de persuasão. Se para Coracini (1991, p. 45), ocorre na ciência uma dominação “com

relação ao grande público, que se atemoriza diante da terminologia incompreensível e da

15

sabedoria mítica, provocando uma reação de inferioridade e admiração”, muito mais se

poderá observar no discurso emitido por um bispo católico, um juiz de última instância, um

jornalista respeitado, etc.

A presente pesquisa partiu de uma revisão bibliográfica destes referenciais teóricos,

mediante a leitura de alguns autores, sobretudo em língua portuguesa, que trabalham com a

Análise de Discurso a partir da interação de um modo de enunciação e de um lugar social

(FERREIRA, 2003, p. 263). Além da revisão da literatura, consultas a trabalhos recentes

como teses, dissertações e demais pesquisas apresentadas em encontros acadêmicos foram

consultadas.

O corpus da pesquisa compreende os artigos opinativos (assinados) publicados nos

jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, emitidos por religiosos, juristas, jornalistas,

cientistas e políticos, no período entre fevereiro a junho de 2005. A razão pela escolha destes

dois veículos se deu por serem os dois principais jornais do Estado, com ampla tiragem em

todo o território nacional e de grande acesso à opinião pública. O primeiro optou por cobrir o

tema da pesquisa com células-tronco embrionárias a partir de um debate suscitado pela ação

direta de inconstitucionalidade (ADI 3510), impetrada pelo então procurador-geral da

República, Cláudio Fontelles, após a aprovação da Lei de Biossegurança. Na cobertura, o

jornal buscou opiniões divergentes, dando oportunidade para que contrários e favoráveis

manifestassem suas opiniões. O segundo veículo optou por tratar o assunto a partir de seus

editoriais, não menos opinativos, mas sem o cuidado de colocar visões opostas e depoimentos

de pessoas ligadas aos interesses que envolvem a clonagem terapêutica. Já o período em

questão se deve ao momento em que a Lei de Biossegurança foi aprovada (2 de março de

2005), bem como o conseqüente ajuizamento da ADI 3510 do procurador Cláudio Fontelles.

Os principais argumentos destes artigos também foram levantados, buscando encontrar

os mais predominantes: político, técnico, econômico, jurídico, ético, etc, mediante uma breve

análise quantitativa (ver anexo 2), com o objetivo de oferecer suporte à análise realizada. Não

houve a pretensão de utilizar a metodologia analítica da Análise de Conteúdo, uma vez que o

corpus da pesquisa mostrou-se bastante limitado (oito artigos) para tanto.

Outro procedimento metodológico primordial para subsidiar a tarefa analítica do

corpus foi realizar uma revisão da literatura sobre os aspectos conceituais que emergem da

leitura dos artigos em questão. Neste caso, foram estudados os aspectos científicos, ético-

religiosos e jurídicos que envolvem a discussão sobre as pesquisas com células-tronco, o que

permitiu conhecer os principais documentos e posicionamentos dos quais se utilizam os

16

articulistas ao defenderem suas cosmovisões sobre a pesquisa com células-tronco

embrionárias. Cumpre salientar que esta revisão não teve como princípio aproximar-se de um

estudo exaustivo, restringindo-se ao caráter de apoio ao procedimento analítico, até porque

cada um destes aspectos se consubstancia em um objeto de trabalho único, não condizente

com os limites de uma dissertação.

Após o levantamento bibliográfico que transitou pelos conceitos da Análise de

Discurso e dos aspectos científicos, jurídicos e ético-religiosos da clonagem terapêutica, teve

início a análise de discurso propriamente dita. O procedimento adotado seguiu os passos

propostos por Rosalind Gill (2002, p.251-255). Após a fase da transcrição (ou coleta de

material), seguiram-se os procedimentos de “leitura cética” e “codificação”, onde se buscou

elencar categorias que se mostraram de interesse para os objetivos da pesquisa. Neste caso, as

categorias levantadas foram as marcas do texto que evidenciavam argumentos dogmáticos ou

desqualificatórios da argumentação oponente, conforme o problema e as hipóteses iniciais. Na

fase da análise, foi buscado primeiramente um padrão nos dados, o que mostrou a

variabilidade (diferenças entre as narrações), quanto da consistência. Em segundo, uma

preocupação com a função, com a criação de hipóteses tentativas sobre as funções de

características específicas do discurso e, de testá-las frente aos dados (GILL, 2002, p.254-

255).

A coleta de dados do corpus da pesquisa também priorizou alguns documentos citados

implícita ou explicitamente nos artigos assinados, favoráveis ou não à pesquisa com células-

tronco. É o caso da Ação Direta de Inconstitucionalidade, impetrada pelo ex-procurador-geral

da República, Cláudio Fonteles (ADI Nº 3510), os documentos católicos como a encíclica

papal Evangelium Vitae; a Declaração sobre a Produção e o Uso Científico e Terapêutico das

Células Estaminais Embrionárias Humanas (ver anexo 6); a Instrução Donum Vitae e a

Convenção Americana sobre Direitos Humanos de São José da Costa Rica (ver anexo 7),

dentre outros que ajudaram no estudo do recorte da pesquisa.

1. Procedimentos teóricos – a Análise de Discurso

Devido à complexa natureza de seu objeto teórico e à particular formação do seu

quadro epistemológico cujos fundamentos estão relacionados com a Lingüística, o

Materialismo Histórico e a Psicanálise, a Análise do Discurso de linha francesa é uma

17

disciplina de natureza aberta, em permanente interlocução com as outras ciências humanas.

Conforme Orlandi (2000), a Análise de Discurso (AD) situa-se:

a) na Lingüística: com a problematização do corte saussureano. A AD

entende que a língua tem sua ordem própria, mas só é relativamente

autônoma. Sua diferença com relação à Lingüística se dá pelo fato de que a

AD reintroduz a noção de sujeito e de situação na análise da linguagem.

b) no Materialismo Histórico, considerando a releitura que Althusser fez da

obra de Marx. Foi com base na teoria da interpelação do sujeito segundo a

qual só há ideologia pelo sujeito e para os sujeitos, que Pêcheux trouxe para

a AD a noção de assujeitamento. Para Pêcheux, não há discurso sem sujeito

e não há sujeito sem ideologia. O indivíduo é interpelado em sujeito pela

ideologia e é assim que a língua faz sentido.

c) na Psicanálise: a partir da releitura lacaniana de Freud. Neste campo,

emerge a idéia do sujeito na sua relação com o simbólico, pensando o

inconsciente como estruturado por uma linguagem.

Disso decorre que a Análise de Discurso provoca um deslocamento no modo de se

conceber tanto a linguagem quanto o sujeito, ainda segundo Eni Orlandi (1996, p. 36) “não se

alinha no paradigma da epistemologia positivista, mas no da histórica, e, em relação a esta, no

da descontinuidade, suprimindo, com efeito, a separação entre objeto/sujeito,

exterioridade/interioridade, concreto/abstrato, origem/filiação, evolução/produção, etc”.

Trata-se do interesse da língua não como ente fechado, abstrato, mas a partir do discurso, um

objeto histórica e socialmente localizado na tensa rede de relações sociais.

Conforme Elizabeth Gonçalves (1996, p. 146), “as diferentes ciências sociais, com

seus próprios conceitos, suposições, teorias e métodos, encontram no Estruturalismo uma

identidade representada pela Lingüística ao reconhecerem que os significados e o

conhecimento emergem da interação social baseada na linguagem”. Logo, não se pode

conceber uma separação entre o lugar em que ocorre o fato lingüístico e a exterioridade

necessária donde se percebe o seu funcionamento. É dentro dessa interação social que a AD

investiga os processos de produção que constituem os fatos de linguagem.

18

Apesar de que a epistemologia da Análise do Discurso tenha inicialmente centrado no

discurso político como objeto de investigação, tendo como noção fundante o conceito de

ideologia, esta pesquisa pressupõe ser necessário retomar um pouco esta noção, dado ser um

conceito produtivo para a investigação (POSSENTI, 1988, p. 25). Como referência

metodológica, a AD estabelece uma estreita relação entre linguagem e ideologia. Williams

(1992, p.26) define dois sentidos importantes: a concepção de ideologia como "crenças

formais e conscientes de uma classe ou de outro grupo social" e a concepção de ideologia

como "a visão de mundo ou perspectiva geral característica de uma classe ou outro grupo

social". Já para Fiorin (2001, p. 29), a ideologia corresponde a uma visão de mundo e um

ponto de vista de uma classe social a respeito da realidade, com vistas a explicar e justificar

sua constituição. Norberto Bobbio destaca duas tendências gerais ou dois tipos de significados

que emanam dos múltiplos usos do termo ideologia:

No seu sentido fraco, ideologia designa o genus, ou a species diversamente definida, dos sistemas de crenças políticas: um conjunto de idéias e de valores respeitantes à ordem pública e tendo como função orientar os comportamentos políticos coletivos. O significado forte tem origem no conceito de Ideologia de Marx, entendido como falsa consciência das relações de domínio entre as classes, e se diferencia claramente do primeiro porque a mantêm, no próprio centro, diversamente modificada, corrigida ou alterada pelos vários autores, a noção da falsidade: a Ideologia é uma crença falsa. No significado fraco, Ideologia é um conceito neutro, que prescinde do caráter eventual e mistificante das crenças políticas. No significado forte, Ideologia é um conceito negativo que denota precisamente o caráter mistificante de falsa consciência de uma crença política (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 1986, p. 585).

Para Bakhtin, todo "signo" é marcadamente ideológico, pois "possui um significado e

remete para algo situado fora de si mesmo" (BAKHTIN, 1981). Nesse sentido, não pode

haver ideologia sem signo e, portanto, à palavra não haveria qualquer sentido possível caso

não fosse preenchida de "qualquer espécie de função ideológica: estética, científica, moral,

religiosa" (idem). Assim, a AD procura mostrar como a relação que liga os sentidos de um

texto à sua exterioridade é constituída pelo contexto histórico e social e também pela

ideologia, pela situação, pelo falante, pelo ouvinte e pelo objeto do discurso.

Como não pode existir ideologia sem signo, não existe também visão de mundo

desvinculada da linguagem, pois não há idéias fora dos quadros da linguagem, seja ela verbal

ou não-verbal. Segundo Fiorin (2001, p. 52), para os filósofos idealistas, “a linguagem cria

uma imagem do mundo”, “uma visão de mundo que determina nossa maneira de perceber e

conceber a realidade, e impõe-nos essa visão”. Para Baccega (1994, pp. 52-53), os fatos que

19

vivemos, “aprendemos sempre com as mediações que nos são inculcadas pela nossa cultura,

sobretudo através da linguagem verbal”.

Ao criar uma imagem de mundo, a linguagem torna-se um produto social e histórico,

um instrumento destinado a produzir efeito, legitimar posturas, obter consentimento, pois,

para Maingueneau (2001), “um enunciado livre de qualquer coerção é utópico”. Gnerre (1998,

p. 19), segue a mesma linha ao afirmar que a linguagem é uma forma de poder.

A partir de um prisma sob a atuação do sujeito, o discurso é visto como um “ato

produtor de enunciado” ou a “colocação em funcionamento da língua por um ato individual

de utilização” (BENVENISTE apud FERREIRA, 2003, p. 265). Essa intencionalidade do

falante, condicionada ao ato e desejo de produzir efeito, não pode ser vista sem as injunções e

coerções a que este falante está sujeito. O conjunto de imposições e constrangimentos

configura-se no campo das limitações, aliando-se ao campo das estratégias, que corresponde à

sintaxe discursiva e às escolhas lexicais, para que o discurso ocorra dentro da

“intencionalidade daquele que fala e se organiza em um espaço de limitações e de estratégias

na interdependência entre os espaços interno e externo” (FERREIRA, p. 265).

Tais estratégias discursivas, realizadas pela escolha do falante, são voltadas para as

injunções ao grupo social a que pertence o falante, pois “ele age, reage, pensa e fala na maior

parte das vezes como membro de um grupo social, e por isso as idéias que têm à disposição

para tematizar seu discurso são aquelas veiculadas na sociedade em que vive” (FIORIN, 2001,

p. 44). Ao fazer parte de uma determinada comunidade (profissional, sectária, política,

ideológica), o falante age como ideólogo, tendo restrita sua liberdade de produzir enunciados

não alinhados com o arcabouço ideológico do grupo.

Todavia, as coerções e constrangimentos impostos pelo grupo social não constituem o

único amálgama do discurso. Este pode aceitar, implícita ou explicitamente, outro discurso,

rejeitá-lo ou repeti-lo. Abre-se então a noção de reprodução, conflito ou heterogeneidade do

discurso. Fruto dessa reflexão são as formações discursivas, uma vez que o falante surge

como assimilador dos discursos e construtor de seus próprios, reagindo lingüisticamente aos

acontecimentos (FIORIN, 2001, p. 32; 44). Ao falarmos das formações discursivas, estamos

nos referindo às diferentes posições ideológicas presentes no discurso, que refletem as

diferentes posições estabelecidas em um contexto social, em um determinado momento

histórico. No interior de uma formação discursiva ocorrem discursos provenientes de outras

formações discursivas.

20

Cumpre observar que os efeitos de sentido de um discurso dependem da posição

ideológica a partir da qual o discurso é produzido. Isso porque as palavras (e discursos)

mudam de sentido segundo as posições daqueles que as empregam. Elas “tiram” seu sentido

dessas posições, isto é, em relação às formações ideológicas nas quais essas posições se

inscrevem” (ORLANDI, 2000, p. 42). Logo, temos como condição fundamental para analisar

e interpretar o discurso a noção de formação ideológica, que corresponde ao lugar ocupado

pelo falante. Haroche vê a formação ideológica como:

um elemento (determinado aspecto da luta nos aparelhos) susceptível de intervir como uma força confrontada com outras forças na conjuntura ideológica característica de uma formação social em um momento dado; cada formação ideológica constitui assim um conjunto complexo de atitudes e de representações que não são nem "individuais" nem "universais" mas se relacionam mais ou menos diretamente a posições de classe em conflito umas em relação às outras (HAROCHE apud Pêcheux, 1997, p. 166).

Quanto ao princípio da heterogeneidade, Jacqueline Authier-Revuz (1982), parte da

idéia de que a própria linguagem é heterogênea na sua constituição; e, como a materialidade

do discurso é de natureza lingüística, é lógico considerá-lo também heterogêneo. Para Bakhtin

(1997, p. 280), a heterogeneidade do discurso é a manifestação de várias formas como o

discurso se apresenta na teia lingüística, que pode ser entendida como uma carta, como textos

jornalísticos e até mesmo como uma ordem militar. O autor define gêneros do discurso como

tipos relativamente estáveis de enunciados utilizados em cada uma das diferentes esferas da

atividade humana:

“o enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas, não só por seu conteúdo temático e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua – recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais –, mas também, e sobretudo, por sua construção composicional” (BAKHTIN, 1997, p. 279).

Conforme já vimos, na Análise de Discurso, o texto é a marca mais concreta da

materialidade histórica da linguagem, sendo uma unidade complexa de significação e para

compreender seu funcionamento é preciso considerar suas condições de sua realização

(ORLANDI, 1996). Todavia, ele também se insere na manifestação lingüística do discurso, no

qual se estrutura e dialoga com diversas outras unidades de significação. Pêcheux e Fuchs

argumentam que:

É impossível analisar um discurso como um texto, isto é, como uma seqüência lingüística fechada sobre si mesma, mas (...) é necessário referi-lo ao conjunto de

21

discursos possíveis a partir de um estado definido das condições de produção (1997, p. 79).

É esse diálogo com outros textos que reafirma seu caráter inacabado, bem como uma

enormidade de textos possíveis que deriva da relação como outros textos possíveis. Daí surge

a noção de intertextualidade (em sentido amplo é a condição de existência do próprio

discurso, do que então se aproxima do conceito de interdiscursividade) – todo texto é

heterogêneo pois há uma relação inevitável e necessária de seu interior com o seu exterior.

Conforme Bakhtin, um enunciado, ao ser isolado do seu processo de enunciação e

transformado numa abstração lingüística, perde o que tem de essencial, a sua natureza

dialógica, pois a realidade fundamental da linguagem é o dialogismo. Para Brait (2005, p. 34),

o dialogismo, como princípio constitutivo da linguagem e a condição do sentido do discurso,

reforça o fato de que o discurso não é individual porque se constrói entre pelo menos dois

interlocutores e porque se “constrói” como um diálogo entre discursos, mantendo relações

com outros discursos.

Este conceito tem como base o movimento de dupla constituição entre a linguagem e o

fenômeno da interação socio-verbal, isto é, a linguagem se instaura a partir do processo de

interação e este, por sua vez, só se constrói na linguagem e através dela. Porém, o dialogismo

não se reduz às relações entre os sujeitos nos processos discursivos; pelo contrário, se refere

também ao permanente diálogo entre os diversos discursos que configuram uma sociedade. É

esta dupla dimensão que nos permite considerar o dialogismo como o princípio que determina

a natureza interdiscursiva da linguagem: o diálogo entre interlocutores e o diálogo entre

discursos.

Da noção do dialogismo, Bakhtin chega à idéia do discurso polifônico. A noção de

polifonia corresponde às diversas vozes implícitas que condicionam o discurso do sujeito e

que nos remete à impossibilidade de contar com as palavras como se fossem signos neutros,

transparentes, já que elas são afetadas pelos conflitos históricos e sociais que sofrem os

falantes de uma língua e, por isso, permanecem impregnadas de suas vozes, seus valores, seus

desejos. Com a noção de polifonia, percebemos que todo discurso é sempre atravessado por

outros discursos e seus enunciados sempre carregam a memória desses outros discursos.

Como a Análise de Discurso trabalha os textos como enunciados de um sujeito

essencialmente histórico, ideologicamente constituído, sua fala revela um recorte das

representações de um tempo histórico e de um espaço social. Logo, o discurso do sujeito se

constrói em relação ao discurso do outro – não é apenas o outro com o qual se planeja, ajusta

22

a fala, mas nele estão envolvidos outros discursos historicamente já constituídos e que

emergem na sua fala (BRANDÃO, 2004). É a noção de interdiscurso, pois o discurso é um

produto de interdiscursos, ligados entre si por diferentes construções, quer para torná-los

assimétricos ou não.

Todo discurso se tece polifonicamente por fios dialógicos de vozes cruzadas, concorrentes, contraditórias que polemizam entre si, se completam ou respondem umas às outras. Esses outros discursos são, então, o exterior constitutivo, o já-dito a partir do qual se tece, inevitavelmente, a trama mesma do discurso (AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 26).

Para os objetivos desse trabalho, será importante também revisar o conceito de

“discurso fundador”, de Eni Orlandi (2003). Para essa pesquisadora, a formação de sentidos

se confunde com as tradições orais (tidas como históricas) de um povo, o que permite que

uma dada cena imaginária, mediante a construção de sentido dos discursos que se formam a

partir desse momento fundante inicial, construa significações para o imaginário coletivo de

um povo. Dessa união entre acontecimento e sentido, há um movimento de construção do

imaginário, que não apenas dá sentido às narrativas míticas e de heróis, mas que também

constituem o amálgama ideológico e as determinações sociais.

A partir da certeza do já-dito, e, de outro, do nunca experimentado, sentidos chegam e se transformam em outros, abrindo um lugar para a especificidade de uma história particular, na sua forma plural: as histórias do Brasil. Trataremos aqui a dimensão do discurso que é a mais difícil de apreender: a de seu acontecimento. Nesse movimento da construção do significar: a. seu apagamento por uma memória já estabelecida dos sentidos (o já-dito), b. a resistência ao apagamento e a conseqüente produção de outros sentidos; e c. o retorno do “recalque” (do que foi excluído pelo apagamento) sobre o mesmo, deslocando-o. Esse é um movimento regular que se produz no percurso que vai do sem-sentido em direção ao sentido (ORLANDI, 2003, p. 11).

Esse movimento de sentidos e esse processo de significação do imaginário coletivo

mediante a cena fundante tem uma importância sobre o processo de constituição não apenas

do imaginário coletivo, mas também das subjetividades do indivíduo. Logo, ao se analisarem

os discursos do presente e a utilização de imagens mítico-filosófico-religiosas, nos

perguntamos sobre o processo de formação dessas imagens, o porquê de sua utilização e que

lugar ocupam no imaginário social. Até porque, conforme Orlandi (2003, 12), “não são os

enunciados empíricos, são suas imagens enunciativas que funcionam. O que ‘vale’ é a versão

que ‘ficou”.

23

Estudos sobre os aspectos históricos e suas relações com a constituição psíquica e, conseqüentemente, demandam a utilização das narrativas e da memória construída sobre o grupo social a ser trabalhado. Essas análises trazem à baila uma série de questões a serem pensadas, entre as quais a adoção da tese da cena fundante e da história oficial como referências analíticas. Por um lado, consideramos viáveis as análises orientadas pelo pressuposto da(s) cena(s) fundante(s), pois as representações elaboradas pelos brasileiros sobre a origem do Brasil associam-se àquelas elaboradas sobre sua própria origem, desempenhando importante papel na constituição das subjetividades. Por outro lado, essa abordagem, ao entender o passado como uma reconstrução a posteriori, feita com o objetivo de responder ao irrespondível – a origem –, aposta no entendimento da cena originária como mítica. Nesse caso, ocorre a cristalização da representação da cena fundante nacional, com o estabelecimento de um sentido único para esses acontecimentos (SOUZA, 2002, p. 57).

Consideramos importante para os objetivos deste trabalho, sobretudo as recorrentes

narrativas vampirescas presentes em artigos contrários às pesquisas com células-tronco

embrionárias, investigar os enunciados do fundamento produzidos e sustentados por estes

grupos conservadores em suas estratégias discursivas, o que pode auxiliar na compreensão

dessas subjetividades. Apesar do risco de generalização, preocupa-nos a constante utilização

de imagens como vampiros, fausto, prometeu, frankenstein e tantos outros mitos utilizados

para condenar a investigação científica julgada fora de padrões e normas “éticas” aceitáveis.

Cumpre ressaltar que o interesse no tema em questão não está em verificar até que

ponto tais argumentos podem ser tomados literalmente como constitutivos de algum

significado válido para o embate em questão, uma vez que se trata de relatos “míticos” e a-

históricos. É bem provável que tanto seus enunciadores pouco acreditem na validade de tais

imagens míticas, a não ser a título de metáfora. Todavia, sua utilização bem pode caracterizar

uma estratégia discursiva desqualificatória ou carregada de forte intencionalidade política

entre a opinião pública. Conforme Orlandi, “as lendas são matéria, ou melhor, materialidade

simbólica que serve exemplarmente na construção de uma origem ‘outra”:

Nessa passagem do sem-sentido para o sentido, produzida nesses lugares, não estamos pensando a história dos fatos, e sim o processo simbólico no qual, em grande medida, nem sempre é a razão que conta: inconsciente e ideologia aí significam. Não é a cultura ou história factuais, mas a das lendas, dos mitos, da relação com a linguagem e com os sentidos... Nessa perspectiva, são outros os sentidos do histórico, do cultural, do social. Mas que assim mesmo nos constroem um imaginário social que nos permite fazer parte de um país, de um Estado, de uma história e de uma formação social determinada (ORLANDI, 2003, p. 13).

24

Essa proposta de abordagem destes discursos e as formas que assumem nos artigos ou

enunciados de religiosos, juristas e até mesmo pesquisadores, pode contribuir para assimilar a

razão destas citações e as relações entre esses discursos e os modelos que identificam os

cientistas com heróis penalizados pelo crime de sua curiosidade ou afronta aos limites

previamente traçados. Mériti de Souza (2002), relendo Paula Aulagnier, aponta que o

indivíduo, ao se apropriar de um discurso fundador, busca reconhecimento no grupo social em

que vive, regido pelas mesmas instituições, o que também é capaz de preservar esse meio.

Os enunciados que o grupo social articula sobre si mesmo e que procuram dar conta da sua razão de ser e da origem dos seus modelos e da realidade do mundo constituem os enunciados do fundamento, que apresentam como característica a necessidade de preservar uma concordância entre campo social e campo lingüístico. Dependendo do grupo social, os enunciados se dividem em míticos, sagrados ou científicos, tendo em comum o fato de proporem explicações acerca da origem do modelo adotado pelo grupo social a que pertencem. A autora aponta-nos que o sujeito, ao apropriar-se do discurso fundador (sagrado ou não) e dos enunciados dos fundamentos, apropria-se do direito de ser reconhecido pelo grupo social como um dos seus membros... Na adesão a um discurso fundador, é imprescindível a manutenção do real por ele legitimado. O real (grupo social) só se preserva se investido, como meio ideal, pela maioria dos seus membros. (AULAGNIER apud SOUZA, 2002, p.59).

2. As condições de produção

Como afirmou Eni Orlandi (1987, p. 107), “o que importa é destacar o modo de

funcionamento da linguagem, sem esquecer que esse funcionamento não é integralmente

lingüístico, uma vez que dele fazem parte as condições de produção que representam o

mecanismo de situar os protagonistas e o objeto do discurso”. A expressão Condições de

Produção veio para a Análise de Discurso a partir de Pêcheux para designar, em sentido

estrito, as circunstâncias da enunciação, isto é, o contexto imediato em que ocorre o discurso.

Já em sentido amplo, são os conceitos histórico-sociais e ideológicos considerados elementos

da situação discursiva.

Para mostrar como as condições de produção funcionam, Pêcheux (1997) afirma que,

em um processo discursivo, os locutores ocupam lugares determinados na estrutura de uma

formação social. Ocorre então uma série de formações imaginárias que designam o lugar que

os interlocutores atribuem cada um a si e ao outro, a imagem que eles fazem de seu próprio

lugar e do lugar do outro. Isso significa que existe, nessa projeção de imagens, uma

verdadeira relação de força entre os lugares sociais representados no discurso, o que nos leva

25

a perceber que o lugar a partir do qual o sujeito fala é constitutivo do seu discurso (WITZEL,

2002, p. 37).

Não se trata basicamente de sujeitos físicos ou de lugares empíricos como tal, mas

sobretudo as imagens que resultam de suas posições. São essas imagens que fazem com que

as situações empíricas (os lugares dos sujeitos sociologicamente descritos) passem a ser

tomadas como posições dos sujeitos no discurso, o que significa que há uma distinção entre

lugar e posição.

Em toda língua há regras de projeção que permitem ao sujeito passar da situação (empírica) para a posição (discursiva). O que significa no discurso são essas posições. E elas significam em relação ao contexto sócio histórico e à memória (o saber discursivo, o já dito) (ORLANDI, 2000, p. 40)

A partir daí, temos que verificar a relação de sentidos de determinado discurso

mediante de seus determinantes sociais, históricos e ideológicos, circunstanciais, do falante e

também do ouvinte. Importa-nos “quem fala” e de “que lugar” esse falante emite seu discurso.

O que ele “diz” e “do lugar” de onde diz. Do mesmo modo, observar “para quem” se fala e

“do que” se fala. Buscando elencar dados que possam contribuir para o processo analítico

descrito neste trabalho, passaremos então às condições específicas de produção dos artigos

que compõem o corpus, bem como de seus articulistas.

Conforme já vimos, o embate discursivo sobre a pesquisa com células-tronco

embrionárias tornou-se mais acirrado no Brasil com o processo de aprovação do projeto de lei

que deu origem à Lei de Biossegurança (anexo 4). A regulamentação sobre organismo

geneticamente modificado – OGM e do conceito de engenharia genética, começou com a Lei

8.974 de janeiro de 1995, modificada pela Medida Provisória 2.191-9 de agosto de 2001 e

regulamentada pelo Decreto 1.752 de dezembro de 1995 (art. 3º, incisos IV e V).

Desde que o Senado e a Câmara de Deputados passaram a discutir os temas em

questão, setores da sociedade, sobretudo ligados à Igreja Católica, deram início a seminários,

encontros, pronunciamentos e manifestações contrárias à utilização de embriões de clínicas de

fertilização para a utilização de pesquisas. O debate em si não é novo, pois remonta ao

episcopado de João Paulo II e sua postura contrária às pesquisas com células-tronco

embrionárias. É dele a criação da Pontifícia Academia Para a Vida em 1994, para disseminar

os valores católicos em todo o mundo, bem como um documento sobre a clonagem e sobre as

células-tronco (Declaração sobre a produção e o uso científico e terapêutico das células

estaminais embrionárias humanas e Células-mãe humanas autólogas e transferência de núcleo

26

(ANDRÉS, 2005, p. 109). Destacam-se ainda a encíclica Evangelium Vitae e a Instrução

Donum Vitae.

Por parte da comunidade científica, esforço não menos reduzido tem ocorrido no

sentido de atrair os integrantes dos poderes Legislativo e Judiciário, antevendo-se à pressão

dos grupos conservadores. Além dos seminários e grupos de pesquisas, sediados em algumas

universidades, tem sido comum arregimentar doentes de enfermidades degenerativas em

audiências públicas na Câmara e no Senado, tal como a que ocorreu em 20/04/2007. Quanto

aos articulistas responsáveis pelos artigos, transcrevemos abaixo as informações relevantes:

Ives Gandra Martins, 73, é advogado tributarista e jurista, professor emérito da

Universidade Presbiteriana Mackenzie, da UNIFMU e da Escola de Comando e Estado-Maior

do Exército. Presidente da Academia Paulista de Letras (2004-2006), doutorou-se em Direito

pela Universidade Mackenzie (1982). Autor de publicações no campo do direito tributário, é

ligado à organização católica Opus Dei.2

Lilian Piñero Marcolin Eça, 53, é biomédica com habilitação em Microbiologia,

doutora em Biologia Molecular pela Universidade Federal de São Paulo e pesquisadora no

Laboratório do ICAO. Autora do livro “Biologia molecular – guia prático e didático”, integra

o programa de mestrado em Biologia Oral da Universidade Sagrado Coração.3

Humberto Costa, 50, é médico psiquiatra, filiado ao Partido dos Trabalhadores de

Pernambuco. Pós-graduado em Medicina Geral Comunitária, Clínica Médica e Psiquiatria, é

formado também em jornalismo e mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de

Pernambuco. Foi ministro da Saúde no primeiro mandato do governo do presidente Luís

Inácio Lula da Silva (2003-2005). Foi também deputado federal pelo PT-PE (1995-1998) e

secretário da Saúde de Recife (gestão João Paulo). Atualmente ocupa o cargo de Secretário

Estadual das Cidades no Pernambuco, gestão Eduardo Campos.4

Luciano Mendes de Almeida morreu em 27 de agosto de 2006, aos 75 anos, na cidade

de São Paulo. Foi presidente da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) de 1987

a 1994, tendo sido também secretário-geral de 1979 a 1987. Foi vice-presidente do Celam

(Conselho Episcopal Latino-Americano) de 1995 a 1998. Membro da ordem religiosa de

Santo Inácio (jesuítas), doutorou-se em Filosofia em 1965 pela Universidade Gregoriana. Foi

nomeado bispo auxiliar de São Paulo em 1976 e em 1988 arcebispo de Mariana, MG. Figura

de destaque do episcopado brasileiro, atuou na defesa dos direitos humanos e no serviço aos

2 www.gandramartins.adv.br/ - 17k pt.wikipedia.org/wiki/Ives_Gandra_Martins - 14k - 3 www.usc.br/enfoque_online/2006_fev/entrevista.htm - 21k 4 pt.wikipedia.org/wiki/Humberto_Costa - 23k -

27

pobres. Na arquidiocese de São Paulo, auxiliou Dom Evaristo Arns e organizou abrigos para

menores abandonados. Em Minas Gerais, não interrompeu seu trabalho social e dedicou seus

últimos anos a percorrer hospitais para socorrer os necessitados. 5

Marcelo Gleiser é físico, astrônomo, professor, escritor, roteirista e colunista. Desde

1991 é professor de Física e Astronomia e pesquisador do Darthmouth College, em Hanover

(EUA), e autor dos livros “O fim da terra e do céu”, “A dança do universo” e “A harmonia do

mundo”. Conhecido divulgador da ciência nos EUA e Inglaterra, no Brasil, é mais popular por

seus artigos no jornal Folha de S. Paulo, e em programas de televisão como Globo Ciência e

Fantástico. É membro-convidado da Academia Brasileira de Filosofia. Doutorou-se em 1986

no King's College London, na Universidade de Londres. Já fez parte do grupo de

pesquisadores do Fermilab, em Chicago, e do Institute for Theoretical Physics da Califórnia.

Recebeu bolsas para pesquisas da NASA, National Science Foundation e da OTAN.6

Marcelo Leite é jornalista free-lancer e colunista do jornal Folha de S. Paulo. Doutor

em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), é autor dos livros

Os alimentos transgênicos (2000), A floresta amazônica (2001) e O DNA (2003), todos pela

série "Folha Explica", da editora Publifolha. Pela Editora Ática, publicou os livros

paradidáticos Amazônia, Terra com Futuro (2005), Meio Ambiente e Sociedade, Pantanal

(2005) e O Mosaico das Águas (2006). Especializou-se em jornalismo científico como

bolsista da Fundação Krupp na Alemanha (1989-90), onde estagiou na revista Bild der

Wissenschaft e no diário Stuttgarter Zeitung. Em 1997-98, foi Nieman Fellow na

Universidade Harvard. Entre 1994 e 1996 foi ombudsman do jornal Folha de S. Paulo.7

Quanto aos veículos noticiosos do corpus, o jornal Folha de S. Paulo foi fundado em

1921, tornando-se na década de 80 o jornal mais vendido no país (em 2007, a circulação

média foi de 299 mil exemplares em dias úteis e 370 mil aos domingos). O veículo credita

esse crescimento aos princípios editoriais do Projeto Folha: pluralismo, apartidarismo,

jornalismo crítico e independência, cujas características foram detalhadas a partir de 1981 em

seis diferentes projetos editoriais. Organizado em cadernos temáticos diários e suplementos,

tem circulação nacional e foi o primeiro veículo de comunicação do Brasil a adotar a figura

do ombudsman e a oferecer conteúdo on-line a seus leitores.8

5 pt.wikipedia.org/wiki/Luciano_Pedro_Mendes_de_Almeida - 29k - www.arqmariana.com.br/d_luciano.htm - 15k - 6 http://pt.wikipedia.org/wiki/Marcelo_Gleiser 7 http://cienciaemdia.zip.net/ 8 http://www1.folha.uol.com.br/folha/conheca/

28

O Estado de S. Paulo é o mais antigo veículo de comunicação da cidade de São Paulo

ainda em circulação. Circulou pela primeira vez em janeiro de 1875, durante o Império, com o

nome “A Província de S. Paulo”. A atual designação surgiu somente em janeiro de 1890, após

o estabelecimento de uma nova nomenclatura para as unidades da federação pela República.

O jornal foi fundado por 16 pessoas reunidas por Manoel Ferraz de Campos Salles e Américo

Brasiliense, concretizando uma proposta de criação de um diário republicano surgida durante

a Convenção Republicana de Itu, com o propósito de combater a monarquia e a escravidão.

Sua tiragem inicial era de 2 mil exemplares, significativa para a população da cidade,

estimada em 31 mil habitantes. Em 1902, Júlio Mesquita, redator desde 1885 e genro de José

Alves de Cerqueira César, um dos 16 fundadores, torna-se o único proprietário. Nesta época a

cidade atingia a marca de 250 mil habitantes, metade dos quais italianos.

Editorialmente o jornal sempre manteve sua linha de apoio à democracia

representativa e à economia de livre-mercado. No entanto, em 1964, “O Estado” apoiou o

movimento militar que depôs o presidente João Goulart. Quando se evidenciava que os

radicais de extrema direita aumentavam sua influência, objetivando a perpetuação dos

militares no poder, o jornal retirou seu apoio e passou a fazer oposição, tornando-se alvo de

censuras e denunciando-as com a publicação de poemas de Camões e receitas culinárias em

lugar das notícias proibidas. Em fevereiro de 1967 a tiragem de "O Estado" ultrapassa 340 mil

exemplares. No dia 13 de dezembro de 1968, é impedido de circular por ordem da ditadura

militar. O editorial “Instituições em frangalhos”, de Júlio de Mesquita Filho, é o motivo da

arbitrariedade. Ao longo do tempo novas empresas e produtos foram criados a partir de O

Estado de S. Paulo, célula-máter do Grupo Estado.

Em 1958 começa a diversificação com a inauguração da Rádio Eldorado. Em 1966 é

lançado o Jornal da Tarde. A Agência Estado passa a operar em 1970. Em 1991 a Broadcast é

incorporada à Agência Estado. Em março de 2000 foi lançado o portal Estadao.com.br, com

informativo em tempo real. Em janeiro de 2003 o portal Estadao.com.br superou a marca de

um milhão de visitantes mensais. Pesquisas de mercado apontam o jornal como aquele que

desfruta da maior credibilidade dentre todas as empresas jornalísticas brasileiras.9

9 http://site.estadao.com.br/historico/index.htm

29

CAPÍTULO II – ASPECTOS CIENTÍFICOS DA PESQUISA COM

CÉLULAS-TRONCO

1. Origens da pesquisa com células-tronco

A discussão sobre a utilização de células-tronco embrionárias para a pesquisa

científica visando o tratamento de doenças degenerativas tem ocupado amplo espaço na

comunidade científica internacional nos últimos anos, sendo também absorvida pelos

segmentos acadêmicos, a comunidade médica, a imprensa e boa parte da sociedade civil. O

conflito, inicialmente de caráter ético, tramita entre o mundo acadêmico e os demais setores

interessados na sociedade desde que a moderna biotecnologia tomou lugar na pesquisa

científica.

Perplexa diante dos crescentes anúncios de descobertas e avanços no campo da

biologia molecular, a sociedade civil questiona se os benefícios destas conquistas não

colocariam em risco o próprio ser humano, como apontou Hans Jonas (1995) com a expressão

“vazio ético” (ethical vacuum), advogando uma ética para a civilização tecnológica. Como as

transformações científicas ocorrem num ritmo acelerado, cresce o temor de que a vida

humana esteja correndo perigo, tal como ocorre com a biodiversidade.

As raízes históricas do paradigma biotecnocientífico estariam na segunda metade do

século XIX, quando surgiram a teoria da evolução de Darwin e a teoria genética de Mendel.

Entretanto, é somente após a Segunda Revolução Biológica, ocorrida com a descoberta da

estrutura do DNA por Watson e Crick (1953), e a conseqüente aplicação prática operada pela

engenharia genética dos anos 80, que se pode falar em emergência stricto sensu do paradigma

biotecnocientífico (PUSSI & PUSSI, 2005, p. 59).

Mais recentemente, a clonagem da ovelha Dolly, em 1996, tornou-se ainda mais

acirrado o já enorme debate mundial, em virtude da perspectiva real da clonagem de seres

humanos. Desenvolvimentos científicos mais recentes permitiram vislumbrar uma área de

aplicação muito mais interessante e promissora para a clonagem humana na área médica: a

produção de tecidos humanos para autotransplantes (PENA, 1999, p.113-122).

Em um quadro científico com incessantes inovações no campo da genética médica,

envolvendo a reprodução humana, a possibilidade de intervenção sobre embriões, a clonagem

de mamíferos, o mapeamento do genoma e o acesso à informação genética de cada indivíduo,

surgem desdobramentos que suscitam o debate ético (PUSSI & PUSSI, 2005, p. 59), com

30

forte apelo social e mobilização do grande. Da mesma forma que cresce o interesse (e alarde)

pelo debate, aumenta também o número de interessados nos rumos do paradigma

biotecnocientífico, seus prováveis beneficiários e os temores de uma espécie de exclusão que

o mesmo possa causar.

De igual modo, as pesquisas que utilizam células-tronco embrionárias (CTE)

despertam a atenção e interesse – bem como ferrenha oposição – de muitos atores sociais.

Apesar do fato de as 63 academias de ciência do mundo (inclusive o Brasil) que se

posicionaram contra a clonagem reprodutiva em 2003 defenderem as pesquisas com células

embrionárias para fins terapêuticos (ZATZ, 2004, p. 250-254), os adversários dessa pesquisa

argumentam que isto poderia gerar um comércio de óvulos, a destruição de “embriões

humanos” e que não é ético destruir uma vida para salvar outra.

Do caráter ético inicial, a questão se revestiu de considerações de ordem econômica,

moral, religiosa, legal, política e pragmática. Após diversos países aprovarem a liberação das

pesquisas com células-tronco embrionárias (Canadá, Austrália, Japão, China, Coréia, Suíça,

Inglaterra, França, Espanha e Israel), o Brasil passou a integrar um seleto grupo que ocupa a

dianteira neste campo da pesquisa científica. Em 2 de março de 2005, a Câmara dos

Deputados aprovou a Lei de Biossegurança10, que autoriza, em território brasileiro, o uso de

células-tronco embrionárias em pesquisas destinadas à cura ou tratamento de doenças

degenerativas, além de tratar de assuntos ligados à liberação do plantio e comercialização de

alimentos transgênicos.

A questão com potencial de afetar a vida de cidadãos comuns foi monopolizada pela

luta de dois grupos extremos que inicialmente alienavam o grande público. De um lado

estavam os que se julgavam “defensores da dignidade da vida humana”, na maioria católicos e

que propunham o uso das células adultas para evitar o sacrifício de embriões congelados em

clínicas de fertilização, de outro, “progressistas” que vislumbravam o avanço da ciência e a

cura de diversas moléstias a partir das pesquisas com as células-tronco embrionárias. Para o

segundo grupo, não há inconveniente ético em destruir um embrião congelado que, após três

anos, não teria outro fim senão o descarte.

Como o Congresso em sua decisão favoreceu os que advogavam o “progresso da

ciência” – e também dos investidores em alimentos transgênicos – a Lei de Biossegurança foi

10 A Lei 11.105/05, em seu art. 5º, permite que sejam realizadas pesquisas com células-tronco de embriões obtidos através de métodos de reprodução assistida, e não utilizados no respectivo procedimento, desde que considerados inviáveis ou que já estejam congelados há mais de três anos. O artigo ainda condiciona a autorização dos pais como condição indispensável para esta utilização (LEMOS & GONÇALVES, 2006, p. 213).

31

aprovada e restou ao grupo conservador uma estratégia jurídica. É justamente neste ponto que

o embate tornou-se mais acirrado, quando o então procurador-geral da República, Claudio

Fontelles, ajuizou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3510) no Supremo

Tribunal Federal contra o artigo 5º da Lei de Biossegurança, que autoriza a utilização de

células-tronco de embriões humanos para pesquisa ou tratamento de doenças. Somaram-se ao

debate cientistas, pesquisadores da área médica, juristas, políticos, jornalistas especializados

em divulgação científica, líderes religiosos, o público leitor da mídia especializada e,

sobretudo, pacientes de doenças degenerativas, que foram utilizados como cabos eleitorais

para pressionar o Congresso, o Senado e, agora mais recentemente, o Supremo Tribunal

Federal, que irá julgar a ADI 3510.

2. Definição de células-tronco

As células-tronco (CT)11 são células com capacidade de multiplicar-se e diferenciar-

nos mais diferentes tipos celulares e reconstituir diversos tecidos do corpo humano (sangue,

ossos, nervos, músculos, etc). Além disso, a CT apresenta a propriedade de auto-renovação,

ou seja, gerar uma cópia idêntica a si mesma (PRANKE, 2004, p. 33).

As células-tronco, adultas (CTA) ou somáticas, são encontradas em vários tecidos

(medula óssea, sangue, fígado, polpa dentária) de crianças e adultos, e também no cordão

umbilical e na placenta. Apesar de pesquisas recentes demonstrarem grande presença das

células-tronco adulta na placenta, nos dentes e no cordão umbilical, ainda é desconhecido o

seu potencial de diferenciação (ZATZ, 2004, p.253).

Já as células-tronco embrionárias (CTE) são retiradas de um embrião produzido in

vitro12, mediante a técnica de reprodução humana assistida, a partir dos blastocistos13 gerados

em clínicas de fertilização, onde o casal doa, para a pesquisa com fins terapêuticos, os

11 Do inglês stem cells, donde deriva a tradução “células-tronco”, ao invés de “células-mãe”, ainda utilizado em alguns fóruns científicos e meios de comunicação (JOSÉ, 2005, p.22). 12 A fecundação in vitro consiste na técnica de fecundação extracorpórea, na qual o óvulo e o espermatozóide são previamente retirados de seus doadores e unidos em um meio de cultura artificial. Na primeira etapa, denominada estimulação ovariana controlada, a paciente recebe drogas indutoras da ovulação para aumentar a produção de óvulos. Em seguida, com o auxílio de uma ultra-sonografia transvaginal, os óvulos são coletados e levados ao laboratório. Paralelamente, os espermatozóides do paciente são preparados em laboratório de modo que, para cada óvulo a ser fecundado, haja cerca de 50 a 100 mil espermatozóides móveis. Na etapa seguinte, totalmente desenvolvida em laboratório, os óvulos e espermatozóides são colocados em um meio especial de cultura para que ocorra a fecundação. Se a fertilização for bem sucedida, dará origem a pré-embriões, que serão transferidos para o útero da paciente em 48, 72 ou até 120 horas após a coleta dos óvulos. http://www.abdelmassih.com.br/tr_fiv02.php 13 O blastocisto são as células entre o quarto e o quinto dias após a fecundação do óvulo pelo espermatozóide, antes ainda da implantação no útero, que ocorre a partir do sexto dia.

32

blastocistos não utilizados. A CTE apresenta grande plasticidade14, capaz de originar

diferentes tipos de tecidos (neurônios, células musculares, células epiteliais, células

sangüíneas, células ósseas, cartilagem e outras). A partir do quinto dia de vida as células-

tronco passam a ser denominadas adultas, pois são pluripotentes e não dão origem à placenta

e anexos (ZATZ, 2004).

3. Classificação e origem das células-tronco

Células-tronco totipotentes ou embrionárias - São as células-tronco capazes de se

diferenciar em todos os 216 tecidos do corpo humano (inclusive a placenta e anexos

embrionários). Correspondem às células resultantes das primeiras divisões celulares, após a

fecundação. Encontram-se nos embriões até o quarto dia de vida.

Células-tronco pluripotentes ou multipotentes - São as células-tronco que

conseguem se diferenciar em quase todos os tecidos humanos, exceto a placenta e os anexos

embrionários. Como as anteriores, encontram-se apenas nos embriões.

Células-tronco oligopotentes - São as células-tronco capazes de diferenciar-se em

poucos tecidos. Ainda objeto de pesquisas, são encontradas em diversos tecidos, como no

trato intestinal, por exemplo.

Células-tronco unipotentes - São as células-tronco que apenas conseguem

diferenciar-se em um único tecido – naquele a que pertencem (SOUZA & ELIAS, 2005, p. 5).

4. Clonagem reprodutiva

A clonagem é um mecanismo comum de propagação da espécie em plantas ou

bactéria. Pode-se definir um clone como um grupo de células ou organismos, originados de

uma única célula e que são absolutamente idênticas à célula original.15 Nos seres humanos, os

clones naturais são os gêmeos idênticos que se originam da divisão de um único óvulo

fertilizado. A clonagem é a cópia ou a duplicação de células ou de embriões a partir de um ser

14 A plasticidade (totipotencialidade) deve-se ao fato do blastocisto ser capaz de originar todos os órgãos do corpo humano. Após a fecundação, o zigoto divide-se e diferencia-se até produzir um organismo adulto que consiste em mais de 216 tipos de células, inclusive a placenta e anexos (PRANKE, 2004, p. 33). 15 De acordo com Webber (1903), um clone é definido como uma população de moléculas, células ou organismos que se originaram de uma única célula e que são idênticas à célula original e entre elas.

33

já adulto. As cópias possuem todas as características físicas e biológicas do seu progenitor

genético (SOUZA & ELIAS, 2005, p. 8; ZATZ, 2004, p. 247).

A clonagem da ovelha Dolly 1996, na cidade de Edimburgo, no interior da Escócia,

pelo cientista Ian Wilmut, demonstrou, pela primeira vez, a possibilidade de clonar um

mamífero – ou seja, a descoberta de que uma célula somática de mamífero, já diferenciada,

poderia ser reprogramada ao estágio inicial e voltar a ser totipotente. Isto foi conseguido

através da transferência do núcleo de uma célula somática da glândula mamária da ovelha que

originou a Dolly para um óvulo enucleado (ZATZ, 2004, p. 249).

Este experimento fantástico, que revolucionou a biologia celular e biologia do

desenvolvimento, teria sido anteriormente proposto pelo embriologista alemão Hans Spemann

em 1938. Um ano depois da clonagem da ovelha Dolly, experimentos independentes

realizados por grupos liderados pelos cientistas norte-americanos Thomson e Gearhart,

obtiveram, pela primeira vez, células embrionárias pluripotentes humanas (JOSÉ, 2005, p. 21-

22).

O avanço científico trazido pela descoberta da clonagem de mamíferos e a descoberta

das células tronco suscitou ponderações éticas, jurídicas, morais e religiosas, o que levou os

governos a legislar sobre o tema e proibir a clonagem reprodutiva humana16 em quase todos

os países do mundo. Entretanto, os cientistas buscam desenvolver métodos capazes de

permitir a clonagem terapêutica, de enorme alcance, frente a numerosas doenças para as

quais a medicina contemporânea não dispõe de alternativas eficazes de tratamento.

O grupo liderado por Ian Wilmut afirma que praticamente todos os animais que foram clonados nos últimos anos a partir de células não embrionárias estão com problemas (RHIND, 2003). Entre os diferentes defeitos observados nos pouquíssimos animais que nasceram vivos após inúmeras tentativas, observam-se: placentas anormais, gigantismo em ovelhas e gado, defeitos cardíacos em porcos, problemas pulmonares em vacas, ovelhas e porcos, problemas imunológicos, falha na produção de leucócitos, defeitos musculares em carneiros. De acordo com Hochedlinger e Jaenisch (2003), os avanços recentes em clonagem reprodutiva permitem quatro conclusões importantes: 1) a maioria dos clones morre no início da gestação; 2) os animais clonados têm defeitos e anormalidades semelhantes, independentemente da célula doadora ou da espécie; 3) essas anormalidades provavelmente ocorrem por falhas na reprogramação do genoma; 4) a eficiência da clonagem depende do estágio de diferenciação da célula doadora (ZATZ, 2004, p.250).

