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Jonas Nogueira da Costa O TRIBUNAL DE MANUEL ASPECTOS TEOLÓGICOS NA OBRA AUTO DA COMPADECIDA, DE ARIANO SUASSUNA Dissertação de Mestrado em Teologia Orientador: Prof. Dr. Francisco Taborda Apoio CAPES BELO HORIZONTE FAJE Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia 2013

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Jonas Nogueira da Costa

O TRIBUNAL DE MANUEL

ASPECTOS TEOLÓGICOS NA OBRA AUTO DA COMPADECIDA, DE

ARIANO SUASSUNA

Dissertação de Mestrado em Teologia

Orientador: Prof. Dr. Francisco Taborda

Apoio CAPES

BELO HORIZONTE

FAJE – Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia

2013

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Jonas Nogueira da Costa

O TRIBUNAL DE MANUEL

ASPECTOS TEOLÓGICOS NA OBRA AUTO DA COMPADECIDA, DE

ARIANO SUASSUNA

Dissertação apresentada ao Departamento de Teologia

da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia como

requisição parcial para obtenção do título de Mestre

em Teologia.

Área de concentração: Teologia Sistemática.

Orientador: Prof. Dr. Francisco Taborda.

Apoio CAPES

BELO HORIZONTE

FAJE – Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia

2013

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C837t

Costa, Jonas Nogueira da

O Tribunal de Manuel: aspectos teológicos na obra Auto da

Compadecida, de Ariano Suassuna / Jonas Nogueira da Costa.

- Belo Horizonte, 2013.

133 p.

Orientador: Prof. Dr. Francisco Taborda

Dissertação (mestrado) – Faculdade Jesuíta de Filosofia e

Teologia, Departamento de Teologia.

1. Teologia e literatura. 2. Religiosidade popular. 3.

Mariologia. 4. Escatologia. 5. Suassuna, Ariano. Auto da

Compadecida. I. Taborda, Francisco. II. Faculdade Jesuíta de

Filosofia e Teologia. Departamento de Teologia. III. Título

CDU 23

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DEDICATÓRIA

À Compadecida.

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AGRADECIMENTOS

A Deus, que em sua misericórdia ultrapassa qualquer conhecimento humano.

A meu orientador, o professor Dr. Francisco Taborda, pela constante atenção e

paciência.

Aos meus confrades da Província Santa Cruz (OFM), sobretudo ao ministro

provincial Frei Francisco Carvalho Neto, pela confiança depositada em meu projeto de

estudos. Dentre os meus confrades, não poderia deixar de destacar Frei Gabriel José de Lima

Neto, Frei Flávio Silva Vieira e Frei Vicente da Silva Lopes, que acompanharam cada passo

da minha formação humana, franciscana e intelectual.

Aos meus colegas de mestrado, pelo companheirismo. Aos professores e demais

funcionários da FAJE, pela dedicação à vocação jesuíta de ensinar com qualidade. De modo

especial, aos funcionários da biblioteca, pela solicitude e simpatia.

Aos meus pais, irmãos, cunhadas e sobrinhos, que me acompanham com amor.

Também aos amigos Maria Aparecida Leão Ramos Heilbuth e Sergio Jarczewski, pelo

carinho e amizade.

À CAPES pelo apoio.

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Eu, Frei Francisco, [desejo] saúde a Frei Antônio, meu

bispo. Apraz-me que ensines a sagrada teologia aos

irmãos, contanto que, nesse estudo, não extingas o espírito

(cf. 1Ts 5,19) de oração e devoção, como está contido na

Regra.

(Francisco de Assis, Fontes franciscanas)

Quem gosta de tristeza é o diabo.

(Ariano Suassuna, Auto da Compadecida)

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RESUMO

A presente dissertação analisa alguns aspectos teológicos encontrados na obra de Ariano

Suassuna, Auto da Compadecida, partindo do princípio de que a literatura pode ser usada

como uma importante contribuição para a pesquisa teológica. Neste sentido, o trabalho

demonstra a relação entre literatura e teologia, incluindo a religiosidade popular, que é um

elemento marcante na obra de Suassuna. A obra estudada nesta dissertação é uma peça para

teatro, dividida em três atos, que culmina com a intervenção da Virgem Maria, a

Compadecida. Ao demonstrarmos o que significa nomear a Virgem como Compadecida,

veremos como este título se relaciona com a tradicional invocação mariana “Mãe de

misericórdia” e o que significa sua intercessão “na hora da morte”, em que ela busca uma

compreensão profunda da vida de cada um dos seus protegidos, não permitindo que prevaleça

uma visão “contabilista” de pecados no julgamento de cada um dos personagens. Esse

julgamento é o ponto para o qual converge toda a história, pois é na morte que se encontra

com Jesus (na obra nominado Manuel) e se conhece, sob seu olhar bondoso, a verdade dos

corações. Por isso, em nossa análise, veremos quem é Manuel, enquanto o juiz da

humanidade, seu modo de julgar e suas possíveis sentenças (novíssimos), a figura do demônio

(Encourado) que atua como um “promotor de justiça” lutando contra a advogada de defesa, a

Compadecida, e a cólera de Manuel diante de todas as formas de injustiça e opressão.

Palavras-chave: Auto da Compadecida, Ariano Suassuna, literatura, teologia, religiosidade

popular, mariologia, escatologia.

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ABSTRACT

This dissertation examines some theological aspects found in the work of Ariano Suassuna,

Auto da Compadecida, assuming that literature can be used as an important contribution to

theological research. In this sense, the work demonstrates the relationship between literature

and theology, including the popular religiosity, which is a striking element in the work of

Suassuna. The work studied in this thesis is a part of a play, divided into three acts, which

culminates with the intervention of the Virgin Mary, “a Compadecida”. Demonstrating what it

means to name the Virgin as “Compadecida”, we will see how this title relates to the

traditional Marian invocation "Mother of mercy" and what it means to her intercession "at the

time of death", in which she seeks a deep understanding of the life of each one of hes

protected, not allowing an “accountant” view prevails of sin in particular judgment of them.

This particular trial, which we call the Court of Manuel, is the point to which it converges

throughout history, as it is in death that we meet Jesus (in the work nominated as Manuel) and

it is known, under her kind look, the truth of the hearts. So, in our analysis, we will see who is

Manuel, as a judge of humanity, his way of judging and his possible sentences (brand new),

the figure of the Devil (Satan) that acts as a "promoter of Justice" struggling against the

defense lawyer, Compadecida, and Manuel‟s cholera before all forms of injustice and

oppression.

Keywords: Auto da Compadecida, Ariano Suassuna, literature, theology, popular religiosity,

Mariology, eschatology.

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ABREVIAÇÕES

AC Auto da Compadecida

CIACR Comissão Internacional Anglicano-Católica Romana

DH Denzing - Hünermann

DHLP Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa

DV Constituição Dogmática Dei Verbum sobre a Revelação Divina

EN Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi

GS Constituição Pastoral Gaudium et Spes

LG Constituição Dogmática Lumen Gentium sobre a Igreja

PG Patrologia Grega

PL Patrologia Latina

SC Sources Chrétiennes

As citações bíblicas seguem a 9. ed. da Bíblia Sagrada – tradução da CNBB.

SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. 35. ed. Rio de Janeiro: Agir, 2005.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.......................................................................................................................13

CAPÍTULO I: AUTO DA COMPADECIDA: UM PALCO ONDE SE ENCONTRAM

TEOLOGIA, LITERATURA E RELIGIOSIDADE POPULAR ......................................17

1. Teologia e literatura: proposta de um diálogo profícuo........................................................17

1.1. A relação entre teologia e literatura e as contribuições da literatura ao pensamento

teológico....................................................................................................................................17

1.2. As balizas para estabelecer um diálogo entre literatura e teologia ....................................23

1.3. O gênero literário “teatro”..................................................................................................25

2. O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna.....................................................................26

2.1. O autor............................................................................................................................... 26

2.2. A obra Auto da Compadecida........................................................................................... 30

2.2.1. As raízes medievais e europeias da obra ........................................................................30

2.2.2. O Nordeste e o Sertão na obra de Suassuna....................................................................35

2.2.3. O Auto da Compadecida.................................................................................................36

2.2.4. Os personagens ...............................................................................................................42

2.2.5. O Auto da Compadecida e a religiosidade popular ........................................................46

CAPÍTULO II: A COMPADECIDA DAS MISÉRIAS HUMANAS.................................52

1. “Lá vem a Compadecida!”................................................................................................... 52

1.1. Maria entendida como “Compadecida”.............................................................................52

1.2. “Valha-me Nossa Senhora”:a intercessão de Maria..........................................................56

1.3. As orações da Ave-Maria e Salve-Rainha.........................................................................59

1.3.1. A Ave-Maria...................................................................................................................59

1.3.2. A Salve-Rainha...............................................................................................................60

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1.4. A mãe da justiça.................................................................................................................62

2. “Mulher em tudo se mete!”...................................................................................................64

2.1. A inimizade entre a Compadecida e o Encourado.............................................................64

2.2. Maria como advogada e o “Advogado” por excelência: o Espírito Santo ........................66

2.3. A defesa da Compadecida em favor dos personagens da obra ..........................................70

2.3.1. Em favor do Bispo, do Padre e do Sacristão...................................................................71

2.3.2. Em favor do Padeiro e de sua Mulher.............................................................................77

2.3.3. Em favor de João Grilo...................................................................................................79

CAPÍTULO III: O TRIBUNAL DE MANUEL: O TRIUNFO DA MISERICÓRDIA .....82

1. O juiz e seu tribunal..............................................................................................................82

1.1. O tribunal de Manuel acontece “na morte” dos personagens............................................82

1.2. Manuel, o juiz da humanidade...........................................................................................84

1.2.1. A cristologia presente na obra.........................................................................................84

1.2.1.1. Jesus negro e judeu...................................................................................................... 84

1.2.1.2. Os títulos cristológicos.................................................................................................86

1.2.1.3. Manuel católico............................................................................................................89

1.2.1.4. A humanidade e a divindade de Manuel......................................................................90

2. O Juízo..................................................................................................................................91

2.1. O juízo exercido por Manuel.............................................................................................91

2.2. As realidades escatológicas................................................................................................95

2.2.1. O céu...............................................................................................................................95

2.2.2. O purgatório....................................................................................................................97

2.2.3. O inferno.........................................................................................................................99

3. A Compadecida e o Encourado...........................................................................................104

3.1. Filho irado versus mãe bondosa?.....................................................................................104

3.2. Encourado, o acusador.....................................................................................................108

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3.2.1. A visão popular do demônio como aquele que pode atrapalhar a peregrinação da alma

ao céu......................................................................................................................................111

3.2.2. O pai da mentira...........................................................................................................112

4. O protesto negado e a cólera divina....................................................................................114

CONCLUSÃO.......................................................................................................................119

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA....................................................................................125

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INTRODUÇÃO

“Tua face, Senhor, eu busco” (Sl 27, 8).

A teologia não é um conjunto de conceitos abstratos que explicam a existência de

Deus e sua relação com a humanidade. É muito mais do que isto. É uma busca amorosa da

face de Deus na história concreta de homens e mulheres que, inspirados pelo Espírito Santo,

acolhem a iniciativa divina, bondosa e sábia, de revelar-se a si mesmo e sua vontade (cf. DV

2).

Esta busca, entendida como teologia, fez história, criou uma metodologia própria,

abriu caminhos de pesquisa e contemplação. Desenvolveu-se tanto na liturgia, quanto no

escritório, na leitura silenciosa e atenta de textos sagrados e de estudos teológicos, nas

relações humanas, sociais e políticas etc. Também, de um modo especial, na América Latina,

descobriu, na face dos pobres e marginalizados, a face do Cristo sofredor, mas “grávido” de

ressurreição.

A metodologia teológica tem como base a Sagrada Escritura e a Tradição. Essa

base funciona para o povo de Deus como um espelho em que, durante sua peregrinação

terrestre, busca contemplar a face do Senhor até chegar a vê-lo face a face, na alegria da festa

que não tem fim (cf. DV 7).

A procura da face de Deus, usando a metodologia teológica, não está fechada em

si mesma. Cada dia descobrimos o potencial de diálogo da teologia com as demais áreas da

vida e das ciências. E dentre estas, destacamos a literatura.

A literatura pode contribuir de um modo eficaz a partir de sua compreensão como

um registro das percepções do ser humano sobre si mesmo e sobre sua relação com a

divindade. Essas experiências religiosas são codificadas por um escritor, dentro de um

contexto específico e, a partir desse mesmo escritor, permitem que a teologia avalie a

abrangência e a aceitação de seu discurso.

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A partir desta premissa é que queremos procurar a face de Deus e do ser humano

que emergem da peça teatral Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna. A obra, escrita em

1955, vem tocando os corações de muitos leitores e, de modo especial, dos expectadores do

teatro e da televisão.

O ápice da peça é o julgamento dos personagens por Manuel, nome que Suassuna

utiliza para nomear o Cristo. A vida de cada um deles é relida, pela apaixonada defesa da

Virgem Maria, a Compadecida, sob a ótica da misericórdia. No julgamento, ou no Tribunal de

Manuel, título de nossa dissertação, o veredicto é um triunfo da misericórdia sobre todas as

imagens distorcidas de Deus e do ser humano.

Dizendo isto, não estamos obscurecendo a natureza da obra, que não é teológica

ou apologética. O texto que estamos utilizando para a reflexão é uma obra de arte feita para o

palco e não para o púlpito. E, justamente por isso, o diálogo que a partir desse texto pode ser

feito entre literatura e teologia se torna mais interessante, pois podemos comparar as ideias

que o autor retira da cultura e da religiosidade popular com a teologia.

Essa comparação é um exercício de colocar a interpretação literária ao lado da

interpretação cristã da Revelação e analisarmos como uma se relaciona com a outra, quais

suas relações de dependência e ruptura etc.

E como a obra de arte goza de liberdade de expressão, a comparação que

procuramos fazer não visa, de modo algum, ser uma instância normativa a dizer se o teatro de

Suassuna é teologicamente aceitável ou não. A liberdade de expressão para o diálogo entre

literatura e teologia é uma das bases de um diálogo proveitoso, pois ela ajuda a teologia a ver

matizes diferentes do sagrado, que nos dão a possibilidade de novos olhares sobre temas já

conhecidos.

Quando assumimos esta tarefa de comparar as interpretações literárias e as

teológicas no Auto da Compadecida, deparamo-nos com um número grande de aspectos

teológicos na obra, que poderiam abrir margem para algo como uma “suma teológica

suassuniana”, desenvolvendo exaustivamente cada aspecto teológico encontrado. Para não

cairmos nessa pretensão, que não responderia às expectativas deste trabalho, limitamo-nos aos

aspectos teológicos centrais na obra de Suassuna. Deste modo, dividimos esta pesquisa em

três capítulos em que, partindo da afirmação de que a literatura pode ser uma eficaz

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contribuição na pesquisa teológica, mostramos que o Auto da Compadecida realiza esse

diálogo de modo profícuo.

No primeiro capítulo desenvolvemos o tema da relação entre literatura e teologia,

pontuando momentos e autores importantes desta reflexão, como também as balizas para que

esse diálogo seja proveitoso para ambas. Em seguida, analisamos a obra Auto da

Compadecida atentos à vida e às outras obras do autor para, em seguida, aprofundarmos a

obra em questão, com suas raízes medievais provenientes da Península Ibérica e fincadas em

solo nordestino, cujas marcas vemos em cada personagem e na religiosidade popular que

acompanha todo o texto de Suassuna. O Auto da Compadecida é um grande palco, onde se

encontram teologia, literatura e religiosidade popular, convidando a todos, mas, sobretudo ao

teólogo, a refletir sobre o compadecimento da Virgem frente às misérias humanas e à

misericórdia divina, proposta dos dois capítulos seguintes.

No segundo capítulo apresentamos as questões mariológicas, regidas pela

compreensão da Virgem Maria como a “Compadecida” das misérias humanas. Para isto,

procuramos aprofundar a questão da compaixão e da misericórdia, analisando como estas

características, atribuídas a Deus, foram aplicadas a Maria. Também damos atenção à defesa

feita pela Compadecida em favor de cada um dos personagens no Tribunal de Manuel.

Enfim, no terceiro capítulo, “pisamos”, junto com nossos personagens, o Tribunal

de Manuel que acontece “na morte” dos personagens da obra. Nesse capítulo, refletimos a

figura de Manuel como juiz da humanidade. Também analisamos a postura da Compadecida e

do Encourado (o Diabo). Numa luta caracterizada à maneira de um julgamento civil, o

Encourado, promotor de justiça, debate com a Compadecida, advogada de defesa, na busca de

alcançar a sua pretensa verdade e justiça. O capítulo se encerra mostrando que a justiça de

Manuel tem a lógica da solidariedade com os injustiçados, que se manifesta como uma

indignação do próprio Deus. Essa indignação divina recebeu da Tradição o nome de cólera

(ou ira) divina. Cada parte deste capítulo nos leva à conclusão de que Deus, em seu Filho,

Jesus Cristo, é sempre bondoso e sua misericórdia triunfará.

Nosso trabalho, além de endossar a tese de que o diálogo entre literatura e

teologia é enriquecedor para ambas, visa mostrar a contribuição que Ariano Suassuna, no

Auto da Compadecida, traz à reflexão teológica, o que abordaremos como conclusão de nossa

pesquisa.

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O Auto da Compadecida é uma proposta de reorganização do mundo em que

vivemos. É um portal que nos permite ingressar numa compreensão da vida e da morte com

humor, fé e coragem. É uma maneira divertida de falar de coisas muito sérias. Mas, para isto,

é preciso nos deixar transportar pela beleza do Auto da Compadecida e perceber o quanto essa

proposta tem a ver com a canção de Waltinho e Andrade, Telha nua, que diz:

Todo dia minha mãe dizia que ao meio dia era pra almoçar / E gritava pra

cima telha: Menino já desça pare de brincar. / Lá, em cima do telhado / meu

sonho encantado / era pertinho do céu / E, se todos lá embaixo / pensassem

assim tão alto / vinham brincar aqui / comigo no telhado.

Que o Auto da Compadecida, com as engraçadas manhas e artimanhas de João

Grilo, nos ajude a “pensar alto”, e nos sentirmos “pertinho do céu”.

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Capítulo I

Auto da Compadecida: um palco onde se encontram teologia,

literatura e religiosidade popular.

No presente capítulo apresentamos as relações entre teologia, literatura e

religiosidade popular dentro do Auto da Compadecida. Num primeiro momento, nos detemos

na forma como a teologia e a literatura podem se ajudar na compreensão de Deus e do ser

humano, tendo como base o respeito pela metodologia de cada disciplina. Uma vez posta esta

questão, passamos, num segundo momento, para a análise da obra que tomamos para estudo,

atentos à vida e obra do autor, que tem como característica particular a valorização da cultura

nordestina que é abundantemente rica em religiosidade popular.

1. Teologia e literatura: proposta de um diálogo profícuo

A teologia, em sua busca amorosa pela face de Deus, pode contar com a ajuda da

literatura para bem cumprir sua missão na Igreja e no mundo. Isto porque a literatura tem

grande capacidade de evidenciar o ser humano e sua relação com o Sagrado, a partir de

diferentes leituras que acontecem através de diferentes tempos e escritores. A teologia em seu

discurso se enriquece com a literatura, uma vez tendo como princípio o respeito pela liberdade

de expressão do escritor, o que garante não transformar uma obra literária em algo

instrumentalizado por interesses apologéticos.

1.1. A relação entre teologia e literatura e as contribuições da literatura ao

pensamento teológico

Uma das maiores descobertas da humanidade foi a capacidade de usar sinais para

exprimir suas ideias, capacidade esta que teve como ponto de partida a pintura para se chegar

à escrita. Desde aproximadamente 3.000 a.C., no Oriente Próximo, começamos a registrar

fatos da vida doméstica e cotidiana, acontecimentos marcantes para um determinado povo,

descobertas técnicas, tratados, códigos, entretenimento e arte. Dentre esses registros,

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destacamos a possibilidade de povos registrarem sua experiência com o sagrado, com o

transcendente, criando balizas norteadoras para gerações vindouras que quisessem se colocar

na mesma trilha religiosa de seus pais. Desse modo, a experiência religiosa vai se codificando,

com todas as limitações que isso implica, em textos sagrados, que são verdadeiras obras

literárias, capazes não somente de transmitir uma experiência com o divino, mas também

capazes de alicerçar culturalmente civilizações.

Dentre todas as obras literárias, e ao longo de todos os tempos, a comunidade

cristã se volta com profundo amor reverente à Sagrada Escritura, compreendida como a

reunião canônica de textos que exprimem a experiência de fé de Israel e da Igreja das origens,

enquanto autênticos testemunhos de fé, escritos “por inspiração do Espírito Santo” (DV 11).

Palavras da Segunda Carta a Timóteo muito nos ajudam a compreender a

centralidade da Escritura na vida do cristão:

Desde criança conheces as Escrituras Sagradas. Elas têm o poder de te

comunicar a sabedoria que conduz à salvação pela fé no Cristo Jesus. Toda

Escritura é inspirada por Deus e é útil para ensinar, argumentar, para

corrigir, para educar conforme a justiça (2Tm 3,15-16).

Nessa compreensão da Escritura, como testemunho de fé inspirado pelo Espírito

Santo, é que ela deve ser “como que a alma da sagrada teologia” (DV 24). Isto porque a

Escritura é o perene fundamento da teologia (cf. DV 24), o que “exige operações

interpretativas peculiares para fazer com que sua mensagem emerja corretamente para o

crente e para a comunidade de fé”1.

Essas operações interpretativas aplicam-se tanto à Sagrada Escritura quanto à

Tradição eclesial, que juntas constituem um único “depósito sagrado da Palavra de Deus,

confiado à Igreja” (DV 10). Assim, entre as missões da teologia, uma das primordiais é fazer

com que a comunidade cristã compreenda melhor esse patrimônio religioso.

Para prestar esse serviço, no entanto, a teologia precisa estar atenta ao tempo e ao

lugar onde se encontram os crentes. Ela não pode se dirigir ao homem contemporâneo como

se se dirigisse ao medieval. Por isso, com base na Tradição, a teologia busca contribuições de

outras áreas para manter eficaz seu diálogo com a atualidade, recorrendo a diferentes âmbitos

do saber como filosofia, antropologia, sociologia e outras. Entre as áreas do saber, citamos as

artes, e dentre estas, a literatura.

1 WICKS, Introdução ao método teológico, p. 41.

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A Igreja, durante séculos passados, fez uso da arte para difundir sua mensagem,

como podemos ver nos vitrais, na música sacra, escultura, nos autos etc. Mas, sobretudo com

a Renascença, a arte passa por uma crescente emancipação da Igreja, buscando maior

liberdade em suas expressões.

Essa emancipação chegou ao que podemos caracterizar como uma relação de

extrema tensão, ou até mesmo, ruptura, entre religião e arte, como é possível constatar a partir

da literatura. Para ilustrar a questão, lembremos um texto do escritor alemão Gottfried Benn,

escrito em 1934, no qual ele afirma que “Deus”, ou mais precisamente, a palavra Deus, é em

princípio, um “mau estilo”, imperdoável para quem quer fazer boa literatura2.

A relação entre teologia e literatura começa a se tornar menos tensa a partir de

novas abordagens no campo da literatura. Antonio Magalhães nos mostra um sinal disto a

partir do trabalho de Harold Bloom e Jack Miles que apresentam a “Bíblia como uma

produção literária a ser considerada livre dos dogmas que impuseram normas teológicas e

eclesiásticas aos textos”3. Bloom e Miles destacam a Bíblia, entendida como uma grande obra

literária que, lida sem a perspectiva religiosa, nos mostra ser uma das bases do pensamento

ocidental, tendo em Deus um dos mais importantes personagens da literatura de todos os

tempos.

No âmbito católico, a dicotomia entre teologia e literatura começa a ser superada

com Charles Moeller (1912-1986) com sua monumental obra em seis volumes Littérature du

XXe siècle et christianisme, sendo o prefácio do primeiro assinado em 1952

4.

Também com as obras de Romano Guardini (1885-1965) e Hans Urs von

Balthasar (1905-1988) a teologia dá passos significativos de aproximação à literatura.

Juntamente com a pesquisa de Charles Moeller, estas obras, por sua densidade e potencial de

aderência, marcam sinais de uma abertura da teologia aos valores que a literatura tem a

oferecer5.

Outra obra que sinaliza a aproximação entre teologia e literatura é a tese de

doutorado do dominicano Pie Duployé, com o título La religion de Péguy, defendendia em

2 Cf. KUSCHEL, Os escritores e as Escrituras, p. 17.

3 MAGALHÃES, Deus no espelho das palavras, p. 41.

4 Em língua portuguesa temos parte dessa obra, cf. MOELLER, Charles, Literatura do século XX e

cristianismo, 1958. 5 Cf. SOETHE, Paulo Astor. Introdução. In: DE MORI, Aragem do sagrado, p. 14.

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Estrasburgo, em 1964, em que se pergunta sobre o estatuto epistemológico da literatura para a

teologia, pois, uma vez que da literatura podemos extrair certa visão de mundo, também

podemos encontrar nela certa visão de Deus6.

Após a publicação da tese de Duployé, sua reflexão é retomada por outro

dominicano, Marie-Dominique Chenu, num artigo escrito em 1969, em que pela primeira vez

se refere à literatura como “lugar teológico”, mas se desviando da ideia original de seu

confrade, que considerava a literatura como uma forma não teórica de teologia7.

Em 1976, a revista Concilium8, tendo o editorial assinado por Jean-Pierre Jossua e

Johann Baptist Metz, nos apresenta um variado estudo sobre a relação entre teologia e

literatura, atenta às diferentes formas de literatura.

Dentro do cenário da discussão sobre a relação entre teologia e literatura, damos

maior destaque à pesquisa realizada nesse âmbito pelo teólogo Karl-Josef Kuschel, titular da

cátedra de Teologia da Cultura e do Diálogo Inter-Religioso na Faculdade de Teologia

Católica da Universidade de Tübingen, Alemanha. Dentre suas contribuições, citamos o

método da analogia estrutural, que este pesquisador considera ser o mais adequado para a

promoção do diálogo entre teologia e literatura. Esse método viabiliza considerar as

correspondências e as diferenças entre o discurso literário e o discurso teológico, sem cooptar

o objeto analisado, interpretando-o como cristão, semicristão ou anonimamente cristão, mas

respeitando a autonomia do escritor9.

No Brasil, temos em Antonio Manzatto um importante marco no diálogo entre

teologia e literatura com o seu livro Teologia e literatura: reflexão teológica a partir da

antropologia contida nos romances de Jorge Amado10

. Nesta obra, o autor legitima a literatura

como um verdadeiro instrumento de auxílio à compreensão teológica, uma vez que é rica em

dados antropológicos.

Além da contribuição da obra de Manzatto, no contexto latino-americano,

destacamos outras importantes contribuições como a criação da ALALITE (Associação

Latino-Americana de Literatura e Teologia), fundada em 2006, que tem como objetivo a

6 Cf. BARCELOS, Literatura e teologia. Numen, v. 3, n. 2 (2000), p. 11.

7 Cf. ibid., p. 14.

8 Cf. Concilium 115, 5 (1976).

9 Cf. BARCELLOS, Literatura e teologia. Numem, v. 3, n. 2 (2000), p. 23.

10 Cf. MANZATO, Antonio. Teologia e literatura. Reflexão teológica a partir da antropologia contida

nos romances de Jorge Amado. São Paulo: Edições Loyola, 1994.

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21

pesquisa e a reflexão de caráter interdisciplinar entre a Teologia e a Literatura; a publicação

do livro Aragem do Sagrado11

, em que um grupo de teólogos discute a relação entre teologia e

literatura brasileira contemporânea; e o estudo do porto-riquenho Luis N. R. Pagán abordando

a relação entre literatura e teologia na América Latina12

.

Nesse processo de aproximação entre teologia e literatura, mesmo que ainda

existam tensões e preconceitos, já podemos falar de contribuições significativas. Tanto a

teologia quanto a literatura saem enriquecidas desse confronto respeitoso de seus textos e de

seus princípios epistemológicos. Deste modo, gostaríamos de destacar as mais evidentes

contribuições que a teologia recebe da literatura. E a primeira que elencamos está no nível da

contribuição antropológica da literatura.

Em suas diferentes manifestações, a literatura apresentou durante a história

diferentes representações da visão do ser humano, frente a si mesmo e em relação às mais

diferentes realidades. Tais representações são mediadas pelo pensamento de um autor e

alinhadas a um senso estético, de modo que, para a literatura, sua “ocupação é sempre o

homem, o homem concreto, situado. Nesse sentido, ela é antropocêntrica”13

.

Sendo a literatura uma forma privilegiada de compreensão do ser humano, ela

pode ser usada como uma rica ferramenta para auxiliar a teologia na sua tarefa de

compreensão do homem, destinatário da Revelação, pois o

antropológico não constitui apenas um apêndice à reflexão teológica mas,

mais que isso, ele apresenta-se com capacidade de revelação do divino. Com

efeito, o Deus cristão revela-se aos homens na história humana e através do

humano14

.

Se a literatura nos ajuda a compreender o ser humano, é porque ela é uma

reorganização do mundo a partir do autor que, com sua criatividade e talento, transpõe a sua

cosmovisão para o nível do ilusório do texto literário, para a ficção, de forma que sua

ideologia se faz presente em cada obra que escreve. É um registro do ser humano e do mundo

em que o autor está inserido, aceitando-o como tal, ou “pintando-o” com outros matizes, mas

sempre tendo como base sua cosmovisão. É o que Stendhal, ou Marie-Henri Beyle (1790-

11

Cf. DE MORI, Geraldo; SANTOS, Luciano; CALDAS, Carlos (orgs.). Aragem do sagrado. Deus na

literatura brasileira contemporânea. São Paulo: Edições Loyola, 2011. 12

Cf. PAGÁN, Luis N. R. Mito, exílio y demônios. Literatura y teologia en América Latina. San Juan:

Publicaciones Puerto-riqueñas, 1996. 13

MANZATTO, Teologia e literatura, p. 7. 14

Ibid., p. 9.

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22

1848), afirma ao dizer que “um romance é um espelho que se carrega ao longo da estrada.

Tanto pode refletir para os seus olhos o azul do céu como a imundície do lamaçal da

estrada”15

.

Podemos dizer que as “obras literárias e artísticas descrevem dum modo particular

os acontecimentos de povos, famílias, pessoas. Pesquisam na profundidade do coração

humano, pondo em evidência luzes e sombras, esperanças e desesperos”16

. Nesta capacidade

que a literatura tem de descer às profundezas do coração humano é que fornece à teologia um

rico material de pesquisa, como nos diz a Gaudium et Spes:

A literatura e as artes são também, segundo a maneira que lhes é própria, de

grande importância para a vida da Igreja. Procuram elas dar expressão à

natureza do homem, aos seus problemas e à experiência das suas tentativas

para conhecer-se e aperfeiçoar-se a si mesmo e ao mundo; e tentam

identificar a sua situação na história e no universo, dar a conhecer as suas

misérias e alegrias, necessidades e energias, e desvendar um futuro melhor.

Conseguem assim elevar a vida humana, que se expressa de formas

diferentes, segundo os tempos e lugares (GS 62).

Deste modo, a contribuição antropológica da literatura para a teologia seria de

ajudá-la a conhecer melhor o ser humano, o que permitiria uma atualização constante da

forma com que se transmite a mensagem evangélica.

E tendo evidenciado essa relevância antropológica é que podemos lembrar suas

contribuições socioculturais, uma vez que a “[...] literatura é expressão privilegiada da vida de

um povo, pois enuncia aspectos importantes da sua identidade sociocultural e traduz os

anseios que o habitam em cada época”17

. Deste modo, a literatura desafia a teologia, a fé

cristã e a vida eclesial a novas reconfigurações, pois já que o caráter sociocultural é sempre

dinâmico e passível de diferentes hermenêuticas, ele afronta qualquer tipo de imobilismo.

Se Stendhal falava do romance como um espelho que tem nele refletidas as

impressões que o autor tem do mundo, também podemos dizer que a literatura é como uma

fotografia, que registra costumes, linguagens e uma série de outras informações técnicas

imersas na ficção (dados econômicos, topográficos, jurídicos etc).

15

STENDHAL, O vermelho e o negro, p. 438. 16

CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA, Dimensão religiosa da educação na escola

católica. Orientações para a reflexão e a revisão. Disponível em:

<http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/ccatheduc/documents/rc_con_ccatheduc_doc_198

80407_catholic-school_po.html.> Acesso em 13/02/2013. 17

DE MORI, O Deus que vem à narração em Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro.

In:______, Aragem do sagrado, p.269.

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23

Por ser a literatura rica em suas dimensões antropológicas, socioculturais,

destacamos ainda sua riqueza simbólica. Isso se explica pelo fato de que a memória cultural é

preservada pelos símbolos (condensados em objetos e ações). Assim, a literatura se presta

como um registro e um instrumento de transmissão desse universo simbólico.

Desse modo, quando a teologia acolhe a literatura em seu discurso, ela se depara

com narrativas, ficções, e tem uma ferramenta a mais para compreender a medida com que os

símbolos cristãos e a própria teologia estão incrustados no imaginário popular. Podemos

exemplificar isso a partir do livro Drácula, escrito em 1897, pelo irlandês Bram Stoker18

. A

narrativa nos mostra a força dos símbolos cristão-católicos que têm a capacidade de afastar o

mal, personificado no Drácula, e ao mesmo tempo nos instiga a perguntar como as pessoas do

final do século XIX lidavam com a escatologia cristã e suas fantasias em torno da “vida”

pós-morte. Os exemplos seriam muitos. Lembramos ainda J.R.R. Tolkien, que por volta de

1917, escreveu O Silmarillion19

, que é uma belíssima narrativa da criação do mundo e dos

povos e suas divisões geográficas, o que se aproxima muito do livro do Gênesis. Ambos os

romances, mencionados a título de exemplos, são ricos em símbolos cristãos, tomados do

universo cultual, bíblico e teológico do cristianismo.

A dimensão simbólica da literatura também nos convida a pensar uma teologia

que não se feche em conceitos abstratos, quase que “domesticando” o próprio Deus, que,

capturado pelo conceito teológico, não possa ser pensado de qualquer outra forma. O teólogo

que se aproxima da literatura com um olhar amistoso e se pergunta pela imagem de Deus que

emerge de seus textos é surpreendido com a multiplicidade de possibilidades com que se

depara. A produção teológica contemporânea não pode fechar os olhos para os riscos do

fundamentalismo bíblico e tradicional, e seu trabalho não pode reduzir-se a uma simples

repetição dogmática de tudo o que já foi promulgado na história da Igreja20

.

Em resumo, podemos dizer que a contribuição da literatura para a teologia, em

suas linhas mais gerais, é a possibilidade de melhor compreensão do ser humano, seu universo

social e seu imaginário e a afirmação da irredutibilidade de Deus em conceitos.

18

Cf. STOKER, Bram. Drácula. São Paulo: Nova Cultural, 2003. 19

Cf. TOLKIEN, J. R. R. O Silmariollion. São Paulo: Martins Fontes, 2009. 20

Podemos falar de atualização do pensamento teológico, tomando como exemplo o trabalho de

GIBELLINI, Gibellini, A teologia do século XX, publicado em 1992, que nos mostra os diferentes

enfoques que a teologia teve no século XX.

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24

A literatura também é enriquecida pela teologia. Não queremos nos estender

muito nesse aspecto, por isso apenas reproduzimos o pensamento de Antonio Manzatto a esse

respeito, ao dizer que “[o] que a teologia mais oferece à literatura são temas teológicos, tais

como Deus, fé, Igreja, relações entre o homem e Deus, que são também as questões

fundamentais da teologia”21

. Esta é uma oferta da teologia, o que não significa que a literatura

deva depender desses temas e suas abordagens feitas pelos teólogos para sua produção.

1.2. As balizas para estabelecer um diálogo entre literatura e teologia

Falar que a literatura possa ser uma ajuda ao exercício teológico não quer dizer

que ela deva ser instrumentalizada pela teologia, perdendo sua autonomia e liberdade de

expressão, pois, somente sendo autônoma e livre, ela pode estabelecer diálogo com a teologia.

