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LUCIO LOURENÇO PRADO John Stuart Mill e o psicologismo O System of logic nas origens da filosofia contemporânea Tese entregue como exigência para conclusão do curso de Doutorado em Filosofia no Programa de Estudos Pós-Graduados em Filosofia da PUC-SP, sob a orientação do Prof. Dr. Mario Ariel Gonzalez Porta, em abril de 2006 PUC-SP São Paulo - 2006 1

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Page 1: John Stuart Mill e o psicologismo O System of logic nas ... Stuart Mill e o... · John Stuart Mill e o psicologismo O System of logic nas origens da filosofia contemporânea Tese

LUCIO LOURENÇO PRADO

John Stuart Mill e o psicologismo O System of logic nas origens da filosofia contemporânea

Tese entregue como exigência para conclusão do curso de Doutorado em Filosofia no Programa de Estudos Pós-Graduados em Filosofia da PUC-SP, sob a orientação do Prof. Dr. Mario Ariel Gonzalez Porta, em abril de 2006

PUC-SP

São Paulo - 2006

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Banca Examinadora

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Resumo

Este trabalho apresenta a lógica e a semântica de John Stuart Mill relacionando-as, por um lado, à tradição psicológio-nominalista representada pela teoria das idéias de John Locke e, por outro, aos desdobramentos das discussões lógico-semânticas do século XIX, sobretudo a partir da filosofia de Frege. De acordo com nossa hipótese, ao contrário do que toda uma tradição interpretativa estabeleceu, Mill, como que por detrás de algumas posturas ultrapassadas, foi responsável por teses significativas, entre outras coisas, em favor dos esforços logicistas e antipsicologistas que marcaram boa parte das discussões posteriores acerca da natureza da lógica. A crítica que Mill realiza à tese segundo a qual o significados dos termos da linguagem são idéias (o que ele chama de conceitualismo), aliada à sua clareza em distinguir processos mentais envolvidos no ato do raciocínio das razões objetivas envolvidas na correção das inferências, constituíram, de acordo com nossas conclusões, importantes fontes de influência positiva, não só para a filosofia de Frege, mas para toda uma tradição filosófica que veio a desembocar na filosofia analítica contemporânea.

O trabalho é dividido em três capítulos. No primeiro, são apresentados alguns elementos importantes da lógica e da semântica millianas, tais como: definição de lógica enquanto ciência da prova, relação entre lógica e linguagem, teoria da conotação e proposições meramente verbais. O segundo, trata da crítica de Mill ao modelo semântico psicológico representado, entre outros, por Locke. O terceiro, busca responder se, a partir do ponto de vista do logicismo fregeano, Mill pode ser considerado um psicologista.

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Abstract

This work presents the logic and semantic of John Stuart Mill relating them, on the one hand, to the psychological nominalist tradition represented by John Locke´s theory of ideas, and, on the other hand, to the forthcoming logic semantic discussions of XIX century, mainly from Frege´s philosophy. According to our hypothesis, in opposition to an established interpretative tradition, Mill was responsible for significant theses, among others, in favor of the logicist efforts and anti-psychologists who marked most of the later discussions on the nature of logic. On the one hand, Mill´s criticism to the thesis according to which the significance of language terms are ideas (what he calls conceptualism), in addition to his clear view in distinguishing mental processes in the reasoning act of objective reasons involved in the inferences correction, constituted, according to our conclusions, important positive influence sources, not just to Frege´s philosophy, but to a whole philosophycal tradition that came to contemporary analytical philosophy. The work is divided in three chapters. In the first chapter, important elements of Mill´s logic and semantics are presented, such as: the definition of logic as a proof science, the relationship between logic and language, theory of connotation and some propositions. The second chapter deals with Mill´s criticism of the psychological semantic model represented by, among others, Locke. The third chapter aims to the question whether, from the point of view of Fregean logicism, Mill can be considered a psychologist.

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Agradeço ao amigo e orientador Mario Porta por me ensinar filosofia, e por tudo mais; ao Professor e amigo Edélcio Gonçalves pela contribuição de sempre; aos colegas do Departamento

de Filosofia da Unesp pela força durante a fase final do trabalho, me desonerando de algumas atividades em momentos estratégicos; em especial à Professora Maria Eunice Gonzalez, sempre

pronta a colaborar no que foi necessário; ao amigo e colega Ernesto Giusti pelos livros que me emprestou; à Ana Paula Ricci por ter lido o trabalho e ajudado na revisão; e à Nilda, por ter me

agüentado nas semanas que antecederam a conclusão desta tese. Agradeço também a Capes pelo financiamento das mensalidades do curso, sem o qual este

trabalho não teria sido realizado, e a Pró-Reitoria de Pós-Graduação da Unesp (PROPG) pelo auxílio que custeou minhas freqüentes viagens a São Paulo durante a realização da pesquisa.

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Pra Laura

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ÍNDICE

Introdução ...................................................................................................................... 9

CAPÍTULO - I Stuart Mill: Lógica e semântica

I.1. Preliminares ........................................................................................................ 17 I.1.1. A estrutura do System of logic ...................................................................... 19

I.2. O conceito milliano de Lógica ............................................................................ 21 I.2.1. Arte e ciência do raciocínio .......................................................................... 28 I.2.2. Lógica e linguagem ........................................................................................ 30 I.2.3. Nomes e proposições ..................................................................................... 35

I.3. A teoria da conotação .......................................................................................... 38 I.3.1. Nomes gerais e singulares ............................................................................. 40 I.3.2. Nomes conotativos e não conotativos .......................................................... 42 I.3.3. Nomes concretos a abstratos ......................................................................... 47 I.3.4. Nomes relativos e absolutos .......................................................................... 49

I.4. Teoria da proposição de Mill .............................................................................. 52 I.4.1. Sobre as proposições em geral ....................................................................... 53 I.4.2. Proposições complexas .................................................................................. 54 I.4.3. Predicação e nomeação ................................................................................. 58 I.4.4. Proposições meramente verbais .................................................................... 61

I.5. Conclusão do capítulo ......................................................................................... 65

CAPÍTULO - II Refutação do conceitualismo

II.1. Preliminares ....................................................................................................... 69

II.2. Hobbes e Locke .................................................................................................. 70

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II.3. Locke: psicologia e linguagem ........................................................................... 79 II.3.1. O origem empírica das idéias........................................................................ 79 II.3.2. A Linguagem em Locke ............................................................................... 83 II.3.3. Locke e a generalização ............................................................................... 85 II.3.4. Significado e entendimento ......................................................................... 87 II.3.5. Locke e a proposição .................................................................................... 90 II.3.6. Locke e o psicologismo ................................................................................ 92

II.4. A refutação do conceitualismo .......................................................................... 95 II.4.1. Mill e a unidade do sentido proposicional ................................................ 100 II.4.2. Proposição e juízo....................................................................................... 102

II.5. Conclusão do capítulo...................................................................................... 109

Capítulo - III Mill e o antipsicologismo fregeano

III.1. É Mill um psicologista? .................................................................................. 113

III.2 O antipsicologismo fregeano ......................................................................... 118 III.2.1. A analiticidade da aritmética ................................................................... 121 III.2.2. Uma nova lógica ....................................................................................... 128 III.2.3. Frege e a objetividade ............................................................................... 131 III.2.4. Leis do ser verdadeiro ............................................................................... 136 III.2.5. Representações e sentido proposicional .................................................. 139 III.2.6. Lógico x psicológico: o princípio do contexto ......................................... 140 III.2.7. Pensar e representar ................................................................................. 145

III.3. Frege crítico de Mill ....................................................................................... 147 III.3.1. Aritmética e empirismo ............................................................................ 154

Conclusão .................................................................................................................... 161

Bibliografia .................................................................................................................. 164