16 A clonagem reprodutiva humana é a técnica pela qual se pretende fazer uma cópia de um indivíduo. Nessa técnica, transfere-se o núcleo de uma célula, que pode ser uma célula de um adulto ou de um embrião, para um óvulo sem núcleo. Se o óvulo com esse novo núcleo começasse a se dividir, fosse transferido para um útero humano e se desenvolvesse, ter-se-ia uma cópia da pessoa de quem foi retirado o núcleo da célula.

34

A comunidade científica internacional rapidamente percebeu que seria possível

combinar as duas tecnologias recém-descobertas (a clonagem e as células-tronco humanas).

Isso deu origem ao conceito de clonagem terapêutica, tecnologia por meio da qual é possível

reconstruir ou reparar tecidos danificados por doenças ou por acidentes a partir de novas

células com as mesmas características que as do tecido afetado e a mesma identidade genética

do paciente (JOSÉ, 2005, p. 22).

5. Clonagem terapêutica

A clonagem terapêutica, muitas vezes confundida com terapia celular17, é a

transferência de núcleos de uma célula para um óvulo sem núcleo. Trata-se do aprimoramento

das técnicas hoje existentes para culturas de tecidos, realizadas há décadas.

Na clonagem terapêutica, o embrião clonado, gerado pela transferência nuclear (um conglomerado de aproximadamente 100 células), é dissociado no laboratório para a obtenção das células-tronco embrionárias, células pluripotentes, que dariam origem a todos os tipos de células do embrião. Essas células podem ser multiplicadas em cultura, mantendo essa capacidade de diferenciação quase ilimitada (PEREIRA, 2005).

Ao transferir o núcleo de uma célula de uma pessoa para um óvulo sem núcleo, esse

novo óvulo ao dividir-se gera, em laboratório, células potencialmente capazes de produzir

qualquer tecido. Nos dias atuais, apenas é possível cultivar em laboratório células com as

mesmas características do tecido de onde foram retiradas. As técnicas mais avançadas de

clonagem tornariam possível a geração de um órgão que serviria para substituir o órgão

equivalente cuja função tenha deteriorado. A clonagem terapêutica teria a excepcional

vantagem de evitar os fenômenos de rejeição, se o doador fosse também o próprio receptor.

Seria o caso, por exemplo, de reconstituir a medula em alguém que se tornou paraplégico após

um acidente ou substituir o tecido cardíaco em uma pessoa que sofreu um infarto, conforme

algumas experiências já demonstraram (ZATZ, 2004, p.251).

Nos portadores de doenças genéticas não seria possível usar as células do próprio

indivíduo (porque todas têm o mesmo defeito genético), mas de um doador compatível. As

células-tronco mais bem conhecidas são as células-tronco do tecido hematopoiético. Os

transplantes de medula óssea para o tratamento de diversas doenças hematológicas constituem

um transplante de células-tronco com potencial gerador de células do tecido sanguíneo. Para

cada 10 mil a 15 mil células da medula óssea há uma célula-tronco. O transplante de medula

17 Ex.: transplante de medula óssea para tratar pacientes com leucemia ( ZATZ citado por WELTER, 2005).

35

óssea, para o tratamento de pacientes portadores de leucemia é um método de terapia celular

já conhecido e de eficácia comprovada. A medula óssea do doador contém células-tronco

sangüíneas que vão fabricar as novas células sangüíneas sadias (SOUZA & ELIAS, 2005, p.

8).

6. Potencial terapêutico das células-tronco

Algumas propriedades18 únicas das células-tronco são objeto de intensas pesquisas e

fazem com que os cientistas busquem nelas a possibilidade de encontrar a cura para muitas

doenças degenerativas.19 A terapia consiste em usar grupos de células-tronco para tratar

doenças e lesões através da substituição de tecidos doentes por tecidos formados por células

saudáveis. Essas doenças causam a morte prematura ou mal-funcionamento de tecidos, células

ou órgãos, dentre elas, as doenças neuromusculares, diabetes, doenças renais, cardíacas ou

hepáticas (SOUZA & ELIAS, 2005, p. 6).

As CTE têm sido usadas na reconstituição de tecido cardíaco em pacientes que sofreram infarto do miocárdio. Estudos experimentais têm sido realizados em modelos animais usando-se as células-tronco para doenças neurológicas, como doenças de Parkinson ou Alzheimer. A pesquisa com as CTE tem se tornado uma esperança no tratamento da diabetes, na reconstituição óssea e dentária, na regeneração de tecido renal e hepático. Pesquisas com as CTE, ainda, têm sido vistas por muitos pesquisadores como a mais importante ferramenta na recuperação de pacientes que sofreram lesão na medula espinhal e hoje vivem em cadeiras de rodas. O uso clínico das células-tronco embrionárias apresenta-se como a principal esperança da ciência no tratamento de diversas doenças neuromusculares degenerativas e de inúmeras outras doenças sem cura até o presente momento (PRANKE, 2004, p. 34).

Outra possibilidade consiste em utilizar algumas linhagens de células-tronco

experimentalmente para testar a potência e a eficiência de determinadas drogas, como as que

se usam no tratamento de alguns tipos de câncer, por exemplo, e muitas outras drogas

potentes, antes da sua indicação para uso em humanos, além da geração de células capazes de

serem usadas como terapia substitutiva de células danificadas por doenças, em lugar dos

transplantes (SOUZA & ELIAS, 2005, p. 6).

18 Diferenciar-se e constituir diferentes tecidos no organismo e auto-renovação. 19 O transplante de medula óssea para o tratamento das leucemias é uma forma de tratamento com células-tronco de eficácia comprovada. A medula óssea do doador compatível contém as células-tronco ematogênicas que irão formar as novas células sanguíneas sadias.

36

Pesquisas recentes mostram resultados que parecem muito promissores. Um grupo israelense mostrou recentemente (Kehat et al., 2001) que células embrionárias em cultura conseguem transformar-se em células cardíacas, o que abre possibilidades terapêuticas enormes tanto para patologias genéticas como para doenças adquiridas (ZATZ, 2002, p. 94). São as células do embrião que apresentam a maior potencialidade para diferenciação e aplicação terapêutica. Para a maioria dos cientistas, as células-tronco derivadas de embriões são as que apresentam melhor eficiência nos resultados em pesquisas realizadas até o presente momento, uma vez que o potencial de diferenciação ainda encontra-se em seu estágio inicial. Para tanto, são produzidos embriões humanos ou utilizados embriões excedentes de fecundações in vitro, ou criopreservados, propiciando-se o desenvolvimento até a fase de blastocisto inicial. Nesta fase é realizada a retirada do embrioblasto ou massa celular interna, operação que resulta na destruição do embrião (PUSSI & PUSSI, 2005, 65).

Apesar das favoráveis perspectivas, o uso de embriões para obtenção de células-tronco

(clonagem terapêutica20) ainda se encontra em estágio evolutivo e seu potencial é objeto de

muita especulação e expectativas, principalmente devido às resistências de ordem ética, moral

e religiosa, mesmo após a aprovação da Lei de Biossegurança. Os argumentos contra o uso de

embriões para a clonagem terapêutica são de que podem abrir caminho para a clonagem

reprodutiva humana; gerar um comércio de embriões ou destruir vidas ao se destruir o

embrião cujo destino seria ser descartado em clínicas de fertilização. A fundamentação desses

argumentos, conforme a posição da Igreja Católica, é de que os embriões devem ser

considerados como seres humanos, pois a vida começa no momento da concepção. A opinião

não é exclusiva de religiosos, pois encontra repercussão em partidos democrata-cristãos que,

na Alemanha, por exemplo, junto com o Partido Verde, formou forte oposição à utilização de

verbas públicas da União Européia para a pesquisa com células-tronco embrionárias (VOGT,

2004).

Dentre os contrários no Brasil, destacam-se a médica veterinária e pesquisadora Alice

Teixeira Ferreira, coordenadora do Núcleo Interdisciplinar de Bioética da Universidade

Federal de São Paulo e integrante do Núcleo Fé e Cultura da Pontifícia Universidade Católica

de São Paulo, juntamente com Dalton Luiz de Paula Ramos, da Universidade de São Paulo e

membro da Pontifícia Academia Pro Vita. Os dois publicaram em 2004 o Manifesto contra a

utilização de embriões humanos em pesquisa, que expressa posição contrária à clonagem

terapêutica e a utilização de embriões humanos em pesquisas, mesmo os que estão congelados

em clínicas de reprodução assistida. O texto chega ainda a propor a proteção dos embriões dos

processos de reprodução assistida (VOGT, 2004). Ambos os pesquisadores são citados pelo

20 Transferência nuclear somática.

37

ex-procurador Claudio Fontelles na ADI 3510 e asseguram que as células-tronco adultas

podem agir como as embrionárias.

Existe a possibilidade de que uma célula-tronco adulta ser transformada e obter as características das embrionárias. Uma pesquisa de uma empresa norte-americana, a Prime Cell, comprovou isso com células germinativas (as células-sexuais ou gametas). Esta empresa agora tem as patentes dessa técnica e passará a comercializar células com potenciais diferentes de formar pele, ossos, músculos e até mesmo nervos. Sugiro a quem busca a cura para doenças em células embrionárias que passe a pesquisar como transformar as células-tronco adultas do líquido amniótico (TEIXEIRA apud PERRI, 2007).

Não há consenso claro a respeito de qual tipo de célula-tronco (embrionária ou adulta)

seja a mais adequada, como também parece não haver ainda evidências científicas suficientes

que comprovem a eficácia delas no tratamento das doenças degenerativas. Outro argumento

de pesquisadores divergentes dos benefícios das pesquisas com células-tronco provenientes de

embriões congelados, é a possibilidade de rejeições, tumores, diferenciações e anormalidades,

conforme uma lista de 10 argumentos científicos, elencados pela bióloga Lilian Piñero Eça,

em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, juntamente com o jurista Ives Gandra da

Silva Martins (2005). Os dois citam o trabalho científico do norte-americano Rudolf Jaenisch,

para quem “o segredo está guardado numa ‘chave’ molecular: o gene Oct-4”. A idéia também

é reforçada por outro pesquisador, Antônio Carlos Campos de Carvalho (2001), do Instituto

de Biofísica Carlos Chagas Filho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que menciona

essa descoberta feita em pesquisas com camundongos, segundo a qual mesmo as células-

tronco adultas seriam pluripotentes.

1) No caso da utilização das células de embriões congelados há mais de três anos, trata-se de um transplante heterólogo, com grande possibilidade de rejeição, visto que, à medida que essas células se diferenciam para substituir as lesadas num tecido degenerado, elas começam a expressar as proteínas responsáveis pela rejeição (Jonathan Knight). 2) Allegrucci e colegas dizem que células-tronco de embriões congelados estão longe de ser a "perfeita fonte de células para terapias", pois originam teratomas (tumores de caráter embrionário). 3) Além disso, ocorrem mutilações no DNA dos embriões congelados, que não são passíveis de identificação, aumentando o risco de silenciarem genes. Portanto, não servem para a pesquisa. 4) Há total descontrole das células embrionárias, surgindo diferenciações em tecidos distintos nas placas de cultura, com o que se poderia estar renovando experiências atribuídas a Frankstein. 5) Cada blastocisto fornece entre 100 e 154 células-tronco embrionárias. É preciso saber quantos embriões humanos frescos seriam sacrificados. Por exemplo, na terapia com autotransplante de células-tronco adultas provenientes da medula óssea,

38

é necessário um total de 40 milhões de células-tronco, vale dizer, haveria a necessidade de 300 mil a 400 mil embriões, pois não se pode expandir o número dessas células em placas, por motivo de contaminação. 6) Andrews e Thomson, em 2003, referem que as células-tronco humanas em cultura apresentam anormalidades cromossômicas à medida que se diferenciam, com risco de se malignizarem. 7) Quanto à clonagem terapêutica, não se conseguiu até agora clonar um primata. Ao tentar, obtém-se meia dúzia de células aneuplóides (células cujos núcleos contêm um número diferente de cromossomos). 8) Feeder layers são camadas de tecidos retiradas de fetos vivos em qualquer estágio, vendidas em dólares nos Estados Unidos, as quais estão sendo utilizadas para garantir a qualidade do cultivo das células-tronco embrionárias. 9) Joel R. Chamberlain e colegas mostraram em estudo que há doenças genéticas que podem ser tratadas, mas com células tronco adultas, modificadas geneticamente, como na Osteogenesis Imperfecta, a qual origina desordens ósseas no esqueleto. Os resultados demonstrados foram um sucesso. 10) "Célula adulta age como embrionária", de acordo com o cientista Rudolf Jaenisch. O segredo está guardado em uma "chave" molecular: o gene Oct-4. A molécula trabalha no estágio inicial do embrião, "segurando" as células para não se diferenciarem antes da hora. No tempo adequado, o gene se desliga e as células formam, então, os tecidos certos. Com o controle do gene, é possível fazer com que certas células-tronco adultas sejam mantidas nesse estágio sem diferenciação, o que pode expandir seu campo de atuação na pesquisa de novos tratamentos (www.cell.com). Vemos alternativas para estudar a cura das doenças. Cresce o número de trabalhos nos quais se verifica, com sucesso, a recuperação de tecidos ou órgãos lesados, utilizando células-tronco adultas. Um exemplo é o trabalho de Nadia Rosenthal, publicado no "Proceedings of the National Academy of Sciences", sobre o sucesso em usá-las para recuperar tecidos musculares. Devemos lembrar, também, do sucesso do pioneirismo brasileiro nas aplicações de células-tronco adultas em seres humanos, no tratamento das cardiopatias, doenças auto-imunes, lesão de medula espinhal, lesão de nervos periféricos, entre outras (MARTINS & EÇA, 2005).

Todavia, os cientistas que apostam nas pesquisas com células-tronco embrionárias

refutam a plasticidade das células-tronco adultas e atacam os colegas divergentes de

fundamentarem suas posições em restrições de cunho moral e religioso. É o que pensa

Mayana Zatz, coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano e pró-reitora de

pesquisas da Universidade de São Paulo (USP): “trabalho com doenças neuromusculares, para

as quais as CTA não servem, e com as pesquisas com CTE poderíamos ter esperanças de vida

(ZATZ apud PERRI, 2007). Visão igual possui Patrícia Pranke, farmacêutica e professora de

hematologia da Faculdade de Farmácia e pesquisadora do programa de pós-graduação em

Medicina: Ciências Médicas da UFRGS e PUCRS:

Muitos estudos mostram que a plasticidade das CTA [célula-tronco adulta] é uma esperança crescente, enquanto vários outros questionam a sua plasticidade. Além disso, outros trabalhos mostram que as CTA apresentam problemas como o fato dessas células não crescerem bem em cultura ou apresentarem maiores problemas de compatibilidade. Outra vantagem das CTE [células-tronco embrionárias], quando

39

comparadas com as CTA, é em relação a telomerase, a enzima que restaura os telômeros, a parte final do DNA, o que controla o número de vezes que as células podem se dividir. A telomerase está presente em grandes concentrações nas CTE, mas não nas CTA. Sendo assim, nas CTA os telômeros estão encurtados o que limita a capacidade de proliferação celular. Em outras palavras, as células são mais velhas e, portanto, têm uma vida mais curta. Devido a esses fatores, muitos pesquisadores acham necessário estudar as CTE, frente a incerteza da plasticidade das CTA e de sua capacidade regenerativa, pois apenas através da pesquisa as respostas a essas perguntas serão obtidas. Diante disso, acredita-se que o melhor tipo de célula-tronco a ser utilizado com essa finalidade seria a célula-tronco embrionária (PRANKE, 2004, p. 34).

7. Desafios e reflexões sobre a clonagem terapêutica

Apesar do crescente otimismo com as mais recentes descobertas e possibilidades para

a medicina regenerativa, persiste também o apelo à cautela e espera por mais dados que

confirmem o verdadeiro potencial terapêutico da clonagem terapêutica. Nos últimos meses,

tem-se sobressaído diferentes notícias que dão conta de avanços no campo das pesquisas com

células-tronco, extraídas por outros meios diferentes, o que revelam tentativas de superar o

impasse ético com a destruição dos embriões, mesmo daqueles que seriam descartados em

clínicas de fertilização.

Dentre elas, um grupo de cientistas da Universidade Wake Forest, Carolina do Norte,

anunciou terem conseguido obter células-tronco com potencial terapêutico a partir do líquido

amniótico de dentro de placentas. Os resultados da pesquisa, publicados em 8 de janeiro de

2007 na revista “Nature Biotechnology”, são promissores e se juntariam a outras técnicas de

obtenção de células-tronco embrionárias sem o inconveniente ético de destruir o embrião

(LEITE, 2007).

A mais recente pesquisa anuncia ter criado embriões clonados de seres humanos.

Cientistas norte-americanos, liderados por Samuel Wood, da Stemagen Corp, disseram ter

utilizado a pele para produzir cinco embriões clonados. O processo envolveu a introdução do

núcleo da célula do indivíduo a ser clonado no interior de um óvulo não-fertilizado, cujo

núcleo foi previamente retirado (FOLHA ONLINE, 2008). A recente descoberta foi vista com

desconfiança pelos cientistas, mas trata-se de um possível avanço a uma técnica já existentee

em 2005, quando a equipe liderada pelos especialistas Kevin Eggan e Douglas Melton,

divulgou a criação de células-tronco embrionárias a partir da fusão entre uma célula-tronco

embrionária com células adultas de pele e de osso, o que eliminaria a necessidade de clonar

embriões humanos (FOX, 2005).

40

Mesmo que as recentes técnicas venham a superar o debate ético, a própria validade da

clonagem terapêutica ainda carece de melhor aprofundamento e maturação, o que irá

demandar mais tempo, investimento e pesquisas. Lluís Montoliu José (2005, p. 58-59) levanta

alguns tópicos importantes para reflexão e norteamento sobre a questão:

1) Com os dados atuais não é possível optar entre os diferentes tipos de células-tronco identificados. Não parece haver um tipo de célula-tronco que possa resolver todos os problemas e questões suscitados pela medicina regenerativa.

2) É necessário continuar as linhas de pesquisa nos dois tipos de células-tronco, tanto as de origem embrionária/germinal como as derivadas de tecidos adultos/somáticos. Nosso nível de conhecimento de todos os tipos de células-tronco identificados certamente é muito limitado e, sem dúvida, deve aumentar consideravelmente, antes de pensar em aplicações terapêuticas imediatas sem um mínimo de rigor científico.

3) Provavelmente serão desenvolvidos diferentes e múltiplos protocolos de terapia celular, alguns baseados no uso de células-tronco embrionárias e outros baseados em aplicações derivadas de células-tronco somáticas ou adultas.

4) Ainda estamos longe de obter resultados reprodutíveis, seguros e confiáveis que sejam diretamente aplicáveis em uma terapia humana, apesar das boas perspectivas e dos resultados preliminares conhecidos, tanto em modelos animais como em pacientes humanos.

5) A clonagem terapêutica em humanos, tecnicamente, ainda pode demorar. A transferência de protocolos experimentais entre distintas espécies de mamíferos pode não ser tão automática nem imediata como se julgava, exigindo a adaptação dos métodos às características biológicas e fisiológicas de cada espécie (JOSÉ, 2005, p. 58-59).

Como não há evidências capazes de orientar seguramente a opinião pública, a

comunidade científica e os poderes legislativo e judiciário, parece que a conduta vigilante e

prudente mostra-se a mais eficaz para conduzir esse debate. Na ausência de protocolos

seguros sobre os riscos e benefícios da pesquisa com células-tronco, não nos parece adequado

restringir as pesquisas com as CTE, dado que os resultados com as CTA são ainda

desconhecidos. Do mesmo modo, não se pode oferecer salvo conduto aos procedimentos da

ciência sem o devido acompanhamento dos comitês de ética em pesquisa e a constante

vigilância da opinião pública, verdadeiro beneficiário das conquistas científicas. Acrescente-

se também o alerta dado pelos editores do periódico médico britânico The Lancet, para o qual

“nenhuma terapia segura e eficaz com células-tronco estará disponível por pelo menos uma

década, possivelmente mais que isso” (LEITE, 2005, p. 9). Por fim, são necessárias

prudência, paciência e perseverança, além de ausência de dogmatismos ou apriorismos e a

presença constante de rigor e capacidade autocrítica como guias fundamentais para o

progresso científico na pesquisa sobre as células-tronco (JOSÉ, 2005, p. 59).

41

CAPÍTULO III – ASPECTOS ÉTICOS E RELIGIOSOS DA PESQUISA COM CÉLULAS-TRONCO

1. Distinção entre ética, valores e moral Antes de iniciarmos a abordagem sobre os aspectos éticos e religiosos deste trabalho,

será importante revisitar, ainda que sucintamente, a distinção entre os conceitos valor, ética e

moral, constantemente empregados como sinônimos, mas que possuem definições e

aplicações específicas. Tais conceitos, como instrumentos conceituais, podem dar origem a

equívocos, desvirtuar o objetivo de determinada argumentação ou até mesmo funcionar como

pretexto ou falseação. Por valor, Rokeach (apud SEGRE & COHEN, 2002, p. 19) define uma

crença duradoura em um modelo específico de conduta ou estado de existência, pessoalmente

ou socialmente adotado, embasado em uma conduta preexistente.

Por sua vez, o termo ética (ethos) é de etimologia grega que, na sua significação mais

arcaica, designava o "lugar próprio do homem", o que é específico do homem. Na utilização

que dele faz Aristóteles assume a significação de "caráter" ou "costume". Refere-se aos

costumes, à conduta de vida e às regras de comportamento. Circunscreve-se ao agir humano,

aos comportamentos cotidianos e às opções existenciais. Ela se fundamenta em três pré-

requisitos: 1. Percepção dos conflitos (consciência); 2. Autonomia (condição de posicionar-se

entre a emoção e a razão); 3. Coerência. Partindo dessa condição, a postura religiosa, por

exemplo, não é autônoma, pois não se embasa nesses pré-requisitos. É comum certos

dicionários definirem ética como a ciência da moral.21

O termo moral (mas, mores) é de origem latina que, durante longos séculos, traduziu o

termo ethos nas suas duas acepções. Hoje, impõe-se uma distinção entre "ética" e "moral"

como, respectivamente, ciência dos fundamentos ou dos princípios da ação e conjunto de

normas que regulam a ação humana. Alguns doutrinadores, como o filósofo Paul Ricoeur,

fazem uma distinção entre ética e moral, estabelecendo a primazia da ética sobre a moral. Para

o filósofo, a ética seria o objetivo da vida boa, questionamento sobre o fim, o fundamento,

enquanto que a moral seria o sistema fechado de normas. Isso se deve ao fato de que para a

moral funcionar, ela deve ser imposta. A moral resulta de juízos impostos (pela família,

sociedade, religião, códigos de conduta) e exclui a autonomia do indivíduo, mediante a idéia

21Para o Dicionário Aurélio, moral é o conjunto de regras de conduta consideradas como válidas, quer de modo absoluto para qualquer tempo ou lugar, quer para grupo ou pessoa determinada. No entanto, esta definição não prevê nem a moral quanto a ética como conceitos que devem ser histórica, social e geograficamente situados. Por outro lado, já se falou que “ética vem de dentro e moral vem de fora” (SEGRE, 2002, p. 40).

42

implícita de prêmio (pelo ato “bom”) ou de castigo (pelo ato “mau”) (SEGRE & COHEN,

2002, p. 28). É por isso que a moral vem de fora (imposta), enquanto que a ética parte de

dentro do ser humano (construção autônoma de valores).

O que ocorre agora com a distinção proposta entre ética e moral? Nada na etimologia ou na história do emprego dos termos a impõe. Uma vem do grego, a outra do latim; e as duas remetem à idéia intuitiva de costumes, com a dupla conotação, que procuraremos decompor, do que é considerado bom e do que se impõe como obrigatório. É pois por convenção que reservei o termo “ética” para o objetivo de uma vida realizada e o de moral para a articulação desse objetivo em normas caracterizadas ao mesmo tempo pela pretensão à mensuralidade e por um efeito de coação (dizemos, no momento oportuno, o que liga esses traços um ao outro) (RICOEUR apud DURAND, 2003, p. 72).

Procurando trabalhar estes conceitos relacionados com a pesquisa e a reflexão, Durand

(1995), vê ética e moral como sinônimos e ressalta o seu campo de ação:

A pesquisa: entendida como a procura do que é certo, do que é necessário fazer. É a

pesquisa de normas ou de regras de comportamento, a análise dos valores, a reflexão sobre os

fundamentos dos direitos, dos valores e das normas. O que importa neste campo de

abrangência é buscar, conhecer e descobrir os valores para somente então interiorizá-los ou

seguir as normas. Esta pesquisa não é exclusividade de especialistas, constitui

responsabilidade de cada pessoa.

A sistematização da reflexão: é o resultado da pesquisa, podendo-se entender a ética ou a

moral como “um conjunto organizado, sistemático, hierarquizado de regras ou de valores”.

Neste sentido, são distintas as aplicações permitidas:

O conjunto mais ou menos organizado e coerente de valores, de regras e de

direções de vida de cada um: “minha moral pessoal”;

O sistema ou a síntese elaborada pelos diferentes pensadores: a ética de Aristóteles,

de Kant, de Descartes, etc.

As exigências, os valores, os princípios que servem de base e justificativa para o

comportamento de um grupo ou de uma sociedade: ética cristã, ética grega, moral

católica, moral marxista etc.

A prática: a experiência concreta do cotidiano, quando ocorre a realização dos

valores, o esforço pessoal para aplicar os princípios e observar as normas.

43

2. Histórico e definições do termo bioética

O vocábulo bioética apareceu pela primeira em 1971, aplicado pelo oncologista e

biólogo americano Van Rensselaer Potter, em sua obra Bioética – uma ponte para o futuro.

Com um sentido diferente do que é atualmente utilizado, o vocábulo visava referir-se à

importância das ciências biológicas na melhoria da qualidade de vida, a fim de que as

preocupações éticas voltadas à dignidade da vida humana dirigissem as pesquisas científicas

no campo da biologia (CLOTET, 2003, p. 21; WESTPHAL, 2006, p. 5).

Crendo em uma concepção de evolucionismo tríplice para a humanidadae (biológica,

cultural e fisiológica), a obra de Potter somou-se a outros pensadores que começavam a

vislumbrar desafios e dilemas éticos com a evolução da biotecnologia. Dentre estes podemos

destacar o médico holandês André Hellegers, que estabeleceu critérios para as discussões em

bioética22, o teólogo metodista Paul Ramsey23, organizador da Encyclopedia of Bioethics, e o

teólogo anglicano Joseph Fletcher24, na obra Morals and medicine.

A Encyclopedia of Bioethics, por sua vez, define a bioética como um estudo

sistemático da conduta humana no campo das ciências biológicas e da atenção de saúde,

sendo esta conduta examinada à luz de valores e princípios morais, constituindo um conceito

mais amplo que o da ética médica, tratando da vida do homem, da fauna e da flora. Seu estudo

reúne a contribuição da medicina, psicologia, direito, biologia, antropologia, sociologia,

ecologia, teologia, filosofia, etc, observando as diversas culturas e valores.

Dentre as diferentes questões estão os problemas éticos relacionados ao início e fim da

vida humana, os novos métodos de fertilização, da seleção de sexo, da engenharia genética, da

maternidade substitutiva, das pesquisas em seres humanos, do transplante de órgãos, dos

pacientes terminais, das formas de eutanásia e, mais recentemente, da clonagem reprodutiva e

terapêutica, da terapia com células-tronco, etc.

Atualmente, não apenas a introdução de valores éticos referentes à vida do ser humano

permeiam os acirrados debates de cunho bioético, mas os recentes relatórios, congressos e

comissões de estudo que alertam sobre os riscos ambientais começam também a reclamar para

si a bandeira de uma ética ambiental planetária que permeie não somente as discussões mas

22 Entre os critérios podem ser destacados: o diálogo interdisciplinar, a racionalidade dos argumentos, a suspensão dos argumentos de autoridade, a elaboração de novas respostas, a importância do diálogo ecumênico e a ajuda das grandes tradições religiosas, e a provisoriedade das respostas (MOSER, 2004, p.312). 23 Ramsey, em sua obra O paciente como pessoa, enfatiza as modificações das dimensões morais do relacionamento médico-paciente, introduzidas pela nova medicina. 24 Fletcher realiza uma análise teológica que enfatiza a liberdade e autoridade do paciente, adotando uma posição liberal em relação à eutanásia.

44

também as decisões que podem acarretar mudanças climáticas e danos ao meio ambiente.

Neste prisma, questões ligadas ao uso de agrotóxicos, dos alimentos geneticamente

modificados, de animais em experimentos ou do controle da emissão de poluentes e do

desmatamento desenfreado, norteiam debates com crescente participação popular.

3. Uma ética aplicada

É necessário frisar que a bioética não é uma nova ética. Trata-se de uma disciplina da

Ética, ramo da Filosofia Moral, já conhecida e estudada ao longo da história da Filosofia, mas

aplicada agora a uma série de questões e situações ligadas à vida humana, principalmente

aquelas trazidas pelo avanço das ciências biomédicas. Pode-se falar de Macrobioética – ao

abordar matérias como a Ecologia, visando a preservação da espécie humana no planeta, ou a

Medicina Sanitária, dirigida à saúde de determinadas comunidades ou populações, e a

Microbioética, voltada basicamente para o relacionamento entre os profissionais da saúde e os

pacientes, e, ainda, no interesse deles, destas com relação aos profissionais da saúde (SEGRE

& COHEN, 2002, p. 27).

O espectro de atuação da bioética pretende envolver não apenas a responsabilidade de

médicos, cientistas, biotécnicos, mas também as decisões e o destino de cada ser humano, as

responsabilidades políticas e culturais da coletividade, o que torna a bioética muito acima da

deontologia25 pura profissional e da ética médica (BELLINO, 1997, p. 47). A compreensão

das últimas décadas é a de que já não é mais possível deixar ao médico responder sozinho

com seu código de ética, ou ao pesquisador com todos os interesses pessoais e institucionais

que cercam a pesquisa científica, sobre quais procedimentos médicos adotar ou quais serão as

políticas adotadas em ciência e tecnologia. A este debate que reúne primeiro a comunidade

científica, pretende somar-se a sociedade civil, juristas, religiosos, filósofos e dirigentes

políticos, todos interessados em fundamentar posturas e justificar escolhas.

Defensores da bioética, interessados em salvaguardar o alcance de sua atuação em

meio a críticas dos cientistas, buscam constantemente definir o que não é bioética. Logo,

afirmam de que não se trata de uma ética científica, tampouco uma ética adaptada às

circunstâncias ou uma moral adaptada aos novos desafios trazidos pelo desenvolvimento da

25 A deontologia refere-se ao conjunto de princípios, fundamentos e sistemas de moral, aplicados a cada profissão (Os conhecidos códigos de ética profissionais). Trata-se de uma moral de deveres. Do grego Déontos: ‘o que é obrigatório, necessário’.

45

biotecnologia. Mesmo que Hans Jonas tenha falado em uma nova ética, alguns autores tratam

de recolocar a questão e dizer que não se trata de uma nova

...mas uma séria e profunda reproposição e explicitação da ética tradicional, em particular aquela fundada na metafísica clássica e escolástica, centrada no realismo axiológico, na contextualidade onto-axiológica do ser e do bem (BELLINO, 1997, p. 59-63).

4. Uma ética principialista A bioética surgiu, sobretudo a partir das questões que envolvem a relação médico-

paciente. Era necessário produzir princípios que viessem a nortear a elaboração de juízos e

tendências para regular a atuação médica e oferecesse ao paciente condições para decidir

sobre procedimentos médicos e a aplicação de tratamentos ou não. Três princípios foram

então erigidos para fundamentar a bioética: autonomia (autodeterminação), beneficência e

não-maleficência (o maior bem do paciente) e de justiça (a distribuição equânime de

benefícios e obrigações na sociedade).26

O princípio da autonomia obteve enorme destaque nos EUA, uma vez que procurou

codificar o relacionamento entre o usuário do serviço de saúde e o profissional médico.

Resistindo ao paternalismo comum dos médicos27, afirma-se a liberdade de escolha do

paciente e a obrigatoriedade do consenso livre e informado, quando tenha condições para tal.

Na falta dessas condições, cabe ao círculo familiar decidir. Surge a idéia do “consentimento

informado” e o médico deixa de tomar decisões, mas ajuda o doente a, devidamente

informado, a fazê-las (MOSER, 2004, p. 319).

Trata-se de uma conquista recente, que busca garantir o respeito à individualidade e o

reconhecimento do outro pensar e sentir à sua própria maneira. Fundamentada no iluminismo

europeu, sobretudo a partir de Descartes, Montesquieu, Rousseau e depois Kant – muito

embora Kant seja muito mais um deontologista do que um autonomista – recebeu depois a

contribuição da interiorização e autoconhecimento da psicanálise de Freud (SEGRE, 2002, p.

37).

26 É comum a citação de um quarto princípio – o da não-maleficência – mas que alguns autores contestam por se tratar de um contraponto ou significar, por conseqüência lógica, ao da beneficência (PEGORARO, 2002, 98s; SEGRE & COHEN, 2002, p. 36). A obra que oferece o marco inicial dos princípios da bioética é o trabalho de BEAUCHAMPS, T. L. & CHILDRESS, J. F. Principles of biomedical ethics. New York, Oxford Press, 1989. A ética principialista também recebe a influência do Relatório Belmont, editado em 1974 a partir do trabalho da Comissão Nacional para a Proteção de Seres Humanos da Pesquisa Biomédica Comportamental, do Congresso dos EUA (WESTPHAL, 2006, p. 9; SEGRE & COHEN, 2002, p. 35). 27 Sob a inspiração do juramento de Hipócrates, o médico era visto como aquele que sabe, aquele que cura e aquele que decide (MOSER, 2004, p. 318).

46

O princípio da beneficência, também associado à prática médica, visa demarcar a

obrigatoriedade de buscar a melhora terapêutica do paciente. Se de um lado o médico precisa

atentar para o direito de autonomia do paciente, deverá igualmente preocupar-se como os

procedimentos que irá tomar para não causar mais riscos ou efeitos colaterais ao doente. Este

princípio ofereceu forte ênfase para a noção de responsabilidade do médico, quando suas

práticas passam a causar mais danos ao paciente ou, quando equivocadas, deixam seqüelas ou

causam o óbito.

Em seu significado filosófico moral, beneficência significa fazer o bem. São os

moralistas britânicos dos séculos XVIII e XIX que se debruçaram sobre o conceito de

benevolência, forma genérica da beneficência. Para estes pensadores, dentre os quais David

Hume e Jeremy Bentham, há no homem, de forma prioritária, um princípio natural de procura

e realização do bem dos outros. Esta noção é uma contraposição crítica à idéia de Thomas

Hobbes, para quem a natureza humana é dominada por forças do egoísmo, da

autoconservação e competição (BUTLER apud CLOTET, 2003, p. 60).

O princípio da justiça visa estabelecer uma repartição equânime dos benefícios e dos

riscos, a fim de evitar discriminações e injustiças nas políticas e intervenções sanitárias. Sua

aplicação pode também se dirigir às questões médicas, como no caso de socorro a um número

de pacientes superior ao de unidades ou equipamentos de tratamento. Trata-se de critérios

sociais que orientam “quem vai viver ou morrer”. É bastante utilizado na condução e

aplicação de políticas de saúde pública, sobretudo quando se trata de estender os serviços de

saúde à populações de baixa renda.

Este princípio adquiriu novo vigor em função da crise econômica dos institutos de

previdência social nos anos 70, em função do envelhecimento da população nos países

desenvolvidos. Com dificuldades de atender às necessidades de todos, os governos optaram

em oferecer atendimento básico a todas as pessoas, reservando as necessidades mais

específicas para a cobertura de empresas particulares de seguro (MOSER, 2004, p. 322).

A aplicação destes princípios é geralmente relativa, com a tendência a estabelecer a

prioridade a um deles, principalmente em se tratando da complexidade dos dilemas que

exigem sua aplicação. É bastante recorrente a literatura que utiliza casos de conflitos éticos

com vistas a analisar as soluções ou encaminhamentos tomados. Dentre estes casos,

percebem-se antinomias e efeitos não-intencionais.28

28 O antinômico, no conflito de valores, se determina quando dois ou mais princípios ou valores, que se apóiam em premissas de igual validade ou que são considerados de igual importância se contradizem reciprocamente (BELLINO, 1997, 202).

47

Da mesma forma, são percebidos também mau uso dos princípios. É o que se pode

constatar na matéria “A piada do consentimento informado”, publicada pela versão on line do

jornal Le Monde Diplomatique. O jornal relata que os Estados Unidos relaxaram, em favor da

indústria de medicamentos, as normas sobre testes de novas drogas realizados no exterior,

sobretudo com voluntários carentes de países pobres (Índia, África e Brasil). Neste caso,

estaria ocorrendo um uso negligente do princípio da autonomia, que prevê o consentimento

informado do paciente ou do voluntário que se submete a tratamentos ou pesquisas

experimentais.

Os responsáveis norte-americanos da agência de medicamentos e alimentação (Food and Drug Administration, FDA) mostram-se, entretanto, confiantes na capacidade de auto-proteção dessas pessoas, dando ou retirando seu consentimento. Para Robert Temple, diretor médico da FDA, questionar a capacidade dos pacientes carentes de dar seu consentimento seria uma atitude paternalista. "Não se deve tratá-los como se fossem incapazes de atingir seus próprios objetivos", explicou. Ser analfabeto e pobre não é certamente um obstáculo intransponível: os conceitos científicos utilizados no centro de pesquisas são provavelmente desconhecidos para essas pessoas, mas não incompreensíveis (SHAH, 2007)

Do lado das críticas, persistem as manifestações contrárias à bioética que a vêem

apenas como uma apropriação pragmática e utilitarista, características de uma cultura anglo-

saxônica (GRACIA apud MOSER, 2004, p. 325). Outros consideram a necessidade de torná-

la mais laica, fazendo-a sair do campo confessional de sua origem, em função da pluralidade

cultural da sociedade moderna que abrange filosofias e éticas divergentes, além de muitas

concepções religiosas contrastantes (ENGELHARDT, 1996). É o caso, por exemplo, que

ocorre em muitos congressos internacionais de bioética, onde persistem dificuldades de

cosmovisões contrastantes a respeito de temas como aborto, eutanásia, status de pessoa do

embrião, já que teólogos e filósofos do mundo oriental não trabalham com a mesma

perspectiva ocidental. Tais dificuldades chegaram a impedir a celebração de acordos e

documentos norteadores em âmbito global.

O fato é que a bioética, se trabalha noções e almeja tornar-se universal, precisa

articular uma perspectiva intercultural e inter-religiosa.29 O entrave é que o confessionalismo

ainda mantém-se forte, como também a hegemonia ocidental que não esconde seu desconforto

29 Emergem no mundo moderno manifestações de cunho ético com pretensões globais: a iniciativa do Conselho Mundial de Igrejas, em Harare, 1999. O presidente, Katholikos Aram I, exigiu a elaboração de uma ética comum e básica. Para tal ética global ele citou a declaração do Parlamento das Religiões Mundiais de 1993. Destaca-se também o encontro A Peace Summit of Religious Leaders, ocorrido 2000 em Nova York, a convite do então secretário-geral das ONU, Kofi Anan e o pronunciamento do Papa João Paulo II, em abril de 2001, na Pontifícia Academia das Ciências Sociais, em favor de um código ético comum da humanidade (KUSCHEL & MIETH, s.d.).

48

com o progresso científico de pesquisadores de alguns países orientais, ainda livres de

condicionamentos éticos. Exemplo é a prática do Magistério católico e de sua recusa de

diálogo no terreno da moral, uma vez que a Igreja Católica tem dificuldade em considerar os

valores universais comuns do ponto de vista de uma busca (KUSCHEL & MIETH, s.d.).

5. Resistências de ordem moral – desafios de cunho ético

Apesar da enorme contribuição que a ética principialista oferece para o diálogo entre

bioética e biotecnologia, e principalmente para capacitar a opinião pública para uma conduta

vigilante sobre o fazer científico, percebe-se nos diversos artigos e manifestações

pretensamente a favor da vida restrições e imposições moralistas. As afirmações de

pesquisadores, teólogos, juristas e demais militantes, sob o manto da bioética, incorrem em

postulados intolerantes, arbitrários e fundamentados na moral do “não”. Apesar de se

pronunciar a favor do diálogo, um dos principais documentos católicos que fundamentam esta

postura arbitrária é a instrução Donum Vitae (Dom da Vida), publicado em 1987 pela

Congregação da Doutrina da Fé.30

Pesquisadores e cientistas se queixam de que a maioria destes atores sociais reclama a

necessidade de fixar códigos de conduta e normas legais com o objetivo de restringir – se não

interromper – atividades e pesquisas científicas, fundamentados em questões religiosas mais

do que científicas ou mesmo éticas. Esse pendor moralista para o ordenamento jurídico e para

a predileção para o princípio da beneficência em detrimento do princípio da autonomia se

explicaria pela tradição moral que outorga obrigações e imposições, quer sejam de ordem

legal, religiosa, instintiva, cultural, ou resultantes de outras injunções (SEGRE, 2002, p. 36).

A simplicidade da técnica da clonagem, fator que contribui para a popularização do método em laboratórios de todo o mundo e seu baixo custo, o que dificulta o controle dos governos e abre a brecha para clínicas clandestinas nos moldes do aborto, são razões suficientes para não deixar a questão relegada à livre iniciativa dos pesquisadores. Diante da transcendência de suas conseqüências, não basta

30 O documento coloca-se categoricamente contra as técnicas de reprodução humana assistida e certas invertevenções terapêuticas sobre os embriões: Não à produção e destruição de embriões in vitro; não ao intercâmbio com animais; não à produção de seres humanos selecionados segundo o sexo ou outras qualidades preestabelecidas; não à fecundação artificial heteróloga de qualquer tipo, com ou sem a implantação no útero; não à fecundação artificial in vitro, mesmo homóloga (com óvulo e espermatozóide dos cônjuges), ainda que se preveja a implantação no útero da esposa e a motivação seja a da esterilidade. O documento exige a intervenção das autoridades públicas para impor à sociedade leis mais favoráveis à família e também exige que se impeça a existência de bancos de embriões, a doação de gametas, a inseminação post mortem e a “maternidade substitutiva” (MOSER, 2004, p. 385-386). (grifo nosso)

49

afirmar os princípios de uma verdadeira bioética. Ainda que os consensos jurídicos e políticos não assegurem a verdade, o enorme pluralismo ético reinante, que torna praticamente impossível o consenso sobre valores fundamentais, obriga a recorrer à lei. Dado que as conseqüências da clonagem transcendem os indivíduos e afetam a sociedade como um todo, faz-se necessário que esta mesma sociedade defina alguns parâmetros basilares para uma reta e sensata ética (MELO, 2006).

A pregação militante que advoga a necessidade de ordenamentos jurídicos, em

detrimento dos consensos jurídicos e políticos, próprios do diálogo interdisciplinar que

marcam uma crescente parte dos interessados em ciência e tecnologia, também pode ser vista

pela tentativa de um retorno ao Estado dominado pelas forças da Igreja. Durante a recente

visita do Papa Bento VXI ao Brasil em 2007, o pontífice teria buscado celebrar um tratado

entre o Vaticano e o Itamaraty que garantisse mais privilégios à Igreja Católica, dentre eles a

instituição do ensino de religião nas escolas públicas. Na mesma época, em solenidade na

Câmara dos Deputados para celebrar o Dia das Mães, o deputado e bispo evangélico Robson

Rodovalho (DEM-DF) lançou a Frente Parlamentar da Vida e da Família e pregou contra a

legalização do aborto e a união civil de homossexuais:

“A nossa sociedade tem raízes cristãs. Respeitamos os indivíduos, o livre arbítrio e as escolhas de cada um, mas o Estado brasileiro não pode abrigar a prática do aborto nas suas leis... A frente é contra o aborto e veementemente a favor da proteção da vida. O Estado tem condições de cuidar das jovens que, por uma tragédia, como um estupro, por exemplo, não possam dar as boas-vindas aos seus filhos. Cabe ao Estado fazê-lo, mediante suas instituições. Há milhares de famílias nas listas de espera, pessoas que aguardam adoções” (RODOVALHO apud AGÊNCIA CÂMARA, 2007).

A arbitrariedade e a intolerância residem na incapacidade em não observar

adequadamente o exercício da autonomia responsável e a garantia de respeitar os direitos

fundamentais dos sujeitos morais envolvidos. Pretende-se que o Estado legisle, arbitre e

decida sobre o corpo das outras pessoas. Se os avanços no campo das biotecnologias –

principalmente no âmbito das técnicas da reprodução humana e, mais recente, nas técnicas de

manipulação genética, levantam desafios e geram enormes polêmicas, estas se circunscrevem

a um aspecto arbitrário e moralista, conforme denunciam alguns pesquisadores.

Tais polêmicas são de tipo moral e muito mais muito mais reflexo de temores quanto às possibilidades de alteração do status quo na condição humana – que o exercício da liberdade responsável abre – do que decorrência de ponderações éticas sobre vantagens e riscos de sua utilização (SCHRAMM & SEGRE, 2002, p. 42).

50

6. Fundamentos teológicos e doutrinários do discurso bioético

Os principais documentos religiosos que fundamentam não apenas a postura da Igreja

Católica, mas também de boa parte dos estudiosos e interessados em bioética são a instrução

Donum Vitae (Dom da Vida) e a encíclica Evangelium Vitae (O Evangelho da Vida). O

primeiro elaborado pela Pontifícia Academia para a Vida em 1987, trata sobre o respeito à

vida humana nascente. Já o segundo foi pronunciado pelo papa João Paulo II, em 1995, a

respeito do valor e o caráter inviolável da vida humana. A instrução Donum Vitae, mais

casuística, apresenta-se como um catecismo de bioética, com seis perguntas breves e incisivas

e suas respostas. Já em seu início, o princípio da precaução impõe-se sobre a capacidade de

avanço da ciência sobre uma espécie de “domínio” pré-determinado.

O homem pode dispor de recursos terapêuticos mais eficazes, pode também adquirir novos poderes sobre a vida humana em seu próprio início e nos seus primeiros estágios, com conseqüências imprevisíveis” [..] E ressalta ainda que com tais técnicas os homens podem “tomar em mãos o próprio destino”, expondo-o, ao mesmo tempo, à tentação de ultrapassar os limites de um domínio razoável sobre a natureza (DV, I, 2, p. 9).

Já o texto da Evangelium Vitae, cujos pressupostos teóricos e metodológicos se

encontram na encíclica anterior Veritatis Splendor (VIDAL, 1995, p. 506), ainda que não trate

do problema das células-tronco quando trabalha a questão do aborto, considera o tema da

identidade do fruto da concepção, que segundo alguns pesquisadores “ao menos até um certo

número de dias, ainda não pode ser considerado uma vida humana pessoal” (EV 60a).

Está em jogo algo tão importante que, do ponto de vista da obrigação moral, bastaria apenas a probabilidade de encontrar-se diante de uma pessoa para justificar a mais rotunda proibição de qualquer intervenção destinada a eliminar um embrião humano. Precisamente por isso, mais além dos debates científicos e das próprias afirmações filosóficas nas quais o Magistério não se comprometeu expressamente, a Igreja sempre ensinou que o fruto de uma geração humana, desde o primeiro momento de sua existência, deve ter garantido o seu respeito incondicional, que moralmente é devido ao ser humano em sua totalidade e unidade corporal e espiritual (EV 60b).

Embora já ressaltado o caráter autoritário e moralizador do documento, que registra

uma série de “nãos” no que se refere à reprodução humana em laboratório e a certas

intervenções terapêuticas sobre os embriões, deve-se destacar a proibição da manipulação de

embriões, em qualquer estágio de seu desenvolvimento (ANDRÉS, 2005, p. 106).

51

O ser humano deve ser respeitado e tratado como pessoa desde a sua concepção e, por isso, desde aquele mesmo momento devem ser-lhe reconhecidos os direitos da pessoa, entre os quais, antes de tudo, o direito inviolável de cada ser humano inocente à vida (DV, I, 1).

Mesmo apesar da força de o Vaticano emitir encíclicas, todas elas seguidas à risca

pelos diferentes segmentos católicos em todo o mundo, houve pequenas, mas não tímidas

reações ao caráter conservador, fundamentalista e dogmático de tais documentos, sobretudo

quando não abrem espaço para o diálogo racional com a comunidade científica. Vale ressaltar

a crítica do moralista católico Marciano Vidal, que foi forçado a aceitar uma notificação

romana após criticar o conteúdo da Evangelium Vitae (KUSCHEL & MIETH, s.d.):

...chama a atenção o interesse tão grande que o presente pontificado deu aos temas morais. Pode-se falar de uma “síndrome de moralização” dentro da consciência católica atual... ...É interessante constatar que as correntes teológicas que mais se opõem ao uso da razão autônoma no discurso teológico-moral e que mais se destacam a especificidade da moral cristã são agora os que defendem a identificação entre os conteúdos da fé e os conteúdos da razão na moral da vida humana. Acho que se deve continuar pensando a relação entre fé e razão e tratar de resolver a ambigüidade epistemológica subjacente a muitos documentos eclesiásticos, entre os quais temos que contar a Evangelium Vitae... ...A carga de maior profundidade e de maior amplitude contida na Evangelium Vitae é o juízo moral que emite sobre o sistema democrático de nossas sociedades... surge a dificuldade sobre o procedimento válido para conseguir esse consenso de valores, sem cair em nenhum dos dois extremos: o “fundamentalismo” e o “niilismo axiológico”. A encíclica lançou um desafio arriscado que postula uma forma especial de presença dos católicos na vida pública. Conviria não deixar-se levar pela “vertigem da verdade” e favorecer assim a reedição de formas de intolerância já executadas em épocas passadas (VIDAL, 1995, p. 509-510).

Além destes documentos de cunho tradicional, emanados pelos organismos da cúria

romana ou pela doutrina pontifícia, somam-se outros pronunciamentos que foram publicados

ulteriormente. Destaca-se a Pontifícia Academia Para a Vida, criada por João Paulo II em

1994. A entidade, que reúne 70 cientistas, tem como objetivos discutir, formar e disseminar a

doutrina e os valores católicos em todo o mundo.