Seria absurdo querer que toda a literatura seja “púlpito” ou valorizar unicamente a literatura

explicitamente cristã e apologética. Pelo contrário, como dizia Waldecy Tenório, “[aqui] seria

interessante fazer nem que fosse um breve excurso sobre a rebeldia natural da literatura só pra

dizer: Não esperemos dela submissão a dogmas, nem a doutrinas, nem a posições de classe”22

.

Outro absurdo é querer que a teologia passe um “pente fino” em cada obra

literária, dando seu crivo de aceitável ou não. A teologia não é critério de juízo sobre a

literatura, pois esta goza de suas regras próprias, mas tem algo a dizer ao ser humano que

emerge desses textos e tem algo a aprender com eles.

Se estamos falando de diálogo entre duas áreas distintas de conhecimento, ambas

devem estar dispostas a ouvir o que cada uma tem a dizer. Da parte da teologia,

o zelo confessional, em relação à própria identidade religiosa, se legítimo em

outras instâncias, torna-se problemático ante as exigências da análise

científico-literária. Vítima dessa extrapolação, o estudo de uma obra de arte

se desvirtua, pois a vista do(a) intérprete se vicia, não lhe permitindo

enxergar além dos dados que sua própria visão religiosa fornece23

.

Por fim, queremos ainda dizer que o autor é alguém que sintetiza ideias e as

transforma em arte literária, pois não podemos colocar “[...] o autor quase como um semideus

21

MANZATTO, Teologia e literatura, p. 65. 22

TENORIO, Waldecy. Pós-escrito a Bailadora andaluza: poesia e mística em João Cabral. In: DE

MORI, Aragem do sagrado, p. 190. 23

SILVA, Rogério Mosimann da. A literatura como provocação para o diálogo intercultural e inter-

religioso. Uma reflexão a partir da obra de Guimarães Rosa. In: DE MORI, Aragem do sagrado, p.

149.

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25

a ser ouvido e lido, dando a impressão de que a atividade literária seria o resultado de seres

com criatividade singular e quase atemporal, sendo a única forma de análise a estética”24

.

1.3. O gênero literário “teatro”

Encerrando esta primeira parte, cabe elucidar o que compreendemos por literatura.

Definir a literatura não é uma tarefa muito fácil25

, devido ao fato de a arte literária ser extensa

e complexa26

. De um modo geral, podemos partir da afirmação de que o “lexema complexo

litteratura, derivado do radical littera – letra, caráter alfabético -, significa saber relativo à

arte de escrever e ler, gramática, instrução, erudição”27

.

Essa primeira afirmação nos leva a definir, ainda de modo amplo, a literatura

como “o conjunto da produção escrita”28

, sendo sua matéria-prima a linguagem, que pode ser

falada ou escrita, como forma de expressão29

.

Passando para uma compreensão mais restrita de literatura, podemos classificá-la

como ficção, uma criação textual duma suprarrealidade, pautada nos dados singulares e

pessoais de um artista30

.

Mesmo falando em “literatura”, no singular, devemos ter em mente que a arte

literária se mostra em diversos estilos literários, com suas diferentes modalidades e escolas,

sendo talvez mais apropriado, por causa dos gêneros literários, falar em “literaturas”.

Por uma opção didática, poderíamos simplificar a questão classificando os

gêneros literários em três tipos: o épico, o lírico e o dramático31

. Como o texto que estamos

analisando é um auto, ou seja, uma representação teatral de inspiração medieval,

restringiremos nosso foco ao gênero dramático.

24

MAGALHÃES, Deus no espelho das palavras, p. 201. 25

Cf. MANZATTO, Teologia e literatura, p. 14. 26

Temos uma conceituação de literatura e literariedade apresentada de modo bastante didático,

tratando das variações que o conceito sofreu ao longo da história no livro de SILVA,Victor Manuel de

Aguiar e, Teoria da Literatura, p. 1-40. 27

AGUIAR E SILVA, Teoria da literatura, p. 2. 28

AMORA, Teoria da literatura, p. 23. 29

Cf. ibid., p. 23. 30

Cf. AMORA, Teoria da literatura, p. 24. 31

Alguns especialistas dividem a questão da divisão dos gêneros literários em apenas dois: poesia e

prosa (por exemplo, cf. SUASSUNA, Iniciação à estética, p. 336). Antônio S. Amora também

concorda em dividir os gêneros literários dessa maneira, contudo, acrescenta uma subdivisão destes

em: forma, composição e conteúdo (cf. AMORA, Teoria da literatura, p. 151).

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26

A palavra “drama”, proveniente do grego, significa “ação”. Seus textos são

escritos em forma de diálogo ou de monólogo, visando a representação. Assim, o gênero

dramático “[...] caracteriza-se pelo ocultamento, pela separação do autor em relação ao seu

auditório, cabendo aos caracteres internos da história representada dirigirem-se diretamente a

esse mesmo auditório”32

.

Nesse sentido, o texto dramático tem como finalidade a sua representação, o que

liga o gênero literário dramático profundamente ao teatro, o qual

define-se como a arte da representação, realiza-se quando os atores,

encarnando personagens, simulam viver, sobre um palco e perante um

auditório, o conflito de suas existências. Arte do espetáculo, portanto, o

teatro é por excelência arte visual, destinada a ser presenciada: tornando

presente o jogo existencial de alguns seres fictícios (re-presentar), o teatro

implica também a presença de espectadores”33

.

A partir dessa visão panorâmica da relação entre literatura / teatro e teologia é que

nos propomos a analisar o Auto da Compadecida, do grande dramaturgo brasileiro Ariano

Suassuna. Para nos ajudar nesse intento, deter-nos-emos sobre sua vida e obra.

2. O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna

Na segunda parte deste capítulo apresentamos alguns dados biográficos de Ariano

Suassuna e da sua obra o Auto da Compadecida. Para falarmos da obra, iniciaremos

mostrando as suas raízes medievais e europeias plantadas no nordeste sertanejo do Brasil,

para adentrarmos no enredo da peça teatral e em sua relação com a religiosidade popular.

2.1. O autor

Ariano Vilar Suassuna nasceu em 16 de junho de 1927, na cidade que até 1930 se

chamava Nossa Senhora das Neves, hoje João Pessoa, capital da Paraíba. Ariano é o oitavo

filho de João Urbano Pessoa de Vasconcelos Suassuna e Rita de Cássia Dantas Villar34

. Seus

primeiros anos se passaram na fazenda Acauhan (ou Acauã, segundo a atual ortografia), no

município de Souza / PB. Acauã é o nome de um pássaro considerado agourento por atrair a

seca35

.

32

AGUIAR E SILVA, Teoria da literatura, p. 371. 33

MOISÉS, A criação literária, p. 260. 34

O sobrenome materno “Vilar” que Ariano herdou deveria ser escrito com dois “L”, contudo seu

registro de nascimento foi feito com grafia errada (cf. TAVARES, ABC de Ariano p. 210). 35

Cf. TAVARES, ABC de Ariano, p. 9.

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O pai de Ariano, João Suassuna, foi presidente do Estado da Paraíba de 1924 a

1928, passando o cargo a João Pessoa. Este deu início a reformas políticas e tributárias,

afetando diretamente produtores e comerciantes de algodão, o que contribuiu com o processo

de enfraquecimento do poder político dos “coronéis”. Uma série de intrigas políticas teve

como desfecho o assassinato de João Pessoa por um representante dos clãs da oposição

sertaneja.

Tendo sido considerado um dos instigadores da morte de João Pessoa, João

Suassuna acabou sendo também ele assassinado por um pistoleiro, no Rio de Janeiro, em 9 de

outubro de 1930.

Em 1933, a família de Ariano Suassuna se muda para Taperoá, aí permanecendo

até 1942, quando se transladou para o Recife. Taperoá é “uma pequena cidade dos Cariris

Velhos, no sertão da Paraíba, que ultrapassou os 12.000 habitantes apenas no censo de

1975”36

. Esses 10 anos vividos em Taperoá serão fundamentais para a obra literária de

Suassuna, uma vez que este lugar se converterá no “centro geográfico-literário” de seu

universo artístico.

Em 1937, ele ingressa no tradicional Colégio Americano Batista. A escolha da

escola deve-se tanto pela qualidade do ensino como também pela sua confessionalidade

protestante. Mas sobre isto ele diz: “Recebi uma instrução religiosa no colégio Americano,

mas com a rebeldia natural da adolescência, da juventude, não aceitei. Então, houve um

tempo em que neguei tudo. Eu não aceitava coisa nenhuma”37

.

Essa ligação com o protestantismo calvinista deve-se ao fato de que sua avó

materna, Dona Afra, tendo ficado gravemente enferma, contou com a assistência do médico

norte-americano e protestante Samuel Butler. Dada a melhora, ela ingressou no

protestantismo acompanhada da filha, mãe de Ariano, embora casada com João Suassuna na

Igreja católica38

.

Quando criança, o autor teve contato com grandes escritores devido à biblioteca

paterna. Nela descobriu Dostoiévski, Tolstói, Cervantes e Homero entre outros, sendo que aos

12 anos já sonhava em ser escritor39

. Um curioso costume infantil era o de arrancar um

36

SANTOS, Em demanda da poética, p. 69. 37

TAVARES, ABC de Ariano, p. 36. 38

Cf. ibid., p. 35. 39

Cf. NOGUEIRA, O cabreiro tresmalhado, p. 86.

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28

pedacinho de cada livro que lia e levá-lo à boca, o que fez dele um verdadeiro “devorador de

livros”40

.

O circo, grande momento de festa nas cidades do interior do sertão nordestino, foi

uma lembrança de infância que deixou marcas em suas obras. Dos seus artistas destaca-se

para Suassuna o palhaço Gregório, estrela do circo Stringhini, que reaparecerá no Auto como

o palhaço-narrador. Numa de suas biografias, escrita por Adriana Victor e Juliana Lins,

registra-se um testemunho interessante do nosso autor:

“Depois de assistir aos espetáculos, eu ficava dias e dias repetindo

exatamente tudo o que os palhaços haviam dito, as brincadeiras, as graças.

Minha mãe e minhas irmãs se cansavam da mesma história – uma delas

chorou depois de tanto eu repetir as brincadeiras de Gregório”, não esquece

Ariano41

.

Outra marcante influência de infância foi o teatro de mamulengos, conhecido em

outros lugares do Brasil como marionetes. A partir da recordação dessa experiência escreve,

em 1959, A pena e a lei, uma peça para teatro que começa com os personagens no primeiro

ato encenando como mamulengos, depois como semi-humanos, para somente no terceiro e

último ato agirem como pessoas.

Destacamos que essas recordações de adolescência e infância de Suassuna não são

periféricas para conhecer sua genialidade, pois é nessas etapas da vida que vai se formar todo

o universo mítico literário que encontramos em suas obras. Ele mesmo diz: “Depois daí, tudo

é acréscimo” 42

.

O autor entra para a Faculdade de Direito do Recife em 1946. Neste ano,

reorganiza, sob a direção de Hermilo Borba Filho, o Teatro de Estudantes de Pernambuco

(TEP). Forma-se em Direito em 1950, profissão que abandona para se dedicar à arte em 1956.

Em 19 de janeiro de 1957, casa-se com Zélia de Andrade Lima, depois de um

namoro de nove anos, como era costume nas famílias sertanejas tradicionais. Sua opção pelo

catolicismo foi fortemente influenciada pela esposa que o fez “olhar a Igreja com olhos menos

hostis”43

.

40

Cf. VICTOR, Ariano Suassuna, p. 12. 41

Ibid., p. 29. 42

VICTOR, Ariano Suassuna, p. 34. 43

NOGUEIRA, O cabreiro tresmalhado, p. 97.

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Sua primeira obra de teatro foi a peça Uma mulher vestida de sol, em 1947, que

possui três versões. Foi sugerida por Hermilo Borba Filho, sob inspiração das peças de Garcia

Lorca. Apresentada pela Rede Globo em 1994, com adaptação para TV dirigida por Luiz

Fernando Carvalho, foi seu primeiro trabalho exibido na televisão.

Com o intuito de valorizar a cultura nordestina, criou, em 1970, junto com outros

artistas, o Movimento Armorial, cuja ideia central é a promoção de uma arte brasileira erudita

com raízes na cultura popular. O lançamento aconteceu no Recife, em 18 de outubro de 1970,

com um concerto da Orquestra Armorial de Câmera, com o título: Três Séculos de Música

Nordestina: do Barroco ao Armorial. O evento também contava com uma exposição de

gravuras, pinturas e esculturas, tendo ocorrido na igreja de São Pedro dos Clérigos, no Recife.

A palavra “armorial” é um substantivo usado no livro em que se registram

símbolos de nobreza, como os brasões. Contudo, Suassuna o usa como adjetivo,

primeiramente por causa da beleza da palavra e depois por causa da sua ligação com os

brasões, e por fim, como ele diz

Descobri que o nome „Armorial‟ servia, ainda, para qualificar os „cantares‟

do Romanceiro, os toques da viola e rabeca dos Cantadores – toques ásperos,

arcaicos, acelerados como gumes de faca-de-ponta, lembrando o clavicórdio

e a viola-de-arco da nossa Música Barroca do século XVIII44

.

O Movimento Armorial em seu intuito de promover a cultura nordestina está

particularmente ligado ao Nordeste não apenas pelo fato de todos os seus membros serem

nordestinos, sendo a produção artística uma mera decorrência disto, mas pelo uso das fontes

populares (folhetos, xilogravuras, cantares etc.), criando “uma arte brasileira erudita baseada

nas raízes populares de nossa cultura”45

. Delimita, assim, sua fonte de pesquisa no “espaço”

cultural nordestino, sertanejo e rural, reelabora todo este material e o lança para os grandes e

diversos palcos do mundo.

A “armorialidade” do movimento está fundada em três elementos: “a literatura

popular do Nordeste como modelo poético e via privilegiada de criação de uma arte nacional

e universal; os modos de recriação da literatura oral; as relações estritas entre as artes”46

.

44

VICTOR, Ariano Suassuna, p. 76. 45

Cf. VASSALLO, O sertão medieval, p. 26. 46

SANTOS, Em demanda da poética, p. 37.

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30

Suassuna foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, assumindo, a 09 de

agosto de 1990, a cadeira número trinta e dois. Pertenceu também à Academia Pernambucana

de Letras desde 01 de dezembro de 1993, ocupando a cadeira número oito.

Finalizamos essa apresentação de Suassuna, elencando algumas de suas obras

literárias e o ano em que foram escritas: Uma mulher vestida de sol (1947); O desertor de

Princesa (Cantam as harpas de Sião) (1948); Os homens de barro (1949); Auto de João da

Cruz (1950); Torturas de um coração ou Boca fechada não entra mosquito (1951); O arco

desolado (1952); O castigo da soberba (1953); O rico avarento (1954); Auto da

Compadecida (1955); História de amor de Fernando e Isaura (1956); O casamento

suspeitoso e O santo e a porca (1957); O Homem da Vaca e o Poder da Fortuna (1958); A

pena e a lei (1959); Farsa da boa preguiça (1960); A Caseira e a Catarina (1962); O Seguro

(1964); O sedutor do Sertão (1966); Romance d‟A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do

vai-e-volta (1971); História d‟O rei degolado nas caatingas do sertão: Ao sol da onça

Caetana (1976); História d‟O rei degolado nas caatingas do sertão: As infâncias de

Quaderna (1977); As conchambranças de Quaderna (1987); A história de amor de Romeu e

Julieta e Iniciação à estética (1996).

Deter-nos-emos agora na obra, objeto de nosso estudo, para o diálogo entre

teologia e literatura, o Auto da Compadecida. Alguns elementos da vida de Suassuna serão

retomados, sob a perspectiva de relacioná-los com o Auto da Compadecida que, desde a

década de 50, entre risos e lágrimas, conquistou um número crescente de admiradores.

2.2. A obra Auto da Compadecida

Nesta parte nos detemos na apresentação dos elementos fundamentais do Auto da

Compadecida tendo como objetivo alcançar uma visão de conjunto da peça teatral em

questão.

2.2.1. As raízes medievais e europeias da obra

Apoiada em historiadores e sociólogos sérios, L. Vassallo47

mostra a configuração

social do Nordeste brasileiro do século XX, ou até mais precisamente o início da era Vargas,

47

Para tratarmos desse tema em nossa análise do Auto da Compadecida, buscaremos apoio,

prioritariamente, no estudo de VASSALLO, Ligia. O sertão medieval, em que a autora investiga as

origens europeias e medievais do teatro de Suassuana.

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identificado com a situação medieval portuguesa. Esses traços medievais são percebidos não

somente nas obras de Suassuna como também nas obras de José Lins do Rego48

.

Sobre os modelos formais dramáticos da literatura ocidental, que aparecem na

literatura popular e, sobretudo na de cordel, L. Vassallo diz:

Neles predomina o teatro religioso medieval, sobretudo ibérico (mistério,

milagre, moralidade), ao qual se acrescentam traços do auto sacramental

barroco (ainda muito ligado à medievalidade, apesar de ser um produto do

século XVIII), em associação com formas da dramaturgia profana vigentes

na cena durante a transição entre o período medieval e os tempos modernos

(farsa e comédia italiana)49

.

A partir desses modelos é que detectamos, enquanto características gerais do

teatro de Suassuna, quatro elementos que se identificam com os temas e as estruturas da

literatura medieval.

O primeiro elemento é seu enraizamento no universo religioso-simbólico do

catolicismo, visando trazer um final moralizante. Mais adiante, trataremos da forma como a

obra de Suassuna se relaciona com o catolicismo popular, por isto aqui apenas nos limitamos

a mostrar como esse importante dado do catolicismo se relaciona com a literatura medieval,

que tem a pretensão de reler toda a história, das pessoas e do mundo, sob a ótica cristã, o que

confere uma função didática moralizante de caráter atemporal, uma vez que as fontes bíblicas

são as mesmas, ligando o homem nordestino do século XX ao medieval da Península Ibérica.

Esse aspecto religioso perpassa toda a peça teatral Auto da Compadecida, trazendo elementos

muito significativos da teologia medieval (como veremos no segundo e no terceiro capítulo da

dissertação), apesar, também, das rupturas com essa mentalidade.

O seguinte elemento a destacar é a mistura que a dramaturgia medieval faz entre

religioso e profano, ou também, sério e jocoso50

. Essa mistura aparece na construção do teatro

como um todo, mas também nas cantigas e ditos populares que são inseridos nas peças

teatrais. É o que vemos em João Grilo que não para de fazer “graça”, nem mesmo diante do

juízo divino na morte.

Também os personagens estereotipados, terceiro elemento, que são construídos de

forma muito ligada ao concreto do cotidiano, sem uma psicologia aprofundada (diferente dos

48

Cf. VASSALLO, O sertão medieval, p. 15. 49

Ibid., p. 17. 50

Cf. ibid., p. 19.

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personagens de Stendhal ou Machado de Assis)51

, buscando dar respostas a situações

imediatas, como a fome, vontades / caprichos, paixões etc. Esse tipo de personagem não

aparece apenas na dramaturgia, mas também nos contos e na literatura oral medieval. Nossos

personagens estão muito dentro disto: é João Grilo que quer dinheiro e quer se vingar do

padeiro e sua esposa; bispo, padre e sacristão que querem manter seus cargos e tirar deles o

maior proveito possível; o Cangaceiro que invade a cidade para saquear os moradores e não

expressa sentimento algum com essa ação; e assim por diante.

O último elemento a ressaltar é certo tipo de maniqueísmo em que o bem e o mal

estão sempre em luta. Essa espécie de maniqueísmo é reforçada pela intenção moralizante que

conclui algumas das obras de Suassuna. No Auto da Compadecida isto fica bem claro a partir

das figuras do Encourado e da Compadecida, apresentados de forma antagônica, disputando

diante de Manuel o destino final das almas.

Assim, se apresentamos essas quatro características literárias também é preciso

lembrar o contexto histórico e econômico que aproximam ambas as realidades, ou seja, o

Nordeste brasileiro e a Península Ibérica medieval.

Em Portugal e Espanha, na Idade Média como no século XVI, havia um amplo

público de analfabetos, o que fazia com que a literatura oral fosse algo marcante na vida do

povo. Isso se dava por meio de leituras em voz alta, a grupos de ouvintes, de peças

dramáticas, histórias rimadas adaptadas ao canto e textos que os cegos vendiam nas ruas,

conhecidos como folhetos de cordel, por estarem presos a varais, e comercializados por preço

acessível ao público pobre52

.

No século XVI, o livro é artigo raro e caro, próprio da cultura palaciana e clerical,

sendo que a forma popular de literatura que mais ganha expressão são os folhetos de cordéis.

Deste modo, nosso cordel nordestino é herdeiro direto do ibérico. Contudo, as

histórias que de lá chegaram recebem no Nordeste adaptações bem características, sobretudo

pela inclusão do modo típico das cantorias do sertão e pelas xilogravuras que ilustram as

capas dos folhetos53

. Assim, ligamos o Auto da Compadecida à herança ibérica do cordel,

51

Cf. VASSALLO, O sertão medieval, p. 35. 52

Cf. ibid., p. 55. 53

Cf. TAVARES, ABC de Ariano, p. 25.

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pois os seus três primeiros atos são formados a partir de folhetos54

, como também o próprio

personagem João Grilo é proveniente dessa literatura. Cabe então perguntar se Suassuna seria

um plagiador ou um autor sem criatividade.

Obviamente é incabível acusar Suassuna de falta de criatividade. Quanto ao

plágio, é preciso que entendamos que a regra de copiar a obra de outro autor, sem citar sua

fonte, é uma característica da literatura cordelesca. Se na maioria das vezes55

a imitação é um

defeito e o plágio, um crime, para o cordel, como também para o circo, o teatro de rua, o

Romanceiro das línguas latinas, as Baladas de língua inglesa, esse recurso é legítimo e

considerado enriquecedor56

.

O cordel, com suas raízes ibéricas, mantendo vivas histórias populares, sofre

modificações em nosso país, através do processo de transcrição ou reescrita do cordel. Alguns

elementos textuais são mudados para favorecer a rima e a musicalidade da narração, incluindo

aí o que é típico da linguagem nordestina: uma espada, por exemplo, pode virar uma peixeira,

desde que esteja de acordo com a rima.

Suassuna, em suas comédias teatrais, “procura recuperar e reproduzir mecanismos

narrativos da comédia medieval e renascentista da Europa e da comédia popular do

Nordeste”57

. Neste seu intento, evidencia-se um traço importante que caracteriza a

compreensão de seu modo de escrever peças de teatro, que é o caráter tradicional e coletivo,

sendo que a originalidade individual cede espaço ao processo de criatividade de uma

comunidade.

No posfácio do Auto da Compadecida58

, Braulio Tavares inicia seu texto,

refletindo sobre essa questão do plágio e da originalidade do autor:

54

“Os folhetos do romanceiro nordestino são também chamados de folhetos de cordel porque, segundo

alguns pesquisadores, eram vendidos nas barracas das feiras e dos mercados pendurados em cordões

ou em barbantes, os tais cordéis, para ficarem à vista do freguês. Chegaram ao Brasil como uma de

nossas heranças ibéricas. As capas dos folhetos nordestinos exibem xilogravuras (gravura impressa a

partir de uma matriz em madeira), acrescentando artes plásticas à obra literária” (VICTOR, Ariano

Suassuna, p. 52). Mais adiante explicaremos os três folhetos que constituem as fontes para a

elaboração do Auto da Compadecida 55

A literatura dos árcades e a literatura barroca brasileira, sobretudo aquela desenvolvida por Gregório

de Matos, eram pautadas na imitação de formas e temas. 56

Cf. TAVARES, Tradição popular e recriação. In: SUASSUNA, Auto da Compadecida (35ª Ed.), p.

178-179. 57

Ibid., p. 176. 58

Referimo-nos à 35ª edição da obra, publicada pela editora Agir, em 2005.

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Reza a lenda que certa vez um crítico teatral abordou Ariano Suassuna e o

inquiriu a respeito de alguns episódios do Auto da Compadecida. Disse ele:

“Como foi que o senhor teve aquela ideia do gato que defeca dinheiro?”

Ariano responde: “Eu achei num folheto de cordel.” O crítico: “E a história

da bexiga de sangue e da musiquinha que ressuscita a pessoa?” Ariano:

“Tirei de outro folheto.” O outro: “E o cachorro que morre e deixa dinheiro

para fazer o enterro?” Ariano: “Aquilo ali é do folheto, também.” O sujeito

impacientou-se e disse: “Agora danou-se mesmo! Então, o que foi que o

senhor escreveu?” E Ariano: “Oxente! Escrevi foi a peça!”59

.

Outro resquício de mentalidade medieval que aparece nas obras de Suassuna

emerge da sociedade nordestina que se baseia num feudalismo atípico, que melhor se

configuraria com o sistema de patrimonialismo, ou seja, forma de organização social em que

não se faz distinção entre patrimônio público e privado. No Brasil esse sistema foi fruto do

período colonial em que se concederam títulos, terras e poderes quase que absolutos a seus

donos. Essa situação é observável até a metade do século XIX, como podemos constatar a

partir do

latifúndio, a monocultura, a estreita dependência econômica e cultural em

relação à metrópole, a família patriarcal, o afidalgamento dos grandes

proprietários e dos dirigentes, o desprezo pelo trabalho manual, a escravidão,

um rígido esquema social cujos polos extremos deixam pouco espaço para os

homens livres sem posses, o isolamento das grandes propriedades e sua

relativa autonomia interna, a quase nula circulação de moedas no interior

daquelas terras visto que sua produção se orientava para o mercado

ultramarino, a escassez de comunidades urbanas60

.

Deste modo, a fazenda e o engenho, enquanto base do latifúndio, gozam de

semelhança com a Europa medieval por constituírem “instituições totais”, devido ao seu

isolamento e autonomia, aproximando-os do que entendemos por feudo61

.

E se a fazenda e o engenho se assemelham ao feudo medieval, também podemos

dizer que o fazendeiro, ou como se costuma chamar, o coronel, é uma aproximação do senhor

feudal62

.

Concluímos, então, que a obra teatral de Suassuna tem, de fato, como base um

amálgama de estruturas teatrais / literárias e contextos culturais e econômicos vigentes na

Península Ibérica desde a Baixa Idade Média até meados do século XVII63

.

59

Cf. TAVARES, Tradição popular e recriação. In: SUASSUNA, Auto da Compadecida (35ª Ed), p.

175. 60

VASSALLO, O sertão medieval, p. 59. 61

Cf. ibid., p. 60. 62

Cf. SANTOS, Em demanda da poética, p. 76.

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2.2.2. O Nordeste e o Sertão na obra de Suassuna

Quando nos referimos aqui ao Nordeste e ao Sertão na obra de Suassuana, não

estamos nos referindo ao espaço geográfico nordestino em que o autor pensou toda a sua obra,

mas sim ao espaço físico e cultural que foi internalizado pelo escritor e que aflora em seus

textos, ou seja, falamos de um locus mítico. É a terra escaldada pelo sol, onde vivem

“amarelos”, coronéis e beatos e todos os seus personagens.

O locus de Suassuna está “plantado” no Nordeste brasileiro. O Nordeste pode ser

pensado a partir da zona açucareira, marcada pela escravidão, senhores de engenho e rica

vegetação, ou a partir do sertão64

, que com sua “terra dura e seca recusa o pé do homem e o

ferro da enxada, um Nordeste sem água nem vegetação [...]”65

. Suassuna vai eleger o sertão66

como o espaço geograficamente delimitado para a criação de sua arte. Lembremo-nos

brevemente dos que fizeram a mesma escolha como Afonso Arinos, Euclides da Cunha,

Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto, sem contar os inúmeros cronistas, cantores e

compositores que dedicaram sua escrita e voz aos mistérios dessa região67

.

O sertão, entendido como “chão” ficcional, onde Suassuna constrói toda sua

arquitetura literária, tem uma cidade que é a capital: Taperoá, cidade em que nosso autor

viveu dos 6 aos 14 anos. Junto a essa capital, temos também as Pedras do Reino e a fazenda

Acauhan, formando uma espécie de triângulo, que será o palco de toda a obra suassuniana68

.

Taperoá será a cidade em que se desenrola o Auto da Compadecida, como

também outras obras do autor, como o Romance d‟A Pedra do Reino, A pena e a lei. Em Uma

mulher vestida de sol, alguns personagens se apresentam como nascidos em Taperoá69

.

Na cadeia de Taperoá, o personagem Quaderna, no Romance d‟A Pedra do Reino,

descreve o motivo de sua prisão, partindo sua narrativa desde suas origens régias até a volta

63

Cf. VASSALLO, O sertão medieval, p. 20. 64

Vale a pena ressaltar a crítica a essa visão de Nordeste feita por ALBUQUERQUE Jr, Durval Muniz

de., em seu livro A invenção do Nordeste e outras artes. 65

SANTOS, Em demanda da poética, p. 64. 66

Algumas palavras no conjunto das obras de Ariano Suassuna são sempre escritas com a primeira

letra em maiúsculo, por exemplo, a palavra “Pai”. A escolha destas palavras é feita de acordo com a

importância que elas têm para ele. A palavra “sertão” é uma das que ele elegeu para serem escritas

desta forma, contudo, em nossa pesquisa, não seguiremos essa característica de Suassuna. 67

É quase que obrigatória uma recordação da música Asa Branca, composta por Luiz Gonzaga e

Humberto Teixeira, em 1947, como uma das grandes expressões da alma sertaneja e nordestina. 68

Cf. TAVARES, ABC de Ariano, p. 165. 69

Cf. SUASSUNA, Uma mulher vestida de sol, p. 44-45.

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de Sinésio, o Alumioso, que “é um herói purificado pelo sofrimento e perseguição, e que traz

a luz para o povo de Taperoá (sua cidade natal)”70

. É nesta mesma cidade, retratada na peça

para teatro A pena e a lei, que acontece a tentativa de Benedito conquistar o amor de Marieta,

disputando-o com Vicentão e Cabo Rosinha, como também o esforço por defender Mateus da

acusação de roubo.

Os exemplos que citamos servem para nos indicar que o sertão para Suassuna está

longe de ser um espaço de plena realização neste mundo. É o espaço do contraditório que

busca harmonizar-se. É uma terra marcada pela seca, mas que permite a João Grilo sonhar

com um “bife passado na manteiga”; uma terra de homens rudes, sejam eles beatos ou

cangaceiros, mas que encontra contraste com o palhaço, o “amarelo” e o mentiroso Chicó; da

devoção católica sertaneja ao clero corrompido; etc.

Essa contradição da vida expressa no chão sertanejo em busca de harmonia pode

ser entendida como o campo de batalha que cada ser humano tem diante de si mesmo e do

mundo, como também o espaço de lutas políticas. Taperoá é um microcosmo do Brasil. É a

utopia de que a América Latina, a Europa Mediterrânea, a Ásia e a África, dentro de um

movimento histórico, se contraponham “à globalização econômica, à massificação cultural e à

sujeição econômica”71

.

2.2.3. O Auto da Compadecida

Antes de falarmos sobre a peça teatral, gostaríamos de nos ater ao conceito de

“Auto”, termo este que rege toda a concepção teatral do texto, cuja teologia pretendemos

analisar posteriormente. Eis uma definição de “Auto”:

Termo que no século XVI (nomeadamente na edição do teatro vicentino) se

aplicava a peças de teatro ao gosto tradicional. Os assuntos podiam ser

religiosos ou profanos, sérios ou cômicos. Os autos, ao mesmo tempo que

divertiam, moralizavam pela sátira de costumes e inculcavam de modo vivo

e acessível as verdades da fé72

.

Quando falamos desse gênero dramático da literatura, torna-se importante lembrar

a figura do português Gil Vicente (1465-1536), que marcou a história com seus autos, como

por exemplo, Auto da Barca do Inferno, Auto da Barca do Purgatório, Auto da Barca da

Glória, Auto da Alma, e outros.

70

NOGUEIRA, O cabreiro tresmalhado, p. 50. 71

TAVARES, ABC de Ariano, p. 178. 72

COELHO, Auto. In: ______. Dicionário de Literatura, p. 75, v. I.

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Não nos deteremos no processo histórico de assimilação desse gênero em terras

brasileiras e, mais especificamente, nordestinas. Mas assinalamos que a representação

portuguesa em forma de autos encontra seu elo de continuidade na tradição popular

nordestina do bumba-meu-boi, do fandango e dos autos pastoris73

.

Suassuna, em sua arte, tem como opção trabalhar a cultura popular nordestina

como matéria-prima, buscando seu espírito, mas não a sua forma, que será apresentada,

intencionalmente, como uma ruptura do teatro intimista e psicológico burguês, para priorizar

uma modalidade nordestina e brasileira de fazer teatro74

.

O Auto da Compadecida, desta forma, é um dos marcos do teatro genuinamente

brasileiro, juntamente com a peça Deus lhe pague..., de Joracy Camargo, apresentada em

193275

. Mesmo não sendo o primeiro texto teatral escrito por Suassuna76

é o que atinge o

maior sucesso de crítica, inserindo o nome de seu autor de forma definitiva no campo do

teatro e da arte nacional.

A peça foi escrita em 1955, sendo apresentada pela primeira vez no ano seguinte,

pelo Teatro Adolescente do Recife, sob a direção de Clênio Wanderley, no Teatro de Santa

Isabel dessa cidade.

O texto é divido em apresentação/entrada dos personagens, três atos, e conclusão.

O núcleo da peça, ou seja, os três primeiros atos são baseados em textos da tradição popular

nordestina, e usa como fontes textos recolhidos e reproduzidos por Leonardo Mota77

.

Além das fontes nordestinas, percebemos que a obra é profundamente sustentada

na tradição das peças medievais conhecidas como “Milagres de Nossa Senhora”, do século

XIV, nos autos de Gil Vicente do século XVII, no teatro de Lope de Vega e Calderón de la

Barca; a comicidade tem inspiração em Plauto, Goldoni e na commedia dell‟arte78

.

Um último elemento a ser lembrado nas fontes em que Suassuna se apoia para

escrever o Auto da Compadecida é a tradição circense, caracterizada pela entrada dos

personagens como saltimbancos, a figura do palhaço como narrador e a própria dupla formada

73

Cf. VASSALLO, O sertão medieval, p. 78. 74

Cf. ALBUQUERQUE, A invenção do nordeste, p. 193. 75

Cf. PRADO, O teatro brasileiro, p. 22. 76

A primeira peça teatral que Suassuna escreve é Uma mulher vestida de sol, em 1947. 77

Cf. TAVARES, ABC de Ariano, p. 26. 78

Cf. NOGUEIRA, O cabreiro tresmalhado, p. 102.

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por João Grilo e Chicó, que lembram o personagem do palhaço acompanhado por outro, que

seria o “besta”, o mais atrapalhado dos dois79

.

Nosso auto se inicia com a confusão criada a partir da vinda do Padeiro que

resolve benzer o cachorro de sua mulher para ver se o animal, já desenganado pelo médico,

não morre. João Grilo e Chicó vão à sua frente para pedir que Padre João não saia de casa,

para não se desencontrar do Padeiro. A preocupação é se o padre vai ou não benzer o

cachorro, contudo Chicó, antes de chamar o padre na igreja, diz que “[Hora] de se chamar

padre é a hora da morte, ele tem de vir”(AC, p. 21).

Com a recusa do padre em benzer o cachorro, João Grilo mente, dizendo que o

animal é de propriedade do Major Antônio Moraes, que teve o motor abençoado pelo padre.

Aqui começa o quiproquó, como se diz popularmente, ou seja, a confusão propriamente dita,

pois chega o Major pedindo que o padre vá abençoar o seu filho doente e o padre, pensando

que ele esteja se referindo a seu cachorro, não pára de chamar o filho e a esposa do major de

cachorros. Instigado por João Grilo, o Major pensa que o padre está louco e vai reclamar com

o Bispo. Após essa cena, entra o Padeiro e sua Mulher, pedindo que Padre João abençoe seu

cão, coisa que o padre nega. João Grilo diz que o padre “benzeria” o cão se ele fosse do

Major, o que provoca revolta no casal.