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Introdução

A relação entre as filosofias de Frege e Stuart Mill é muitas vezes estabelecida,

e não sem claros motivos, de maneira fortemente antagônica. Por um lado, Frege

teria sido o responsável por inegáveis e importantes contribuições, tanto para a

história da lógica quanto para a história da filosofia, seja no que diz respeito ao

instrumental lógico-sintático que forjou em seu Begriffsschrift - capazes de dar conta

de problemas extremamente complexos que, dentro do velho universo conceitual

aristotélico, somente eram resolvidos, quando muito, de forma artificiosa e

insuficiente - seja pelos insights semânticos que vieram fincar as bases de muitas e

importantes discussões a respeito de temas de filosofia da linguagem que estiveram

no centro das atenções nos pelo menos cinqüenta ou sessenta anos seguintes, a partir

de figuras como Russell, Moore e, sobretudo, Wittgenstein. Mill, por outro lado,

representaria o velho, o ultrapassado, o aristotelismo lógico, o empirismo ingênuo, o

psicologismo infantil. Por conta desse contexto histórico-interpretativo é muito

tentador enquadrar, dentro de um modelo esquemático, os pensamentos desses dois

autores, no âmbito da história da filosofia, em campos opostos. A lógica de Mill seria,

por assim dizer, o exemplo de uma certa maneira equivocada e anacrônica de se

conceber essa pretensa ciência, que a filosofia de Frege teria simplesmente varrido

do mapa filosófico. E não faltam motivos que endossam esse ponto de vista. Por

exemplo:

a) Mill, como um típico representante da chamada filosofia insular, por ser um

herdeiro direto de autores como Hobbes, Locke, Berkeley, Hume etc., é um

empirista dos mais radicais; mais radical até, em muitos sentidos, do que seus

antecessores modernos; Frege, por seu turno, com seu logicismo militante e

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seu espírito axiomatizante se nos apresenta com um racionalista dos mais

vigorosos;

b) Frege, como é demasiadamente sabido, foi um radical e incansável militante

anti-psicologista; grande parte de seus esforços e argumentos, grande parte de

seu vigor filosófico estiveram voltados a eliminar da lógica todo e qualquer

tipo de contaminação subjetiva (seja propriamente psicológica, como no caso

dos autores da tradição inglesa, seja transcendental, como no caso de Kant).

Mill, por sua vez, numa famosa passagem do escrito sobre a filosofia de

Hamilton - citada inclusive por Husserl em suas Investigações lógicas como

exemplo daquilo que não deve ser feito em lógica, como um exemplo lapidar

de uma lógica psicologista – afirmou que a lógica é uma parte, um ramo da

psicologia.

c) Inegavelmente, uma das grandes, senão a maior, contribuição fregeana tanto

para a lógica quanto para a filosofia foi a superação da estrutura proposicional

baseada nas categorias de sujeito e predicado a partir das categorias de função

e conceito, solucionando, assim, uma série de problemas, como o da

quantificação múltipla e, sobretudo, das proposições relacionais. Mill, por seu

turno, segue fiel ao esquema proposicional aristotélico, comungando ainda,

apesar dos indícios de insuficiência sintática que já transpareciam nas

discussões lógicas de então, da velha estrutura sujeito/predicado.

d) Naquela que talvez seja sua principal obra, Der Grundlagen der Arithmetik,

Frege refere-se várias vezes a Mill, demonstrando, no mínimo, uma leitura

bastante atenta e interessada do System of logic; porém, tais referências são

sempre críticas, negativas e até irônicas, demonstrando de forma direta

discordâncias de posições.

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Esses fatores parecem servir de suporte para a posição que enxerga uma

relação antagônica entre Frege e Mill. No entanto, apesar dos inegáveis e

incontestáveis motivos que os situam em pólos opostos no âmbito das histórias da

lógica e da filosofia, nem só de discordâncias e antagonismos se constitui a relação

entre os dois autores. Se, por um lado, em questões filosóficas mais gerais e

fundamentais, Frege e Mill demonstram ocupar posições diametralmente opostas, na

medida em que saímos das generalidades e nos detemos em questões mais específicas

e pontuais de suas filosofias, na medida em que deixamos de lado uma abordagem

esquemática típica dos manuais de história da filosofia para analisarmos as teses

mesmas desses autores em seus detalhes, vemos que o quadro se mostra

completamente diferente daquele sugerido há pouco. Isso porque, como

pretendemos demonstrar no presente trabalho, boa parte dos esforços

antipsicologistas de Frege encontraram em Mill, não um adversário a ser refutado,

mas uma importante fonte de influência positiva. Como veremos, os principais

pilares do antipsicologismo fregeano encontrarão, em maior ou menor medida,

respaldo em teses centrais do System of logic. De acordo com nossa hipótese, ao

menos nos pontos que nos interessam particularmente, as divergências entre Frege e

Mill limitam-se a uma crítica por parte de Frege ao status epistemológico da lógica e

da aritmética; Frege critica o radical empirismo milliano; mais especificamente, a

tese de que aquilo que os racionalistas chamam de princípios lógicos elementares, em

realidade, são produtos da experiência sensível. O que não significa que, uma vez

estabelecidos esses ‘princípios’ (sejam eles, princípios ou não) não possa haver

convergências pontuais importantes.

Diante disso, o presente trabalho busca, dentro dos limites impostos por sua

natureza, situar a figura de John Stuart Mill no âmbito da história da filosofia a partir

de dois pontos de vista, que acabam, no fim das contas, se entrecruzando. Nosso

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primeiro objetivo, mais geral, é o de tornar explícito aquele que, dentro dos pontos

de vista adotados aqui, é o real papel da filosofia da lógica de Stuart Mill para aquilo

que se acostumou chamar de virada lingüística da filosofia no século XIX. Essa virada

é considerada por muitos autores como o marco inicial daquilo que podemos chamar

de filosofia contemporânea. E esse papel, de acordo com nossa hipótese, passa, por

um lado, pela superação do modelo semântico-psicológico cristalizado na teoria das

idéias contidas no A essay concerning human understanding de John Locke, e

também, pela recepção, por parte de Frege, das teorias acerca do papel da lógica no

conjunto as atividades intelectuais humanas e de sua relação com a linguagem que se

encontra no Livro I do System of logic. Isso, porque foi justamente no momento em

que elementos de ordem subjetiva perderam espaço nas reflexões filosóficas dando

lugar a abordagens mais genuinamente semânticas, quando os problemas

relacionados à linguagem deixam de ser considerados como meramente secundários

para se tornarem protagonistas dos debates, que o pensamento filosófico cortou parte

dos elos que ainda o ligavam à modernidade, dando lugar a uma nova maneira de

conceber a própria natureza do trabalho filosófico como tal. Nesse sentido, a crítica

fregeana ao chamado psicologismo lógico acaba exercendo papel de destaque nesse

movimento histórico-filosófico, principalmente pelo fato tal psicologismo estar

relacionado diretamente a duas escolas: tanto na Inglaterra, por conta da influência

do nominalismo psicologizantes de Locke, quanto na Alemanha, devido aos

desdobramentos da filosofia transcendental kantiana, a contaminação da psicologia

na lógica e na semântica acabou por se transformar em inimigo comum a ser

combatido por figuras como Frege e Husserl. Diante disso, nosso primeiro objetivo

será identificar qual o papel exercido por John Stuart Mill nesse processo. E será,

segundo nossa hipótese, justamente a crítica milliana ao modelo semântico lockeano

que estabelecerá, em grande medida, as bases da virada da filosofia em direção à

linguagem Se é certo que a supervalorização da lógica e da semântica em prejuízo da

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epistemologia e da psicologia constituem a principal característica do movimento

que culminou na chamada filosofia contemporânea, então encontraremos no Livro I

do System of logic, e não propriamente no Begriffsschrift ou nos Grundlagen der

Arithmetik (como quer Dummet, por exemplo) o verdadeiro marco desta transição.