Entre os documentos publicados, há um amplo espaço à exposição do estado atual da

pesquisa correspondente, com abundante bibliografia e atenção às questões éticas, numa

abordagem condizente com a doutrina do Magistério católico. Foram emanados um

52

documento sobre a clonagem e dois sobre as células-tronco.31 Cinco meses após a declaração

sobre a clonagem, foram publicados outros documentos sobre as células-tronco. O primeiro é

a “Declaração sobre a produção e o uso científico e terapêutico das células estaminais

embrionárias humanas” e o segundo tem como título “Células-mãe humanas autólogas e

transferência de núcleo” (ANDRÉS, 2005, p. 109). O primeiro documento, estruturado em

duas partes, uma científica e outra de caráter ético, busca delimitar a questão da identidade do

embrião como pessoa

Partindo duma completa análise biológica, o embrião humano vivo é, a partir da fusão dos gametas, um sujeito humano com uma identidade bem definida, que começa, a partir daquele instante, o seu próprio desenvolvimento coordenado, contínuo e gradual, de tal forma que, em nenhuma etapa posterior, se pode considerar como um simples aglomerado de células. Conseqüentemente, como "indivíduo humano", tem direito à sua própria vida [...]. Assim, a ablação da massa celular interna (ICM) do blastócito, que lesiona grave e irremediavelmente o embrião humano, interrompendo a sua evolução, é um ato gravemente imoral e, portanto, gravemente ilícito.32

Além da força destes documentos, os recentes artigos e publicações de cunho bioético

reforçam o caráter moral, doutrinador e com pendor para o ordenamento jurídico. Para o

teólogo Márcio Fabri dos Anjos, atualmente ocorrem três tendências atuais no discurso

teológico da bioética:

Discurso autoritativo da fé – parte de uma ênfase na ambigüidade humana de tal

forma que “sua capacidade para conhecer a verdade fica ofuscada, e enfraquecida sua vontade

para se submeter a ela”.33 Trata-se da transformação de autoritativo em autoritário, esperando-

se de autoridades constituídas a definição cabal de conceitos e critérios.

Discurso confessional da fé – Presente na obra de H. Tristan Engelhardt Jr., que

busca construir consensos éticos em meio ao pluralismo cultural e argumentativo. “Se a

verdade não pode irromper até nós e pessoalmente nos dirigir, não vamos estar sempre

perdidos na pluralidade de diversas percepções morais e religiosas no sentido de não

sabermos que normas devem nos reger”.34

31 A Pontifícia Academia Pro Vita publicou, em 1997, algumas reflexões sobre a clonagem, que afirmam que a clonagem humana é uma manipulação radical da relacionalidade e da complementaridade constitutivas que estão na base da procriação humana, tanto em seu aspecto biológico como no propriamente pessoal (ANDRÉS, 2005, p. 107). 32 PONTIFÍCIA ACADEMIA PARA A VIDA. Declaração sobre a produção e o uso científico e terapêutico das células estaminais embrionárias humanas (25/8/2000). 33 João Paulo II. Veritati Splendor. Encíclica 06/08/1993. São Paulo: Paulus, 1995. 34 ENGELHARDT apud ANJOS, 2006 (b), p. 122.

53

Discurso argumentativo da fé – Valoriza a força da racionalidade alimentada pela fé.

Na tendência anterior a fé é confessada e mostra-se na frente, aqui a fé fica implícita nos

argumentos que se tecem (ANJOS, 2006b, p. 122).

7. Secularização e modernidade

A constante publicação de documentos do Magistério Católico e a forte atuação de

militantes voltados ao campo da bioética com o objetivo de policiar a pesquisa científica não

pode ser vista sem uma rápida releitura sobre o fenômeno da secularização. A visão moderna,

impulsionada pelo progresso técnico e pelo caminho sem volta do processo de

secularização35, fizeram emergir uma nova cultura na qual a religião encontra-se cada vez

mais excluída da esfera pública. Surge um cenário em que a ética do caráter sagrado da vida,

fundada na concepção desta como “dom de Deus” e respeitadora do finalismo intrínseco

natural, enfrenta a ética da qualidade da vida, centrada na autonomia do indivíduo em seu

bem-estar como objetivo último (BELLINO, 1997, p. 74-75).

Este processo recebeu enorme contribuição dos filósofos racionalistas a partir do

século XIX, também conhecidos como “mestres da suspeita”, que equiparavam a ação

pastoral da Igreja à de uma potência política e explicada conforme estes objetivos. O

psicanalista Jurandir da Costa Freire ressalta as críticas à religião destes pensadores: “religião

como projeção da natureza humana para Feuerbach; ópio do povo para Marx; neurose

obsessiva para Freud e por último Niezstche, que decretou a morte Deus, sendo a Igreja o seu

túmulo” (FREIRE, 2007).

O resultado deste processo culminou em um crescente afastamento da influência da

religião na vida das pessoas, aliado a um constante progresso científico, balizado pelo

determinismo tecnológico – também conhecido como “imperativo tecnológico” – segundo o

qual tudo o que pode ser feito tecnicamente será feito de uma forma ou outra. A nascente

utopia de um controle e melhoramento da evolução humana, mediante a crença da

racionalidade científica e no racionalismo instrumental36 fizeram surgir ecos como o do

filósofo Francis Bacon:

35 Termo utilizado comumente para indicar o processo histórico pelo qual a sociedade e a cultura modernas se libertaram do controle religioso. O vocábulo não goza de simpatia nos meios confessionais, sobretudo no âmbito católico, pois seu significado envolve a prevalência da razão sobre o mágico, fazendo com que, em última análise, o termo acoberte um desejo de fazer oposição radical à Igreja (MENOZZI, 1998, p. 5-17) 36 O racionalismo instrumental foi assumido pelo pensamento moderno como um de seus principais guias. Significa seguir a racionalidade (ou a lógica) dos instrumentos que produzimos; desde sua hipóstase, pode-se predizer seu crescimento que é sinônimo de “progresso”; todos os outros princípios são falsos ou poesia moralizante (HELLER & FEHER citados por BELLINO, 1997).

54

Que o gênero humano recupere seu direito sobre a natureza, que lhe compete por legado divino; que ao gênero humano se dê o poder; a reta razão e a sadia religião governarão o seu uso (BACON apud BELLINO, 1997, p. 79)

A militância conservadora seria uma resposta da Igreja ao processo político, cultural e

social que a afasta do poder decisório, e também uma reação ao projeto da ciência moderna de

tornar os homens, conforme Descartes, “maîtres et possesseurs de la nature”, bem como

precaver-se do temido mito do poder como supremo valor e norma de ação: “tudo que é

possível torna-se também moralmente auspiciável” (BELLINO, 1997, p.78).

...ao agir político e social do homem não pode ser concedida uma plena autonomia em relação à religião cristã: entregue a si mesmo para a construção da cidade terrena, o homem não pode senão enveredar pelas vias de uma crise que conduz à destruição e dissolução da sociedade civil (RATZINGER apud MENOZZI, 1998, p.14).

À medida que a Igreja perdeu seu papel de Estado como formulador de políticas, à

semelhança do fenômeno que dissolve identidades políticas nacionais, a via que reúne

moralismo e ortodoxia religiosa parece ser a única saída viável, conforme atesta o pensador

Stuart Hall quando questiona as mudanças que o processo de globalização acarreta às

identidades coletivas e pessoais

Numa era em que a integração regional nos campos econômicos e políticos, e a dissolução da soberania nacional, estão andando muito rapidamente na Europa Ocidental, o colapso dos regimes comunistas na Europa Oriental e o colapso da antiga União Soviética foram seguidos por um forte revival do nacionalismo étnico, alimentado por idéias tanto de pureza racial quanto de ortodoxia religiosa (HALL, 2006, p. 93).

Frente à crise da modernidade, diversos segmentos eclesiais dirigidos, sobretudo no

papado de João Paulo II, delinearam uma nova estratégia, muito mais complexa do que a

simples oposição à modernidade, que caracterizava o antimodernismo tradicional da Igreja

Católica. Constata-se neste papado, diferentemente do anterior, uma profusão de documentos

condenatórios à ciência, às novas possibilidades trazidas pela biotecnologia, para não falar do

período em que mais a Igreja recuperou seu conservadorismo, para não falar de sua forte

influência no cenário internacional. Mesmo porque, o mundo católico ainda se baseia no

pressuposto dos líderes da reação contra-revolucionária: “não há verdadeira civilização nem

autêntica convivência humana fora da cristandade, fora de uma sociedade onde a Igreja dite as

regras e valores do viver social” (MENOZZI, 1998, p.15).

55

A crítica não é mais feita em nome dos valores da tradição, e sim em nome dos direitos do homem, que são, hoje, pisoteados, e do bem da humanidade, vítima de catástrofes no ecossistema, provocadas pela cupidez do homo faber, que quer dominar o mundo. Inquietudes quanto ao presente e expectativas quanto ao futuro alimentam uma nova questão normativa, uma “necessidade de autoridade”, que supera as fronteiras dos ambientes católicos, para tornar-se uma questão ética partilhada por toda a sociedade (HERVIEU-LÉGIER apud MARTELLI, 1995, p. 455). grifo nosso.

Por parte dos eruditos, a questão ética se reveste de axiomas filosóficos para tentar

recolocar a ética da espécie humana frente aos novos paradigmas advindos da prática

tecnológica. Dentre estes, destaca-se o trabalho do filósofo Jürgen Habermas, que defende ser

fundamental estabelecer uma distinção entre a dignidade humana e a dignidade da vida

humana com o objetivo de situar os riscos pelos quais passa a capacidade de auto-

compreensão do ser humano como espécie e vivência do coletivo. Para Habermas, a

dignidade humana representa uma condição moral ou jurídica que aponta as relações entre

sujeitos portadores de direitos e deveres. Já a dignidade da vida humana transcenderia os

limites das práticas morais acordadas, presente nos estágios pré-pessoais em que os indivíduos

estão ainda em formação (ANDRADE, 2005, p. 12). A preocupação do pensador alemão é

saber se a tecnicização da natureza humana altera a auto-compreensão ética da espécie de tal modo que não possamos mais nos compreender como seres vivos eticamente livres e moralmente iguais, orientados por normas e fundamentos (HABERMAS, 2004, p. 57).

No plano político, as modificações e desafios da secularização, no entender de

Habermas, sugerem um outro cenário para um mundo que ele vê agora como pós-secular.

Para o pensador alemão, os acontecimentos de 11 de setembro tocaram "uma corda religiosa

no âmago da sociedade secular", levando a um incremento do sentimento e da prática

religiosos em escala mundial. Uma reação religiosa a outra reação do mesmo tipo: aquela dos

tradicionalistas em face do avanço inexorável da secularização. "Quem quiser evitar uma

guerra entre as civilizações precisa se lembrar da dialética inacabada do nosso próprio

processo ocidental de secularização” (HABERMAS, 2004, p. 137-145).

A Igreja, por sua vez, levanta sua crítica à racionalidade moderna, feita não mais por

motivos defensivos, e sim em nome das promessas da humanidade não mantidas pelo

progresso, com as características de uma “contra-utopia”. Contudo, o próprio determinismo

tecnológico e o poder da racionalidade instrumental precisam ser vistos numa perspectiva

56

reflexiva, impulsionados pela ampla capacidade dos meios de comunicação, conforme aponta

Martelli:

a observação atenta dos fenômenos sociais leva à conclusão de que a racionalidade instrumental reine inconteste somente nos meios mais especializados e, no entanto, deve conviver com uma pluralidade de formas simbólicas que lhe podem ser reduzíveis, as quais prosperam justamente por causa da relativa autonomia que distingue o campo cultural, caracterizado por uma crescente intensidade de fluxos comunicativos (MARTELLI, 1995, p. 453; 457).

Em síntese, o discurso militante e conservador da Igreja não deve ser visto apenas

dentro da ótica de um poder que pretende reocupar um espaço perdido ou de um código

religioso que planeja avançar sua influência para além de seus domínios eclesiásticos no

complexo feixe de relações sociais. A militância neste sentido é vista por alguns como um

“teísmo com funções públicas”, ou seja, uma instituição que não apenas difunda a mensagem

evangélica, mas que também guarde a moral de uma dada sociedade, valorizando os recursos

de senso comum, “a fim de reunificar linguagens especializadas e da formação de vontades

coletivas nas grandes opções da política” (GUIZZARDI apud MARTELLI, 1995, p. 462-

463).

57

CAPÍTULO IV – ASPECTOS JURÍDICOS DAS PESQUISAS COM CÉLULAS-TRONCO

1. Biodireito – um novo paradigma de juridicidade Especialistas em direito que versam sobre assuntos relacionados à pesquisa científica

com células-tronco e os avanços da moderna biotecnologia preferem chamar sua

especialidade jurídica de biodireito, ou o direito aplicado a questões que envolvem a vida e a

sua conseqüente defesa. O biodireito, herdeiro dos “direitos personalíssimos”, teve sua origem

no direito moderno, mediante o processo de codificação iniciado em 1804 com o Código Civil

francês. Este marco regulatório – herdeiro das doutrinas contratualistas do séc. XVIII e da

filosofia iluminista – imprimiu influências em todo o direito europeu posterior, bem como nos

países latino-americanos. Sua orientação baseava-se intensamente em proteger os direitos

patrimoniais, determinado por um viés principalmente individualista (HOOFT, 2003, p. 501).

Com a emergência do chamado “contratualismo social” e do desenvolvimento dos

“direitos humanos de segunda geração” em meados do séc. XX, surgem novos paradigmas

jurídicos – principalmente nos diplomas jurídicos europeus pós-segunda guerra mundial –

mais voltados ao bem-estar da pessoa, numa transição do clássico Estado liberal de direito ao

Estado social e democrático de direito.

O desenvolvimento desses novos paradigmas, também chamados de “direitos

personalíssimos”, vai permitir um constante diálogo entre bioética e direito, fundamentados

na filosofia dos direitos humanos e em uma extensão desta que remete à dignidade pessoal

como cristalização histórica da consciência ética da sociedade. Essa nova forma de

juridicidade, presente em sociedades pluralistas e democráticas, fruto da convergência do

direito em sentido clássico com as novas contribuições interdisciplinares provenientes da

bioética, pode ser constatada em formulações fundacionais como a Convenção de Astúrias, de

1997, mais conhecida como Convenção Européia de Bioética, e a Convenção Americana

sobre Direitos Humanos de São José da Costa Rica, de 1969.37 Este último retoma e amplia a

visão da dignidade humana já contida na Carta da ONU e na Declaração Universal de 1948.

37 A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, foi ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de 1992. O Congresso Nacional a aprovou pelo Decreto Legislativo n.º 27, de 26 de maio de 1992. Pelo Decreto do Poder Legislativo n.º 678, de 6 de novembro de 1992 determinou-se o seu cumprimento no país. Sendo o Pacto de São José um Tratado que versa sobre Direitos Humanos e o Brasil um país signatário do mesmo, teoricamente se encontra no ordenamento jurídico brasileiro a vigência dos preceitos do referido tratado. A Constituição Federal, em seu artigo 4, II, considera como princípio a ser regido pela República, os direitos humanos, no âmbito do Direito Internacional. O parágrafo segundo do artigo 5 da CF, recepciona os Tratados Internacionais com força de norma constitucional (FERNANDO, 2002).

58

Ambos os documentos compartilham diretrizes fundamentais como também os princípios

éticos e noções jurídicas próprias. Outro documento importante para a formulação de

princípios diretivos é a Declaração Universal sobre Genoma Humano e os Direitos Humanos,

da UNESCO, de 1997.

Já o conceito ou a idéia de dignidade humana38 conta com uma frutífera tradição

jurídica especialmente no campo dos “direitos humanos”, de modo particular a partir da Carta

da ONU, e depois da Declaração Universal de 1948 e todos os documentos internacionais e

regionais posteriores. Contudo, a mesma idéia, princípio ou valor adquire no contexto bioético

uma significação peculiar, com maior referência à tradição filosófica da modernidade – que se

traduz no caráter inadmissível de toda forma de instrumentalização do ser humano no campo

da biologia e da medicina, assim como na absoluta primazia do ser humano no que se refere

aos interesses econômicos ou a mero progresso da ciência (HOOFT, 2003, p. 503).

A dignidade da pessoa humana é unificadora de todos os direitos fundamentais [...] obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-constitucional e não uma qualquer idéia apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido da dignidade humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais (CANOTILHO & MOREIRA, 1998, p. 109).

2. A regulamentação internacional

Num axioma bem conhecido, Margaret Tatcher frisou que “todo poder implica

responsabilidade e toda liberdade um dever” (apud SAYLOR, 1998, p.34). E é exatamente o

exercício desse poder e sua responsabilidade que fazem com que determinados países,

influenciados ou não pelas comunidades científica ou religiosa, restrinjam ou não as pesquisas

que envolvem células-tronco embrionárias. No caso da clonagem terapêutica e reprodutiva,

não existe um amplo consenso na comunidade internacional a respeito destas questões.

Muitos países são favoráveis a pesquisa com células-tronco embrionárias retiradas de

embriões excedentes de clínicas de fertilização in vitro, desde que sejam importados de outros

38 O conceito de “dignidade” especificamente aplicado ao ser humano faz parte da mais tradicional doutrina cristã, com nítida fundamentação religiosa. Kant reconheceu o conceito na sua reflexão filosófica no campo da ética, salientando o dever correlato, no horizonte da universalização da correta regra do agir, por oposição ao relativismo da coisa. Em meados do séc. XX, os sistemas de direitos humanos, herdeiros das revoluções dos fins do sec. XVIII, não souberam evitar este conceito já provado. Na segunda metade do séc. XX surgiram limitações culturais da aceitação do conceito: a contestação de Kant no Ocidente, as incertezas sobre os primórdios do ser humano reputado digno, a preferência budista pela fundamentação da vida, as reticências islâmicas e de outras crenças para aceitar sistemas de direitos do Ocidente que se pretendem universais (LEPARGNEUR, 2003, p. 481).

59

países. Alguns são relutantes à clonagem reprodutiva, mas permitem a clonagem terapêutica.

Alguns são contrários tanto à clonagem terapêutica ou reprodutiva (ver anexo 1).

Desde 2001, a Organização das Nações Unidas, através de um comitê formado para

debater sobre o tema, planeja publicar uma Convenção Internacional para definir as questões

referentes à clonagem terapêutica e reprodutiva, o que levantou protestos de diferentes

nações. Países como a Costa Rica, os Estados Unidos, na administração Bush, e outros 50

países, apoiados pelo Vaticano, desejavam um acordo internacional que proibisse qualquer

forma de clonagem humana, pois consideram o embrião um ser humano (CARNEGIE, 2003). Posição diferente possui o Reino Unido, declarando que “se as Nações Unidas

prosseguissem com o objetivo de desenvolver uma convenção que proíba a clonagem humana

terapêutica e reprodutiva, não participaria em negociá-la e não assinaria tal convenção”.

Países como Bélgica, Indonésia, Coréia, Japão, Israel, Portugal, Cuba, China, África do Sul e

Brasil concordaram com a proibição da clonagem reprodutiva, porém, reprovaram o tratado

que visava proibir também a clonagem terapêutica. “A proposta não é a favor da clonagem

terapêutica, mas deixar esta questão aberta para a regulamentação nacional” (UNITED

NATIONS, 2004).

A declaração da ONU que visa proibir todo o tipo de clonagem de seres humanos,

reprodutiva ou terapêutica, foi aprovada por apenas 71 países. O Brasil ficou no bloco das 35

nações mais progressistas — ao lado de França, Bélgica, Coréia do Sul, Alemanha, Reino

Unido, entre outras — favoráveis a uma convenção banindo apenas a clonagem reprodutiva

de seres humanos e deixando para os países a tarefa de legislar sobre a pesquisa nas chamadas

ciências da vida (CELESTINO, 2005).

Atualmente, são permitidas pesquisas com células-tronco embrionárias nos Estados

Unidos (com fundos privados), Reino Unido, Suécia, China, Canadá, Austrália, Japão, Coréia,

Suíça, França, Espanha e Israel. O mais recente país a adentrar este grupo é o Brasil, mediante

a Lei de Biossegurança. No entanto, todos os institutos de pesquisa interromperam as

pesquisas até que seja julgado o mérito da ADI 3510 pelo Supremo Tribunal Federal.

3. A regulamentação no Brasil e a Lei de Biossegurança

No Brasil, a regulamentação sobre organismos geneticamente modificados – OGM e

do conceito de engenharia genética, começou com a Lei 8.974 de janeiro de 1995, modificada

pela Medida Provisória 2.191-9 de agosto de 2001 e regulamentada pelo Decreto 1.752 de

dezembro de 1995 (art. 3º, incisos IV e V). Esses diplomas legais, além de abordar a

60

manipulação genética de células germinais humanas, de forma proibitiva, condenavam a

produção, o armazenamento ou a manipulação de embriões humanos com a finalidade de

material biológico disponível (art. 8º, incisos II e IV), com pena de seis a 20 anos para o

transgressor (art. 13, inciso III). Posteriormente surgiu a Lei 9.434 de fevereiro de 1997, que

versava sobre a remoção e o transplante de órgãos (SARTORI, 2005).

O atual Código Civil, no inciso II, do parágrafo 1º, do art. 225, impõe ao Poder

Público e à coletividade o dever de preservar a diversidade e a integridade do patrimônio

genético do país e de fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material

genético, enquanto o inciso V trata do controle do emprego de técnicas, métodos e substâncias

que tragam risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente (SARTORI, 2005).

As questões ligadas à clonagem ou pesquisa genética com embriões tiveram seu

ordenamento jurídico a partir da Lei de Biossegurança (n.º 11.105/05), que também trata do

plantio e comercialização de alimentos transgênicos. Em seu art. 42, a Lei de Biossegurança

revoga a Lei n.º 8974/95, mas mantém grande parte de seu texto, uma vez que dela é fruto de

natural evolução. A referida lei, destacando alguns requisitos, permite pesquisas e aplicação

terapêutica com células-tronco embrionárias retiradas de embriões fertilizados in vitro que

sejam inviáveis ou que estejam congelados até a data de sua publicação, desde que tenham até

três anos de congelamento.39 Este diploma legal proíbe experiências genéticas para a

clonagem humana.

Aprovada numa redação que dispõe tanto sobre a clonagem terapêutica quanto a

regulação sobre plantio e comercialização de transgênicos, a Lei de Biossegurança foi

duramente criticada, bem como denunciada a estratégia do governo do presidente Luiz Inácio

Lula da Silva, de tratar dois assuntos aparentemente divergentes em seus respectivos campos

de interesse e aplicação. Os opositores argumentam que teria sido uma manobra para

responder às pressões econômicas advindas de empresas ligadas ao plantio de organismos

geneticamente modificados e dos setores interessados nas pesquisas com células-tronco

39 Art. 5º É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições: I – sejam embriões inviáveis; ou II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data do congelamento. § 1º Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores. § 2º Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de pesquisa ética em pesquisa § 3º É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997.

61

embrionárias, neste caso membros da comunidade científica.

A lei é totalmente inadequada porque trata de assuntos absolutamente díspares. A questão das

células-tronco está descontextualizada, quando deveria estar inserida numa legislação que

tratasse de embriões, suas múltiplas aplicações, reprodutivas e terapêuticas. Não existe no

Brasil nenhuma lei sobre reprodução assistida e, no entanto, dá-se uma finalidade para os

embriões congelados. Uma série de outras implicações jurídicas ficam sem resposta. A lei,

como aprovada, prevê instâncias reguladoras, conselhos e comissões, bem como o registro das

pesquisas com vistas à fiscalização. O problema é que esse registro e essa fiscalização serão

feitos sobre órgãos e institutos que trabalham com pesquisa. Mas diante da farta produção de

embriões e ausência total de regulação, é possível que outros locais que não são de pesquisa,

como empresas e clínicas de fertilização, com material à disposição e conhecimento de

tecnologia, também realizem suas pesquisas livremente, sem fiscalização, pois eles não estão

abrangidos pela lei (CIÊNCIA E FÉ, 2005).

Contudo, as maiores reações ao diploma legal da Lei de Biossegurança concentram-se

nas resistências de cunho religioso, mais do que jurídico. Isso porque a referida lei abre

espaço para a utilização de células-tronco embrionárias para pesquisa e terapia, sendo que os

embriões a serem utilizados são provenientes do método de fertilização in vitro.40 Nesse caso,

para extrair as células-tronco do embrião, este é sacrificado (CARVALHO, 2001), o que

levanta questões éticas, uma vez que a Igreja Católica entende o embrião como um ser

humano, como alguns juristas levantam a tese da personalidade jurídica do mesmo, uma vez

que a constituição assegura direitos ao nascituro. É aí que entra uma grande discussão para

juristas, cientistas, filósofos e religiosos – o momento exato em que se inicia a vida.

Os cientistas, por sua vez, entendem que o embrião não seja vida propriamente, pois o

embrião humano fertilizado in vitro, do zigoto ao chamado blastocisto, não apresenta

resquício de sistema nervoso nos primeiros 14 dias, período dentro do qual se dá o

congelamento. Por outro lado, a chance de um blastocisto se transformar em bebê normal é de

30% - os outros 70% se perdem naturalmente. Quando ele é criado por técnicas de reprodução

assistida, a possibilidade cai para menos de 1%.

40 A fertilização ou fecundação in vitro consiste na técnica de fecundação extracorpórea na qual o óvulo e o espermatozóide são previamente retirados de seus doadores e são unidos em um meio de cultura artificial localizado em vidro especial.

62

Sobre o início da vida, não há nenhuma definição científica formal para quando ela

começa. Alguns cientistas defendem o mesmo critério para a morte, quando a atividade

cerebral cessa, para definir a partir de quando um embrião deve ser visto como mais do que

um punhado de células. Um blastocisto não apresenta qualquer atividade cerebral, motivo

pelo qual os países que permitem as pesquisas com células-tronco embrionárias estabeleceram

um limite de idade de até 14 dias, pois até essa etapa não há resquício de sistema nervoso no

embrião (PEREIRA; PRANKE; MENDES-OTERO, 2005). É por essa razão que foi cunhado

o termo pré-embrião, em 1986 por Anne McLaren, designando aqueles embriões que ainda

não se implantaram no útero, seguido de outras tentativas de classificação (JONES &

TELFER, 1995, p. 32-49).

Outros pesquisadores preferem ver a vida como um continuum, a partir da abstração

das crenças religiosas, quando se pode considerar seu início material nos pré-gametas e seu

fim no momento em que o cadáver se torna esqueleto. Apesar de haver diferentes trabalhos

que buscam determinar a partir de quando e até quando se reconheça que um ser humano é

pessoa, todos eles mostram o caráter inerente a uma cultura, aleatório e pragmático da

tentativa de se estabelecerem esses limites (SEGRE; LEOPOLDO E SILVA; SCHRAM,

1998, p. 15-23).

Do ponto de vista científico estrito é impossível falar em “início da vida”, uma vez que todas as formas de criação de embriões (fecundação natural, fecundação in vitro, transferência de núcleo somático) combinam material de duas células vivas criando uma nova célula viva; não há pois, “início” da vida, mas apenas continuidade (ZAGO & COVAS, 2004, p. 13).

Argumenta-se também que os embriões dos quais a pesquisa utiliza, estão congelados

e, após três anos, estão inviáveis para a fecundação e seriam descartados, de modo que seria

melhor utilizá-los para salvar vidas. Os que defendem a realização de pesquisas com células-

tronco embrionárias humanas utilizam o raciocínio moral de que um bem social, que será útil

para muitas pessoas que sofrem de doenças hoje incuráveis, se sobrepõe ao de um indivíduo.

Ainda mais quando este indivíduo é um embrião em fases iniciais (GOLDIM, 2002).

Com relação à posição das religiões, percebe-se que nem todas elas elegem o princípio

de que a vida começa no primeiro instante da fecundação como ocorre com a Igreja Católica,

para quem a fecundação do ovo é o momento do início da vida individual, devendo, pois o

embrião pré-implantado de oito células ser tratado com a mesma proteção à vida que um

adulto. A posição da Igreja Católica sobre o início da vida, historicamente, não foi um assunto

monolítico. Sua opinião sobre o tema já mudou três vezes. Somente a partir de 1869, no

63

papado de Pio 9º, é que a Igreja, temendo não correr riscos, optou por proteger o ser humano a

partir da hipótese mais precoce, ou seja, a da concepção na união do óvulo com o

espermatozóide. A condenação do aborto, por exemplo, só ocorreu a partir de 1588 pelo papa

Sixto 5º, em função da idéia aristotélica de que este seria permitido até o 40º dia da gestação

(MUTO & NARLOCH, 2005, p.59).

Os protestantes possuem uma visão mais liberal a esse respeito, mas bastante

heterogênea (ZAGO & COVAS, 2004, p. 13). A Igreja Metodista no Brasil, por exemplo, em

documento recente, reafirma a proteção à vida desde o momento da gestação e condena o

aborto, mas o admite nas situações em que a gravidez representa risco para a saúde da

gestante, nos casos em que a medicina comprova inviabilidade de sobrevivência do feto

(anencefalia) ou na condição em que a gravidez tenha ocorrido mediante estupro (COLÉGIO

EPISCOPAL, 2007). Há posições mais flexíveis como a do judaísmo, que confere um status

diferente ao embrião, ao feto e ao recém nascido. Segundo a crença judaica, conforme a

gravidez evolui, o organismo adquire um status superior, sendo que, até 40 dias após a

fecundação, é como se o embrião fosse apenas água e não vida. A pesquisa com células-

tronco embrionárias é permitida em Israel (CIÊNCIA E FÉ, 2005).

Se o embrião é vida humana, esta deveria ser protegida pelo Estado, uma vez que o

Código Civil, no art. 21, dispõe que “a vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a

requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar

ato contrário a esta norma. Ocorre que a Constituição da República, que é de onde partem as

normas, não define a quando ou onde começa a vida. De qualquer forma, a Confederação

Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em sua 43ª assembléia, aprovou em agosto de 2005 o

documento “Declaração sobre Exigências Éticas em Defesa da Vida”. O objetivo consistiu em

repudiar a aprovação da Lei de Biossegurança. O próprio papa João Paulo II, à época, apelou

contra a aprovação da referida lei:

Saúdo os peregrinos brasileiros, e aproveito para dar graças a Deus, congratulando-me com vossa nobre nação por sua fidelidade ao Evangelho de Cristo. Faço votos de que todas as instâncias responsáveis da nação prossigam defendendo a vida desde a sua concepção até o seu termo natural (JOÃO PAULO II, 2004).

No entanto, ainda não foi construído consenso claro entre os legisladores sobre o

início da vida, bem como sobre o caráter pessoal embrião. Alguns lembram que, no direito

positivo brasileiro, apesar das proteções jurídicas em favor dos nascituros, a pessoa física com

todo o seu amplo espectro de direitos, inclusive o sucessório, só surge em razão do

nascimento (O ESTADO DE S. PAULO, 2005(a), p. A3). Janete Coelho Rezende conclui que

64

a concepção da personalidade condicional irá prevalecer, embora a teoria concepcionista

esteja mais adequada às mudanças sofridas pela medicina nos últimos anos, ainda não aceita

plenamente no mundo jurídico.

A teoria natalista considera o nascituro como o ente gerado no “útero”, que a concepção só ocorre com a nidação, fixação do ovo no útero. Contudo muito questionada na atualidade, com argumento que se encontra ultrapassada perante os rumos que o Direito vem tomando, em face da evolução da Engenharia Genética, sendo um posicionamento que não acompanha a nova realidade, entretanto é a mais aceita e adotada pelas doutrinas jurídicas. A teoria da personalidade condicional sustenta a aquisição de direitos e obrigações do nascituro a partir de sua concepção, entretanto com a condição resolutiva de nascer com vida. É vista como uma tentativa de se proteger a vida em formação, buscando não entrar em conflito com outras questões jurídicas, como transmissão de propriedade, direitos sucessórios e outros. Essa teoria já considera existir humanidade na vida embrionária, sendo necessária sua proteção, devido ao caráter de existência de uma pessoa em potencial. A moderna teoria concepcionista, criada para determinar a proteção jurídica do nascituro em situações extra-corpóreas, apresenta severas criticas a essa teoria, uma vez que a nidação não acrescentaria nada à vida em formação, fornecendo apenas ambiente favorável a seu desenvolvimento, e que o ser humano adquire personalidade jurídica desde o momento de sua concepção ou fecundação, quando já é considerado pessoa possuidora de direitos, inclusive e primordialmente à vida. O pré-embrião desde o momento de sua concepção, independente se por métodos naturais ou em laboratórios, é indubitavelmente, pessoa em potencial, portadora de atributos inerentes à pessoa humana, conseqüentemente, personalidade jurídica em potencial. Possui expectativa de direitos, mesmo não possuindo qualquer capacidade de exercício, já possui capacidade de direito, motivo pelo qual possui capacidade de suceder, receber doações, direito à representação, e especialmente direito à vida. Tendo como adeptos, os renomados Francisco Amaral e Jussara Maria Leal de Meirelles que adverte, “Embriões congelados e mantidos em laboratório não encontram a devida proteção jurídica na clássica normativa civilística, não se enquadrando na categoria de sujeito de direito adotada pelo nosso direito privado.” E afirma Maria Helena Diniz, que o nascituro possui direitos personalíssimos, e se nascer com vida efetivamente adquire personalidade jurídica material. A lei nº. 8974/95 reforça tal entendimento (REZENDE, 2005, p. 3).

4. A ação direta de inconstitucionalidade – ADI 3510

A contestação à permissão de pesquisas com células-tronco embrionárias previstas

na Lei de Biossegurança (ver anexo 4) prosseguiu mediante um instrumento jurídico. Após as

investidas de setores institucionais católicos, coube ex-procurador geral da República,

Cláudio Fontelles, ajuizar a Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 3510, no Supremo

Tribunal Federal, em maio de 2005, com o argumento da inconstitucionalidade do art. 5.º e

respectivos parágrafos da Lei de Biossegurança (Lei nº 11.105/05). Para Fontelles, que se diz

65

católico praticante, esses dispositivos violam o art. 1.º, III, e art. 5.º, caput, da Constituição da

República, baseado na tese de que “a vida humana acontece na, e a partir da, fecundação”, o

que abrangeria a fecundação in vitro. Logo, para ele, o uso destes embriões fere o direito

constitucional à vida e à dignidade humana, já que o embrião é vida humana. Afirma também

que a pesquisa com células-tronco adultas “é mais objetiva e certamente mais promissora do

que a pesquisa com células-tronco embrionárias” (ver anexo 5). Fontelles sugeriu ainda que

o Supremo Tribunal realizasse audiências públicas para ouvir nove professores universitários

especialistas no assunto.

A iniciativa legal de Fontelles, que visa suspender a permissão às pesquisas com

células-tronco embrionárias trazidas pela Lei de Biossegurança, foi defendida pelo tributarista

Ives Gandra Martins, também católico e ligado à organização católica Opus Dei.

Do ponto de vista jurídico, dúvida não existe. Declara a Constituição que o direito à vida é inviolável. O tratado internacional sobre direitos fundamentais de São José determina que a vida começa na concepção e que a pena de morte é condenável tanto para o nascituro como para o nascido. E o Código Civil impõe que todos os direitos do nascituro sejam garantidos desde a concepção. Seria, pois, ridículo se todos os direitos estivessem garantidos, menos o direito à vida. A vida começa, portanto, na concepção, não se justificando que seres humanos sejam, como nos campos de concentração de Hitler, também no Brasil objeto de manipulação embrionária. A lei é manifestamente inconstitucional do ponto de vista jurídico (MARTINS & EÇA, 2005).

Ao citar a Convenção Americana sobre Direitos Humanos de São José da Costa Rica,

Martins quer conferir ao pré-embrião a mesma proteção que o legislador conferiu à vida

humana. O referido tratado internacional, em seus artigos 1º, nº 1 e 4º, protege o embrião

desde a sua concepção. O embasamento que permite a Martins se apoiar em uma norma

externa aos diplomas legais brasileiros baseia-se no § 2º do artigo 5º da Constituição de 1.988

que determina:

Os direitos e garantias expressos nesta constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa seja parte.

A análise conjunta dos §§ 1º e 2º do artigo 5º da Constituição de 1988 oferece

entendimento de que os direitos e garantias assegurados em tratados internacionais, subscritos

e ratificados pelo Brasil e que versem sobre direitos humanos, possuem valor jurídico de

norma constitucional de aplicação imediata, estendendo e integrando o rol de direitos

constitucionais expressamente previstos, diferentemente do que ocorre com os tratados

66

internacionais comuns, que têm posição hierárquica infraconstitucional (LEMES &

CREPALDI, 2005). Apesar de contar com a simpatia de juristas de postura conservadora e

amplos setores ligados à Igreja Católica, a ADI 3510 de Fontelles recebeu fortes críticas dos

setores mais progressistas e também da comunidade científica, sobretudo o fato de Fontelles

se declarar católico praticante.

Relevante para o caso, embora lateral para a discussão central, é a vinculação admitida e pública do procurador-geral da República com a religião católica. Por óbvio, não é problema algum para a sociedade que os agentes públicos professem uma determinada fé religiosa. Estado laico não é Estado ateu, mas um Estado que não toma decisões a partir de uma visão religiosa: e esse princípio é violado quando o agente público admite publicamente, em entrevista, que a razão de ter tomado alguma decisão pública teve motivação religiosa. E Claudio Fontelles violou esse princípio básico (ALMEIDA, s.d. p. 25).

Um dos problemas centrais para a ação de Fontelles é a defesa do embrião das clínicas

de fertilização in vitro como vida humana, portadora de dignidade. Se adotarmos o princípio

católico que desde a concepção o embrião possui humanidade, sendo um ser humano e

detentor de direitos fundamentais e de personalidade jurídica, restam questões como a

seguinte: embriões congelados seriam nascituros? Teriam personalidade jurídica? Sabemos

que aqueles que não foram fecundados serão descartados.

O caso é que a própria legislação específica, Lei 8.974/91, e a Resolução 1.358/92 sobre fecundação assistida do Conselho Federal de Medicina (CRM) também não conceituam o nascituro. O Código Penal brasileiro, no seu artigo 124, pune o aborto provocado em si mesma ou consentido que outrem lho provoque a partir do momento da concepção, ou seja, a partir da fertilização até o início do parto, tendo tal concepção pacífico entendimento entre os doutrinadores do Direito Penal brasileiro. Se assim o é, porque os métodos anticonceptivos D.I.U (Dispositivo Intra-Uterino) e o medicamento popularmente conhecido como "a pílula do dia seguinte", que impedem a implantação do embrião no útero, são comercializados e utilizados normalmente? Não estariam as mulheres que fazem usos desses meios anticonceptivos praticando o aborto? Não estariam os fabricantes desses métodos praticando a assistência ao aborto? E isso não é crime? E por que não há ninguém punido? (REGIS, 2005).

Além disso, há quem não veja na Lei de Biossegurança desrespeito ou condutas que

violem a vida. A razão estaria em que ela permite pesquisas não com embriões passíveis de

gestação, mas daqueles que serão descartados dos processos de fertilização in vitro por não

terem sido utilizados nos respectivos procedimentos, desde que sejam inviáveis ou estejam

congelados há três anos ou mais. Nesse caso, não se pode falar em interesse juridicamente

67

protegido de tais embriões ao nascimento, como também a dignidade humana pareça estar

preservada quando, no §3º do art. 5º, esteja vedada a comercialização de material biológico.

“Não tem sentido imaginar que alguma coisa tenha interesses próprios – não obstante ser importante o que lhe aconteça –, a menos que tenha, ou tenha tido, alguma forma de consciência: algum tipo de vida mental e de vida física (DWORKIN apud ALMEIDA, s.d., p. 28).

Entretanto, parece que a melhor solução para a petição, que deverá ocorrer no início de

2008 a partir do Supremo Tribunal Federal, ocorra não conforme os interesses e cosmovisão

da comunidade científica ou da comunidade religiosa. Mas, sobretudo conforme a razão

pública e o consenso por ela produzido. É a sociedade, num Estado democrático de direito,

quem deve formular as políticas, vigiar e acompanhar o desenvolvimento da ciência,

abstraindo de valores religiosos ou de pressões comerciais de grupos de pesquisa.

O problema da concepção apresentada na petição da ADI 3510 é que a ciência não é um ponto de vista privilegiado a partir do qual derivamos respostas para as questões morais que são postas na esfera pública. De qualquer modo, a ciência é apenas uma das doutrinas abrangentes presentes em nossa sociedade. O cientista não é o porta-voz da verdade política e, portanto, a discussão relativa à constitucionalidade da Lei de Biossegurança não pode se desenvolver nesse âmbito. A visão parcial da ciência é tão importante e protegida, do ponto de vista constitucional, quanto qualquer outra visão moral religiosa. Assim, é necessário discutir a questão do ponto de vista da razão pública, isto é, a partir de princípios compartilhados publicamente e que todas as pessoas razoáveis deveriam aceitar, que estão presentes na constituição brasileira. Os defensores da inconstitucionalidade da Lei de Biossegurança, assim como os defensores da tese contrária, devem defender suas posições a partir da razão pública, de concepções justificadas para todos os participantes da sociedade brasileira: católicos, ateus, evangélicos, protestantes, budistas, agnósticos e os que proferem religiões afro-brasileiras. O único legitimado a decidir por nós sobre questões morais que concernem a todos somos nós mesmos, e a melhor maneira de fazer isso é questionando as pretensões postas nos fóruns públicos. Nem a ciência, nem a religião podem decidir por nós, e o que o Liberalismo Político ensina é que a responsabilidade é nossa (ALMEIDA, s.d., p. 28-31).

68

CAPÍTULO V – OS DIFERENTES TEMPOS QUE ENVOLVEM AS PESQUISAS COM CÉLULAS-TRONCO

1. Tempo e história A relação entre o tempo e a ciência começa a tomar forma na preocupação de

estudiosos e pesquisadores que se debruçam sobre as recentes e conflituosas descobertas

científicas das últimas décadas. Desde que a ciência passou a ser objeto do interesse da

opinião pública, principalmente mediante a contribuição do jornalismo científico e da

crescente influência da divulgação científica, pesquisadores se perguntam sobre as distinções

(e também pressões) que ocorrem nos tempos da ciência, do jornalismo, e das decisões

políticas pertinentes.

Basta lembrar que a relação com o tempo não é harmoniosa, nem uniforme. Exemplo

disso é a relação existente entre tempo e história. Tema abrangente, com questões, problemas

e propostas analíticas sempre conflituosas para filósofos e historiadores, pode ser explorado

sob múltiplos aspectos, cada uma deles aparentemente encerrada em si mesmo, e na prática

inter-relacionada com todas as outras (DOMINGUES, 1996). Há muito que foi abandonada

uma concepção linear e evolutiva da história, em que o processo de civilização era visto como

uma possibilidade de legitimar imperialismos e diferenças entre povos mais ou menos

“desenvolvidos”. A história agora é vista em seus diferentes momentos, que alterna processos

de evolução e retrocesso, restringidos conforme determinados momentos e espaço sociais,

geográficos e temporais.

E se falamos de ciência, a diferença entre o tempo dos historiadores e o tempo da

ciência está no confronto entre a reflexão em abstrato e o manejo empírico do ‘corpus

documental’, questão ainda sem conclusão, parte integrante das reflexões filosóficas e

historiográficas, que se colocam em termos divergentes e opostos, mas que podem e devem

ser complementados (TOULMIN & GOODFIELD apud GLEZER, 2002, p. 23).

Quanto ao tempo, se pretendemos conceituá-lo, temos que considerar seus aspectos de tempo histórico, cronológico, físico, psicológico, entre outros. O tempo histórico, passível de divisão em intervalos curtos ou longos, pode ser concebido como um processo de ritmo variável e não uniforme. As direções desse tempo variam segundo diferentes padrões culturais, que exprimem atitudes valorativas: o processo temporal representado como um percurso linear progressivo, característico da representação cristã de tempo, tem contraponto no percurso cíclico, que reúne fases ou períodos recorrentes, característico, por exemplo, das representações negro-africana e chinesa. O tempo cronológico, que regula nossa existência cotidiana, pode ser considerado tempo socializado ou público. Opondo o tempo físico, natural ou cósmico ao tempo psicológico ou tempo vivido, temos que o primeiro, pode ser entendido como a

69

medida do movimento, como a expressão de relação entre anterior e posterior e, ainda, como o próprio processo das mutações, que independe da consciência do sujeito. O tempo psicológico ou tempo vivido (duração interior), por sua vez, não coincide com as medidas temporais objetivas. Variando de indivíduo para indivíduo, sendo subjetivo e qualitativo, sujeita-se apenas ao registro de momentos imprecisos, que se aproximam ou tendem a fundir-se, numa organização determinada por sentimentos e lembranças, que definem “intervalos heterogêneos incomparáveis” (POMIAN apud RIBEIRO, 2002, p. 24).

2. Tempo da ciência

Quando se trata então da relação entre tempo e ciência, sobretudo vista sob o prisma

das recentes descobertas da biomedicina, outros tempos (e interesses) passam a fazer parte

dessa relação. O jornalista clama por informações científicas, pressionado pela avidez do

público que busca panacéias milagrosas capazes de estender a vida. O poder público clama

por regulamentação e ordenamento jurídico, pressionado por setores conservadores,

interessados em manter a ordem social, ou buscando atender interesses comerciais que

permeiam o mundo da ciência.

Esse círculo cronológico de interesses e demandas, em muitos os casos, pode

contribuir para o avanço, a inércia ou a atrofia da capacidade científica. É que cada demanda

destes diferentes tempos (da ciência, do jornalismo, da opinião pública e do poder público)

pressiona o trabalho da ciência para que seus objetivos sejam rapidamente alcançados.

Do mito à História, do tempo cíclico ao linear progressivo, ao teleológico e ao devir, da causalidade primária seqüencial cronológica às temporalidades braudelianas; da passagem do tempo da natureza ao tempo social, do tempo do trabalho natural ao tempo do trabalho industrial, o tempo real como fronteira última – todas estas transformações marcaram as relações dos homens com o passado, e atuam em seu presente tanto em seus atos como nas formas de percepção do passado (VVAA apud GLEZER, 2002, p. 24).

O “vai e vem” pode ser constatado com as especificidades de cada um destes

diferentes atores, em suas diferentes condições. A pesquisa científica, por sua vez, tem o seu

tempo próprio contado em anos (dissertações, teses, projetos de pesquisa) ou mesmo lustros

ou décadas (EPSTEIN, mimeo). No edifício do saber científico, anos ou décadas parecem

fazer pouca diferença, pois o conhecimento acumulado durante séculos foi sendo forjado

mediante a contribuição de pesquisadores em todo o mundo. E foi com exaustivas tentativas,

análises, quantificação e decodificação de dados, descobertas acidentais, avanços e

70

retrocessos, que a ciência passou a ocupar um espaço cada vez maior em nossas vidas –

deixou o laboratório e o gabinete empoeirado do pesquisador e tornou-se objeto de desejo (e

consumo) da grande massa.

Ocorre então um descompasso ou talvez assimetria entre a relação do tempo e ciência

e o tempo e a opinião pública consumidora de ciência. Enquanto o público procura “verdades”

a partir da pesquisa e trabalho da ciência, esta aponta para certezas, nem sempre constantes,

mas que podem ser confirmadas, evoluídas ou mesmo transformadas à medida que o saber

científico é construído. No caso da biomedicina, por exemplo, “para que um determinado

medicamento ou terapia esteja pronto para atender demandas em escala da população, são

necessários anos de pesquisa, investimento e testes exaustivos com o objetivo de minimizar

riscos e efeitos colaterais”. E mesmo assim esses medicamentos são paliativos, minimizam os

efeitos de moléstias e enfermidades ou ajudam o ser humano a conviver com elas. A verdade

da pesquisa científica – se podemos falar de verdade e não de certezas, – “é fruto de um longo

e laborioso trabalho de pesquisa, sujeito à rigorosa comprovação empírica e avaliação pelos

pares” (EPSTEIN, mimeo).

3. Tempo do jornalismo científico

O trabalho do jornalismo científico, interessado em divulgar os avanços da ciência e

satisfazer a curiosidade do público leitor, possui um tempo diametralmente mais curto que o

tempo da ciência. Enquanto esta precisa de anos para produzir terapias e medicamentos

novos, aquele pretende noticiar aqui e agora, já, no mínimo o potencial terapêutico de um

novo método ou fármaco. É comum, nos últimos anos em que tem havido um crescimento do

interesse pela divulgação científica, sobretudo a que trata de pesquisas de terapias e

farmacologias para a cura do câncer e outras moléstias, matérias na grande mídia que

deveriam ser divulgadas como pesquisas que poderão trazer medicamentos daqui a vários

anos serem veiculados como “recentes pesquisas prometem a cura”. Uma assimetria entre os

tempos da necessidade de cura da opinião pública, da divulgação científica e da própria

ciência. Essa assimetria pode ser explicada por um dos valores e pilares da “verdade” da

notícia jornalística, que é a atualidade do fato novo e inesperado, muitas vezes contrariando

teorias científicas consagradas, daí o seu caráter “inesperado” (EPSTEIN, mimeo).

Quando, a partir de uma ação ou um conjunto de atos produzidos em um dado lugar, achamos necessário tomar conhecidas e descrever as condições e circunstâncias nas quais ele se deu, com a ajuda de meios apropriados de expressão

71

(narrativas) e de difusão (jornais), podemos dizer que esse ato se forma como acontecimento (RÉTAT apud FRANÇA, 1998, p. 133).

Basta que os primeiros resultados de uma pesquisa científica indiquem a “suposta”

possibilidade de se curar determinada doença ou minorar o sofrimento humano, para se tornar

notícia e objeto de interesse na opinião pública. Os acontecimentos tidos como relevantes e de

interesse público, capazes de transcender o cotidiano e emergirem-se no coletivo da

sociedade, são elementos para se fazer a notícia. Ocorre que esse mesmo acontecimento, que

hoje é notícia e interesse da opinião pública, amanhã é passado, tal é o imediatismo do tempo

do jornalismo. O acontecimento então é tudo aquilo que irrompe na superfície lisa da história

entre uma multiplicidade aleatória, porém constante de fatos virtuais. Até porque, para o

jornalismo, um simples fato, inconcluso, supostamente verídico, torna-se matéria-prima para

se chegar ao produto notícia (SODRÉ, 1996, p. 132).