No meio desse debate, em que o Padeiro promete parar de contribuir

financeiramente com a igreja, o cão morre. Sua dona resolve que ele deve ser enterrado em

latim80

. Para convencer o padre a realizar o enterro, João Grilo inventa a estória do testamento

do cachorro, em que ele deixa um dinheiro para ser enterrado. Uma vez acertados os valores a

serem pagos ao Padre e ao Sacristão, se termina o primeiro ato, com todos se dirigindo ao

enterro do cachorro.

Um componente importante desse primeiro ato é o conjunto de mentiras contadas

por Chicó, que perpassa toda essa parte.

O material em que é baseado esse ato se encontra no fragmento O enterro do

cachorro, retirado do folheto O dinheiro, de Leandro Gomes de Barros81

, que conta o

79

Cf. RABETTI, Teatro e comicidades, p. 52. 80

O texto não usa em momento algum os termos “exéquias”, “funeral”, “ritos”; simplesmente faz um

amálgama de todos eles no ato de “enterrar”, surgindo a expressão: “enterrar em latim”. Esta

expressão nós a usaremos no decorrer da dissertação, seguindo o estilo do autor da peça. 81

Cf. VASSALLO, O sertão medieval, p. 85.

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episódio de um cachorro morto que deixa dinheiro para a realização de seu enterro. Em

pesquisas posteriores do autor, descobriu-se que O enterro do cachorro é uma história

proveniente do norte da África, datada do século V, que foi aproveitada pelo francês Alain-

René Lesage, no século XVIII, numa novela picaresca, cujo título era Gil Blas de

Santillana82

.

O segundo ato da peça começa com a entrada do Bispo e do Frade. O Bispo vem

repreender o Padre João por ter chamado o filho e a esposa do Major de cães. Somente neste

momento é o que o Padre se dá conta de que fez confusão, induzido por João Grilo. Quando o

“amarelo” chega, o padre quer agredi-lo, acusando-o de safado, mas João, em defesa contra as

agressões, diz para todos que pior é enterrar cachorro em latim. Para o Padre se safar,

novamente João Grilo intervém com sua astúcia, e diz que o cão deixou dinheiro também para

o Bispo, que rapidamente muda de opinião quanto à atitude do Padre.

Com a pretensão de consolar a Mulher do Padeiro, João Grilo lhe vende um gato

que tinha por habilidade “descomer” dinheiro. Essa farsa é descoberta e o Padeiro vem furioso

brigar com o Grilo. Mas a briga se encerra com o barulho de tiros e a chegada dos cangaceiros

na cidade, que matam o Bispo, o Padre, o Sacristão, o Padeiro e sua Mulher. João Grilo e

Chicó escapam, pois enganam o cangaceiro Severino dizendo possuírem uma gaita mágica,

que faria Severino, depois de morto, ver Padre Cícero e voltar à vida. Impulsionado pelo

desejo de ver o seu “Padim”, o cangaceiro pede que seu colega lhe dê um tiro. João Grilo e

Chicó tentam escapar, mas o cangaceiro que ainda não tinha morrido, apesar de estar baleado,

atira em João Grilo, matando-o.

O caso do gato que “descome” moedas e de um falso instrumento musical mágico

capaz de ressuscitar mortos foi recolhido dum romance popular anônimo, de título História do

cavalo que defecava dinheiro, também de Leandro Gomes de Barros83

. Aqui temos mudanças

inseridas por Suassuna, pois onde havia um cavalo que defecava dinheiro, passamos a ter um

gato, mais ao gosto da futura dona, Mulher do Padeiro. Também o que era uma rabequinha

mágica passa a ser uma gaita.

No terceiro ato, acontece o julgamento dos personagens que pode ser dividido em

três momentos: num primeiro momento, depois da morte, eles se encontram com um demônio

e o Encourado, que tem por certo que levará todos para o inferno; João Grilo, fazendo a

82

Cf. VICTOR, Ariano Suassuna, p. 71. 83

Cf. ibid.

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passagem para o segundo momento, diz que somente aceita ser condenado se for julgado, o

que leva Severino a apelar para Jesus, que aparece como um homem negro e recebe o nome

de Manuel. Como juiz, Manuel ouve as acusações do Encourado. No terceiro momento do

ato, João Grilo invoca Maria, a Compadecida, que reinterpreta as acusações do Encourado,

fazendo com que ninguém vá para o inferno.

A narrativa do julgamento de Manuel, acompanhada pela intervenção da

Compadecida, é uma junção de um auto popular chamado O Castigo da Soberba, de Anselmo

Vieira de Souza, com A peleja da Alma, de Silvino Pirauá Lima. Ambos foram transformados,

no ano de 1953, em um único entremez84

por Suassuna, trazendo o nome de O Castigo da

Soberba85

.

A conclusão da peça se dá com João Grilo que, ao receber permissão para voltar

da morte, se encontra sendo carregado por Chicó e o Palhaço, o bufão narrador da peça, que

estão se dirigindo ao cemitério para enterrá-lo. João Grilo, depois de dar um bom susto em

ambos, pensa que ficou rico, juntamente com Chicó, por causa do dinheiro do testamento do

cachorro e do que Severino tirou da padaria. Chicó, no entanto, havia prometido dar todo o

dinheiro a Nossa Senhora, caso João Grilo escapasse da morte, o que faz com que terminem

pobres.

Podemos tranquilamente dizer que esse enredo foi um sucesso. Depois de estrear

no Recife em 1956, a peça atingiu sucesso nacional ao ser apresentada, no ano seguinte, no

Rio de Janeiro, por ocasião do I Festival de Amadores Nacionais, promovido pela Fundação

Brasileira de Teatro, recebendo, inclusive, medalha de ouro da Associação Brasileira de

Críticos Teatrais86

.

O Auto da Compadecida foi traduzido e publicado ou apresentado em outros

países, como a Polônia, em 1959, tradução de Witold Wojciechowski e Danuta Zmij87

; nos

Estados Unidos, em 1963, pela editora da Universidade da Califórnia, tradução de Dillwyn F.

Ratcliff; na Holanda, em 1964; na Espanha, pela Editora Alfil, de Madri, com adaptação de

84

Entremez é “uma peça curta, de variada tipologia e tom geralmente burlesco, representada no

princípio ou entre os atos ou no final de peças teatrais sérias de longa duração” (DHLP, entremez, p.

773). 85

Cf. VASSALLO, O sertão medieval, p. 86. 86 Cf. TAVARES, ABC de Ariano, p. 215-216. 87 Cf. ibid., p. 217;

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41

José María Peman88

; na França, em 1969, pela editora Gallimard, traduzido por Michel

Simon-Brésil89

; na Alemanha, em 1971, traduzido por Willy Keller90

; além de Finlândia,

Grécia, Israel, Portugal, Suíça, Tchecoslováquia, e muitos países da América do Sul91

.

Em 1969, aconteceu a primeira produção cinematográfica que a peça recebeu. A

obra teve o título modificado para A Compadecida, dirigida por George Jonas92

, sendo a

adaptação feita pelo diretor juntamente com o próprio Suassuna. No papel da Compadecida

tivemos Regina Duarte, além da participação de Armando Bogus e Antônio Fagundes. As

gravações aconteceram na cidade de Brejo da Madre de Deus, Pernambuco93

.

Uma segunda produção adaptada para a televisão, com base na peça, foi feita com

os Trapalhões, em sua formação primeira, com Didi, Dedé, Mussum e Zacarias, sob o título

Os Trapalhões no Auto da Compadecida, em 198794

. A direção do filme ficou sob a

responsabilidade de Roberto Farias e a trilha sonora de Antônio José Madureira. Num

primeiro momento houve hesitação da parte do autor, temendo que a linguagem de sua obra

não se adequasse ao gênero humorístico dos Trapalhões, contudo se confessou feliz com o

resultado final95

.

Em janeiro de 1999, a Rede Globo exibiu a microssérie O Auto da Compadecida,

dirigida por Guel Arraes96

, tendo no ano 2000 sua estreia no cinema97

, com um grupo de

atores consagrados da dramaturgia brasileira, como Matheus Nachtergaele (João Grilo),

Selton Mello (Chicó), Paulo Goulart (Antônio Moraes), Marco Nanini (Severino), Maurício

Gonçalves (Manuel), Luís Melo (Encourado), Fernanda Montenegro (Compadecida), Denise

Fraga (Mulher do padeiro, que no filme recebe o nome de Dora), Lima Duarte (Bispo),

Rogério Cardoso (Padre João), Diogo Vilela (Padeiro) etc98

.

88

Cf. TAVARES, ABC de Ariano, p. 218. 89

Cf. ibid., p. 219. 90

Cf. ibid., p. 220. 91

Cf. VICTOR, Ariano Suassuna, p. 72. 92

Cf. TAVARES, ABC de Ariano, p. 219. 93

Cf. VICTOR, Ariano Suassuna, p. 72. 94

Cf. TAVARES, ABC de Ariano, p. 223. 95

Cf. VICTOR, Ariano Suassuna, p. 72. 96

Cf. TAVARES, ABC de Ariano, p. 227. 97

Cf. ibid., p. 228. 98

Cf. Disponível em:< http://globofilmes.globo.com/OAutodaCompadecida/> . Acesso em: 09/11/12.

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42

2.2.4. Os personagens

Embora muitos elementos que dão a conhecer algo dos personagens já foram até

agora apresentados, sobretudo no resumo da obra, convém salientar ainda aspectos dos

personagens, observações de cunho literário, psicológico, social, que serão importantes em

outros momentos de nossa pesquisa.

A peça consta de dezesseis personagens, a saber, João Grilo, Chicó, o Bispo,

Padre João, Sacristão, o Padeiro, a Mulher do Padeiro, Severino de Aracaju, o Cangaceiro, o

Encourado, o Demônio, Manuel, a Compadecida, Antônio Moraes, o Frade e o Palhaço.

Comecemos pelo herói do Auto da Compadecida, João Grilo. Analfabeto, porém

“sabido”, trabalha na padaria, vivendo no desconforto e na miséria. É um legítimo

representante do povo nordestino pobre, em seu modo de falar e em sua obstinação em viver.

O apelido de “Grilo” é dado em razão de seu tipo físico magro e raquítico99

.

No primeiro ato, João Grilo é o protagonista das confusões que encontramos, ou

seja, o enterro do cachorro e o fato de ter levado o padre a confundir o cachorro com o filho

doente do Major. No segundo ato, continua criando confusão, pois é João Grilo quem

barganha com o bispo, propõe a venda do gato que “descome” dinheiro à mulher do padeiro e

engana até o Cangaceiro Severino, mas não consegue escapar de sua matança. No terceiro ato,

ele domina a cena em seu diálogo com Manuel e a Compadecida. No Tribunal de Manuel tem

como sentença a possibilidade de voltar da morte.

João Grilo não é uma criação de Suassuna. Esse personagem é proveniente de

antiga tradição literária oral e de folheto da Península Ibérica100

. Um dos primeiros registros

que encontramos do personagem João Grilo está ligado à obra do poeta João Martins de

Athayde (1877-1959). Citamos também os folhetos de Antonio Pauferro da Silva, As

perguntas do rei e as respostas de João Grilo; de Enéias Tavares dos Santos, sob o título A

Morte, o Enterro e o Testamento de João Grilo101

; e ainda, de Matteo Badello, As perguntas

de João Grilo e as respostas de Camões102

.

99

Cf. SANTOS, Em demanda da poética, p. 237. 100

Cf. TAVARES, ABC de Ariano, p. 88. 101

Cf. RABETTI, Teatro e comicidades, p. 53. 102

Cf. ibid., p. 35.

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Há quem conteste o caráter heroico de João Grilo. Em defesa de seu personagem

Suassuna diz:

Eu sempre me zanguei muito quando dizem que João Grilo é um anti-herói.

É nada! Ele é um herói, um camarada que vence os poderosos. Repare uma

coisa: no Auto da Compadecida, [...] você tem ali o clero, a nobreza e a

burguesia e ele, João Grilo, é o representante do povo. E ele vence esse

pessoal todo, e como se não bastasse inda vence o diabo. Se ele não é um

herói, eu não sei quem é herói não103

.

Em outra obra de Suassuna, o Romance d‟A Pedra do Reino e o príncipe do

sangue do vai-e-volta, também encontramos João Grilo. Aqui ele é ajudante de padaria (como

no Auto da Compadecida) e não desempenha nenhum papel importante104

. É descrito da

seguinte maneira: “Moreno, magro, de estatura média, com os cabelos imundos, crescidos e

encaracolados, vestia sempre uma velha e esburacada camisa de meia, preta e encarnada, com

listras horizontais largas. Tinha um companheiro inseparável, Chicó, tão sujo quanto ele

[...]”105

. Porém há, nessa obra, outra referência a ele, não enquanto personagem, mas como

figura já conhecida dos folhetos que tratam de “estradeirices e quengadas”, ou seja, de

histórias com “pessoas de bom quengo para enganar os outros” 106

.

Um personagem que está muito ligado a João Grilo é Chicó. Ele está ao lado de

João em todas as confusões por ele criadas, no primeiro e no segundo ato, mais por amizade

do que por convicção de que tudo aquilo possa resultar em algo que não piore a situação para

ambos. Nos dois primeiros atos da peça, Chicó aparece dizendo mentiras absurdas ou

tremendo de medo por alguma coisa.

Quando analisamos as figuras de João Grilo e Chicó juntas, não podemos nos

esquecer de que eles compõem uma dupla, mesmo que no terceiro ato João esteja sozinho no

julgamento. João é o tipo do esperto, capaz de sobreviver às mais diversas situações, graças a

sua argúcia, enquanto Chicó é o tipo do bobo, cheio de histórias engraçadas das quais é o

protagonista. Suassuna, ao dar vida a essa dupla no Auto da Compadecida, apoia-se na

tradição circense que traz em seu elenco de artistas o Palhaço e o Besta; na tradição do

bumba-meu-boi107

, com a dupla Mateus e Bastião; e ainda em Cervantes, com a dupla Dom

103

TAVARES, ABC de Ariano, p. 70-71. 104

Cf. SUASSUNA, Romance d‟A Pedra, p. 516. 105

Cf. ibid., p. 620. 106

Ibid., p. 111. 107

“O bumba-meu-boi é um auto de Natal resultante da aglutinação de diversos reisados, sendo

considerado por Borba Filho a mais pura criação brasileira. Associa o sentido religioso à civilização

pastoril, através da ressurreição e morte do boi, animal cultuado em várias sociedades. Seu nome

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Quixote e Sancho Pança, sendo João Grilo ligado a Sancho Pança pelo caráter aventureiro,

audacioso, e Chicó a Dom Quixote por terem em comum o aspecto sonhador 108

.

Quanto ao Padre João, ao Bispo e ao Sacristão, falaremos dos três juntos por

representarem a Igreja, acusada de mundanismo na introdução da peça. São personagens

ligados ao interesse pelo dinheiro, o que leva a uma conduta religiosa condenável, marcada na

obra por simonia, arrogância e favorecimento das pessoas ricas. Dos três personagens a figura

em que Suassuna mais acentua o mundanismo da Igreja é a do Bispo, ao passo que o Sacristão

é mais tratado com jocosidade.

Junto aos que representam a instituição eclesiástica poderíamos colocar o Frade,

não fossem as características de que Suassuana o reveste. Ele representa a pureza da vivência

religiosa, não reconhecida pelo Bispo, que o despreza. Na hora da matança dos cangaceiros

ele não é assassinado porque, segundo Severino, dá azar matar frade. No desenrolar do

Tribunal de Manuel descobriremos que ele será canonizado por causa do martírio.

O Padeiro e sua Mulher são os patrões de João Grilo e Chicó. Personagens que

representam a classe média, a burguesia urbana, exploradores do povo, marcados pela avareza

e pelo adultério. Ambos são ridicularizados na peça, pois o Padeiro, sendo avarento e

apresentado como homem importante da sociedade taperoense, é enganado pela mulher que o

trai com outros homens de origem simples; esta, por sua vez, também é ridicularizada, tanto

pelo adultério, como pela sua “fraqueza”, que, segundo João Grilo, é seu apego exagerado ao

dinheiro e a animais (cf. AC, p. 27).

O Major Antônio Moraes é a autoridade reconhecida e temida na peça, colocando-

se acima da política, do clero e do povo simples de Taperoá. Seu personagem se apoia na

configuração histórica do coronelismo nordestino.

O título de “coronel” é uma herança dos títulos honoríficos da Guarda Nacional

do século XIX. Ele ocupa o topo da pirâmide social sertaneja, regendo a vida de pequenos

proprietários e vaqueiros sem terra que dependem dele109

.

remete à pancadaria, ou seja, às „bexigadas‟ que os executantes dão em si mesmos, coletando dinheiro,

ou no público, pelo mesmo motivo e para abrir espaço” (VASSALLO, O sertão medieval, p. 78). 108

Cf. RABETTI, Teatro e comicidades, p. 52. 109

Cf. SANTOS, Em demanda da poética, p. 75.

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Cercado por seus “afilhados”, pessoas que por diferentes motivos são protegidas

pelo coronel, este age como senhor absoluto em suas terras, punindo e expulsando quem

transgrida suas leis. O coronel coloca-se acima da polícia e do juiz local, uma vez que estes

dificilmente ousariam contrariar suas decisões, pois são seus “afilhados” ou meros aliados que

temem perder seus cargos, uma vez que o alcançaram mediante o beneplácito do coronel110

.

Essa relação de autoridade e submissão se verifica de forma mais acentuada no

Romance d‟A Pedra do Reino. Contudo, ela também pode ser constatada no Auto a partir da

preocupação do Bispo quando Padre João, por artimanha de João Grilo, confunde o filho e a

mulher do major com cães. O Major é também o único personagem que tem, em toda a peça,

nome e sobrenome. Dos demais, temos apenas o nome, um apelido, a função que exerce

identificando o personagem ou de quem é esposa (a “mulher do padeiro”). Assim, o fato de o

Major ser chamado por seu nome e sobrenome demonstra uma deferência que ele goza no

contexto da sociedade retratada no Auto da Compadecida. Outra diferença referente a esse

personagem é que não se fala se ele foi morto com a invasão dos cangaceiros, não havendo

nenhuma referência a ele no julgamento de Manuel.

Severino de Aracaju e o Cangaceiro são os invasores da cidade de Taperoá que

chegam para saqueá-la. Homens violentos que enlouqueceram na infância por sofrerem, junto

com suas famílias, a crueldade policial. Funcionam na peça como uma síntese de todos os

cangaceiros na história do Nordeste, como Antônio Silvino, Lampião e Jesuíno Brilhante111

.

Lembremos agora os personagens que aparecem apenas a partir do terceiro ato.

Comecemos pelo Encourado e o Demônio. Ambos atuam de acordo com seu interesse que é

conduzir todos os mortos ao inferno. São caracterizados de forma que prevaleça uma

expressão grotesca, recorrendo a truques de magia. João Grilo define o Encourado como um

misto de “promotor, sacristão, cachorro e soldado de polícia” (AC, p. 128).

Manuel é o nome usado para designar Jesus na peça. É representado por um

homem negro, revestido da dignidade de um rei, da autoridade de um juiz e da bondade de um

amigo de longa data.

110

Cf. SANTOS, Em demanda da poética., p. 76. 111

Cf. ibid., p. 232.

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A Compadecida, ou seja, a Virgem Maria, é a advogada dos personagens. Sua

defesa se baseia numa releitura das acusações do Encourado sob uma ótica mais humana e

profunda, conseguindo com que nenhum dos mortos vá para o inferno.

Enfim, o Palhaço, que é o apresentador da obra e faz a ligação dos diferentes

momentos da peça. Essa função adquire maior importância pelo fato de que o personagem

significa o próprio Suassuna em sua crítica moral à Igreja. Na abertura da peça, o Palhaço (ou

Suassuna) diz:

o autor quis ser representado por um palhaço, para indicar que sabe, mais do

que ninguém, que sua alma é um velho catre, cheio de insensatez e de

solércia. Ele não tinha o direito de tocar nesse tema, mas ousou fazê-lo,

baseado no espírito popular de sua gente, porque acredita que esse povo que

sofre tem direito a certas intimidades” (AC, p. 16).

Esse “espírito popular” captado e internalizado pelo Palhaço/autor que o autoriza

a certas intimidades está ligado à religiosidade popular, ao modo como o povo simples se

relaciona com Deus.

2.2.5. O Auto da Compadecida e a religiosidade popular

Uma vez que as fontes que compõem o Auto da Compadecida são de origem

popular, colhidas no solo sertanejo e nordestino, elas estão em profunda sintonia com a

religiosidade das pessoas simples que, através da tradição oral, guardaram na memória

coletiva essa gama de textos, que se dividem em novelas, contos, cantigas e poesias, desde

suas origens ibéricas até chegarem às mãos de Suassuna.

Depois de um período de marginalização, em que era considerada como uma

expressão de fé arcaica, arraigada na superstição e em respostas mágicas para problemas

humanos, a religiosidade popular começa a ser vista com olhos benevolentes, seja pelo

magistério eclesiástico, seja pela teologia. Também a literatura valoriza a religiosidade

popular, sob o ponto de vista do folclore (além dos textos do próprio Suassuna, podemos

mencionar, por exemplo, os romances de Jorge Amado).

Um texto do magistério eclesiástico que acentua a importância da religiosidade

popular e ao mesmo tempo suas limitações é a Exortação Apostólica de Paulo VI Evangelii

Nuntiandi. A evangelização, segundo Paulo VI, não pode ficar alheia à questão da

religiosidade do povo que goza de ricos valores (cf. EN 48).

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A Exortação também faz uma opção pela terminologia piedade popular em vez de

religiosidade. O Diretório sobre piedade popular e liturgia, da Congregação para o Culto

Divino e a Disciplina dos Sacramentos (2003), que retoma as orientações da Evangelii

Nuntiandi, nos apresenta esta distinção. De modo que

A expressão “piedade popular” designa aqui as diversas manifestações

cultuais de caráter privado ou comunitário que, no âmbito da fé cristã, se

expressam geralmente não com os módulos da sagrada Liturgia, mas nas

formas peculiares derivadas do gênio de um povo ou de uma etnia e da sua

cultura112

.

Por sua vez,

A realidade indicada através da expressão “religiosidade popular” diz

respeito a uma experiência universal: no coração de cada pessoa, como na

cultura de cada povo e nas suas manifestações coletivas, está sempre

presente uma dimensão religiosa. De fato, cada povo tende a expressar a sua

visão totalizadora da transcendência e a sua concepção da natureza, da

sociedade e da história através de mediações cultuais, numa síntese

característica de grande significado humano e espiritual113

.

O motivo da opção conceitual que privilegia nos documentos eclesiásticos a

piedade popular em detrimento da expressão religiosidade é que a primeira se restringe mais à

dimensão cultual, prestando-se melhor ao uso teológico, ao passo que religiosidade se volta

mais para a esfera sociológica, em sua atenção à cultura114

. Sobre o uso desses dois termos,

citamos, como exemplo, Clodovis Boff, que, ao tratar do tema, em seu livro Mariologia

social opta pelo termo piedade popular, mas sem excluir “as conotações mais humanas do

contexto sociológico, psicológico ou antropológico”115

que traz em seu bojo o conceito de

religiosidade popular.

Acreditamos que Clodovis Boff esteja mais em sintonia com o Documento de

Puebla, datado de quatro anos após a Evangelii Nuntiandi, que, ao dar-nos a noção e as

afirmações fundamentais sobre o tema em questão, afirma:

Entendemos por religião do povo, religiosidade popular ou piedade popular

o conjunto de crenças profundas marcadas por Deus, das atitudes básicas que

derivam dessas convicções e as expressões que as manifestam. Trata-se da

forma ou da existência cultural que a religião adota em um povo

determinado (PUEBLA 444).

112

CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO, Diretório sobre piedade popular, p. 19. 113

Ibid., p. 19-20. 114

Ver também o Documento de Aparecida n. 258 - 265. 115

BOFF, Mariologia social, p. 550.

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Em nosso estudo, usaremos o termo religiosidade popular, na perspectiva mais

abrangente de Puebla que reúne tanto a dimensão cultural quanto a cultual. Religiosidade

popular entendida como expressão de fé das multidões católicas, da massa dos fiéis, sobretudo

composta de pessoas pobres e simples. Essa expressão de fé, na maioria das vezes, não se

preocupa com as fórmulas dogmáticas assumidas pelo catolicismo, contudo jamais se entende

como uma oposição assumida à Igreja116

.

O Documento de Puebla traz uma lista de elementos positivos da religiosidade

popular, entre os quais gostaríamos de destacar o amor a Maria e aos santos, as preces pelos

defuntos, a consciência do pecado e a necessidade de expiá-los, a valorização dos santuários e

das peregrinações, o valor da oração, entre outros (Cf. PUEBLA 454).

Se a religiosidade popular traz consigo aspectos positivos, também encerra

aspectos negativos que exigem atenção pastoral, tais como: “[...] superstição, magia,

fatalismo, idolatria do poder, fetichismo e ritualismo”, “[...] arcaísmo estético, falsa

informação e ignorância, reinterpretação sincretista, reducionismo da fé a um mero contrato

na relação com Deus” (PUEBLA 456).

A religiosidade popular transparece no Auto da Compadecida como um

catolicismo sertanejo, que se consubstancia nas orações e invocações; na concepção da

Virgem como advogada das pessoas, a cujos apelos maternos o próprio Cristo cede; na

personificação do Diabo em sua luta para levar as almas para o inferno; em ações que portam

consigo azar (neste caso, matar frade); enfim, numa espécie de familiaridade com o

sobrenatural, que a tradição oral foi transmitindo de geração a geração.

O catolicismo sertanejo de Suassuna funciona como um elemento crítico ao

catolicismo centralizado na hierarquia eclesiástica, marcada pela figura do Bispo. Funciona

como um elemento crítico, mas não como uma oposição ao catolicismo enquanto tal, pois

quando fala do mundanismo enquanto uma praga, Suassuna se refere à igreja (sic), como “sua

igreja”, ou seja, não critica como alguém que está de fora, mas como representante do “povo

que sofre e tem direito a certas intimidades” (AC, p. 16).

A maneira como Manuel e a Compadecida se apresentam na obra não se mostra

afetada pelo “culto ao poder eclesiástico”, mas nos

116

Cf. BOFF, Mariologia social, p. 551.

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dão uma concepção da religião como algo simples, agradável, doce e não

como uma coisa formal, solene, difícil e mesmo penosa. Essa intimidade

com Deus, e a ideia da simplicidade nas relações dele com os homens, essa

compreensão da vida e da fé na misericórdia, nos parecem aspectos

primordiais no sentido religioso da obra, [...]117

.

Essa visão da religião, contudo, não é isenta de uma preferência pela pessoa do

pobre, como podemos ver na defesa da Compadecida, que quase beira uma “cumplicidade de

classe”118

. Isso fica muito evidente quando a Virgem, referindo-se a João Grilo, lembra a

Manuel que este foi um pobre como eles também o foram, numa terra seca e pobre (cf. AC, p.

156).

Assim como a religiosidade da obra se torna um instrumento crítico contra um

catolicismo mundanizado, representado, sobretudo, pelo Bispo, ela também desempenha o

mesmo papel crítico frente à burguesia, representada pelo casal de padeiros, que quer enterrar

seu cachorro em latim, como também pela pessoa do Major Antônio Moraes, que

ostensivamente afirma que não frequenta a missa, mas que seu filho, uma vez doente e indo

tratar-se no Recife, não vai sem receber a bênção do Padre, o que, para o Major, é uma

“mania de igreja” do filho (cf. AC, p. 30-31). Essas atitudes fogem do cotidiano da

experiência de fé do povo simples, que não exige enterro refinado para animais e nem

considera a bênção uma “mania de igreja”.

Se em alguns aspectos a religiosidade popular na obra se apresenta como

ferramenta crítica, em outros ela aflora no texto do autor expressando crenças populares.

Gostaríamos de exemplificar essas crenças a partir do personagem Severino.

O cangaceiro não mata frade porque dá azar (cf. AC, p. 99); não pode deixar de

matar João Grilo porque matou os outros e teme que os falecidos voltem à noite para

persegui-los, pois ter deixado escapar João seria uma injustiça contra eles (cf. AC, p. 106); e

além de tudo, é um devoto e um afilhado de Padre Cícero119

(cf. AC, p. 105-107).

Sobre algumas crenças que existem, na grande maioria das vezes, não sabemos

como se originaram. É o caso da crença de que matar frade dá azar. Assim como não sabemos

117

OSCAR, Apresentação. In: SUASSUNA, Auto da Compadecida, p. 13 (texto da 10ª ed., publicado

em 1973). 118

PRADO, O teatro brasileiro moderno, p. 81. 119

Cícero Romão Batista nasceu em 24 de março de 1844, no Crato (CE), ordenado presbítero em

1870 e faleceu na cidade de Juazeiro em 20 de julho de 1934.

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por que dá azar deixar o chinelo virado, abrir guarda-chuva dentro de casa, passar debaixo de

escada, também não sabemos a razão do azar que acarreta matar um frade.

Os outros personagens não contaram com a sorte de se apegar a uma crença, como

a de que matar frade dá azar, que os ajude a escapar da morte e por isso foram todos

executados por Severino. João Grilo e Chicó inventam a estória de uma gaita abençoada pelo

Padre Cícero. Segundo João, a gaita faz os mortos ressuscitarem. Ele simula a morte de

Chicó, que depois, ao som da gaita, se levanta dançando e diz que o Padre Cícero quer ver

Sererino, sendo que isso só é possível se ele morrer, o que não seria um problema, pois

tocando a gaita o cangaceiro voltaria da morte. Severino deseja essa gaita, mas João negocia a

sua vida e a de Chicó em troca dela. O cangaceiro receia, pois caso deixe ambos escaparem,

os que morreram podem voltar para perturbá-lo. Temos aqui um caso que remonta às muitas

estórias envolvendo assombrações ou fantasmas de pessoas mortas que voltam para querer

das pessoas vivas algo que se consideram ser-lhes de direito. Essas assombrações ou “almas

penadas” também podem “voltar”, caso tenham elas deixado uma dívida para trás. É o caso de

uma pessoa que faz uma promessa a determinado santo e não a cumpre, devido a seu

falecimento. Essa pessoa vira “alma penada”, vagando pela terra até que alguém “pague a

dívida” ao santo120

. Severino, como muitas outras pessoas, teme essas manifestações de

“almas penadas”.

Mantendo-nos sob a ótica da religiosidade popular a partir do personagem

Severino, ainda acentuamos sua vontade de ver o Padre Cícero que é tão grande que pede que

seu cangaceiro atire nele. Ele é mais um dos muitos nordestinos que se voltam ao padre de

Juazeiro, chamando-o de “Meu Padrinho Padre Cícero” (AC, p. 106) ou à maneira mais

popular “Meu padim pade Ciço”121

. A devoção ao Padre Cícero continua viva no coração de

muitos nordestinos, não obstante as relações dele rompidas com a Igreja Romana.

Muitos outros elementos da religiosidade popular saltam aos olhos na leitura do

Auto da Compadecida. Outro exemplo que destacamos é a figura do Diabo. Superabundam

nesse universo religioso e sertanejo as estórias sobre o diabo, que ganha os piores nomes,

como mulambudo, pé-preto, chifrudo, bode sujo etc. Além de tudo, ele é sempre vencido

pelos cantadores populares com suas antigas orações, ladainhas, ofícios de Nossa Senhora,

entre outros. Alguns, inclusive, gozam, pessoalmente, da fama de terem vencido o diabo num

120

Cf. MATOS, Nossa História, tomo I, p. 215. 121

CÂMARA CASCUDO, Padre Cícero. In: ______. Dicionário do Folclore Brasileiro, p. 465.

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desafio122

, como no caso de Joaquim Francisco de Santana (1877-1917)123

. Suassuna se

mantém nessa tradição, não apenas por tratar o Diabo com um nome típico usado pelos

sertanejos do lugar, ou seja, Encourado, mas por apresentá-lo como um vencido por Manuel e

pela Compadecida, mas também por João Grilo, como aquele que vai na esteira dos

cantadores do Nordeste.

Até na indicação da ação cênica dos atores também encontramos elementos da

religiosidade popular, como a indicação que Suassuna faz, dizendo que, no momento em que

João Grilo tocar a gaita, Chicó deve se levantar “como se estivesse com dança de São Guido”

(AC, p. 104). Não se diz que o personagem deva dançar, mesmo sabendo que há música e não

a ignorando, mas sim agindo como se estivesse com a dança de São Guido. Segundo Frei

Francisco van der Poel, a Dança de São Guido, ou Dança de São Vito, está relacionada com

os movimentos irregulares de cabeça e membros provenientes de doenças mentais. No século

XVII, na Alemanha, registra-se a cura de pessoas que sofrem dessa doença, ao dançarem na

frente da imagem de São Vito, no dia de sua festa, em 15 de junho124

. Deste modo, o ator deve

entender que a falsa “ressurreição” deve acontecer como quem tem uma convulsão,

acompanhando o ritmo da música da gaita, ou seja, “como que estivesse com a dança de São

Guido”.

O Auto da Compadecida reúne, de maneira exemplar, como podemos ver, um

conjunto importante de crenças religiosas típicas de nosso povo. É um espelho onde se vê

refletido o rosto do ser humano, dentro de uma realidade espacial, cultural e religiosa muito

específica, transformada em literatura por um dos gênios da dramaturgia brasileira. Diante do

exposto, podemos falar que a obra funciona como um palco, onde tudo isso nos é apresentado,

convidando a teologia para refletir sobre o que a arte representou entre o abrir e o fechar de

cortinas dessa extraordinária peça de teatro.

122

Desafio é a “[disputa] poética cantada, parte de improviso e parte decorada, entre cantadores”

(CÂMARA CASCUDO, Desafio. In: ______. Dicionário do Folclore Brasileiro, p. 192). 123

Cf. CÂMARA CASCUDO, Diabo. In: ______. Dicionário do Folclore Brasileiro, p. 194-195. 124

Cf. VAN DER POEL, Dança de São Vito ou Dança de São Guido. In: _____. Abecedário da

Religiosidade Popular, sem página.

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Capítulo II

A Compadecida das misérias humanas

No presente capítulo, queremos refletir sobre a forma como Suassuna, a teologia e

a devoção mariana se encontram (ou não) na compreensão de Maria como a Compadecida das

misérias humanas. Para isto, dividimos este segundo capítulo em duas partes, cujos títulos,

são exclamações do Encourado, que, numa “raiva surda”, diz: “Lá vem a compadecida!

Mulher em tudo se mete” (cf. AC, p. 145). Na primeira parte, “Lá vem a compadecida”

analisaremos a possibilidade de atribuir a Maria o título de Compadecida, para depois, na

segunda parte, “Mulher em tudo se mete” tratarmos da forma como a Virgem se compadece

dos personagens na obra e suas implicações teológicas.

1. “Lá vem a compadecida!”

Depois que João Grilo invoca a Virgem (cf. AC, p. 144), o Encourado lamenta a

chegada da Compadecida (cf. AC, p. 145). Mas, pode-se nomear a Virgem dessa forma?

Nesta parte de nossa pesquisa queremos refletir sobre a possibilidade de nos referirmos à

Virgem Maria como “Compadecida” e as formas como a compreensão do compadecimento

da Mãe de Jesus se apresentam na tradição cristã e no Auto da Compadecida.

1.1. Maria entendida como “Compadecida”

Ariano Suassuna apresenta a Virgem Maria com um título novo para a teologia, a

“Compadecida”1

. Esse título está relacionado com a ação de Maria no momento do

julgamento final dos personagens do Auto da Compadecida, mas também pelo seu olhar

materno e feminino sobre a vida das pessoas e sua identificação com as mesmas. Maria se

1 Além do Auto da Compadecida, Suassuna também se refere à Virgem Maria como a “Compadecida”

na obra Romance d‟A Pedra do Reino (cf. p. 561). Na peça teatral Uma mulher vestida de sol,

Suassuna encerra o texto com uma aparição da Virgem que, de braços abertos, acolhe o corpo sem

vida da personagem Rosa. Com essa cena, o autor indica a infinita piedade de Maria (cf. p. 194).

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compadece das pessoas porque viveu uma vida concreta, marcada por luta, alegria e

sofrimento.

Mesmo sendo o título uma novidade para a teologia, ele não é uma criação de

Suassuna, pois foi retirado de um folheto de Silvino Pirauá Lima, de título A peleja da alma.