O que, pode-se dizer, motivou e serviu de ponto de partida de nossa

abordagem é o trabalho Alberto Coffa, intitulado The Semantic Tradition1. Nesta

obra, o autor reconstitui de maneira detalhada os movimentos que proporcionaram a

elevação da semântica ao status de disciplina filosófica de destaque, o que, num certo

sentido, pode ser considerado um dos marcos do advento da filosofia

contemporânea. É, no mínimo, estranho constatamos que o autor não citou Mill uma

única vez sequer; e isso, acredito, é uma grande injustiça2. De acordo com nossa

hipótese, e isso foi simplesmente ignorado por Coffa, a crítica que faz Mill àquilo que

denomina conceitualismo, ou seja, à tese de que os nomes não se referem às idéias,

como quer Hobbes e Locke, mas às coisas mesmas, e, mais importante que isso, o

argumento que Mill se utiliza para defender sua posição, baseado na refutação da

tese de que a função da linguagem é transmitir idéias, finca as bases, em muitos

sentidos, não só do modelo semântico que será adotado por Frege, mas também de

seu antipsicolosimo. E isso por dois motivos:

1) Por não considerar as idéias como referência imediata dos nomes, Mill deixa de

ter ao seu dispor elementos de ordem psicológica para estabelecer a relação entre as

palavras e as coisas; ou seja, se os nomes referirem-se à idéias, basta que se postule

1 COFFA. J. A.: The semantic tradition from Kant to Carnap – To the Vienna Station (1991) 2 Esta constatação foi sugerida pelo Prof. Mario Porta em seu Memorial: concurso para promoção na carreira de magistério categoria professor associado da PUC-SP: “Em sua obra já clássica The semantic tradition, Coffa começa sua análise por Bolzano e certamente não sem boas razões. Não obstante, não deixa de ser significativa a omissão de John Stuart Mill neste contexto. Muito do que justifica a opção de Coffa por Bolzano, valeria sem restrição alguma para Mill. “. (Pg. 31).

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uma semântica da convenção e da arbitrariedade para justificar a relação do signo

com aquilo que significa; e a relação dos nomes com as coisas mesmas se explicaria,

não por meio da semântica propriamente, mas por meio da psicologia. A questão não

seria “como as palavras se relacionam com as coisas?”, mas “como nós formamos

nossas ideais acerca das coisas?”, e as palavras, por sua vez, teriam idéias como

referência. Ora, com a supressão da idéia mediando a relação entre as palavras e as

coisas, se fará necessária a introdução de elementos teóricos de outra natureza, no

caso, de uma natureza eminentemente semântica. E para esse fim, no System de

Mill, será forjado o conceito de conotação.

2) Por não considerar que a função da linguagem é transmitir idéias, mas informar

crenças (crenças em verdades), Mill já estabelece, de forma embrionária, as bases

daquilo que, em Frege, será chamado de princípio do contexto; e, mais importante

do que isso, esse movimento acaba por delegar à linguagem uma função lógico-

veritativa em oposição à dimensão sócio-pragmática que exercia em Hobbes e Locke;

a ‘mentalidade’ representada por essa mudança de acento no que se refere à função

da linguagem no conjunto das atividades humanas, em muitos e importantes

sentidos, abrirá caminho para a edificação de toda uma escola filosófica que

desembocará, por exemplo, no Tractatus de Wittgenstein e no positivismo lógico.

Para levar adiante a tarefa proposta, o presente trabalho é divido em três

partes. Na primeira serão apresentadas aquelas que, de acordo com nossos objetivos

específicos, são as principais teses do Livro I do System of logic: basicamente, sua

teoria acerca da natureza e do papel da lógica no conjunto das atividades intelectuais

humanas, sua teoria do significado baseada no conceito de conotação e sua tese

acerca das proposições meramente verbais. Na segunda será abordada a crítica

milliana ao conceitualismo, ou seja, à tese de que o significado dos termos da

linguagem são entidades mentais. Na terceira, buscaremos demonstrar que, ao menos

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aos olhos de Frege, a lógica de Mill não pode ser considerada psicologista, uma vez

que os principais pilares do antipsicologismo fregeano - a) distinção entre razões

demonstrativas e causas psíquicas; b) semântica objetiva na qual as representações

não exercem papel algum na constituição do sentido proposicional e c) a relação

intrínseca entre a lógica e aquilo que Frege chama de leis do ser verdadeiro - já estão,

ao menos de forma rudimentar e embrionária, presentes nas páginas do System of

logic de Stuart Mill.

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Capítulo - I

Stuart Mill: lógica e semântica

Serão apresentadas aqui algumas teses importantes com relação ao conceito de Lógica de J. S. Mill, bem como os fundamentos de sua teoria do significado; serão abordados os seguintes pontos: - definição de Lógica como ciência da prova com ênfase na precisa distinção que Mill realiza

entre explicações causais de ordem psicológica e aquilo que justifica a verdade da conclusão de um raciocínio;

- teoria milliana dos nomes e, mais precisamente, a teoria da conotação; - distinção entre proposições reais e meramente verbais.

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I.1. Preliminares

A figura de John Stuart Mill se apresenta para a história da filosofia, em

muitos aspectos, de forma um tanto paradoxal, e até surpreendente. Pensador

multifacetado, escreveu sobre lógica, epistemologia, ética, política, economia...

sempre com um rigor conceitual extremado, no qual todos os aspectos de suas

investigações buscam entrelaçar-se num nexo sistemático dos mais bem arquitetados,

digno dos mais ilustres baluartes da metafísica tradicional. Ao mesmo tempo, um

empirista dos mais radicais e um naturalista vigoroso. Mas, ao contrário dos

‘empiristas tradicionais’ de origem britânica, seus predecessores, nutriu grande

respeito pela lógica formal, além de ter fornecido, em seu System of logic, elementos

teóricos preciosos para a superação do nominalismo psicologizante tão difundido

entre os britânicos modernos. Por um lado, Mill se apresenta para a história da

filosofia, ao menos no que diz respeito à sua lógica, como um pensador anacrônico,

representante de posturas ultrapassadas já para os problemas de seu tempo. Sua

lógica acabou por ser enquadrada, por toda uma tradição interpretativa, no âmbito

de algo que foi definitivamente superado pela novidade representada, sobretudo,

pelo pensamento de Frege. Mas, por outro, foi responsável por teses decisivas para a

revolução lingüística ocorrida na filosofia do século XIX, em parte operada pelo

próprio Frege. Fatos como esses demonstram que a figura de Stuart Mill possui um

papel peculiaríssimo na história da filosofia, principalmente no que tange às origens

daquilo que se acostumou chamar de filosofia contemporânea.

Mill, como praticamente todos os pensadores da história que, de alguma

maneira, operaram ou contribuíram decisivamente para transformações

significativas nos rumos da evolução filosófica, ou mesmo que simplesmente viveram

e trabalharam durante esses períodos de transição, tem, por assim dizer, cada pé

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numa tradição diferente. Por um lado, é o ponto de culminação de um processo

histórico-filosófico que se inicia com Ockan, passando por Bacon, Hobbes, Locke,

Hume, Berkeley; por outro, encontra-se em posição privilegiada no que tange à

superação do que ainda restava da filosofia moderna no pensamento do século XIX.

Num certo sentido – e, na realidade, será essa a conclusão mais geral extraída pelo

presente trabalho – Mill passou ao mesmo tempo pelo inconveniente e privilegiado

papel histórico de estar demasiadamente comprometido com o passado para extrair

todas as conseqüências significativas e importantes de seus insights.

Quando se analisam as coisas a partir do ponto de vista privilegiado que a

história é capaz de fornecer, pode-se perceber que o comprometimento inevitável

que se tem com o universo teórico no qual se está inserido acaba, muitas vezes, por

impossibilitar ao pensador transcender de forma definitiva esse mesmo universo,

mesmo na posse de todos os elementos necessários para tal. E, pior do que isso, a falta

de um aparato teórico adequado capaz de levar adiante o desenvolvimento de

teorias, por assim dizer, inovadoras, acaba por cegar esses mesmos pensadores, na

medida em que não conseguem enxergar determinadas conseqüências de suas teses

que, para as gerações posteriores, parecem claras e inevitáveis. Essas considerações

estão sendo feitas para salientar que, muitas vezes, teses millianas absolutamente

originais e decisivas para os desenvolvimentos futuros tanto da lógica quanto da

filosofia da linguagem são expressas por meio de um vocabulário empoeirado,

proveniente de uma tradição que está a um passo de ser superada definitivamente.