O acontecimento jornalístico é, por conseguinte, um acontecimento de natureza especial, distinguindo-se do número indeterminado dos acontecimentos possíveis em função de uma classificação ou de uma ordem ditada pela lei das probabilidades, sendo inversamente proporcional à probabilidade da ocorrência (RODRIGUES, A. 1993, p. 27).

4. Tempo da opinião pública

Em decorrência talvez do próprio caráter “construtor” da notícia do jornalismo

científico, é que podemos falar do tempo da opinião pública. Divididos entre os “milagres” da

ciência e o “inferno de Prometeu”, tal é o maniqueísmo comum quando se trata da

biotecnologia, a população passa a ter na divulgação científica um aliado messiânico para

alardear esperanças para as moléstias degenerativas ou o tão desejado “elixir da juventude”,

algo capaz de prolongar a vida ou diminuir os efeitos do tempo na saúde. Acrescentem-se os

recentes trabalhos de propaganda em saúde, que confundem a ilusão de bem-estar e qualidade

de vida com as promessas de eficácia de alguns medicamentos.

É bastante comum médicos se queixarem de pacientes que recorrem aos seus

consultórios após a divulgação de uma “suposta” terapia para a cura de enfermidades como o

câncer, ainda em fase de experimentos. Geralmente eles precisam explicar a seus pacientes o

que talvez a divulgação científica não o faça de forma adequada: a terapia ainda é uma

promessa, uma linha de pesquisa que poderá se concretizar (ou não) daqui a alguns anos. Já

faz um bom tempo que programas de televisão nas noites de domingo anunciam a cura para o

câncer e, ainda assim, esta moléstia dizima milhões de pessoas todos os anos. No caso da

72

clonagem terapêutica, os pacientes que sofrem de moléstias degenerativas não apenas

acompanharam a tramitação da Lei de Biossegurança, como também se alistaram como

militantes no lobby para a aprovação deste ordenamento jurídico. De um lado há a ansiedade

pela cura, prevista para uma ou duas décadas de estudos e experimentos, por outro, há uma

forte oposição de grupos conservadores contrários à pesquisa com células-tronco, propondo

impedir o avanço das pesquisas mediante restrições legais. Para alguém que sofre de uma

doença cujos sintomas se agravam diariamente, qualquer demora na aprovação ou não de uma

lei que autorize pesquisas que irão produzir benefícios somente daqui a alguns anos, pode

parecer uma eternidade. O que não dizer então da suspensão das pesquisas com células-tronco

embrionárias com o ajuizamento da ADI 3510 sobre o artigo 5 da Lei de Biossegurança. São

dois anos a mais no longo processo que deu origem à referida lei.

Para os historiadores do contemporâneo, os seres humanos passaram do Tempo dominante da natureza ao Tempo dominado pelo homem e depois ao homem dominado pelo Tempo (GLEZER, 1992).

5. Tempo da decisão política

O tempo que corresponde às decisões do poder público, capazes de produzir

ordenamento jurídico para as questões de política científica, pode ser ainda mais angustiante.

É neste terreno que entram as polêmicas de cunho político, filosófico, ético, moral, religioso,

jurídico e econômico. Consciente da capacidade terapêutica das pesquisas em biotecnologia,

os poderes legislativo e judiciário não ignoram os limites das descobertas científicas, mas são

constantemente assediados pelos interesses ora econômicos dessas pesquisas, ora morais e

conservadores de determinados setores da sociedade, sem falar nos interesses da própria

comunidade científica. Pode-se falar ainda da pressão do “quarto poder” (imprensa), que traz

consigo o envolvimento da opinião pública ou a equação das forças políticas, etc. (EPSTEIN,

mimeo).

Some-se a isso a distância e ignorância do grande público frente às questões que

demandam consenso para a elaboração de políticas de desenvolvimento científico,

principalmente quando são excluídos deste debate ou transformados em cabos eleitorais de

grupos conservadores ou lobistas de conglomerados bioindustriais.

Há no Reino Unido um movimento recente de crítica à forma como a ciência tem se tornado distante da sociedade. A ciência e os cientistas estão longe do contato e das preocupações das pessoas. Critica-se, ainda, a distinção que se costuma fazer entre ciência e sociedade ou entre ciência e suas aplicações. A sociedade deve

73

traçar os limites da aplicação científica e decidir como esta deve se tornar parte da vida cotidiana. A ciência em si, como uma busca e um processo, deve ser livre, mas suas aplicações afetam a todos (SHAKESPEARE, 2005, p, 483).

No caso das pesquisas que envolvem a clonagem terapêutica, a comunidade

internacional (e científica) possui entendimentos distintos. Em alguns países são permitidas as

pesquisa com células-tronco embrionárias retiradas de embriões excedentes, em outros não,

até porque há enormes diferenças quando se trata de reunir valores éticos. Há países em que

predomina uma cosmovisão cristã-ocidental, noutros existe a influência da religião islâmica

ou mesmo judaica, para não falar das religiões de tradição da filosofia oriental. A necessidade

de consenso em unir interesses divergentes e com demandas temporais diversas (determinados

atores têm mais pressa que outros) faz com que uma intrincada relação se estabeleça sobre os

poderes legislativos desses países para o tempo de sua tomada de decisão.

E essa equação tende a ficar mais crônica e difícil na medida em que os integrantes do

poder público desconhecem ou ignoram o complexo quadro de fatores que permeiam as

pesquisas científicas. Como o tempo da ciência é muito mais lento que o tempo do jornalismo

científico, que o tempo da opinião pública e o próprio tempo do poder público, responsável

pelo ordenamento jurídico ou por aquilo que recentemente chamam de “biodireito”, os

legisladores encontram-se em um grande dilema: construir, de forma rápida, normas seguras

para a sociedade e para a comunidade científica, sem ter para tanto, conhecimentos seguros

sobre benefícios e riscos que envolvem a pesquisa científica em questão. Ou seja, os

diferentes tempos envolvidos concorrem entre si para que haja, adequadamente, um consenso

que permita ao legislador regular o direito em matéria de política científica.

No Reino Unido há o entendimento de que “os debates científicos precisam ser dominados por especialistas”. As pessoas comuns temem não saber os detalhes técnicos sobre determinado assunto. Acontece que existem os especialistas técnicos, existem os especialistas éticos e os teólogos. E todos se acham no direito de dizer o que é certo e o que é errado. O problema é que os resultados da ciência são, freqüentemente, contra-intuitivos ou desconhecidos e rejeitados pelos cidadãos comuns. A razão pela qual o diálogo sobre os avanços da ciência e da tecnologia deve ser mais amplo é que todos nós somos afetados pela ciência e pela medicina. Somos consumidores de alimentos, tomamos remédios, recebemos diagnósticos, passamos por tratamentos médicos e participamos de pesquisas médicas. Como cidadãos, votamos em questões relacionadas à economia e à defesa. Deveríamos também votar em questões relacionadas à pesquisa e aos cuidados com a saúde (SHAKESPEARE, 2005, p, 484).

74

6. O tempo do consenso

As questões acima, próprias de cada segmento interessado nos desdobramentos da

pesquisa científica, dão origem a dois tipos de questões. A primeira é se as decisões de

interesse público – como é o caso da pesquisa com células-tronco embrionárias – devem ser

tomadas conforme um cronograma estabelecido pela esfera política e não pela esfera

científica ou técnica. Estas decisões serão tomadas antes que um consenso científico tenha

sido alcançado justamente porque, em geral, o tempo da decisão política é bem mais escasso

que o tempo da decisão científica. A segunda questão, decorrente da anterior, é saber como

tomar uma decisão baseada em conhecimento científico antes que haja consenso entre os

próprios cientistas (EPSTEIN, mimeo).

O dilema consiste na necessidade e interesses urgentes de diferentes segmentos da

sociedade nos resultados da ciência. Todavia, como as pesquisas caminham de forma mais

lenta que a demanda destes segmentos, o poder público muitas vezes se vê pressionado a

tomar decisões de cunho científico quando nem mesmo há consenso entre os cientistas sobre

os riscos, alcance, benefício de determinadas terapias. Neste caso, ampliar a participação

popular pode redundar em obstáculos ao desenvolvimento científico ou atropelar o processo

de formação de consenso, caso não seja adequadamente trabalhado a ansiedade popular.

Preocupados com o descompasso entre consenso público e consenso científico, COLLINS &

EVANS (2002), ressaltam algumas dúvidas decorrentes:

1. Deve a legitimação política de decisões técnicas no domínio público ser

maximizada referindo-as a um amplo processo democrático ou deveriam apenas

ser baseadas no melhor parecer especializado? A primeira escolha arrisca uma

paralisia tecnológica. A segunda convida ao incremento da oposição do público

mais esclarecido.

2. Em temas nos quais tanto a opinião pública quanto a comunidade científica têm

contribuições a dar e que tenham sido objeto apenas do domínio exclusivo dos

técnicos, qual o valor do conhecimento técnico científico em relação ao

conhecimento do público leigo, em geral?

As questões acima convergem para um problema específico dessa relação que envolve

pesquisa científica e o interesse de atores diversos: Como tomar decisões baseadas no

conhecimento científico antes mesmo que o consenso científico tenha sido formado, de

75

maneira a oferecer bases seguras para a decisão política? Com tantos interesses envolvidos,

pressões de grupos conservadores ou favoráveis, bem como o lobby dos grupos financeiros

que patrocinam a pesquisa científica, surgem controvérsias e inquietações que refletem na

agenda setting da mídia massiva, o que amplia a esfera de discussão para a opinião pública,

criando o que alguns pesquisadores chamam de “esfera pública temporal”41, quando os

cidadãos são “convidados” a tomar partido em uma discussão. As controvérsias chegam ao

público e, depois dele, voltam realimentadas aos segmentos interessados, num processo

cíclico de discussão e acirramento do debate.

O processo que envolveu a Lei de Biossegurança exemplifica este fenômeno. Enviada

como projeto de lei pelo governo para a Câmara dos Deputados em outubro de 2003, só foi

aprovado com modificações após 14 meses de tramitação. O texto original do projeto ainda

foi bastante alterado, principalmente com a restrição ao poder da CTNBio (Comissão Técnica

Nacional de Biossegurança – formada por 12 cientistas, 9 especialistas do governo e 6

representantes da sociedade) de dar a palavra final sobre a inocuidade dos transgênicos para a

saúde ou o meio ambiente, e também com a restrição às pesquisas com células-tronco, que

deveriam ser realizadas somente com células-tronco adultas. Ao final daquele ano, o Senado

incluiu a possibilidade de pesquisa com células-tronco embrionárias e ampliou os poderes da

CTNBio. Com as alterações do Senado, o projeto voltou para a Câmara, que aprovou na noite

de 02/03/05 o texto básico da nova lei por 352 votos favoráveis, 60 contrários e uma

abstenção. No dia 24/03/2005, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei 11.105,

sem alterar os pontos principais do texto, dentre eles a ampliação do poder de decisão da

(CTNBio) sobre os organismos geneticamente modificados (transgênicos) e a liberação de

pesquisas com células-tronco obtidas de embriões congelados há mais de três anos por

fertilização in vitro. Mas, para que o estudo seja feito, deve haver o consentimento dos pais.

Durante a tramitação do projeto da Lei de Biossegurança, deputados ligados à Igreja

Católica tentaram retirar o artigo sobre células-tronco, após a distribuição de uma carta com

esse pedido da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). Durante a votação do

projeto na Câmara, em 02/03/05, estavam presentes membros da Associação Brasileira de

Distrofia Muscular e do Movimento em Prol da Vida. Pessoas que sofrem de degeneração

progressiva do tecido muscular e familiares de portadores de doenças neurológicas, como o

41 Burke e Briggs, relendo Habermas, distinguem dois tipos de esfera pública: o temporário e o permanente, ou o estrutural e o conjuntural. Segundo o autor, na Reforma Protestante e nas revoluções americana e francesa, as elites envolvidas no conflito apelaram para o povo e a mídia impressa ajudou a elevar a consciência política. As crises criaram debates vivos, porém curtos, numa esfera pública temporária ou conjuntural (BRIGGS & BURKE, 2004, p. 109).

76

mal de Parkinson e o mal de Alzheimer, além do diabetes, que podem ser beneficiadas pelas

pesquisas com células-tronco, também pressionaram pela aprovação (ALMEIDA, 2005).

O intenso debate desse processo que durou quase dois anos não terminou com a

sanção da lei. Em junho de 2005, o então procurador-geral da República, Claudio Fontelles,

entrou com ação de inconstitucionalidade no STF (Supremo Tribunal Federal) contra o artigo

5 da Lei de Biossegurança que autoriza a utilização de células-tronco de embriões humanos

para pesquisa ou tratamento de doenças (ADI 3510). O destino destas pesquisas está para ser

decidido em breve pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), que irão julgar a

procedência da ADI 3510. O argumento de Fontelles, católico fervoroso, é de que o uso

destes embriões fere o direito constitucional à vida e à dignidade humana, já que o embrião é

vida humana.

Para amparar tecnicamente sua decisão, o Supremo Tribunal Federal realizou uma

audiência pública com 26 cientistas em 23 de abril de 2007. O objetivo, segundo o ministro e

relator da ADI, Carlos Ayres Britto, é reunir mais informações e definir quando começa a

vida. Além dos pesquisadores, doentes e representantes de ONGs também acompanharam a

audiência (PERRI, 2007).

Como se pode perceber, a permissão legal para a realização de pesquisas ligadas à

biotecnologia pode envolver uma discussão pública, técnica, política, jurídica, religiosa e

científica cuja conclusão não ocorre dentro de um curto espaço de tempo. No caso da

clonagem terapêutica no Brasil, o processo já dura quase cinco anos. Pode parecer longo, se

compararmos com países que já realizam pesquisas com células-tronco (Estados Unidos,

Inglaterra, Suécia, China, etc.). Mas é um tempo muito curto, muito menos do que a ciência

seja capaz de definir, com segurança, todos os riscos e benefícios que envolvem a clonagem

terapêutica. No entanto, como bem adverte Isaac Epstein, “o tempo da política empurra

normas legais goela abaixo, enquanto que o tempo da ciência nos aconselha um prudente

compasso de espera” (EPSTEIN, mimeo).

Enquanto essa discussão toma corpo, avança também em outros países a pesquisa com

células-tronco embrionárias, sobretudo as recentes pesquisas que acenam para eliminar a

necessidade de clonar embriões humanos para obter esse tipo de célula para futuros

tratamentos. Em 2005, cientistas americanos afirmaram terem conseguido criar uma nova

célula-tronco embrionária humana a partir de uma célula de pele comum.42 Em janeiro de

2007, cientistas daquele país anunciaram que células-tronco extraídas do líquido amniótico

42 FOLHA DE S. PAULO (22/08/05)

77

podem gerar células de tecidos do cérebro, do fígado, dos ossos, do coração e de vários outros

órgãos (LEITE, 2007). A mais recente descoberta veio em novembro deste mesmo ano,

quando cientistas nos Estados Unidos conseguiram produzir, pela primeira vez, células-tronco

embrionárias clonadas de macacos adultos. A técnica, que só havia sido provada em

camundongos, coletou células da pele de animais adultos, extraindo o núcleo dessas células e

transplantando-as para dentro de óvulos com o núcleo removido. Esses óvulos foram

estimulados a formar embriões, dos quais foram extraídas células-tronco embrionárias,

capazes de formar qualquer tecido do organismo (ESCOBAR, 2007). Não é de se estranhar

que tais pesquisas tenham ocorrido nos Estados Unidos. Naquele país, as pesquisas com

células-tronco embrionárias são financiadas somente pela iniciativa privada, pois o governo

do presidente George W. Bush cortou verbas federais para pesquisas com essa finalidade.

Mas é preciso lembrar que são apenas possibilidades que podem, no futuro, eliminar a

necessidade de se utilizar células-tronco embrionárias e pôr fim, ao menos nesta questão, do

embate ético que envolve a destruição de embriões humanos congelados em clínicas de

fertilização in vitro. A necessidade de consenso científico ainda persiste e deve caminhar em

outros campos da biotecnologia. Um alerta está num texto que pondera questões sobre os

alimentos transgênicos, publicado na revista Science:

Discussões sobre os riscos e benefícios de se adotar organismos geneticamente transformados são fortemente polarizados entre grupos pró e contra a biotecnologia. Todavia, o atual estado de nosso conhecimento é freqüentemente esquecido neste debate. Uma revisão da literatura científica existente revela que experimentos cruciais, tanto dos riscos ambientais como dos benefícios na utilização dos transgênicos, ainda não foram feitos. A complexidade dos sistemas ecológicos apresenta importantes desafios aos experimentos para ter acesso aos riscos e benefícios destes organismos e isto gera inevitáveis incertezas sobre estes produtos. Em conjunto, os estudos existentes mostram que os riscos e benefícios podem variar espacial e temporalmente em cada caso, de acordo com o produto a ser modificado e as condições ambientais (WOLFENBARGER & PHIFFER, 2000).

Especificamente no caso das pesquisas com células-tronco embrionárias, o fenômeno

dos tempos distintos e pressões diversas bem pode sinalizar para o amadurecimento de todos

os setores envolvidos e preocupados com os riscos e efeitos dessas pesquisas. É sumamente

importante que os envolvidos reconheçam o caráter temporal de suas pressões e demandas,

bem como deleguem ao poder público o seu papel de mediador do debate e à própria

comunidade científica o seu papel de levantar hipóteses e dados que possam ser úteis a um

consenso técnico, capaz de fundamentar, com segurança, todas as etapas de um adequado

ordenamento jurídico, sensível às pressões de interesses diversos, mas que corresponda aos

78

anseios da opinião pública. Neste movimento, o papel da divulgação científica é fundamental

para tramitar, entre os grupos especializados (comunidade científica, jurídica, intelectuais,

etc.) e o grande público, informações seguras para construir este consenso. O fato é que o

mesmo deve ser construído levando-se em consideração os distintos tempos que envolvem a

produção científica, o fazer jurídico e a divulgação científica, como também a própria opinião

pública, conforme opinião de César Jacoby, representante do Ministério da Saúde na

Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio).

Seria impossível acreditar que o processo de construção de uma norma seguiria a mesma velocidade das descobertas científicas. Mesmo porque, o que é tido como verdade hoje, amanhã, pode ser reconsiderado, e aí como ficaria o sistema legal dos países? (JACOBY apud COM CIENCIA, 2004).

79

CAPÍTULO VI

ANÁLISE DE DISCURSO DO CORPUS DA PESQUISA

Objetos de estudo

• Artigo 1 – MARTINS, Ives Gandra da Silva; EÇA, Lílian Piñero. Verdade sobre células-tronco embrionárias. Folha de S. Paulo, 08/06/2005. Caderno Opinião, seção Tendências/Debates, p. A 3.

• Artigo 2 – COSTA, Humberto. Quem tem medo das células-tronco? Folha de S.

Paulo, 27/06/2005. Caderno Opinião, seção Tendências/Debates, p. A 3.

• Artigo 3 – ALMEIDA, Luciano Mendes de. Pesquisa científica e células-tronco. Folha de S. Paulo, 05/03/2005. Caderno Opinião, p. A 2.

• Artigo 4 – GLEISER, Marcelo. A nova cruzada contra a ciência. Folha de S. Paulo,

27/02/2005. Caderno Mais, seção + Ciência; Micro/Macro, p. 9.

• Artigo 5 – LEITE, Marcelo. Guerra das células: o retorno dos xiitas. Folha de S. Paulo, 12/06/2005. Caderno Mais, seção Ciência em Dia, p. 11.

• Artigo 6 – GLEISER, Marcelo.(b) Células-tronco e a medicina do futuro. Folha de S.

Paulo, 29/05/2005. Caderno Mais, seção + Ciência; Micro/Macro, p. 9.

• Artigo 7 – O Estado de S. Paulo. Vitórias da democracia. 04/03/2005. Editorial, p. A 3.

• Artigo 8 – O Estado de S. Paulo.(b) Fé não é direito. 03/06/2005. Editorial, p. A 3.

Artigo 1 – Fragmento 1

Declara a Constituição que o direito à vida é inviolável. O tratado internacional sobre direitos fundamentais de São José determina que a vida começa na concepção e que a pena de morte é condenável tanto para o nascituro como para o nascido. E o Código Civil impõe que todos os direitos do nascituro sejam garantidos desde a concepção.

No fragmento acima, o tributarista Ives Gandra Martins e a bióloga molecular Lílian

Piñero Eça, iniciam uma apologia da ação de inconstitucionalidade (ADI 3510) impetrada

pelo ex-procurador-geral contra a Lei de Biossegurança, Claudio Fonteles, alegando que a

mesma é “irrepreensível” do ponto de vista jurídico. Os autores recorrem à Constituição para

embasar o raciocínio do direito à vida, à Convenção Americana sobre Direitos Humanos de

São José da Costa Rica e até ao Código Civil. Todavia o fazem mediante injunções religiosas

80

e morais, diferente do tom jurídico e científico do artigo, uma vez que a afirmação de que “a

vida começa na concepção” é uma afirmação do Magistério Católico.

Posições contrárias a este argumento estão no próprio direito brasileiro, por meio do

critério que define a morte quando a atividade cerebral cessa, e, desse modo, o embrião

humano fertilizado in vitro, do zigoto ao chamado blastocisto, não apresenta resquício de

sistema nervoso nos primeiros 14 dias, período dentro do qual se dá o congelamento. Logo,

conforme cientistas e juristas, não se pode dizer que o blastocisto nesse estado encerre vida

propriamente, tanto que, quando criado por técnicas de reprodução assistida, a possibilidade

de se transformar em um bebê é de menos de 1% (SARTORI, 2005; PRANKE, 2005).

Conforme já vimos, a posição da Igreja Católica sobre o início da vida não é um

assunto perene, tendo já sido alterada três vezes. Somente a partir de 1869, no papado de Pio

9º, é que a Igreja, temendo não correr riscos, optou por proteger o ser humano a partir da

hipótese mais precoce, ou seja, a da concepção na união do óvulo com o espermatozóide. A

condenação do aborto, por exemplo, só ocorreu a partir de 1588 pelo papa Sixto 5º, em função

da idéia aristotélica de que este seria permitido até o 40º dia da gestação (MUTO &

NARLOCH, 2005, p. 59). Esse instante “no qual a vida começa” é muito questionado entre os

cientistas, que preferem ver a vida como um contínuo, conforme a teoria spenceriana, para

quem a "vida é um contínuo ajustamento de relações internas às relações externas"

(SPENCER apud KINOUCHI, 2006).

Os argumentos mostram-se dogmáticos e autoritários, próprios do discurso jurídico e

do discurso científico. O primeiro por se constituir em uma estrutura fechada, com reduzida

possibilidade de retroação, devido justamente ao caráter único do processo jurídico e da

natureza de verdade como fim, apesar de a lei se fundamentar em uma convenção social. Já o

segundo, está sempre aberto a novos discursos, dado seu caráter falseável, porém altamente

subjetivo na medida em que se apresenta como argumentativo (CORACINI, 1991, 47-48).

Ressalte-se a utilização do termo jurídico “pena de morte”, aplicado inadequadamente, talvez

como hipérbole, uma vez que se trata de utilizar embriões descartados oriundos de clínicas de

reprodução assistida e não de um réu adulto, passível de condenação. A escolha ressalta o

posicionamento ideológico dos articulistas, dado que “a linguagem que falamos, o sistema de

sinais que emitimos... são indicadores da nossa posição peculiar na rede tensa das tendências

políticas” (SANTAELLA, 1996, p. 331).

81

Artigo 1 – Fragmento 2

Há total descontrole das células embrionárias, surgindo diferenciações em tecidos distintos nas placas de cultura, com o que se poderia estar renovando experiências atribuídas a Frankstein.

Já no fragmento acima, o argumento jurídico dá lugar ao “discurso científico”, quando

é possível perceber argumentos da bióloga Lílian Piñero Eça. São reunidas dez afirmações de

cientistas – algumas seguidas de citações – que refutam ou desqualificam a pesquisa com

células embrionárias, em detrimento das pesquisas com células-tronco adultas, o que

caracteriza a noção bakhtiniana de dialogismo como princípio da produção dos

enunciados/discursos oriundos de “diálogos” retrospectivos e prospectivos com outros

enunciados/discursos (SOBRAL, 2006, p. 106; BAKHTIN, 1997); bem como o “discurso

autorizado” para ser reconhecido como tal (MAINGUENEAU, 1987, p. 37).

Dentre as afirmações, curiosamente uma menciona a possibilidade de formação de

teratocarcinomas no descontrole das células embrionárias (SANTOS, 2005), comparando este

risco de tumor mediante uma referência à conhecida obra literária Frankenstein, de Mary

Shelley.43 É bastante recorrente o emprego de imagens vampirescas (MEDEIROS, 2004, p.

11) com o intuito de satanizar os avanços científicos quando considerados além dos “limites

éticos”, utilizado sobretudos por militantes conservadores que acusam a ciência de “imitar o

criador”. Para os objetivos desta análise, o que de fato “espanta e assusta” é o emprego de tais

metáforas, analogias e recorrências mítico-literárias por parte de cientistas, bioeticistas,

pesquisadores ligados à Igreja e demais intelectuais que produzem artigos direcionados à

comunidade acadêmica, como a afirmação do frei Antônio Moser: “Decisivamente Prometeu

se apoderou do fogo dos deuses e agora é capaz de tudo” (2004, p.276). Sobre a relação

dessas recorrências míticas e sua utilização pelos segmentos conservadores, esse trabalho irá

discutir o tema no capítulo da conclusão.

O que nos preocupa e angustia é a consagração, em uma espécie de pacto faustiano imoral e diabólico, do homem à ciência e seus presumidos poderes absolutos dos quais confia obter saúde e felicidade (BELLINO, 1997, p. 81).

43 Frankenstein ou o Moderno Prometeu (Frankenstein or the Modern Prometheus, no original em inglês), mais conhecido simplesmente por Frankenstein, é um romance de terror gótico com inspirações do movimento romântico, de autoria de Mary Shelley, escritora britânica nascida em Londres. O romance relata a história de Victor Frankenstein, um estudante de ciências naturais que constrói um monstro em seu laboratório. Mary Shelley escreveu a história quando tinha apenas 19 anos, entre 1816 e 1817, e a obra foi primeiramente publicada em 1818, sem crédito para a autora na primeira edição. Atualmente costuma-se considerar a versão revisada da terceira edição do livro, publicada em 1831, como a definitiva. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Frankstein)

82

Artigo 1 – Fragmento 3

Como se percebe, em vez de o governo aplicar recursos na manipulação e eliminação de seres humanos, transformados em cobaias, como no nacional-socialismo alemão, poderia investir maciçamente na investigação das células-tronco do próprio paciente ou na dos cordões umbilicais.

Após recorrer a uma criação mítico-literária, cujo mito corresponde à derrocada da

crença no positivismo e no poder da ciência em eliminar os males da humanidade, o artigo

acusa o governo de financiar a pesquisa com células-tronco embrionárias. Argumenta que o

mesmo estaria investindo na manipulação de seres humanos, numa tentativa de pressionar a

opinião pública e, conseqüentemente, o Supremo Tribunal Federal, a acatar a ADI 3510 do

ex-procurador Claudio Fontelles. Essa estratégia de elevar ontologicamente o embrião

congelado em clínicas de fertilização artificial, destinado ao descarte, à categoria de “ser

humano”, e em decorrência acusar os pesquisadores de assassinos ou manipuladores, tem sido

recorrente por grupos conservadores ligados à Igreja Católica, mesmo que nesta haja setores

que pensem o contrário:

Assim como o nazismo, ou o comunismo de um tempo, com base numa pseudoteoria de raça, ou numa exasperada luta de classe, violentaram a vida humana de centenas de milhões de seres vivos, hoje, com uma demagogia egoísta e vaidosa, mal guiados, administrados e programados, ameaçam a vida humana: não apenas a vida do homem vivo está ameaçada, mas também a vida eterna de todos aqueles que transformaram outras pessoas em assassinos e que são, eles próprios, assassinos, na medida em que inspiram e instigam os homicídios. O ensinamento do papa é precioso, à medida que, inclusive entre alguns católicos (por sorte, poucos), há espaço para essa maldade satânica (POLÍBIO apud BELLINO, 1997, p.8). grifo nosso.

Essa tensa relação, que não poupa nem mesmo os semelhantes numa comunidade

plural, setores progressistas da Igreja que apóiam temas como aborto, terapia celular ou o uso

de preservativos e contraceptivos, demonstra o discurso e a linguagem como lugar de conflito,

de confronto ideológico, não podendo ser estudada fora da sociedade, uma vez que os

processos que a constituem são histórico-sociais (BRANDÃO, 2004, p. 10-11). Agressividade

semelhante pode ser vista no Manifesto pela Vida, emitido pela Associação Cultural

Montfort, filiada à Igreja Católica, ao coletar 150 mil assinaturas contra a Lei de

Biossegurança:

Uma lei só é legítima se respeitar a lei natural e os direitos fundamentais humanos impostos pela sua própria natureza e dignidade. Ora, o projeto de lei de

83

Biossegurança viola o direito à vida dos seres humanos concebidos, e renova assim o espírito racista e eugenista que presidia as experiências nazistas do famigerado criminoso dr. Mengele. O santo padre, o papa João Paulo II, condenou expressamente esse tipo de experiência, usando células-tronco embrionárias, quer para clonagem, quer – pior ainda – para fins terapêuticos, pois que isso permitiria usar seres humanos como meros fornecedores de órgãos. A aprovação do projeto de Biossegurança poderia propiciar o surgimento de um infame e criminoso comércio de seres humanos, que seria pior do que a reinstalação da escravatura. Rogamos então a Vossa excelência que não vote a favor dessa lei que seria o oposto da Lei Áurea (FEDELI, s.d.). Grifo nosso.

A estratégia discursiva torna-se ainda mais agressiva ao comparar a pesquisa com

células embrionárias às experiências ocorridas nos campos de concentração sob o domínio de

Hitler. Trata-se de outro argumento que caminha bem longe das razões pretensamente

científicas ou jurídicas que busca enumerar e que, conforme o jornalista Marcelo Leite, possui

“tanta consistência e profundidade quanto dizer que um papa é nazista por apoiar a Opus Dei

e ter freqüentado reuniões de adolescentes hitleristas quando um país inteiro o fazia” (LEITE,

2005). Novamente, concepções de natureza teológica com viés dogmático, imagens míticas e

crítica ao racionalismo povoam uma enorme lista de artigos “científicos”:

Porém, ainda não está totalmente estabelecida a intrigante relação entre criador e criatura, sendo que a razão humana nem sempre é capaz de dar uma finalidade correta às suas invenções. O fruto proibido certamente já foi transgredido, pois o saber médico invadiu áreas da vida humana cercadas de enigmas complexos, ou seja, tudo aquilo que a inteligência jamais fora capaz de explicar ou compreender. Agora, a maioria dos seres, por mais sábios e conscientes que sejam, não é capaz de resolver os problemas gerados pela ousadia da natureza humana (PUSSI & PUSSI, 2005, p. 57).

Artigo 2 – Fragmento 1

Em que pese a polêmica em torno do assunto, a ciência moderna adota o mesmo padrão tanto para o reconhecimento de uma nova vida como para a verificação da morte de um paciente: o funcionamento do sistema nervoso. No caso dos embriões, o sistema nervoso só é ativado 15 dias após a fecundação, mas aqueles que interessam às pesquisas e que estão congelados têm em torno de cinco a sete dias.

O artigo do médico psiquiatra Humberto Costa, à época Ministro da Saúde, possui um

tom mais comedido, envolto a uma retórica que busca mostrar-se mais racional e mais polido

que seu oponente, bastante atrelada a números e estatísticas de caráter econômico, própria do

discurso político de plataforma (DPP), conforme nos mostra Osakabe.

84

Para o locutor, o discurso enquanto forma de neutralização do adversário, deve pautar-se na racionalidade (clareza de raciocínio, concatenação dos argumentos) e no seu realismo (exposição serena dos fatos) (OSAKABE apud CORACINI, 1991, 42).

Publicado quase 20 dias após o artigo de Ives Gandra e Lílian Piñero, o que comprova

ser uma resposta, sua estratégia tem início com o próprio título do artigo – “Quem tem medo

das células-tronco?” – uma pergunta que visa minimizar (ou ironizar) o temor e “terror”

difundidos por parte do artigo de seus oponentes, sobretudo com a idéia de que a terapia

celular traria “um universo de outras possibilidades terapêuticas”.

Outra particularidade deste artigo – assinado por um médico que no momento ocupava

um cargo público – é seu viés subjetivo e argumentativo que concilia tanto as características

de um discurso político quanto as de um discurso de divulgação científica. Nele percebemos

argumentos que justificam não apenas as razões “científicas”, mas também “políticas” sobre

os benefícios da terapia celular.

Assim, os chamados ‘ideais de racionalidade’ constituem uma característica comum entre o discurso político de plataforma (DPP) e o discurso científico primário (DCP): o primeiro, servindo-se de meios ‘racionais’ e por vezes impessoais, levando o público ouvinte a agir pelo voto; o segundo, guiado pelo desejo de persuadir o interlocutor-especialista através da evidência (provas, demonstrações cientificamente racionais) e das convenções argumentativas que pretendem a objetividade e neutralidade (ideais científicos) (CORACINI, 1991, 42-3).

Todavia, a questão central no artigo repousa em sua tentativa de neutralizar o

argumento religioso de que “a vida começa na fecundação do óvulo”, fazendo uso do

raciocínio que pondera o início e fim da vida a partir do funcionamento (ou não) do sistema

nervoso. Apesar de esse argumento constar na jurisprudência do direito brasileiro, opinião

diferente tem o pesquisador Ricardo Ribeiro dos Santos, da Fundação Oswaldo Cruz,

pesquisador com células-tronco adultas para a cura da doença de Chagas.

Esse conceito será sempre relativo. Para a Igreja, a vida começa na fecundação. Esse conceito foi estabelecido quando não havia reprodução assistida. A maioria dos cientistas entende como início de vida a entrada do embrião no útero. Potencialmente, tudo é vida. Não temos que ser pragmáticos. O que tem que ser visto é a outra vida que será salva. Eu defendo a pesquisa (SANTOS, 2005).

Artigo 2 – Fragmento 2

Pois junto-me a eles, pesquisadores, como ministro e cidadão, nessa nova fronteira da ciência e da medicina voltada para a saúde de todos.

85

O fragmento acima conclui o artigo do ministro Humberto Costa. Nele transparece um

entusiasmo, com vistas a envolver o leitor, com as possibilidades de cura e avanço científico

que só podem ser acessadas por aqueles que transpuserem o abismo que opõe atrasados e

modernos, contrários e favoráveis ao mito das possibilidades infinitas da ciência. Compartilha

da expectativa quase ufanista de que a pesquisa com células-tronco embrionárias irá trazer

cura e tratamentos – bem como economia para os cofres públicos e melhor uso do dinheiro

dos contribuintes – para muitas enfermidades incuráveis. Essa crença no cientificismo,

inaugurada com o iluminismo e positivismo, comum aos pesquisadores favoráveis ao

progresso científico, é utilizada para qualificar os adversários da pesquisa com células-tronco

de inimigos da cura de doenças degenerativas e da reabilitação de paraplégicos.

Como enunciado de um médico, mas também ocupante de cargo público, a estratégia

discursiva do ex-ministro da Saúde, mesmo que alinhada aos anseios de uma população que

deseja melhorias no serviço de saúde, não pode ser assimilada sem um olhar sobre o seu viés

ideológico e político-partidário, como bem demonstra Santaella:

As linguagens que dão corpo às ideologias, na dimensão de cada cultura historicamente determinada, trazem inevitavelmente as marcas da posição política dos agentes sociais. Não há linguagem possível, conseqüentemente, que não seja um feixe indicial de tensões políticas (SANTAELLA, 1996, p. 331).

Artigo 3 – Fragmento 1

A restrição, no entanto, está no recurso às células-tronco embrionárias, cujo uso implica na destruição do embrião e, por isso, é moralmente inaceitável, uma vez que ao ser humano, desde a sua concepção, compete a sua inviolável dignidade. Não é portanto admissível, à luz dos princípios éticos, o voto do Senado e da Câmara dos Deputados que permite sacrificar o embrião humano e reduzi-lo a material de experimentação.

O fragmento acima faz parte do artigo “Pesquisa científica e células-tronco”, do

religioso católico dom Luciano Mendes de Almeida, na época arcebispo de Mariana, MG.

Diferente dos ataques mais incisivos e até hostis de setores conservadores da Igreja Católica,

o tom do bispo que foi presidente e secretário da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

(CNBB), busca conciliar os benefícios provenientes do avanço da ciência com os “limites

éticos” que resguardem a vida. A postura de dom Luciano, coerente com sua posição de

autoridade religiosa, possui um tom bastante cauteloso e conciliador, sempre antepondo suas

restrições morais com observações positivas sobre os benefícios da ciência. Provavelmente

essa postura conciliadora faça parte de seu histórico progressista de luta pelos direitos

humanos e atuação social em favor dos pobres e menores abandonados, perfil ideológico que

86

não se alinha muito com as posturas conservadoras do Magistério da Igreja. É possível então

falarmos do constrangimento ideológico subjacente aos indivíduos de determinado grupo

social, cuja intencionalidade discursiva se adapta às pressões do grupo, na perspectiva de

Ferreira (2003, p. 265) e Fiorin (2001, p. 44).

Em suas escolhas discursivas faz citações dos documentos do magistério católico

(Evangelium Vitae e Donum Vitae), sobretudo dos postulados em relação à dignidade da vida

humana, em detrimento das afirmações que condenam as pretensões científicas, naquilo que

podemos chamar de intertextualidade, conforme a visão de Pêcheux (1997), para quem “dado

discurso envia a outro, frente ao qual é uma resposta direta ou indireta, ou do qual ele

‘orquestra’ os termos principais, ou cujos argumentos destrói. Assim é que o processo

discursivo não tem, de direito, um início: o discurso se estabelece sempre sobre um discurso

prévio”. Ressalte-se a citação do termo sacrificar, de profundo significado teológico para a

moral cristã, já utilizado na instrução Donum Vitae de 1987 para condenar a fecundação

artificial. 44

Um ponto preliminar para o juízo moral acerca de tais técnicas é constituído pela consideração das circunstâncias e das conseqüências que elas comportam em relação ao respeito devido ao embrião humano. A consolidação da prática da fecundação in vitro exigiu inúmeras fecundações e destruições de embriões humanos. Ainda hoje, pressupõe habitualmente uma hiperovulação da mulher: vários óvulos são extraídos, fecundados e, a seguir, cultivados in vitro por alguns dias. Normalmente, nem todos são inoculados nas vias genitais da mulher; alguns embriões, comumente chamados «excedentes», são destruídos ou congelados. Entre os embriões implantados, às vezes alguns são sacrificados por diversas razões eugênicas, econômicas ou psicológicas. Tal destruição voluntária de seres humanos ou a sua utilização para diversos fins, em detrimento da sua integridade e da sua vida, é contrária à doutrina já recordada, a propósito do aborto provocado (EV, 1987, II).

Artigo 4 – Fragmento 1

O que preocupa no momento atual é a infiltração de certas idéias religiosas na política, contrariando os preceitos de uma sociedade democrática. Se o Estado passa a agir em nome de uma determinada religião, passamos a ter uma teocracia. No novo Orçamento da União, Bush cortou a receita de todos os órgãos dedicados à pesquisa, com exceção do Departamento de Defesa e do de Segurança Interna. Apenas a Nasa se saiu bem...

44 A palavra sacrifício (do latim sacer facere; sacrificare: fazer santo) tem o sentido de um ofício santo, sendo a prática de oferecer alimento ou a vida de animais ou pessoas para uma divindade, como ato de propiciação dos pecados ou culto. O termo é usado também metaforicamente para descrever atos de altruísmo, abnegação e renúncia em favor de outrem. Oferendas sacrificiais existem na maioria das religiões, embora a natureza do presente, o significado da ação e a função do rito variem muitíssimo. www.wikipedia.org/wiki/Sacrifício www.ceismael.com.br/oratoria/oratoria030.htm

87

O fragmento acima pertence ao primeiro artigo do físico Marcelo Gleiser, publicado

quatro dias antes da aprovação da Lei de Biossegurança na Câmara. Divulgador da ciência e

professor no Dartmouth College, em Hannover (EUA), Gleiser busca comparar as restrições e

dificuldades que cercam a tramitação da Lei de Biossegurança no Brasil com as posturas

conservadoras do presidente norte-americano George W. Bush. Ao citar o trecho de um

discurso de Bush: “Somos feitos à imagem do criador da terra e do céu”, Gleiser observa uma

relação entre o conservadorismo religioso e as restrições ao financiamento federal das

pesquisas com células-tronco embrionárias no país que mais investe em pesquisa científica.45

Seu artigo, bastante favorável ao avanço científico, demonstra o temor da comunidade

científica diante das limitações políticas impulsionadas por questões religiosas. Esse temor

pode ser percebido com a escolha do termo teocracia, que para o físico poderia representar a

volta do controle da Igreja sobre o Estado, sobretudo em questões científicas, tal como foi

durante séculos até as rupturas da Reforma Protestante e do processo de secularização. Para

Gleiser, o retrocesso pode ser percebido no governo do Rio de Janeiro, na época dirigido por

Rosinha Garotinho (PMDB), que vetou a reação da Assembléia Legislativa contra o decreto

de seu marido e ex-governador, Anthony Garotinho, que previa o ensino religioso

confessional (com aulas separadas por credo). O risco estaria em trazer de volta a ideologia

religiosa a outra instituição capaz de ampliar sua difusão: a escola, conforme nos mostra Van

Dijk:

A organização do grupo e a institucionalização são elementos fundamentais (história da Igreja Católica e algumas ONGs atuais). O mesmo é válido para as instituições ideológicas mais influentes na sociedade moderna: a escola e os meios de comunicação. Adquirimos ideologias parciais ao imitarmos as atividades cotidianas de outros membros do grupo, mas as ideologias se adquirem basicamente por meio do discurso, e não só como um tipo específico de comportamento ou ação. Mais do que outras instituições, a escola e os MCM levam a cabo este fim, como a igreja no passado (DIJK, 2003, p. 46).

Artigo 4 – Fragmento 2

O problema ocorre quando a religião passa a atuar fora de sua esfera, tentando evangelizar a população por meio de seu poder político. Como no Rio de Janeiro, forçando o ensino do criacionismo como uma alternativa a teorias científicas. Quem perde com isso são nossos estudantes e, com eles, o país inteiro. Se a ciência de ponta não puder ser feita aqui, será feita em outro lugar.

45 Nos Estados Unidos, a emenda Dickey-Wicker do Congresso proíbe o uso de verbas federais para qualquer pesquisa na qual um embrião humano seja destruído ou exposto a um risco desnecessário. O presidente Bush, em julho de 2006, vetou um projeto de lei para a expansão das pesquisas com células-tronco embrionárias financiadas com verbas públicas federais. Bush permitiu o financiamento federal com células-tronco humanas embrionárias, contanto que estas tivessem sido criadas antes de 9 de agosto de 2001. (WADE, 2006).

88

A posição de Gleiser visa atacar a atuação política de viés religioso, ou seja, quando a

religião busca retomar seu espaço perdido na sociedade por meio da secularização. Trata-se

de uma estratégia discursiva de caráter tão político quanto a própria postura que visa

combater, sobretudo quando a dicotomia secularização-evangelização mostra-se bastante atual

em boa parte dos conflitos políticos do mundo, conforme bem observou Habermas: "Quem

quiser evitar uma guerra entre as civilizações precisa se lembrar da dialética inacabada do

nosso próprio processo ocidental de secularização” (GLEISER, 2004, p. 137-145).

Há quem veja na militância política de cunho religioso uma defesa não da própria fé,

mas uma estratégia política de busca do poder. Conforme Ennio Candotti, presidente da

Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), grupos políticos evangélicos

descobriram no criacionismo46 um instrumento para "marcar posição, criar polêmica, ganhar

visibilidade e arrebanhar apoio" (CANDOTTI apud GAZIR, 2004).

Por outro lado, a estratégia discursiva de Gleiser abandona o campo da relação entre

religião e política (e seus prováveis beneficiados) e cede ao pragmatismo, quando relaciona o

prejuízo das políticas públicas movidas por interesses “religiosos”. Para ele, somente os

estudantes fluminenses e o próprio país vão perder com as restrições religiosas no campo da

ciência, pois a “se a ciência de ponta não puder ser feita aqui, será feita em outro lugar”.

Artigo 5 – Fragmento 1

Caminha para ser assim com as células-tronco, uma guerra nada santa que já opõe “católicos” agarrados ao estandarte das células adultas, de um lado, a “progressistas” enrolados na bandeira das células embrionárias, de outro.

No fragmento acima, o jornalista especializado em divulgação científica, Marcelo

Leite, analisa o confronto discursivo entre os dois grupos interessados na liberação ou não das

pesquisas com células-tronco. Publicado em 12/06/2005, pouco tempo após o procurador

Claudio Fontelles ajuizar a ADI 3510, o artigo “Guerra das células: o retorno dos xiitas” é um

dos poucos a denunciar as estratégias discursivas dos dois lados interessados na questão das

células-tronco, mostrando os argumentos desqualificatórios empregados por ambos.

46 O termo criacionismo engloba certa variedade de crenças, desde a interpretação literal da Bíblia (que coloca a criação do mundo há 6 mil anos), até um criacionismo progressivo, criacionismo contínuo, evolucionismo teísta, etc. Outra versão do criacionismo interpreta os seis dias da criação do Gênesis como significado períodos de tempo separados por milhares ou centenas de milhares de anos, com isto pretendendo acomodar as descobertas da geologia. No “criacionismo progressivo”, Deus teria criado as espécies originais, mas depois estas “progrediram”, evoluindo em formas diversificadas. No “criacionismo contínuo, Deus joga um papel ativo dirigindo a evolução a partir de sua criação das espécies originais. Já o “evolucionismo teístico” defende a idéia de que Deus criou o mundo num processo evolutivo (EPSTEIN, 2002, p. 109)

89

Para caracterizar o confronto entre favoráveis e contrários à terapia celular, o artigo

toma emprestado o termo “guerra santa”, expressão cunhada por Santo Agostinho,47 e que foi

utilizada para legitimar os movimentos militares, de caráter parcialmente cristão, que partiram

da Europa Ocidental e cujo objetivo era retomar a Palestina nos séculos XI e XIII, na época

sob controle dos turcos muçulmanos. O adjetivo nada seria uma ironia para denunciar o

caráter leviano com que os dois grupos se atacam, buscando ora satanizar favoráveis à

pesquisa, ora menosprezar ou chamar de “religiosos” aqueles que as condenam. Essa guerra,

diferente um pouco das cruzadas, teria tido seu início quando o racionalismo tirou a Igreja do

centro das decisões.

Desde finais do Renascimento, a rainha das ciências foi a física. A partir do séc. XVII, os pensadores decidem deixar Deus de lado, convertê-lo em parte da paisagem ideológica e voltar-se para si mesmos. A exaltação da razão e sobre os dogmas e o seu exercício crítico implacável foram um fenômeno subversivo cuja ação deu lugar a uma revolução das consciências e produziu o racionalismo como doutrina filosófica e atitude perante a vida, ambas erguidas sobre três princípios explicativos gerais: princípio materialista; princípio mecanicista e princípio determinista (COCHO, 2004, p. 191-2).

Artigo 5 – Fragmento 2

O contingente de pessoas razoáveis tende a sumir e a calar-se, porém, quando os cruzados de lado a lado se erguem para pontificar e condenar... Começou com os muitos pesquisadores que não reagiram ao maniqueísmo de seus pares quando, de olho nos embriões congelados das clínicas de fertilização artificial, pintaram os adversários como demônios desalmados.

O tom de denúncia segue neste segundo fragmento, responsabilizando o baixo nível do

embate discursivo, não fundamentado em razões científicas – por parte dos defensores – ou

razões teológicas, éticas e filosóficas por parte daqueles que condenam as pesquisas com

células-tronco embrionárias. Esse baixo nível do debate, Marcelo Leite credita aos

pesquisadores que se calaram diante das acusações oriundas dos segmentos conservadores,

estrategicamente empenhados em infundir uma imagem monstruosa, vampiresca, simplista e

47 O conceito de guerra justa (ou guerra santa) surgiu no final do século IV, através de Santo Agostinho. Seriam consideradas injustas todas as guerras que visassem a destruição, vingança ou busca do poder. A Guerra justa buscava a paz e se limitaria a uma justa causa, ou seja, à reparação de um dano sofrido, para atacar uma nação que se recusasse a punir um mau ato, ou quando se recusasse a restituir algo que fora injustamente subtraído a outra nação. No século XIII, Tomás de Aquino observa que uma guerra justa deve apresentar uma causa justa (reparação de um ilícito), uma intenção reta nas hostilidades, e ainda que seja declarada pela autoridade competente (CASTRO, 2003).

90

maniqueísta48 àqueles que se dedicam ao estudo da clonagem terapêutica, conforme se

percebe na declaração de José Maria da Costa, assessor adjunto da Comissão Episcopal

Pastoral para a Vida e a Família (CNBB):

“Por fim, como percebi nos defensores do aborto legal todo um honesto convencimento para a causa, creio que nossa argumentação precisa centrar-se nos postulados da filosofia, da ética humana, nas lições da ciência, nos direitos humanos e nos preceitos democráticos. Nada de acusações tais como assassinos, criminosos, discípulos do diabo... ou algo que o valha, sob pena de nossa defesa da vida desde a concepção se transformar num pretexto para a morte de nossos bebês” (COSTA apud RODRIGUES, C. 2006).

Artigo 6 – Fragmento 1

O caso das células-tronco é importante por ser um claro exemplo de como decisões políticas que misturam ciência com dogmatismo religioso podem prejudicar tanto os cientistas quanto a população como um todo.