Nele se diz:

Os diabos quando foram vendo

A Virgem para a partida,

Lúcifer dizia aos outros:

- Lá vai a Compadecida!

Pelo jeito que estou vendo

esta sentença é perdida.

Lá vem a Compadecida!

Mulher com tudo se importa!2

A referência à Virgem como Compadecida ultrapassa os limites de um mero

empréstimo de um folheto para Suassuna3. Ele nos fala de Nossa Senhora, a Compadecida,

como o emblema feminino no sertão, assim como o Cristo esfarrapado é o emblema

masculino da luta do nosso grande povo:

Para mim, o emblema brasileiro e feminino, o núcleo fundamental de toda a

minha visão de mundo, era aquela Senhora a quem eu celebrara com o nome

popular de “A Compadecida” e que, sob a invocação de Nossa Senhora da

Conceição Aparecida é a Padroeira incontestável de nosso país e do nosso

povo4.

Na obra de Suassuna, a Compadecida é aquela que diante das insídias do Diabo se

compadece da humanidade fraca e pecadora e intercede por ela, contrabalanceando o rigor da

justiça divina. Se compaixão significa deixar-se afetar e contagiar tanto pelo sofrimento como

pela alegria do outro, Maria, no Auto da Compadecida, é apresentada como a derradeira

Compadecida, pois é a “tábua de salvação” daqueles a quem o Encourado já tinha por certo de

levá-los para o inferno.

Se não é muito comum a invocação de Maria como Compadecida, dos russos

recebemos a devoção à Virgem da Compaixão ou da Ternura, Elêousa em grego, ou ainda,

Virgem de Vladimir, por causa da cidade russa para onde o ícone de Maria com Jesus nos

braços foi levado e da qual se irradiou sua veneração. Esta devoção gira em torno de um ícone

2 SANTOS, Em demanda da poética, p. 230.

3 Há ainda outra versão desse folheto, feita pelo cantador Leonardo Mota (cf. AC, p. 9).

4 NOGUEIRA, O cabreiro tresmalhado, p. 103.

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da Virgem, pintado no século XII5, que tem a Virgem ocupando o plano central do quadro

com o menino Jesus em seu colo e este tem o braço esquerdo apoiado sobre o pescoço da

mãe. Nesse ícone, compaixão e ternura estão fundidos na representação do amor entre mãe e

filho, como no olhar da Virgem que se dirige ao que contempla seu ícone.

O termo “compaixão” é encontrado nas Sagradas Escrituras tanto como uma

qualidade divina como humana. Para descrever essa qualidade, foram empregadas as palavras

hebraicas hesed e rahªmîn e (éleos em grego)6. Partindo da raíz semita rhm, temos a acepção

piedade, ventre materno7. Quando é usada em forma de verbo (rhm pi), o significado geral é o

de um amor pelo outro que parte de quem está mais acima em direção ao que está abaixo, no

sentido de ter compaixão ou ter misericórdia8. Também a palavra grega éleos designa uma

atitude de compaixão diante das desventuras do próximo, expressando uma aplicação prática

que parte dos sentimentos de uma pessoa, movida por seu coração, ou por suas vísceras, ao

socorro do outro. Novamente estamos diante de uma palavra que expressa um sentimento que

leva alguém a ter misericórdia, a ter compaixão de outrem9.

Não é nosso interesse nos estendermos nas relações semânticas entre

“misericórdia” e “compaixão”. Gostaríamos, sim, de mostrar o quanto estão unidos esses

conceitos e relacioná-los com o título de “Compadecida” conforme Suassuna nomeia a

Virgem Maria em sua obra.

Mesmo sendo esse título de “Compadecida” algo novo, ou até mesmo

desconhecido e por isso não usado pela devoção mariana, encontramos outro que muito se

aproxima dele, que é “Mãe de Misericórdia”. Maria, enquanto mãe de misericórdia, é aquela

que se compadece dos seus irmãos assumidos como filhos. Essa misericórdia é

primeiramemente um atributo do próprio Deus, como vemos nas Escrituras, mas também da

Filha de Sião que é ícone e transparência da misericórdia divina10

.

Para uma definição de misericórdia, podemos partir de sua etimologia:

5 Cf. BOFF, Mariologia social, p. 147.

6 Cf. BULTMANN, Eleos, eleew. In KITTEL, Grande lessico del Nuovo Testamento, v. 3, p.399.

7 Cf. SIMIAN-YOFRE, rhn. In: BOTTERWECK, Grande lessico dell‟Antico Testamento, v. 8, p. 352.

8 Cf. STOEBE, rhm. In: JENNI, Dizionario teologico dell‟Antico Testamento, p. 685.

9 Cf. ESSER, Misericordia. In: COENEN, Dicionario di concetti del Nuovo Testamento, p. 1013.

10 Cf. VALENTINI, Maria canta la misericordia di Dio. In: DOMENICO, Maria Madre, p. 131.

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Derivado diretamente do latim, o termo “misericórdia” guarda claros

vestígios de sua etimologia: a misericórdia emana do homem misericors,

aquele cujo coração reage diante da miséria do outro11

.

A palavra “misericórida” (hesed) aparece 245 vezes no Antigo Testamento,

sendo os Salmos o lugar em que mais se destaca, pois a encontramos 127 vezes. Na tradução

dos Setenta aparece a palavra “misericórdia” 296 vezes, sendo que 236 vezes para indicar a

misericórdia divina e 60 vezes uma atitude humana12

.

No Novo Testamento, encontramos a palavra éleos usada 27 vezes, sendo que 20

vezes referindo-se a Deus e 7 vezes a seres humanos13

. O que nos mostra que vale muito mais

para Deus do que para os humano. Sobretudo, encontramos esse termo nos cânticos do

Evangelho de Lucas (Lc 1, 50.54.72.78).

A misericórdia de Deus se manifesta no seu agir, na vida e na história do povo

que com Ele fez uma aliança, sobretudo a partir do exôdo do Egito e do êxodo pascal de

Cristo e que se consumará na parusia. É uma característica de sua ação e que nos mostra algo

da identidade de Deus em sua relação com a humanidade14

.

Pelo mistério da encarnação, a misericórdia divina se faz pessoa em Jesus. E

Maria, pela sua maternidade, é objeto privilegiado dessa misericórida da qual se torna ícone,

ou, como diz Lucas 1, 28, “agraciada” (kecharitomene) por tê-la experimentado

concretamente e de maneira ímpar15

. Ao se tornar ícone da misericórdia, ela não substitui a

Deus, mas se apresenta como uma via de compreensão de um traço do próprio Deus, do qual

ela se torna uma testemunha altamente qualificada, mediante a experiência que fez dessa

misericórdia em sua vida.

Por isso, ela celebra a misericórdia de Deus em seu canto, proclamando que a

promessa de Deus feita a Abraão é uma realidade em sua vida e de toda a humanidade pela

salvação que é dada na criança que carrega em seu ventre.

O Magnificat (Lc 1,46-55), originalmente, é um canto pascal que foi inserido na

narrativa da infância de Jesus em Lucas. A Virgem que exalta Deus em seu canto toma a voz

11

CERBELAUD, D. Misericórdia. In: Dicionário crítico de teologia, p. 1150. 12

Cf. VALENTINI, Maria canta la misericordia di Dio. In: DOMENICO, Maria Madre, p. 124. 13

Cf. ibid., p. 124. 14

Cf. ibid., p. 129. 15

Cf. ibid., p. 131.

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da comunidade que celebra em sua liturgia a salvação dada pelo Senhor Jesus, como gesto da

máxima misericórdia de Deus16

.

E são muitos os que rezam e contemplam essa dimensão da misericóridia divina

na vida de Maria. Entre os mais antigos, podemos citar Tiago de Sarug (†521), Romano

Melodos († 562 aproximadamente), João Geometres Kyriotes († 990 aproximadamente),

Bernardo de Claraval († 1153), Afonso Maria de Liguori († 1787) etc 17

.

Atribui-se ao abade Odo de Cluny († 942) o título de Mãe de Misericórdia dado a

Maria18

. O título nos ajuda a compreender Maria como a mãe espiritual dos fiéis, plena de

graça e de misericórdia, que gerou o Cristo, “que é a misericórdia visível do invisível Deus

misericordioso”19

.

Deste modo, podemos dizer que a Virgem, sendo aquela que celebra em seu

Magnificat a misericórdia de Deus e que concebeu e deu à luz Jesus, expressão máxima da

miseriórdia do Pai, viveu essa dimensão da misericórdia em sua vida. No Evangelho de

Lucas, lemos uma exortação de Jesus aos discípulos, que diz: “Sede misericordiosos, como

também vosso Pai é misericordioso” (Lc 6, 36). Sendo Maria modelo de vida e santidade não

faltou em sua vida o cumprimento deste mandato, o que nos permite contemplá-la como Mãe

de Misericórdia e Compadecida de todas as misérias humanas.

1.2. “Valha-me Nossa Senhora”: a intercessão de Maria

É comum o povo, em suas expressões populares de medo, susto, consternação,

clamarem por Maria, usando breves invocações marianas. João Grilo está inserido nessa

tradição popular (cf. AC, p. 144), como também se lembra da Ave-Maria logo após a chegada

da Compadecida (cf. AC, p.147). Mas, antes mesmo do julgamento, já encontramos na obra o

pedido pela intercessão de Maria, expressando susto e medo, pois quando Severino de

Aracaju e um dos seus bandoleiros, chamado de “cabra”, entram na igreja para saqueá-la,

tanto o padre quanto o bispo exclamam: “Ave-Maria! Valha-me Nossa Senhora!” (AC, p. 88 e

89).

Também, quando tudo parecia estar perdido no momento do julgamento dos

personagens do Auto da Compadecida, João Grilo tem uma ideia, ou como ele diz, um trunfo

16

Cf. VALENTINI, Maria canta la misericordia di Dio. In DOMENICO, Maria Madre, p. 140. 17

Cf., NOÈ, La beata vergine Maria. In: DOMENICO, Maria Madre, p. 31-32. 18

Cf. ODO, Opera Omnia, PL 133, 72. 19

NOÈ, La beata vergine Maria. In: DOMENICO, Maria Madre, p. 33.

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(cf. AC, p. 143). O próprio Cristo o questiona se ele vai “se pegar” a algum santo, mas nosso

“amarelo” invoca, com um poema divertido, de Canário Pardo (cf. AC, p. 144), a

Compadecida, mãe da justiça. E o julgamento toma outro rumo.

A intervenção da Compadecida parece mudar o destino final dos personagens,

livrando-os da condenação. Contudo, em momento algum, antes da intervenção da Virgem,

Manuel tinha decretado a condenação dos personagens. A contribuição da Virgem é elucidar

os fatos, utilizando o mais profundo dos sentimentos de cada pessoa julgada. A Compadecida,

com sua intercessão, não altera o lugar de Cristo, apenas faz o papel de advogada. Uma frase

expressa bem essa atitude da Virgem na obra: “Intercedo por esses pobres que não têm

ninguém por eles, meu filho. Não os condene” (AC, p. 148). Dizer que aquelas pessoas não

têm ninguém pode ser teologicamente incorreto, se pensarmos que o mesmo Cristo que julga

é o que ama e que não abandona os que redimiu com seu sangue, mas devemos compreender

a plasticidade da obra voltada para o teatro, sem fins teológicos, que quer ressaltar, nesse

ponto, a intercessão de Maria.

Por ser Compadecida, Mãe de Misericórdia, Maria volta seu olhar amoroso a

todos os seus irmãos, assumidos como filhos. E, constantemente, a piedade mariana pede que

ela não deixe de interceder por estes, sobretudo nos momentos de dificuldades e na hora da

morte.

De fato, depois de elevada aos Céus, não abandonou esta missão salutar; ao

invés, pela sua múltipla intercessão, continua a obter-nos os dons da

salvação eterna. Com o seu amor de Mãe, cuida dos irmãos de seu Filho, que

ainda peregrinam e se debatem entre perigos e angústias, até que sejam

conduzidos à Pátria feliz. Por isso, a santíssima Virgem é invocada, na

Igreja, com os títulos de advogada, auxiliadora, amparo e medianeira (LG

62).

A intercessão de Maria está inserida na comunhão dos santos, onde ela ocupa um

lugar de grande importância, de modo que a

união dos que estão na terra com os irmãos que adormeceram na paz de

Cristo, de maneira nenhuma se interrompe; pelo contrário, segundo a fé

constante da Igreja, reforça-se pela comunicação dos bens espirituais (LG

49).

Nessa “comunicação dos bens espirituais”, a piedade cristã invoca o auxílio de

Maria, reconhecendo nela a “advogada, auxiliadora, amparo e medianeira” (LG 62). Essa

intercessão em nada contrasta com o posto ocupado por Jesus de único mediador entre Deus e

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os homens, pois a intercessão de Maria é de caráter totalmente derivado e dependente de seu

divino Filho.

Rapidamente, lembramos Lutero que manifesta um pensamento contrário à oração

para obter a intercessão de Maria porque compreende a intercessão como uma função

histórico-salvífica, logo se nega a afirmar que Maria desempenhe esse papel, mostrando o

risco de se pensar que Maria possa se valer de seus méritos próprios; também porque ele

considera essa forma de oração uma falsa concepção de Jesus, visto como apenas um juiz

severo, e de Maria como o amor compassivo20

.

Na Confessio Augustana (1530), escrita por Melanchton (†1560), admite-se que

os santos podem ser imitados, contudo jamais invocados. Sua tese é rebatida por João Eck

(†1543) que afirma a possibilidade de invocar e pedir a intercessão dos santos a nosso favor

por dois motivos: 1) sendo Cristo, cabeça da Igreja, que intercede por nós, os santos, unidos a

Ele e conformados com Ele, também podem interceder pelos fiéis; 2) e podendo os fiéis vivos

intercederem uns pelos outros, também o podem os falecidos. O debate se prolongou.

Limitamo-nos a dizer que as afirmações de Eck foram novamente contrariadas por

Melanchton, na Apologia da Confissão Augustana (1531) e por Calvino, na Institutio

religionis christianae21

.

Sabemos que a controvérsia se estendeu nesses quase cinco séculos após a

Reforma, mas gostaríamos de citar o texto da Comissão Internacional Anglicano – Católico-

Romana, cujo título é Maria: graça e esperança em Cristo que, entre suas conclusões, diz:

Maria tem um ministério contínuo que serve o ministério de Cristo, nosso

único mediador; que Maria e os santos oram por toda a Igreja e que a prática

de pedir a Maria e aos santos para que orem por nós não impede a

comunhão22

.

Assim, a fé católica permanece ensinando que Maria roga por nós “agora”, no

presente de nossas vidas, mas que também rogará “na hora da nossa morte”, o que está ligado

com os temores que envolvem essa hora final, como também com o julgamento divino, em

função de aliviar as penas do purgatório e livrar do próprio inferno23

.

20

Cf. BEINERT, O culto a Maria, p. 76-77. 21

Cf. AMATO, Maria la Theotokos, p. 268-269. 22

CIACR, Maria: graça e esperança, p.62. 23

Cf. CERVERA, La pietà popolare alla Madre della misericordia. In: DOMENICO, Maria Madre, p.

278; cf. ROSCHINI, Instruções marianas, p. 273.

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1.3. As orações da Ave-Maria e Salve-Rainha

A Ave-Maria e a Salve-Rainha são duas orações tradicionais da piedade mariana.

Ambas expressam a ideia de que Maria se compadece das misérias humanas. São orações

rezadas durante um grande tempo e por um imenso número de católicos, o que nos mostra que

elas são um testemunho da confiança do povo no compadecimento da Mãe de Deus.

1.3.1. A Ave-Maria

Mesmo não sendo a mais antiga oração mariana24

, a Ave-Maria é a oração mais

recitada no culto à Mãe de Deus. Suas origens remontam à liturgia oriental no fim do século

IV que uniu a saudação do anjo com as palavras de Isabel, formando uma breve antífona. Nos

séculos VI e VII, foi complementada essa primeira parte com um louvor pela sua concepção.

No Ocidente, anterior ao ano 1000, encontramos essa oração como antífona do ofertório da

missa do IV domingo do Advento, da quarta-feira do Advento e da festa do dia 25 de março25

.

Fora do contexto litúrgico, essa versão primitiva da Ave-Maria, que até então

contava com apenas o que nós conhecemos como sua primeira parte, exceto a conclusão com

o nome de Jesus, teve como grande propagandista São Pedro Damião (†1072). Mas foi

somente no século XII que o povo assimilou essa prece como algo de sua constante expressão

de fé26

. Atribui-se ao Papa Urbano IV (1261-1264) o acréscimo do nome “Jesus” a essa

versão primitiva da Ave-Maria27

.

Encontramos os resquícios mais remotos da segunda parte da Ave-Maria em um

breviário dos monges cartuxos do século XIII e XIV28

. Num dos sermões de São Bernardino

de Sena, proferido em 1427, lemos as palavras: Sancta Maria, Mater Dei ora pro nobis. Num

breviário romano do século XIV-XV, encontramos também o complemento com o acréscimo

das últimas palavras ora pro nobis nunc et in hora mortis nostrae. Amen29

.

Pedir que a Virgem reze por nós “agora e na hora de nossa morte” é uma forma de

compreendê-la como “Mãe de Misericórdia” que roga a Deus por todos nós, pecadores,

pedindo que nossa vida seja sempre um caminhar para o Pai.

24

A mais antiga oração mariana é a Sub tuum praesidium, do século IV. 25

Cf. MAGGIONI, Benedetto il frutto, p. 143. 26

Cf. ibid., p. 143-144. 27

Cf. BOFF, A Ave-Maria, p. 26. 28

Cf. ibid., p. 26. 29

Cf. MAGGIONI, Benedetto il frutto, p. 145.

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Queremos destacar esse último pedido da Ave-Maria, a intercessão de Maria para

o momento presente e para a hora de nossa morte, devido ao fato de que a intervenção de

Maria no Auto da Compadecida acontece logo após a morte dos personagens. Também o

próprio João Grilo lembra essa oração, pedindo ao padre João que a “puxe”, lembrando a

todos que Maria os defenderá, e procura adequar a oração de acordo com a situação, ao pedir:

Um momento, um momento. Antes de respondermos, lembremos de dizer,

em vez de „agora e na hora de nossa morte‟, „agora na hora de nossa morte‟,

porque do jeito que estamos, está tudo misturado (AC, p. 147).

Pedimos que Maria nos acompanhe com seu amor materno em cada instante de

nossa vida, mas sobretudo naquele que se coloca diante de nós como o mais incerto e frágil de

todos, a hora da nossa morte. Mesmo sendo a morte uma realidade conatural à nossa

humanidade e que, pela dimensão da fé, não é o fim da vida, ela é a condensação de todos os

nossos temores numa única situação. Nisso se encontra um dos motivos de muitas pessoas

terem medo da morte. Logo, a invocação da figura protetora e amorosa da mãe, sobretudo a

Mãe de Deus e nossa, nessa hora provoca uma onda de encorajamento, pois é um convite à

entrega ao absoluto amor misericordioso de Deus. Nesse sentido, é muito interessante o que

G. Roschini nos diz sobre a palavra “mãe”: “É a primeira que brota dos lábios e, geralmente, é

também a última que aí se extingue, pois se observa frequentemente nos moribundos este

fenômeno psicológico: a invocação de sua mãe”30

.

1.3.2. Salve-Rainha

No contexto desta pesquisa essa oração mariana é muito importante, o que

justificamos a partir de três pontos. Primeiro: ela inicia saudando Maria como “Mãe de

Misericórdia”, com o que se liga ao tratamento dado por Suassuna a Maria como

“Compadecida” (cf. acima). Segundo, na Salve-Rainha, encontramos os verbos: bradar,

suspirar, gemer e chorar, que denotam poeticamente a intensidade com que os fiéis rogam à

Compadecida sua intercessão, o que lembra o sentimento com que os personagens do Auto se

voltam a Maria e como a vida do sertanejo pobre pode ser interpretada como um “vale de

lágrimas”. Enfim, o terceiro ponto, a invocação “advogada nossa”, característica marcante de

Maria no momento do julgamento dos personagens no Auto da Compadecida.

Como o fizemos na oração da Ave-Maria, apresentamos um breve percurso

histórico da oração em questão. Sua composição é atribuída a Hermano, o Contrato (†1054),

30

Cf. ROSCHINI, Instruções marianas, p. 72.

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mas há outros possíveis autores, como Pedro de Mezonzo (†1000), bispo de Compostela, e

Ademar de Monteil (†1098), bispo de Le Puy-en-Velay. A piedade medieval acrescentou o

termo “Mater” no primeiro verso da oração, como “Virgo” no último31

. Em 1135, já

encontramos estabelecido o costume de se cantar a Salve-Regina como hino processional em

Cluny32

.

Essa oração começa com uma saudação que nos ajuda a compreender como se via

Maria no século XI e em toda a Idade Média, em que a Salve-Rainha se difundiu com vigor,

tanto nos mosteiros como na vida dos leigos. Maria é Regina misericordiae, como também

Regina, mater misericordiae. Ao termo Rainha são incluídos os adjetivos: vita, dulcedo et

spes nostra. Podemos dizer que Maria não é vista como uma rainha tirânica, distante do povo

e que lhe causa medo, mas sim uma Rainha de ternura e amor, e também vista com amor e

ternura por ser “mãe de misericórdia”33

. Também é feita outra referência à misericórdia de

Maria, ao pedir que ela volte seu olhar misericordioso àqueles cuja defesa ela assume. Aquela

que se compreende como uma serva de Deus e que teve os olhos do Altíssimo posto sobre si

mesma em sua humildade (cf. Lc 1, 48) agora é convidada a olhar para os que clamam por

ela.

A partir dessa impostação inicial da Salve-Rainha é que se apresenta o “como” as

pessoas se voltam à Mãe Misericordiosa, ou seja, com brados, “gemendo e chorando”. Essa

forma de recorrer à Virgem nos soa como a de alguém que se encontra em aflição, ou, como

diz o texto, são os “degredados filhos de Eva”, que vivem num “vale de lágrimas”. Seja por

aflição ou por participarem da sorte de Eva, no que se refere ao pecado, a oração é um grito

confiante de socorro.

Tanto a aflição como o pecado nos colocam diante de sérias consequências. Por

isso, devido a sua realeza e sua maternidade misericordiosa, Maria é clamada como

“advogada nossa”. Dentro do contexto feudal, como nos dias de hoje, o advogado é o que

garante proteção jurídica contra os inimigos. Assim, encontramos a manifestação de que

Maria se compadece dos seus e assume a causa dos mesmos34

.

31

Cf. MAGGIONI, Benedetto il frutto, p. 134. 32

Cf. AMATO, Maria la Theotokos, p. 17. 33

Cf. MAGGGIONI, Benedetto il frutto, p. 135. 34

Cf. ibid., p. 135-136.

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Atualmente, é muito questionada a ideia da vida como um “vale de lágrimas”.

Teme-se que pensar a vida como um exílio de sofrimento gere conformismo nas massas

majoritárias esmagadas pela injustiça, conformismo baseado na esperança de que na vida

eterna tudo irá acabar. Também pode-se pensar que, pelo fato de dor e sofrimento fazerem

parte da condição humana, se esqueça de que a alegria e a felicidade também fazem35

. Por

outro lado, não podemos ignorar que para muitos é difícil encontrar alegria e felicidade em

meio a situações de morte cotidianas, ou essas acabam sendo tão limitadas pelo medo e pela

fome, que nem são percebidas como tais. Em solidariedade não resignada com esses, vale a

pena rezar esse trecho da Salve-Rainha, no inconformismo de quem crê no Deus da Vida.

Assim como na Idade Média, em que essa oração não ficou restrita aos muros dos

mosteiros, também em nossos dias não se restringe ao coroamento das Completas, ou de toda

a Liturgia das Horas num dia. Ela é usada ao final do terço ou do rosário, ou recitada

livremente. Podemos dizer que, depois da Ave-Maria, é a oração mariana mais rezada e

conhecida36

, o que nos ajuda a ver o quanto de Maria fica gravado no nosso imaginário,

justificando que o Auto da Compadecida o apresente em forma de teatro. A Compadecida

toma a defesa dos personagens que estavam prestes a ser condenados ao inferno. E, mais do

que isso, toda a história dos personagens não lhe é indiferente. Ela olha o “vale de lágrimas”

onde a trama individual de cada um foi traçada, entre medo, fome, assassinatos e outras

situações.

Apoiamo-nos nessas duas orações tradicionais e populares para mostrar que o

imáginário religioso popular vem sendo de longa data alimentado da ideia da intercessão de

Maria na hora da morte de cada fiel, como também da realeza e da misericórdia materna que a

caracterizam ao assumir a causa dos que foram feitos seus filhos, sobretudo nos momentos

difíceis. Com isso, podemos passar à análise de outro título que se atribui a Maria na obra e

que nos ajuda a compreender sua função de Compadecida.

1.4. A mãe da justiça

Vale a pena recordar que Suassuna se serve da ideia de um tribunal civil para

retratar o julgamento dos personagens que morreram devido ao massacre dos cangaceiros, o

que faz reconhecer o Encourado como um caricato promotor de justiça, que num primeiro

momento parece convencer Manuel de que todos são dignos da condenação ao inferno. João

35

Cf. GEBARA, Maria, Mãe de Deus, p. 17. 36

Cf. MAGGIONI, Benedetto il frutto, p. 137.

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Grilo muda a situação ao insistir em apelar à misericórdia. E mesmo com a explicação do

padre de que “em Deus não existe contradição entre a justiça e a misericórdia” (AC, p. 142), o

nosso “amarelo” é firme em seu desejo e invoca não a misericórdia de Manuel, nem se apega

a santo algum, e sim clama à “mãe da justiça” pois o seu “trunfo é maior do que qualquer

santo” (AC, p. 143). É curioso notar que somente Manuel e João Grilo sabem quem é a mãe

da justiça. E a mãe da justiça é a misericórdia, que se apresenta como a Compadecida (cf. AC,

p 144).

Essa parte do diálogo entre os personagens é muito curta e depois não se retoma a

ideia subjacente a ela. A mãe da justiça é a misericórdia e esta é personificada em Maria. Mas

aqui levantamos algumas questões de ordem teológica conflitantes.

Quando, no Auto da Compadecida se diz que a Compadecida é a misericórdia,

isso ultrapassa o limite da concepção de Maria como Mãe de Misericórdia. A expressão

máxima da misericórdia é Jesus Cristo e não a Virgem. Contudo, devemos lembrar que, na

peça, esse diálogo serve de “introdução” à invocação da Compadecida, na qual João Grilo crê

que, com sua ajuda, os personagens julgados poderão superar a pretensa justiça do Encourado.

No conjunto da obra, veremos que, de fato, em Deus não há contradição alguma, por isso, não

há contradição entre a justiça e a misericórdia.

Quem lembra que não existe contradição entre justiça e misericórdia em Deus é o

Padre João (cf. AC, p. 142). De fato, pensar uma oposição entre esses dois atributos divinos

não goza de sustentabilidade, como podemos ver na invocação de Moisés:

O Senhor, o Senhor, Deus misericordioso e clemente, paciente, rico em

bondade e fiel, que conserva a misericórdia por mil gerações e perdoa

culpas, rebeldias e pecados, mas não deixa nada impune, castigando a culpa

dos pais nos filhos e netos, até a terceira e quarta geração (Ex 34,6-7).

Tanto a ação misericordiosa de Deus, como sua justiça ao punir, indicam que Ele

não é indiferente ao comportamento humano, ambos os atributos divinos revelam um pathos

em Deus com relação à história da humanidade, que a encaminha para a salvação37

.

Seguindo essa lógica de não oposição desses atributos em Deus, é conveniente

que também falemos que a oposição entre ambas não existe em Jesus. Jesus é justo e

misericordioso. A ideia de Cristo como um juiz justo e severo (severidade não aparece no

Auto, muito pelo contrário, encontramos um juiz de muito bom humor), que é convencido e

37

Cf. COTTINI, Il Dio della misericorida. In: DOMENICO, Maria Madre, p. 48-49.

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aplacado em sua ira por sua compassiva e misericordiosa Mãe, é uma criação medieval que

não retrata o fato de que Jesus é misericordioso e justo em perfeita harmonia.

Dessa forma, Maria, enquanto Mãe de Misericórdia, Compadecida, nunca deve

ser entendida como “a misericórdia”, pois a misericórdia divina se fez pessoa em Jesus Cristo

pelo mistério da encarnação. Claro que Maria, por sua relação ímpar com o Filho, por sua

eleição para a maternidade divina e por sua santidade pode ser considerada um puríssimo

reflexo da misericórdia divina, como da mesma forma pode ser de sua justiça.

2. “Mulher em tudo se mete!”

Esta é a segunda parte da frase do Encourado dita logo após a aparição de Nossa

Senhora na peça. Ela é marcada por um forte acento machista, que aponta para uma ideia

preconceituosa de que a mulher seria inclinada à fofoca, confusão e intromissão na vida

alheia. Contudo, a participação da Compadecida no Tribunal de Manuel aponta para outra

ideia bem diferente da concebida pelo Encourado: é a luta (inimizade) entre o próprio

Encourado e a Compadecida, devido à defesa veemente que ela faz a favor dos personagens.

2.1. A inimizade entre a Compadecida e o Encourado

Desde o aparecimento da Compadecida no tribunal divino, encontramos uma

grande animosidade entre ela e o Encourado. Logo após sua entrada, o Encourado diz: “Lá

vem a compadecida! Mulher em tudo se mete!” (AC, p. 145). Os ataques mútuos seguem até a

saída do Encourado, e isso porque, enraivecido com a decisão de que João Grilo voltaria à

vida, vira-se para ele e vê a Virgem. Suassuna, ao explicar esse ato, recorda Gn 3,15, ao

indicar que o ator que representa o Encourado deve deitar-se no chão e rastejar até “onde está

a Virgem pra que ela lhe ponha o pé sobre a nuca” (AC, p. 158) e sair de cena.

Essa inimizade entre Maria e a serpente foi desenvolvida pela tradição cristã

desde a era patrística e encontramos seu ápice na formulação dogmática da Imaculada

Conceição de Maria, na bula Ineffabilis Deus (1854). É a inimizade entre aquela que

radicalmente se entende como a “Serva do Senhor” frente ao diabo, que também radicalmente

se entende como “não servidor”38

.

Na era patrística, a ideia da inimizade entre Maria e a serpente pode tomar como

um ponto de partida o paralelo entre Maria e Eva. Esse paralelo tem sua origem em Justino

Filósofo e Mártir (†165) e foi melhor desenvolvido teologicamente por Irineu de Lyon (†202),

38

Cf. MARCONCINI, B. Angeli/demoni. In: DE FIORES, Mariologia, p. 87.

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afirmando que, se Eva tornou-se a causa da morte para si e para todo o gênero humano, em

contrapartida, Maria se tornou a causa de salvação para si e como também para todo o gênero

humano39

. Para Irineu, essa comparação está ligada ao plano da salvação, pois em Cristo, no

mistério de sua encarnação, acontece uma retomada do princípio de tudo, uma regeneração do

início, uma recapitulação40

.

Se Eva representa a desobediência, Maria tem uma atitude oposta, marcada pela

obediência, sem jamais dar ouvidos à serpente. Assim, o paralelo Eva-Maria e a inimizade de

Maria com a serpente se ancoram na interpretação de Gn 3,15: “Porei inimizade entre ti e a

mulher, entre a tua descendência e a dela. Esta te ferirá a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar”.

É hoje bem conhecido que houve um desvio do texto hebraico, pois quem fere a

cabeça da serpente não é a mulher e sim sua descendência. Contudo, a inimizade da serpente e

da mulher pode ser, do ponto de vista do paralelismo, pensada a partir de toda a vida de

Maria, que, pelos méritos de Jesus Cristo, foi isenta do pecado original, mostrando que

permanece o antagonismo entre ambos.

Na bula Ineffabilis Deus, de Pio IX, promulgada em 1854, que define a Imaculada

Conceição de Maria, também encontramos a referência a Gn 3,15, entendendo, porém, que é a

mulher que esmaga a cabeça da serpente:

como Cristo, mediador entre Deus e os homens, ao assumir a natureza

humana, destruiu o decreto da condenação que havia contra nós, afixando-o

triunfalmente à cruz; assim a Santíssima Virgem, unida a ele por meio de

liame estreitíssimo e indissolúvel, foi, com e por meio dele, a eterna inimiga

da venenosa serpente, esmagando-lhe a cabeça com o seu pé imaculado41

.

Quando nos referimos a Gn 3,15, três elementos precisam de clara definição: a

serpente, o significado do verbo “ferir” e a descendência da mulher42

.

Pela serpente, obviamente, não entendemos um animal, mas o mal que, sem se

explicar o motivo ou a origem, se faz presente no interior do mundo desde sua criação. Um

dado que se deve acrescentar para a compreensão dessa imagem é o simbolismo que tem seu

39

Cf. IRINEU, Contra as heresias, SC 153, 249. 40

Cf. LAURENTIN, La Vergine, p. 59-60. 41

PIO IX, Ineffabilis Deus, 12. 42

Cf. BEINERT, O culto a Maria, p. 126.

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pano de fundo no significado da serpente no culto cananeu da fertilidade e que constituía uma

tentação idolátrica para o povo de Israel43

.

A serpente está em luta com a descendência da mulher, ou seja, com um sujeito

coletivo, a própria humanidade como um todo em sua história. E o ato de “ferir” ou “golpear”

se refere a uma luta que vai até às últimas consequências, em que ambos se ferem contínua e

mutuamente.

Quem fere a cabeça da serpente é a descendência da mulher, ou seja, a

humanidade. Nem sempre a expressão iconográfica que relê Gn 3,15, a partir do Novo

Testamento, se prendeu à imagem da Virgem esmagando a cabeça da serpente, mas destacou

Cristo, entendido como descendente da mulher (Gl 4,4) e vencedor da serpente. De fato,

antigas representações da Imaculada Conceição trazem o menino Jesus nos braços de Maria,

com um cetro em forma de cruz esmagando a cabeça da serpente que é pisada pela Virgem,

como, por exemplo, a representada por Carlo Maratta (†1713).

Suassuna, ao retirar o Encourado de cena, o faz rastejar, como uma serpente, até

os pés da Virgem, que lhe pisa a nuca (cf. AC, p. 158). Ele está de acordo com as

representações da Virgem que trazem a serpente presa sob seu pé (como, por exemplo, a

imagem de Nossa Senhora das Graças) e de uma leitura tradicional dessa passagem do

Gênesis, confirmada pela Bula Ineffabilis Deus.

Também podemos pensar a inimizade entre a Virgem e a serpente a partir da

Primeira Carta de João (1Jo 4, 2): “Este é o critério para saber se uma inspiração vem de

Deus: de Deus é todo espírito que professa Jesus Cristo que veio na carne”. Maria, pelo

mistério da encarnação é a primeira a testemunhar esse mistério, logo é adversária do

“anticristo” que nega que Jesus seja de Deus (1 Jo 4, 3), também fundada no mesmo mistério

da encarnação44

.

2.2. Maria como advogada e o “Advogado” por excelência: o Espírito Santo

“Não confia mais na sua advogada?” (AC, p. 157). Com essa pergunta que a

Compadecida faz a João Grilo, a Virgem nos mostra um traço de seu compadecimento da

humanidade, que é assumir sua defesa contra todos os perigos e males como nossa advogada.

43

Cf. BEINERT, O culto a Maria, p. 126. 44

Cf. ibid., p. 134-135.

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Para compreendermos esse serviço de Maria ao povo de Deus, devemos partir de

sua vida, desde a anunciação do Senhor até sua assunção, em que encontramos a peregrinação

de uma mulher na fé, que viveu alegrias e sofrimentos da vida. Agora, glorificada no céu, o

povo de Deus, reconhecendo o único mediador, Jesus Cristo, se volta em prece a Maria em

busca de esperança e de alívio nos sofrimentos, reconhecendo-a como “advogada”.

No Auto da Compadecida, João Grilo deixa claro que se recorre a Maria como

advogada por causa do seu percurso histórico, da sua humanidade, por ela estar “mais perto de

nós, por (ser) gente que é gente mesmo” (AC, p. 140). Mas acrescenta outra razão: “Isso aí é

gente e gente boa, não é filha de chocadeira não! Gente como eu, pobre, filha de Joaquim e de

Ana, casada com um carpinteiro, tudo gente boa” (AC, p. 148).