Mais importante ainda: Mill, inúmeras vezes, faz afirmações explícitas sobre

determinados temas que, ao analisarmos o conjunto de suas teses e extrairmos delas

suas conseqüências necessárias, vemos que são incompatíveis com a organicidade de

seu próprio sistema. Um exemplo disso, que será retomado adiante de forma mais

detalhada, é sua relação com o psicologismo: Mill afirma claramente, mais de uma

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vez, que a lógica é uma parte da psicologia; no entanto, suas teses semânticas, e seu

próprio conceito de lógica enquanto relacionada à justificação de verdades inferidas

e não com descrição de processos subjetivos, demonstram claramente que ele está

estabelecendo os alicerces a partir dos quais será edificada boa parte dos esforços

antipsicologistas de Frege. Ora, Mill disse isso, porque isso era o normal e corrente

entre os seus. De forma semelhante, a teoria milliana da conotação, que traz consigo

novidades significativas para o estabelecimento das bases em que se edificou a virada

semântica na filosofia do século XIX, é constituída e apresentada dentro de um

contexto proposicional aristotélico, o que pode camuflar, graças a uma aparente

constituição sintática ingênua e ultrapassada, seu verdadeiro alcance e as

conseqüências que suscitou. Como Frege bem notou, chega a ser irritante notar que

o radical empirismo de Mill não lhe tenha permitido ir mais adiante. O que se tem,

em realidade, é uma semântica e um conceito de lógica requintados e progressistas a

serviço de uma sintaxe aristotélica velha e agonizante, e de um empirismo tão radical

quanto inconseqüente. Será buscando enfatizar essa característica da lógica e da

semântica millianas que as apresentaremos no presente capítulo.

I.1.1. A estrutura do System of logic

O System of logic tem por objetivo estabelecer de forma organizada e

sistemática os princípios e fundamentos desta pretensa ciência para, a partir das

premissas estabelecidas e do instrumental analítico obtido, ser possível a edificação

de todo um sistema de conhecimento, cujo objetivo último e principal repousa na

fundamentação das ciências morais. A obra é dividida e seis livros:

1. Dos nomes e das proposições; 2. Do raciocínio;

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3. Da indução; 4. Das operações auxiliares da indução; 5. Dos sofismas; 6. Da lógica das ciências morais.

Embora, tomados em conjunto, os livros do System of logic constituam uma unidade

sistemática bastante clara, cada um deles, tomados isoladamente, possui uma

organicidade própria que os caracterizam, de fato, como livros independentes. De

forma resumida, podemos assim caracterizar o caminho percorrido por Mill em seu

System: primeiramente, é estabelecido o estatuto semântico da linguagem, tanto no

que se refere à significação dos termos de forma isolada quanto à significação das

proposições (Livro I). Feito isso, o foco de atenção volta-se aos processos dedutivos

de inferência (Livro II). Uma vez, porém, que, de acordo com Mill, as proposições

universais, premissas dos raciocínios dedutivos, não nos são disponíveis de forma

imediata - pois, como bom empirista que é, defende que todo conhecimento inicia-

se, necessariamente, a partir das impressões sensíveis, que somente fornecem

conhecimentos singulares - o autor utiliza o terceiro e o quarto livros para

fundamentar a indução, tipo de raciocínio que possibilita a aquisição das tais

premissas universais. Em seguida, são considerados os argumentos falaciosos e as

causa de tais erros de raciocínio (Livro V). Por fim, após a edificação de todo um

aparato conceitual coerente e estruturado, é considerado o papel da ciência lógica no

estabelecimento das ciências morais (Livro VI).

Durante o caminho percorrido no System, Mill trata de expor e fundamentar

três teses capitais, que têm a ver com problemas que interessam diretamente a Frege:

a) a lógica e matemática possuem proposições e inferências reais;

b) nenhuma proposição real é a priori;

c) a lógica e a matemática são indutivas e, portanto, possuem origem empírica.

20

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Para poder levar adiante seu projeto ultra-empirista, Mill necessitará de

determinadas premissas lógicas, semânticas e, em muitos sentidos, epistemológicas e

mesmo metafísicas, presentes, sobretudo, no Livro I do System of logic. Por isso, uma

vez que o interesse de nosso trabalho repousa basicamente nas teses semânticas de

Mill, em seu conceito de lógica e, sobretudo, na influência que tais teses exerceram

na edificação da filosofia e da lógica fregeanas, e dado o caráter, em certo sentido,

autônomo dos livros do System of logic, o Livro I será, prioritariamente, tomado

como objeto de nossa investigação.

I.2. O conceito milliano de Lógica

Pergunta: por que Mill, sendo um empirista radical, deu tanto valor à lógica, a

ponto de escrever um grande tratado sobre essa disciplina? Não é a lógica a “ciência”

das leis formais do pensamento puro? Não é ela a maior expressão de um tipo de

saber eminentemente racional baseado em princípios universais e, por isso mesmo,

absolutamente a priori? O que justificaria tal interesse? A resposta a essas indagações

não pode receber um tratamento simples, pois Mill delega à Lógica um estatuto

absolutamente coerente com seus supostos epistemológicos mais gerais. Para

compreendermos o que Mill entende por Lógica é necessário, primeiramente, termos

em mente o que ele entende por conhecimento e, mais especificamente, que tipos de

conhecimento postula como possíveis.

De acordo com Mill, todo conhecimento deve, em última análise, ser

reduzido a duas formas básicas: ou o conhecimento é intuitivo ou é inferido3.

3 “Truths are known to us in two ways: some are known directly, and of themselves; some through the medium of the others truths. The former are subject of intuition, or Consciousness; the latter, of

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Conhecimento intuitivo é aquele que obtemos por meio do testemunho direto dos

sentidos; conhecimento inferido é aquele derivado, que se obtém por meio de

inferências, tomando conhecimentos já adquiridos como premissas. Eu sei direta e

imediatamente que sinto uma dor, ou que estou na frente do computador, e sobre

isso não pode restar dúvidas, pois tenho em favor dessas verdades o testemunho

direto de meus sentidos. Há, no entanto, uma série de conhecimentos que eu

certamente possuo, mas somente de forma indireta, que não me foram

disponibilizados a partir do mesmo processo cognitivo; por exemplo: não vi nem

presenciei a chegada de Cabral ao Brasil em 1500, mas sei, por meio de uma série de

indícios que me são disponibilizados, em última análise, intuitivamente, que esse

fato é verdadeiro. Sou, portanto, capaz de inferir a verdade de um fato mesmo sem

tê-lo presenciado. Como podemos notar, Mill tem uma visão muito ampla acerca do

que são inferências: todos os conhecimentos que somos capazes de obter, desde que

não estejam disponíveis diretamente aos sentidos, são inferidos; e todos os tipos de

inferência que somos capazes de realizar (que, segundo Mill, nos possibilitam a

maior parte de nossos conhecimentos) nos fornecerão, portanto, conhecimentos

derivados. Certamente, para que haja conhecimentos derivados obtidos por meio de

inferência é necessário que outros conhecimentos intuitivos prévios sejam

considerados. Somente por meio da intuição – entenda-se, pela faculdade que nos

proporciona o acesso direto ao mundo exterior, possibilitando, assim, um

conhecimento eminente empírico – é possível a passagem do não-conhecimento ao

conhecimento de alguma espécie, fundamental para a edificação de qualquer forma

de saber. Ou seja, somente é possível haver qualquer conhecimento derivado obtido

por inferência se, antes de tudo, a cadeia de raciocínios partir de alguma ou algumas

premissas empíricas. A conseqüência dessa teoria será bastante controvertida. De inference. The truths known by intuition are original premisses from which all others are inferred”. (System of logic. Introduction; 4)

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acordo com esse ponto de vista, Mill rejeita que as proposições universais, aquelas

que servem de premissas para os raciocínios dedutivos, sejam disponibilizadas de

forma imediata e intuitiva. Ao invés disso, as proposições universais fazem parte

daquela porção de nosso conhecimento dita derivada. Isso, porque a experiência

empírica fornece um tipo de conhecimento meramente singular, expresso por meio

de proposições particulares; somente por meio da indução - raciocínio a partir do

qual premissas particulares impõem conclusões universais – as premissas dos

raciocínios indutivos podem ser dadas. Segue-se disso que todo raciocínio dedutivo

pressupõe, necessariamente, raciocínio ou raciocínios indutivos preliminares,

capazes de fornecer as premissas da dedução. O principal e mais problemático

resultado desta teoria é a tese, no mínimo estranha, de que as chamadas ‘ciências

dedutivas’, sobretudo a matemática e a própria lógica, são a posteriori, possuem uma

origem empírica. Veremos, no Capítulo III, que será essa a principal divergência de

Frege com relação às teses do System of logic: tanto o que diz Mill sobre o estatuto

epistemológico das ‘leis’ da lógica, quanto sobre o estatuto da própria indução, serão

atacados por Frege nos Grundlagen der Arithmetik. Voltaremos, pois, a esses

problemas no momento mais oportuno. Por ora, vale somente salientar as duas classe

de conhecimentos que Mill considera como possíveis, e a origem eminentemente

empírica de todo conhecimento, seja ele intuitivo ou derivado.