O presente artigo, do físico Marcelo Gleiser, retoma suas preocupações do primeiro

artigo analisado. Elas consistem no que para ele é considerado como uma retomada do

movimento conservador religioso que, como ocorre nos Estados Unidos, busca influenciar as

decisões de caráter político mediante fundamentos religiosos e morais no Brasil. Gleiser

procura demonstrar o caráter obtuso dos políticos religiosos que não acenam para o diálogo

com a comunidade científica ou a própria sociedade civil. Suas concepções religiosas

bastariam para fundamentar suas atitudes – o que ele considera dogmatismo. É sabido que a

religião – em sua funcionalidade institucional – é considerada um dos instrumentos mais

efetivos de controle social:

A religião é um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens através da formulação de conceitos de uma ordem de existência geral e vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade que as disposições e motivações parecem singularmente realistas (GEERTZ, 1978, p. 104)

O temor do articulista parece voltar-se não apenas para o lado pragmático das medidas

políticas conservadoras, influenciadas pela religião, cuja capacidade pode alterar os rumos da

48 O maniqueísmo é uma filosofia religiosa sincrética e dualística ensinada pelo profeta persa Mani no séc. III, combinando elementos do zoroastrismo, cristianismo e gnosticismo, condenada pelo governo do império romano, filósofos neoplatonistas e cristãos ortodoxos. O maniqueísmo divide o mundo entre bem, ou Deus, e mal, ou o Diabo. A matéria é intrinsecamente má e o espírito intrinsecamente bom. Com a popularização do termo, maniqueísta passou a ser um adjetivo para toda doutrina fundada nos dois princípios opostos do bem e do mal. O maniqueísmo é uma forma de pensar simplista em que o mundo é visto como que dividido em dois: o do Bem e o do Mal (LIMA, 2001).

91

ciência no país, mas, sobretudo para o aspecto discursivo que, no campo religioso, reveste-se

ainda mais de seu papel sacralizador e de seu caráter de violência:

Na contemporaneidade, em estruturas simbólicas complexas, a violência é uma forma de dar continuidade ao fenômeno religioso, visto que as relações de poder na instituição são mantidas por meio da sacralização do discurso, da autoridade do líder e da instituição religiosa [e/ou política] (LEMOS F., 2002, p.111). grifo nosso.

Artigo 6 – Fragmento 2

Essa retórica é típica de uma ideologia religiosa radical. A proposta dos cientistas é utilizar os embriões descartados pelas clínicas de fertilização artificial. Caso não fossem utilizados, seriam congelados indefinidamente ou simplesmente destruídos. Portanto, o que se propõe é justamente o uso dos embriões para salvar vidas, evitando assim que sejam destruídos inutilmente.

O ataque de Gleiser ao simplismo49 dos políticos que fundamentam suas posturas na

religião toma um tom mais agressivo neste segundo fragmento, quando nomeia a retórica

dessas lideranças de “ideologia religiosa radical”. Sua afirmação apóia-se no caráter arbitrário

e irracional dos conservadores que afirmam que destruir um embrião para a terapia celular

equivale a matar uma vida. O radicalismo estaria em não perceber (ou aceitar) que tais

embriões vão ser descartados, pois não são mais úteis após três anos de congelamento – o que

equivale a dizer que não se trata de destruir uma vida, mas adaptá-la para sua continuidade.

A postura defensiva de Gleiser pode ser vista como uma apologia à autonomia da

ciência e uma refratariedade ao discurso ético-moral que ataca a comunidade científica.

Todavia, existe uma espécie de consenso entre os cientistas de que a ciência deve ser regulada

por parâmetros e vigilância da sociedade civil, com o objetivo de minimizar e controlar riscos

potenciais das inovações tecnológicas, como o Princípio da Precaução, cuja melhor definição

foi sugerida pela Comissão Mundial sobre Ética da Ciência e da Tecnologia da Unesco

(Comest):

Quando atividades podem conduzir a dano moralmente inaceitável, que seja cientificamente plausível, ainda que incerto, devem ser empreendidas ações para evitar ou diminuir aquele dano. “Dano moralmente inaceitável” refere-se a dano para os seres humanos ou para o ambiente, que seja uma ameaça à vida ou à saúde humanas, ou que seja sério e efetivamente irreversível, ou injusto com as gerações presentes e futuras, ou imposto sem a adequada consideração dos direitos humanos

49 A simplificação é uma forma primária do pensamento que reduz os fenômenos humanos a uma relação de causa e efeito, certo e errado, isso ou aquilo, é ou não é. A simplificação é entendida como forma deficiente de pensar, nasce da intolerância ou desconhecimento em relação à verdade do outro e da pressa de entender e reagir ao que lhe apresenta como complexo (LIMA, 2001).

92

daqueles afetados. O juízo de plausibilidade deve estar fundado em análise científica. As análises devem ser contínuas, de modo que as ações escolhidas sejam submetidas à revisão. “Incerteza” pode aplicar-se, mas não necessita limitar-se, à causalidade ou aos limites do dano possível. “Ações” são intervenções empreendidas antes que o dano ocorra que buscam evitar ou diminuir esse dano. Deve-se escolher ações que sejam proporcionais à seriedade do dano potencial, com consideração de suas conseqüências positivas e negativas, e com uma avaliação tanto da ação como da inação. A escolha da ação deve ser o resultado de um processo participativo (COMEST apud LACEY, 2006, p. 374).

Artigo 7 – Fragmento 1

Felizmente, essa “vitória da bruxaria sobre a ciência”, como resumiu à época um parlamentar, não se repetiu no Senado.

O fragmento acima pertence ao jornal O Estado de S. Paulo. Este veículo de

comunicação optou por não convidar articulistas para debater a aprovação da Lei de

Biossegurança ou a ação de inconstitucionalidade (ADI 3510) do procurador Claudio

Fontelles, resumindo-se a se pronunciar sobre o assunto por meio de seu editorial.

O fragmento acima condensa a manifestação de um parlamentar durante o processo de

votação, no Senado e na Câmara, do projeto que deu origem à Lei de Biossegurança. O

editorial não aponta o autor da declaração, mas é possível perceber o tom desqualificatório e

preconceituoso com que o parlamentar se refere à atividade científica, confundida aqui com as

práticas curandeiras e o ofício de parteiras entre os séculos XV e XVIII, praticadas por

mulheres as quais a Igreja Católica, com brutal misoginia, preferiu silenciar com o calor das

fogueiras da Inquisição.50

O editorial ataca não apenas a reação à aprovação da Lei de Biossegurança, mas a

influência de uma cosmovisão conservadora, religiosa e retrógrada contra o avanço da

ciência. Para o autor da frase, seria ciência apenas a atividade de pesquisa que se restringisse

ao campo de atuação “permitido” pela Igreja. Trata-se de um embate discursivo que

representa o choque de forças entre os que praticam a “boa” ciência (a dos pesquisadores que

se alinham ao controle da Igreja, portanto contrários à clonagem terapêutica) e os que

praticam a “magia da bruxaria” (a dos cientistas que, comparados às curandeiras e parteiras do

período inquisitório, desafiam o poder conservador).

50 A causa da perseguição em massa às chamadas “bruxas” tem duas faces: de um lado a tentativa de superação da natureza e o domínio da racionalidade e, do outro, o medo do sexo e do poder das mulheres que começava a se evidenciar, na Europa Central. No final da Idade Média, a ciência e a filosofia começavam a dispor sobre a natureza. As mulheres, como parteiras e as curandeiras, conhecedoras de ervas, possuíam uma grande ligação com a natureza (MEYER-WILMES, 1998, p.17-20).

93

A medicina emergente se indispôs contra essas mulheres: os cientistas varões eram agora os depositários do saber científico, racional, que combatia esse conhecimento “natural” como superstição, magia “negra” ou “branca”. A Igreja e o Estado ficaram a favor de uma ciência que se considerava racional e objetiva (MEYER-WILMES, 1998, p.17-20).

Artigo 7 – Fragmento 2

O essencial – e motivo de regozijo – é que os partidários do atraso, por desinformação, preconceito ideológico e crenças dogmáticas particulares, não lograram tolher nem a modernização da economia agrícola nem o avanço da ciência no país. Principalmente porque a sua derrota foi uma vitória da democracia, sob a forma de pressões sociais legítimas, fundamentadas na ética e na razão.

Com o desenvolvimento do artigo, o editorial abandona o discurso conservador dos

parlamentares de voto vencido, qualificando-os de “partidários do atraso” em virtude de suas

crenças e preconceitos religiosos. O editorial se põe então a favor não apenas da pesquisa com

células-tronco embrionárias, mas também a favor do plantio e comercialização de alimentos

transgênicos no país, considerada como “modernização da economia agrícola”, chegando ao

ponto de celebrar a aprovação da Lei de Biossegurança como uma “vitória da democracia”.

Esta seria uma alusão ao fato de que tal ordenamento jurídico corresponde ao anseio de

centenas de pessoas portadoras de doenças degenerativas, além de inúmeras famílias e

deficientes físicos que fizeram um intenso lobby no congresso para a aprovação da lei. A

expressão “vitória da democracia” também parece expressar que o Brasil, ao aprovar a

legislação que favorece a pesquisa com células-tronco embrionárias, manteria o estado laico

ao não permitir que influências religiosas afetassem as condutas políticas e legais no país.

Neste caso, ao comentar um evento político e apoiá-lo, é extremamente “política e ideológica”

a estratégia discursiva do editorial.

O enunciador político está orientado a elaborar estratégias discursivas que condicionam a aceitação dos significados novos, reinterpretando as representações da comunidade já aceitas pelo coletivo e a induzir ao destinatário determinados cursos de ação e/ou estados de opinião com nova concepção do público, que o próprio discurso político propõe (PEREZ, 2004, p. 184-189).

E sobre a influência do editorial, concordamos com Caiscais, para quem o editorial

reflete a opinião pública e influencia o poder:

Porta-voz da opinião pública ou motivando-a, o editorial é um texto que influencia o poder. É o mais claro sinal, em particular na imprensa, da função mediadora entre público e poder e de assumida representação da sociedade civil (CAISCAIS, 2001, p. 76).

94

Artigo 8 – Fragmento 1

O fundamento que levou o procurador-geral Claudio Fontelles a ajuizar, no STF, uma ação direta de inconstitucionalidade contra o dispositivo da Lei de Biossegurança que permite a utilização de células-tronco de embriões humanos com finalidades de pesquisa ou terapia só pode ser o da doutrina católica, religião da qual o procurador se confessa fervoroso praticante.

Essa mesma linha de raciocínio, da separação entre Estado e Igreja, parece ter sido

adotada no segundo editorial do jornal que critica a medida legal adotada pelo ex-procurador

Claudio Fontelles. Redigido três meses após o primeiro, o editorial “Fé não é direito” começa

pelo próprio título a atacar as motivações religiosas do ex-procurador contra a Lei de

Biossegurança.

O procurador-geral da República, Cláudio Fontelles, admitiu que sua formação católica teve influência no ingresso de uma ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) contra o artigo da Lei de Biossegurança que autoriza a utilização de células-tronco de embriões humanos para pesquisa ou tratamento de doenças. No entanto, argumentou que os cientistas que defendem a legislação seriam agnósticos e, por isso, também seriam influenciados por suas convicções. "Os cientistas que pensam contrariamente a mim são agnósticos fervorosos. Se você me perguntar se tem uma visão católica aí [na ADI], eu digo que tem", disse (RECONDO, 2005).

O jogo de palavras do título deste editorial (fé não é direito) demonstra, duplamente,

uma aversão à postura de confundir exercício jurídico com convicções religiosas e,

implícitamente, preconceito religioso por parte dos articulistas do editorial quanto à

autoproclamada postura religiosa de Fonteles. O efeito de sentido demonstra também uma

especificidade discursiva: nas marcas de interlocução há vestígios da relação entre a formação

discursiva e a formação ideológica (ORLANDI, 1987, p. 111)

Relevante para o caso, embora lateral para a discussão central, é a vinculação admitida e pública do procurador-geral da República com a religião católica. Por óbvio, não é problema algum para a sociedade que os agentes públicos professem uma determinada fé religiosa. Estado laico não é Estado ateu, mas um Estado que não toma decisões a partir de uma visão religiosa: e esse princípio é violado quando o agente público admite publicamente, em entrevista, que a razão de ter tomado alguma decisão pública teve motivação religiosa. E Claudio Fontelles violou esse princípio básico (ALMEIDA, s.d. p. 25).

95

CAPÍTULO VII – CONCLUSÃO

1. A tentação do saber restrito – Prometeu versus Zeus

O estudo sobre o embate discursivo realizado entre favoráveis e contrários às

pesquisas com células-tronco nos remete a pensar sobre os aspectos fundantes presentes nas

narrativas míticas51 e seu potencial para a constituição do imaginário e sua conseqüente

formulação ideológica.

A utilização de imagens arquetípicas, recorrentes nos mitos fundantes da civilização

ocidental, empresta um sentido construído ao longo dos séculos, capaz de oferecer novos

matizes a uma disputa ideológico-discursiva. Neste caso, as constantes referências a

personagens míticas como Prometeu, Fausto, Frankenstein, representados de modo dramático

como transgressores dos “limites traçados por Deus”, oferece uma boa pista de estudo – não

circunscrita aos limites desta pesquisa – mas que bem pode ser objeto de uma pesquisa de

doutorado.

Todavia, cabe ressaltar alguns aspectos arquetípicos que chamam a atenção, sobretudo

a partir da noção de discurso fundador, de Eni Orlandi (2003). Neste caso, nossa apropriação

deste conceito não está em sua articulação com a cena fundante e a história oficial como

referências analíticas (SOUZA, 2002, p. 57), mas provavelmente da cena fictícia, dramática, e

da interpretação corrente como elementos constitutivos do inconsciente coletivo. Até porque,

no processo de identidade histórica, o que conta não são os fatos, muitas vezes forjados a

posteriori, mas o processo simbólico que os produz a partir de uma cena (ou prosa) originária

mítica:

51 "MITO: Narrativa tradicional sobre o passado que freqüentemente inclui elementos religiosos e fantásticos. Alguns tipos de mitos são encontrados em todas as sociedades, embora funcionem de diferentes maneiras em cada uma delas. Os mitos podem tentar explicar a origem do universo, e da humanidade, o desenvolvimento de instituições políticas ou as razões das práticas rituais. Os mitos muitas vezes descrevem as façanhas de deuses, de seres sobrenaturais, ou de heróis que têm poderes suficientes para se transfigurar em animais e para executar outras proezas extraordinárias. Antropólogos passaram muito tempo tentando diferenciar mito de história, mas a história pode exercer as mesmas funções do mito, e os dois tipos de narrativas sobre o passado algumas vezes se confundem. Teóricos como Frazer interpretavam os mitos como formas de antigos pensamentos científicos ou religiosos. Esta abordagem foi posteriormente criticada por Malinowski, que via o mito como explicação para a ordem social. O historiador romeno norte-americano Mircea Eliade via o mito como um fenômeno religioso, isto é como a tentativa de o homem retornar ao ato original da criação. Lévi-Strauss afirmou que a importância do mito não está em seu conteúdo, mas em sua estrutura, uma vez que ela revela processos mentais universais. Em psicologia os mitos são vistos como uma importante base para o comportamento humano. Tanto Freud quanto Jung utilizaram largamente os mitos em seus trabalhos. Quaisquer que sejam as teorias a respeito das origens e funções dos mitos, esses permanecem fundamentais para a consciência humana" (Nova Enciclopédia Ilustrada da Folha de S. Paulo).

96

São espaços de identidade histórica: é memória temporalizada, que se apresenta como institucional, legítima. No entanto, nessa passagem do sem-sentido para o sentido, produzida nesses lugares, não estamos pensando a história dos fatos, e sim o processo simbólico, no qual, em grande medida, nem sempre é a razão que conta: inconsciente e ideologia aí significam. Não é a cultura ou a história factuais, mas a das lendas, dos mitos, da relação com a linguagem e com os sentidos. É a memória histórica que não se faz pelo recurso à reflexão e às intenções, mas pela “filiação” (não aprendizagem). Aquela na qual, ao significar, nos significamos. São os outros sentidos do histórico, do cultural, do social. Mas que assim mesmo nos constroem um imaginário social que nos permite fazer parte de um país, de um Estado, de uma história e de uma formação social determinada (ORLANDI, 2003, p. 11).

Sob esse ponto de vista, a apropriação do mito de Prometeu52 é freqüentemente

tomada como uma alegoria da busca de um saber (ou poder, no caso o fogo) restrito a Deus,

tal como descrito no mito bíblico da criação, em que Adão e Eva são punidos por desejarem o

fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. O mito foi bastante interpretado como a

tentativa de superação humana, de vencer limites impostos pelo poder estabelecido, sendo

símbolo do iluminismo e das revoluções francesa e industrial.

A imagem mítica de Prometeu acorrentado, sob castigo pela ousadia de roubar o fogo dos deuses, tomada como alegoria da aquisição do saber por mortais desautorizados, frente ao privilégio daqueles de deterem o conhecimento pleno, cedeu lugar, na Modernidade, à imagem sem grilhões do cientista, que pode conhecer (quase) tudo das leis intrínsecas da natureza, inclusive o homem e o cosmos, desde a construção de modelos ideais da ciência até a sua redução aos padrões de aplicabilidade tecnológica (VALVERDE, p.19).

Essa imagem do herói que empresta sentido ao papel do pesquisador não foi

construída assim tão tardiamente. A antiguidade fez sempre de Prometeu o benfeitor da

humanidade, o libertador dos homens e, sobretudo, aquele que se revolta contra Deus (ou

contra o poder terreno que se legitima como tal), conforme a descrição do mito por Ésquilo:

“Por mim, odeio todos os deuses”. A partir daí surge uma concepção mais humanista do mito

nas representações posteriores, como vemos em Marsílio Ficino (o homem é de toda forma

Deus na terra) e em Giordano Bruno (o homem é homem, e deve conquistar seu lugar no seio

52 Personagem do poema Trabalhos e Dias de Hesíodo, ou da peça Prometeu Acorrentado, de Ésquilo, Prometeu é filho de Jáspeto, o Titã e primo de Zeus. Inteligente, astuto e previdente, ao contrário de seu irmão Epimeteu, simboliza a revolta dos homens contra os deuses. Consegue enganar o próprio Zeus e trazer à humanidade benefícios que os deuses lhes recusam.. Durante um banquete entre os homens e os deuses, separa a melhor parte aos primeiros, mediante uma farsa proposta aos últimos. Para punir os homens que se beneficiaram, Zeus esconde o fogo necessário ao cozimento das carnes e obriga os homens ao trabalho penoso. Novamente Prometeu socorre os homens, roubando uma centelha de fogo e dando-a aos homens. O castigo pela ousadia é terrível: Zeus envia aos homens o “belo mal” que é Pandora, a mulher, com um jarro donde provirá toda a sorte de males. Quanto a Prometeu, este é acorrentado com elos de aço no alto de uma montanha e uma águia não pára de lhe devorar o fígado durante o dia, que volta a crescer durante a noite (COMTE, 1994, p.58-60).

97

do universo e eventualmente arriscar a revolta). A noção de revolta contra Deus dará lugar ao

de símbolo do criador, imitador e cúmplice da divindade (COMTE, 1994, p. 63).

Não há ritual sem falhas (Pêcheux, 1991), por isso é preciso a ruptura e instauração de uma nova ordem de sentidos. O que o caracteriza como fundador é criar uma nova tradição, re-significa o que veio antes e institui aí uma memória outra. O sentido anterior é desautorizado. Instala-se outra tradição de sentidos, nova filiação (ORLANDI, 2003, p. 13).

Todavia, o mito também vai emprestar a imagem de Zeus, tirano, ciumento e todo-

poderoso castigador, a todo e qualquer poder que pretenda impor cerceamentos ao gênio e

progresso humanos. Será primeiro com Voltaire (Pandora, 1740), que irá responsabilizá-lo

pelos males físicos e morais. Goethe, por sua vez, colocará Deus como rival do poeta e do

artista em seu Prométhée, capaz de criar os homens: “Então Prometeu permite-se zombar de

Deus: “Baixa teu olhar, Zeus, sobre o meu mundo. Ele vive! Formei à minha imagem uma raça

semelhante a mim, para sofrer, chorar, gozar, apreciar o prazer e desprezar-te, como eu!” (GOETHE

apud COMTE, p. 63).

"a articulação entre humano e divino... comprova o conflito entre o pensamento racional e o mítico, o que demonstra que o domínio da tragédia se localiza onde os atos humanos se articulam com os deuses" (COSTA & REMÉDIOS, 1988, p. 9).

Seguindo essa linha de raciocínio, em que a imaginação e o imaginário se confundem

com a realidade, parece-nos propício dizer que a revolta de dramaturgos e escritores contra

Zeus, o deus-algoz de Prometeu, nada mais é do que uma revolta contra o espírito moralista e

conservador que sempre se fez presente na história, que faz uso da religião (ou das fábulas)

para cercear a liberdade de pensamento e criação. Nesse caso, se é possível aos limites desta

dissertação, entendemos que a apropriação do mito de Prometeu, largamente utilizada por

seguimentos conservadores e religiosos para atacar a “tentação prometéica” da pesquisa

científica, é uma condenação moral e religiosa da conduta autônoma do saber científico,

sempre às rusgas com o poder religioso e que dele começou a se afastar a partir do

racionalismo.

Não será uma profanação, a título de compreensão lúdica, tomarmos emprestada a

imagem de Zeus, o deus tirano e ciumento, para caracterizar uma espécie de poder

conservador que, a despeito da postura autônoma de muitos parlamentos, busca impor limites

e restrições jurídicas ao exercício científico. Até mesmo porque há quem aposte que a peça de

Ésquilo seja uma leitura do autor sobre a superação da ordem na passagem do final do período

98

arcaico para o período clássico na Grécia (séculos VI e V a.C.), cuja transição do poder

tirânico para o poder democrático ocorreu de forma lenta e com enormes custos a todos os

que contestaram o poder instituído (MAESTRI, 1997, p. 99)

Terreno fértil que confunde a realidade, a imaginação (ficção, literatura) e o imaginário (ideologia, o efeito de evidência construído pela memória do velho mundo). Movimento de afastamento e retorno à realidade. Aí se processa o mecanismo ideológico de construção imaginária da realidade com seus efeitos de evidência. Aí está a marca – discursiva, não conteudística – do discurso fundador: a construção do imaginário necessário para dar uma ‘cara’ a um país em formação; para constituí-lo em sua especificidade como um objeto simbólico (ORLANDI, 2003, p. 17).

Parece-nos então, mais apropriado, falar de um embate discursivo, cujos matizes

ideológicos remontam a construções arquetípicas, em que a questão que se coloca não se trata

apenas de conteúdos religiosos, mas também de um confronto de posições na extensa rede de

relações sociais ante um poder instituído. De um lado um discurso que nos remete à promessa

de liberdade, do desafio de um poder (o fogo que só a ciência recupera) que parece

onipotente, do outro um alerta severo, repleto de maldições, excomunhões e condenações aos

que se mostram insurgentes dos limites de uma ordem “pré-definida”. Afinal, como disse

Maler Müller, “o homem deseja bem mais do que Deus e o diabo lhe podem dar” (COMTE,

p. 53).

E Prometeu permanecerá com uma imagem; ou bem a imagem do técnico que escravizou a humanidade para Jean-Paul Sarte, ou, então, para Camus, a da humanidade que se liberta de toda alienação, a dos deuses e a do homem. Ele é e continua sendo alguém incômodo, incômodo para os doutrinários, os religiosos de qualquer confissão, os pequenos chefes de toda casta (COMTE, 1994, p.68).

2. Considerações finais

As recentes transformações sociais advindas do processo de secularização, somadas

aos gigantescos saltos que a moderna biotecnologia proporcionou à ciência, acirraram ainda

mais o histórico embate entre ciência e religião. Num quadro de pluralismo cultural e

relativismo ético, a militância conservadora de segmentos religiosos torna-se um poderoso

agente político com capacidade para influir nos ordenamentos jurídicos. E o faz a partir da

retomada do discurso conservador, mobilizando tanto o clero quanto o laicato a participar da

vida pública mediante a defesa de questões que envolvem temas morais e a dignidade da vida

(aborto, eutanásia, clonagem terapêutica, etc.).

99

No entanto, parece-nos que esse discurso e essa militância parecem não ter o mesmo

fôlego quando se trata da defesa da vida em questões mais imediatas nos diferentes cortes

sociais como a exploração de mulheres e crianças, os moradores de rua e a defesa dos direitos

humanos de minorias, etc, realizada somente por parcelas mais progressistas ligadas à Igreja.

Nestes casos, a militância se resume ao relevante trabalho de clérigos e leigos, algumas vezes

discordantes das posturas conservadoras oficiais da Igreja. São tímidas ou quase inexistentes

as campanhas e mobilizações em favor dessas minorias, fato que pôde ser observado durante

o plebiscito da comercialização de armas de fogo em 2005. Não houve pronunciamentos de

autoridades religiosas que condenassem o comércio de armas de fogo, muito embora seja

conhecida a diminuição de homicídios por arma de fogo nos centros urbanos do Brasil após a

implantação do Estatuto do Desarmamento.

É surpreendente que, num planeta conturbado como o nosso, na vigência de guerras, terrorismo, desigualdades sociais e econômicas aterradoras, de discriminações étnicas, religiosas e sociais de todo tipo, haja tanto “pavor” com relação à implementação de novas técnicas, tanto no âmbito da engenharia genética como no da reprodução assistida (SEGRE, 2003, p. 240).

Neste caso, concordamos com Schramm & Segre, para os quais a militância

conservadora relacionada a temais morais demonstra bem mais o interesse na manutenção da

ordem vigente do que o desejo de proteger a “dignidade da vida humana”:

Tais polêmicas são de tipo moral e muito mais muito mais reflexo de temores quanto às possibilidades de alteração do status quo na condição humana – que o exercício da liberdade responsável abre – do que decorrência de ponderações éticas sobre vantagens e riscos de sua utilização (SCHRAMM & SEGRE, 2002, p. 42).

Outro aspecto que nos parece relevante, o tom conservador dos documentos emanados

pelo Magistério da Igreja, com o qual se alinham os discursos clérigos e laicos de pessoas

ligadas à Igreja – com enorme potencial de influência nos ordenamentos jurídicos de diversos

países53 – parece não corresponder à prática da grande maioria dos fiéis católicos em todo o

mundo. Os católicos não seguem a doutrina Católica Romana oficial em assuntos de

sexualidade e reprodução, que inclui considerar a contracepção, mesmo para as pessoas

casadas, como algo mau, e o aborto provocado, mesmo em situações em que a vida da

gestante corra risco, tido sempre como imoral. Esse abismo entre o Vaticano e o ponto de

53 Na Alemanha e na Itália, é freqüente a evocação da “dignidade humana”, expressão acolhida pelo direito constitucional, que caracteriza conseqüências restritivas em relação à interrupção da gravidez (MASTROPAOLO, 1999, p. 21).

100

vista dos católicos quanto a questões morais remete-nos à noção da consciência individual do

fiel, uma espécie de autonomia própria que a Igreja respeita aos seus membros.

Enquanto muitos assumem que a rigidez monolítica em assuntos morais é o modo católico, um maior conhecimento da tradição desta religião mostra a substancial liberdade de consciência da qual desfrutam os fiéis nas decisões morais e éticas. A consciência individual, de acordo com os documentos do Concílio Vaticano II (1965), é inviolável e deve ser seguida até mesmo quando discorda de ensinamentos da Igreja. Os católicos, obviamente, têm a obrigação de estudar e refletir sobre os ensinamentos da Igreja, de tentar reconciliar esses ensinamentos com as suas consciências, e de exercer grande cautela antes de rejeitar qualquer ensinamento da Igreja (KISSLING, 1998, p. 136).

Essa assimetria entre as manifestações oficiais do Vaticano e os pontos de vista dos

fiéis católicos, que os leva a desenvolver uma ética particular sexual e reprodutiva, leva-nos

também a concordar com Ferreira (2003, p. 265). Para ele, o discurso é regido por um

conjunto de imposições e constrangimentos, que vai determinar assim as escolhas lexicais,

para que o mesmo ocorra dentro da “intencionalidade daquele que fala e se organiza em um

espaço de limitações e de estratégias na interdependência entre os espaços interno e externo”.

Ou seja, nem tudo aquilo que alguém fala resume praticamente aquilo no qual acredita.

Assim, os discursos contrários à pesquisa com células-tronco embrionárias, de tom

conservador, correspondem bem mais aos constrangimentos, imposições e condições de um

contexto próprio daquele que os emite. Como já vimos nas condições de produção, tais

discursos são emitidos por profissionais, clérigos ou laicos, ligados a instituições católicas, o

que não poderia se supuser que um religioso praticante somente se manifestasse contrário às

posturas oficiais da Igreja caso não possuísse qualquer vínculo com suas instituições, tal é o

caso dos militantes de movimentos como Católicas pelo Direito de Decidir.54

O mesmo raciocínio confirma uma de nossas hipóteses – a de que tais discursos são

enunciados a partir de um contexto político-social específico, constrangindo seus

interlocutores a emitir posições conforme o grupo político-social a que pertencem –

equivalente para os defensores da clonagem terapêutica. Membros da comunidade científica e

lideranças públicas estão muito interessados em que não haja restrições legais para as

pesquisas científicas, o que traria prejuízos institucionais, políticos, pessoais, da carreira 54 É bastante reconhecida a atuação do braço internacional deste movimento. O Catholics for a Free Choice (CFFC – Católicas pela Livre Opção) tem examinado as dimensões políticas e teológicas das posições dos líderes da Igreja e atua de forma consolidada em países da América Latina (México, Brasil, Uruguai, Peru, Argentina, etc. (KISSLING, 1998). No Brasil, a secretária executiva da Jornada pelo Aborto Seguro e integrante da ong Católicas pelo Direito de Decidir, Dulce Xavier, acha que a discussão sobre o uso de células-tronco embrionárias deve ficar restrita ao meio científico e não deve receber pressão dos setores religiosos contrários (AGÊNCIA BRASIL, 2008).

101

profissional e, sobretudo, aos setores da indústria médica e farmacêutica. Vale lembrar que as

pesquisas estão paradas até que se julgue o mérito da ADI 3510 (ZATZ apud AGÊNCIA

BRASIL).

Dentro dessas injunções políticas a que estão submetidos os enunciadores destes

discursos, favoráveis e contrários à clonagem terapêutica, o que determina o constrangimento

e as escolhas lexicais, é possível verificar a forte intencionalidade e o caráter ideológico dos

mesmos, pois utilizam elementos desqualificatórios e preconceituosos (discursos favoráveis à

ciência) ou estratégias dogmáticas, condenatórias e atemorizantes (discursos contrários à

ciência). Todos voltados a atrair a simpatia da opinião pública e a influenciar o voto do

legislador.

Abstraindo, todavia, deste embate discursivo e de sua luta em manter interesses e

posições, bem como proteger instituições, quaisquer que sejam, cabe-nos rever o lugar talvez

da opinião pública, beneficiária primeira dos avanços e conquistas científicas. Neste caso, o

papel da divulgação científica, não imune aos interesses dos meios de comunicação, deverá

ser o de trazer à baila a opinião pública e capacitá-la para tornar-se agente no processo de

decisão sobre as políticas de ciência e tecnologia. Tarefa que ainda não se encontra na atuação

pública de favoráveis e contrários à clonagem reprodutiva.

Quanto à própria ciência, é de sua natureza a investigação, a busca por conhecer,

controlar e dominar a natureza, o interesse em superar os desafios e enigmas que cercam a

existência. Apesar dos grandes interesses econômicos e pessoais que cercam o mundo

científico, não se pode falar na tentação do pesquisador em querer ser como Deus, pois como

bem disse Leonardo Boff, “o ser humano é o único ser que pode intervir nos processos da

natureza e co-pilotar a marcha da evolução. Ele foi criado criador” (BOFF, 2002, p. 9). A

afirmação de que o homem está brincando de Deus, freqüentemente utilizada para avaliar o

mérito do avanço científico e tecnológico é, no mínimo covarde (SEGRE, 2003, p.235).

São esses homens que, verdadeiros parceiros (e não vassalos) do Deus, autoritária (na maioria das vezes) ou democraticamente, estruturaram a idéia do Bem e do Mal, cominando prêmios para os Bons, castigo para os Maus. (SEGRE, 2003, p. 237).

O problema está justamente na relação “religiosa” da ciência com seus objetivos. É

quando a ciência possui uma fé irracional nas suas possibilidades de enfrentar anomias e

adversidades que ainda minoram a qualidade de vida das pessoas, ou mesmo quando vende

essa imagem com ferramentas publicitárias. Essa fé no determinismo científico, de que toda

102

técnica, se possível, deve ser levada a efeito, resulta em enorme perigo quando princípios

éticos, voltados a uma concepção de coletividade e não à proteção de um poder que represente

o status quo, não são devidamente avaliados. A contradição presente na difícil tentativa de

aproximar a ética da ciência vem da constatação de que é possível vincular dois métodos

tradicionalmente antagônicos pelos quais o conhecimento humano vem sendo construído. A

questão está em construir uma ética voltada, de fato, ao interesse da vida que aí se encontra,

como também o próprio cosmos, e que não esteja a serviço dos interesses da comunidade

científica, dos laboratórios ou de seus oponentes, os que postulam valores morais.

O que não significa que não haja limites éticos da intervenção do ser humano na

natureza, e que a sociedade não deva manter-se vigilante sobre os rumos da ciência. Não se

pode, sob nenhum pretexto, esquecer um passado de manipulações, esterilizações e

experimentos eugenistas e racistas, ocorridos tanto na Alemanha quanto nos Estados Unidos

(FERRONI, 2004). A esse respeito, estudiosos da bioética, mas proponentes de uma reflexão

autônoma dos princípios éticos, isolados de pretensões moralistas institucionalizadas,

resultado da transformação das sociedades laicas e multiculturais, admitem que os limites

dessa autonomia devem se equiparar ao monitoramento contínuo da pesquisa científica com

seres humanos. Ou seja, uma conduta vigilante da ciência, uma prudência que não seja

paralisante (COHEN, 2003; SCHRAMM & SEGRE, 2002).

Direito, portanto – ou dever – de o concepto ser protegido: esta é a tônica das religiões, conforme se vê, de forma absolutamente peremptória, no catolicismo. Até mesmo perfilhando – mas certamente sempre respeitando a postura citada das religiões (com relação à sexualidade e à reprodução humana) – é absolutamente deplorável o papel obscurantista, obstaculizador da aquisição de conhecimento humano, e da aplicação desse conhecimento (SEGRE, 2003, p. 237).

Em suma, este embate discursivo, repleto de estratégias discursivas desqualificatórias

e repletas de imagens vampirescas e condenações escatológicas, está mal colocado e restrito a

grupos sociais dos quais o real interesse e “interessado” da ciência se afasta cada vez mais – a

opinião pública e o seu ideal por uma vida digna. Afinal, só se pode falar em dignidade da

vida humana se esta possui, aqui e agora, nem antes da história terrena ou num doce porvir,

vida digna para todos.

103

REFERÊNCIAS AGÊNCIA BRASIL. Supremo deve decidir em março sobre uso de células-tronco. Última Instância, 2008. Disponível em <http://ultimainstancia.uol.com.br/noticia/47275.shtml> Acesso em 10/02/2008. AGÊNCIA CÂMARA. Tema do aborto domina sessão solene sobre as mães. 11/05/2007. Disponível em < http://www.camara.gov.br/internet/agencia/PesquisaRapida.asp> Acesso em 12/04/2007. ALMEIDA, Fábio Portela Lopes de. Religião, ciência e o ideal de razão pública: considerações sobre a ADI nº 3510 a partir do liberalismo político de John Rawls. s.d. Disponível em <http://www.iced.org.br/artigos/razao_publica_fabio_portela.PDF> Acesso em 11/09/07. ALMEIDA, Luciano Mendes de. Pesquisa científica e células-tronco. Folha de S. Paulo, 05/03/2005. Caderno Opinião, p. A 2. AMORIM, Marilia. Vozes e silêncio no texto de pesquisa em ciências humanas. Cad. Pesqui. [online]. 2002, no. 116, pp. 07-19. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-15742002000200001&lng=pt&nrm=iso>. ANDRÉS, José Román Flecha. Posição da Igreja católica sobre a terapia com células-tronco. Em MARTÍNEZ, Julio Luis (org). Células-tronco humanas: aspectos científicos, éticos e jurídicos. São Paulo: Edições Loyola, 2005. ANDRADE, Thales de. A crise da autocompreensão espécie humana. Revista Ambiente Sociedade. 2005, v.8, n.1. Disp. em <http://www.scielo.br/pdf/asoc/v8n1/a12v08n1.pdf> Acesso em 04/02/2007. ANJOS, Marcio Fabri. Rumos da liberdade em bioética: uma leitura teológica. Em PESSINI, Leo & BARCHIFONTAINE, Christian (orgs.). Bioética & longevidade humana. São Paulo: Centro Universitário São Camilo; Edições Loyola. 2006(a). ANJOS, Marcio Fabri. Bioética e teologia: janelas e interpelações. Em PESSINI, Leo & BARCHIFONTAINE, Christian (orgs.). Bioética & longevidade humana. São Paulo: Centro Universitário São Camilo; Edições Loyola, 2006(b). AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva: elementos para uma abordagem do outro no discurso. São Paulo, 1982. __________. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Cadernos de Estudos Lingüísticos. Campinas, n.19, p.25-42, jul/dez 1990. BACCEGA, M. A. Do mundo editado à construção do mundo. Revista Comunicação & Educação. São Paulo: Moderna, nº 1, set/dez, 1994.

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 2a ed., São Paulo, Hucitec, 198l.

104

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997. BRAIT, Beth (org). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Editora Contexto, 2005. BELDA, Francisco Rolfsen. Alimentos transgênicos e imprensa – um estudo do discurso jornalístico de divulgação científica. 2003. Dissertação de Mestrado em Ciência da Comunicação, ECA-USP, São Paulo. BELLINO, Francesco. Fundamentos da bioética: aspectos antropológicos, ontológicos e morais. Bauru: EDUSC, 1997. BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2ª edição, 1986. BOFF, Leonardo. A cultura da paz. Jornal do Brasil, 08/02/2002. BUENO, Wilson. Jornalismo científico no Brasil: os compromissos de uma prática dependente. São Paulo: USP/ECA, 1984 (tese de doutorado). BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à Análise do Discurso. 2ª ed. rev. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2004.

BRIGGS, Asa & BURKE, Peter. Uma história social da mídia – De Gutemberg à Internet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. BRITO FILHO, Mario Toscano. Questões científicas para a reflexão ética. In CARNEIRO F. & EMERICK (Orgs.) LIMITE – A Ética e o Debate Jurídico sobre Acesso e Uso do Genoma Humano. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2000. Disponível em <http://www.dbbm.fiocruz.br/ghente/publicacoes/limite/reflexao_etica.htm> Acesso em 24/01/07, 18h. CAISCAIS, Fernando. Dicionário de jornalismo: as palavras dos media. Lisboa: Verbo, 2001. CANOTILHO, Joaquim José Gomes; MOREIRA, Vital; SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. CALDAS, Graça et alli.(a) O discurso político na mídia – eleições presidenciais no Brasil em 2002. In QUEIROZ, A. (org.) Marketing político . São Paulo: Editora Summus, 2004. ______________.(b) Jornalistas e cientistas: a construção coletiva do conhecimento. Revista Comunicação & Sociedade. São Bernardo do Campo: Umesp, nº 41, 2004. ______________. Mídia, ciência, tecnologia e sociedade. Disponível em <http://www.comtexto.com.br/> Acesso em 05/06/2006. CARNEGIE, Marc. ONU – clonagem: tema da clonagem humana poderá ser discutido na ONU. AEGIS – AFP - Agence Frace Presse, out. 2003. Disponível em:

105

<http://www.aegis.com/default.asp?req=http://www.aegis.com/news/afp/2003/AF0310A4_PT.html> Acesso em 14/02/2008. CARVALHO, Antonio Carlos Campos de. Células-tronco: A medicina do futuro. Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Revista Ciência Hoje (SBPC), vol 29, nº 172, junho de 2001. Disponível em: <http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/biologia/bio10a.htm> Acesso em 10/06/05. CASTRO, Thales Cavalcanti. A arqueologia da moral internacional e o seu conceito de guerra justa. Revista Jus Navigandi. 2003. Disponível em <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5675> Acesso em 20/08/2007. CELESTINO, Helena. Brasil vota contra proibição total de clonagem humana. Jornal da Ciência. 23 fevereiro de 2005. Disponível em <http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=25702> Acesso em 20/10/2007. CHRÉTIEN, Claude. A ciência em ação. Campinas, Papirus, 1991. CIÊNCIA E FÉ. Uma discussão a favor da vida. Instituto Ciência e Fé. 2005. Disponível em <http://www.cienciaefe.org.br/jornal/e69/Mt01.htm>. Acesso em 12/09/2005. CLOTET, Joaquim. Bioética: uma aproximação. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003. COCHO, Germinal (et al). Ciência e humanismo, capacidade criadora e alienação. Em SANTOS, Boaventura de Souza (org.). Conhecimento prudente para uma vida decente. São Paulo: Cortez, 2004. COLÉGIO EPISCOPAL DA IGREJA METODISTA. Pronunciamento sobre o aborto. Documentos episcopais. São Paulo, 2007. COLLINS, H. M. & EVANS, R. The third wave of science studies. In Social Studies of Science. Sage Publishers. Vol. 32, abril 2002, p. 235-296. COM CIENCIA. Faltam leis, sobra polêmica. Com Ciencia. 2004. Disponível em <http://www.comciencia.br/reportagens/celulas/04.shtml>. Acesso em 14/02/2007 14h. COMEST – World Commission on the Ethics of Science and Technology. The precautionary principle. Paris: UNESCO, 2005. COMTE, Fernand. Os heróis míticos e o homem de hoje. São Paulo: Loyola, 1994. CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ (1987) Instrução Sobre o respeito à Vida Humana nascente e a Dignidade da Procriação - Resposta a algumas questões atuais. Documentos Pontifícios, 213. Petrópolis: Vozes. CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ (1968). Documento "Donum Vitae". Documentos Pontifícios, 173. Petrópolis: Vozes. CORACINI, Maria José R. Faria. Um fazer persuasivo: o discurso subjetivo da ciência. São Paulo: Educ, Campinas, SP: Pontes, 1991.

106

COSTA, Humberto. Quem tem medo das células-tronco? Folha de S. Paulo, 27/06/2005. Caderno Opinião, seção Tendências/Debates, p. A 3. COSTA, Ligia M. da & Remédios, Maria L. R. A Tragédia - Estrutura e História. São Paulo: ed. Ática, 1988. DICIONÁRIO ELETRÔNICO HOUAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA. São Paulo: Editora Objetiva, 2001.

DIJK, Teun A. Van. Ideologia y discurso. Barcelona: Ariel, 2003 DOMINGUES, I. O fio e a trama: reflexões sobre o tempo e a história. São Paulo: Iluminuras; Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1996. DURAND, Guy. A bioética: natureza, princípios e objetivos. São Paulo: Paulus; 1995.

_____________. Introdução geral à bioética: história, conceitos e instrumentos. São Paulo: Editora Centro Universitário São Camilo; Loyola, 2003. EPSTEIN, Isaac. Divulgação científica: 96 verbetes. Campinas, SP: Pontes, 2002. ____________. Divulgação científica em Ciência Hoje – resenha. Revista Comunicação & Sociedade. São Bernardo do Campo: Umesp, nº 35, 2001. ____________. Etos e tempos da ciência e do jornalismo científico. (mimeo) ESCOBAR, Herton. Cientistas clonam células de macaco. O Estado de S. Paulo 15/11/2007. Disponível em <http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20071115/not_imp80840,0.php> Acesso em 12/01/2008. FEDELI, Orlando. Montfort contra a aprovação do projeto de lei de Biossegurança que permite usar embriões humanos como cobaias. [s.d.] Disponível em < http://www.montfort.org.br/index.php?secao=veritas&subsecao=cientista&artigo=contra_lei_biosseguranca&lang=bra> Acesso em 07/08/2007. FERNANDO, André. Tratado internacional de Direitos Humanos em face do CC de 2002. <http://forum.jus.uol.com.br/discussao/18276/tratado-internacional-de-direitos-humanos-em-face-do-cc-de-2002/> Acesso em 16/10/07. FERREIRA, G. M. Contribuições da análise do discurso ao jornalismo. Livro do XI Compós, Estudos de Comunicação. Porto Alegre, Sulina, 2003. FERRONI, Marcelo. Edwin Black revolve as raízes americanas da eugenia nazista. Folha de S. Paulo, Ilustrada. 31/01/2004. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u41025.shtml> Acesso em 20/01/2008. FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2001.

107

FOLHA ON LINE. Cientistas dizem ter criado embriões clonados de humanos. 17/01/2008. <http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/ult306u364656.shtml>. Acesso em 29/01/2008. FOX, Maggie. Cientistas criam célula-tronco embrionária usando célula de pele. UOL Últimas Notícias, 22/08/2005. Disponível em <http://noticias.uol.com.br/ultnot/2005/08/22/ult27u50831.jhtm> Acesso em 21/10/06. FRANÇA, Vera Veiga. Jornalismo e vida social: a história amena de um jornal mineiro. Belo Horizonte, Editora UFMG, 1998. FREIRE, Jurandir da Costa: Colóquio [10/06/2007]. Programa Café Filosófico. São Paulo: TV Cultura, 2007. Fita VHS (120 min). Programa gravado. GAZIR, Augusto. Escolas do Rio vão ensinar criacionismo. Folha Online. 13/05/2004. São Paulo. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/ult306u11748.shtml> GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

GILL, Rosalind. Análise de discurso. In: BAUER, M. W. & GASKELL, George (orgs.). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. Petrópolis: Vozes, 2002. GLEISER, Marcelo. A nova cruzada contra a ciência. Folha de S. Paulo, 27/02/2005. Caderno Mais, seção + Ciência; Micro/Macro, p. 9. GLEISER, Marcelo.(b) Células-tronco e a medicina do futuro. Folha de S. Paulo, 29/05/2005. Caderno Mais, seção + Ciência; Micro/Macro, p. 9. GLEZER, Raquel. Tempo e história. Em Ciência e cultura, volume 54, 2002. Disponível em <http://cienciaecultura.bvs.br/pdf/cic/v54n2/14804.pdf> Acesso em 26/11/07, 15h. ______________. O tempo e os homens: dominador, servidor e senhor. In: CONTIER, A. D.(org.) História em debate. São Paulo: INFOUR/CNPq, 1992. GNERRE, M. Linguagem, escrita e poder. São Paulo: Martins Fontes, 1998. GOLDIM, José Roberto. Pesquisas com células-tronco. 16/08/2002. Disponível em:<http://www.bioetica.ufrgs.br/celtron.htm> Acesso em 29/06/06. GONÇALVES, E. M. Eliseo Verón: ecletismo e polêmica. Revista Comunicação & Sociedade, São Bernardo do Campo: Umesp, nº 25, 1996. HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana: a caminho de uma eugenia liberal? São Paulo: Martins Fontes, 2004. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

108

HOOFT, Pedro Federico. Bioética e direito?, ou bioética e biodireito? Biodireito: uma crítica ao neologismo. Em GARRAFA, Volni & PESSINI, Leo (orgs.). Bioética: poder e injustiça. São Paulo: Centro Universitário São Camilo, Edições Loyola e Sociedade Brasileira de Bioética, 2003. JOÃO PAULO II. Vaticano. 07/11/2004. Disponível em <http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/angelus/2004/documents/hf_jp-ii_ang_20041107_it.html>. Acesso em 15/01/2008. JOÃO PAULO II. Evangelium Vitae. Encíclia sobre o Valor e a Inviolabilidade da Vida Humana (25/03/1995). JONAS, Hans. El principio de responsabilidad: Ensaio de uma Ética para la Civilización Tecnológica. Barcelona: Herder, 1995. JONES, D.G.; TELFER, B. Before I was an embryo, I was a pre-embryo: or was I? Bioethics. 1995. 9(1). JOSÉ, Lluís Montoliu. Células-tronco humanas: aspectos científicos. In MARTÍNEZ, Julio Luis (org.). Células-tronco humanas: aspectos científicos, éticos e jurídicos. São Paulo: Edições Loyola, 2005. KINOUCHI, Renato Rodrigues. Darwinismo em James: a função da consciência na evolução. Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, v. 22, n. 3, 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-37722006000300013&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 27/08/ 2007. KISSLING, Frances. Perspectivas católicas progressistas em saúde e direitos reprodutivos: o desafio político da ortodoxia. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 1998. Disponível em: <http://www.scielosp.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X1998000500024&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 11/02/ 2008. KUSCHEL, Karl-Josef; MIETH, Dietmar. Em busca de valores universais. [s.d.] Disponível em <http://www.itf.org.br/index.php?pg=conteudo&revistaid=3&fasciculoid=10&sumarioid=90> Acesso em 7/6/2007.

LACEY, Hugh. O princípio da precaução e a autonomia da ciência. In Scientiae Studia, São Paulo, v. 4, n. 3, p. 373-92, 2006. LEITE, Marcelo. Guerra das células: o retorno dos xiitas. Jornal Folha de S. Paulo. 12/06/2005, Caderno Mais, p. 11. São Paulo, 2005. _____________. A ressaca das células-tronco. Folha de S. Paulo, edição de 26/06/06. Caderno Mais! Seção Ciência em Dia, 2006. _____________. A força da pesquisa. Jornal Folha de S. Paulo. 14/01/07, Caderno Mais, p. 3. São Paulo, 2007.