Com isso, a obra não nega a humanidade de Jesus, pois o Manuel reage às duas

afirmações, dizendo: “E eu não sou gente, João? Sou homem, judeu, nascido em Belém,

criado em Nazaré, fui ajudante de carpinteiro... Tudo isso vale alguma coisa” (AC, p. 140). À

segunda afirmação de João Grilo, diz: “E eu, João? Estou esquecido nesse meio?” (AC, p.

148). Contudo, o “amarelo” afirma também sua divindade unida a humanidade, dizendo “(...)

o senhor é gente, mas não é muito, não! É gente e ao mesmo tempo é Deus, é uma misturada

muito grande”45

(AC, p. 140) e invoca a Compadecida como sua advogada.

A mais antiga referência a Maria como advogada é encontrada em Irineu de

Lyon46

, ao dizer que Maria é “advogada de Eva”, “considerando-a, pois, capaz de interceder

pela progenitora do gênero humano”47

.

O teólogo protestante Giovanni Miegge, frente a esse termo usado por Irineu,

pergunta se o emprego do termo “advogada” para Maria refere-se a “advogado” em sentido

próprio ou a “assistente”, “confortador”, “consolador”, como no Evangelho de João, ao se

referir ao Espírito Santo. Para ele, Irineu foi engenhoso na construção literária do paralelismo

Eva-Maria, porém sua obra deixa a desejar enquanto um texto ponderado e de intencional

doutrina teológica, deixando em aberto essa especificação48

. No decorrer da história, houve

uma simbiose desses dois termos, como podemos ver na piedade popular, através de orações,

pinturas e devoções, o que nos convida a refletir sobre a questão Maria e o Espírito Santo.

45

A questão da humanidade e da divindade de Jesus será analisada no capítulo terceiro desta

dissertação. 46

Cf. IRINEU, Contra as heresias, SC 153, p. 249. 47

Cf. GAMBERO, L. Culto. In: DE FIORES, Dicionário de Mariologia, p. 360. 48

Cf. MIEGGE, La Vergine, p. 140.

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Outras referências antigas ao título de advogada atribuído a Maria, além da Salve-

Rainha, podemos encontrar em ordens religiosas, como a dos Cistercienses, dos Mínimos49

e

dos franciscanos50

, como se vê em suas fontes:

Mas o que mais nos alegra é que ele (Francisco) a constituiu advogada da

Ordem e confiou à sua proteção os filhos que havia de deixar para serem

aquecidos e protegidos (cf. Sl 16,8) até ao fim. – Ó advogada dos pobres!

Cumpri para conosco o ofício de tutora até ao tempo predeterminado pelo

Pai (cf. Gl 4,2)51

.

A questão do título de Maria como “advogada” não é algo que deva ser analisado

sem levarmos em conta, de modo mais atento, a questão do Espírito Santo, como vimos na

crítica de Giovanni Miegge.

Ao discutirmos o lugar de Maria na Igreja e a função do Espírito Santo, podemos

tomar como ponto de partida o livro de Hendro Munsterman, Maria corredentora?,que nos

lembra que devemos buscar resolver o deficit pneumatológico na mariologia católica, ou seja,

a refundamentação bíblica e antropológica da pneumatologia deve incidir na mariologia

católica de modo que a reflexão teológica sobre a Virgem alcance uma expressão apropriada

para o século XXI52

.

Numa tentativa de busca de compreender a relação entre Maria e o Espírito Santo,

podemos tomar como ponto de partida a ideia de que, sob diversos aspectos, Maria e o

Espírito Santo estão estreitamente vinculados, “seja pela obra da Encarnação, seja pela

atribuição de títulos pneumatológicos a Maria, ou mesmo pela atribuição de funções do

Espírito de Deus à mãe de Jesus”53

. Atendo-nos a esses três polos de convergência é que

concordamos com a tradição mariana ortodoxa, ao afirmar que Maria é “pneumatófora”54

.

A compreensão de Maria enquanto aquela “que traz ou que leva (consigo)” o

Espírito Santo pode ser entendida a partir do três pontos, que são:

a) Maria é, antes de tudo, templo do Espírito: é o lugar de habitação onde o

Espírito em virtude de sua própria presença dinâmica, faz surgir o Cristo.

49

Cf. ZARRI, G. Famiglie religiose. In: DE FIORES, Mariologia, p. 532. 50

Cf. LEHMANN. La devozione a Maria in Francesco e Chiara. In: CONGRESSO MARIOLOGICO

FRANCESCANO, La “scuola francescana”, p. 32. 51

CELANO, Segunda vida de São Francisco, 198. In: TEIXEIRA, Fontes Franciscanas, p. 424. 52

Cf. MUNSTERMAN, Maria corredentora?, p. 93. 53

Cf. ibid., p. 93. 54

Cf. PIKAZA, Maria e o Espírito, p. 72.

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69

b) Mas Maria é ainda mais, é sinal do Espírito. Sinal significa indicação,

referência misteriosa. Através de sua pessoa e sua figura, descobre-se o

Espírito divino.

c) Maria é, finalmente, ícone do Espírito. Não é um sinal instrumental de

caráter eficiente, como parece ter pretendido a tradição católica. Ela é

um sinal-imagem, lugar de transparência ou trono em que o Espírito de

Deus se torna radicalmente presente no meio dos homens55

.

Maria, entendida como Pneumatófora, todavia, não justifica que as atribuições do

Espírito Santo sejam-lhe incorporadas. Esta indevida apropriação, fruto dos exageros

marianos, fez com que o ato de gerar, de cuidar e de proteger a vida, como também o de ser

mãe, símbolo de ternura e carinho, ser advogada, medianeira de todas as graças, refúgio dos

pecadores, intercessora (Rm 8, 26-27), fossem atribuídos de forma imprópria à Virgem

Maria56.

Para mostrar o quanto alguns títulos pneumatológicos foram atribuídos a Maria de

forma imprópria, tomemos o termo hebreu ruah, que foi quase sempre traduzido para o grego

como pneuma, que significa sopro, respiração, ar, vento, alma57

. Ruah é uma palavra de

gênero feminino, que “[...] significa a presença de Deus mesmo e de sua potência criadora

(Gn 1,2)”58

.

Entre as características do Espírito Santo no Novo Testamento, algumas possuem

traços maternais, como: “não deixar órfãos (Jo 14,18); ensina e recorda (Jo, 14,16). Para

Paulo, é o Espírito que ensina a balbuciar o nome do Pai (Rm 8,15) e a reconhecer Jesus como

Kyrios (1Cor 12,3), socorre-nos e ensina a pedir como convém (Rm 8,26)”59

.

Podemos dizer que o Espírito Santo é verdadeira “Mãe e senhora da vida”60

, tendo

como base a Sagrada Escritura. E, partindo para a questão eclesial, em consequência dos

atributos mencionados, podemos dizer que o Espírito é também a Mãe de todos os fiéis, a

verdadeira Mãe da Igreja61

.

Quando na ladainha de Nossa Senhora a invocamos, por exemplo, como “arca da

aliança”, “sede da sabedoria”, “refúgio dos pecadores”, “consolo dos aflitos” etc., devemos

nos lembrar que estamos diante de atributos pneumatológicos. Esses atributos, num segundo

55

PIKAZA, Maria e o Espírito, p. 85-86. 56

GOMES, Sereis um povo, p. 57. 57

Cf. CONGAR, El Espíritu Santo, p. 29. 58

SILVA, Pneumatologia e mariologia, p. 181. 59

Ibid. 60

Ibid. 61

Cf. SCHILLEBEECKX, Maria: Ieri, oggi, domani, p. 52.

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momento, foram transferidos para a Igreja, e depois, por sua vez, transferidos para aquela que

é o primeiro e mais eminente membro da Igreja, Maria62

.

Deste modo, quando, na obra de Suassuna, a Compadecida faz o papel de

advogada, ou de “refúgio dos pecadores” na hora em que Manuel está julgando os

personagens, estamos diante da religiosidade popular que foi por longos anos alimentada por

essa concepção devocional mariana, que não se perguntou pelos atributos do Espírito Santo

provenientes da Sagrada Escritura.

Acreditamos que Maria, apresentada no Auto da Compadecida como “advogada”,

seria melhor compreendida a partir do Magnificat em que ela lembra as maravilhas que Deus

realiza na vida dos pobres, em que engrandece o Senhor “porque ele olhou para a humildade

de sua serva” (Lc 1,48) e também porque “[derrubou] os poderosos de seus tronos e exaltou

os humildes. Encheu de bens os famintos, e mandou embora os ricos de mãos vazias” (Lc

1,52-53). Assim, os personagens da obra, apresentados como “pobres” (cf. AC, p. 148)

encontram nela uma verdadeira “companheira de viagem” neste peregrinar da existência de

cada um de nós que não termina na morte, como o Auto da Compadecida nos mostra.

E é com o coração de mulher que a Compadecida conhece a pobreza, mas

sobretudo o amor que Deus tem pelos pobres, pois ela se compadece dos seus irmãos na hora

do julgamento e lhes toma a defesa.

2.3. A defesa da Compadecida em favor dos personagens da obra

“Intercedo por esses pobres que não têm ninguém por eles, meu filho. Não os

condene” (AC, p. 148). É com essas palavras que, no Auto, a Compadecida inicia sua defesa63

dos personagens na peça teatral. A defesa está longe de ser superficial, não se limita a fatos

isolados, por mais graves que sejam (e essa gravidade não é negada na obra), mas vai a fundo

na história de cada pessoa, inserida num contexto de pecado social, pois: “Nenhuma vida se

62

Cf. SCHILLEBEECKX, Maria: Ieri, oggi, domani, p. 52-53. 63

Quando usamos a expressão “defesa” para a atitude da Compadecida em favor dos personagens do

Auto, a tônica principal que recai nessa ideia é motivada pelo afeto materno. Mas vale a pena lembrar

que há, na obra, uma comparação com os tribunais judiciais, de modo que “[na] técnica processual,

por defesa entende-se toda a produção de fatos ou dedução de argumentos apresentada por uma pessoa

em oposição ao pedido ou alegado por outrem, numa causa ou acusação” (DE PLÁCIDO E SILVA,

Defesa. In: ______. Vocabulário jurídico, p. 421). Como veremos mais adiante, a Compadecida

cumpre perfeitamente esta defesa, ao elucidar a vida dos personagens de modo diverso ao do

Encourado.

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71

realiza jamais em isolamento individual, mas sim no contexto dos relacionamentos sociais”64

.

O documento de Puebla nos fala que vivemos em “sistemas claramente marcados pelo

pecado”(Puebla, 92) e é dentro desses sistemas que cada pessoa é julgada.

Definimos pecado como a “„separação de Deus e dos outros‟. É alienação. É perda

daquilo que somos por natureza, e perda, enfim, de nós mesmos”65

. E devido ao seu caráter de

separação o

[pecado], portanto, é tudo o que leva à inimizade e ao enfrentamento entre

uns e outros, o que não tem consideração pelo bem comum e pela ordem

justa que permite o livre desenvolvimento de todos e uma convivência

responsável. [...] O pecado se refere sempre a alguma coisa que prejudica o

bem do ser humano, da comunidade humana66

.

Nesse sentido, pecado é sempre “ (...) um ato da pessoa, porque é um ato de um

homem (...)”67

, é um ato pessoal que fere outras pessoas. Esse pecado pessoal também tem

uma relação intrínseca com o pecado social e vice-versa68

, pois dada a solidariedade humana

o “pecado de cada um repercute, de algum modo, sobre os outros69

, tornando-se alguns “uma

agressão direta ao próximo”70

.

Consideramos que Suassuna, ao mostrar como a Compadecida amplia a história

de cada personagem em julgamento, está fazendo uma leitura das relações de pecado

individual e pessoal, procurando o equilíbrio responsável entre ambos, “sem induzir ninguém

a subestimar a responsabilidade individual das pessoas”71

. Nesse sentido, passemos à análise

do modo como os personagens são julgados.

2.3.1. Em favor do Bispo, do Padre João e do Sacristão

Os primeiros a serem julgados são o Bispo, o Padre e o Sacristão. Na obra,

representam pessoas concretas, mas também são figuras que representam a instituição

eclesiástica. Sabemos que sacristão não participa da hierarquia, mas Suassnuna o define na

obra como “um desdobramento, inferior pela hierarquia, dos outros dois”72

, que são o Padre

64

BLANK, Escatologia da pessoa, p. 306. 65

MARASCHIN, O espelho e a transparência, p. 118. 66

FLÓREZ, Penitência e unção dos enfermos, p. 26. 67

JOÃO PAULO II, Reconciliação e penitência, p. 47. 68

Cf. ibid., p. 47. 69

Cf. ibid., p. 48. 70

Cf. ibid., p. 49. 71

Cf. ibid., p. 51. 72

SUASSUNA, A Compadecida e o romanceiro nordestino. In ______. Almanaque armorial, p. 180.

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72

João e o Bispo. Também a figura do Sacristão pode ser interpretada como a de alguém ligado

à Igreja, por trabalho renumerado ou voluntário, que se identifica com a instituição, sobretudo

nas pequenas cidades do interior brasileiro, onde a vida do povo recebia grande influência da

Igreja.

O julgamento começa com o Bispo. E começa num clima tenso, pois este, ao

repreender João Grilo por preconceito racial de forma autoritária, é ordenado que se cale e

acusado de ser “um bispo indigno de minha Igreja, mundano, autoritário e soberbo” (AC, p.

126), e sem a humildade que deve ter uma pessoa que presta o devido serviço.

E a lista de acusações contra o Bispo não termina com essas elencadas por Manuel

em sua advertência. O Encourado destaca simonia, devido à realização do enterro do cachorro

em latim por seis contos (cf. AC, p.128); falso testemunho: uso do Código de Direito

Canônico para condenar o padre, agradar o rico e justificar o enterro do cachorro (cf. AC, p.

128); velhacaria, ou seja, dado a enganar e ser maldoso, pois sua fama de grande

administrador era uma máscara para encobrir “um político, apodrecido pela sabedoria

mundana”; é repetida a acusação de arrogância e falta de humildade (cf. AC, p. 129) e alguém

que desconhece a santidade, pois foi incapaz de perceber que vivia com um santo, o Frade,

considerando-o um imbecil (cf. AC, p.129).

E o autor é mais duro em sua crítica ao mundanismo na figura do Bispo que com

os demais personagens. Dizemos isto devido ao grande número de acusações que pesam sobre

ele e também pela forma como constrói o personagem. Quando Severino entra na igreja,

encontra o Bispo desmaiado e o chama de cônego. Este logo “abrindo os olhos, cioso do

posto” corrige-o, dizendo ser bispo (cf. AC, p. 89-90). Também diante do Encourado o Bispo

é o mais inclinado a obedecer a ele prontamente (cf. AC, p. 119), chegando inclusive a pedir-

lhe compaixão (cf. AC, p. 121).

A dureza da crítica de Suassuna ao mundanismo da Igreja que recai sobre o Bispo

faz eco ao pensamento de Santo Agostinho que reconhece a grandeza de sua responsabilidade

pastoral, ao dizer:

[quando] me aterroriza o que sou para vós, consola-me o que sou convosco.

Pois para vós sou bispo, convosco sou cristão. Aquele é o título de uma

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73

função recebida, este é título de graça; aquele é de perigo; este é de

salvação73

.

Antes de nos determos na defesa da Compadecida, queremos analisar as

acusações sob dois pontos de vista: a moral e a ideia de Igreja ideal ou coerente para o autor,

que, desde o início, critica o mundanismo que nela se encontra, característica essa que duas

vezes recai sobre o Bispo. Para a questão moral, destacamos: simonia e falso testemunho.

Simonia define-se como a compra ou a venda ílicitas de “bens espirituais”, como

bênçãos, sacramentos e indulgências. Essa definição pode ser exemplificada com At 8,20, em

que Simão, o Mago, queria comprar o poder divino com que os apóstolos vinham operando.

Pedro reage a esse pedido, dizendo: “Que o teu dinheiro vá contigo à perdição! Pensas que

podes adquirir o dom de Deus por dinheiro?”. Também em Mt 10,8 lemos: “Recebeste de

graça, dai pois, gratuitamente”. Logo, todos os bens espirituais provêm de Deus e ninguém

pode agir como proprietários deles, transformando-os em artigo de comércio.

Historicamente, a condenação à simonia se acentua pela negociação das ordens

sacras e títulos eclesiásticos74

. Mas a proibição também recai sobre outros bens sagrados,

como podemos ver no Sínodo de Latrão, de 7 de março de 1110: “Prescrevemos também isto,

que nada jamais seja cobrado pela crisma, pelo batismo e pela sepultura”75

.

O que agrava mais a questão referente à simonia realizada pelo Bispo, no Auto, é

que não se trata de cobrar as exéquias de uma pessoa e sim de um cachorro, de propriedade da

Mulher do Padeiro.

O autor acentua o amor ao dinheiro e é este que leva o Bispo a não difenciar a

dignidade do ser humano e a do animal. O enterro do cachorro é um recurso literário para se

apontar a questão central: idolatria ao dinheiro e a sua condenação evangélica: “Ninguém

pode servir a dois senhores. Pois vai odiar a um e amar o outro, ou se apegar a um e desprezar

o outro. Não podeis servir a Deus e ao „Dinheiro‟” (Lc 16, 13). A condenação do apego ao

dinheiro é profundamente correlacionada com a crítica que Suassuna faz ao mundanismo na

Igreja.

Mas, além da simonia, também damos destaque ao falso testemunho (cf. AC, p.

128). Isso porque, quando o Bispo soube que Padre João enterrou o cachorro, cita o “Código

73

AGOSTINHO, Sermo 340, 1. PL 38, 1483-1484. 74

Cf. DH 304, 473, 692, 751 e 820. 75

DH 708.

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74

Canônico, artigo 1627, parágrafo único, letra k” (AC, p. 67); desmentindo o mesmo, usando

agora o “Código Canônico, artigo 368, parágrafo terceiro, letra b” (AC, p.83). Ou seja, mente

usando referências do CIC que não existem76

.

O falso testemunho, ou a mentira, compreendida como ato de falsificar a verdade,

é uma infidelidade à verdade que é um “bem originário, decisivo e imprescindível”77

. É uma

dissimulação da verdade, primeiro para quem a diz, por ser um processo de “acomodação” de

fatos e pensamentos, constituindo um “autoengano” e, num segundo momento, ela “trai a

confiança e a promessa de toda palavra-sinal que significa para o outro, com efeitos

socialmente destruidores”78

, por romper com o ato de confiança, induzir o outro ao erro,

ferindo-o em sua dignidade79

.

Biblicamente, encontramos a condenação do falso testemunho no oitavo

mandamento, Ex 20,16. E em textos como Pr 12, 22 e 30,8; Lv 19,11; Ex 23,7; Eclo 7, 13-14;

Mt 5, 33; Cl 3, 9-10; Ef 4,25.

No caso específico do Bispo, o uso do falso testemunho é um abuso de autoridade,

que inventa citações do Código para se impor. “Autoengana-se”, apoiando-se na autoridade

que tem pela posição que ocupa, e não no sentido da autoridade-serviço ensinada por Jesus.

Assim, passemos para a análise da concepção de Igreja que encontramos

subjacente ao texto. Podemos dizer que o autor tem uma concepção muito elevada de uma

Igreja ideal, o que pode ser lido no reverso de sua condenação / crítica que faz da Igreja a

partir do termo “mundanismo”.

Na introdução da peça, Suassuna diz que ela é um combate ao “mundanismo,

praga de sua igreja” (AC, p.16). Por mundanismo, entendemos um conjunto de hábitos ou

sistemas dos que só procuram a satisfação material e a superficialidade num modo de viver

que valoriza de forma exagerada a formalidade, a etiqueta e a acumulação de bens80

. Essa

característica, vista como uma praga na Igreja, é personificada sobretudo no Bispo (em menor

76

Uma vez que o Auto da Compadecida foi escrito em 1955, consultamos o Código de Direito

Canônico de 1917 (e não o promulgado em 1983). Nele não há referência alguma sobre enterro de

animais acompanhado de ritos cristãos (cf. BENEDICTI PAPAE XV. Codex iuris canonici, Romae:

Typis polyglottis Vaticanis, 1917). 77

COZZOLI, M. Mentira. In: COMPAGNONI, Dicionário de Teologia Moral, p. 784. 78

Ibid., p. 785. 79

Cf. Ibid, p. 784-785. 80

Cf. DHLP, Mundanidade, p. 1330.

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75

intensidade no Padre e no Sacristão) que é chamado de mundano por Manuel (Cf. AC, p.126)

e que, em seu exercício pastoral, “não passava de um político, apodrecido pela sabedoria

mundana” (AC, p. 128).

Um dos traços do mundanismo e sua podre sabedoria é a incapacidade gerada de

reconhecer a santidade das pessoas. O Bispo convive com um santo, o Frade, e o considera

um idiota (cf. AC, p. 96 e 129). Na hora do massacre provocado por Severino e seu “cabra”,

esse frade é o único a se lembrar da confissão sacramental e, no caso da impossibilidade

desta, a absolvição condicional81

. Ele escapa do assassinato porque Severino considera que

matar frade dá azar (cf. AC, p. 99), contudo os dias desse frade terminarão de forma heróica e,

também, com uma morte violenta, mas ele a encontrará na nobreza do martírio como

missionário que viveu de forma santa (cf. AC, p. 129).

Muito do quanto foi refletido com relação ao personagem do Bispo pode ser

aplicado também ao Padre, ou, como o Encourado disse, “[tudo] o que eu disse do Bispo pode

se aplicar ao Padre. Simonia, no enterro do cachorrro, velhacaria, política mundana,

arrogância com os pequenos, subserviência com os grandes” (AC, p.130). Mas há

particularidades a destacar.

O Padre, chamado João, é acusado por Manuel de racismo, uma vez que primeiro

batizava os meninos brancos para depois batizar os pretos. A ordem só era inversa caso se

tratasse de “pretos que eram ricos” (AC, p.127).

A consciência moral da Igreja de modo algum pode aceitar qualquer forma de

racismo, uma vez que a revelação bíblica proclama a dignidade de toda pessoa. A

discrimanação feita pelo Padre João, priorizando “brancos” e ricos na celebração do batismo,

fere a igualdade fundamental que o sacramento gera na Igreja. São Paulo, em sua Carta aos

Gálatas explica a dignidade e a igualdade conferidas pelo batismo:

Com efeito, vós todos sois filhos de Deus pela fé no Cristo Jesus. Vós todos

que fostes batizados em Cristo vos revestistes de Cristo. Não há mais judeu

ou grego, escravo ou livre, homem ou mulher, pois todos sois um só, em

Cristo Jesus. Sendo de Cristo, sois, então, descendência de Abraão, herdeiros

segundo a promessa (Gl 3, 26-29).

81

O pedido do Frade está de acordo como o atual Código de Direito Canônico, no cânon 986, §2.

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76

Segundo o Encourado, outro pecado cometido pelo Padre e não pelo Bispo, é o da

preguiça, “deixando tudo nas costas do sacristão” (AC, p. 131). A preguiça é um pecado

considerado capital por ser gerador de outros pecados e vícios.

No que se refere ao Sacristão, é digna de destaque uma nota curiosa, que é o fato

de Manuel, brincando, notar que “o diabo tem mesmo um jeito assim de sacristão” (AC,

p.132). A brincadeira que Manuel faz com o Sacristão não soa como uma atitude

preconceituosa, mas funciona como um efeito para realçar o caráter humano e não irado da

pessoa divina de Manuel. Mesmo com a brincadeira, o sacristão não escapou de ser acusado

de tramar o enterro do cachorro, de hipocrisia, de autossuficiência e de roubo da igreja.

Concluímos, assim, a complexa situação moral que envolve o Bispo, o Padre e o

Sacristão, chamados de patifes por Manuel, pois, segundo ele, “faz tempo que eu não vejo

tanta coisa ruim junta” (AC, p. 132). Vale relembrar, diante de frase tão dura, que a obra é

uma crítica ao mundanismo na Igreja, ou seja, um aspecto dela em seus membros, não a ela

em si mesma. E essa crítica nos ajuda na revisão de práticas e, consequentemente, nos conduz

à conversão, pois:

Enquanto Cristo, “santo, inocente, imaculado” não conheceu o pecado, mas

veio para expiar apenas os pecados do povo, a Igreja, reunindo em seu

próprio seio os pecadores, ao mesmo tempo santa e sempre na necessidade

de purificar-se, busca sem cessar a penitência e a renovação (LG 8c).

Não cabe ao autor qualquer pecha de anticlericalismo. De fato, dentro do

julgamento, o maior número de pecados elencados caem sobre a figura do Bispo, mas isso não

quer dizer que este esteja condenado ao inferno, como veremos adiante. Insistimos na ideia de

que o Bispo, como o Padre e o Sacristão, personificam a Igreja que é criticada pelo

mundanismo, crítica radical da obra, o que acarreta esse acento.

Sobre a pessoa de Ariano Suassuna em sua relação com a Igreja o que podemos

dizer é que “é frequentador assíduo da igreja do bairro”82

, mas não deixa de ser um homem

crítico, que goza de uma visão religiosa marcada por um humanismo cristão, rejeteitando a

passividade e a resignação do moralismo cristão83

. Ilustra bem a questão o breve diálogo entre

João Cabral e Suassuna após a publicação do Auto da Compadecida: “ „Você se

82

NOGUEIRA, O cabreiro tresmalhado, p. 215. 83

Cf. ibid., p. 102.

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77

desconverteu?‟ Aí eu disse: „Não senhor, eu continuo lá. É que eu não gosto de padre

ruim‟”84

.

E mesmo não gostando de padre ruim, com as três figuras em questão, prevalece a

misericórdia no julgamento. Manuel cumpre seu papel de juiz e atesta a patifaria que lhe é

exposta. Parece certa a condenação dos três, mas, com a intervenção da Compadecida, a

situação é vista por um novo ângulo.

A Compadecida não nega as acusações, mas aponta outros elementos e pede que

sejam valorizados. Desse modo, o Bispo é elogiado por ser trabalhador. A propósito, faz

referência ao texto de Mc 9,40, lembrando de que quem não está contra o Senhor, está a seu

favor (cf. AC, p. 148). Quanto ao Padre e ao Sacristão, lembra “a língua do povo e o modo de

acusar do diabo” (AC, p. 149) e, sobretudo, “a pobre e triste condição do homem”, marcada

pelo medo da morte, do sofrimento, da fome e da solidão. As pessoas “começam com medo,

coitados, e terminam por fazer o que não presta, quase sem querer. É medo” (AC, p.149).

Nesse momento, o foco da questão se amplia. Ela deixa de ser apenas uma

questão do Padre e do Sacristão, envolvendo o Bispo, o Padeiro e até mesmo Manuel, que

lembra sua morte em sentimento de abandono pelo próprio Pai. E é apelando à humanidade de

Jesus que a Compadecida encerra sua súplica, pedindo que Manuel “[seja] então compassivo

com quem é fraco” (AC, p.150). Eles vão para o purgatório, juntamente com o Padeiro e sua

Mulher, por sugestão de João Grilo. A Compadecida concorda com a ideia, lembrando que no

purgatório “[dá] pra eles pagarem o muito que fizeram e assegura a sua salvação” (AC,

p.154).

2.3.2. Em favor do Padeiro e de sua Mulher

Depois do Bispo, do Padre e do Sacristão, são julgados, o padeiro e sua mulher. O

casal é acusado pelo Encourado de ser “os piores patrões que Taperoá já viu” (AC, p. 132),

além da “avareza do marido e adultério da mulher” (AC, p. 133).

A mesquinhez do Padeiro, seu apego exagerado ao dinheiro constituem traços que

justificam a acusação do pecado capital da avareza. E o adultério de sua mulher é condenado

em várias passagens bíblicas, tanto em ato como em desejo (Ex 20,13.17; Dt 5, 18-21)85

. É

84

TAVARES, ABC de Ariano, p. 85. 85

Ver também Lv 20, 10; Dt 22, 22-23.28; Ez 16,40; Mt 5, 27; 19,18; Mc 10, 19; Lc 18,20; Rm 13,9;

Tg 2,11.

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78

um pecado que fere a dignidade do casal, sobretudo quando unido pelo sacramento do

matrimônio, ao qual atribui-se um bem tríplice, sendo três suas peculiaridades: “o preceito da

procriação, a fidelidade conjugal e o sacramento da união ”86

.

Também para ambos a situação era de condenação ao inferno, mas, quando a

Compadecida intervém, novos elementos são agregados.

A Compadecida lembra, em favor do Padeiro, que “na hora da execução o marido

perdoou sua esposa morrendo abraçado a ela” (AC, p.150). A Mulher, quando acusada pelo

Encourado de enganar “o marido com todo mundo” (AC, p.151), fala dos maltratos sofridos

da parte do marido, que também a enganava, e de sua situação de moça pobre casada com

homem rico (cf. AC, p.151). A Compadecida confirma seu sofrimento, alegando sua

“condição de mulher, escravizada pelo marido e sem grande possibilidade de se libertar” (AC,

p. 152).

Curiosamente, em momento algum da obra, o Padeiro é acusado de adultério, seja

por Manuel, pelo Encourado e até mesmo pela sua Mulher. Esta última apenas o alega em sua

defesa. Faz-nos pensar que o adultério para os homens, socialmente falando, é mais aceito que

para as mulheres.

O ponto alto dessa parte do julgamento, contudo, é a fala do Padeiro, que se

apresenta como aquele que foi ofendido e que por ela fez uma prece antes de morrer. Manuel

recebe a alegação (cf. AC, p.152). Lembramos a atitude de Jesus com a “mulher apanhada em

adultério” (Jo 8,3), em que Ele não a condena e nem falsifica a verdade moral, contudo lhe

oferece seu amor misericordioso, reportando-a à verdade e à salvação (Jo 8, 10-11).

O autor, no segundo momento, não menciona a mesquinhez/avareza dos

personagens, detendo-se na questão do adultério. Será por que já tratou do tema quando do

julgamento do Bispo, do Padre e do Sacristão? O texto nos deixa intuir que sim e que a

questão que mais pesa sobre o casal está ligada à instituição matrimonial, mas isso não é

expresso diretamente.

Vale evidenciar que o autor não relativiza a questão do adultério. Ele é condenado

na obra. Isso o podemos ver desde quando a mulher se insinua a Severino e ele diz:

“[vergonha] é uma mulher casada na igreja se oferecer desse jeito” (AC, p. 93). Também o

86

Cf. AGOSTINHO, A graça (I), p. 305; cf. DH 1327.

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adultério é condenado em outra obra sua, A farsa da boa preguiça. Nesta peça para teatro, a

personagem D. Clarabela, que enganava o marido Aderaldo Catacão, é condenada ao inferno

por isso e outras situações de pecado, ao passo que Nevinha, a mulher do poeta-herói da peça,

é elogiada por sua fidelidade ao marido87

.

Passemos agora à defesa de João Grilo, deixando para o próximo capítulo a

análise da figura de Severino e seu “cabra”.

2.3.3. Em favor de João Grilo

Suassuna apresenta João Grilo como um verdadeiro herói, ao mesmo tempo que

legítimo representante do povo simples, pois não faz parte do clero como o padre e o bispo (e

nem está ligado à Igreja como o sacristão), não faz parte da burguesia urbana, representada

pelo padeiro e sua mulher e nem do grupo dos proprietários rurais, representados na figura do

major Antônio Moraes88

. No Auto da Compadecida, João Grilo personifica o povo pobre que

dá um “jeitinho” para sobreviver na luta contra os poderosos e opressores que o exploram e

humilham. O mesmo adjetivo com que é tantas vezes designado na obra nos lembra isso,

“amarelo” ou “amarelinho”, ou seja, “homem do povo”89

. Assim, em João Grilo, é o povo

pobre que é julgado e dá um “jeitinho” de continuar vivendo.

Aliás, “o jeito é a práxis do povo”90

. É uma manifestação da autonomia humana,

transformada numa técnica de viver que abre espaço num sistema normativo e institucional

incapaz de solucionar problemas concretos das pessoas. O jeito

[em] sua origem é sempre uma decisão inventiva, individual. Sua fonte e sua

razão de ser são uma pessoa concreta diante de uma situação concreta que

apela à ação. Mas pela multipicidade destas decisões e pela sua divulgação

no meio ambiente social, formou-se toda uma estratégia socializada,

variável, sem fim, mas estruturalmente semelhante, que se fixou na vida do

povo, como alternativa moral diante da obediência ao sistema das normas

existentes91

.

Este jeito é o que João Grilo não usa apenas em favor de si mesmo mas também

em favor dos outros. É João Grilo quem levanta a possibilidade de que o Bispo, o Padre, o

Sacristão, o Padeiro e sua Mulher ocupem os cinco últimos lugares do purgatório (cf. AC, p.

154).

87

Cf. SUASSUNA, A farsa da boa preguiça. 88

Cf. NOGUEIRA, O cabreiro tresmalhado, p. 30. 89

Cf. ibid., p. 30. 90

LEERS, Jeito brasileiro e norma absoluta, p. 45. 91

Ibid.

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80

A capacidade de João Grilo de tentar reverter a complicada situação última na

hora do julgamento de Manuel em favor de um melhor destino para os personagens é o que

leva Maria Aparecida Nogueira. Em seu estudo sobre o Auto da Compadecida, a apresentar

outra interpretação para o apelido de “amarelinho” que João traz na peça:

Amarelo é luz, que se transfigura em algo menor, negação do luminoso; ao

mesmo tempo, o próprio João Grilo se autorresgata como ser aluninoso,

uma vez que é o responsável direto pela reversão e absolvição de todos os

personagens no julgamento final, com a ajuda de Nossa Senhora, a

compadecida92

.

Nessa perspectiva é que queremos elencar as acusações contra João Grilo:

preconceito de raça (cf. AC, p.126); “esperteza”, tramando o enterro do cachorro; venda do

gato que “descome” dinheiro e da gaita mágica usada para enganar os cangaceiros (cf. AC,

p.138).

A esperteza de João Grilo pode ser analisada a partir da tríplice compreensão de

mentira, que são

[“jocosa”], dita por diversão; para muitos não se trata de uma mentira

propriamente, porque pelo contexto fica evidente que não se quer afirmar o

que se diz, mas simplesmente divertir-se; “oficiosa”, dita por necessidade:

para evitar um mal e procurar um bem; “perniciosa”, dita para prejudicar

alguém93

.

Acreditamos que as mentiras, ou “espertezas” de João Grilo, situam-se na

classificação de “oficiosas” como, por exemplo, história da gaita mágica que faria Severino

ver Padre Cícero (cf. AC, p.102) e as tramas que envolviam dinheiro, como o enterro do

cachorro e o gato que “descome” dinheiro (cf. AC, p.138). Com estas mentiras João Grilo

buscava evitar o mal da miséria e da fome e procurava meios de subsistência. O autor

transpõe essa análise moral na ideia de que o povo pobre “dá seu jeito de viver”.

João Grilo viveu de sua astúcia e, mesmo depois de os cinco personagens já

citados serem mandados para o purgatório e de Severino e seu cabra para o céu, João Grilo

tenta negociar sua salvação, pedindo “o céu, porque aí o acordo fica mais fácil a respeito do

purgatório” (AC, p.156-157). Ou seja, usa de uma prática comum no comércio popular, como

também em processos trabalhistas, de barganhar algo, ou seja: a arte de “pechinchar”. Mas,

depois da morte, isso não funciona (cf. AC, p.157). E em sua defesa a Compadecida lembra a

92

NOGUEIRA, O cabreiro tresmalhado, p. 55. 93

COZZOLI, M. Mentira. In: COMPAGNONI, Dicionário de teologia moral, p. 786.

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Manuel que “João foi um pobre como nós, (...). Teve de suportar as maiores dificuldades,

numa terra seca e pobre como a nossa” (AC, p.156).