Colocadas as coisas desta maneira, Mill pode estabelecer um lugar privilegiado

para a Lógica no espectro do conhecimento humano sem, com isso, contradizer seus

pressupostos epistemológicos e metafísicos mais fundamentais. A Lógica deve tratar

somente daquele tipo de conhecimento dito derivado, inferido, não tendo nenhum

poder e não exercendo nenhum papel no processo de aquisição primitiva de

conhecimentos por meio do testemunho dos sentidos4. É nesse sentido que Mill 4 “The province of logic must be restricted to that portion of our knowledge which consists of inferences from truths previously knowns” (idem)

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define a Lógica como ciência da prova5. Ela não pode fornecer os indícios, as

premissas, os fundamentos objetivos a partir dos quais uma verdade pode ser

inferida; mas, uma vez de posse dessas premissas, ela deve decidir se as verdades

delas extraídas o foram de forma correta. Certamente, como acabamos de mencionar,

esse ponto de vista o obriga, necessariamente, a considerar a Lógica como sendo algo

muito mais abrangente do que a maioria dos autores. A lógica deve ser entendida

como ciência (e arte também, como veremos a seguir) do raciocínio e da inferência.

No entanto, por raciocínio deve-se entender não somente as inferências dedutivas,

mas também a indução6. Não é por acaso que a obra milliana se propõe a ser um

sistema de lógica indutiva e dedutiva.

Vale salientar, com relação ao conceito milliano de lógica e à teoria

epistemológica que o supõe, um fato extremamente importante: Mill aceita, ao

contrário de Locke, a possibilidade de termos acesso direto e imediato a verdades, e

não meramente a idéias. Como veremos mais adiante7, para Locke, tudo o que

obtemos imediatamente por meio da experiência sensível são idéias simples; e todas

as demais manifestações intelectuais humanas, como a atribuição de verdades, por

exemplo, já se dão de forma mediata. A verdade, para Locke, nunca se refere às

5 “Logic is not the science of Belief, but the science of Proof, or Evidence. In so far as belief professes to be founded on proof, the office of logic is to supply a test for ascertaining whether or not the belief is well grounded” ou: “Logic, however, is not a same thing with knowledge, though the field of logic is coextensive with the field of knowledge. Logic is the common judge and arbiter of all particular investigation. It does not underkate to find evidence, but to determine whether it has been found. Logic neither observes, nor invents, nor discovers; but judges” (idem) 6 “Logic, then, comprises the science of reasoning (...). But the word reasoning, again, like most other scientific terms in popular use, abounds in ambiguities. In one of this acceptations, it means syllogizing; or, the mode of inference which may be called (with sufficient accuracy for the present purpose) concluding from generals to particulars. In another of its senses, the reason is simply to infer any assertion, from assertions admitted: and in this sense induction is as much entitled to be called reasoning as the demosntrations of geometry”. (idem, Introduction, 2) 7 II.3.1

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coisas mesmas do mundo, mas somente às nossas idéias8. Ora, qual a importância

disso para a lógica e para a semântica? O fato de que em Mill, que considera que a

verdade somente pode se dar no nível proposicional, já se pode identificar um nível

proposicional prioritário e imediato. Escreve ele:

O que chamamos, por um cômodo abuso de um termo abstrato, uma verdade, significa simplesmente uma proposição verdadeira, e os erros são proposições falsas9

Ora, se levarmos isso às suas últimas conseqüências, teremos que supor que Mill

postula a anterioridade da proposição em relação aos seus elementos constitutivos, o

que só foi explicita e definitivamente estabelecido na história da filosofia pelo

princípio fregeano do contexto10. Se a verdade nada mais é do que uma proposição

verdadeira, e se a experiência imediata pode nos fornecer verdades, claro está que já

se deveria poder falar num sentido proposicional primário e imediato em Mill. Como

veremos mais adiante11, quando tratarmos da distinção que Mill estabelece entre

proposição e juízo, a crença numa verdade supõe um conteúdo objetivo prévio como

seu objeto. Portanto, se é possível termos acesso direto e imediato a verdades, isso

somente pode ser compreendido da seguinte forma: temos acesso imediato ao

conteúdo objetivo crido como verdadeiro. A diferença com relação às verdades

inferidas está no fato de que, nessas, a crença dependerá de provas e se estabelecerá a

partir delas. Já nas verdades intuitivas, o testemunho direto dos sentidos elimina a

necessidade de provas e, portanto, de argumentos. Por isso, não há lógica para as

8 ver: II.3.4. 9 “What, by a convenient misapplication of na abstract term, we call a Truth, means simply a True Proposition; and errors are false proposition”. (idem: I, i, 2) 10 ver: III.3.2 11 II.4.2

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verdades intuitivas12. Mas, ainda assim, elas são verdades e se dão imediatamente aos

sentidos. Talvez tão ou mais importante do que Mill ter, digamos assim, delegado um

caráter realista à verdade, que não se refere mais às idéias como em Locke, mas ao

mundo real13, foi ele ter, ao menos indiretamente, postulado a possibilidade de

termos acesso direto a um sentido proposicional originário. Porém, Mill é confuso;

não tem muita clareza acerca das conseqüências de seu insigth. Isso, porque é

claramente contraditória a assunção de que temos acesso direta e intuitivamente a

verdades, sem necessidade de nenhum tipo de mediação (seja por parte de processos

subjetivos ou de elementos de ordem puramente semântica, nos quais o sentido

proposicional se estabeleça), conjugada a uma sintaxe proposicional aristotélica. Se a

proposição relaciona ou articula dois termos e se institui como um símbolo

complexo, e se a verdade somente pode ser estabelecida no nível proposicional,

então não deve ser permitido o acesso intuitivo e imediato a nenhum tipo de

verdade, dada à relação intrínseca entre verdade e proposição. E, como vimos, Mill

aceita essa possibilidade. Há, portanto, aqui, uma flagrante contradição sistemática:

numa sintaxe proposicional aristotélica, a proposição é necessariamente algo

complexo e mediato; é o resultado da articulação de duas ‘entidades’ que se incluem

ou excluem uma à outra a partir da ‘função sintetizante’ da cópula. Essa

complexidade elementar do sentido proposicional, conjugado ao fato de ser a

verdade atribuída exclusivamente a conteúdos proposicionais, é incompatível com a

tese de que o temos acesso intuitivo a verdades empíricas.