109

LEMES, Ana Maria Nogueira; CREPALDI, Joaquim Donizete. A Lei do Biocrime. Lei nº 11.105/2005. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 795, 6 set. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7243>. Acesso em 29 jan. 2007. LEMOS, Daniela & GONÇALVES, Cíntia. Células-tronco embrionárias: polêmica reaberta. In: CLEMENTE, Ana Paula (org.). Bioética no início da vida: Dilemas pensados de forma transdisciplinar. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006. p.212-217. LEMOS, Fernanda. Discurso religioso e violência de gênero: uma análise da linguagem episcopal no periódico conexão. Revista Mandrágora / Núcleo de Estudos Teológicos da Mulher na América Latina, Ano VII, nº 7/8, 2001/2002. São Bernardo do Campo, 2002. LIMA, Raymundo de. O Maniqueísmo: o Bem, o Mal e seus efeitos ontem e hoje. Revista Espaço Acadêmico. Ano I, Dez 2001, n. 7. São Paulo, 2001. MAESTRI, Marcos. A superação da ordem em Ésquilo na peça prometeu acorrentado. Revista Cesumar – Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, Vol. 1, No 1, 1997. Disp. em http://www.cesumar.br/pesquisa/periodicos/index.php/revcesumar/article/viewFile/151/487

MAINGUENEAU, D. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez, 2001. ________________. Novas tendências em análise do discurso. Campinas, SP: Pontes, 1987. MARTELLI, Stefano. A religião na sociedade pós-moderna: entre secularização e dessecularização. São Paulo: Paulinas, 1995. MARTÍNEZ, Julio Luís (org.). Células-tronco humanas: aspectos científicos, éticos e jurídicos. São Paulo: Edições Loyola, 2005. MARTINS, Ives Gandra da Silva; EÇA, Lílian Piñero. Verdade sobre células-tronco embrionárias. Folha de S. Paulo, edição de 08/06/2005. Caderno Opinião, seção Tendências/Debates, p. A 3. MASTROPAOLO, Fulvio. A bioética do embrião. Bauru, SP: Editora da Universidade do Sagrado Coração, 1999. MEDEIROS, Flávia Natércia. Transgênicos: a qualidade da informação nos jornais brasileiros. Tese de doutorado 2004. São Bernardo do Campo, SP: Universidade Metodista de São Paulo, 2004. MELO, Eduardo F. Engenharia genética e clonagem humana: desafios para a Igreja no alvorecer do Novo Milênio. 2006. Disponível em <http://www.itf.org.br/index.php?pg=artigobioetica> MENOZZI, Daniele. A igreja católica e a secularização. São Paulo: Paulinas, 1998. MEYER-WILMES, Hedwig. Por que as bruxas eram queimadas vivas? Em Revista Concilium, 274-278, 1998. Petrópolis: Vozes, 1998. MOSER, Antônio. Biotecnologia e bioética: para onde vamos? Petrópolis: Vozes, 2004.

110

MUTO, Eliza & NARLOCH, Leandro. Quando a vida começa. Revista Superinteressante. Nov 2005, edição 219. São Paulo: Editora Abril, 2005. O ESTADO DE S. PAULO. Fé não é direito. 03/06/2005(a). Editorial, p. A 3 O ESTADO DE S. PAULO. Vitórias da democracia. 04/03/2005(b). Editorial, p. A 3. ORLANDI, Eni Pulcinelli. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 2ª ed. rev. Campinas: Pontes, 1987. _____________. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes,

2000.

_____________ (org). Discurso fundador: a formação do país e a identidade nacional. 3ª ed. Campinas: Pontes, 2003. _____________. Interpretação. Autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.

PÊCHEUX, M. & FUCHS, C. A propósito da Análise Automática do Discurso: Atualização e perspectivas. Em GADET, F. & HAK, T. (org.) Por uma análise automática do discurso. Uma introdução à Obra de Michel Pêcheux. Campinas: Unicamp, 1997. PENA, S. Clonagem humana, biotecnologia ciência e desenvolvimento. Nuffield Council on Bioethics, 1999. Disponível em: <http://www.nuffield.org> Acesso em 22/06/2006. PEREIRA, Lygia. Clonagem terapêutica e polêmica. Disponível em: <http://www.comciencia.br/reportagens/celulas/10.shtml> Acesso em 17/08/2005 PEREIRA, Lygia da Veiga; PRANKE, Patrícia Helena Lucas; MENDES-OTERO, Rosalia. Presente e futuro das células-tronco. O Estado de São Paulo. 04/03/2005. Disponível em <http://txt.estado.com.br/editoriais/2005/03/04/ger006.html> Acesso em 08/03/06. PÉREZ, Germán J. Entre el poder del discurso y el discurso del poder: aproximaciones teoricas y metodologicas al estudio del discurso político. In KORNBLIT, Ana Lia. Metodologias cualitativas en ciencias sociales, Buenos Aires: Biblos, 2004. PERRI, Adriana. Células-tronco – Supremo decidirá o destino das pesquisas. Revista Sentidos, 23/04/2007. São Paulo: Áurea Editora. Disponível em <http://sentidos.uol.com.br/canais/materia.asp?codpage1=12071&codtipo=3&subcat=58&canal=cidadania> Acesso em 27/11/2007. PONTIFÍCIA ACADEMIA PARA A VIDA. Declaração sobre a produção e o uso científico e terapêutico das células estaminais embrionárias humanas (25/8/2000). POSSENTI, S. Discurso, estilo e subjetividade. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

111

PRANKE, Patricia. A importância de discutir o uso de células-tronco embrionárias para fins terapêuticos. Ciência & Cultura, Jul/Set, 2004, vol.56, nº 3. Disponível em <http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252004000300017&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 7/02/07, 14h. PUSSI, William & PUSSI, Flávia. Células-tronco: o alfa e o ômega. Arquivos do Conselho Regional de Medicina do Paraná. Curitiba: Conselho Regional de Medicina do Paraná, v. 22, n. 86, p. 57-76, Abr/Jun. 2005. RECONDO, Felipe. Fonteles admite influência católica ao contestar Lei de Biossegurança. Folha Online. 31/05/2005. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/ult306u13262.shtml> Acesso em 10/04/2006. REGIS, Arthur Henrique de Pontes. Início da vida humana e da personalidade jurídica: questões à luz da Bioética. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 617, 17 mar. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6462>. Acesso em 14 fev 2007. RESENDE, Janete Coelho. Direitos de personalidade - direito à vida e proteção ao embrião. Revista eletrônica do Instituto de Ensino Superior “Presidente Tancredo de Almeida Neves”. 2005. Disponível em <http://www.iptan.edu.br/revista/artigos02.htm> Acesso em 10/02/2008. RIBEIRO, Ronilda Iyakemi. Finitude, mutações e gozo. Revista Ciência e Cultura. Out/Dez 2002, vol. 54, no. 2, p.24-26. Disponível em <http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252002000200022&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 26/11/07 16h. RODRIGUES, Adriano Duarte. O acontecimento in: TRAQUINA, Nelson (org.). Jornalismo: questões, teorias e “estórias”. Lisboa: Veja, 1993. RODRIGUES, Carla. Atuação pública de grupos contrários à legalização do aborto. Seminário Mídia e Mulher. Ago 2006. Disponível em <carlarodrigues.files.wordpress.com/2006/08/seminario_mulher_midia_tres.pdf-> Acesso em 20/05/2006. SANTAELLA, Lúcia. Produção de linguagem e ideologia. São Paulo: Cortez, 1996. SANTOS, Ricardo Ribeiro dos. Lei não cura ninguém (entrevista a Washington Castilhos). Boletim da Agência FAPESP. 27/06/2005. São Paulo. Disponível em <http://www.agencia.fapesp.br/boletim_dentro.php?id=3914> Acesso em 01/08/2007. SARTORI, Ivan Ricardo Garisio. Célula-tronco. O direito. Breves considerações. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 781, 23 ago. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7186>. Acesso em: 22 jan 2007. _________________________. Direito não se submete a barreiras morais e religiosas. Revista Consultor Jurídico, 21 de junho de 2005. Disponível em <http://conjur.estadao.com.br/static/text/37274,1> Acesso em 14/02/2008.

112

SAYLOR, Kevin M. A guiding light: the conservatism of Margaret Thatcher. In The Intercollegiate Review, Spring 1998. <http://www.mmisi.org/ir/33_02/saylor.pdf>. Acesso em 16/12/07. SCHRAMM, Fermin R. & SEGRE, Marco. Quem tem medo das (bio) tecnologias de reprodução assistida. In. SEGRE & COHEN (orgs). Bioética. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002. SEGRE, Marco. Considerações críticas sobre os princípios da bioética. Em SEGRE & COHEN (orgs). Bioética. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 2002. SEGRE, Marco. Limites éticos da intervenção sobre o ser humano. Em GARRAFA, Volni & PESSINI, Leo (orgs.). Bioética: poder e injustiça. São Paulo: Centro Universitário São Camilo, Edições Loyola e Sociedade Brasileira de Bioética, 2003. SEGRE, Marco & COHEN, Cláudio. Definição de valores, moral, eticidade e ética. Em SEGRE & COHEN (orgs). Bioética. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 2002. SEGRE, M; LEOPOLDO E SILVA, F; SCHRAM, F. O contexto histórico, semântico e filosófico do princípio de autonomia. Bioética, Brasília: Ed. CFM, 6 (1). 1998 SHAH, Sonia. A piada do consentimento informado. Maio 2007. Le Monde Diplomatique. Disponível em <http://diplo.uol.com.br/2007-05,a1565>. Acesso em 24/10/2007. SHAKESPEARE, Tom. Democratizing science? Citizen juries and other deliberative methods. História ciência e saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702005000200014&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 31 Jan 2008. SOBRAL, Adail. Ético e estético: na vida, na arte e na pesquisa em ciências humanas. Em BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: Conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006. SODRÉ, Muniz. Reinventando a cultura: a comunicação e seus produtos. Petrópolis, Vozes, 1996. SOUZA, M. H. & ELIAS, Décio O. As células-tronco e seu potencial na reparação de órgãos e tecidos In: Manual de Instrução Programada: princípios de hematologia e hemoterapia. 2005. Disponível em <http://perfline.com/cear/artigos/stem.pdf> Acesso em 5/02/07, 22h. SOUZA, Mériti de. Discurso fundador, história e subjetividades. Em Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 8, n. 12, p.57-64, dez. 2002. Disponível em < http://www.pucminas.br/imagedb/documento/DOC_DSC_NOME_ARQUI20041214142624.pdf> Acesso em 28/09/2007. TORRES, Wilma da Costa. A bioética e a psicologia da saúde: reflexões sobre questões de vida e morte. In Psicologia Reflexão e Crítica. Vol. 16 Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, v. 16, n. 3, 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-79722003000300006&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 15/04/2007.

113

UNITED NATIONS (ONU). Legal committee discusses differing texts on issue of human cloning. (ONU). 22/out. 2004. Fifty-ninth General Assembly, Sixth Committee. Disponível em: <http://www.un.org/News/Press/docs/2004/gal3257.doc.htm>. Acesso em: 16/11/2006. VALVERDE, Antonio José Romera. Prometeu desacorrentado e a sétima geração. Revista PUCViva n. 27. São Paulo: Apropuc, s.d. VIDAL, Marciano. “Evangelium vitae”: uma encíclia de traços fortes e chocantes. Revista Concilium, nº 259, 1995/3. Petrópolis, RJ, Editora Vozes, 1995. VOGT, C. A esperança celular. Revista ComCiência. São Paulo, 2004. Disponível em: <http://www.comciencia.br>. Acesso em:28 jun 2006. WADE, Nicholas. Pesquisas com células-tronco esbarram em obstáculos políticos. New York Times - Folha de S. Paulo. 24/08/2006. Tradução: Danilo Fonseca. 2006. WELTER, Larissa Cristine Machado. A regulamentação internacional do uso de células-tronco embrionárias obtidas pela clonagem terapêutica. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 604, 4 mar. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6397> Acesso em: 22 jan. 2007. WESTPHAL, Euler R. Bioética. São Leopoldo: Sinodal, 2006. WILLIAMS, R. Cultura . Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992. WITZEL, Denise Gabriel. Identidade e livro didático: Movimentos identitários do professor de Língua Portuguesa. Dissertação de mestrado. Universidade Estadual de Maringá, 2002. WOLFENBARGER, L. L. & PHIFFER, P. R. The ecological risks and benefits of genetically engineered plants. In Science, 15/dez/2000, p. 2088-2092. ZAGO, Marco A. & COVAS, Dimas T. Pesquisas com células-tronco: aspectos científicos, éticos e sociais. 2004 Disponível em < http://www.ifhc.org.br/HistEvento.aspx?id=12004&mn2=1> Acesso em 05/06/2006. ZAMBONI, L. M. S. Cientistas, jornalistas e a divulgação científica – subjetividade e heterogeneidade no discurso da divulgação científica. Campinas: Editora Unicamp, 2001. ZATZ, Mayana. Clonagem e células-tronco. Estudos Avançados. São Paulo, v. 18, n. 51, 2004. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142004000200016&lng=en&nrm=iso>. Accesso em 31 Jan 2007 ZATZ, Mayana. A biologia molecular contribuindo para a compreensão e a prevenção das doenças hereditárias. Ciência e saúde coletiva. Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, 2002. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232002000100008&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 05 Fev 2007. ZATZ, Mayana: entrevista [04/12/2006]. Programa Roda Viva. São Paulo: TV Cultura, 2006. Fita VHS (120 min). Entrevista gravada.

114

ANEXO 1 - Regulamentação da Pesquisa com Células-Tronco de Embriões Humanos nos Estados-membro da União Européia ANEXO 2 – Quadro de Argumentos ANEXO 3 – Artigos do corpus ANEXO 4 – Lei de Biossegurança ANEXO 5 - Ação Direta de inconstitucionalidade – adi 3510 ANEXO 6 - Declaração sobre a Produção e o Uso Científico e Terapêutico das Células Estaminais Embrionárias Humanas ANEXO 7 - Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de São José

ANEXO 1 – REGULAMENTAÇÃO DA PESQUISA COM CÉLULAS-TR ONCO DE EMBRIÕES HUMANOS NOS ESTADOS-MEMBRO DA UNIÃO EUROPÉIA

Fonte: COMISSION STAFF WORKING PAPER REPORT ON HUMAN EMBRYONIC CELL RESEARCH (COMISSION OF THE EUROPEAN COMMUNITIES), Bruxelas, 3-4-2003, SEC (2003), p. 441, Tabela 1. In MARTÍNEZ, Julio (org.). Células-tronco humanas: aspectos científicos, éticos e jurídicos. São Paulo: Edições Loyola, 2005, p. 263.

Áustria Bélgica Dinamarca Alemanha Espanha Finlândia França Grécia Irlanda Itália Luxem-

burgo

Países

Baixos

Portugal Suécia Reino

Unido

Permitida a obtenção de células-tronco embrionárias humanas de embriões “excedentes” sob certas condições

� � � � �

Proibida a obtenção de células-tronco embrionárias de embriões humanos, mas permitida a importação e o uso.

� � �

Proibida a obtenção de células-tronco embrionárias de embriões humanos.

� � �

Nenhuma legislação específica relativa á pesquisa com embriões humanos ou células embrionárias humanas

� � � �

Legalmente permitida a criação de embriões humanos para a obtenção de células-tronco destinadas à pesquisa

Proibida a criação de embriões humanos para pesquisa e obtenção de células-tronco por meio de lei ou por ratificação de convênio do Conselho da Europa sobre os direitos humanos e biomedicina assinado em Oviedo (04/04/1997).

� � � � � � � � � � � �

2

ANEXO 2 – QUADRO DE ARGUMENTOS

QUADRO DE ARGUMENTOS Argumentos /

Artigos Científico Jurídico Ético/Filosófico Político Religioso Econômico Médico Divulgação

científica Jornalístico

Artigo 1 12 6 1 1

Artigo 2 7 2 4 1 5 3

Artigo 3 2 1 7 2 1 3

Artigo 4 2 8 3 2 4

Artigo 5 2 1 2 2 1 5

Artigo 6 3 2 3 1 2 6

Artigo 7 1 2 2 6 2 6

Artigo 8 2 6 2 4 1 3 1

TOTAL 31 17 14 27 11 9 11 14 11

ANEXO 3 – ARTIGOS DO CORPUS Artigo 1 - MARTINS, Ives Gandra da Silva e EÇA, Lilian Piñero. Verdade sobre células-tronco embrionárias. Folha de S. Paulo, edição de 08/06/2005. Caderno Opinião, seção Tendências/Debates, p. A 3. Cresce o número de trabalhos nos quais se verifica a recuperação de órgãos lesados utilizando células-tronco adultas O procurador-geral da República ingressou com ação direta de inconstitucionalidade contra a lei que aprovou a manipulação de embriões humanos vivos para investigação científica. Os dois signatários deste artigo estão convencidos de que a ação, juridicamente, é irrepreensível e, cientificamente, se acolhida, uma enorme contribuição à comunidade científica. Do ponto de vista jurídico, dúvida não existe. Declara a Constituição que o direito à vida é inviolável. O tratado internacional sobre direitos fundamentais de São José determina que a vida começa na concepção e que a pena de morte é condenável tanto para o nascituro como para o nascido. E o Código Civil impõe que todos os direitos do nascituro sejam garantidos desde a concepção. Seria, pois, ridículo se todos os direitos estivessem garantidos, menos o direito à vida. A vida começa, portanto, na concepção, não se justificando que seres humanos sejam, como nos campos de concentração de Hitler, também no Brasil objeto de manipulação embrionária. A lei é manifestamente inconstitucional do ponto de vista jurídico. Do ponto de vista científico, a lei não merece melhor sorte. 1) No caso da utilização das células de embriões congelados há mais de três anos, trata-se de um transplante heterólogo, com grande possibilidade de rejeição, visto que, à medida que essas células se diferenciam para substituir as lesadas num tecido degenerado, elas começam a expressar as proteínas responsáveis pela rejeição (Jonathan Knight). 2) Allegrucci e colegas dizem que células-tronco de embriões congelados estão longe de ser a "perfeita fonte de células para terapias", pois originam teratomas (tumores de caráter embrionário). 3) Além disso, ocorrem metilações no DNA dos embriões congelados, que não são passíveis de identificação, aumentando o risco de silenciarem genes. Portanto, não servem para a pesquisa. 4) Há total descontrole das células embrionárias, surgindo diferenciações em tecidos distintos nas placas de cultura, com o que se poderia estar renovando experiências atribuídas a Frankstein. 5) Cada blastocisto fornece entre 100 e 154 células-tronco embrionárias. É preciso saber quantos embriões humanos frescos seriam sacrificados. Por exemplo, na terapia com autotransplante de células-tronco adultas provenientes da medula óssea, é necessário um total de 40 milhões de células-tronco, vale dizer, haveria a necessidade de 300 mil a 400 mil embriões, pois não se pode expandir o número dessas células em placas, por motivo de contaminação. 6) Andrews e Thomson, em 2003, referem que as células-tronco humanas em cultura apresentam anormalidades cromossômicas à medida que se diferenciam, com risco de se malignizarem. 7) Quanto à clonagem terapêutica, não se conseguiu até agora clonar um primata. Ao tentar, obtém-se meia dúzia de células aneuplóides (células cujos núcleos contêm um número diferente de cromossomos).

2

8) Feeder layers são camadas de tecidos retiradas de fetos vivos em qualquer estágio, vendidas em dólares nos Estados Unidos, as quais estão sendo utilizadas para garantir a qualidade do cultivo das células-tronco embrionárias. 9) Joel R. Chamberlain e colegas mostraram em estudo que há doenças genéticas que podem ser tratadas, mas com células tronco adultas, modificadas geneticamente, como na Osteogenesis Imperfecta, a qual origina desordens ósseas no esqueleto. Os resultados demonstrados foram um sucesso. 10) "Célula adulta age como embrionária", de acordo com o cientista Rudolf Jaenisch. O segredo está guardado em uma "chave" molecular: o gene Oct-4. A molécula trabalha no estágio inicial do embrião, "segurando" as células para não se diferenciarem antes da hora. No tempo adequado, o gene se desliga e as células formam, então, os tecidos certos. Com o controle do gene, é possível fazer com que certas células-tronco adultas sejam mantidas nesse estágio sem diferenciação, o que pode expandir seu campo de atuação na pesquisa de novos tratamentos (www.cell.com). Vemos alternativas para estudar a cura das doenças. Cresce o número de trabalhos nos quais se verifica, com sucesso, a recuperação de tecidos ou órgãos lesados, utilizando células-tronco adultas. Um exemplo é o trabalho de Nadia Rosenthal, publicado no "Proceedings of the National Academy of Sciences", sobre o sucesso em usá-las para recuperar tecidos musculares. Devemos lembrar, também, do sucesso do pioneirismo brasileiro nas aplicações de células-tronco adultas em seres humanos, no tratamento das cardiopatias, doenças auto-imunes, lesão de medula espinhal, lesão de nervos periféricos, entre outras. Como se percebe, em vez de o governo aplicar recursos na manipulação e eliminação de seres humanos, transformados em cobaias, como no nacional-socialismo alemão, poderia investir maciçamente na investigação das células-tronco do próprio paciente ou na dos cordões umbilicais. Cremos que, se o STF declarar a inconstitucionalidade da manipulação dos embriões humanos, voltará o governo seus olhos para aquelas experiências com células-tronco adultas, cujos resultados, no mundo inteiro, são cada vez mais auspiciosos. ARTIGO 2 - COSTA, Humberto. Quem tem medo das células-tronco? Folha de S. Paulo, 27/06/2005. Caderno Opinião, seção Tendências/Debates, p. A 3. Antes de qualquer coisa, é de se perguntar: a quem interessa uma política pública de pesquisas com células-tronco no Brasil e no mundo? Pois bem, interessa a muita gente. Apenas em nosso país, há quatro milhões de pessoas com cardiopatias que, invariavelmente, evoluem para algum tipo de insuficiência cardíaca. É gente quase sempre condenada a aumentar a fila de transplantes de coração no Sistema Único de Saúde (SUS), um procedimento caríssimo bancado pelo bolso do contribuinte. É gente que, mesmo sem transplante, terá que passar o resto da vida sendo medicada para, no máximo, manter-se em um quadro de saúde estabilizado, haja vista não haver medicamento capaz de reverter essa situação. Há, ainda, um universo de outras possibilidades terapêuticas para o uso de células-tronco que devem ser exploradas pelas pesquisas, como o tratamento de doenças genéticas e de doenças auto-imunes como, por exemplo, o lúpus, além da recuperação de pacientes que apresentam deficiências motoras provocadas por lesões na medula e vítimas de doenças neurodegenerativas, como o mal de Alzheimer e escleroses. Então, vale fazer uma outra pergunta: a quem não interessa a realização de pesquisas com célula-tronco?

3

Recentemente, o procurador-geral da República, Claudio Fonteles, ingressou no Supremo Tribunal Federal com uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin) contra a Lei de Biossegurança, que, aprovada recentemente no Congresso Nacional, permite a manipulação de embriões humanos para investigação científica. Fez isso sobre as bases irrepreensíveis de uma ética jurídica particular, que resvala no conceito religioso de que, sendo o embrião uma vida em andamento, não caberia a outrem a decisão sobre seu destino. É preciso esclarecer alguns pontos no que tange às pesquisas com células embrionárias. Primeiro, quanto ao tipo de células destinadas a pesquisas, a lei só permite o uso de embriões que estejam congelados há pelo menos três anos ou que sejam considerados inviáveis para a gestação de um ser humano. Segundo, em que pese a polêmica em torno do assunto, a ciência moderna adota o mesmo padrão tanto para o reconhecimento de uma nova vida como para a verificação da morte de um paciente: o funcionamento do sistema nervoso. No caso dos embriões, o sistema nervoso só é ativado 15 dias após a fecundação, mas aqueles que interessam às pesquisas e que estão congelados têm em torno de cinco a sete dias. Devemos todos total respeito às crenças e religiões professadas pelos brasileiros, mas, como gestores públicos, temos o dever constitucional de buscar mecanismos que viabilizem a proteção e recuperação da vida. Considerando o caráter laico do Estado brasileiro, estou certo de que o Supremo Tribunal Federal deverá julgar pela improcedência de argumentação a Adin apresentada pelo procurador-geral. Claro que, quando o assunto é pesquisa com células-tronco, adultas ou embrionárias, ainda há muito o que avançar. Mas, se em outras áreas da ciência o Brasil ainda tem muito a caminhar, no caso da terapia celular temos tudo para avançar com os países desenvolvidos. Diria até que estamos na vanguarda desse processo, no qual o Ministério da Saúde investiu recursos na realização do maior estudo com células-tronco adultas para tratamento de doenças do coração já realizado no mundo _o chamado Estudo Multicêntrico Randomizado de Terapia Celular em Cardiopatias, iniciado em fevereiro deste ano. Ao todo, 1,2 mil pacientes vão participar desse estudo, que envolve cerca de 40 instituições de pesquisa do país. É um projeto de R$ 13 milhões que, comprovados os estudos preliminares já realizados, tem o potencial de gerar uma economia na saúde pública estimada em quase 50 vezes maior. Isso porque, entre consultas, internações, cirurgias e transplantes cardíacos, o SUS gasta, anualmente, em torno de R$ 500 milhões. O sucesso dessa iniciativa poderá, em três anos, salvar 200 mil vidas e reduzir os custos dos tratamentos em pelo menos R$ 37 milhões por mês. A questão é que as células-tronco adultas, extraídas de tecidos maduros, têm uma eficácia relativa e capacidade de diferenciação restrita. Aquelas retiradas de embriões têm maior versatilidade e, por conseqüência, maior poder terapêutico. Os cientistas acreditam que nelas está a chave para a cura de doenças graves e fatais como o câncer e o mal de Parkinson. Nessa perspectiva, o Ministério da Saúde e o Ministério da Ciência e Tecnologia publicaram, em maio, um novo edital de pesquisas com células-tronco adultas e embrionárias que teve excelente receptividade pelos cientistas brasileiros, que se organizaram em diversos grupos multidisciplinares para o desenvolvimento de projetos de pesquisas básicas (in vitro), pré-clínicas (experimentação em animais) e clínicas (com seres humanos). Até agosto, essas pesquisas terão se iniciado em nosso país. Pois junto-me a eles, pesquisadores, como ministro e cidadão, nessa nova fronteira da ciência e da medicina voltada para a saúde de todos. ARTIGO 3 - ALMEIDA, Luciano Mendes de. Pesquisa científica e células-tronco. Folha de S. Paulo, 05/03/2005. Caderno Opinião, p. A 2.

4

O PROJETO de Lei de Biossegurança, que prevê a liberação dos transgênicos e o uso de embriões humanos na pesquisa científica (células-tronco embrionárias), foi aprovado pela Câmara dos Deputados no dia 2/ 3: foram 366 votos favoráveis, 59 contrários e três abstenções. São dois temas que precisariam ter sido mais debatidos separadamente. Há limites éticos a serem respeitados. De acordo com a Lei de Biossegurança, são permitidos a produção e o comércio de produtos geneticamente modificados. A liberação desses produtos deu-se apesar da forte resistência dos que alertavam sobre a perda da biodiversidade, sobre a dependência econômica em relação aos detentores das patentes dos transgênicos e sobre a dúvida a respeito dos possíveis efeitos negativos para o organismo humano que poderia causar a ingestão de alimentos geneticamente modificados. Quanto ao uso de embriões humanos para a retenção de células-tronco, o texto aprovado segue a redação encaminhada ao Senado ainda no ano de 2004. Libera-se para pesquisa científica a utilização de células-tronco embrionárias desde que sejam obtidas em fertilização in vitro e estejam congeladas há mais de três anos. No ato de votação estavam presentes membros da Associação Brasileira de Distrofia Muscular e do Movimento em Prol da Vida. Compareceram também pessoas que padecem de degeneração progressiva do tecido muscular e seus familiares, que aguardam, com esperança, a cura para essas situações e a expectativa de novos tratamentos para doenças neurológicas como o mal de Alzheimer e o mal de Parkinson e para o diabetes. É preciso, no entanto, atender com exatidão aos dados científicos e às exigências éticas na avaliação do resultado da votação da Câmara dos Deputados, cujo texto será agora submetido à sanção do presidente da República. A questão é complexa e requer esclarecimentos importantes. Temos de saudar as conquistas recentes da ciência, em especial as da genética, que descobre cada vez melhor a maravilha da vida humana, dom do Criador. É nessa perspectiva que se insere a descoberta do uso das células-tronco, que podem, pelo seu múltiplo potencial, regenerar tecidos e órgãos. Mas temos de distinguir as células-tronco embrionárias, que surgem com os primeiros desdobramentos logo após a fecundação do óvulo, das células-tronco maduras, que encontramos no organismo desenvolvido e, em especial, na medula óssea e no cordão umbilical. Quanto ao uso das células-tronco maduras, os resultados são promissores e eticamente válidos. A restrição, no entanto, está no recurso às células-tronco embrionárias, cujo uso implica na destruição do embrião e, por isso, é moralmente inaceitável, uma vez que ao ser humano, desde a sua concepção, compete a sua inviolável dignidade. Não é portanto admissível, à luz dos princípios éticos, o voto do Senado e da Câmara dos Deputados que permite sacrificar o embrião humano e reduzi-lo a material de experimentação. Nenhum progresso científico é verdadeiro se elimina a vida humana em qualquer fase em que se encontre. Por outro lado, alegremo-nos porque o uso das células-tronco maduras abre amplo horizonte para a pesquisa científica e viabiliza a tão desejada cura de muitas enfermidades. Todos os esforços devem, em nosso país, ser empregados para que os cientistas, respeitando a vida e os princípios éticos, façam novas conquistas para o bem da humanidade. ARTIGO 4 - GLEISER, Marcelo. A nova cruzada contra a ciência. Folha de S. Paulo, 27/02/2005. Caderno Mais, seção + Ciência; Micro/Macro, p. 9. Em seu discurso inaugural de janeiro passado, o presidente americano George W. Bush afirmou: "Somos feitos à imagem do Criador da Terra e do Céu". Ou seja, Deus -na versão

5

judaico-cristã da história, veja bem- criou os homens e o Universo. Somos todos deuses, portanto, brincando nos jardins sagrados do cosmo. Vivemos em tempos conturbados. Sei que sempre é possível fazer essa afirmação; problemas sócio-econômicos existiram desde o início da história e não vão desaparecer tão cedo. O que preocupa no momento atual é a infiltração de certas idéias religiosas na política, contrariando os preceitos de uma sociedade democrática. Se o Estado começa a agir em nome de uma determinada religião, passamos a ter uma teocracia. No novo Orçamento da União, Bush cortou o a receita de todos os órgãos dedicados à pesquisa, com exceção do Departamento de Defesa e do de Segurança Interna. Apenas a Nasa se saiu relativamente bem; mas isso porque Bush quer que seus fundos sejam direcionados a levar americanos à Lua e, quem sabe, a Marte. Os fundos da agência espacial destinados à pesquisa básica foram sumariamente cortados, incluindo os que poderiam salvar o Telescópio Espacial Hubble. Ele está com os dias contados. Por que isso ocorre agora? Uma das razões, certamente não a única, é que com o fim da Guerra Fria os EUA perderam sua maior razão para investir pesado em pesquisa básica. Os soviéticos eram competidores sagazes e os EUA não podiam ficar para trás. Osama Bin Laden e a Al-Qaeda não estão interessados em ciência; só querem saber de religião e terrorismo. Não é coincidência que os ataques de 2001 em Nova York e Washington tenham ocorrido após a direita cristã ter subido ao poder nos Estados Unidos. A noção de que vivemos um retorno das Cruzadas -o uso da religião para justificar combates políticos- não é tão absurda assim. Uma das vítimas disso é a ciência. Na medida em que a religião controla o poder político, pesquisas passam a ser proibidas em certas áreas, fundos são cortados e dirigidos apenas a interesses nacionais. Isso é exatamente o que está ocorrendo agora nos EUA: proibição da pesquisa com células-tronco, corte de fomento à pesquisa básica, quantias enormes direcionadas para sistemas de defesa por mísseis e radares superpoderosos, projetos espaciais propagandistas, tais como o retorno à Lua etc. Podemos aprender com o que está ocorrendo nos EUA e tentar evitar que o mesmo aconteça no Brasil. Pesquisas nos EUA e no Brasil mostram que, em ambos os países, a maioria da população concorda com a afirmação de Bush em seu discurso inaugural. Isso é prova de que a educação científica, tanto lá quanto cá, deixa a desejar. Note que não tenho uma postura antirreligiosa. Muito pelo contrário, acho inocentes os cientistas que consideram que fé e ignorância andam de mãos dadas. A religião é muito mais antiga do que a ciência e não irá (e nem deve) desaparecer. O problema ocorre quando a religião passa a atuar fora de sua esfera, tentando evangelizar a população por meio de seu poder político. Como no Rio de Janeiro, forçando o ensino do criacionismo como uma alternativa a teorias científicas. Quem perde com isso são nossos estudantes e, com eles, o país inteiro. Se ciência de ponta não puder ser feita aqui, será feita em outro lugar. ARTIGO 5 - LEITE, Marcelo. Guerra das células: o retorno dos xiitas. Jornal Folha de S. Paulo. 12/06/2005, Caderno Mais, p. 11. São Paulo, 2005. Todos já viram esse filme, e ninguém gostou: uma questão tecnocientífica com potencial para afetar a vida de pessoas comuns é monopolizada por dois partidos extremos e degenera em algaravia fundamentalista. Foi assim com os transgênicos, que virou bate-boca entre "cientistas" e "ambientalistas", alienando a maior parte do público. Caminha para ser assim com as células-tronco, uma guerra nada santa que já opõe "católicos" agarrados ao estandarte das células adultas, de um lado, a "progressistas" enrolados na bandeira das células embrionárias, de outro.

6

Tantas aspas se justificam para indicar que se trata de simplificações. Obviamente, há católicos progressistas que nada têm contra utilizar em pesquisas blastocistos humanos criados com a mesma técnica empregada para gerar a ovelha Dolly. Também é claro que há cientistas que dão preferência a explorar primeiro as células-tronco adultas, de boa fé, ou seja, por razões que nada têm a ver com a doutrina regressiva da Igreja Católica em matéria de respeito à vida. O contingente de pessoas razoáveis tende a sumir e a calar-se, porém, quando os cruzados de lado a lado se erguem para pontificar e condenar. Deve crer que é prudência abandonar o terreno aos partidários da confusão conceitual e dos golpes baixos de retórica (nada contra a retórica em si, mas contra a irresponsabilidade retórica). Outros diriam que é covardia. Começou com os muitos pesquisadores que não reagiram ao maniqueísmo de seus pares quando, de olho nos embriões congelados das clínicas de fertilização artificial, pintaram os adversários como demônios desalmados. Pois não estavam impedindo a cura do diabetes, de Parkinson e dos paraplégicos? Só faltaram os cornos e cascos. Agora recebem o troco na mesma e vil moeda. Em artigo publicado quarta-feira na Folha, o tributarista Ives Gandra da Silva Martins e a bióloga molecular Lilian Piñero Eça acusam o governo federal de "aplicar recursos na manipulação e eliminação de seres humanos, transformados em cobaias, como no nacional-socialismo alemão". Um argumento com tanta consistência e profundidade quanto dizer que um papa é nazista por apoiar a Opus Dei e ter freqüentado reuniões de adolescentes hitleristas quando um país inteiro o fazia. Assim prossegue a marcha insensata do debate sobre células-tronco na grande avenida Brasil, que não leva a lugar algum. Pela direita, com Deus, a família e a propriedade dos embriões congelados. Pela esquerda, com a religião do progresso da ciência. A sorte, ou o azar, é que ninguém presta atenção, mesmo, em meio a mais um chilique cívico anticorrupção. O pouco de luz sobre esse assunto, na semana, veio da Coréia do Sul. Em entrevista a Salvador Nogueira, Woo-Suk Hwang _líder do grupo que montou uma linha de montagem de clones humanos "terapêuticos"_ disse acreditar que eles nunca serão "reprodutivos". Nos seus termos, que a clonagem humana em sentido forte "é impossível". Pelo menos as suas palavras correspondem a afirmações objetivas que poderão um dia ser testadas. E, quem sabe, desmascaradas como mais uma forma de propaganda. ARTIGO 6 - GLEISER, Marcelo.(b) Células-tronco e a medicina do futuro. Folha de S. Paulo, 29/05/2005. Caderno Mais, seção + Ciência; Micro/Macro, p. 9. "Galileu e Copérnico estavam corretos: a Terra é mesmo redonda e gira em torno do Sol. Eu acredito que o intelecto que nos foi dado por Deus deve ser usado para distinguir entre o dogmatismo que nos aprisiona e a prática ética da ciência, que é o que devemos apoiar aqui hoje." Essas foram as palavras de um deputado do Partido Republicano, Christopher Shays, durante as discussões que precederam um voto do Congresso dos EUA sobre o apoio federal à pesquisa com células-tronco de embriões humanos. Para a surpresa de muitos, incluindo a liderança conservadora do Partido Republicano e o presidente Bush, a medida foi aprovada por 238 votos a favor e 194 contra. O Senado já mostrou o seu apoio. Bush, por sua vez, ameaça usar o seu poder de veto. A política científica norte-americana está passando por uma redefinição, baseada nas políticas evangélicas de Bush e seu gabinete. As verbas da Fundação Nacional de Ciência foram reduzidas, as da Nasa redirecionadas, em grande parte, para programas de pequeno valor científico e grande valor propagandístico, como a exploração humana de Marte. As políticas de preservação ambiental do governo Clinton estão sendo desmanteladas, como na recente liberação de uma reserva natural no Alasca para a exploração de petróleo. O caso das células-tronco é importante por ser um claro exemplo de como decisões políticas que misturam

7

ciência com dogmatismo religioso podem prejudicar tanto os cientistas quanto a população como um todo. As células-tronco são extraídas de embriões humanos com aproximadamente cem células. O interesse nelas vem de sua capacidade de gerar células de praticamente todos os órgãos e tecidos do organismo humano. O potencial de terapias usando células-tronco é enorme, definindo toda uma nova área da medicina, o que poderia tratar doenças que causam a degeneração de tecidos com a reposição de células saudáveis. Doença de Parkinson, diabetes e distrofia muscular são algumas das várias moléstias, a afligir centenas de milhões de pessoas no mundo, que podem vir a ser tratadas. A oposição afirma que retirar as células-tronco dos embriões equivale a assassiná-los, que a ciência não deve destruir vidas. Essa retórica é típica de uma ideologia religiosa radical. Na prática, a situação é muito diferente. A proposta dos cientistas é utilizar os embriões descartados pelas clínicas de fertilização artificial. Caso não fossem utilizados, seriam congelados indefinidamente ou simplesmente destruídos. Portanto, o que se propõe é justamente o uso dos embriões para salvar vidas, evitando assim que sejam destruídos inutilmente. Seguindo a posição de Bush, clínicas de fertilidade deveriam ser também proibidas, já que inúmeros óvulos são inseminados e embriões gerados para que apenas um ou dois venham a formar um feto. Enquanto isso, cientistas coreanos anunciaram na semana passada que conseguiram desenvolver células-tronco a partir de amostras vindas de doentes com uma eficiência que só se acreditava possível daqui a décadas. As células-tronco são obtidas de embriões clonados das células dos pacientes, usando técnica semelhante à clonagem de animais. O objetivo não é copiar humanos, mas retirar as células-tronco dos embriões para tratar os pacientes. O papel da ciência é aliviar o sofrimento material do homem. É inútil tentar bloquear o seu progresso com uma ideologia religiosa retrógrada. O que não for feito nos EUA ou no Brasil será feito em outro lugar. ARTIGO 7 – O ESTADO DE S. PAULO. Vitórias da democracia. 04/03/2005. Editorial, p. A 3. Sob pressão – que é como nas sociedades democráticas os parlamentos votam projetos polêmicos de grande interesse e os políticos tomam as suas decisões – a Câmara dos Deputados aprovou por surpreendente maioria (352 a 60) uma versão próxima da proposta original da Lei de Biossegurança que o governo enviou ao Congresso em outubro de 2003. A lei aprovada autoriza o uso de células embrionárias humanas em pesquisas para fins terapêuticos, sob condições estritas, e regulamenta os estudos, o plantio e o comércio de produtos transgênicos. Em quase 14 meses de tramitação, sob o duplo fogo dos ambientalistas capitaneados pela ministra Marina Silva, ferrenhamente contrários ao ingresso do Brasil na era da biotecnologia agrícola, e das organizações religiosas, a começar da CNBB, não menos hostis ao que entendem ser a destruição deliberada de vida humana, o projeto conheceu os altos, os baixos, os solavancos e os sustos da montanha-russa a que foi submetido. Na primeira votação, em fevereiro do ano passado, a Câmara simplesmente desfigurou o texto recebido. De um lado, subtraiu-se da multidisciplinar Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) a atribuição de dar a última palavra, caso a caso, sobre a inocuidade dos transgênicos para o ambiente e a saúde.Aministra Marina conseguiu transferir essa prerrogativa para o Ibama, um reduto dos inimigos do cultivo de organismos geneticamente

8

modificados. De outro lado, restringiu-se a pesquisa com as chamadas células-tronco às extraídas de organismos adultos ou do cordão umbilical – menos eficazes do que as dos embriões. Felizmente, essa “vitória da bruxaria sobre a ciência”, como resumiu à época um parlamentar, não se repetiu no Senado. Depois de exasperantes idas e vindas, com nomeações e destituições de relatores, o espírito e muito da letra da proposta governamental foram resgatados na versão que voltou à Câmara – e ali foi enfim aprovada. Da votação se ausentou o presidente Severino Cavalcanti, cujo conservadorismo o impediu de dar ouvidos à própria filha, deputada (estadual) e católica como ele, ativa defensora das pesquisas com células-tronco embrionárias para “salvar vidas”. Mas ninguém se bateu tanto no Brasil pelo progresso científico humanista como a bióloga Mayana Zatz, da Universidade de São Paulo. Durante meses ela deu entrevistas, escreveu artigos e procurou políticos, autoridades e religiosos para explicar aos leigos a sua causa. O ponto culminante desse formidável lobby foi a presença, no Congresso, de deficientes físicos e portadores de doenças degenerativas, que um dia poderão se curar com implantes de células-tronco de embriões – por serem elas capazes de formar qualquer dos 216 tecidos do organismo, devolvendo-lhe as funções prejudicadas. Menos dramática, mas não menos eficiente foi a pressão dos ministros da Agricultura, Roberto Rodrigues; Ciência e Tecnologia, Eduardo Campos; Desenvolvimento, Luiz Fernando Furlan; e da Coordenação Política, Aldo Rebelo, pela restituição à Comissão de Biossegurança da indispensável autoridade, advinda de sua própria composição, em matéria eminentemente técnica – o risco potencial dos transgênicos. E a CTNBio, agora com 12 cientistas, 9 especialistas do governo e 6 representantes da sociedade, reconquistou de fato a autonomia surrupiada. Quando ela tiver estabelecido que determinado transgênico não oferece perigo para a natureza e o consumidor, caberá a um Conselho Nacional de Biossegurança, composto por 11 ministros, a decisão estratégica de liberar o seu plantio em escala comercial, conforme a sua “conveniência e oportunidade”. Pode-se argumentar que, em um sistema de livre iniciativa, tal autorização representa uma ingerência indevida do Estado na atividade econômica. Mas não se imagina um veto ministerial a uma cultura transgênica inofensiva e rentável. A soja GM, por exemplo, veio para ficar. O essencial – e motivo de regozijo – é que os partidários do atraso, por desinformação, preconceito ideológico e crenças dogmáticas particulares, não lograram tolher nem a modernização da economia agrícola nem o avanço da ciência no País. Principalmente porque a sua derrota foi uma vitória da democracia, sob a forma de pressões sociais legítimas, fundamentadas na ética e na razão. Como aquelas que, na mesma quartafeira, impediram que fosse adiante o plano escandaloso de aumentar em 67% os salários dos deputados e senadores. Esta semana, em suma, a sociedade fez o Brasil ficar mais civilizado. ARTIGO 8 – O ESTADO DE S. PAULO. Fé não é direito. 03/06/2005. Editorial, p. A 3 Não é de se exigir que um jurista perca suas convicções religiosas no momento em que deve interpretar uma norma jurídica. O que não se pode admitir é que essa interpretação se fundamente, inteiramente, em convicções religiosas. Se isso vale para os que têm por ofício elucidar o que esteja contido no direito positivo, na legislação, por meio da exposição do que lhe pareça a melhor doutrina – e os pareceres dos jurisconsultos têm seu devido peso nas decisões judiciais –, valerá mais ainda para os que têm a função oficial de defender os interesses difusos da sociedade, como é

9

o caso dos integrantes do Ministério Público, notadamente o responsável maior pelo MP federal, o procurador-geral da República. O fundamento que levou o procurador-geral Cláudio Fonteles a ajuizar, no Supremo Tribunal Federal (STF), uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin) contra dispositivo da Lei de Biossegurança que permite a utilização de células-tronco de embriões humanos com finalidades de pesquisa ou terapia só pode ser o da doutrina católica, religião da qual o procurador-geral da República se confessa fervoroso praticante. A propósito, sempre é bom lembrar que foi, justamente, a República, em sua primeira Constituição promulgada em 24 de fevereiro de 1891, que eliminou, no Brasil, a união Igreja-Estado e estabeleceu a plena liberdade de culto em nosso país. Dessa forma, quando uma autoridade pública representa a sociedade brasileira, ou fala em seu nome, há que levar em conta que atua em esfera eminentemente civil, laica, sendo-lhe descabido, nessa função, qualquer laivo de proselitismo religioso. Caso contrário, o direito positivo pátrio e as instituições por ele normatizadas estariam na inteira dependência dos poderes temporários exercidos por adeptos desta ou aquela crença. É sabido que, para a Igreja Católica, a vida humana se inicia no momento da concepção. No direito positivo brasileiro, no entanto, apesar de proteções jurídicas em favor dos nascituros, a pessoa física – com todo o seu amplo espectro de direitos, inclusive o sucessório – só surge em razão do nascimento com vida. São visões diversas, que vão se refletir em questões de grande interesse científico e social, como o do aproveitamento de células-tronco – no caso em pauta, de embriões que sobraram de tratamentos de fertilidade, não foram implantados em útero e não teriam chance alguma de gerar nascimento de um ser humano. Por outro lado, no capítulo da valorização da vida humana – o que, decerto, está na raiz de tantas concepções éticas e doutrinas religiosas –, há que se reconhecer a importância do avanço das ciências médicas, destinadas a aumentar a duração e a qualidade de vida dos seres humanos, por novos meios oferecidos pelas pesquisas científicas, sistemas de tratamento de doenças e aperfeiçoamento de tecnologias em diversas áreas. Não se pode, simplesmente, obstar este avanço – que significaria o aumento das possibilidades de sobrevivência para milhares ou milhões de pessoas – a partir de uma visão confessional particularista, que não leva em conta os reais interesses, em termos de saúde, de superação de doenças e de extensão da vida, de toda uma coletividade. Que a questão é polêmica e pode suscitar interpretações disparatadas, não resta a menor dúvida. Mas antes de o procurador-geral da Republica tentar impor filigranas interpretativas para barrar possibilidades de melhoria da saúde das pessoas, seria bom procurar saber o que acha a sociedade brasileira a esse respeito. Afinal de contas, existe uma lei aprovada pelos representantes legítimos da sociedade – ou seja, a Lei de Biossegurança. Se ela é ou não inconstitucional, caberá à mais alta corte de Justiça do País pronunciar-se a respeito. Esperemos, apenas, que o Supremo Tribunal Federal (STF) interprete a constitucionalidade dessa lei com base nas melhores tradições jurídicas e republicanas, que não incluem a submissão a visões de natureza puramente confessional.

10

ANEXO 4 – LEI DE BIOSSEGURANÇA Presidência da República Casa Civil Subchefia para Assuntos Jurídicos LEI Nº 11.105, DE 24 DE MARÇO DE 2005. Mensagem de veto Regulamenta os incisos II, IV e V do § 1º do art. 225 da Constituição Federal, estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados -- OGM e seus derivados, cria o Conselho Nacional de Biossegurança -- CNBS, reestrutura a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança -- CTNBio, dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança -- PNB, revoga a Lei no 8.974, de 5 de janeiro de 1995, e a Medida Provisória no 2.191-9, de 23 de agosto de 2001, e os arts. 5o, 6o, 7o, 8o, 9o, 10 e 16 da Lei no 10.814, de 15 de dezembro de 2003, e dá outras providências. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei: CAPÍTULO I DISPOSIÇÕES PRELIMINARES E GERAIS Art. 1º Esta Lei estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização sobre a construção, o cultivo, a produção, a manipulação, o transporte, a transferência, a importação, a exportação, o armazenamento, a pesquisa, a comercialização, o consumo, a liberação no meio ambiente e o descarte de organismos geneticamente modificados -- OGM e seus derivados, tendo como diretrizes o estímulo ao avanço científico na área de biossegurança e biotecnologia, a proteção à vida e à saúde humana, animal e vegetal, e a observância do princípio da precaução para a proteção do meio ambiente. § 1º Para os fins desta Lei, considera-se atividade de pesquisa a realizada em laboratório, regime de contenção ou campo, como parte do processo de obtenção de OGM e seus derivados ou de avaliação da biossegurança de OGM e seus derivados, o que engloba, no âmbito experimental, a construção, o cultivo, a manipulação, o transporte, a transferência, a importação, a exportação, o armazenamento, a liberação no meio ambiente e o descarte de OGM e seus derivados. § 2º Para os fins desta Lei, considera-se atividade de uso comercial de OGM e seus derivados a que não se enquadra como atividade de pesquisa, e que trata do cultivo, da produção, da manipulação, do transporte, da transferência, da comercialização, da importação, da exportação, do armazenamento, do consumo, da liberação e do descarte de OGM e seus derivados para fins comerciais. Art. 2º As atividades e projetos que envolvam OGM e seus derivados, relacionados ao ensino com manipulação de organismos vivos, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico e à produção industrial ficam restritos ao âmbito de entidades de direito público ou privado, que serão responsáveis pela obediência aos preceitos desta Lei e de sua regulamentação, bem como pelas eventuais conseqüências ou efeitos advindos de seu descumprimento.