O veredicto de Manuel sobre João Grilo é diferente daquele emitido sobre os

demais réus. A ele é permitido voltar a viver na terra, mas somente se conseguir fazer uma

pergunta a que Manuel não saiba responder. E João Grilo a encontra, perguntando: “Em que

dia vai acontecer sua segunda ida ao mundo?” (AC, p.160). Essa pergunta é inspirada no

Evangelho de Marcos 13,32, como o próprio Manuel diz (cf. AC, p.159). Encerrar o

julgamento do “amarelo” com uma charada é uma confirmação de que Cristo e sua mãe

conhecem o povo pobre e sofrido e sabem que ele usa de uma inteligência própria para

sobreviver (cf. AC, p.160).

Essa inteligência ou esperteza não é posta no mesmo plano da avareza e do

adultério, que são condenados. Ela é admitida como a forma de os pobres sobreviverem, é sua

resistência. Antes de apelar à Compadecida, os outros personagens já se davam por entregues

ao Encourado, mas João não se entrega, dizendo:

E difícil quer dizer sem jeito? Sem jeito! Sem jeito por quê? Vocês são uns

pamonhas, qualquer coisinha estão arriando. Não vê que tiveram tudo na

terra? Se tivessem tido que aguentar o rojão de João Grilo, passando fome e

comendo macambira na seca, garanto que tinham mais coragem (AC, p.142).

Concluindo: em João Grilo encontramos todos os pobres, acolhidos pelo Senhor

em seu modo de viver, ou de sobreviver

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Capítulo III

O Tribunal de Manuel: o triunfo da misericórdia

Neste terceiro capítulo, expomos os elementos que regem o conjunto do terceiro

ato do Auto da Compadecida. O cenário proposto é o de um tribunal em que após a morte dos

personagens, esses são julgados por Manuel. Suassuna apresenta esse julgamento unindo

elementos bíblicos / teológicos, com religiosidade popular e com características de um

Tribunal de Justiça. Desse modo, esta parte da dissertação tem quatro subdivisões, em que em

cada uma delas se mostra, à sua maneira, o triunfo da misericórdia divina frente às

equivocadas concepções de um Deus vingativo.

1. O Juiz e o seu Tribunal

O juiz é a pessoa que investida de autoridade pública tem como missão

administrar a justiça, que no curso de um processo não atua como um mero espectador, mas é

quem o dirige, o formula, a fim de que a verdade e a justiça se tornem evidentes1. Deste

modo, é a figura central de cada julgamento desenvolvido num tribunal. A palavra “tribunal”

vem do latim tribunal e significa o assento dos juízes. O Direito Processual brasileiro

compreende-o como o colégio de juízes que tem por responsabilidade a administração da

justiça num determinado território2. A “sessão” que apresentamos neste item tem como juiz

Manuel, que é o único juiz universal de toda a humanidade, e que administra a justiça “na

morte” dos réus.

1.1. O Tribunal de Manuel acontece “na morte” dos personagens

O Auto da Compadecida encontra, no momento do julgamento dos personagens,

seu ponto de convergência, pois toda a trama da vida de cada um deles é refletida à luz do

julgamento de Manuel, ao lado da Compadecida, e tendo como “promotor de justiça” o

Encourado.

1 Cf. PLÁCIDO E SILVA, Juiz. In: ______. Vocabulário jurídico, p. 789.

2 Cf.______. Tribunal. In: ______. Vocabulário jurídico, p. 1430-1431.

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Como o texto em questão é apropriado para teatro, o cenário não é mero detalhe.

O terceiro ato da peça acontece depois que morrem os personagens. E onde eles estão nesse

momento? O que significa dizer que eles estão no Tribunal de Manuel para o julgamento? O

que vai unir teologia e arte, nesse terceiro capítulo de nossa dissertação, é que o cenário

teológico e teatral se situa imediatamente após a morte dos personagens. Mas, ainda assim,

devemos nos perguntar: em que lugar se dá o julgamento? Ou, melhor dizendo, em que

situação se dá esse momento específico?

De fato, é mais apropriado, teologicamente, falarmos da situação em que os

personagens se encontram ao invés de lugar. E essa situação nós a chamaremos de estar na

morte. Isto porque “na morte o ser humano sai do contínuo espaço-tempo”3, abrindo-se a uma

nova dimensão que é a eternidade, acontecendo sua ressurreição4.

Como ilustra o Auto da Compadecida, estar na morte é um momento distinto do

processo em que ocorre o termo da vida, que é o “morrer” e tudo aquilo que este implica5.

Vale notar que a obra apresenta a morte associada ao humor6, sem negação ou

banalização, mas tratando-a de forma bastante humanizada, deixando inclusive claro que a

morte não tem a última palavra. A última palavra é de Manuel, por isso é uma palavra de

salvação.

O lamento de Chicó pela morte de João Grilo nos mostra essa compreensão da

morte a partir da realidade do sertanejo pobre, carregada de humanidade e de humor ao dizer:

Ai meu Deus, morreu pobre de João Grilo! Tão amarelo, tão safado e morrer

assim! (...) Acabou-se o Grilo mais inteligente do mundo. Cumpriu sua

sentença e encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca

de nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que

iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é

vivo morre (AC, p. 113).

E é nesse momento da morte que nossos personagens e todas as pessoas se

encontram pela primeira vez com Deus7.

3 BLANK, Escatologia da pessoa, p. 214.

4 Cf. ibid, p. 110; BOFF, cf. Vida para além, p. 42. Salientamos que a ressurreição na hora da morte é

uma opinião teológica, não a doutrina da Igreja. 5 Podemos ver isso na correção que João Grilo faz na oração da Ave-Maria, lembrando que não rezem

“agora e na hora da nossa morte”, mas “agora na hora de nossa morte” (AC, p. 147). 6 Também encontramos essa associação da morte com o humor em outra peça teatral de Suassuna, A

pena e a lei. 7 Cf. BLANK, Escatologia da pessoa, p. 73.

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1.2. Manuel, o juiz da humanidade

“É preciso mudar o cenário, para a cena do julgamento de vocês. Tragam o trono

para Nosso Senhor” (AC, p. 114). Desta forma inicia-se o último ato do Auto com o

julgamento dos personagens, o momento em que eles se encontram com Jesus, aqui

denominado de Manuel. À luz do juízo de Manuel é que se pode encontrar sentido e

explicação para a vida.

Nesta parte de nossa pesquisa, queremos analisar a forma como o autor apresenta

a figura de Cristo, o juízo que ele exerce e as realidades escatológicas do céu, purgatório e

inferno.

1.2.1. A cristologia presente na obra

Na abertura da peça, quando os personagens entram para se apresentar, o ator que

atuará como Manuel não entra, “porque sua aparição constituirá um grande efeito teatral”

(AC, p.16). Queremos analisar como a figura de Jesus aparece na obra, começando com esse

elemento de surpresa para o público.

1.2.1.1. Jesus negro e judeu

“O ator que vai representar Manuel, isto é, Nosso Senhor Jesus Cristo, declara-se

também indigno de tão alto papel” (AC, p. 16). Esta é a primeira referência a Jesus, no Auto

da Compadecida, que é apresentado como “um preto retinto, com uma bondade simples e

digna nos gestos e nos modos” (AC, p. 124).

A primeira reação de João Grilo, diante de Jesus, é a de estranheza por causa da

cor de sua pele ser negra. João Grilo, de forma preconceituosa, se manifesta, dizendo

imaginar Cristo “menos queimado” ou que a “cor pode não ser das melhores” (AC, p. 126).

Também o bispo compartilha com João Grilo o mesmo racismo, contudo manda que João se

cale. Manuel, que conhece os pensamentos de todos, começa dirigindo aí seu duro juízo sobre

o bispo e, no que se refere ao racismo, o acusa de não ter dito nada por prudência humana.

Suassuna usa o termo “preto” ao invés de “negro” para designar a cor da pele de

Manuel. Lembremos que o Auto da Compadecida foi escrito na década de 50, quando não se

discutia a questão se o termo era politicamente correto. Como exemplo, citamos a obra de

Monteiro Lobato (1882-1948) e sua personagem Tia Anastácia que, várias vezes, é chamada

pela boneca Emília de “preta”.

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85

A representação de Cristo negro para Suassuna é uma forma de tratar do problema

da segregação racial, como ele mesmo explica, falando do Auto em relação a outra peça

teatral de sua autoria, A pena e a lei8.

Para ajudar-nos na reflexão teológica sobre a apresentação de Manuel como

negro, partiremos de um comentário de R. Gibellini sobre a obra de James Cone, A Black

Theology of Liberation:

A tese central da teologia negra é a de que “Deus é negro”. Não só “Deus

não é daltônico (color blind)”, quer dizer, não é indiferente à cor, mas não há

lugar sequer “para um Deus incolor (colorless God)”; Deus não só leva a cor

a sério, mas a assume: “A negritude (blackeness) de Deus significa que Deus

fez da condição dos oprimidos sua própria condição”9.

Deste modo, para a teologia, pensar Cristo negro não é falar de características

físicas obviamente, mas assumir um “símbolo teológico” que expressa de forma muito

concreta a presença libertadora de Cristo nos dias de hoje10

.

Diz Manuel: “Eu, Jesus, nasci branco e quis nascer judeu, como podia ter nascido

preto. Para mim, tanto faz um branco como um preto. Você pensa que eu sou americano para

ter preconceito de raça?” (AC, p. 126-127).

Fazer referência à etnia de Jesus é situá-lo no contexto histórico de um

determinado povo, tempo, cultura e religião, elementos estes que Suassuna preza muito em

sua obra literária em geral.

De fato, Suassuna é bastante enfático na valorização desses elementos na mesma

medida em que é crítico quanto à dominação econômica e cultural dos EUA sobre o Brasil.

Seu pensamento sobre o preconceito racial dos americanos encontra eco nas palavras de

Richard Horsley:

Muitos americanos também começaram a se perguntar: “Por que os outros

povos nos odeiam tanto?” Esse questionamento levou à dolorosa constatação

de que não apenas árabes / mulçumanos, mas também membros de muitas

outras etnias / religiões se fazem uma pergunta semelhante há muito tempo:

Por que os americanos nos odeiam tanto? Os Estados Unidos mataram

centenas de milhares de civis nos bombardeios de Bagdá durante a

Tempestade no Deserto. Os Estados Unidos causaram a morte de meio

milhão de recém-nascidos e crianças em consequência das sanções impostas

ao Iraque, negando-lhes o acesso aos remédios necessários e a cuidados de

saúde adequados. Os Estados Unidos, um país pretensamente cristão, violam

8 Cf. SUASSUNA, A pena e a lei, p. 151.

9 GIBELLINI, A teologia do século XX, p. 398.

10 Cf. ibid., p. 401.

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o solo sagrado do islã aquartelando forças militares na Arábia Saudita, forças

que também apoiam o impopular regime saudita, opressor do próprio povo.

E, dizem os muçulmanos e outros árabes, os Estados Unidos tomam o

partido de Israel na opressão aos palestinos. Antes de tudo isso, os Estados

Unidos lançaram napalm e bombas de combate sobre o povo vietnamita e

treinaram exércitos latino-americanos que oprimiam e muitas vezes

massacraram seus próprios concidadãos11

.

Do mesmo modo, Suassuna não nega sua aversão à dominação estrangeira,

dizendo:

Não escondo que tenho um certo “preconceito de raça ao contrário”. Sempre

olhei, meio desconfiado, para essa galegada que, de vez em quando, nos

aparece por aqui, como quem não quer nada, que entra sem cerimônia e vai

mandando para fora amostras de nossas terras, de nossas pedras, do subsolo,

da água e até do ar, sem que os generosos Brasileiros estranhem nada.

Preconceito que – não é preciso dizer – absolutamente não existe diante do

bom estrangeiro ou do bom imigrante de qualquer raça ou cor, que traz para

cá sua pessoa, sua família, sua vida, sua cultura, enriquecendo-se e

enriquecendo a nossa grande Pátria. Preconceito que deixará de existir

também, extramuros, quando esses Povos brancosos que, por enquanto, são

poderosos do mundo, não puderem mais nos oprimir e explorar12

.

Braulio Tavares, um estudioso da obra de Suassuna, afirma que não cabe ao autor

do Auto uma acusação de xenofobia. Ariano tem pouca identificação com a cultura de língua

inglesa, o que não o impede de admirar as obras de Lawrence Durrell, Henry Fielding,

Herman Melville, William Faulkner e Shakespeare13

.

Desta forma, a afirmação da etnia judaica de Jesus acompanhado de crítica ao

preconceito norte-americano tem como escopo, além da crítica evidente que traz em si, a

valorização da cultura de cada povo, sobretudo a brasileira e nordestina / sertaneja que

Suassuna tanto valoriza.

1.2.1.2. Os títulos cristológicos

Depois da entrada de Manuel no cenário, o Encourado, como “promotor de

justiça”, de costas, pergunta quem é que acaba de chegar, já sabendo ser Manuel, e, como

resposta Cristo diz: “Sim, é Manuel, o Leão de Judá, o Filho de Davi” (AC, p. 125). Deter-

nos-emos brevemente nestes títulos cristológicos.

11

HORLSEY, Jesus e o império, p. 10. 12

SUASSUNA, Farsa da boa preguiça, p. 21-22. 13

Cf. TAVARES, ABC de Ariano, p. 114-115.

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Com o nome de “Manuel” encontramos a primeira referência direta à pessoa de

Jesus na obra. É o Encourado quem a diz e, segundo o próprio Cristo, “pensa que assim pode

se persuadir de que sou somente homem” (AC, p. 125).

“Manuel” é uma “forma aferesada14

de Emanuel”15

. Talvez o autor tenha optado

por essa maneira de nomear Jesus por ser Manuel um nome bem comum entre os brasileiros,

sublinhando assim sua intenção de mostrar um Cristo mais próximo das pessoas, como

Suassuna nos explica dizendo que “a forma castiça portuguesa, Manuel, em vez de Emanuel,

seria mais expressiva, para indicar que o que estava ali era uma versão popular nordestina do

Cristo, e não o Cristo, mesmo”16

.

O que queremos ressaltar é o significado teológico do nome. “Emanuel” deriva do

hebraico „imanû‟el que quer dizer, “Deus conosco” ou “que Deus esteja conosco”.

A atribuição desse nome a Jesus está intimamente ligada a passagens do Novo

Testamento que foram interpretadas como uma profecia direta sobre a concepção virginal de

Jesus17

. Para “Mateus e Lucas a história da concepção virginal de Jesus demonstra que, desde

o primeiro momento da sua existência humana, Jesus é o Filho de Deus, Emanuel, Deus

conosco”18

.

Salientamos que Mateus cita Is 7, 14: “Eis que a jovem conceberá e dará à luz um

filho e lhe porá o nome de Emanuel”. O versículo refere-se ao nascimento de uma criança que

foi anunciado por Isaías como um sinal para o rei Acaz e sua corte. Essa criança não é

apresentada como uma figura messiânica, mesmo que provavelmente pertencesse a realeza,

sendo um símbolo de esperança em momento de fraqueza. No que tange à mãe da criança, ela

é chamada, em hebraico, de almah, que significa “jovem núbil”, não necessariamente virgem.

A tradução grega utilizou a palavra parthenos,que, de forma inequívoca, significa “virgem”19

.

De modo que

[os] cristãos primitivos entenderam que a tradução grega de “jovem” como

“virgem” confirmava a crença que tinham na concepção virginal de Jesus.

Mas talvez Mateus estivesse mais interessado no nome da criança,

14

Aférese é o “processo de mudança linguística que consiste na supressão de fonema (s) no princípio

do vocabulário (p.ex. de enojo formou-se nojo; de enamorar formou-se namorar; [...]” (DHLP,

Aférese, p. 60). 15

GUÉRIOS, Manuel. In: ______. Dicionário etimológico, p. 170. 16

SUASSUNA, A Compadecida e o romanceiro nordestino. In: ______. Almanaque armorial, p. 186. 17

Cf. McKENZIE, Emanuel. In: ______. Dicionário bíblico, p. 252. 18

LOEWE, Introdução à cristologia, p. 240. 19

Cf. COLLINS, Isaías. In: BERGANT, Comentário bíblico, p. 19-20, v. II.

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“Emanuel”. Em hebraico, “Emanuel” significa “Deus conosco”, o que

expressa o significado de Jesus para Mateus e a Igreja primitiva. Uma nota

semelhante ocorre no v. final do Evangelho: “eis que estou convosco todos

os dias, até a consumação dos tempos (28,20)20

.

Com isto, o uso que o Encourado faz do nome “Manuel”, como uma forma de se

dizer que Jesus seria apenas humano, não goza de legitimidade cristológica. Essa ideia pode

ser um recurso literário para acentuar mais uma das confusões do demônio (cf. SUASSUNA,

AC, p. 130), pois no nome Manuel está a afirmação da divindade de Jesus (Manuel = Deus

conosco).

O título “Leão de Judá” ou “Leão da tribo de Judá” encontra-se no texto de Ap

5,5 e deve ser entendido como um título de realeza messiânica.

Em Gn 49, 1.8-10, encontramos Judá sendo chamado de “filhote de leão” por seu

pai Jacó, anunciando-lhe “a liderança por causa do rei (Davi) que dele deve surgir, o „leão de

Judá‟ – também imagem do Messias”21

.

Em Ap 5, 5, Jesus é apresentado como o “leão da tribo de Judá, o rebento de

Davi”22

, sendo o único capaz de “romper os selos e abrir o livro”, que contém o plano divino

para o fim do um sistema opressor. Esse plano era, até então, mantido em segredo e a

“abertura do livro pelo leão vitorioso inicia as visões que explicam o fim do poder

imperial”23

. A aptidão para abrir o livro é um reconhecimento messiânico daquele que

cumpriu as profecias do Antigo Testamento e é vitorioso. A vitória do Cristo é a vitória sobre

a morte, obtida por sua ressurreição24

.

Deste modo, podemos, de forma resumida, dizer que esse título cristológico se

refere à promessa de messianismo e realeza que encontra o seu cumprimento em Jesus,

ressuscitado e senhor da história.

O título “Filho de Davi” aplicado a Jesus deve ser lido a partir da profecia de

Natã a Davi (2 Sm 7,16), prometendo-lhe e à sua descendência um trono “firme para sempre”.

Deste modo, sendo Jesus descendente de Davi (cf. Mt 1,6; Lc 3,31), através de José, Ele é

compreendido como o Messias esperado25

segundo a concepção judaica vigente (cf. Mt 22,45;

Mc 12, 35; Lc 20,41; Jo 7,42).

20

HARRINGTON, Mateus. In: BERGANT, Comentário bíblico, p. 14, v. III. 21

CNBB, Bíblia sagrada, p. 65 (nota de rodapé). 22

Ver Is 11, 1-10. 23

PERKINS, Apocalipse. In: BERGANT, Comentários bíblicos, p. 365, v. III. 24

Cf. PRIGENT, O apocalipse, p. 115. 25

Cf. GRILLMEIER, Cristo en la tradición cristiana, p. 38.

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A aplicação desse título a Jesus é encontrada no Novo Testamento na boca de

diferentes pessoas, mas, sobretudo daquelas que queriam ser curadas por ele. Também Paulo

faz referência à descendência davídica de Jesus (Rm 1,3; 2Tm 2,8), mostrando que para a

Igreja primitiva, a descendência real era um elemento fundamental para a compreensão da

messianidade de Jesus26

. Contudo, mesmo pelo fato de o título em questão ser um atributo

que remete os fiéis ao caráter messiânico do Cristo ele é insuficiente para expressar a

novidade realizada em Cristo27

se for usado de forma isolada, pois sua transcendência deriva

da condição de sua filiação divina, que é um dado superior à sua filiação davídica (Mc 12,35-

37)28

.

1.2.1.3. Manuel católico

Quando João Grilo busca confirmar com Manuel que ninguém sabe o dia e a hora

do Juízo, exceto o Pai, Manuel lhe responde que isto se encontra em Mc 13, 32. João se

encanta com o conhecimento bíblico de Jesus e pergunta-lhe se é protestante, pois pessoas

boas e que entendem a Bíblia são protestantes. O Senhor lhe responde: “Sou não, João, sou

católico” (cf. AC, p. 159-160).

O texto não desenvolve nada sobre o que significa essa afirmação de Jesus. Seria

uma afirmação de universalidade de seu projeto salvífico? Seria uma manifestação

preconceituosa contra os protestantes? Ou seria Suassuna expressando sua opção pelo

catolicismo? Por outro lado, analisando a pergunta que João Grilo faz, se seria Manuel

protestante, por saber de cor um texto bíblico e sua citação, não estaríamos diante de uma

crítica à maioria dos católicos, que sobretudo na década de 50, não tinham contato com a

Bíblia, diferentemente dos protestantes? Diante dessas interrogações sobre a catolicidade de

Jesus, gostaríamos dispensar-nos de responder, para não forçar a interpretação indo além da

intenção do autor.

De qualquer maneira, também aqui Suassuna segue a tradição popular que

identifica o conhecimento da Bíblica como característica de quem abraça a profissão de fé

protestante.

26

Cf. McKENZIE, Davi. In: ______. Dicionário bíblico, p. 200-201. 27

Cf. CUVILLIER, Filiação. In: LACOSTE, Dicionário Crítico de Teologia, p. 738. 28

Cf. GRILLMEIER, Cristo en la tradición cristiana, p.38.

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1.2.1.4. A humanidade e a divindade de Manuel

“(...) mas você pode me chamar também de Jesus, de Senhor, de Deus...”. “E eu não

sou gente, João? Sou homem, judeu, nascido em Belém, criado em Nazaré, fui ajudante de

carpinteiro...”. “Tudo isso é verdade, porque eu sou homem e sou Deus” (AC, p. 125 e 140).

Suassuna é muito cuidadoso na expressão da humanidade e da divindade de Jesus,

procurando apresentá-la em sua unidade, mas não deixa de nos mostrar que isso não é muito

claro no entendimento popular, como podemos ver a partir de João Grilo, representante do

povo, que tem dificuldade em compreender essa união. O apelo à Virgem é um sinal disto,

pois ele, no julgamento, grita por “alguém que está mais perto de nós, por gente que é gente

mesmo!” e diz que Jesus é: “gente e ao mesmo tempo é Deus, é uma misturada muito grande”

(AC, p. 140). A frase de João Grilo mostrando-nos que, de fato, para o povo, a questão da

união hipostática não é muito clara, pendendo para a compreensão de um Jesus muito divino

em detrimento de sua humanidade, ou, tendo mesmo, uma compreensão monofisista de

Cristo.

Partamos da compreensão de união hipostática a partir do Concílio de Calcedônia

(451) em que se afirma que Jesus é

um só e o mesmo Cristo, Filho, Senhor, unigênito, reconhecido em duas

naturezas, sem confusão, sem mudança, sem divisão, sem separação, não

sendo de modo algum anulada a diferença das naturezas por causa da sua

união, mas, pelo contrário, salvaguardando a propriedade de cada uma das

naturezas e concorrendo numa só pessoa e numa só hipóstase; não dividido

ou separado em duas pessoas, mas um único e mesmo Filho, unigênito, Deus

Verbo, o Senhor Jesus Cristo (...)29

.

A definição dogmática de Calcedônia deixa claro que Jesus é plena e

completamente humano e divino, rejeitando qualquer parcialidade em ambas as naturezas

nele, como também a “misturada” que João Grilo atesta. De modo que o

mesmo existente se define como Deus e como homem – sem que a

existência divina seja engrandecida ou multiplicada porque ela já é infinita –

sem que natureza divina seja enriquecida também – mas de tal sorte que a

natureza humana individual exista possuindo uma existência divina30

.

A humanidade de Cristo possui uma qualidade acima de toda a humanidade por

ser a humanidade do Verbo encarnado31

, mas isto não configura confusão ou mistura alguma.

29

DH 302. 30

DOYON, Cristologia para o nosso tempo, p. 320-321. 31

Cf. URÍBARRI, La singular humanidad, p. 130.

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Caso contrário, a união da divindade e da humanidade em Jesus “teria resultado num híbrido,

nem Deus nem homem”32

.

2. O juízo

Neste segundo item apresentamos o modo como Manuel exerce seu juízo sobre os

personagens, as possibilidades de sentença (as realidades escatológicas) e o veredicto final

para cada personagem. A palavra “veredicto” provém do latim vere (com verdade) e dictus

(que foi dito)33

. Assim, somente Manuel pode declarar com verdade a última palavra sobre

cada personagem do Auto da Compadecida.

2.1. O juízo exercido por Manuel

Quando nos referimos a “juízo”, aplicado a Jesus, estamos nos referindo à

administração da justiça plena, o que não se limita apenas à declaração de um juiz, mas a um

conhecimento amplo e profundo das pessoas e do contexto em que vivem e o seu veredicto,

que é mais do que final, é fundamental, pois atinge o ser humano como um todo. Na morte, à

luz de Jesus, esse conhecimento alcança tamanha clareza que leva a pessoa a ver sua vida,

radicalmente, sob a perspectiva de três situações: “com Deus”, “sem Deus” ou “com chance

de viver com Deus”34

.

No Antigo Testamento, Deus é o justo juiz, ou o juiz de Israel por excelência (cf.

Sl 7, 9; Is 1,27; 59,9; Ez 5,7ss; Jr 1,16)35

.

A partir desse pressuposto é que queremos refletir sobre o juízo de Manuel no

Auto. Sentado no trono, Manuel diz: “Levantem-se todos, pois vão ser julgados” (AC, p. 125).

Assim começa o julgamento de nossos personagens, quando na morte se

encontram com Jesus. O ato de se levantar para dar início a um julgamento é o procedimento

que faz parte do protocolo de todo tribunal civil. A atitude, empregada no Auto da

Compadecida, nos lembra, secundariamente, o Evangelho de Mateus (25, 31-32):

Quando o Filho do Homem vier em sua glória, acompanhado de todos os

seus anjos, ele se assentará em seu trono glorioso. Todas as nações da terra

serão reunidas diante dele, e ele separará uns dos outros, assim como o

pastor separa as ovelhas dos cabritos.

32

TORRELL, Santo Tomás de Aquino, mestre espiritual, p. 232. 33

Cf. PLÁCIDO E SILVA, Veredicto. In:______. Vocabulário jurídico, p. 1476. 34

Cf. MANZATTO, De esperança em esperança, p. 6. 35

Cf. ibid., p. 116.

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Na obra de Suassuna, encontramos o Cristo numa postura semelhante aos

versículos acima mencionados, pois está em postura régia, como juiz sentado em seu trono,

sinal de que ele tem direito, poder e autoridade de exercer esse ofício. Mas não fica claro para

os leitores de que tipo de juízo se trata, do particular ou do universal, embora tudo indica que

o autor pensa no juízo particular.

É bom salientar que Suassuna está no horizonte da teologia católica dos anos 50,

em que não se concebe a ideia da morte como algo que atinge o ser humano como um todo

(não apenas como separação entre alma e corpo), de que a ressurreição das pessoas aconteça

na morte e de que o juízo particular e final acontecem juntos, não existindo um intervalo entre

eles.

A perspectiva teológica atual compreende que tanto o juízo particular quanto o

final acontecem na morte, numa realidade onde não há tempo, logo não há espera ou intervalo

entre ambos, acontecendo juntos. E também porque, mesmo sendo a pessoa um ser individual,

ela não está isolada das outras, é um “ser em relação”. De modo que, na morte, entendida

como entrada na eternidade, só há um eterno “agora”, acontecendo um juízo particular e

universal36

.

Existe também um modelo escatológico que vem sendo posto de lado devido à

sua ambiguidade, pois parte do princípio de que, com a morte, a alma é separada do corpo e

esta alma é que será julgada e permanecerá à espera do momento em que será novamente

reunida ao corpo para com ele gozar eternamente da comunhão com Deus37

. Essa ideia está

ligada à concepção dualista do ser humano em alma e corpo e não como um ser onde ambos

são integrados de modo que a morte não teria nada a separar, exceto ser a cisão entre o modo

de ser temporal e o modo de ser eterno38

.

O modelo dualista não tem fundamento bíblico, pois o Novo Testamento não

afirma a imortalidade da alma, mas conhece e professa a fé na ressurreição dos mortos39

, de

modo que o juízo particular será relacionado à pessoa e não à sua alma isolada.

E esse juízo particular na morte está profundamente ligado com a vida, com a

história da pessoa que entra na eternidade, porque somente depois da morte ela atinge sua

36

Cf. BLANK, Escatologia da pessoa, p. 300; cf. MANZATTO, De esperança em esperança, p. 118. 37

Cf. BOFF, A nossa ressurreição, p. 67; cf. BLANK, Escatologia da pessoa, p. 75; cf. FONSECA,

Música ritual, p. 110. 38

Cf. BOFF, Vida para além da morte, p. 38-39. 39

Cf. ______, A nossa ressurreição, p. 66.

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definitividade, pois a “pessoa é (...) toda a sua história”40

. Ou, como diz Suassuna, “com a

morte, é que „nos transformamos em nós mesmos‟ (de acordo com uma frase de Luis

Delgado)41

.”

Desta forma, na morte a pessoa atinge uma cognição total com todas as dimensões

de seu ser42

, perante si mesma e perante Deus43

. Dada essa cognição total é que Blank formula

a seguinte conclusão: “Não é Deus que julga o homem na morte. Na morte, o próprio homem

se julga diante de Deus”. Isto porque, continua Blank, o ser humano se vê como realmente é, e

“[o] ato de cognição perante Deus na morte é o juízo”44

.

Esse elemento da cognição total da pessoa na morte não aparece na obra de

Suassuna. O que encontramos é a afirmação de que o julgamento é a “hora da verdade” ou a

afirmação do próprio Manuel dizendo que “[o] tempo da mentira já passou” (AC, p. 118 e

126), o que nos leva a ver uma relação entre ambas as ideias, a de Blank e a de Suassuna, pois

a verdade aqui é uma autocompreensão completa. São Paulo, na Primeira Carta aos Coríntios,

fala sobre o juízo divino como o momento de revelação da verdade, ao dizer que “Ele (o

Cristo) trará à luz o que estiver escondido nas trevas e manifestará os projetos dos corações.

Então, cada um receberá de Deus o devido louvor” (1Cor 4,5).

Uma vez que essa “hora da verdade” acontece na morte e a pessoa se encontra

com Deus, na pessoa de Jesus, a correspondência vital ao seu amor será a medida para o juízo

de cada um. Cristo não irá realizar um balanço matemático do que se fez ou deixou de fazer,

mas diante daquilo que a pessoa fez de si mesma. Assim aquilo que a pessoa verdadeiramente

é vai florescer como decisão final45

, convergindo em modos de ser depois da morte,

caracterizados como céu, inferno ou purgatório.

No julgamento presente na obra é o Encourado quem elenca pecados isolados da

vida num todo. Cabe à Compadecida relacionar esses pecados com o contexto mais amplo da

história de cada um, em sua tarefa de advogada, à luz do Cristo. E será sempre o elemento

humano que a Virgem ressaltará na argumentação em favor dos réus. É o medo, a condição de

mulher, a pobreza, enfim, situações humanas. E nestas o Cristo é a medida para se fazer o

juízo, pois elas vão ao encontro de sua própria humanidade, ou de um projeto de humanidade

40

TABORDA, O memorial da Páscoa do Senhor, p. 277. 41

SUASSUNA, A pena e a lei, p. 9. 42

Cf. BLANK, Escatologia da pessoa, p. 158. 43

Cf. ibid., p. 167. 44

Ibid., p. 171. 45

Cf. BOFF, Vida para além da morte, p. 52.

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à sua luz. Por exemplo, quando se fala do medo da solidão, o próprio Manuel recorda sua

agonia na véspera da paixão, ou quando a mulher do padeiro fala da situação de “moça pobre

casada com homem rico” (AC, p. 151) a Virgem afirma saber o que se passa com as

mulheres, mesmo não tendo sofrido a mesma situação. Desta forma, é a humanidade

compreendida a partir de Jesus, Verbo divino feito homem, o instrumento do juízo.

A solidariedade de Cristo para com a humanidade na sua encarnação a partir de

seu ser, seus atos e palavras, é o critério do julgamento que deve nos levar à solidariedade

com os necessitados. Podemos exemplificar isso com o salmo 82, em que prevalece o verbo

“julgar”. Ele não é usado em sentido jurídico, mas no sentido social e político de governar de

acordo com a justiça em favor do oprimido. Justiça, nesse contexto, não significa que “todos

são iguais perante a lei”, mas que existe um conflito histórico entre ricos e pobres, opressores

e oprimidos e Deus sempre toma a defesa dos mais fracos e sofredores46

.

Vale encerrar essa reflexão sobre o juízo final/particular, lembrando que ele é

final porque é para ele que todos nos encaminhamos e nele conheceremos o ser humano que

verdadeiramente somos, o que não é restrito apenas ao fim de tempo cronológico de cada um.

Dizemos isto porque “[o] juízo já o estamos vivendo, embora em forma incipiente e

imperfeita, sempre que nos decidimos e passamos por situações-de-crise”47

.

Em Jo 3, 17-21 nos é declarado que Jesus foi enviado para salvar, não para

condenar. Contudo, os atos humanos desempenham sua parte neste projeto salvífico, sendo

que a “condenação é um processo que vem de dentro, consistindo em não crença na luz que é

Jesus, acompanhada pelas más ações realizadas na escuridão”48

.

Refletindo também Mt 25, 31-46 lembramos que os “benditos do Pai” se

encaminharão à direita de Cristo por aquilo que fizeram, sendo a condenação pelo que se

deixa de fazer em prol do que sofre. Aí, em nossas escolhas e atitudes, está acontecendo o

juízo que um dia compreenderemos plenamente à luz de Manuel.

46

Cf. SOARES, Deus julga os deuses. Estudos bíblicos 59, p. 29 e 33. 47

Cf. BOFF, Vida para além da morte, p. 53. 48

FLANAGAN, João. In: BERGANT, Comentário bíblico, p. 113, v. III.

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95

2.2. As realidades escatológicas

No julgamento exercido por Manuel está em jogo o destino final de cada

personagem, ou o modo como viverão a eternidade: céu, purgatório ou inferno. Leonardo

Boff diz que na morte todo o ser da pessoa é transfigurado ou frustrado49

. Vejamos o que

significa isto.

2.2.1. O céu

No julgamento de Manuel, apenas Severino e seu “cabra” vão para o céu.

Lembremos que ambos são os responsáveis pela morte dos personagens em questão e de

outras mortes (cf. AC, p. 134). Segundo Manuel, eles enlouqueceram por terem suas famílias

assassinadas pela polícia e não eram responsáveis por seus atos. Eram, segundo o autor,

instrumentos da cólera divina, questão que veremos mais adiante. São homens que sofreram a

violência e foram violentos, mas receberam de Cristo o céu.

Uma das formas de compreender o céu, conforme nos apresenta Leonardo Boff, é

a de total reconciliação do homem consigo mesmo50

. Severino e seu companheiro estão na

morte reconciliados, tanto que saem de cena, abraçando a todos aqueles que por ele foram

mortos, o que teatralmente expressa o ingresso deles no céu. Podemos contemplar essa cena à

luz de Isaías, ao dizer que “[o] lobo, então, será hóspede do cordeiro, o leopardo vai deitar ao

lado do cabrito, (...). Ninguém fará mal, ninguém pensará em prejudicar, na minha santa

montanha” (Is 11,6.9). Em Manuel toda a violência é superada e nele o ser humano é

plenamente reconciliado.

O céu é a plena reconciliação do ser humano consigo mesmo e, mais que isso, é

“o desabrochar pleno, a realização máxima daqueles que, abertos e receptivos, disponíveis e

solidários, encontram na eternidade a luz sem sombras, o amor sem fronteiras (...)”51

.

A palavra “céu” nos remete ao alto, ao transcendente, à morada de Deus, e foi

identificado pela tradição cristã “como o ponto máximo da aspiração humana”52

. Difere

radicalmente do inferno, pois, enquanto este é a frustração do ser humano e uma

49

Cf. BOFF, A nossa ressurreição, p. 104. 50

Cf. ______, Vida para além da morte, p. 76. 51

BINGEMER, Inferno e céu: possibilidade e promessa. In: LIBÂNIO, Escatologia cristã, p. 246. 52

Ibid., p. 265.

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possibilidade, o céu, a vida eterna em Deus, é uma promessa real de Deus à humanidade,

ratificada em Jesus Cristo53

.