12 “Whatever is know to us by consciousness, is known beyond possibility of question. What one sees or feels, whether bodily or mentally, one cannot but be sure that one sees or feels. No science is required for the porpose of establishing such truths; no rules of art can render our knowledge of them more certain than is is in itself. There is no logic for this portion of our knowledge” (idem; 4) 13 Como veremos em II.3

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Essa situação é, porém, compreensível e se rrelaciona com aquilo que falamos

nas Preliminares do presente capítulo: Mill está trabalhando num momento de

transição nos rumos da filosofia e tem, por isso, cada pé numa tradição diferente. É,

pois, natural que algumas de suas boas idéias não encontrassem respaldo no universo

teórico no qual transitava. Existem exemplos variados na história do pensamento em

que ocorreram situações semelhantes. Para lembrarmos um: tal como faltou a

Galileu uma mecânica mais elaborada, capaz de dar conta de seus insights físicos e

astronômicos - o que só foi realizado com Newton14 - também Mill, não teve à sua

disposição uma lógica e uma sintaxe proposicional mais elaboradas, capazes de

acomodar algumas de suas melhores idéias. No entanto, como já foi mencionado,

uma das principais hipóteses que norteia o presente trabalho repousa justamente na

constatação de que a novidade representada por várias teses millianas é

absolutamente incompatível com os ditames de sua tradição; entre eles, a estrutura

sujeito/predicado. Certamente, o mérito de ter superado a velha estrutura

proposicional é exclusivamente de Frege. Frege notou não só a insuficiência sintática

daquele modelo mas, além disso - e principalmente - teve o mérito de priorizar a

unidade do sentido proposicional com relação a suas partes. Mill não chegou tão

longe, mas enxergou, certamente, uma coisa muito nova, que, utilizada e referida

num contexto conceitual menos anacrônico, pôde render alguns bons frutos.

14 Como sabemos, quando Galileu propôs sua teoria geocêntrica, havia pouco o que se dizer ao seu favor, em virtude dessa teoria ser contraditória com relação a muitos dos princípios estabelecidos pela física aristotélica. Como reagir, por exemplo, ao argumento de que não pode ser possível a terra mover-se sem que as coisas que estejam em sua superfície sejam lançadas para fora dela? ou contra aqueles pretendiam negar tal movimento alegando que, se assim o fosse, uma pedra jogada do alto de uma torre não deveria cair ao seu pé, como ocorre de fato? Foi necessária a elaboração de uma mecânica na qual figurasse conceitos como o princípio da inércia ou a gravitação universal para que as idéias corretas de Galileu fossem estabelecidas como corretas. Acredito que algo muito semelhante tenha acontecido com Mill. Nossa analogia busca simplesmente mostrar que muitas vezes boas idéias não encontram um solo fértil para florescer em virtude de toda uma mentalidade conceitual vigente no período em que é proposta. E que somente à luz dos desenvolvimentos que se seguem, podemos, mas tarde, identificar seu real valor.

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I.2.1. Arte e ciência do raciocínio

Há um ponto de vista extremamente importante no que se refere à concepção

milliana de lógica, e que possui grande relevância para os nossos propósitos. Mill

aponta para uma dupla característica da Lógica: ela é, ao mesmo tempo, ciência e arte

do raciocínio:

ele (o Arcebispo de Whately) definiu a Lógica como ciência, mas também arte do raciocínio, entendendo pelo primeiro desses termos a análise da operação mental realizada quando raciocinamos, e pelo segundo as regras fundadas sobre essa análise para executar corretamente a operação. Não há duvidas com relação à propriedade dessa retificação. (...) a lógica, portanto, é ao mesmo tempo a arte e a ciência do raciocínio15

Esta passagem é fundamental para os problemas que permeiam os interesses do

presente trabalho. Mill apresenta aqui uma distinção fina que deve ser obedecida

quando se investiga o raciocínio lógico: explicações causais acerca do ato do

raciocínio em oposição àquilo que justifica a correção do raciocínio. E isso se

manifesta nas duas características da lógica apontadas acima. Enquanto ciência, a

lógica deve descrever os processos psíquicos e ocorrências mentais que têm lugar

quando raciocinamos efetivamente. Enquanto arte, ela deve servir como

instrumento balizador e normativo para a realização de inferências válidas. No

primeiro caso, a lógica deve descrever processos psicológicos (e nesse sentido, Mill

pode - ao menos em princípio, pois veremos que a coisa não é bem assim - ser

chamado de psicologista), no segundo, deve constituir-se num conjunto de esquemas

e abreviações destinado a possibilitar o raciocínio correto; e, portanto, já que a lógica

15 “... he (Archishop Whately) has defined Logic to be the Science, as well as the Art, of reasoning; meaning by the former term, the analysis of the mental process which takes place whenever we reason, and by latter, the rules, grounded on the analysis, for conducting the process corretly. (...) Logic, then, comprises the science of reasoning, as well as an art, founded on that science” (idem: Introduction, 2)

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cuida daquela espécie de conhecimento dita derivada, deve estar suposta na

aquisição da maior parte dos conhecimentos que estamos aptos a possuir. A lógica,

pois, deve possuir uma parte descritiva e outra normativa. Uma lógica que se

pretende descritiva é, certamente, uma lógica psicologista, já uma lógica que se

reivindica normativa, pode certamente possuir um outro estatuto.

Mais adiante, no capítulo III, retomaremos o problema da relação de Mill com

o psicologismo. Por ora, cabe ressaltar que, embora Mill tenha afirmado o contrário,

a Lógica milliana abarca, de fato, somente uma das perspectivas acima: a lógica como

arte. Ele definiu a lógica como arte e ciência, mas, durante o desenvolvimento de seu

conceito de lógica, de modo a expor mais detalhadamente sua função no conjunto

das atividades humanas, a descrição dos processos psíquicos é esquecida. Se

considerarmos a definição mais precisa oferecida acima, que caracteriza a lógica

como ciência da prova, veremos claramente que os processos psíquicos que seriam

analisados pela, digamos assim, ‘parte científica’ da lógica, não jogam nenhum papel

relevante na derivação das verdades inferidas a partir das premissas. Eles pretendem

explicar a gênese de tais princípios por meio de uma análise dos processos subjetivos.

Mas uma explicação genética não pode substituir uma justificação lógica. Se as regras

de inferência16 - que em última análise decidem sobre a correção do raciocínio e

sobre a validade da prova - são ou não obtidas a partir da consideração de processos

psíquicos, esse é um problema de outra ordem, que diz respeito, na melhor das

hipóteses, à epistemologia da lógica. Porém, uma vez estabelecidas essas regras,

sejam elas consideradas como princípios universais da razão, sejam esquemas ou

abreviações de processos psíquicos obtidos por observação e indução, o fato é que a

Lógica não serve a uma causa psicológica e sim à justificação objetiva das verdades

16 Certamente, não devemos entender aqui por “regra de inferência” princípios racionais objetivos, mas tão somente, esquemas obtidos por observação e indução.

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inferidas. O que deve ficar claro na presente seção é a incompatibilidade existente

entre a lógica entendida enquanto análise de processos mentais e a lógica entendida

enquanto relacionada à justificação dos raciocínios. Como Frege foi capaz de ver com

toda clareza17, causas psíquicas estão envolvidas tanto na realização de raciocínios

corretos, quanto incorretos, tanto no estabelecimento de verdades, quanto de

falsidades. Portanto, essas causas não devem guardar nenhuma relação com aquilo

que pode justificar a validade ou correção18 de uma inferência. É interessante

notarmos que Mill enxergou isso, pois fez questão de salientar a distinção entre

causas psíquicas e justificação de inferências. Pecou, entretanto, ao defender que a

análise das causas psíquicas está também sob a égide da lógica. No entanto, apesar de

ter afirmado isso explicitamente, Mill preocupou-se exclusivamente com a

justificação dos raciocínios, pois não há outra maneira de compreendermos a tese de

que a lógica é a ciência da prova.