11

§ 1º Para os fins desta Lei, consideram-se atividades e projetos no âmbito de entidade os conduzidos em instalações próprias ou sob a responsabilidade administrativa, técnica ou científica da entidade. § 2º As atividades e projetos de que trata este artigo são vedados a pessoas físicas em atuação autônoma e independente, ainda que mantenham vínculo empregatício ou qualquer outro com pessoas jurídicas. § 3º Os interessados em realizar atividade prevista nesta Lei deverão requerer autorização à Comissão Técnica Nacional de Biossegurança -- CTNBio, que se manifestará no prazo fixado em regulamento. § 4º As organizações públicas e privadas, nacionais, estrangeiras ou internacionais, financiadoras ou patrocinadoras de atividades ou de projetos referidos no caput deste artigo devem exigir a apresentação de Certificado de Qualidade em Biossegurança, emitido pela CTNBio, sob pena de se tornarem co-responsáveis pelos eventuais efeitos decorrentes do descumprimento desta Lei ou de sua regulamentação. Art. 3º Para os efeitos desta Lei, considera-se: I -- organismo: toda entidade biológica capaz de reproduzir ou transferir material genético, inclusive vírus e outras classes que venham a ser conhecidas; II -- ácido desoxirribonucléico - ADN, ácido ribonucléico - ARN: material genético que contém informações determinantes dos caracteres hereditários transmissíveis à descendência; III -- moléculas de ADN/ARN recombinante: as moléculas manipuladas fora das células vivas mediante a modificação de segmentos de ADN/ARN natural ou sintético e que possam multiplicar-se em uma célula viva, ou ainda as moléculas de ADN/ARN resultantes dessa multiplicação; consideram-se também os segmentos de ADN/ARN sintéticos equivalentes aos de ADN/ARN natural; IV -- engenharia genética: atividade de produção e manipulação de moléculas de ADN/ARN recombinante; V -- organismo geneticamente modificado - OGM: organismo cujo material genético -- ADN/ARN tenha sido modificado por qualquer técnica de engenharia genética; VI -- derivado de OGM: produto obtido de OGM e que não possua capacidade autônoma de replicação ou que não contenha forma viável de OGM; VII -- célula germinal humana: célula-mãe responsável pela formação de gametas presentes nas glândulas sexuais femininas e masculinas e suas descendentes diretas em qualquer grau de ploidia; VIII -- clonagem: processo de reprodução assexuada, produzida artificialmente, baseada em um único patrimônio genético, com ou sem utilização de técnicas de engenharia genética;

12

IX -- clonagem para fins reprodutivos: clonagem com a finalidade de obtenção de um indivíduo; X -- clonagem terapêutica: clonagem com a finalidade de produção de células-tronco embrionárias para utilização terapêutica; XI -- células-tronco embrionárias: células de embrião que apresentam a capacidade de se transformar em células de qualquer tecido de um organismo. § 1º Não se inclui na categoria de OGM o resultante de técnicas que impliquem a introdução direta, num organismo, de material hereditário, desde que não envolvam a utilização de moléculas de ADN/ARN recombinante ou OGM, inclusive fecundação in vitro, conjugação, transdução, transformação, indução poliplóide e qualquer outro processo natural. § 2º Não se inclui na categoria de derivado de OGM a substância pura, quimicamente definida, obtida por meio de processos biológicos e que não contenha OGM, proteína heteróloga ou ADN recombinante. Art. 4º Esta Lei não se aplica quando a modificação genética for obtida por meio das seguintes técnicas, desde que não impliquem a utilização de OGM como receptor ou doador: I -- mutagênese; II -- formação e utilização de células somáticas de hibridoma animal; III -- fusão celular, inclusive a de protoplasma, de células vegetais, que possa ser produzida mediante métodos tradicionais de cultivo; IV -- autoclonagem de organismos não-patogênicos que se processe de maneira natural. Art. 5º É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições: I -- sejam embriões inviáveis; ou II -- sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento. § 1º Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores. § 2º Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa. § 3º É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei no 9.434, de 4 de fevereiro de 1997. Art. 6º Fica proibido:

13

I -- implementação de projeto relativo a OGM sem a manutenção de registro de seu acompanhamento individual; II -- engenharia genética em organismo vivo ou o manejo in vitro de ADN/ARN natural ou recombinante, realizado em desacordo com as normas previstas nesta Lei; III -- engenharia genética em célula germinal humana, zigoto humano e embrião humano; IV -- clonagem humana; V -- destruição ou descarte no meio ambiente de OGM e seus derivados em desacordo com as normas estabelecidas pela CTNBio, pelos órgãos e entidades de registro e fiscalização, referidos no art. 16 desta Lei, e as constantes desta Lei e de sua regulamentação; VI -- liberação no meio ambiente de OGM ou seus derivados, no âmbito de atividades de pesquisa, sem a decisão técnica favorável da CTNBio e, nos casos de liberação comercial, sem o parecer técnico favorável da CTNBio, ou sem o licenciamento do órgão ou entidade ambiental responsável, quando a CTNBio considerar a atividade como potencialmente causadora de degradação ambiental, ou sem a aprovação do Conselho Nacional de Biossegurança -- CNBS, quando o processo tenha sido por ele avocado, na forma desta Lei e de sua regulamentação; VII -- a utilização, a comercialização, o registro, o patenteamento e o licenciamento de tecnologias genéticas de restrição do uso. Parágrafo único. Para os efeitos desta Lei, entende-se por tecnologias genéticas de restrição do uso qualquer processo de intervenção humana para geração ou multiplicação de plantas geneticamente modificadas para produzir estruturas reprodutivas estéreis, bem como qualquer forma de manipulação genética que vise à ativação ou desativação de genes relacionados à fertilidade das plantas por indutores químicos externos. Art. 7º São obrigatórias: I -- a investigação de acidentes ocorridos no curso de pesquisas e projetos na área de engenharia genética e o envio de relatório respectivo à autoridade competente no prazo máximo de 5 (cinco) dias a contar da data do evento; II -- a notificação imediata à CTNBio e às autoridades da saúde pública, da defesa agropecuária e do meio ambiente sobre acidente que possa provocar a disseminação de OGM e seus derivados; III -- a adoção de meios necessários para plenamente informar à CTNBio, às autoridades da saúde pública, do meio ambiente, da defesa agropecuária, à coletividade e aos demais empregados da instituição ou empresa sobre os riscos a que possam estar submetidos, bem como os procedimentos a serem tomados no caso de acidentes com OGM. CAPÍTULO II Do Conselho Nacional de Biossegurança -- CNBS

14

Art. 8º Fica criado o Conselho Nacional de Biossegurança -- CNBS, vinculado à Presidência da República, órgão de assessoramento superior do Presidente da República para a formulação e implementação da Política Nacional de Biossegurança -- PNB. § 1º Compete ao CNBS: I -- fixar princípios e diretrizes para a ação administrativa dos órgãos e entidades federais com competências sobre a matéria; II -- analisar, a pedido da CTNBio, quanto aos aspectos da conveniência e oportunidade socioeconômicas e do interesse nacional, os pedidos de liberação para uso comercial de OGM e seus derivados; III -- avocar e decidir, em última e definitiva instância, com base em manifestação da CTNBio e, quando julgar necessário, dos órgãos e entidades referidos no art. 16 desta Lei, no âmbito de suas competências, sobre os processos relativos a atividades que envolvam o uso comercial de OGM e seus derivados; IV -- (VETADO) § 2º (VETADO) § 3º Sempre que o CNBS deliberar favoravelmente à realização da atividade analisada, encaminhará sua manifestação aos órgãos e entidades de registro e fiscalização referidos no art. 16 desta Lei. § 4º Sempre que o CNBS deliberar contrariamente à atividade analisada, encaminhará sua manifestação à CTNBio para informação ao requerente. Art. 9º O CNBS é composto pelos seguintes membros: I -- Ministro de Estado Chefe da Casa Civil da Presidência da República, que o presidirá; II -- Ministro de Estado da Ciência e Tecnologia; III -- Ministro de Estado do Desenvolvimento Agrário; IV -- Ministro de Estado da Agricultura, Pecuária e Abastecimento; V -- Ministro de Estado da Justiça; VI -- Ministro de Estado da Saúde; VII -- Ministro de Estado do Meio Ambiente; VIII -- Ministro de Estado do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior; IX -- Ministro de Estado das Relações Exteriores; X -- Ministro de Estado da Defesa; XI -- Secretário Especial de Aqüicultura e Pesca da Presidência da República. § 1º O CNBS reunir-se-á sempre que convocado pelo Ministro de Estado Chefe da Casa Civil da Presidência da República, ou mediante provocação da maioria de seus membros. § 2º (VETADO)

15

§ 3º Poderão ser convidados a participar das reuniões, em caráter excepcional, representantes do setor público e de entidades da sociedade civil. § 4º O CNBS contará com uma Secretaria-Executiva, vinculada à Casa Civil da Presidência da República. § 5º A reunião do CNBS poderá ser instalada com a presença de 6 (seis) de seus membros e as decisões serão tomadas com votos favoráveis da maioria absoluta. CAPÍTULO III Da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança -- CTNBio Art. 10. A CTNBio, integrante do Ministério da Ciência e Tecnologia, é instância colegiada multidisciplinar de caráter consultivo e deliberativo, para prestar apoio técnico e de assessoramento ao Governo Federal na formulação, atualização e implementação da PNB de OGM e seus derivados, bem como no estabelecimento de normas técnicas de segurança e de pareceres técnicos referentes à autorização para atividades que envolvam pesquisa e uso comercial de OGM e seus derivados, com base na avaliação de seu risco zoofitossanitário, à saúde humana e ao meio ambiente. Parágrafo único. A CTNBio deverá acompanhar o desenvolvimento e o progresso técnico e científico nas áreas de biossegurança, biotecnologia, bioética e afins, com o objetivo de aumentar sua capacitação para a proteção da saúde humana, dos animais e das plantas e do meio ambiente. Art. 11. A CTNBio, composta de membros titulares e suplentes, designados pelo Ministro de Estado da Ciência e Tecnologia, será constituída por 27 (vinte e sete) cidadãos brasileiros de reconhecida competência técnica, de notória atuação e saber científicos, com grau acadêmico de doutor e com destacada atividade profissional nas áreas de biossegurança, biotecnologia, biologia, saúde humana e animal ou meio ambiente, sendo: I -- 12 (doze) especialistas de notório saber científico e técnico, em efetivo exercício profissional, sendo: a) 3 (três) da área de saúde humana; b) 3 (três) da área animal; c) 3 (três) da área vegetal; d) 3 (três) da área de meio ambiente; II -- um representante de cada um dos seguintes órgãos, indicados pelos respectivos titulares: a) Ministério da Ciência e Tecnologia; b) Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento; c) Ministério da Saúde; d) Ministério do Meio Ambiente; e) Ministério do Desenvolvimento Agrário;

16

f) Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior; g) Ministério da Defesa; h) Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca da Presidência da República; i) Ministério das Relações Exteriores; III -- um especialista em defesa do consumidor, indicado pelo Ministro da Justiça; IV -- um especialista na área de saúde, indicado pelo Ministro da Saúde; V -- um especialista em meio ambiente, indicado pelo Ministro do Meio Ambiente; VI -- um especialista em biotecnologia, indicado pelo Ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento; VII -- um especialista em agricultura familiar, indicado pelo Ministro do Desenvolvimento Agrário; VIII -- um especialista em saúde do trabalhador, indicado pelo Ministro do Trabalho e Emprego. § 1º Os especialistas de que trata o inciso I do caput deste artigo serão escolhidos a partir de lista tríplice, elaborada com a participação das sociedades científicas, conforme disposto em regulamento. § 2º Os especialistas de que tratam os incisos III a VIII do caput deste artigo serão escolhidos a partir de lista tríplice, elaborada pelas organizações da sociedade civil, conforme disposto em regulamento. § 3º Cada membro efetivo terá um suplente, que participará dos trabalhos na ausência do titular. § 4º Os membros da CTNBio terão mandato de 2 (dois) anos, renovável por até mais 2 (dois) períodos consecutivos. § 5º O presidente da CTNBio será designado, entre seus membros, pelo Ministro da Ciência e Tecnologia para um mandato de 2 (dois) anos, renovável por igual período. § 6º Os membros da CTNBio devem pautar a sua atuação pela observância estrita dos conceitos ético-profissionais, sendo vedado participar do julgamento de questões com as quais tenham algum envolvimento de ordem profissional ou pessoal, sob pena de perda de mandato, na forma do regulamento. § 7º A reunião da CTNBio poderá ser instalada com a presença de 14 (catorze) de seus membros, incluído pelo menos um representante de cada uma das áreas referidas no inciso I do caput deste artigo. § 8º (VETADO) § 9º Órgãos e entidades integrantes da administração pública federal poderão solicitar participação nas reuniões da CTNBio para tratar de assuntos de seu especial interesse, sem direito a voto. § 10. Poderão ser convidados a participar das reuniões, em caráter excepcional, representantes da comunidade científica e do setor público e entidades da sociedade civil, sem direito a voto.

17

Art. 12. O funcionamento da CTNBio será definido pelo regulamento desta Lei. § 1º A CTNBio contará com uma Secretaria-Executiva e cabe ao Ministério da Ciência e Tecnologia prestar-lhe o apoio técnico e administrativo. § 2º (VETADO) Art. 13. A CTNBio constituirá subcomissões setoriais permanentes na área de saúde humana, na área animal, na área vegetal e na área ambiental, e poderá constituir subcomissões extraordinárias, para análise prévia dos temas a serem submetidos ao plenário da Comissão. § 1º Tanto os membros titulares quanto os suplentes participarão das subcomissões setoriais e caberá a todos a distribuição dos processos para análise. § 2º O funcionamento e a coordenação dos trabalhos nas subcomissões setoriais e extraordinárias serão definidos no regimento interno da CTNBio. Art. 14. Compete à CTNBio: I -- estabelecer normas para as pesquisas com OGM e derivados de OGM; II -- estabelecer normas relativamente às atividades e aos projetos relacionados a OGM e seus derivados; III -- estabelecer, no âmbito de suas competências, critérios de avaliação e monitoramento de risco de OGM e seus derivados; IV -- proceder à análise da avaliação de risco, caso a caso, relativamente a atividades e projetos que envolvam OGM e seus derivados; V -- estabelecer os mecanismos de funcionamento das Comissões Internas de Biossegurança -- CIBio, no âmbito de cada instituição que se dedique ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico e à produção industrial que envolvam OGM ou seus derivados; VI -- estabelecer requisitos relativos à biossegurança para autorização de funcionamento de laboratório, instituição ou empresa que desenvolverá atividades relacionadas a OGM e seus derivados; VII -- relacionar-se com instituições voltadas para a biossegurança de OGM e seus derivados, em âmbito nacional e internacional; VIII -- autorizar, cadastrar e acompanhar as atividades de pesquisa com OGM ou derivado de OGM, nos termos da legislação em vigor; IX -- autorizar a importação de OGM e seus derivados para atividade de pesquisa; X -- prestar apoio técnico consultivo e de assessoramento ao CNBS na formulação da PNB de OGM e seus derivados;

18

XI -- emitir Certificado de Qualidade em Biossegurança -- CQB para o desenvolvimento de atividades com OGM e seus derivados em laboratório, instituição ou empresa e enviar cópia do processo aos órgãos de registro e fiscalização referidos no art. 16 desta Lei; XII -- emitir decisão técnica, caso a caso, sobre a biossegurança de OGM e seus derivados no âmbito das atividades de pesquisa e de uso comercial de OGM e seus derivados, inclusive a classificação quanto ao grau de risco e nível de biossegurança exigido, bem como medidas de segurança exigidas e restrições ao uso; XIII -- definir o nível de biossegurança a ser aplicado ao OGM e seus usos, e os respectivos procedimentos e medidas de segurança quanto ao seu uso, conforme as normas estabelecidas na regulamentação desta Lei, bem como quanto aos seus derivados; XIV -- classificar os OGM segundo a classe de risco, observados os critérios estabelecidos no regulamento desta Lei; XV -- acompanhar o desenvolvimento e o progresso técnico-científico na biossegurança de OGM e seus derivados; XVI -- emitir resoluções, de natureza normativa, sobre as matérias de sua competência; XVII -- apoiar tecnicamente os órgãos competentes no processo de prevenção e investigação de acidentes e de enfermidades, verificados no curso dos projetos e das atividades com técnicas de ADN/ARN recombinante; XVIII -- apoiar tecnicamente os órgãos e entidades de registro e fiscalização, referidos no art. 16 desta Lei, no exercício de suas atividades relacionadas a OGM e seus derivados; XIX -- divulgar no Diário Oficial da União, previamente à análise, os extratos dos pleitos e, posteriormente, dos pareceres dos processos que lhe forem submetidos, bem como dar ampla publicidade no Sistema de Informações em Biossegurança -- SIB a sua agenda, processos em trâmite, relatórios anuais, atas das reuniões e demais informações sobre suas atividades, excluídas as informações sigilosas, de interesse comercial, apontadas pelo proponente e assim consideradas pela CTNBio.

19

ANEXO 5 - AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – AD I 3510 EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: O Procurador Geral da República, presente o disposto no artigo 102, I, a, da Constituição Federal, ajuíza. Ação Direta de Inconstitucionalidade, pelo que expõe: I. Do preceito normativo impugnado: 1. É o que se faz presente no artigo 5º e parágrafos da Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005, verbis: “Art. 5º É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivos procedimento, atendidas as seguintes condições: I – sejam embriões inviáveis; ou II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data de publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento. § 1º Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores. § 2º Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisas ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética e pesquisa. § 3º É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997”. II. Dos textos constitucionais inobservados pelo preceito retro transcrito: 1. Dispõe o artigo 5º, caput, verbis: Artigo 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distorção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (grifei) 2. Dispõe o artigo 1º, inciso III, verbis: Artigo 1º - A República Federativa Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos: III – a dignidade da pessoa humana.

20

III – Da fundamentação por Inconstitucionalidade material: 1. A tese central desta petição afirma que a vida humana acontece na, e a partir da, fecundação. 2. Assim, a lição do Dr. Dernival da Silva Brandão, especialista em Ginecologia e Membro Emérito da Academia Fluminense de Medicina, verbis: "O embrião é o ser humano na fase inicial de sua vida. É um ser humano em virtude de sua constituição genética específica própria e de ser gerado por um casal humano através de gametas humanos – espermatozóide e óvulo. Compreende a fase de desenvolvimento que vai desde a concepção, com a formação do zigoto na união dos gametas, até completar a oitava semana de vida. Desde o primeiro momento de sua existência esse novo ser já tem determinado as suas características pessoais fundamentais como sexo, grupo sanguíneo, cor da pele e dos olhos, etc. É o agente do seu próprio desenvolvimento, coordenado de acordo com o seu próprio código genético. O cientista Jérôme Lejeune, professor da universidade de René Descartes, em Paris, que dedicou toda a sua vida ao estudo da genética fundamental, descobridor da Síndrome de Dawn (mongolismo), nos diz: "Não quero repetir o óbvio, mas, na verdade, a vida começa na fecundação. Quando os 23 cromossomos masculinos se encontram com os 23 cromossomos da mulher, todos os dados genéticos que definem o novo ser humano estão presentes. A fecundação é o marco do início da vida. Daí para frente, qualquer método artificial para destruí-la é um assassinato". (publicação: VIDA: o primeiro direito da cidadania – pg. 10 – em anexo, grifei) 3. E prossegue o Dr. Dernival Brandão, verbis: A ciência demonstra insofismamavelmente – com os recursos mais modernos – que o ser humano, recém-fecundado, tem já o seu próprio patrimônio genético e o seu próprio sistema imunológico diferente da mãe. É o mesmo ser humano – e não outro – que depois se converterá em bebê, criança, jovem, adulto e ancião. O processo vai-se desenvolvendo suavemente, sem saltos, sem nenhuma mudança qualitativa. Não é cientificamente admissível que o produto da fecundação seja nos primeiros momentos somente uma "matéria germinante". Aceitar, portanto, que depois da fecundação existe um novo ser humano, independente, não é uma hipótese metafísica, mas uma evidência experimental. Nunca se poderá falar de embrião como de uma "pessoa em potencial" que está em processo de personalização e que nas primeiras semanas pode ser abortada. Porque? Poderíamos perguntar-nos: em que momento, em que dia, em que semana começa a ter a qualidade de um ser humano? Hoje não é; amanhã já é. Isto, obviamente, é cientificamente absurdo." (publicação citada – pg. 11, grifei) 4.O Dr. Dalton Luiz de Paula Ramos, livre-docente pela Universidade de S.Paulo, Professsor de Bioética da USP e Membro do Núcleo Interdisciplinar de Biotética da UNIFESP acentua que, verbis:

21

"Os biólogos empregam diferentes termos – como por exemplo zigoto, embrião, feto, etc-, para caracterizar diferentes etapas da evolução do óvulo fecundo. Todavia esses diferentes nomes não conferem diferentes dignidades a essas diversas etapas. Mesmo não sendo possível distinguir nas fases iniciais os formatos humanos, nessa nova vida se encontram todas as informações, que se chama "código genético", suficientes para que o embrião saiba como fazer para se desenvolver. Ninguém mais, mesmo a mãe, vai interferir nesses processos de ampliação do novo ser. A mãe, por meio de seu corpo, vai oferecer a essa nova vida um ambiente adequado (o útero) e os nutrientes necessários. Mas é o embrião que administra a construção e executa a obra. Logo, o embrião não é "da mãe"; ele tem vida própria. O embrião "está" na mãe, que o acolhe pois o ama. Não se trata, então, de um simples amontoado de células. O embrião é vida humana. A partir do momento que, alcançando maior tamanho e desenvolvimento físico, passamos a reconhecer aqueles formatos humanos (cabeça, tronco, mãos e braços, pernas e pés, etc), podemos chamar essa nova vida humana de "feto"." (publicação citada – pg. 12/13 grifei) 5. A Dra. Alice Teixeira Ferreira, Professora Associada de Biofísica da UNIFESP/EPM na área de Biologia Celular-Sinalização Celular afirma, verbis: "Embriologia quer dizer o estudo dos embriões, entretanto, se refere, atualmente, ao estudo do desenvolvimento de embriões e fetos. Surgiu com o aumento da sensibilidade dos microscópios. Karl Ernst Von Baer observou, em 1827, o ovo ou zigoto em divisão na tuba uterina e o blastocisto no útero de animais, Nas suas obras Ueber Entwicklungsgeschiechteb der Tiere e Beabachutung and Reflexion descreveu os estágios correspondentes do desenvovimento do embrião e quais as características gerais que precedem as específicas, contribuindo com novos conhecimentos sobre a origem dos tecidos e órgãos. Por isto é chamado de "Pai da Embriologia Moderna". Em 1839 Schleiden e Schwan, ao formularem a Teoria Celular, foram responsáveis por grandes avanços da Embriologia. Conforme tal conceito o corpo é composto por células o que leva à compreensão de que o embrião se forma à partir de uma ÚNICA célula, o zigoto, que por muitas divisões celulares forma os tecidos e órgãos de todo ser vivo, em particular o humano. Confirmando tais fatos, em 1879, Hertwig descreveu eventos visíveis na união do óvulo ou ovócito com o espermatozóide em mamíferos. Para não se dizer que se trata de conceitos ultrapassados verifiquei que TODOS os textos de Embriologia Humana consultados (as últimas edições listadas na Referência Biográfica ) afirmam que o desenvolvimento humano se inicia quando o ovócito é fertilização pelo espermatozóide. Todos afirmam que o desenvolvimento humano é a expressão do fluxo irreversível de eventos biológicos ao longo do tempo que só para com a morte. Todos nós passamos pelas mesmas fases do desenvolvimentos intrauterino: fomos um ovo, uma mórula, um blastocisto, um feto." 6. A Dra. Elizabeth Kipman Cerqueira, perita em sexualidade humana e especialista em logoterapia escreve, verbis:

22

"O zigoto, constituído por uma única célula produz imediatamente proteínas e enzimas humanas e não de outra espécie. É biologicamente um indivíduo único e irrepetível, um organismos vivo pertecente à espécie humana. b) "O tipo genético – as características herdadas de um ser humano individualizado – é estabelecido no processo da concepção e permanecerá em vigor por toda a vida daquele indivíduo" (Shettles e Rorvik – Rites of Life, Grand Rapids (MI), Zondervan, 1983 – cf. Pastuszek: Is Fetus Human – pg. 5." "O desenvolvimento humano se inicia na fertilização, o processo durante o qual um gameta masculino ou espermatozóide (...) se une a um gameta feminino ou ovócito (...) para formar uma célula única chamada zigoto. Esta célula altamente especializada e totipotente marca o início de cada um de nós, como indivíduo único. (Keith Moore e T.V.N Persaud – The Developing Human, Philadelphia, W.B. Saunders Company – 1998 – pg.18 7. Anexo quadro esquemático que na, e a partir da, fecundação marca o desenvolvimento da vida humana: o zigoto, que se desenvolve a partir de sua unicidade celular. (vide: quadro anexo). 8.Importa, agora, abordar o tema das células-tronco. 9.Diz a Dra. Alice Teixeira Ferreira, verbis: As células tronco embrionárias são aquelas provenientes da massa celular interna do embrião (blastocisto). São chamadas de células-tronco embrionárias humanas porque provêm do embrião e porque são células-mães do ser humano. Para se usar estas células, que constituem a massa interna do blastocisto, é destruído o embrião. As células tronco adultas são aquelas encontradas em todos os órgãos e em maior quantidade na medula óssea (tutano do osso) e no cordão umbilical-placenta. No tutano dos ossos tem-se a produção de milhões de células por dia, que substituem as que morrem diariamente no sangue." (publicação citada – pg. 33, grifei) 10. O Dr. Herbert Praxedes também considera que, verbis: "As células de um embrião humano de poucos dias são todas células-tronco (CTE), são pluripotenciais, tendo capacidade de se auto-renovarem e de se diferenciarem em qualquer dos tecidos do corpo. As células-tronco adultas (CTA) são multipotenciais e têm também capacidade de ser auto-renovarem e se diferenciarem em vários, mas, aparente não em todos, os tecidos do organismo. As CTA existem no organismo adulto em vários tecidos como a medula óssea, pele, tecido nervoso, e outros, e também são encontradas em grande concentração no sangue do cordão umbilical." (publicação citada pg. 33 grifei) 11. O Professor Titular de Cirurgia da Universidade Autônoma de Madrid, Dr. Damián Garcia-Olmo, em entrevista, realçou os avanços muito mais promissores da pesquisa científica com células-tronco adultas, do que com as embrionárias. 12. Principia por apresentar quadro real de tratamento de pacientes, curados da enfermidade de Crohn, verbis:

23

--Usted ha desarrollado uma investigación sobre el tratamiento de algunas enfermedades com células madre adultas, y parece haber obtenido buenos resultados. -- En el Departamento de Cirugía del Hospital Universitario La Paz de Madrid estamos desarrollando un estudio sobre el uso de células madre autólogas (del proprio individuo) para el tratamiento de las fístulas en la enfermedad de Crohn ( Una efermedad inflamatoria intestinal que aumenta rápidamente de incidencia en países desarrollados y que afecta sobre todo a jóvenes). La aparición de fístulas en la enfermedad de Crohn es una importante causa de sufrimientos por su gran resistencia a curar com los tratamientos clásicos. Por outra parte, a partit del año 2001, la terapia celular se esta introduciendo rápidamente en muchas ramas de la medicina, en especial desde la introducción del uso de células madre adultas. Esto permite el autotrasplante (trasplante autólogo) sin problemas de rechazo y obvia los graves problemas clínicos y éticos del uso de células madre de origen embrionario. Com el estudio que estamos desarrollando nos proponemos conecer si es posible y seguro utilizar células adultas en el tratamiento de las fístulas que aparecen en los pacientes com enfermedad de Crohn. --Damián García-Olmo: En determinados pacientes com esta enfermedad, realizamos una liposucción de 100 cc de grasa subdérmica. De esta grasa extraemos una pequeña cantidad de células madre que posteriormente son expandidas en cultivo (ex – vivo). Cuando han crecido y tenemos un número suficiente, se realiza la intervención quirúrgica de la fístula siguiendo los métodos habituales, pero ademais se inyectan en diferentes puntos del trayecto fistuloso entre 9 y 12 millones de estas células madre autólogas cultivadas. -- Cuál es la experiencia actual? --Desde que se obtuvieron todos los permisos legales y se comenzó la fase clínica, dos pacientes han completado el seguimiento programado, alcanzando temporalmente la curación completa de la enfermedad fistulosa. Se trataba de uma fístula recto-vaginal y de una fístula enterocutánea, ambas en mujeres jóvenes u con numerosas operaciones previas fracasadas por esa misma causa. Del seguimento de estos enfermos podemos deducir que: 1§ Por liposucción podemos obtener un suficiente número de células madre. 2§.- Estas células se reproducen bien en cultivo y entre 5 y 7 días se obtiene una cantidad suficiente para su uso clínico. 3§.- La inyección celular no produjo en ningún momento fenómenos de rechazo. 4§.- No se há producido un crecimiento celular incontrolado que suponga riesgo tumoral. 5§.- Los efectos reparadores de esta terapia parecen comenzar al cabo de 4-8 semanas de la inyección. 13. Depois, demonstra a superação do preconceito científico contra as células-tronco adultas, a partir do trabalho da Professora Catherine Verfaillie. De se ler, verbis: --En qúe punto esta actualmente la investigación com celulas madres adultas? --El año 2002 ha sido um año clave. Tanto que ha dado um vuelco a las expectativas sobre la investigación de usos potenciales de células madre. Hasta esse anõ era casi un dogma que las células madre adultas estaban tan diferenciadas que difícilmente serian útiles en terapia celular. Pero en julio de 2002 el grupo de investigación de la Universidade de Minnesota (USA) dirigido por la Profesora Catherine Verfallie publicó en la revista "Nature" (una de las mas prestigiosas de la literatura científica y extremadamente exigente a la hora de publicar resultados) un estudio en el que demonstraba que células madre obtenidas de la medula ósea

24

de los adultos podían diferenciarse en prácticamente todos los tipos celulares conocidos en el adulto y concluía diciendo que por tanto era la fuente de células ideal para el tratamiento de enfermidades degenerativas (Cf. Natures 2002 Jul 4;418(6893):41-49). En diciembre de ese mismo año 2002, científicos de la Universidad de UCLA (USA) tienen hallazgos similares utilizando células madre obtenidas por liposucción. En este trabajo consiguen obtener incluso auténticas neuronas partiendo de estas células que procesan de la grasa (similares a las usadas en nuestra investigaciones) (Cf. Molecular Biology of the cell. Decembrer 2002; 13: 4279-4295) 14. E concluiu o Professor García-Olmo, verbis: -- Son más idóneas para desarrollar terapias actualmente las células madre adultas que las embrionarias? Porque? --Que sepamos, en España, no hay ningún estudio clínico aprobado para el uso de células madre procedentes de embriones. Esto es actualmente inviable por los enormes riesgos potenciales que conlleva (tumores, problemas de rechazo, necesidad de terapia inmunosupresora, etc.). Sin embargo, en España, hay al menos tres programas de uso clínico de células madre adultas en patología humana que estan demonstrando que el uso de estas terapias es factble y seguro. Estos grupos van a presentar sus resultados durante un simposio que se celebrará en el Hospital Universitário La Paz el próximo 18 de marzo. --Sin entrar en consideraciones éticas sino con los resultados clínicos en la mano, cree que la presión de algunos sectores por potenciar y dotar de recursos la investigación com embriones obedece a una real expectativa de obtener resultados o se mezclan en el tema cuestiones diversa a las meramente científicas? --Lo que pienso es que la comunidad científica, después de muchos años de investigar sobre células madre embrionárias como la mejor fuente para la terapia celular, aún no há asimilado el cambio copernicano que se há producido en el conocimiento durante el año pasado. Tenga en cuenta que no hace ni un año desde la publicación de los trabajos de Catherine Verfaillie. Ademais los médicos clínicos tardamos bastante tiempo en asimilar lo que descubren los investigadores básicos." (mesma entrevista grifei) 15. Na Alemanha, no plano legislativo, há específica lei de proteção aos embriões, definido pelo artigo 8º, 1 como, verbis: “Por embrião nos termos desta lei entende-se, já a partir do momento da fusão nuclear, o óvulo humano fecundado e capaz de se desenvolver, assim como toda célula totipotente retirada de um embrião que, uma vez reunidas as condições necessárias, seja capaz de se dividir e se desenvolver num indivíduo.” (vide: Lei alemã, em anexo) 16. A propósito, faço anexar a esta petição inicial, importante registro do il. Subprocurador-Geral da República, Dr. Eugênio Aragão, posto nestes termos, verbis: “Atendendo a pedido de Vossa Excelência, encaminho, em anexo, a tradução livre do alemão para o português, de minha lavra, do “Gesetz zum Schutz von Embryonen” (ESchG) e do

25

“Gesetz zur Sicherstellung des Embryonenschutzes im Zusammenhang mit Einfuhr und Verwendung menschlicher embryonaler Stammzellen ” (StZG), correspondendo às leis alemãs sobre proteção de embriões humanos e sobre a importação e o uso de células-tronco, respectivamente. Coloquei em colchetes as adaptações de texto necessárias à melhor compreensão dos textos legais. No geral, na Alemanha é proibido o uso de embriões humanos para fins outros que o de provocar a gravidez (ESchG § 1, Abs. 1, S. 1). Por isso, não se prestam, embriões humanos, naquele país, à pesquisa científica. A lei de proteção a embriões humanos também proíbe expressamente a clonagem humana (ESchG, § 6, Abs. 1). Isso vale também para a chamada “clonagem terapêutica”, visto que, para os efeitos da ESchG, considera-se embrião humano toda célula totipotente, já no seu estágio mais primário, da fusão nuclear (§ 8, Abs. 1). Diferente é, pela legislação alemã, a situação de células-tronco embrionárias pluripotentes, ou seja, aquelas que não se podem desenvolver para virem a constituir um indivíduo. Estas podem ser usadas para fins de pesquisa científica. O problema está em garantir que tais células sejam apenas pluripotentes e não totipotentes. Com a promulgação da lei sobre importação e uso de células-tronco humanas (StZG), de 28 de junho de 2002, passou-se a admitir expressamente, mediante permissão específica, o uso de células-tronco embrionárias importadas, desde que tenham sido geradas antes de 1º de janeiro de 2002 e mantidas em cultura crioconservada (linhas de célula-tronco). Exige-se, ademais, que os embriões que lhes deram origem tenham sido gerados no contexto de uma fecundação medicinal extracorporal para fins de provocar gravidez e que em definitivo não se prestaram a tal finalidade por razões que não contemplem a qualidade dos embriões. Por fim, é proibida a aquisição onerosa dessas células-tronco importadas (cf. StZG, § 4, Abs. 2). Este é o estágio atual da legislação alemã, pelo que Vossa Excelência pode depreender das anexas traduções.” Claudio Fontelles Procurador-geral da República

26

ANEXO 6 - DECLARAÇÃO SOBRE A PRODUÇÃO E O USO CIENTÍFICO E TERAPÊUTICO DAS CÉLULAS ESTAMINAIS EMBRIONÁRIAS HUM ANAS PONTIFÍCIA ACADEMIA PARA A VIDA A finalidade deste documento é dar uma contribuição ao debate, em curso na literatura científica e ética e na opinião pública, sobre a produção e utilização das células estaminais embrionárias. De facto, considerando a importância cada vez maior que vai assumindo o debate acerca dos seus limites e licitude, impõe-se uma reflexão que coloque em evidência as suas implicações éticas. Na primeira parte, serão brevemente expostos os dados mais recentes fornecidos pela ciência sobre as células estaminais, e pela biotecnologia a propósito da sua produção e uso. Na segunda parte, serão evidenciados os problemas éticos mais relevantes levantados por estas novas descobertas e aplicações. Aspectos científicos Uma definição, vulgarmente aceite, de "célula estaminal" - embora alguns aspectos requeiram maior aprofundamento - é esta: uma célula que tem duas características: 1) a propriedade de uma auto-conservação ilimitada, ou seja, o poder de reproduzir-se durante muito tempo sem se diferenciar; 2) a capacidade de produzir células progenitoras de transição, com uma limitada capacidade proliferadora, das quais deriva uma variedade de linhas de células altamente diferenciadas (nervosas, musculares, hemáticas, etc). Há cerca de 30 anos que estas células têm constituído um amplo campo de pesquisa, quer em tecidos adultos[i], quer em tecidos embrionários, quer ainda na cultura in vitro de células estaminais embrionárias de cobaias[ii]. Mas, a atenção pública concentrou-se recentemente sobre elas por causa de um novo objectivo alcançado: a produção de células estaminais embrionárias humanas. As células estaminais embrionárias humanas A preparação de células estaminais embrionárias humanas (ES, ESc, Embryo Stem cells), hoje, implica[iii]: 1) a produção de embriões humanos e/ou a utilização dos embriões excedentes da fecundação in vitro ou crioconservados; 2) o desenvolvimento destes embriões até à fase inicial de blastócito; 3) a separação do embrioblasto ou massa celular interna (ICM) - o que implica a destruição do embrião; 4) a cultura destas células sobre uma camada nutriente de fibroblastos embrionários de ratos irradiados e num ambiente apropriado, onde se multipliquem e combinem até formar colónias; 5) a repetida subcultura destas colónias, que leva à formação de linhas celulares capazes de se multiplicarem indefinidamente, conservando as características de células estaminais (ES) durante meses e anos. Todavia, estas ES constituem apenas o ponto de partida para a preparação das linhas de células diferenciadas, ou seja, de células com as características próprias dos distintos tecidos (musculares, nervosos, epiteliais, hemáticos, germinais, etc). Os métodos para obtê-las ainda estão em fase de estudo[iv]; mas a inoculação das ES humanas em cobaias (ratos) ou a sua cultura in vitro em circunstâncias controladas até à sua combinação demonstrou que elas são capazes de dar origem a células diferenciadas que derivariam, numa evolução normal, dos três estratos embrionários: endoderma (epitélio intestinal), mesoderma (cartilagem, osso, músculo liso e estriado) e exoderma (epitélio neural, epitélio escamoso)[v].

27

Estes resultados abalaram não só o mundo científico e biotecnológico - particularmente médico e farmacológico -, mas também o mundo comercial e dos mass-média: grandes eram as esperanças de que as aplicações daí derivadas haveriam de abrir sendas novas e mais seguras para a terapia de graves doenças - sendas essas há muitos anos procuradas[vi]. Mas, sobretudo, foi abalado o mundo político[vii]. De modo particular nos Estados Unidos, onde o Congresso já há anos é contrário a sustentar com fundos federais pesquisas em que sejam destruídos embriões humanos, fizeram-se sentir, além de outras, as fortes pressões do NIH (National Institutes of Health) para obter fundos pelo menos para utilizar as células estaminais produzidas por grupos privados, e as recomendações feitas pelo NBAC (National Bioethics Advisory Committee), instituído pelo Governo Federal para o estudo do problema, para que sejam atribuídos fundos públicos não apenas para a pesquisa sobre células estaminais embrionárias, mas também para a sua produção; mais ainda, insiste-se para que seja rescindida de vez a proibição legal vigente relativa ao uso de fundos federais para a pesquisa sobre embriões humanos. Registam-se pressões na mesma direcção também na Inglaterra, Japão, Austrália. A clonação terapêutica Tornava-se claro que o uso terapêutico das ES, como tais, possuía riscos notáveis, sendo ele, como se constatou em experiências com ratos, causador de tumores. Assim, seria preciso preparar linhas especializadas de células diferenciadas conforme a necessidade; e o tempo requerido para obtê-las não era breve. Mas, ainda que fosse possível consegui-lo, seria muito difícil ter a certeza da absoluta ausência de células estaminais durante a inoculação ou a implantação terapêutica, com os respectivos riscos; além disso, ter-se-ia de recorrer a ulteriores tratamentos para superar a incompatibilidade imunológica. Por estes motivos, foram propostas três vias de "clonação terapêutica"[viii], capazes de preparar células estaminais embrionárias humanas pluripotenciadas com uma informação genética bem definida, para se obter depois a desejada diferenciação: 1. A substituição do núcleo dum oócito pelo núcleo de uma célula adulta dum determinado sujeito, seguindo-se a evolução do embrião até à fase de blastócito e a utilização da massa interna celular (ICM) para obter as ES e, a partir destas, as desejadas células diferenciadas. 2. A transferência de um núcleo duma célula de um determinado sujeito para um oócito de animal. Caso fosse bem sucedida a operação, deveria permitir - supõe-se - o desenvolvimento dum embrião humano, que seria utilizado como no caso anterior. 3. A reprogramação do núcleo da célula dum determinado sujeito pela fusão do citoplasma da ES com o carioplasma duma célula somática, obtendo-se assim um "cybrid". É uma possibilidade ainda em estudo. De qualquer forma, também esta via parece exigir a preparação prévia de ES a partir de embriões humanos. Na fase actual, a pesquisa científica está mais inclinada para a primeira via, mas é óbvio, como veremos, que as três soluções apontadas são inaceitáveis do ponto de vista moral. As células estaminais adultas

28

Ao longo destes trinta anos de estudos das células estaminais adultas (ASC - Adult Stem Cells), ficou claro que existem, em muitos tecidos adultos, células estaminais, mas capazes de dar origem somente a células próprias de um certo tecido. Isto é, não se pensava na possibilidade de uma nova programação delas. Nos anos mais recentes[ix], porém, descobriram-se também em vários tecidos humanos células estaminais pluripotenciadas - na medula óssea (HSCs), no cérebro (NSCs), no mesenquima (MSCs) de vários órgãos e no sangue do cordão umbilical (P/CB: Placental/Cord Blood) - isto é, células capazes de dar origem a outros tipos de células, na sua maioria hemáticas, musculares e nervosas. Descobriu-se como reconhecê-las, seleccioná-las, ajudá-las a desenvolver-se e levá-las a formar diversos tipos de células maturas através de factores de crescimento e outras proteínas regularizadoras. Aliás, foi já percorrido um notável caminho no campo experimental, aplicando inclusive os métodos mais avançados de engenharia genética e de biologia molecular para a análise do programa genético que opera nas células estaminais[x], e para a comutação de genes desejados em células estaminais ou progenitoras que, implantadas, sejam capazes de devolver a tecidos doentes as suas funções específicas[xi]. Basta dizer, apoiados nos textos transcritos, que, no homem, as células estaminais da medula óssea, donde se formam todas as várias linhas de células hemáticas, têm como sinal identificador a molécula CD34; e que, depois de purificadas, são capazes de reconstituir toda a população hemática em pacientes que recebem doses ablativas de radiações e de quimioterapia, e isso numa velocidade proporcional à quantidade de células usadas. Além disso, há já indícios de como guiar o desenvolvimento de células estaminais nervosas (NSCs) utilizando diversas proteínas - tais como a neuroregulina e a proteína 2 hosteomorfógena (BMP2, Bone Morphogenetic Protein 2) - que são capazes de encaminhar as NSCs para se tornarem neurões ou glúten (células neuronais de apoio, produtoras de mielina) ou mesmo músculo liso. A satisfação, embora prudente, resultante de muitos dos trabalhos citados, é um índice das grandes promessas que as "células estaminais adultas" reservam para uma terapia eficaz de muitas patologias. Assim, D. J. Watt e G. E. Jones afirmam: "As células estaminais musculares, seja da linha mioblástica embrionária seja da adulta, podem tornar-se células da maior importância para tecidos distintos do original, e ser a chave de futuras terapias, inclusive para doenças diversas das de origem miógena" (p. 93); J. A. Nolta e D. B. Kohn, ressaltam: "Os progressos no uso da comutação genética nas células estaminais hematopoéticas permitiu iniciar experiências clínicas. As informações assim obtidas, orientarão avanços futuros. Em última análise, a terapia genética poderá permitir o tratamento de doenças genéticas e adquiridas, sem as complicações dos transplantes de células alogénicas" (p. 460); e D. L. Clarke e J. Frisén confirmam: "Estes estudos sugerem que as células estaminais, nos diferentes tecidos adultos, podem ser muito mais semelhantes do que até hoje se pensava às células embrionárias humanas, chegando a ter em alguns casos um repertório muito parecido" e "demonstram que as células nervosas adultas possuem uma ampla capacidade de desenvolvimento, e são potencialmente aptas a ser usadas para produzir uma variedade de tipos celulares para transplante em diversas doenças". Todos estes progressos e os resultados já alcançados no campo das células estaminais adultas (ASC) deixam entrever não só a sua grande plasticidade, mas também uma ampla possibilidade de prestações, presumivelmente não distinta das utilizações das células estaminais embrionárias (ES), visto que a plasticidade depende em grande parte de uma informação genética, que pode ser reprogramada. Evidentemente, não é possível ainda confrontar os resultados terapêuticos real e possivelmente alcançados utilizando as células estaminais embrionárias e as células

29

estaminais adultas. Quanto a estas, estão já em curso, em várias firmas farmacêuticas, experimentações clínicas[xii], que deixam prever bons resultados e abrem sérias esperanças num futuro mais ou menos próximo. Quanto às células estaminais embrionárias, embora várias tentativas experimentais tenham dado sinais positivos[xiii], a sua aplicação no campo clínico - devido precisamente aos graves problemas éticos e legais conexos - requer uma séria ponderação e um grande sentido de responsabilidade face à dignidade de todo o ser humano. Problemas éticos Vista a índole do documento, formulam-se brevemente os problemas éticos essenciais que estas novas tecnologias implicam, indicando a resposta que resulta duma atenta consideração do sujeito humano desde o momento da sua concepção - consideração essa que está na base da posição afirmada e proposta pelo Magistério da Igreja. O primeiro problema ético, que é fundamental, pode ser formulado assim: "É moralmente lícito produzir e/ou utilizar embriões humanos vivos para a preparação de ES"? "A resposta é negativa", pelas seguintes razões: 1. Partindo duma completa análise biológica, o embrião humano vivo é, a partir da fusão dos gametas, um sujeito humano com uma identidade bem definida, que começa, a partir daquele instante, o seu próprio desenvolvimento coordenado, contínuo e gradual, de tal forma que, em nenhuma etapa posterior, se pode considerar como um simples aglomerado de células[xiv]. 2. Consequentemente, como "indivíduo humano", tem direito à sua própria vida; e, por isso, toda a intervenção que não seja em benefício do próprio embrião, constitui um acto que viola este direito. A teologia moral sempre ensinou que, no caso do "jus certum tertii", o sistema do probabilismo não é aplicável[xv]. 3. Assim, a ablação da massa celular interna (ICM) do blastócito, que lesiona grave e irremediavelmente o embrião humano, interrompendo a sua evolução, é um acto gravemente imoral e, portanto, gravemente ilícito. 4. Nenhum fim considerado bom, como seja o uso das células estaminais obtidas a partir deles para a preparação doutras células diferenciadas em ordem a procedimentos terapêuticos há muito esperados, pode justificar tal intervenção. Um fim bom não faz boa uma acção que, em si mesma, é má-. 5. Para um católico, tal posição está confirmada pelo Magistério explícito da Igreja que, na encíclica Evangelium vitae - referindo-se já à Instrução Donum vitae da Congregação para a Doutrina da Fé -, afirma: "A Igreja sempre ensinou - e ensina - que tem de ser garantido ao fruto da geração humana, desde o primeiro instante da sua existência, o respeito incondicional que é moralmente devido ao ser humano na sua totalidade e unidade corporal e espiritual: "O ser humano deve ser respeitado e tratado como uma pessoa desde a sua concepção e, por isso, desde esse mesmo momento, devem-lhe ser reconhecidos os direitos da pessoa, entre os quais, e primeiro de todos, o direito inviolável de cada ser humano inocente à vida"" (n. 60)[xvi].

30

O segundo problema ético pode ser formulado assim: "É moralmente lícito efectuar a chamada "clonação terapêutica" através da produção de embriões humanos clonados e a sua posterior destruição para a produção de ES"? "A resposta é negativa", pela razão seguinte: Todo o tipo de clonação terapêutica, que implique a produção de embriões humanos e a posterior destruição dos mesmos com o fim de obter as suas células estaminais, é ilícita; cai-se no mesmo problema ético anteriormente exposto, que não pode ter senão uma resposta negativa[xvii]. O terceiro problema ético pode-se formular assim: "É moralmente lícito utilizar as ES, e as células diferenciadas delas obtidas, que sejam eventualmente fornecidas por outros pesquisadores ou encontradas à venda"? "A resposta é negativa", porque, para além de compartilhar, formalmente ou não, a intenção moralmente ilícita do agente principal, no caso em exame dá-se a cooperação material próxima na produção e manipulação de embriões humanos por parte do produtor ou fornecedor. Em conclusão, resultam evidentes a seriedade e a gravidade do problema ético levantado pela vontade de estender ao campo de pesquisa humana a produção e/ou o uso de embriões humanos, mesmo por motivos humanitários. A possibilidade, já comprovada, de utilizar células estaminais adultas para conseguir os mesmos objectivos pretendidos com as células estaminais embrionárias - apesar de se exigirem ainda muitos passos, em ambas as áreas aliás, até se obter resultados claros e definitivos - indica-a como a via mais razoável e mais humana a percorrer para um progresso correcto e válido neste novo campo que se abre à pesquisa e a promissoras aplicações terapêuticas. Estas representam, sem dúvida, uma grande esperança para um número considerável de pessoas doentes. Prof. Juan de Dios Vial Correa Presidente Ex..mo e Rev.mo Mons. Elio Sgreccia Vice-Presidente Vaticano, 25 Agosto 2000. Notas bibliográficas [i]. Cf. M. LOEFFLER, C.S. POTTEN, Stem cells and cellular pedigrees - a conceptual introduction, em C. S. POTTEN (ed), Stem Cells, Academic Press, London 1997, 1-27; D. Van der KOOY, S. WEISS, Why Stem Cells? Science 2000, 287, 1439-1441. [ii]. Cf. T. NAKANO, H. KODAMA, T. HONJO, Generation of lymphohematopoietic cells from embryonic stem cells in culture, Science 1994, 265, 1098-1101; G. KELLER, In vitro differentiation of embryonic stem cells, Current Opinion in Cell Biology 1995, 7, 862-869; S.