No Antigo Testamento, Deus é apresentado como o Vivente por excelência e

como a fonte da vida (Sl 36,10), sendo a vida eterna uma exclusividade que lhe pertence (Dt

32,40; Dn 12,7). O ser humano poderia ter desfrutado dessa imortalidade se não houvesse

pecado no jardim do Éden. Mais tardiamente, com o “apocalipse” de Isaías (Is 26,19) e com

Daniel (Dn 12,2), encontraremos uma ideia de vida após a morte54

.

No Novo Testamento, a ressurreição de Jesus torna-se o fundamento da

ressurreição dos mortos, como podemos ver na Primeira Carta de Paulo aos Coríntios (15, 12-

20). Assim, “Deus ressuscita o ser humano na morte, assim como ele ressuscitou Jesus. Isso

significa que o próprio Deus abre para a pessoa novas dimensões de vida, dimensões que

chamamos de salvação, dimensões que chamamos CÉU”55

.

Em continuidade à tradição neotestamentária, a Igreja, desde suas origens professa

a fé em Jesus salvador, na ressurreição da carne e na vida eterna56

.

A Constituição Dogmática Gaudium et Spes, de uma forma belíssima, nos diz:

Porque a figura deste mundo, deformada pelo pecado, passa certamente, mas

Deus ensina-nos que prepara uma nova habitação e uma nova terra, na qual

reina a justiça e cuja felicidade satisfará e superará todos os desejos de paz

que surgem no coração do homem (GS 39).

No Auto da Compadecida, percebe-se um desejo de viver muito grande, seja na

realidade sofrida do sertão, seja depois da morte, livrando-se da condenação eterna. Esse

desejo é profundamente arraigado na tradição cristã, pois Jesus assim nos diz: “Eu vim para

que tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10).

53

Cf. BINGEMER, Inferno e céu: possibilidade e promessa. In: LIBÂNIO, Escatologia cristã, p. 265. 54

Cf. GEFFRE, Vida eterna. In: LACOSTE Dicionário crítico de teologia, p. 1849. 55

BLANK, Escatologia da pessoa, p. 288. 56

Cf. DH 10 e 11.

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2.2.2. O purgatório

“Os cinco últimos lugares do purgatório estão desocupados?” (AC, p. 154). Com

esta sugestão em forma de pergunta feita por João Grilo encontramos o desfecho do

julgamento do bispo, do padre, do sacristão, do padeiro e sua mulher, sendo todos

encaminhados ao purgatório, onde, segundo a Compadecida, “Dá para eles pagarem o muito

que fizeram e assegura a salvação” (AC, p. 154).

Pela frase da Virgem encontramos a compreensão de purgatório existente na obra:

lugar de pagar pelos males cometidos, que não implica a condenação eterna, tendo em vista a

salvação. Outra obra de Suassuna, em que também os personagens vão para o purgatório, é a

Farsa da boa preguiça. Os personagens Aderaldo e Clarabela são condenados ao inferno,

contudo, se encontrarem alguém que reze por eles um Pai-Nosso e uma Ave-Maria, eles irão

para o purgatório57

, o que por eles Simão e Nevinha fazem58

. Cristo, que também se chama

nesta obra Manuel, com o acréscimo de “Carpinteiro”, diz que, no purgatório, onde os dois

neste momento da obra já estão instalados, será assim: “Vão levar trezentos anos de tapa / e

mais cinquenta de beliscão, / queimaduras e puxavantes de cabelo, (...)”59

. Temos aqui uma

expressão cômica, popular e plástica de uma realidade escatológica professada pela Igreja: o

purgatório como lugar de purificação.

Purificação presume que a pessoa pode, por meio dela, se ver liberta dos pecados,

ou seja, que pode evoluir. No juízo a pessoa encontra-se com Deus e consigo mesma, mas

isso não quer dizer que ela chegou a um ponto final e estático em sua evolução. Pode-se

perceber que ela não está pronta para estar plenamente com Cristo, viver o céu, de modo que,

mesmo nesse estágio, mesmo na morte, necessita de conversão60

. Esta última conversão é

entendida como um ato doloroso que foi denominado de purgatório.

Esse ato doloroso, em que se purga, se purifica (cf. LG 49), expia os pecados, é

uma expressão da misericórdia de Deus e da vocação fundamental de todo ser humano que é a

comunhão com Deus.

Não temos textos bíblicos que falem diretamente do purgatório, mas referências,

como 2Mc 12,38-46. Nesta passagem, encontramos a seguinte narração: Judas Macabeu, ao

sepultar os soldados caídos em batalha, constata que eles traziam consigo, debaixo das roupas,

57

Cf. SUASSUNA, Farsa da boa preguiça, p.305. 58

Cf. ibid., p. 324. 59

Ibid., p. 325-326. 60

Cf. BLANK, Escatologia da pessoa, p. 207.

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“objetos consagrados aos ídolos de Jâmnia, coisa que a Lei proíbe aos judeus” (v.40). Diante

disto, Judas e o povo “puseram-se em oração, pedindo que o pecado cometido fosse

completamente cancelado” (v.42). Ele faz uma coleta e a envia a Jerusalém para ser

empregada num sacrifício expiatório. Essa atitude de Judas Macabeu é elogiada pelo

hagiógrafo. Assim, temos uma expressão de fé em que pela oração, pelo culto e pela esmola,

pessoas que morrem em pecado podem alcançar a ressurreição, que na tradição cristã também

chamamos de céu ou salvação. Outro texto que foi interpretado como uma alusão ao

purgatório é 1Cor 3,12-15, que emprega a ideia de fogo em vista da salvação.

O I Concílio de Lião, no papado de Inocêncio IV (1254-1261), em 1254, professa:

o Apóstolo diz que “a qualidade da obra de cada um será provada pelo fogo”

e “aquele cuja obra for queimada receberá a punição, mas ele mesmo será

salvo como que através do fogo” (1Cor 3,13.15); também os próprios

gregos, segundo o que se diz, segundo a verdade e sem nenhuma dúvida

crêem e afirmam que as almas daqueles que receberam, mas não cumpriram

a penitência, ou então os que morreram sem pecado mortal, mas com

pecados veniais ou de pouca monta, são purificados depois da morte e

podem ser ajudados com as orações de sufrágio da Igreja. Ora, porque dizem

que o lugar de tal purificação não lhes foi indicado com nome preciso e

peculiar pelos seus doutores, Nós, que segundo a tradição e a autoridade dos

santos Padres o denominamos “purgatório”, queremos que, de agora em

diante, seja por eles chamado com este nome61

.

Lembramos também que essa doutrina foi expressa pelo Concílio de Florença, em

143962

e em Trento, na 6ª sessão, em 13 de janeiro de 154763

e na 25ª sessão, em 3-4 de

dezembro de 156364

, entre outros documentos do magistério eclesiástico. Ultimamente temos

a Lumen Gentium que cita o purgatório como estado de purificação das pessoas que

morreram, estado intermediário entre os que peregrinam na terra e os já glorificados (cf. LG

49).

Da teologia medieval gostaríamos de citar São Boaventura, no seu Brevilóquio:

Em primeiro lugar, a respeito das penas do purgatório deve-se admitir o

seguinte: O fogo do purgatório é um fogo corporal, pelo qual são aflitos os

espíritos dos justos que nesta vida não fizeram penitência plena de seus

pecados e deles não prestaram satisfação condizente; (...). Pela aflição

causada pelo fogo material, os espíritos são purificados das penas devidas

pelos pecados, das escórias, bem como dos restos de pecados; e tão logo

61

DH 838. 62

Cf. DH 1304. 63

Cf. DH 1580. 64

Cf. DH 1820.

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estejam suficientemente purificadas, elevam-se logo e são introduzidas na

glória do paraíso65

.

Os medievais compreendiam o purgatório como um espaço geográfico entre o céu

e a terra, uma “câmara de tortura cósmica”. Essa ideia fantasiosa foi tomando tamanha

dimensão ao ponto de nos séculos XVII e XVIII se falar em purgatório como um inferno

provisório66

, ou como uma prisão, onde se mantém as almas em cativeiro67

.

Anterior a esse período, no entanto, Santa Catarina de Gênova (1447-1510) nos

apresenta uma visão diferente de purgatório. Em seu tratado místico, afirma que ali há

sofrimento comparável ao do inferno, contudo também há contentamento que vai crescendo

na medida em que a alma vai se purificando e se aproximando de Deus. O sofrimento da alma

procede da percepção de sua imperfeição diante do modelo divino ao qual aspira68

.

Na obra de Suassuna, é possível perceber algo da visão medieval de purgatório,

que é a visão popular trazida a nossas terras pelos portugueses, quando ele entende purgatório

como lugar. Ao fazer uso dessa realidade escatológica, o autor não menciona, em momento

algum, o processo de conversão pessoal, somente as penas que purificam as pessoas dos

pecados cometidos. Contudo, Suassuna, em concordância com a escatologia católica, entende

o purgatório como algo em vista da salvação.

2.2.3. Inferno

No Auto da Compadecida nenhum personagem é condenado ao inferno, por

maiores que tenham sido os esforços do Encourado. O inferno é apresentado como algo que é

pior do que qualquer ansiedade (cf. AC, p. 153) e que, se a Virgem continuar intercedendo

daquela forma pelas pessoas, ele vai terminar como “repartição pública, que existe mas não

funciona” (AC, p. 162). Desses breves, mas densos elementos que a obra nos traz, passemos à

análise da realidade escatológica chamada inferno.

Quando apresentávamos a realidade escatológica do purgatório, apoiávamo-nos na

possibilidade de uma conversão depois da morte, contudo

- O que acontecerá se o ser humano não desejar ou não puder realizar esse

ato de conversão e de fé?

- O que acontecerá se ele não estiver disposto, ou, então, não for capaz de

renunciar a si mesmo, de se converter e deixar tudo nas mãos de Deus?

65

BOAVENTURA, Brevilóquio. In: Obras de San Buenaventura, p. 500-503. 66

Cf. FONSECA, Música ritual, p. 113. 67

Cf. DELUMEAU, O pecado e o medo, vol. II, p. 123. 68

Cf. ibid., p. 112.

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- O que acontecerá se ele não quiser crer ou não puder mais crer que Deus o

salvará?69

O ser humano depois de sua morte pode dizer “não” ao amor de Deus. Essa

terrível escolha é o que apresentamos como o inferno, pois

pode-se (...) entender que o homem é visto por nós, cristãos, como o ser da

liberdade que pode decidir-se definitivamente contra Deus. Por isso também

o que agora experimentamos como possibilidade de nossa liberdade

devemos prolongá-lo no futuro e (...) dizer algo sobre a possibilidade de

perdição absoluta da liberdade do homem tornada definitiva, portanto, sobre

o “inferno”70

.

As raízes bíblicas da noção de inferno encontram-se na concepção judaica do

Xeol, morada dos mortos ou mundo inferior71

. O povo do Antigo Oriente Médio concebia o

mundo dividido em três níveis: céus, terra e mundo subterrâneo. Este mundo subterrâneo

consiste num oceano e abaixo dele está o Xeol. Outra visão do Xeol é como apenas o mundo

subterrâneo, pois a sepultura é a porta de entrada do morto a este lugar72

.

Num segundo momento, o judaísmo vai distinguir o lugar destinado aos justos, o

paraíso, do lugar destinado aos ímpios, que é a Geena73

. Geena, primeiramente, era um lugar

onde se queimavam os primogênitos ao deus Moloc74

. Tritoisaías não fala de Geena, mas sim

do lugar daqueles que se rebelaram contra o Senhor, onde “o verme que os corrói jamais

morre e o fogo que os consome jamais se apaga: coisa asquerosa para toda a carne” (Is 66,24).

Ainda que a ideia de inferno, que só surgiu 300 anos depois do Tritoisaías na tradição judaica,

não apareça nesta citação bíblica, esta passagem foi considerada como precursora da ideia de

inferno, enquanto lugar de interminável castigo para os maus75

. Contudo, a imagem do fogo e

dos vermes refere-se à destruição completa de cadáveres e não à punição eterna aos

pecadores76

. Por fim, Geena se compreende também como o vale lateral à colina sobre a qual

estava construída Jerusalém, em que eram queimados o lixo do templo e alguns cadáveres de

condenados77

.

69

BLANK, Escatologia da pessoa, p. 243. 70

RAHNER, Curso fundamental da fé, p. 502. 71

Cf. Gn 37,35; 42,38; 44,29.30; 1Rs 2,6.9; Jó 21,13; Sl 55,16; 89,49 etc. 72

Cf. McKENZIE, Xeol. In: ______. Dicionário bíblico, p. 891-892. 73

Cf. ibid., p. 892. 74

Cf. nota de rodapé da Bíblia (tradução da CNBB), referente a Jr 7, 31. Ver também 2Rs 3,27; 16,3;

21,6; Is 30,33; Ez 16,20-21; Ml 6,6. 75

Cf. COLLINS, Isaías. In: BERGANT, Comentário bíblico, p. 44. 76

Cf. RUIZ DE GOPEGUI, Inferno: revelação ou fruto do imaginário coletivo? Perspectiva Teológica

33 (2001), p. 381. 77

Cf. MANZATTO, De esperança em esperança, p. 108-110.

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Jesus, em sua pregação, usa essas imagens (Mt 5, 22.29-30; 13,42.49-50) mas sua

mensagem central é o Reino de Deus e, falando do Reino, adverte a todos os que pecam à

conversão. Jesus não prega o inferno, mas fala dele como possibilidade de destino final do ser

humano, como por exemplo, aos fariseus e saduceus, comparando o justo com o trigo e o

ímpio com a palha que será queimada num fogo que não se apaga (cf. Mt 3, 7-12). Essa

separação do ímpio do justo se repete em outros textos (em Mt 13,49; 25,34.41; 1Cor 6,9),

usando fórmulas de exclusão da vida eterna que expressam algo de definitivo.

Em nenhum momento os textos bíblicos apresentam o inferno como uma

vingança de Deus. Ele é uma realidade para os que se negam ao projeto de salvação universal.

Novamente, recorremos ao I Concílio de Lião (1254), para apresentar um

ensinamento conciliar referente ao inferno: “Se alguém, pois, sem a penitência, morrer em

pecado mortal, sem dúvida alguma será atormentado para sempre pelas chamas da geena

eterna”78

.

Na Constituição Benedictus Deus, proclamada por Bento XII, em 29 de janeiro de

1336, é definido solenemente que “as almas dos que morrem em pecado mortal atual, logo

depois de sua morte descem ao inferno, onde são atormentadas com suplícios infernais,

(...)”79

. Chamamos a atenção aqui para a ideia de descida das almas ao inferno, lugares

inferiores (inferi, em latim) imaginados debaixo da terra onde habitam os vivos80

.

Deixemos novamente que São Boaventura ilustre a concepção medieval de

inferno:

Quanto à pena do inferno deve-se admitir o seguinte: A pena infernal

verifica-se em um lugar material situado debaixo da terra, no qual são

atormentados eternamente todos os réprobos, tanto os homens como os

espíritos malignos. (...) A este tormento de fogo será unido também o

tormento de todos os sentidos e pena dos vermes e a carência da visão de

Deus, de tal modo que haverá variedade e acerbidade, e com a acerbidade a

interminabilidade, a fim de que se verifique, para o suplício dos condenados,

que o fumo dos tormentos sobe pelos séculos dos séculos81

.

78

DH 839. 79

DH 1002. Outro texto semelhante se encontra no Concílio de Florença, na “Bula sobre a união com

os gregos: Laetentur caeli”, de 06 de julho de 1439 (DH 1306). 80

Cf. RUIZ DE GOPEGUI, Inferno: revelação ou fruto do imaginário coletivo?. Perspectiva teológica

33 (2001), p. 365. 81

BOAVENTURA, Brevilóquio. In: Obra de San Buenaventura, p. 522-523.

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Essa literatura teológica, da qual citamos São Boaventura como um de seus

representantes, vai atravessar a Idade Média e Moderna e chegar ao Brasil pelos missionários

europeus, prevalecendo nela as imagens relacionadas a fogo e sofrimento sem fim.

No que se refere ao inferno, na obra de Suassuna, gostaríamos de destacar dois

elementos: a intercessão da Virgem e o inferno como um lugar que existe, mas não funciona.

No Auto da Compadecida, Manuel diz que se Maria continuar intercedendo do

jeito como intercedeu por João Grilo e os demais, o inferno não funcionaria, pois ninguém iria

para esse lugar de tormento. A intercessão da Compadecida acontece no julgamento como um

elemento esclarecedor da história de cada personagem, que passa a ser refletida não a partir da

ótica do Encourado, que beira quase a um mero somatório de pecados, mas a partir da ótica da

maternidade, da mãe que toma a defesa dos filhos e é capaz de “enfrentar até o diabo” por

eles.

Quanto à questão do inferno “como lugar que existe mas não funciona”, a Lumen

Gentiun referindo-se ao caráter escatológico da Igreja, exorta-nos à vigilância para que

mereçamos estar com Cristo no banquete nupcial e não sermos repelidos ao fogo eterno (cf.

LG 48). Ou seja, o inferno existe, não como espaço físico, e é necessário que estejamos

atentos à possibilidade de frustração eterna.

Sobre a existência do inferno, Leonardo Boff afirma essa realidade a partir de um

comportamento fixado no mal que o próprio ser humano criou para si mesmo, não havendo

mais possibilidade de conversão82

; também Blank considera que o inferno existe enquanto

possibilidade de recusa ao amor de Deus83

. Assim, podemos dizer que o inferno, enquanto

lugar, não existe, mas que funciona enquanto frustração radical do ser humano que não

atingiu na morte seu objetivo que é a comunhão com Deus na eternidade.

Destacamos a definição que Leonardo Boff nos dá sobre o assunto:

O inferno é o endurecimento de uma pessoa no mal. É portanto um estado do

homem e não um lugar para o qual o pecador é lançado onde há fogo,

diabinhos com enormes garfos a assar os condenados sobre grelhas. Tais

imagens são de mau gosto e de morbidez religiosa. Inferno é um estado do

homem, que se identificou com sua situação egoísta, que se petrificou em

sua decisão de só pensar em si mesmo e em suas coisas e não nos outros e

82

Cf. BOFF, Vida para além da morte, p. 93. 83

Cf. BLANK, Escatologia da pessoa, p. 244.

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em Deus. É alguém que disse um não tão decisivo que não quer e não pode

mais dizer um sim84

.

Mas ainda podemos falar da existência do inferno e da sua não funcionalidade, a

partir da esperança de que todos se salvem, o que não é contrário à fé, ou seja, podemos

esperar que a obra salvífica de Deus com respeito à criação será levada a cabo de modo feliz.

Isso não quer dizer que seja uma certeza (apocatástase85

), mas uma esperança fundada na

misericórdia divina86

. E “quem espera a salvação para todos os seus irmãos e todas as suas

irmãs, „espera o inferno vazio‟(...)87

”.

Precisamente, Suassuna não fala que o inferno está vazio. Pelas palavras de

Manuel diz que não funciona. Contudo, tanto a tese do “inferno vazio” quanto a de que não

funciona que encontramos no Auto da Compadecida, atestam sua possibilidade, mas

ressaltam a esperança de que todos se salvem. Em momento algum na obra, os personagens

negam a possibilidade de que os acusados possam “ir para o inferno”, mesmo que prevaleça a

esperança de salvação. Essa esperança, na obra, é compreendida a partir dos esforços da

Compadecida de salvar os acusados frente ao Encourado. É claro que nossa esperança de

salvação não se funda na Virgem, mas uma vez que estamos lidando com literatura, bem ao

gosto popular, esta foi a ideia usada pelo autor que retrata o desejo divino de que todos se

salvem. E não poderíamos nos esquecer que, em seu modo de fazer um humor fino, ele liga a

questão de o inferno não funcionar com as repartições públicas brasileiras, que se perdem em

burocracias, desvios de verbas e não atendem de modo satisfatório a população, sobretudo os

mais pobres.

Esta esperança de salvação para todos pode ser observada a partir do fato de que a

Igreja canonizou muitos indivíduos, contudo, jamais pronunciou qualquer parecer referente á

condenação de alguma pessoa88

. A Igreja não entendeu que devesse insistir na questão da

existência do inferno como uma verdade dogmática, de modo que

84

BOFF, Vida para além da morte, p. 88. 85

Esta doutrina foi formulada por Orígenes, que “[imaginou], então, baseando-se em At 3, 21 (ou,

bem mais, segundo outros, em 1Cor 15,27), que num dado momento, conhecido apenas por Deus, teria

lugar uma apocatástase, isto é, uma restauração universal, renovação ou regresso do homem à sua

qualidade primitiva de filho de Deus, da qual participaria a criação e, nela, toda a humanidade,

inclusive a que havia estado sofrendo a pena infernal” (SEGUNDO, O inferno como absoluto menos,

p. 89). 86

Cf. VON BALTHASAR, Breve discorso sull‟inferno, p. 33. 87

Ibid., p. 10. 88

Cf. ibid., p. 33.

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ainda que na teologia da Igreja católica o Inferno seja considerado como

constituindo – e sempre tendo constituído – uma verdade de fé, nem sua

existência como tal, nem seus componentes essenciais foram objeto de uma

definição solene (seja ela de um Concílio ecumênico ou do Papado)89

.

Deus jamais criaria um lugar de tortura para punir aqueles que ama eternamente.

O ser humano é que pode se fechar definitivamente a esse amor, transformando-se num “fogo

eterno”. Assim, o inferno existe, mas talvez não funcione, porque Deus, em seu Filho,

Manuel, “quer que todos sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade. Pois há um só

Deus e um só mediador entre Deus e a humanidade: o homem Cristo Jesus, que se entregou

como resgate por todos (1Tm 2, 4-6).

3. A Compadecida e o Encourado

No segundo capítulo de nossa dissertação tratamos da Virgem Maria, apresentada

por Suassuna como a “Compadecida” das misérias humanas. Nesta parte, queremos pensar a

Compadecida em seu confronto com Manuel. Em seguida, veremos a figura do Encourado,

que, no Tribunal de Manuel, faz o papel de “promotor de justiça”90

.

3.1. Filho irado versus mãe bondosa?

Suassuna, em suas obras, constrói cenários baseados na vida do sertanejo, o que

inclui sua percepção de mundo e de fé. No Auto da Compadecida, ele trabalha com a

intervenção de Maria em favor dos personagens, na morte, baseado na contraposição de

origem medieval entre Maria e Jesus. Mas, mesmo sendo esta a base da construção da cena,

ele a ultrapassa, trazendo elementos divergentes. Vejamos, primeiramente, a herança

medieval que recebemos referente a Jesus e Maria, para, em seguida, vermos as rupturas com

esse pensamento.

Na Idade Média o que se constata é uma concepção equivocada de Maria, que a

entende como a misericordiosa que busca aplacar a ira de Jesus a fim de que não sejamos por

ele castigados. Assim, compreende-se o julgamento divino com o Cristo sentado num trono,

numa postura de juiz severo. Frente a seu implacável desejo de punir os pecados é necessário

que Maria amenize suas decisões91

, de modo que:

89

SEGUNDO, O inferno como absoluto menos, p. 85. 90

Colocamos esta palavra entre aspas para não demonizar os membros da instituição do Ministério

Público que exercem suas funções como representantes da sociedade Cf. PLÁCIDO E SILVA,

Promotor. In:______. Vocabulário jurídico, p. 1112-1113. 91

Cf. PERETTO, Presentazione. In: DOMENICO, Maria Madre, p. 16-17.

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105

Cristo seria o juiz, ao passo que Maria seria a intercessora; na ordem da

salvação, Cristo encarnaria severidade divina, ao passo que Maria encarnaria

a bondade e a doçura; Cristo agiria como o Senhor que quer a justiça, Maria

como aquela que atenuaria e mitigaria esta sua atitude92

.

Essa concepção denota uma imagem de Cristo distante da humanidade, confinado

num céu, restrito a ser um juiz desprovido de qualquer afeto, beirando a tirania93

.

Mesmo quando não se percebe essa imagem equivocada de Jesus, encontramos a

de que podemos recorrer a Maria sem medo, caso haja algum temor de Deus. Bernardo de

Claraval (1090-1153) diz que, se tivermos temor de recorrer à misericórdia do Pai, que nos

voltemos a Jesus, uma vez que ele assumiu nossa carne, mas se ainda dele tivermos temor,

podemos recorrer a Maria, nossa advogada e mãe94

. Obviamente, não precisamos temer em

recorrer a Maria, mas muito menos não precisamos temer em nos lançar completamente na

misericórdia de Deus.

Citamos também Afonso Maria de Ligório (1696-1787) que nos fala desse temor

a Deus e contrapõe Maria (advogada) a Jesus (Divina Majestade), além de nos dar um típico

exemplo em que se substitui o Espírito Santo por Maria, entendendo-a como o “outro

paráclito”:

Mas como em Jesus Cristo reconhecem e temem os homens a majestade

divina, aprouve Deus dar-nos outra advogada a quem recorrer pudéssemos

com maior confiança e menor receio. E temo-la em Maria, fora de quem não

acharemos outra nem mais poderosa para a Divina Majestade, nem mais

misericordiosa para conosco95

.

Essa contraposição da Virgem a Jesus irado também é vista na aparição da

Virgem em Salette (França), no dia 19 de setembro de 1846, aos pastores Maximino Giraud

(11 anos) e Melânia Calvat (15 anos). A “Bela Senhora”, como os videntes a chamam,

aparece a eles sentada numa pedra, com os cotovelos nos joelhos e o rosto escondido entre as

mãos. Quando os pastorinhos se aproximam, a Virgem se levanta, cruza os braços sobre o

peito e lhes dá sua mensagem:

Se meu povo não quiser submeter-se, vejo-me forçada a deixar cair o braço

de meu filho. Esse braço é tão forte e tão pesado que não posso mais sustê-

lo. Há muito tempo que sofro por vós. Para que meu Filho não vos

abandone, sou obrigada a suplicar-lhe incessantemente, e vós não fazeis

caso. Por mais que rezeis, por mais que façais, nunca podereis retribuir-me

92

BEINERT, O culto a Maria, p. 198-199. 93

Cf. MIEGGE, La vergine Maria, p. 12. 94

Cf. BERNARDO DE CLARAVAL, Sermones de sanctis. In: Nativitate Beatae Virginis Mariae, PL

183, 441. 95

LIGÓRIO, Glórias de Maria, p. 163.

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os cuidados que tenho por vós. Dei-vos seis dias para trabalhardes; só me

reservei o sétimo, e nem isso quereis conceder-me. Eis o que torna tão

pesado o braço de meu Filho. Aqueles que conduzem carroças não fazem

imprecações sem abusar do nome de meu Filho. São estas as duas causas que

tornam tão pesado o braço do meu Filho. Se a colheita se estraga, não é

senão por vossa causa, bem vo-lo mostrei no ano passado, com a colheita das

batatas, e não fizestes caso; ao contrário, quando as encontráveis estragadas,

era então que praguejáveis, falando sem respeito o nome de meu Filho. Elas

continuarão a estragar-se, e, quando chegar o Natal, não haverá mais96

.

De outra forma, há exceções quanto à defesa misericordiosa da Virgem.

Delumeau nos fornece um texto de Luis Maria Grignion de Montfort (1673-1716) em que

tanto Maria quanto Jesus se mostram insensíveis às preces de um moribundo:

O pecador: Meu Jesus, misericórdia

Para este infeliz pecador;

Estr. 5 Mãe de Misericórdia,

Rogai por mim a meu salvador.

Jesus: Tu zombaste, miserável,

Dos apelos de meu amor:

Estr. 6 É justo e razoável

Que eu zombe por minha vez.

Eu rio de teus alarmes

E de teu falso arrependimento.

Estr. 7 Eu zombo de tuas lágrimas

É necessário morrer e perecer.

Maria: Deveria durante a vida

Me rogar e te emendar:

Estr. 8 É tarde demais para que me rogues

Porque não quero mais te ajudar97.

Mesmo não existindo contraposição entre Jesus e Maria nesse pequeno jogral,

deparamo-nos com a mesma figura insensível e até cruel de Jesus. Essa imagem nos mostra

que, na hora do juízo, diante de Jesus, o ser humano sofre com a vingança de um Deus que é

bondoso, mas que, paradoxalmente, deseja punir terrivelmente o pecador. Essa visão

96

ADUCCI, Maria e seus títulos gloriosos, p. 325. 97

DELUMEAU, O pecado e o medo, vol. II, p. 86.

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contraditória de Jesus bondoso e terrível perdurará até o século XIX98

e mesmo século XX a

dentro.

Deve-se buscar, em nossos dias, superar a concepção de que Maria tenha um rosto

misericordioso que substitui o de Deus. E considerar como necessária sua intervenção para a

salvação das pessoas não condiz com o princípio de que Cristo é o único mediador entre Deus

e os homens (1Tm 2,5-6). Deste modo, a Lumen Gentium afirma que “(....) todo o influxo

salutar da bem-aventurada Virgem em favor dos homens não é imposto por alguma

necessidade, mas sim pelo beneplácito de Deus (...)” (LG 60).

Um ponto importante no Auto da Compadecida é que Manuel, em momento

algum, tem posturas tirânicas. Temos aqui a ruptura com a ideia medieval de um Cristo tirano.

Ele é bondoso e justo e não precisa que a Virgem aplaque sua ira. A defesa da Compadecida

atua como uma elucidação de fatos, que confirmam a bondade e a justiça de Manuel. A

Virgem não se apresenta como “aquela que segura o braço” de seu Filho, pois Ele é

profundamente amoroso.

A obra de Suassuna não endossa a tese de que Jesus seja sedento de uma justiça

que mais se assemelha à vingança. Essa diferença com relação às imagens medievais do juízo

vale a pena ser pensada à luz da poesia de Adélia Prado, intitulada Filhinha:

Deus não é severo mais,

suas rugas, sua boca vincada

são marcas de expressão

de tanto sorrir pra mim.

Me chama a audiências privadas,

me trata por Lucilinda,

só me proíbe coisas

visando meu próprio bem.

Quando o passeio

é à borda de precipícios,

me dá sua mão enorme.

Eu não sou órfã mais não99

.

98

Cf. DELUMEAU, O pecado e o medo, vol. II, p. 143. 99

PRADO, Oráculos de maio, p. 101.

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Se pensamos que o juízo de Manuel será como que estar à borda de um precipício,

devemos confiar na sua mão enorme, que ele não nos deixa órfãos e que não tem nenhum

traço de severidade vingativa, mas apenas de amor.

3.2. Encourado, o acusador

O Diabo, no Auto da Compadecida, recebe o nome de Encourado. Suassuna

explica: “[o] nome „Encourado‟ é de criação minha, mas alusivo à crença sertaneja de que o

Diabo costuma se vestir de Vaqueiro em suas andanças pelas estradas e encruzilhadas

sertanejas”100

.

Sua caracterização é a de um personagem grotesco, definido por João Grilo como

um misto de “promotor, sacristão, cachorro e soldado de polícia” (AC, p. 128). Ao explicar

sua entrada em cena, Suassuna nos dá elementos que ajudam a compreender o que ele entende

por diabo:

Este é o diabo, que, segundo a crença do sertão do Nordeste, é um homem

que se veste como vaqueiro101

. Esta cena deve se revestir de um caráter meio

grotesco, pois a ordem que o Demônio dá, mandando que os personagens se

deitem, já insinua o fato de que o maior desejo do diabo é imitar Deus,

resultado de seu orgulho grotesco (AC, 119).

Quanto ao aspecto grotesco, que Suassuna bem enfatiza para caracterizar o

Encourado, vale ressaltar que a tradição popular já de longa data o caracterizava dessa forma.

Por exemplo, na Idade Média, a partir de figuras mitológicas do imaginário da Antiguidade, o

diabo é representado como harpias, sereias, sátiros, centauros e gigantes monstruosos102

.

Atualmente, é ilustrado com uma “foice como símbolo da morte, com chifres de bode e rabo”

e não é por acaso que “o diabo se tornou uma figura de arte e personagem de teatro”103

. O

grande modelo que influenciou todas as imagens clássicas do demônio foi a figura de Pã e dos

sátiros: seres compostos, metade homem e metade bode, com chifres, cascos e orelhas

pontiagudas104

.

Nem sempre, no entanto, a religiosidade popular considerou e ainda considera o

demônio com características nitidamente grotescas, pois, tendo ele como objetivo a perdição

100

SUASSUNA, A Compadecida e o romanceiro nordestino. In: ______, Almanaque armorial, p. 185. 101

Um vaqueiro se veste de couro amarelo-alaranjado, o que inclui: calças, gibão, guarda-peito,

chapéu. Alguns usam no chapéu e nos arreios do cavalo medalhas de santos (Cf. SANTOS, Em

demanda da poética, p.88). 102

Cf. NOGUEIRA, O diabo, p. 32. 103

Cf. KASPER, Diabo, p.78. 104

Cf. NOGUEIRA, O diabo, p. 58.

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das almas, o demônio pode se disfarçar para conseguir seus objetivos. Assim, pode o demônio

aparecer como uma mulher ou um homem de grande beleza, incitando a luxuria, como até

mesmo um padre, mas sempre incitando-nos ao erro105

.

Também no Romance d‟A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta,

de Suassuna, encontramos essa figura do Encourado, com o mesmo nome inclusive,

compondo a “Santíssima Trindade Sertaneja”106

, como diz Suassuna, apesar de se tratar de

uma pentarquia, que, numa das visões do personagem Quaderna, a contemplou como

um Sol ardente e glorioso, formado por cinco animais num só. Era a Onça

Malhada do Divino, integrada por cinco bichos: a Onça-Vermelha, a Onça-

Negra, a Onça-Parda, a Corça Branca e o Gavião de Ouro, ou seja, o Pai, o

Encourado, o Filho, a Compadecida e o Espírito Santo107

.

Ainda no Romance d‟A Pedra do Reino encontramos outra definição, diferente da

encontrada no Auto da Compadecida, dizendo que “O Encourado é um revoltoso do Partido

Negro-Vermelho, e portanto precisa ser reabilitado e integrado na Divindade”108

. Nesta obra,

Quaderna recebe grande influência de seus dois mestres de infância, Clemente e Samuel,

sendo Clemente negro e comunista e Samuel branco (apaixonado pela cultura europeia) e

monarquista. Assim, ele funde elementos dos ensinamentos dos dois professores em seu

mundo particular (“delírios”, “virações” e outras definições aplicadas aos devaneios de

Quaderna), construindo também conceitos totalmente particulares, como esse do Encourado,

que é a mistura da Trindade do catolicismo de Samuel com o comunismo do negro Clemente.

Esses conceitos que Suassuna usa para definir o Encourado estão a serviço da

literatura e não da fé, mas são provenientes da interpretação popular do demônio, considerado

como culpado por todas as mazelas pessoais e comunitárias, de modo bastante simplista e

infantil109

.

Nas Escrituras, “Diabo” e “demônios” não gozam de conceituação uniforme,

mesmo mantendo os mesmos nomes em diferentes textos sagrados110

. A literatura bíblica do

Antigo Testamento assume a contribuição de outras civilizações ao tratar a questão do

demônio, mas faz três mudanças no modo de compreendê-lo: “redução do demônio ao

estatuto de criado, imputação de sua perversidade à sua própria liberdade, e subordinação de

105

Cf. NOGUEIRA, O diabo, p. 54. 106

SUASSUNA, Romance d‟A Pedra, p. 561. 107

Ibid. 108

Ibid., p. 562. 109

Cf. CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO, Diretório sobre piedade popular, p. 187. 110

Cf. KASPER, Diabo, p. 15.

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110

sua ação à permissão divina”111

. Também são considerados causadores de enfermidades e

moradores do deserto112

.

No Novo Testamento aparecem mais referências ao diabo e aos demônios do que

no Antigo. Jesus cura doenças e expulsa demônios, sendo que as pessoas, na maioria das

vezes, que são exorcizadas, parecem ser portadoras de enfermidades desconhecidas para a

medicina daquele tempo, como nos casos de epilepsia, quando alguém “aparentemente não

tem nenhuma doença, mas de repente é jogado no chão, por uma força desconhecida, começa

a espumejar saliva, ranger os dentes até ficar rígido; diz-se que tem um demônio”113

.