I.2.2. Lógica e linguagem

Definida a lógica como ciência da prova, Mill estabelece a necessidade de

voltar-se prioritariamente para a linguagem em sua edificação. Deve estar incluída

na ciência da lógica também uma dimensão semântica, capaz de dar conta tanto da

significatividade dos termos, quanto da contribuição que o significado dos termos

fornecem ao estabelecimento do sentido proposicional19. Isso, no entanto, em nada 17 Ver: III.3.1 18 Falo em validade ou correção de um raciocínio, porque a expressão “validade” é associada comumente aos raciocínios dedutivos. E, como vimos, Mill está interessado também nas inferências indutivas. 19 “But there is another reason, of still more fundamental nature, why the import of words should be the the earliest subject of the logicinan’s consideration: because without it he cannot examine into the import of Propositions. Now this is a subject which stands on the very threshold of the science of logic” (System of logic: I, i, 1)

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contraria a definição da lógica como ciência e arte do raciocínio: se a lógica busca

conhecer os procedimentos mentais envolvidos nos raciocínios e, a partir dele, ser

uma disciplina normativa capaz de balizar a conduta argumentativa dos sujeitos na

busca da verdade (daquelas verdades derivadas), e se tudo aquilo que pode ser dito

verdadeiro ou falso deve necessariamente assumir a forma de uma proposição, a

análise semântica da linguagem e o estabelecimento da maneira como os termos se

articulam na constituição do sentido proposicional não deve ser encarada senão

como preliminares fundamentais da arte do raciocínio. Por esse motivo, o primeiro

capítulo do Livro I do System of logic é dedicado aos nomes e às proposições.

A primeira seção do capítulo I é destinada a justificar o motivo pelo qual Mill

inicia seu System of logic a partir de uma análise da linguagem:

A Lógica é uma parte da arte do pensar; a linguagem, de acordo com o testemunho de todos os filósofos, é, evidentemente, um dos principais instrumentos úteis ao pensamento (...) Um espírito que, sem estar previamente instruído sobre a justificação e o justo emprego das diversas classes de palavras, empreendesse o estudo dos métodos de filosofar, seria como aquele que quisesse chegar a ser observador em astronomia sem ter aprendido a acomodar a distância focal dos instrumentos de ótica para uma visão distinta.20

Está claro nesta passagem que Mill comunga da concepção, completamente oposta à

de Locke21, de que o pensamento é uma atividade eminentemente simbólica, que

necessita da “mediação” da linguagem para se realizar. Veremos que, em Locke, o

universo do pensamento se realiza num contexto fundamentalmente extra-

lingüístco. A linguagem tem por função somente comunicar pensamentos e não

20 “Logic is a portion of de Art of Thinking: Language is evidently, and by the admission of all philosophers, one of the principal instruments or helps of thought (...) For a mind not previously versed in the meaning and right use of various kinds of words, to attemp the study of methods of philosophizing, would be as if some one should attemp to become na astronomical observer, having never learned to ajust the focal distance on his optical instruments as to see distinctly” (idem; I, i, 1) 21 ver II.3

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propriamente ser um “instrumento do pensamento”. Locke iniciou seu Essay falando

as idéias – e portando, sobre o que está envolvido no ato de pensar; somente depois

trata da linguagem, determinando seu caráter utilitário e sua necessidade social. Mill,

por seu turno, inicia sua grande obra pela análise da linguagem, e só depois abordará

o raciocínio. Porque, se a lógica se pretende ciência e arte do raciocínio - este

entendido eminentemente como manifestação do pensamento – e se a linguagem é

um instrumento útil ao pensamento, então um tratado de Lógica deve ser iniciado

por uma análise da linguagem.

De acordo com o que podemos ler na passagem acima, uma coisa importante

deve ser salientada: se Mill está reivindicando a necessidade instrumental da

linguagem no ato do pensamento, certamente ele não pode estar entendendo por

pensamento, coisas como apreensão, relação ou associação de idéias, de imagens

mentais. A maneira como Mill entende qual deve ser o papel da linguagem enquanto

instrumento útil ao pensamento demonstra que ele tem em mente, quando fala em

pensamento, algo relacionado de forma direta ao raciocínio, à derivação de verdades

a partir de outras verdades e à própria enunciação de verdades por meio da

proposição. Não precisamos absolutamente da linguagem para formar idéias que se

apresentem na forma de imagens mentais, nem para refletirmos sobre essas idéias

para criar outras mais complexas; precisamos da linguagem, como veremos logo a

seguir, para a enunciação proposicional. Portanto, precisamos da linguagem para

exercer uma atividade que tem uma característica lógico-veritativa, que repousa na

derivação de verdades inferidas a partir de verdades dadas, e não, como ocorre no

caso do nominalismo psicologizante de Locke que veremos no próximo capítulo,

simplesmente para comunicar o conteúdo de nossa vida psicológica, que por ser

insensível, necessita da mediação simbólica da linguagem para ser transmitida aos

outros sujeitos. Em suma, precisamos conhecer os mecanismos semânticos da

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linguagem para sabermos como os nomes significam e, a partir disso, verificarmos

como se constitui a unidade do sentido proposicional. Uma vez, pois, que é o sentido

proposicional o ‘objeto da crença’ - ou seja, o portador da verdade22 - a análise da

linguagem, no universo do sistema de lógica deve possuir essa característica:

fundamentar aquilo que, em última análise, é o elemento lógico prioritário, o

portador da verdade, a saber, o sentido proposicional.

Há um outro ponto importante a ser aqui salientado: ao voltar-se para a

linguagem, Mill retorna a um estágio, digamos assim, pré-moderno. A preocupação

milliana com a linguagem e, mais especificamente, com uma teoria do significado

capaz de estabelecer a relação direta entre nomes e coisas sem referência às

condições subjetivas envolvidas nos processos cognitivos23, demonstra que Mill

promove, num certo sentido, um retorno aos escolásticos24. Como veremos mais

22 ver: II.4. 23 ver: I.3. 24 Algumas passagens importantes do Sistem of logic demonstram a postura milliana de ‘retorno aos escolásticos’. Ao mesmo tempo em que critica o subjetivismo típico dos modernos, Mill várias vezes reivindica uma herança medieval para muitos dos conceitos dos quais se serve, e sempre com relação a conceitos referentes à linguagem; por exemplo: “The same abstinence from details could not be observed in the Fisrt Book, on Names and Propositions; because many useful principles and distintions which were contained in the old logic, have been gradually omitted from the writhins of its later teacher; and it appeared desirable both to revive these, and to reform and rationalize the philophical foundations on which they stood. The earlier chapters of this preliminary Book will consequently appear, to some readers, needlessly elementary an scholastic. But those who know in what darkness the nature of our knowledge, and of the processes by which it is obtained, is often involved by a confused apprehension of the import of the different classes of Words and Assertions, will not regard these discussions as either frivolous, or irrelevant to the topics considered in the later Books” (Prefaces). Ou: “But Reasoning, even in the widest sense of which the word is suscetible, does not seem to comprehend all that is included, either in the best, or even in the most current, conception of the scope and province of de our science. The employment of the word Logic to denote the theory of Argumentation, is derived from the Aristotelian, or, as they commonly termed, the scholastic, logicians” (Introduction, 3). Ou ainda: “I use de words concrete and abstract in the sense annexed to them by the schoolmem, who, not withstanding the imperfections of their philosophy, were unrivalled in the constructinon of tecnical language, and whose definitions, in logic least, though they never went more thna in a little way into the subject, have seldom, I think, been altered but to be spoiled” (I, ii, 4).

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adiante, quando tratarmos da teoria milliana da conotação25, aquele empirismo

psicologizante e idealista típico dos britânicos modernos assumirá em Mill o aspecto

de um empirismo semântico e realista. Se concordarmos com Dummet26 que o marco

do advento da filosofia contemporânea foi uma espécie de retorno a Aristóteles e aos

escolásticos, na medida em que se coloca a lógica como prioritária com relação à

epistemologia, contradizendo, assim, todo o espírito idealista e subjetivista - comum,

em suas diversas manifestações, à Descartes e Berkeley, a Locke e Kant – então,

talvez seja Mill, e não propriamente Frege, como acredita Dummet, o iniciador desse

processo. E isso por dois motivos: primeiramente, por ter escrito como sua obra

fundamental e prioritária do ponto de vista sistemático, um tratado de lógica, e não

de epistemologia; em segundo lugar, por ter iniciado e fundamentado seu tratado de

lógica a partir da semântica, e não da psicologia. A lógica é prioritária com relação a

todas as outras ciências27 e a semântica é prioritária com relação à própria lógica.