31

ROBERTSON, M. KENNEDY, G. KELLER, Hematopoietic commitment during embryogenesis, Annals of the New York Academy of Sciences 1999, 872, 9-16. [iii]. Cf. J. A. THOMSON, J. ITSKOVITZ-ELDOR, S. S. SHAPIRO e outros, Embryonic stem cells lines derived from human blastocysts, Science 1998, 282, 1145-1147; G. VOGEL, Harnessing the power of stem cells, Science 1999, 283, 1432-1434. [iv]. Cf. F. M. WATT, B. L. M. HOGAN, Out of Eden: stem cells and their niches, Science 2000, 287, 1427-1430. [v]. Cf. J. A. THOMSON, J. ITSKOVITZ-ELDOR, S. S. SHAPIRO e outros, obra cit. [vi]. Cf. U. S. CONGRESS, OFFICE OF TECHNOLOGY ASSESSMENT, Neural Grafting: Repairing the Brain and Spinal Cord, OTA-BA-462, Washington, DC, U. S. Government Printing Office, 1990; A. McLAREN, Stem cells: golden opportunities with ethical baggage, Science 2000, 288, 1778. [vii]. Cf. E. MARSHALL, A versatile cell line raises scientific hopes, legal questions, Science 1998, 282, 1014-1015; J. GEARHART, New potential for human embryonic stem cells, Ibidem, 1061-1062; E. MARSHALL, Britain urged to expand embryo studies, Ibidem, 2167-2168; 73 SCIENTISTS, Science over politics, Science 1999, 283, 1849-1850; E. MARSHALL, Ethicists back stem cell research, White House treads cautiously, Science 1999, 285. 502; H. T. SHAPIRO, Ethical dilemmas and stem cell research, Ibidem, 2065; G. VOGEL, NIH sets rules for funding embryonic stem cell research, Science 1999, 286, 2050; G. KELLER, H. R. SNODGRASS, Human embryonic stem cells: the future is now, Nature Medicine 1999, 5, 151.152; G. J. ANNAS, A. CAPLAN, S. ELIAS, Stem cell politics, ethics and medical progress, Ibidem, 1339-1341; G. VOGEL, Company gets to cloned human embryos, Science 2000, 287, 559; D. NORMILE, Report would open up research in Japan, Ibidem, 949; M. S. FRANKEL, In search of stem cell policy, Ibidem, 1397; D. PERRY, Patients voices: the powerful sound in the stem cell debate, Ibidem, 1423; N. LENOIR, Europe confronts the embryonic stem cell research challenge, Ibidem, 1425-1427; F. E. YOUNG, A time for restraint, Ibidem, 1424; EDITORIAL, Stem cells, Nature Medicine 2000, 6, 231. [viii]. D. DAVOR, J. GEARHART, Putting stem cells to work, Science 1999, 283, 1468-1470. [ix]. Cf. C. S. POTTEN (ed), Stem Cells, Academic Press, London 1997, pp. 474; D. ORLIC, T. A. BOCK, L. KANZ, Hemopoietic Stem Cells: Biology and Transplantation, Ann. N. Y. Acad. Sciences, vol. 872, New York 1999, pp. 405; M. F. PITTENGER, A. M. MACKAY, S. C. BECK e outros, Multilineage potential of adult human mesenchymal stem cells, Science 1999, 284, 143-147; C. R. R. BJORNSON, R. L. RIETZE, B. A. REYNOLDS e outros, Turning brain into blood: a hematopoietic fate adopted by adult neural stem cells in vivo, Science 1999, 283, 534-536; V. OUREDNIK, J. OUREDNIK, K. I. PARK, E. Y. SNYDER, Neural Stem cells - a versatile tool for cell replacement and gene therapy in the central nervous system, Clinical Genetics 1999, 56, 267-278; I. LEMISCHKA, Searching for stem cell regulatory molecules: Some general thoughts and possible approaches, Ann. N. Y. Acad. Sci. 1999, 872, 274-288; H. H. GAGE, Mammalian neural stem cells, Science 2000, 287, 1433-1438; D. L. CLARKE, C. B. JOHANSSON, J. FRISEN e outros, Generalized potential

32

of adult neural stem cells, Science 2000, 288, 1660-1663; G. VOGEL, Brain cells reveal surprising versatility, Ibidem, 1559-1561. [x]. Cf. R. L. PHILLIPS, R. E. ERNST, I. R. LEMISCHKA, e outros, The genetic program of hematopoietic stem cells, Science 2000, 288, 1635-1640. [xi]. Cf. D. J. WATT, G. E. JONES, Skeletal muscle stem cells: function and potential role in therapy, em C. S. POTTEN, Stem Cells, cit., 75-98; J. A. NOLTA, D. B. KOHN, Hematopoietic stem cells for gene therapy, Ibidem, 447-460; Y. REISNER, E. BACHAR-LUSTIG, H-W. LI e outros, The role of megadose CD34+ progenitor cells in the treatment of leukemia patients without a matched donor and in tolerance induction for organ transplantation, Ann. N. Y. Acad. Sci 1999, 872, 336-350; D. W. EMERY, G. STAMATOYANNOPOULOS, Stem cell gene therapy for the ß-chain hemoglobinopathies, Ibidem, 94-108; M. GRIFFITH, R. OSBORNE, R. MUNGER, Functional human corneal equivalents constructed from cell lines, Science 1999, 286, 2169-2172; N. S. ROY, S. WANG, L. JIANG e outros, In vitro neurogenesis by progenitor cells isolated from the adult hippocampus, Nature Medicine 2000, 6, 271-277; M. NOBLE, Can neural stem cells be used as therapeutic vehicles in the treatment of brai tumors?, Ibidem, 369-370; I. L. WEISSMAN, Translating stem and progenitor cell biology to the clinic: barriers and opportunities, Science 2000, 287, 1442-1446; P. SERUP, Panning for pancreatic stem cells, Nature Genetics 2000, 25, 134-135. [xii].E. MARSHALL, The business of Stem Cells, Science 2000, 287, 1419-1421. [xiii]. Cf. O. BRUSTLE, K. N. JONES, R. D. LEARISH e outros, Embryonic stem cell-derived glial precursors: a source of myelinating transplants, Science 1999, 285, 754-756; J. W. McDONALD, X-Z LIU, Y. QU e outros, Transplanted embryonic stem cells survive, differentiate and promote recovery in injured rat spinal cord, Nature Medicine 1999, 5, 1410-1412. [xiv].Cf. A. SERRA, R. COLOMBO, Identity and Status of the Human Embryo: the Contribution of the Biology, em PONTIFICIA ACADEMIA PER LA VITA, Identity and Statute of the Human Embryo, Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano 1998, pp.106-158. [xv]. Cf. I. CARRASCO de PAULA, Il rispetto dovuto all'embrione umano: prospettiva storico-dottrinale, em Id., pp. 9-33; R. LUCAS LUCAS, Statuto antropologico dell'embrione umano, in Id., pp.159-185; M. COZZOLI, L'embrione umano: aspetti etico normativi, in Id., pp. 237- 273; L. EUSEBI, La tutela dell'embrione umano: profili giuridici, em Id., pp. 274-286. [xvi]. JOÃO PAULO II, Carta Enc. "Evangelium vitae" (25 de Março de 1995), Acta Apostolicae Sedis 1995, 87,401-522; cf. também CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Instrução sobre o respeito à vida humana nascente e a dignidade da procriação "Donum vitae" (22 de Fevereiro de 1987), Acta Apostolicae Sedis 1988, 80, 70-102. [xvii]. Cf. CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, obra cit., I, n. 6; C. B. COHEN (ed), Special Issue: Ethics and the cloning of human embryos, Kennedy Institute of Ethics Journal 1994, n. 4, 187-282; H. T. SHAPIRO, Ethical and policy issues of human cloning, Science 1997, 277, 195-196; M. L. DI PIETRO, Dalla clonazione animale alla clonazione

33

dell'uomo?, Medicina e Morale 1997, n. 6, 1099-2005; A. SERRA, Verso la clonazione dell'uomo? Una nuova frontiera della scienza, La Civiltà Cattolica 1998 I, 224-234; Id., La clonazione umana in prospettiva "sapienziale", Ibid., 329-339.

34

ANEXO 7 - CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANO S Pacto de San José Adotada e aberta à assinatura na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, em San José de Costa Rica, em 22 de novembro de 1969. PREÂMBULO Os Estados Americanos signatários da presente Convenção, Reafirmando seu propósito de consolidar neste Continente, dentro do quadro das instituições democráticas, um regime de liberdade pessoal e de justiça social, fundado no respeito dos direitos essenciais do homem; Reconhecendo que os direitos essenciais do homem não derivam do fato de ser ele nacional de determinado Estado, mas sim do fato de ter como fundamento os atributos da pessoa humana, razão por que justificam uma proteção internacional, de natureza convencional, coadjuvante ou complementar da que oferece o direito interno dos Estados americanos; Considerando que esses princípios foram consagrados na Carta da Organização dos Estados Americanos, na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e na Declaração Universal dos Direitos do Homem, e que foram reafirmados e desenvolvidos em outros instrumentos internacionais, tanto em âmbito mundial como regional; Reiterando que, de acordo com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, só pode ser realizado o ideal do ser humano livre, isento do temor e da miséria, se forem criadas condições que permitam a cada pessoa gozar dos seus direitos econômicos, sociais e culturais, bem como dos seus direitos civis e políticos; e Considerando que a Terceira Conferência Interamericana Extraordinária (Buenos Aires, 1967) aprovou a incorporação à própria Carta da Organização de normas mais amplas sobre direitos econômicos, sociais e educacionais e resolveu que uma convenção interamericana sobre direitos humanos determinasse a estrutura, competência e processo dos órgãos encarregados dessa matéria; Convieram no seguinte: PARTE I DEVERES DOS ESTADOS E DIREITOS PROTEGIDOS Capítulo I ENUMERAÇÃO DE DEVERES Artigo 1º - Obrigação de respeitar os direitos 1. Os Estados Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita a sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivo de raça,

35

cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social. 2. Para os efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano. Artigo 2º - Dever de adotar disposições de direito interno Se o exercício dos direitos e liberdades mencionados no artigo 1º ainda não estiver garantido por disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados Partes comprometem-se a adotar, de acordo com as suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos e liberdades. Capítulo II DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS Artigo 3º - Direito ao reconhecimento da personalidade jurídica. Toda pessoa tem direito ao reconhecimento de sua personalidade jurídica. Artigo 4º - Direito à vida 1. Toda pessoa tem direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente. 2. Nos países que não houverem abolido a pena de morte, esta só poderá ser imposta pelos delitos mais graves, em cumprimento de sentença final de tribunal competente e em conformidade com lei que estabeleça tal pena, promulgada antes de haver o delito sido cometido. Tampouco se estenderá sua aplicação a delitos aos quais não se aplique atualmente. 3. Não se pode restabelecer a pena de morte nos Estados que a hajam abolido. 4. Em nenhum caso pode a pena de morte ser aplicada por delitos políticos nem por delitos comuns conexos com delitos políticos. 5. Não se deve impor a pena de morte a pessoa que, no momento da perpetração do delito, for menor de dezoito anos, ou maior de setenta, nem aplicá-la a mulher em estado de gravidez. 6. Toda pessoa condenada à morte tem direito a solicitar anistia, indulto ou comutação da pena, os quais podem ser concedidos em todos os casos. Não se pode executar a pena de morte enquanto o pedido estiver pendente de decisão ante a autoridade competente. Artigo 5º - Direito à integridade pessoal 1. Toda pessoa tem direito de que se respeite sua integridade física, psíquica e moral. 2. Ninguém deve ser submetido a torturas nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com respeito devido à dignidade inerente ao ser humano.

36

3. A pena não pode passar da pessoa do delinqüente. 4. Os processados devem ficar separados dos condenados, salvo em circunstâncias excepcionais, e ser submetidos a tratamento adequado à sua condição de pessoas não condenadas. 5. Os menores, quando puderem ser processados, devem ser separados dos adultos e conduzidos a tribunal especializado, com a maior rapidez possível, para seu tratamento. 6. As penas privativas da liberdade devem ter por finalidade essencial a reforma e a readaptação social dos condenados. Artigo 6º - Proibição da escravidão e da servidão 1. Ninguém pode ser submetido a escravidão ou a servidão, e tanto estas como o tráfico de escravos e o tráfico de mulheres são proibidos em todas as suas formas. 2. Ninguém deve ser constrangido a executar trabalho forçado ou obrigatório. Nos países em que se prescreve, para certos delitos, pena privativa da liberdade acompanhada de trabalhos forçados, esta disposição não pode ser interpretada no sentido de que proíbe o cumprimento da dita pena, imposta por juiz ou tribunal competente. O trabalho forçado não deve afetar a dignidade nem a capacidade física e intelectual do recluso. 3. Não constituem trabalhos forçados ou obrigatórios para os efeitos deste artigo: a) os trabalhos ou serviços normalmente exigidos de pessoa reclusa em cumprimento de sentença ou resolução formal expedida pela autoridade judiciária competente. Tais trabalhos ou serviços devem ser executados sob a vigilância e controle das autoridades públicas, e os indivíduos que os executarem não devem ser postos à disposição de particulares, companhias ou pessoas jurídicas de caráter privado; b) o serviço militar e, nos países onde se admite a isenção por motivos de consciência, o serviço nacional que a lei estabelecer em lugar daquele; c) o serviço imposto em casos de perigo ou calamidade que ameace a existência ou o bem-estar da comunidade; e d) o trabalho ou serviço que faça parte das obrigações cívicas normais. Artigo 7º - Direito à liberdade pessoal 1. Toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais. 2. Ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo pelas causas e nas condições previamente fixadas pelas constituições políticas dos Estados Partes ou pelas leis de acordo com elas promulgadas. 3. Ninguém pode ser submetido a detenção ou encarceramento arbitrários. 4. Toda pessoa detida ou retida deve ser informada das razões da sua detenção e notificada, sem demora, da acusação ou acusações formuladas contra ela. 5. Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o

37

processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo. 6. Toda pessoa privada da liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente, a fim de que este decida, sem demora, sobre a legalidade de sua prisão ou detenção e ordene sua soltura se a prisão ou a detenção forem ilegais. Nos Estados Partes cujas leis prevêem que toda pessoa que se vir ameaçada de ser privada de sua liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente a fim de que este decida sobre a legalidade de tal ameaça, tal recurso não pode ser restringido nem abolido. O recurso pode ser interposto pela própria pessoa ou por outra pessoa. 7. Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar. Artigo 8º - Garantias judiciais 1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. 2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: a) direito do acusado de ser assistido gratuitamente por tradutor ou intérprete, se não compreender ou não falar o idioma do juízo ou tribunal; b) comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada; c) concessão ao acusado do tempo e dos meios adequados para a preparação de sua defesa; d) direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor; e) direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio nem nomear defensor dentro do prazo estabelecido pela lei; f) direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos; g) direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada; e h) direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior. 3. A confissão do acusado só é válida se feita sem coação de nenhuma natureza. 4. O acusado absolvido por sentença transitada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos.

38

5. O processo penal deve ser público, salvo no que for necessário para preservar os interesses da justiça. Artigo 9º - Princípio da legalidade e da retroatividade Ninguém pode ser condenado por ações ou omissões que, no momento em que forem cometidas, não sejam delituosas, de acordo com o direito aplicável. Tampouco se pode impor pena mais grave que a aplicável no momento da perpetração do delito. Se depois da perpetração do delito a lei dispuser a imposição de pena mais leve, o delinqüente será por isso beneficiado. Artigo 10º - Direito a indenização Toda pessoa tem direito de ser indenizada conforme a lei, no caso de haver sido condenada em sentença passada em julgado, por erro judiciário. Artigo 11º - Proteção da honra e da dignidade 1. Toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade. 2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação. 3. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas. Artigo 12º - Liberdade de consciência e de religião 1. Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião. Esse direito implica a liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crença, bem como a liberdade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em público como em privado. 2. Ninguém pode ser objeto de medidas restritivas que possam limitar sua liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças. 3. A liberdade de manifestar a própria religião e as próprias crenças está sujeita unicamente às limitações prescritas pela lei e que sejam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos ou liberdades das demais pessoas. 4. Os pais, e quando for o caso os tutores, têm direito a que seus filhos ou pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja acorde com suas próprias convicções. Artigo 13º - Liberdade de pensamento e de expressão 1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e idéias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha. 2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei e ser necessárias para assegurar:

39

a) o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; ou b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas. 3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de freqüências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de idéias e opiniões. 4. A lei pode submeter os espetáculos públicos a censura prévia, com o objetivo exclusivo de regular o acesso a eles, para proteção moral da infância e da adolescência, sem prejuízo do disposto no inciso 2. 5. A lei deve proibir toda a propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência. Artigo 14º - Direito de retificação ou resposta 1. Toda pessoa atingida por informações inexatas ou ofensivas emitidas em seu prejuízo por meios de difusão legalmente regulamentados e que se dirijam ao público em geral tem direito a fazer, pelo mesmo órgão de difusão, sua retificação ou resposta, nas condições que estabeleça a lei. 2. Em nenhum caso a retificação ou a resposta eximirão das outras responsabilidades legais em que se houver incorrido. 3. Para a efetiva proteção da honra e da reputação, toda publicação ou empresa jornalística, cinematográfica, de rádio ou televisão, deve ter uma pessoa responsável que não seja protegida por imunidades nem goze de foro especial. Artigo 15º - Direito de reunião É reconhecido o direito de reunião pacífica e sem armas. O exercício de tal direito só pode estar sujeito às restrições previstas pela lei e que sejam necessárias, em uma sociedade democrática, no interesse da segurança nacional, da segurança ou da ordem públicas, ou para proteger a saúde ou a moral públicas ou os direitos e liberdades das demais pessoas. Artigo 16º - Liberdade de associação 1. Todas as pessoas têm o direito de associar-se livremente com fins ideológicos, religiosos, políticos, econômicos, trabalhistas, sociais, culturais, desportivos ou de qualquer outra natureza. 2. O exercício de tal direito só pode estar sujeito às restrições previstas pela lei que sejam necessárias, em uma sociedade democrática, no interesse da segurança nacional, da segurança ou da ordem públicas, ou para proteger a saúde ou a moral públicas ou os direitos e liberdades das demais pessoas.

40

3. O disposto neste artigo não impede a imposição de restrições legais, e mesmo a privação do exercício do direito de associação, aos membros das forças armadas e da polícia. Artigo 17º - Proteção da família 1. A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e deve ser protegida pela sociedade e pelo Estado. 2. É reconhecido o direito do homem e da mulher de contraírem casamento e de fundarem uma família, se tiverem a idade e as condições para isso exigidas pelas leis internas, na medida em que não afetem estas o princípio da não-discriminação estabelecido nesta Convenção. 3. O casamento não pode ser celebrado sem o livre e pleno consentimento dos contraentes. 4. Os Estados Partes devem tomar medidas apropriadas no sentido de assegurar a igualdade de direitos e a adequada equivalência de responsabilidades dos cônjuges quanto ao casamento, durante o casamento e em caso de dissolução do mesmo. Em caso de dissolução, serão adotadas disposições que assegurem a proteção necessária aos filhos, com base unicamente no interesse e conveniência dos mesmos. 5. A lei deve reconhecer iguais direitos tanto aos filhos nascidos fora do casamento como aos nascidos dentro do casamento. Artigo 18º - Direito ao nome Toda pessoa tem direito a um prenome e aos nomes de seus pais ou ao de um destes. A lei deve regular a forma de assegurar a todos esse direito, mediante nomes fictícios, se for necessário. Artigo 19º - Direitos da criança Toda criança tem direito às medidas de proteção que a sua condição de menor requer por parte da sua família, da sociedade e do Estado. Artigo 20º - Direito à nacionalidade 1. Toda pessoa tem direito a uma nacionalidade. 2. Toda pessoa tem direito à nacionalidade do Estado em cujo território houver nascido, se não tiver direito a outra. 3. A ninguém se deve privar arbitrariamente de sua nacionalidade nem do direito de mudá-la. Artigo 21º - Direito à propriedade privada 1. Toda pessoa tem direito ao uso e gozo dos seus bens. A lei pode subordinar esse uso e gozo ao interesse social.

41

2. Nenhuma pessoa pode ser privada de seus bens, salvo mediante o pagamento de indenização justa, por motivo de utilidade pública ou de interesse social e nos casos e na forma estabelecidos pela lei. 3. Tanto a usura como qualquer outra forma de exploração do homem pelo homem devem ser reprimidas pela lei. Artigo 22º - Direito de circulação e de residência 1. Toda pessoa que se ache legalmente no território de um Estado tem direito de circular nele e de nele residir em conformidade com as disposições legais. 2. Toda pessoa tem direito de sair livremente de qualquer país, inclusive do próprio. 3. O exercício dos direitos acima mencionados não pode ser restringido senão em virtude de lei, na medida indispensável, em uma sociedade democrática, para prevenir infrações penais ou para proteger a segurança nacional, a segurança ou a ordem públicas, a moral ou a saúde públicas, ou os direitos e liberdades das demais pessoas. 4. O exercício dos direitos reconhecidos no inciso 1 pode também ser restringido pela lei, em zonas determinadas, por motivo de interesse público. 5. Ninguém pode ser expulso do território do Estado do qual for nacional nem ser privado do direito de nele entrar. 6. O estrangeiro que se ache legalmente no território de um Estado Parte nesta Convenção só poderá dele ser expulso em cumprimento de decisão adotada de acordo com a lei. 7. Toda pessoa tem o direito de buscar e receber asilo em território estrangeiro, em caso de perseguição por delitos políticos ou comuns conexos com delitos políticos e de acordo com a legislação de cada Estado e com as convenções internacionais. 8. Em nenhum caso o estrangeiro pode ser expulso ou entregue a outro país, seja ou não de origem, onde seu direito à vida ou à liberdade pessoal esteja em risco de violação por causa da sua raça, nacionalidade, religião, condição social ou de suas opiniões políticas. 9. É proibida a expulsão coletiva de estrangeiros. Artigo 23º - Direitos políticos 1. Todos os cidadãos devem gozar dos seguintes direitos e oportunidades: a) de participar na direção dos assuntos públicos, diretamente ou por meio de representantes livremente eleitos; b) de votar e ser eleitos em eleições periódicas autênticas, realizadas por sufrágio universal e igual e por voto secreto que garanta a livre expressão da vontade dos eleitores; e c) de ter acesso, em condições gerais de igualdade, às funções públicas de seu país. 2. A lei pode regular o exercício dos direitos e oportunidades a que ser refere o inciso anterior, exclusivamente por motivos de idade, nacionalidade, residência, idioma, instrução, capacidade civil ou mental, ou condenação, por juiz competente, em processo penal. Artigo 24º - Igualdade perante a lei

42

Todas as pessoas são iguais perante a lei. Por conseguinte, têm direito, sem discriminação, a igual proteção da lei. Artigo 25º - Proteção judicial 1. Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais. 2. Os Estados Partes comprometem-se: a) a assegurar que a autoridade competente prevista pelo sistema legal do Estado decida sobre os direitos de toda pessoa que interpuser tal recurso; b) a desenvolver as possibilidades de recurso judicial; e c) a assegurar o cumprimento, pelas autoridades competentes, de toda decisão em que se tenha considerado procedente o recurso. DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS Artigo 26º - Desenvolvimento progressivo Os Estados Partes comprometem-se a adotar providências, tanto no âmbito interno como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados. Capítulo IV SUSPENSÃO DE GARANTIAS, INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO Artigo 27º - Suspensão de garantias 1. Em caso de guerra, de perigo público, ou de outra emergência que ameaçe a independência ou segurança do Estado Parte, este poderá adotar disposições que, na medida e pelo tempo estritamente limitados às exigências da situação, suspendam as obrigações contraídas em virtude desta Convenção, desde que tais disposições não sejam incompatíveis com as demais obrigações que lhe impõe o Direito Internacional e não encerrem discriminação alguma fundada em motivos de raça, cor, sexo, idioma, religião ou origem social. 2. A disposição precedente não autoriza a suspensão dos direitos determinados nos seguintes artigos: 3º (Direito ao reconhecimento da personalidade jurídica), 4º (Direito à vida), 5º (Direito à integridade pessoal), 6º (Proibição da escravidão e servidão), 9º (Princípio da

43

legalidade e da retroatividade), 12º (Liberdade de consciência e de religião), 17º (Proteção da família), 18º (Direito ao nome), 19º (Direitos da criança), 20º (Direito à nacionalidade), e 23º (Direitos políticos), nem das garantias indispensáveis para a proteção de tais direitos. 3. Todo Estado Parte que fizer uso do direito de suspensão deverá informar imediatamente os outros Estados Partes na presente Convenção, por intermédio do Secretário-Geral da Organização dos Estados Americanos, das disposições cuja aplicação haja suspendido, dos motivos determinantes da suspensão e da data em que haja dado por terminada tal suspensão. Artigo 28º - Cláusula federal 1. Quando se tratar de um Estado Parte constituído como Estado federal, o governo nacional do aludido Estado Parte cumprirá todas as disposições da presente Convenção, relacionadas com as matérias sobre as quais exerce competência legislativa e judicial. 2. No tocante às disposições relativas às matérias que correspondem à competência das entidades componentes da federação, o governo nacional deve tomar imediatamente as medidas pertinentes, em conformidade com a sua constituição e suas leis, a fim de que as autoridades competentes das referidas entidades possam adotar as disposições cabíveis para o cumprimento desta Convenção. 3. Quando dois ou mais Estados Partes decidirem constituir entre eles uma federação ou outro tipo de associação, diligenciarão no sentido de que o pacto comunitário respectivo contenha as disposições necessárias para que continuem sendo efetivas no novo Estado assim organizado as normas da presente Convenção. Artigo 29º - Normas de interpretação Nenhuma disposição desta Convenção pode ser interpretada no sentido de: a) permitir a qualquer dos Estados Partes, grupo ou pessoa, suprimir o gozo e exercício dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção ou limitá-los em maior medida do que a nela prevista; b) limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos de acordo com as leis de qualquer dos Estados Partes ou de acordo com outra convenção em que seja parte um dos referidos Estados; c) excluir outros direitos e garantias que são inerentes ao ser humano ou que decorrem da forma democrática representativa de governo; e d) excluir ou limitar o efeito que possam produzir a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e outros atos internacionais da mesma natureza. Artigo 30º - Alcance das restrições As restrições permitidas, de acordo com esta Convenção, ao gozo e exercício dos direitos e liberdades nela reconhecidos, não podem ser aplicadas senão de acordo com leis que forem promulgadas por motivo de interesse geral e com o propósito para o qual houverem sido estabelecidas. Artigo 31º - Reconhecimento de outros direitos

44

Poderão ser incluídos no regime de proteção desta Convenção outros direitos e liberdades que forem reconhecidos de acordo com os processos estabelecidos nos artigos 69º e 70º. Capítulo V DEVERES DAS PESSOAS Artigo 32º - Correlação entre deveres e direitos 1. Toda pessoa tem deveres para com a família, a comunidade e a humanidade. 2. Os direitos de cada pessoa são limitados pelos direitos dos demais, pela segurança de todos e pelas justas exigências do bem comum, em uma sociedade democrática. PARTE II MEIOS DE PROTEÇÃO Capítulo VI ÓRGÃOS COMPETENTES Artigo 33º São competentes para conhecer dos assuntos relacionados com o cumprimento dos compromissos assumidos pelos Estados Partes nesta Convenção: a) a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, doravante denominada a Comissão; e b) a Corte Interamericana de Direitos Humanos, doravante denominada a Corte. Capítulo VI COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS Seção 1 - ORGANIZAÇÃO Artigo 34º A Comissão Interamericana de Direitos Humanos compor-se-á de sete membros, que deverão ser pessoas de alta autoridade moral e de reconhecido saber em matéria de direitos humanos. Artigo 35º A Comissão representa todos os Membros da Organização dos Estados Americanos. Artigo 36º 1. Os membros da Comissão serão eleitos a título pessoal, pela Assembléia Geral da Organização, de uma lista de candidatos propostos pelos governos dos Estados membros.

45

2. Cada um dos referidos governos pode propor até três candidatos, nacionais do Estado que os propuser ou de qualquer outro Estado membro da Organização dos Estados Americanos. Quando for proposta uma lista de três candidatos, pelo menos um deles deverá ser nacional de Estado diferente do proponente. Artigo 37º 1. Os membros da Comissão serão eleitos por quatro anos e só poderão ser reeleitos uma vez, porém o mandato de três dos membros designados na primeira eleição expirará ao cabo de dois anos. Logo depois da referida eleição, serão determinados por sorteio, na Assembléia Geral, os nomes desses três membros. 2. Não pode fazer parte da Comissão mais de um nacional de um mesmo Estado. Artigo 38º As vagas que ocorrerem na Comissão, que não se devam à expiração normal do mandato, serão preenchidas pelo Conselho Permanente da Organização, de acordo com o que dispuser o Estatuto da Comissão. Artigo 39º A Comissão elaborará seu Estatuto e submetê-lo-á à aprovação da Assembléia Geral e expedirá seu próprio Regulamento. Artigo 40º Os serviços de secretaria da Comissão devem ser desempenhados pela unidade funcional especializada que faz parte da Secretaria-Geral da Organização, e deve dispor dos recursos necessários para cumprir as tarefas que lhe forem confiadas pela Comissão. Seção 2 - FUNÇÕES Artigo 41º A Comissão tem a função pincipal de promover a observância e a defesa dos direitos humanos e, no exercício do seu mandato, tem as seguintes funções e atribuições: a) estimular a consciência dos direitos humanos nos povos da América; b) formular recomendações aos governos dos Estados membros, quando o considerar conveniente, no sentido de que adotem medidas progressivas em prol dos direitos humanos no âmbito de suas leis internas e seus preceitos constitucionais, bem como disposições apropriadas para promover o devido respeito a esses direitos; c) preparar os estudos ou relatórios que considerar convenientes para o desempenho de suas funções; d) solicitar aos governos dos Estados membros que lhe proporcionem informações sobre as medidas que adotarem em matéria de direitos humanos;

46

e) atender às consultas que, por meio da Secretaria-Geral da Organização dos Estados Americanos, lhe formularem os Estados membros sobre questões relacionadas com os direitos humanos e, dentro de suas possibilidades, prestar-lhes o assessoramento que eles lhe solicitarem; f) atuar com respeito às petições e outras comunicações, no exercício de sua autoridade, de conformidade com o disposto nos artigos 44º a 51º desta Convenção; e g) apresentar um relatório anual à Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos. Artigo 42º Os Estados Partes devem remeter à Comissão cópia dos relatórios e estudos que, em seus respectivos campos, submetem anualmente às Comissões Executivas do Conselho Interamericano Econômico e Social e do Conselho Interamericano de Educação, Ciência e Cultura, a fim de que aquela zele por que se promovam os direitos decorrentes das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires. Artigo 43º Os Estados Partes obrigam-se a proporcionar à Comissão as informações que esta lhes solicitar sobre a maneira pela qual o seu direito interno assegura a aplicação efetiva de quaisquer disposições desta Convenção. Seção 3 - COMPETÊNCIA Artigo 44º Qualquer pessoa ou grupo de pessoas, ou entidade não-governamental legalmente reconhecida em um ou mais Estados membros da Organização, pode apresentar à Comissão petições que contenham denúncias ou queixas de violação desta Convenção por um Estado Parte. Artigo 45º 1. Todo Estado Parte pode, no momento do depósito do seu instrumento de ratificação desta Convenção ou de adesão a ela, ou em qualquer momento posterior, declarar que reconhece a competência da Comissão para receber e examinar as comunicações em que um Estado Parte alegue haver outro Estado Parte incorrido em violações dos direitos humanos estabelecidos nesta Convenção. 2. As comunicações feitas em virtude deste artigo só podem ser admitidas e examinadas se forem apresentadas por um Estado Parte que haja feito uma declaração pela qual reconheça a referida competência da Comissão. A Comissão não admitirá nenhuma comunicação contra um Estado Parte que não haja feito tal declaração. 3. As declarações sobre reconhecimento de competência podem ser feitas para que esta vigore por tempo indefinido, por período determinado ou para casos específicos.

47

4. As declarações serão depositadas na Secretaria-Geral da Organização dos Estados Americanos, a qual encaminhará cópia das mesmas aos Estados membros da referida Organização. Artigo 46º 1. Para que uma petição ou comunicação apresentada de acordo com os artigos 44º ou 45º seja admitida pela Comissão, será necessário: a) que hajam sido interpostos e esgotados os recursos da jurisdição interna, de acordo com os princípios de direito internacional geralmente reconhecidos; b) que seja apresentada dentro do prazo de seis meses, a partir da data em que o presumido prejudicado em seus direitos tenha sido notificado da decisão definitiva; c) que a matéria da petição ou comunicação não esteja pendente de outro processo de solução internacional; e d) que, no caso do artigo 44º, a petição contenha o nome, a nacionalidade, a profissão, o domicílio e a assinatura da pessoa ou pessoas ou do representante legal da entidade que submeter a petição. 2. As disposições das alíneas a e b do inciso 1 deste artigo não se aplicarão quando: a) não existir, na legislação interna do Estado de que se tratar, o devido processo legal para a proteção do direito ou direitos que se alegue tenham sido violados; b) não se houver permitido ao presumido prejudicado em seus direitos o acesso aos recursos da jurisdição interna, ou houver sido ele impedido de esgotá-los; e, c) houver demora injustificada na decisão sobre os mencionados recursos. Artigo 47º A Comissão declarará inadmissível toda petição ou comunicação apresentada de acordo com os artigos 44º e 45º quando: a) não preencher algum dos requisitos estabelecidos no artigo 46º; b) não expuser fatos que caracterizem violação dos direitos garantidos por esta Convenção; c) pela exposição do próprio peticionário ou do Estado, for manifestamente infundada a petição ou comunição ou for evidente sua total improcedência; ou d) for substancialmente reprodução de petição ou comunicação anterior, já examinada pela Comissão ou por outro organismo internacional. Seção 4 - PROCESSO Artigo 48º 1. A Comissão, ao receber uma petição ou comunicação na qual se alegue violação de qualquer dos direitos consagrados nesta Convenção, procederá da seguinte maneira:

48

a) se reconhecer a admissibilidade da petição ou comunicação, solicitará informações ao Governo do Estado ao qual pertença a autoridade apontada como responsável pela violação alegada e transcreverá as partes pertinentes da petição ou comunicação. As referidas informações devem ser enviadas dentro de um prazo razoável, fixado pela Comissão ao considerar as circunstâncias de cada caso; b) recebidas as informações, ou transcorrido o prazo fixado sem que sejam elas recebidas, verificará se existem ou subsistem os motivos da petição ou comunicação. No caso de não existirem ou não subsistirem, mandará arquivar o expediente; c) poderá também declarar a inadmissibilidade ou a improcedência da petição ou comunicação, com base na informação ou prova supervenientes; d) se o expediente não houver sido arquivado, e com o fim de comprovar os fatos, a Comissão procederá, com conhecimento das partes, a um exame do assunto exposto na petição ou comunicação. Se for necessário e conveniente, a Comissão procederá a uma investigação para cuja eficaz realização solicitará, e os Estados interessados lhe proporcionarão, todas as facilidades necessárias; e) poderá pedir aos Estados interessados qualquer informação pertinente e receberá, se isso lhe for solicitado, as exposições verbais ou escritas que apresentarem os interessados; e f) pôr-se-á à disposição das partes interessadas, a fim de chegar a uma solução amistosa do assunto, fundada no respeito aos direitos humanos reconhecidos nesta Convenção. 2. Entretanto, em casos graves e urgentes, pode ser realizada uma investigação, mediante prévio consentimento do Estado em cujo território se alegue houver sido cometida a violação, tão-somente com a apresentação de uma petição ou comunicação que reúna todos os requisitos formais de admissibilidade. Artigo 49º Se se houver chegado a uma solução amistosa de acordo com as disposições do inciso 1, f, do artigo 48º, a Comissão redigirá um relatório que será encaminhado ao peticionário e aos Estados Partes nesta Convenção e, posteriormente, transmitido, para sua publicação, ao Secretário-Geral das Organização dos Estados Americanos. O referido relatório conterá uma breve exposição dos fatos e da solução alcançada. Se qualquer das Partes no caso o solicitar, ser-lhe-á proporcionada a mais ampla informação possível. Artigo 50º 1. Se não se chegar a uma solução, e dentro do prazo que for fixado pelo Estatuto da Comissão, esta redigirá um relatório no qual exporá os fatos e suas conclusões. Se o relatório não representar, no todo ou em parte, o acordo unânime dos membros da Comissão, qualquer deles poderá agregar ao referido relatório seu voto em separado. Também se agregarão ao relatório as exposições verbais ou escritas que houverem sido feitas pelos interessados em virtude do inciso 1, e, do artigo 48º. 2. O relatório será encaminhado aos Estados interessados, aos quais não será facultado publicá-lo.

49

3. Ao encaminhar o relatório, a Comissão pode formular as proposições e recomendações que julgar adequadas. Artigo 51º 1. Se, no prazo de três meses, a partir da remessa aos Estados interessados do relatório da Comissão, o assunto não houver sido solucionado ou submetido à decisão da Corte pela Comissão ou pelo Estado interessado, aceitando sua competência, a Comissão poderá emitir, pelo voto da maioria absoluta dos seus membros, sua opinião e conclusões sobre a questão submetida à sua consideração. 2. A Comissão fará as recomendações pertinentes e fixará um prazo dentro do qual o Estado deve tomar as medidas que lhe competirem para remediar a situação examinada. 3. Transcorrido o prazo fixado, a Comissão decidirá, pelo voto da maioria absoluta dos seus membros, se o Estado tomou ou não medidas adequadas e se publica ou não seu relatório. Capítulo VIII CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS Seção 1 - ORGANIZAÇÃO Artigo 52º 1. A Corte compor-se-á de sete juízes, nacionais dos Estados membros da Organização, eleitos a título pessoal dentre juristas da mais alta autoridade moral, de reconhecida competência em matéria de direitos humanos, que reúnam as condições requeridas para o exercício das mais elevadas funções judiciais, de acordo com a lei do Estado do qual sejam nacionais, ou do Estado que os propuser como candidatos. 2. Não deve haver dois juízes da mesma nacionalidade. Artigo 53º 1. Os juízes da Corte serão eleitos, em votação secreta e pelo voto da maioria absoluta dos Estados Partes na Convenção, na Assembléia Geral da Organização, de uma lista de candidatos propostos pelos mesmos Estados. 2. Cada um dos Estados Partes pode propor até três candidatos, nacionais do Estado que os propuser ou de qualquer outro Estado membro da Organização dos Estados Americanos. Quando se propuser uma lista de três candidatos, pelo menos um deles deverá ser nacional de Estado diferente do proponente. Artigo 54º 1. Os juízes da Corte serão eleitos por um período de seis anos e só poderão ser reeleitos uma vez. O mandato de três anos dos juízes designados na primeira eleição expirará ao cabo de três anos. Imediatamente depois da referida eleição, determinar-se-ão por sorteio, na Assembléia Geral, os nomes desses três juízes. 2. O juiz eleito para substituir outro cujo mandato não haja expirado completará o período deste.

50

3. Os juízes permanecerão em funções até o término dos seus mandatos. Entretanto, continuarão funcionando nos casos de que já houverem tomado conhecimento e que se encontrarem em fase de sentença e, para tais efeitos, não serão substituídos pelos novos juízes eleitos. Artigo 55º 1. O juiz que for nacional de algum dos Estados Partes no caso submetido à Corte conservará o seu direito de conhecer do mesmo. 2. Se um dos juízes chamados a conhecer do caso for de nacionalidade de um dos Estados Partes, outro Estado Parte no caso poderá designar uma pessoa de sua escolha para fazer parte da Corte na qualidade de juiz ad hoc. 3. Se, dentre os juízes chamados a conhecer do caso, nenhum for da nacionalidade dos Estados Partes, cada um destes poderá designar um juiz ad hoc. 4. O juiz ad hoc deve reunir os requisitos indicados no artigo 52º. 5. Se vários Estados Partes na Convenção tiverem o mesmo interesse no caso, serão considerados como uma só parte, para os fins das disposições anteriores. Em caso de dúvida, a Corte decidirá. Artigo 56º O quorum para as deliberações da Corte é constituído por cinco juízes. Artigo 57º A Comissão comparecerá em todos os casos perante a Corte. Artigo 58º 1. A Corte terá sua sede no lugar que for determinado na Assembléia Geral da Organização, pelos Estados Partes na Convenção, mas poderá realizar reuniões no território de qualquer Estado membro da Organização dos Estados Americanos em que o considerar conveniente a maioria dos seus membros e mediante prévia aquiescência do Estado respectivo. Os Estados Partes na Convenção podem, na Assembléia Geral, por dois terços dos seus votos, mudar a sede da Corte. 2. A Corte designará seu Secretário. 3. O Secretário residirá na sede da Corte e deverá assistir às reuniões que ela realizar fora da mesma. Artigo 59º A Secretaria da Corte será por esta estabelecida e funcionará sob a direção do Secretário da Corte, de acordo com as normas administrativas da Secretaria-Geral da Organização em tudo

51

o que não for incompatível com a independência da Corte. Seus funcionários serão nomeados pelo Secretário-Geral da Organização, em consulta com o Secretário da Corte. Artigo 60º A Corte elaborará seu Estatuto e submetê-lo-á à aprovação da Assembléia Geral e expedirá seu Regimento. Seção 2 - COMPETÊNCIA e FUNÇÕES Artigo 61º 1. Somente os Estados Partes e a Comissão têm direito de submeter caso à decisão da Corte. 2. Para que a Corte possa conhecer de qualquer caso, é necessário que sejam esgotados os processos previstos nos artigos 48º a 50º. Artigo 62º 1. Todo Estado Parte pode, no momento do depósito do seu instrumento de ratificação desta Convenção ou de adesão a ela, ou em qualquer momento posterior, declarar que reconhece como obrigatória, de pleno direito e sem convenção especial, a competência da Corte em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação desta Convenção. 2. A declaração pode ser feita incondicionalmente, ou sob condição de reciprocidade, por prazo determinado ou para casos específicos. Deverá ser apresentada ao Secretário-Geral da Organização, que encaminhará cópias da mesma aos outros Estados membros da Organização e ao Secretário da Corte. 3. A Corte tem competência para conhecer de qualquer caso relativo à interpretação e aplicação das disposições desta Convenção que lhe seja submetido, desde que os Estados Partes no caso tenham reconhecido ou reconheçam a referida competência, seja por declaração especial, como prevêem os incisos anteriores, seja por convenção especial. Artigo 63º 1. Quando decidir que houve violação de um direito ou liberdade protegidos nesta Convenção, a Corte determinará que se assegure ao prejudicado o gozo do seu direito ou liberdade violados. Determinará também, se isso for procedente, que sejam reparadas as consequências da medida ou situação que haja configurado a violação desses direitos, bem como o pagamento de indenização justa à parte lesada. 2. Em casos de extrema gravidade e urgência, e quando se fizer necessário evitar danos irreparáveis às pessoas, a Corte, nos assuntos de que estiver conhecendo, poderá tomar as medidas provisórias que considerar pertinentes. Se se tratar de assuntos que ainda não estiverem submetidos ao seu conhecimento, poderá atuar a pedido da Comissão. Artigo 64º

52

1. Os Estados membros da Organização poderão consultar a Corte sobre a interpretação desta Convenção ou de outros tratados concernentes à proteção dos direitos humanos nos Estados americanos. Também poderão consultá-la, no que lhe compete, os órgãos enumerados no capítulo X da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires. 2. A Corte, a pedido de um Estado membro da Organização, poderá emitir pareceres sobre a compatibilidade entre qualquer de suas leis internas e os mencionados instrumentos internacionais. Artigo 65º A Corte submeterá à consideração da Assembléia Geral da Organização, em cada período ordinário de sessões, um relatório sobre suas atividades no ano anterior. De maneira especial, e com as recomendações pertinentes, indicará os casos em que um Estado não tenha dado cumprimento as suas sentenças. Seção 3 - PROCESSO Artigo 66º 1. A sentença da Corte deve ser fundamentada. 2. Se a sentença não expressar no todo ou em parte a opinião unânime dos juízes, qualquer deles terá direito a que se agregue à sentença o seu voto dissidente ou individual. Artigo 67º A sentença da Corte será definitiva e inapelável. Em caso de divergência sobre o sentido ou alcance da sentença, a Corte interpretá-la-á, a pedido de qualquer das partes, desde que o pedido seja apresentado dentro de noventa dias a partir da data da notificação da sentença. Artigo 68º 1. Os Estados Partes na Convenção comprometem-se a cumprir a decisão da Corte em todo caso em que forem partes. 2. A parte da sentença que determinar indenização compensatória poderá ser executada no país respectivo pelo processo interno vigente para a execução de sentenças contra o Estado. Artigo 69º A sentença da Corte deve ser notificada às partes no caso e transmitida aos Estados Partes na Convenção. Capítulo IX DISPOSIÇÕES COMUNS Artigo 70º

53

1. Os juízes da Corte e os membros da Comissão gozam, desde o momento de sua eleição e enquanto durar o seu mandato, das imunidades reconhecidas aos agentes diplomáticos pelo Direito Internacional. Durante o exercício dos seus cargos gozam, além disso, dos privilégios diplomáticos necessários para o desempenho de suas funções. 2. Não se poderá exigir responsabilidade em tempo algum dos juízes da Corte nem dos membros da Comissão, por votos e opiniões emitidos no exercício de suas funções. Artigo 71º Os cargos de juiz da Corte ou de membro da Comissão são incompatíveis com outras atividades que possam afetar sua independência ou imparcialidade, conforme o que for determinado nos respectivos Estatutos. Artigo 72º Os juízes da Corte e os membros da Comissão perceberão honorários e despesas de viagem na forma e nas condições que determinarem os seus Estatutos, levando em conta a importância e independência de suas funções. Tais honorários e despesas de viagem serão fixados no orçamento-programa da Organização dos Estados Americanos, no qual devem ser incluídas, além disso, as despesas da Corte e da sua Secretaria. Para tais efeitos, a Corte elaborará seu próprio projeto de orçamento e submetê-lo-á à aprovação da Assembléia Geral, por intermédio da Secretaria-Geral. Esta última não poderá nele introduzir modificações. Artigo 73º Somente por solicitação da Comissão ou da Corte, conforme o caso, cabe à Assembléia Geral da Organização resolver sobre as sanções aplicáveis aos membros da Comissão ou aos juízes da Corte que incorrerem nos casos previstos nos respectivos Estatutos. Para expedir uma resolução, será necessária maioria de dois terços dos votos dos Estados membros da Organização, no caso dos membros da Comissão; e, além disso, de dois terços dos votos dos Estados Partes na Convenção, se se tratar dos juízes da Corte. PARTE III DISPOSIÇÕES GERAIS E TRANSITÓRIAS Capítulo X ASSINATURA, RATIFICAÇÃO, RESERVA, EMENDA, PROTOCOLO E DENÚNCIA Artigo 74º 1. Esta Convenção fica aberta à assinatura e à ratificação ou adesão de todos os Estados membros da Organização dos Estados Americanos. 2. A ratificação desta Convenção ou a adesão a ela efetuar-se-á mediante depósito de um instrumento de ratificação ou de adesão na Secretaria-Geral da Organização dos Estados Americanos. Esta Convenção entrará em vigor logo que onze Estados houverem depositado

54

os seus respectivos instrumentos de ratificação ou de adesão. Com referência a qualquer outro Estado que a ratificar ou que a ela aderir ulteriormente, a Convenção entrará em vigor na data do depósito do seu instrumento de ratificação ou de adesão. 3. O Secretário-Geral informará todos os Estados membros da Organização sobre a entrada em vigor da Convenção. Artigo 75º Esta Convenção só pode ser objeto de reservas em conformidade com as disposições da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, assinada em 23 de maio de 1969. Artigo 76º 1. Qualquer Estado Parte, diretamente, e a Comissão ou a Corte, por intermédio do Secretário-Geral, podem submeter à Assembléia Geral, para o que julgarem conveniente, proposta de emenda a esta Convenção. 2. As emendas entrarão em vigor para os Estados que ratificarem as mesmas na data em que houver sido depositado o respectivo instrumento de ratificação que corresponda ao número de dois terços dos Estados Partes nesta Convenção. Quanto aos outros Estados Partes, entrarão em vigor na data em que eles depositarem os seus respectivos instrumentos de ratificação. Artigo 77º 1. De acordo com a faculdade estabelecida no artigo 31º, qualquer Estado Parte e a Comissão podem submeter à consideração dos Estados Partes reunidos por ocasião da Assembléia Geral projetos de Protocolos adicionais a esta Convenção, com a finalidade de incluir progressivamente no regime de proteção da mesma outros direitos e liberdades. 2. Cada Protocolo deve estabelecer as modalidades de sua entrada em vigor e será aplicado somente entre os Estados Partes no mesmo. Artigo 78º 1. Os Estados Partes poderão denunciar esta Convenção depois de expirado um prazo de cinco anos, a partir da data da entrada em vigor da mesma e mediante aviso prévio de um ano, notificando o Secretário-Geral da Organização, o qual deve informar as outras Partes. 2. Tal denúncia não terá o efeito de desligar o Estado Parte interessado das obrigações contidas nesta Convenção, no que diz respeito a qualquer ato que, podendo constituir violação dessas obrigações, houver sido cometido por ele anteriormente à data na qual a denúncia produzir efeito. Capítulo XI DISPOSIÇÕES TRANSITÓRIAS Seção 1 - COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

55

Artigo 79º Ao entrar em vigor esta Convenção, o Secretário-Geral pedirá por escrito a cada Estado membro da Organização que apresente, dentro de um prazo de noventa dias, seus candidatos a membro da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. O Secretário-Geral preparará uma lista por ordem alfabética dos candidatos apresentados e a encaminhará aos Estados membros da Organização pelo menos trinta dias antes da Assembléia Geral seguinte. Artigo 80º A eleição dos membros da Comissão far-se-á dentre os candidatos que figurem na lista a que se refere o artigo 79º, por votação secreta da Assembléia Geral, e serão declarados eleitos os candidatos que obtiverem maior número de votos e a maioria absoluta dos votos dos representantes dos Estados membros. Se, para eleger todos os membros da Comissão, for necessário realizar várias votações, serão eliminados sucessivamente, na forma que for determinada pela Assembléia Geral, os candidatos que receberem menor número de votos. Seção 2 - CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS Artigo 81º Ao entrar em vigor esta Convenção, o Secretário-Geral solicitará por escrito a cada Estado Parte que apresente, dentro de um prazo de noventa dias, seus candidatos a juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos. O Secretário-Geral preparará uma lista por ordem alfabética dos candidatos apresentados e a encaminhará aos Estados Partes pelo menos trinta dias antes da Assembléia Geral seguinte. Artigo 82º A eleição dos juízes da Corte far-se-á dentre os candidatos que figurem na lista a que se refere o artigo 81º, por votação secreta dos Estados Partes, na Assembléia Geral, e serão declarados eleitos os candidatos que obtiverem maior número de votos e a maioria absoluta dos votos dos representantes dos Estados Partes. Se, para eleger todos os juízes da Corte, for necessário realizar várias votações, serão eliminados sucessivamente, na forma que for determinada pelos Estados Partes, os candidatos que receberem menor número de votos.