Nos evangelhos, enfermidades como a lepra ou a paralisia, cujas causas ou

sintomas são externos, nunca são atribuídos a demônios. Mas doenças

“internas”, de causas desconhecidas para a medicina, sobretudo quando seus

sintomas se apresentam de forma intermitente, são concebidas como sendo

causadas por um demônio ou uma força demoníaca114

.

Doenças como surdez, mudez ou gagueira também são atribuídas a demônios,

pois as pessoas que sofrem destas doenças aparentemente têm os órgãos da fala e da audição

normais. Então, o que as impede de falar é uma força demoníaca, denominada “demônio

mudo”115

.

O termo “Diabo” vem do grego, diábolos, e seu sentido é expresso da seguinte

forma:

O sentido literal – em grego, “caluniador”, “semeador da discórdia”,

“adversário” – concretiza-se na linguagem bíblica na função de “adversário”

na relação de Deus com o homem: o diabo é aquele que quer “dividir” Deus

do homem. Sua atividade pressupõe, por conseguinte, a relação do homem

com Deus instaurada desde a criação116

.

Em sentido idêntico, os textos do Novo Testamento apresentam “Satanás” como o

“inimigo do homem na sua relação com Deus, e com isso também o adversário de Deus e dos

seus desígnios”117

. Contudo, originalmente, Satanás não era mera figura antagônica de Deus,

mas uma espécie de seu funcionário, como um acusador diante do tribunal divino, como

podemos ver em Zc 3,1 e Jó 1,6-12. Ele usa do poder que Deus lhe concedeu contra o ser

humano, o que demonstra já uma intenção hostil.

111

WÉBER, Demônios. In: LACOSTE, Dicionário crítico de teologia, p. 518. 112

Cf. ibid. 113

RUIZ DE GOPEGUI, As figuras bíblicas do diabo. In: Perspectiva Teológica 29 (1997), p. 333. 114

Ibid. 115

Cf. ibid. 116

KASPER, Diabo, p. 15. 117

Ibid., p. 16.

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111

Essa figura bíblica do diabo como o acusador diante do tribunal divino coincide

com a construção literária de Suassuna, quando este descreve o Encourado como um

“promotor de justiça”, implacável na acusação dos personagens.

Seguindo a lógica usada quando analisávamos o juízo particular, é o ser humano,

em sua autocompreensão na morte, que se julga frente a Jesus. Logo, a figura de um acusador,

ou um “promotor de justiça”, é desnecessária, exceto como uma imagem figurativa “da

realidade do mal e dos efeitos por ele provocados”118

, ou como personalização do mal

coletivo, algo exterior à pessoa, que lhe afeta negativamente119

. De um modo mais amplo,

podemos dizer que a figura do Diabo, em sua acusação, é algo desnecessária, sobretudo pelo

fato de que a fé cristã professa “a vitória do Salvador sobre o mal em todas as suas

manifestações”120

.

No Tribunal de Manuel, o Encourado e suas acusações são vencidas pela

misericórdia divina, o que coincide com a convicção de que

[a] fé cristã se caracteriza pela convicção invencível de que Cristo é Senhor,

e de que o pecado, a morte e Satanás não terão a última palavra sobre o

destino definitivo do homem. A convicção cristã de que eles não terão a

última palavra é, em si mesma, uma prova do fato de que o cristão já

participa desde agora da vida de Cristo ressuscitado, que superou o poder do

pecado, da morte e de Satanás, e participa desde agora e para sempre121

.

3.2.1. A visão popular do demônio como aquele que pode atrapalhar a peregrinação da alma

ao céu.

Ao acusar os personagens do Auto da Compadecida, o Encourado tenta desviá-los

do caminho do céu. A religiosidade popular acredita que, mesmo depois da morte, o Diabo

não desiste de impedir que a alma122

vá para o céu, pois quer levá-la consigo para o inferno.

Segundo essa mentalidade, durante a longa viagem da alma rumo ao Paraíso, ela

enfrenta inúmeras tentações. Por isso, torna-se indispensável que se recorra à ajuda da

Virgem, dos santos e dos anjos, sobretudo de São Miguel Arcanjo, para empreender essa

viagem. São Miguel tem o papel de pesar a alma em sua balança, para ver o peso dos pecados,

118

KASPER, Diabo, p. 19. 119

Cf. VON FRANZ, A sombra e o mal, p. 16. 120

RUIZ DE GOPEGUI, As figuras bíblicas do diabo. Perspectiva Teológica 29 (1997), p. 327. 121

NAVONE, Diabo / exorcismo. In: DE FIORES, Dicionário de espiritualidade, p. 278. 122

Usamos a palavra “alma” para sermos fiéis à linguagem usada popularmente.

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112

e Maria, em seu papel de advogada, intercede pelo morto, caso a balança pese mais para a

condenação da indefesa alma123

.

Também o defunto é preparado para essa viagem. É comum, além da oração do

terço nos velórios, se colocar um rosário (terço) nas mãos do defunto, como uma arma ou um

amuleto para ajudar a pessoa em sua luta contra o demônio124

. Outras “armas” também são

usadas como o crucifixo, o cordão de São Francisco e as orações tradicionais ou “incelências”

que “embalarão o ente querido que se encontra a caminho do céu”125

.

Um exemplo dessa preocupação com a alma que, ao sair do corpo, tinha que

atravessar pelo perigo do encontro com o Diabo, já o encontramos no livro apócrifo do

Trânsito de Maria do Pseudo-Melitão de Sardes, cuja datação dos diversos códigos situam-no

entre os séculos III e VI. Nele encontramos o anúncio da morte de Maria feito por um anjo,

trazendo-lhe um ramo de palmeira. Maria pede ao anjo que os apóstolos se reúnam junto a ela

para sua morte e funeral e em seguida diz:

- Peço-te que me abençoes, para que, no momento em que sair do corpo,

minha alma não encontre nenhuma potência infernal, nem veja o príncipe

das trevas.

Respondeu o anjo:

- Nenhum mal te causarão as potências infernais, pois teu Senhor te deu sua

bênção eterna. Quanto, porém, a não ver o príncipe das trevas, não te posso

conceder, mas somente Aquele que levaste em teu seio. É Ele que tem o

poder sobre todos, pelos séculos dos séculos126

.

Mais uma vez, Suassuna se apresenta como profundo conhecedor do catolicismo

popular, apresentando o Encourado como acusador e aquele que atrapalha o trânsito das almas

para o céu.

3.2.2. O pai da mentira

Entre as designações que João Grilo usa para o Encourado (“filho de

chocadeira127

”, “catimbozeiro128

”), chamamos a atenção para a de “pai da mentira” (AC, p.

122).

123

Cf. FONSECA, Música ritual, p. 40. 124

Cf. ibid., p. 197. 125

FONSECA, Música ritual, p. 203. 126

MORTE e assunção, p. 31. 127

A chocadeira é um instrumento que serve para chocar ovos e serve para manter aquecidas as aves

recém saídas dos ovos. Chamar alguém de “filho de chocadeira” é dizer que pessoa não nasceu como

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113

Em Jo 8, 44, encontramos a mesma designação para o Diabo, pois: “Ele era

assassino desde o começo e não se manteve na verdade, porque nele não há verdade. Quando

ele fala mentira, fala o que é próprio dele, pois ele é mentiroso e pai da mentira”.

Esse trecho do Evangelho joanino ajuda-nos a compreender que o Diabo,

enquanto “pai da mentira”, é uma inversão da dignidade da pessoa, por isso mentiroso,

residindo aí sua essência129

, como expressa Joseph Ratzinger ao escrever:

Se perguntarmos se o demônio é uma pessoa, dever-se-á responder

acertadamente que ele é a antipessoa, a decomposição, o decaimento da

pessoa, sendo por isso característico para ele que se mostre sem face, que o

não poder ser conhecido seja a sua força propriamente dita. Em todo o caso,

continua sendo certo que esse “entre” é um poder real, melhor, um conjunto

de poderes e não apenas a soma de eus humanos130.

J. A. Ruiz de Gopegui, comentando esta afirmação do atual bispo emérito de

Roma, nos lembra que este texto parece ser uma afirmação de que existem seres extra-

mundanos. Contudo, Gopegui nos mostra o quanto é difícil “conceber que tipo de ser deve ser

atribuído a esse “entre”, ao qual é negado por um lado o „ser pessoa‟, mas por outro se nega

que seja uma simples adição de eus humanos e uma personificação das potências do mal”131

.

A solução que J. A. Ruiz de Gopegui propõe para a questão tem como ponto de

partida o ser humano, entendendo-o como “um ser em diálogo com Deus (...)”132

. A perversão

desse diálogo, transformada numa força destrutiva e sedutora, é denominada pelas Escrituras

de Satã. E essa força, identificada como Satã, tem algo de caráter pessoal, porque não existiria

sem as pessoas, contudo, não se identifica com nenhuma pessoa isoladamente133

.

Mas, mesmo tendo algo de pessoal, Satã deve ser pensado como o que há de mais

impessoal e destruidor da pessoa em suas relações humanas134

, pois ele é a “mascara (que é

as demais pessoas, por meio de uma mãe, o que a leva a ser desprovida de valores morais e sentimos

nobres da humanidade. 128

Catimbozeiro é o chefe do catimbó. Neste sentido de depreciação do Encourado, pode-se entender a

causa de denominá-lo assim devido ao fato de que o catimbó é uma espécie de feitiçaria, praticada no

Norte e Nordeste do Brasil. “A reunião (do catimbó) começa com a abertura da mesa, o pedido de

licença aos Senhores Mestres no mundo do além e o acender das velas. (...). Há conselhos, orações,

remédios, dietas, encantamentos e trabalhos para o bem e para o mal” (VAN DER POEL, Catimbó. In:

______. Abecedário da religiosidade popular, (sem página). 129

Cf. KASPER, Diabo, p. 40. 130

RATZINGER, Despedida do diabo?. In: ______. Dogma e anúncio, p. 200. 131

RUIZ DE GOPEGUI, As figuras bíblicas do diabo. Perspectiva Teológica 29 (1997), p. 344. 132

Ibid., p. 342. 133

Cf. Ibid., p. 343. 134

Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas, descrevendo a ideia de diabo, mostra-o como o que

há de mais impessoal e destruidor na pessoa, como podemos ver nesta frase: “Explico ao senhor: o

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outro sentido da palavra persona), a personagem que disfarça o conjunto das forças concretas

destrutivas da pessoa. Mais que “pessoa” deveria ser dito a antipessoa por antonomásia”135

.

Assim, o diabo seria, de fato, o “pai da mentira”, por ser, em si mesmo, a antipessoa, uma

máscara, a mentira em si mesma.

4. O protesto negado e a cólera divina

O Encourado protesta quando Manuel diz que Severino e seu “cabra” vão para o

céu. Seu protesto não é aceito, uma vez que o Encourado é incapaz de conhecer os planos de

Deus. O protesto negado é a indignação de Manuel que, frente a todas as formas de violência

e injustiças, recebe o nome de “cólera divina”.

No julgamento exercido por Manuel, como já dissemos, Severino e seu

cangaceiro são os únicos que vão diretamente para o céu, sem sequer necessitar, como os

demais personagens, da intercessão da Compadecida. Para o Encourado isso é um absurdo, e

antes que termine o seu protesto, Manuel o interrompe, dizendo:

Contra o qual já sei que você protesta, mas não recebo seu protesto. Você

não entende nada dos planos de Deus. Severino e o cangaceiro foram meros

instrumentos de sua cólera. Enlouqueceram ambos, depois que a polícia

matou a família deles e não eram responsáveis por seus atos (AC, p. 152-

153).

Severino e seu cangaceiro são apresentados como instrumentos da cólera divina.

No Auto da Compadecida, Severino não nega que já matou mais de trinta pessoas (cf. AC, p.

134), incluindo os personagens que com ele estão diante de Manuel. Deste modo, nos

perguntamos sobre o que seja a ira divina e como ela é apresentada a partir de Severino e seu

“cabra”.

Tanto no Antigo como no Novo Testamento, é atribuída a Deus a ira. Atribuir ira

a Deus é uma antropopatia, que serve para apresentar o Senhor como um “Deus vivo”, que

não permanece indiferente ao descumprimento de sua vontade136

.

No Antigo Testamento, a ira do Senhor se dirige com mais frequência a Israel,

tendo sobretudo como causa a incredulidade (cf. Nm 11,1); a idolatria (cf. 1Rs 14,15; 2Rs

22,17) e a falta de respeito pelas coisas sagradas (cf. 1Sm 6,19; 2Sm 6,7). Também povos

estrangeiros provocam a ira divina devido a seu orgulho e sua arrogância (cf. Is 13,5ss; 30,27;

diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos

avessos” (ROSA, Grande Sertão: Veredas, p. 26. 135

RUIZ DE GOPEGUI, As figuras bíblicas do diabo. Perspectiva Teológica 29 (1997), p. 343. 136

Cf. McKENZIE, Ira. In: ______. Dicionário bíblico, p. 407.

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115

59,18; 63,3.6). Contudo, a ira do Senhor pode ser afastada pela oração (cf. Ex 32,11ss.31ss;

Nm 11,1ss), como também pode ser modificada pela sua própria paciência e lentidão na

execução de sua ira (cf. Ex 34, 6; Nm 14,18; Sl 103,8; Jn 4,2)137

.

Deus se mostra “ciumento” diante das infidelidades do povo e as tragédias de

Israel são interpretadas como resultado da ira divina138

.

No Novo Testamento, Jesus irou-se com a dureza de coração dos fariseus (cf. Mc

3,5), diante da incredulidade do povo (cf. Mt 17,17). No discurso de João Batista, também se

ouve da ameaça da iminente ira divina contra os fariseus (cf. Mt 3,7; Lc 3,7). Entre os

motivos que levam à ira divina, também citamos: inclinações naturais (cf. Ef 2,3); rejeição do

Filho (cf. Jo 3,36); impiedade e injustiça (cf. Rm 1,18); etc. A ênfase que encontramos nos

escritos neotestamentários para a ira divina é escatológica, consequência de sua justiça (cf.

Rm 2,4-5)139

.

Delumeau, em seu estudo sobre o pecado e o medo no Ocidente, nos apresenta um

curioso sermão do final do século XVIII. Apresentamos a tradução de um trecho do sermão

em que o pregador se dirige a Deus.

(As criaturas) tornam-se instrumentos de vossa justiça e vós vos servis

delas, quando vos apraz, para espalhar o terror, a perturbação e a

consternação sobre a terra. Às vezes, chamais os ventos furiosos que

acorrem dos quatro cantos do mundo para derrubar nossos frutos,

desenraizar nossas árvores, abater nossas casas, perturbar os abismos do

mar, levantar as ondas e engolir os navios; outras vezes, enviais as águas

do céu que caem com ímpeto, engrossam os rios, inundam nossos campos,

cobrem-nos de uma areia estéril, penetram em nossas casas, arrastam às

vezes elas os homens e os animais...140

Mas o que tem isso tudo a ver com Severino de Aracaju e seu cangaceiro? Para

Suassuna, o cangaceiro é um genuíno herói brasileiro, que enfrenta perigos, solidão, polícia e

fazendeiros. O cangaço não constitui uma profissão e não seu usa de critérios hereditários

para nele ingressar. Entra-se para o cangaço numa tentativa de vingança, de “justiça com as

próprias mãos”, diante de crimes cometidos e não punidos. Logo, o cangaço pode ser

qualificado como um movimento social inconformista frente ao Estado, de caráter vingativo e

violento. Seus grandes representantes são Jesuíno Brilhante e Virgulino Ferreira, Lampião141

.

137

Cf. McKENZIE, Ira. In:______, p. 407-408. 138

Cf. COTTINI, Il Dio della misericordia. In: DOMENICO, Maria Madre, p. 44. 139

Cf. McKENZIE, Ira. In: ______. Dicionário bíblico, p. 409. 140

DELUMEAU, O pecado e medo, p.144-145. 141

Cf. SANTOS, Em demanda da poética, p. 90.

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116

Os dois cangaceiros da obra são a resposta imediata da violência sobre eles

cometida. Enlouquecidos pelo assassinato da família, por obra da polícia, eles se lançam na

tentativa cega de vingança. Mas, repetimos: são, primeiramente, vítimas da violência.

Enquanto vítimas da violência, ligada à injustiça, é que recorremos à carta de São

Paulo aos Romanos: “Ao mesmo tempo revela-se, lá do céu, a ira de Deus contra toda a

impiedade e injustiça humana, daqueles que por sua injustiça reprimem a verdade” (Rm 1,18).

A ira divina, enquanto expressão da indignação de Deus contra a injustiça e a impiedade,

também pode ser compartilhada pelo ser humano que não se conforma com o sistema injusto

que o rodeia. O que não podemos é atribuir a Deus a dimensão vingativa e cruel, usando do

cangaço ou de quaisquer outras formas violentas como um instrumento de sua ação. Legitimar

a violência como reação à injustiça é nos lançarmos num ciclo interminável de destruição.

Deste modo, podemos dizer que Deus se ira frente à injustiça sofrida por Severino e seu

cangaceiro, mas nunca que instrumentaliza a loucura provocada pela morte de seus familiares

para cumprir qualquer de seus planos.

Mas o que significa para Suassuna, e não para a teologia, que ambos sejam

admitidos imediatamente ao céu? Ou o que significa, em suas obras em geral, olhar para o

cangaceiro como um herói? Sem pretendermos fazer qualquer análise do perfil psicológico do

autor, gostaríamos de lembrar que, assim como os dois cangaceiros tiveram a família

assassinada pela polícia, também Suassuna teve o pai assassinado. E a perda do pai é algo que

o acompanha de forma marcante em toda a sua vida. Uma das obras em que ele deixa essa

perda emergir com mais fluidez é o Romance d‟A Pedra do Reino, cuja trama gira em torno

dos patriarcas assassinados, da família de Quaderna142

.

Também em forma poética Suassuna nos fala da morte de seu pai, no poema

“Dístico” (1970):

142

No nordeste brasileiro há certa tradição de vingança que leva a um círculo vicioso de violência.

Podemos ver isso, não só no Romance d‟A Pedra do Reino, mas também na obra Uma mulher vestida

de sol, do mesmo Suassuna. Esta peça trata de duas famílias rivais, devido a questões de terra, cujos

filhos se apaixonam um pelo outro e, em consequência, são mortos num contexto de muita crueldade.

Lembramos também o filme Abril despedaçado, de 2010, dirigido por Walter Salles. Baseado no livro

Prilli i Thyer (1980), do albanês Ismail Kadaré, sua ação se desenvolve no sertão brasileiro, em abril

de 1910, em que Tonho (interpretado por Rodrigo Santoro) é impelido pelo pai a vingar a morte do

irmão mais velho, contudo questiona essa atitude, uma vez que tal vingança implicará, posteriormente,

na sua própria morte, mantendo o ciclo de vingança e violência.

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Sob o Sol deste Pasto Incendiado

montado para sempre num Cavalo

que a Morte lhe arreou,

vê-se, aqui, quem, na vida, bravo, ardente

e indeciso, sonhou.

Pelas cordas-de-prata da Viola,

os cantares-de-sangue e do doido riso

de seu povo cantou.

Foi dono da Palavra de seu tempo,

Cavaleiro da gesta-sertaneja,

Vaqueiro e caçador.

Se morreu moço e em sangue, teve tempo

de governar seus pastos e rebanhos,

e a feiosa velhice

jamais o degradou.

Glória, portanto, à Morte e suas garras,

pois, ao sagrá-lo, assim, da vida ao meio,

do Desprezo o salvou:

poupou-lhe a Cinza triste, a Decadência,

gravou sua grandeza em pedra e fogo,

e assim a conservou143

.

Também, talvez, quando o autor eleva o cangaço à estatura de heroicidade, ele

esteja fazendo uma “catarse literária”. Faz vingança à morte do pai, não com armas, mas com

palavras, purificando-se da dor de sua ausência, através da revolta redimida do cangaço.

Numa de suas entrevistas para o Jornal da Semana, de 1973, recolhida por Maria Aparecida

Lopes Nogueira, ele diz:

Minha peça “Auto da Compadecida” foi escrita em 1955. Quem tiver a

pachorra de lê-la ou assistir a sua encenação, há de ver que, através das

143

TAVARES, ABC de Ariano, p. 66.

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palavras do Cangaceiro, Severino de Aracaju, meu sonho de me aposentar e

criar cabras já esteja presente, expresso nela, desde 1955144

.

Essas palavras a que Suassuna se refere são ditas como resposta a João Grilo,

depois da morte, quando questiona o motivo de Severino tê-lo matado, que, mesmo não

respondendo a questão, diz: “Eu, por mim, agora que morri, estou achando até bom. Pelo

menos estou descansado daquelas correrias” (AC, p. 118).

Assim, Suassuna, cansado das “correrias” da vida, instrumentaliza a violência de

Severino de Aracaju e seu “cabra”, em favor do seu sonho de justiça, em vista da paz que ele

e todos merecem.

144

NOGUEIRA, O cabreiro tresmalhado, p. 175.

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CONCLUSÃO

A última frase do Auto da Compadecida é a referência ao lugar e ao dia em que a

obra foi concluída: “Recife, 24 de setembro de 1955” (AC, p. 173). De fato ali terminou o

texto de Suassuna, mas não a história que este texto fez. A peça rodou o Brasil e o mundo,

encantou pessoas, fazendo-as rir e chorar.

Também esta dissertação quer fazer parte desta história, embora de forma

modesta. Imbuídos da convicção de que a literatura nos revela uma perspectiva de Deus e do

ser humano que contribui para o pensamento teológico é que tomamos nas mãos esta peça de

teatro e fizemos comparações. Não está de um lado a teologia e do outro a literatura, como

que em um ringue, prontas para lutar. De forma alguma. Pensamos a literatura e a teologia

como “velhas companheiras” de caminhada, e, mesmo que talvez tenham se separado por

algum tempo, nunca deixaram de ter muita afinidade.

É esta afinidade que nos propomos ressaltar na pesquisa a partir da leitura do Auto

da Compadecida, respeitando a liberdade artística de Suassuna e a metodologia teológica. E

desta leitura gostaríamos de destacar três contribuições que a obra pode dar à teologia.

Os elementos que destacamos são contribuições, não por serem algo de novo para

a teologia, mas contribuições por nos provocarem, fomentarem diálogo, estarem abertos a

outras interpretações, inclusive diferentes das que apresentamos. Aliás, se “quem conta um

conto aumenta um ponto”, o que diríamos de quem busca interpretações de Deus e do ser

humano subjacentes nesse conto?

Escolhemos três contribuições dentre as muitas que o texto pode oferecer-nos: a

primeira, de caráter moral, por ser este o escopo da peça; a segunda, de cunho teológico; e a

terceira, de natureza pastoral. Vejamos a primeira contribuição.

O Palhaço/apresentador, na abertura da peça, diz que o Auto da Compadecida é

“[uma] história altamente moral e um apelo à misericórdia” (AC, p. 16), em que se combate o

mundanismo da igreja, considerando-o uma praga (cf. AC, p. 16).

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Para atingir seus fins moralizantes os personagens se apresentam como alegorias

de pecados que serão julgados por Manuel. E, a partir dessa intenção, é que apontamos a

primeira contribuição do autor para o pensamento teológico, mais especificamente no que

tange a moral, quando se retrata o Bispo, o Padre João e o Sacristão, como representantes do

clero em sua relação com o mundanismo.

O mundanismo pode ser considerado uma das faces patológicas do clericalismo.

Compreendemos o clericalismo como a excessiva ênfase do papel do clero na vida da Igreja,

buscando uma autolegitimação, apoiando-se na concepção da superioridade dos ministros

ordenados sobre os leigos. Essa pretensa superioridade, muitas vezes, leva ao abuso de poder

e ao desrespeito ao povo de Deus, sobretudo aos mais simples, carregando sorrateiramente

interesse pelo dinheiro e pelo luxo.

A crítica que encontramos no Auto da Compadecida nasce no ano de 1955, sob o

pontificado de Pio XII, ou seja, antes de o Concílio Vaticano II convocar toda a Igreja a se

abrir à participação mais ativa dos leigos, devido à dignidade do sacerdócio comum a todos os

fieis e do batismo comum (cf. LG 31).

O Concílio Vaticano II foi um duro golpe ao clericalismo. Contudo, vemos que

ainda hoje as palavras do Concílio e a crítica de Suassuna são pertinentes frente a um

significativo número de seminaristas e padres.

Numa das matérias editadas pela revista digital da Universidade do Vale do Rio

dos Sinos, publicada em 25/05/2011, faz-se uma contundente crítica aos jovens que estão na

formação para o presbiterado e aos padres recém-ordenados que merece destaque:

No vestuário e na atitude, alguns deles parecem ansiar – quase

narcisicamente – por uma restauração do elevado status do padre que

caracterizava a vida paroquial nos anos 1950. Uma forma mais suave de

clericalismo ainda está aparente nas estruturas diocesanas e no próprio

Vaticano, onde poucos leigos podem ser encontrados, e geralmente em

posições relativamente inferiores. E o clericalismo automaticamente

marginaliza ou exclui as mulheres1.

Deste modo, ressaltamos que a crítica de Suassuna contribui para o

questionamento das posturas atuais do clero e para a formação presbiteral. Mas não apenas o

clero e os candidatos a padre são moralmente questionados, pois também encontramos a praga

do mundanismo em outras relações, como as que são estabelecidas pelo Padeiro com sua

esposa e pelo Major Antônio Moraes com o clero, que são regidas pela troca de favores e pela

1 Disponível em:< http://www.ihu.unisinos.br/noticias/43511-os-perigos-do-clericalismo.> Acesso em

04/04/2013.

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supervalorização de posições políticas e econômicas. Juntamente com a condenação moral de

tais princípios pervertidos, vemos o quanto a questão da fé pode ser reduzida à

superficialidade.

Também damos destaque ao fato de que a crítica, mesmo sendo feita num

contexto de teatro, com forte efeito cômico, é uma crítica respeitosa à Igreja, que sofre com o

mundanismo. É, sem dúvida, uma “praga” que a infesta, mas que não é apresentada de forma

depreciativa, pois, assim como ela é vivida por membros que, na obra, são alegorias de

pecados, também é vivida por santos, como a figura do Frade, alegoria da simplicidade e da

pureza da fé de muitos fiéis, padres, religiosos/as e leigos/as.

A segunda contribuição do Auto da Compadecida para a teologia é a sua

capacidade de vislumbrar o desaparecimento daquilo que chamamos de “pastoral do medo”2,

caracterizada pela pregação durante a Idade Média e Moderna, que acentuava exageradamente

o perigo do pecado, a condenação de um grande número de pessoas, um purgatório como

inferno temporário, mas sobretudo, um inferno com as portas escancaradas para aprisionar

pecadores.

O elemento que mais nos permite constatar isso é a forma como Suassuna nos

apresenta o Cristo. Ele não é descrito como a figura tétrica de um juiz extremamente severo e

rigoroso na “contabilidade” dos pecados, com traços vingativos e tirânicos. A negação desses

traços é mais acentuada pelo fato de Cristo ser representado como um negro.

Manuel, segundo Suassuna, não traz nenhum traço de juiz vingativo ou irado. Ele

é bondoso e bem-humorado, sem ser irresponsável em seu juízo, diante das misérias humanas

narradas no teatro. Esta compreensão cristológica, pensada sob a lógica da “pastoral do

medo”, representa uma ruptura com muitas imagens de Jesus provenientes da Idade Média e

Moderna que chegaram até nossos dias, em que se ressaltava todo o rigor de seu juízo, mas

pouquíssima misericórdia, postura que era atribuída à Virgem Maria.

E, se temos a ruptura com uma imagem equivocada de Jesus, outra ruptura já

destacada incide na cor de sua pele, pois Manuel é negro. Um Cristo negro, como forma de

contestação ao preconceito racial e às imposições político-econômicas de povos “brancosos”

sobre nosso povo, é um grito por justiça e igualdade, digno do juiz bondoso que o Auto da

Compadecida apresenta e que também exprime a opção que Deus faz pelos pobres e

marginalizados.

2 Este termo é retirado do livro de Jean Delumeau, O pecado e o medo, que é um precioso estudo que

nos mostra como o medo e a culpa pelo pecado foram difundidos pela Igreja no Ocidente medieval.

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Mas essas não são as únicas rupturas que temos com o conjunto ideológico que

compõe a “pastoral do medo”. A mudança na forma de lidar com a questão do inferno

também é um ponto de grande importância, pois usar a ameaça do inferno como mecanismo

que impeça as pessoas de cometerem conscientemente qualquer pecado é algo que, para a

maioria das pessoas, não funciona mais, uma vez que a ideia de inferno que vigora na

sociedade é bastante difusa ou simplesmente não se acredita nele.

O fato de que Severino e o “seu cabra” sejam enviados direto para o céu, sem a

intervenção da Compadecida, também confirma a ruptura com a “pastoral do medo”,

instrumentalizada pela ameaça ao inferno. Os critérios de juízo de Manuel não são

superficiais, baseados num mero “fez ou deixou de fazer”. O juízo de Manuel sobre Severino

e seu companheiro de cangaço é uma clara demonstração de que o Deus julga o ser humano

como um todo e com bondade.

Suassuna é muito feliz quando, ao tratar da possibilidade do inferno como

condenação para os personagens, privilegia o desejo de que todos se salvem. O Encourado é

quem se ocupa com a “contabilidade” dos pecados e não o Cristo. O autor do Auto da

Compadecida não deixa de considerar a possibilidade do inferno, falando que ele existe, mas

não funciona (cf. AC, p. 162).

Contudo, um número significativo de pessoas, muito preocupado com o próximo

fim do mundo, ainda insiste nas ameaças do inferno, na tentativa de salvar o mundo da ira

divina. Estas pessoas geralmente são membros de Igrejas cristãs pentecostais ou muito ligadas

às supostas aparições de Nossa Senhora, que não se cansa de lembrar o iminente retorno do

Cristo, acompanhado de muito sofrimento para os povos, como podemos ver nas aparições da

Virgem em La Salette, na França (1846); Fátima, em Portugal (1917); Akita, no Japão (1973);

e Medjugorje, na Bósnia-Herzegovina (1981).

A Compadecida, para Suassuna, está preocupada com a possibilidade de seus

protegidos irem para o inferno, mas sua defesa se apoia na misericórdia divina que quer que

todos se salvem e não tem como centro de suas preocupações o inferno com a “boca

escancarada” para receber multidões de pecadores como encontramos nas supostas aparições

da Virgem.

A mudança de perspectiva sobre o inferno que encontramos na obra também está

ligada à mudança da compreensão que se tem do Diabo. Em momento algum se

responsabiliza o Encourado pelos desvios morais dos personagens. Ele é grotesco, mentiroso

e quer levar todos para o inferno, mas, em todas as suas manobras, acaba se apresentando

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como um fracassado. Se o Diabo era uma figura usada pela “pastoral do medo” por ser o

temido e eterno torturador do inferno, agora, negando a sua eficácia e diminuindo o seu poder,

como faz Suassuna, reforça-se a tese que não é o medo que deve orientar a conduta das

pessoas, mas a consciência do bem e da justiça, segundo o projeto de Deus.

Uma terceira contribuição, que gostaríamos de elencar, está no âmbito da pastoral.

A análise comparativa entre a literatura e a teologia pode ser ótimo exercício teológico,

sobretudo para a catequese e cursos de teologia para leigos, uma vez que possibilita o diálogo

sobre fé, sociedade e cultura.

Se pensarmos em nossas crianças, adolescentes e jovens, esta afirmação se torna

muito mais pertinente, pois os sempre questionáveis avanços das técnicas pedagógicas, nas

escolas de nível fundamental e médio, mostram-nos que estas gerações dão muito mais

atenção à multimídia do que à linguagem escrita ou imagens e, como consequência, estão

muito acostumados à informação rápida e abundante, sem muitas vezes, o aprofundamento e

amadurecimento necessários3.

Essas gerações nos lançam o desafio pastoral de usar essas mesmas técnicas, não

de forma aleatória ou irresponsável, mas também o resgate da arte como aquilo que ela

sempre foi, guardiã da cultura e do conhecimento dos povos. Este resgate, com certeza, vai

ajudar no aprofundamento dos conceitos de fé e de humanidade que emergem desse universo.

Para ilustrar a questão, não apenas nos referindo às novas gerações, mas de um

modo geral, apresentamos dois exemplos antagônicos: o trabalho de Soasig Chamaillard e do

Grupo Galpão.

Soasig Chamaillard (1976) é uma artista francesa que ganhou notoriedade pela

imprensa internacional devido a seu trabalho de recriação de imagens religiosas a partir da

cultura pop. Exemplos disso é a figura da Virgem Maria usando roupa do Super-Homem ou a

boneca Barbie ou Hello Kitty como a Virgem. Não queremos entrar no mérito das intenções

da artista ou sobre a consideração de seu trabalho ser ou não obra de arte. O que gostaríamos é

de nos perguntar o que significa trazer o trabalho de Chamaillard para uma discussão sobre

arte e fé. Acreditamos que suas criações mostram-nos o quanto o consumismo ditado pelos

Estados Unidos é capaz de deteriorar a sacralidade da fé e do ser humano, através da

banalização.

3 Cf. SOUSA, Novas linguagens, p. 12.

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Diferente é o trabalho do grupo Galpão. O Galpão é um grupo de teatro, fundado

em Belo Horizonte / MG, e que teve sua primeira apresentação na Praça Sete, em novembro

de 1982. Dentre as suas peças de teatro destacamos A rua da amargura – 14 passos

lacrimosos sobre a vida de Jesus, peça baseada na obra do escritor português Eduardo

Garrido, em 1902. Com um figurino muito próprio do grupo, eles narram a vida de Jesus,

inserindo elementos da cultura mineira4.

A contribuição que a discussão entre arte e teologia brota desse espetáculo aponta

para uma dimensão de fé e humanidade sem banalizações, com a beleza de um texto

profundamente poético e cômico. A Rua da Amargura é uma peça muito próxima, em termos

de estilo, do Auto da Compadecida, pois combina cultura regional, fé, poesia e comicidade. A

penetração de trabalhos como esse no coração das pessoas não se restringe ao público

católico, pois a mensagem de valores éticos narrados em forma poética encanta a todos.

De um modo geral, a ação pastoral não pode fechar os olhos para a dimensão

estética. Deve-se resgatar e manter a beleza dos templos, das palavras, da iconografia, da

música, como também pensar uma ação pastoral que não passe apenas pelo crivo do discurso

racional, mas que tenha espaço para a arte, como ferramenta de evangelização.

E seria o Auto da Compadecida uma mera ferramenta de evangelização, como

também uma ferramenta de uso moral e de desconstrução da “pastoral do medo”? Não.

Mesmo que traga uma clara intenção moralizante, que nos revele bondade no rosto negro de

Manuel, e que possa ser um fomentador de diálogo, o Auto da Compadecida é muito mais que

isso. Ele fugiu das mãos de Suassuna e tornou-se do Brasil e do mundo. Deixou de ser o

julgamento de apenas alguns personagens, para deixar que nossa vida seja interpretada pela

Compadecida à luz dos olhos de Manuel. Superou o papel e o palco para ser a analogia do

desejo de todos os corações: de que sobre todas as misérias humanas triunfe a misericórdia, o

que só pode acontecer no Tribunal de Manuel.

4 Disponível em:< http://www.grupogalpao.com.br/port/espetaculos/sinopse.php?espetaculo=a-rua-da-

amargura.> Acesso em 07/04/2013.

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7. Outras obras

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MARASCHIN, Jaci. O espelho e a transparência. Rio de Janeiro: CEDI, 1989.

NOGUEIRA, Carlos Roberto F. O diabo no imaginário cristão. São Paulo: Editora Ática,

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STENDHAL. O vermelho e o negro. São Paulo: Abril, 2010.

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STOKER, Bram. Drácula. São Paulo: Editora Nova Cultura, 2003.

TOLKIEN, J. R. R. O Silmarillion. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

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8. Filmes e vídeos

GLOBO FILMES. O Auto da Compadecida. Disponível em:

<http://globofilmes.globo.com/OAutodaCompadecida/> Acesso em: 09/11/2012.

GRUPO GALPÃO. A rua da amargura. Disponível em:

<http://www.grupogalpao.com.br/port/espetaculos/sinopse.php?espetaculo=a-rua-da-amargura>.

Acesso em: 07/04/2013;