Mill assume, assim, um ponto de vista que coloca os problemas filosóficos

prioritários a partir da pergunta elementar da relação entre os nomes e as coisas. Boa

parte das discussões que empreenderá no Livro I de sua grande obra estará voltada à

25 I.3 26 “Desde el tiempo de Descartes hasta hace muy poco, la pregunta básica para la filosofia era qué podemos conocer y como podemos justificar nuetras pretensiones de conocimento; y el problema filosofico fundamental era hasta dónde puede refutarse el scepticismo u qué tando debe aceptarse. Frege fue el primer filósofo posterior a Descartes que rechazó totalmente esta perspectiva y en este respecto vio más allá de Descartes hacia Aristóteles y los escolásticos. Para Frege, como para ellos, la lógica era el principio de la filosofia; si no tenemos una lógica correta, no obtendremos nada más correto. La epistemologia, por otro lado, no es prioritária con respecto a ninguna rama de la filosofia; podemos desarrollar la filosofia de las matemáticas, la filosofia de la ciencia, la metafísica, o cualquier cosa que nos interese, sin tener que realizar primero una investigación epistemológica. Es este cambio de perspectiva, más que ninguna otra cosa, lo que constituye la diferencia principal entre la filosofia contemporânea e sus antecessoras y, desde este punto de vista, Frege fue el primer filósofo moderno” (Dummet, M. La verdad y otros enigmas; trad. Patiño, A. H. Pg. 159) 27 “By far the greatest portion of our knowledge, whether of general truths of particular facts, being avowedly matter of inference, nearly the whole, not only of science, but of human conduct, is amenable to the authority of logic” (Mill; op. cit.: Introduction, 5)

34

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querela entre realismo, nominalismo ou conceitualismo28, problemas esses que estão

relacionados de forma mais íntima com as discussões medievais do que com as

modernas. Mais adiante retomaremos esse ponto com maior destaque, mas é

importante ter clara a conexão existente entre o um suposto retorno aos medievais e

às suas discussões que visavam a relação entre nomes e coisas, com a filosofia

entendida como análise lógica da linguagem. E, se essa hipótese é verdadeira, então

talvez deveríamos, ao menos o partir deste ponto de vista específico, entender a

filosofia moderna e seu espírito epistemológico e subjetivista como uma espécie de

hiato. Para ir adiante foi necessário dar um passo atrás; para avançar à

contemporaneidade foi necessário retornar aos medievais. E sua preocupação

prioritária com a linguagem fez com que Mill desse tal passo.

I.2.3. Nomes e proposições

Mill aponta uma razão importante para ter iniciado seu System of logic pela

análise da linguagem e, mais especificamente, dos nomes: o significado das palavras

(ou, no caso, dos nomes) que compõem uma proposição determina o significado das

próprias proposiçãos29; e a proposição, esta sim, é o objeto primeiro da lógica, pois

tudo o que pode ser verdadeiro ou falso deve assumir a forma proposicional:

28 Conceitualismo, como veremos no capítulo II é, segundo Mill, uma espécie de nominalismo no qual, entretanto, os nomes são nomes de idéias e não das coisas mesmas: “A third doctrine arose, wich endeavoured to steer between the two (nominalism and realism). According to this, which is know by the name of conceptualism, generality is not an atribute solely of names, but also of thoughts” (An examination... XXVII) 29 “... there is another reason, of a still more fundamental nature, why the import of words should be the earliest subject of the logician’s consideration: because without it he cannot examine into the import of Propositions.” (idem, I, i, 2)

35

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Tudo o que pode ser objeto de crença ou não crença deve expressar-se por palavras, e tomar a forma de uma proposição. Toda verdade e toda falsidade jazem numa proposição. O que nós chamamos, por um cômodo abuso de um termo abstrato, de uma verdade, significa simplesmente uma proposição verdadeira, e as falsidades são proposições falsas30.

Como podemos notar, Mill, claramente, está atrelando três conceitos que são

absolutamente caros à sua lógica: crença, verdade e proposição. A crença deve supor

necessariamente algo que é crido, um objeto intencional ao qual se refira. Quem crê,

crê em algo, e esse objeto é o conteúdo objetivo expresso pela proposição. E no que

consiste essa referência intencional do ato da crença? Consiste no reconhecimento

de um conteúdo objetivo como sendo verdadeiro, consiste na atribuição do valor de

verdade verdadeiro a um conteúdo proposicional. Assim, a fundamentação da lógica

milliana deve possuir os seguintes estágios: a) uma análise dos nomes, ‘matérias

primas’ das proposições; b) uma análise da proposição, portadora da verdade e c) uma

análise do raciocínio, mecanismo pelo qual determinadas verdades são inferidas a

partir de outras verdades dadas. É esse o caminho seguido por Mill no seu System of

logic e é com vistas a alcançar esses objetivos que devemos compreender a

preocupação prioritária de Stuart Mill para com a linguagem. Ao contrário do que

ocorre no modelo lockeano, Mill procura analisar e fundamentar o papel da

linguagem a partir de um ponto de vista eminentemente lógico-veritativo. Por isso, a

análise da linguagem deve ter por objetivo prioritário a fundamentação sintática e,

sobretudo, semântica daquilo que se estabelece como um sentido proposicional, uma

vez que é esse sentido o portador da verdade - ou o objeto da crença, como Mill

prefere dizer.

30 “Whatever can be na object of belief, or even of desbelief, must, when put into words, assume the form of a proposition. All truth an all error lie in propositions. What, by a convenient misapplication of a abstract term, we call a Truth, means simply a True Proposition; and errors are false propositions. (idem: I,i,2)

36

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Como já foi mencionado, Mill comunga ainda do instrumental lógico-

sintático proveniente da silogística aristotélica. Para ele, portanto, numa proposição,

um nome (predicado) é sempre afirmado ou negado de outro nome (sujeito); os

termos sujeito e predicado são conectados pela cópula (‘é’, ‘não é’, ou qualquer outra

inflexão do verbo ser), que tem também a função de determinar se o predicado é

afirmado ou negado do sujeito31. Torna-se evidente, assim, que, para determinar os

tipos de proposições com os quais o pensamento trabalha, é necessário conhecer os

tipos de nomes que se compõem em proposições, para, em seguida, poder ser

realizado um inventário das próprias proposições. Como veremos, Mill romperá com

a tese lockeana de que os nomes referem-se a idéias; portanto, a unidade do sentido

proposicional não pode ser estabelecida em termos psicológicos, a partir de processos

de associação de idéias. Por isso, o sentido proposicional deverá constituir-se

exclusivamente por meio da carga significativa dos nomes que compõe a proposição.

A Proposição (entendida enquanto o significado das sentenças) deixará de ser uma

‘entidade psíquica’ como as proposições mentais lockeanas32 para se tornar uma

‘entidade lógica’ cuja fundamentação deve ser exclusivamente semântica. Por isso,

para compreendermos como se estabelece o sentido proposicional, uma vez que esse

sentido é um complexo obtido a partir da síntese de duas ‘entidades’ que não são

mais idéias, é necessário investigar no que consiste a ‘carga significativa’ dos nomes,

pois é a partir dela que a proposição irá se estabelecer enquanto unidade de sentido.

Certamente, estamos diante de um ponto de vista, em princípio, diametralmente

oposto ao de Frege com respeito à relação do sentido proposicional com suas partes.

Em Frege, clara e explicitamente, o sentido proposicional é, digamos assim, ‘anterior’

31 “Every proposition consists of three parts: the Subject, the Predicate, and the Copula. The predicate is the name denoting the person or thing which something is affirmed ou denied of. The copula is the sign denoting that is an affirmation or denial; and thereby enabling the hearer or reader to distinguish a proposition from any others kind of discourse” (idem: I, i, 2) 32 ver II.3.5.

37

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aos significados das palavras, que só devem ser estabelecidos no contexto da

proposição, como a contribuição que realiza na constituição do sentido

proposicional33. No entanto, assim acreditamos, tal oposição é, senão falsa, ao menos

apenas parcialmente verdadeira. Há elementos suficientes nos textos de Mill capazes

de demonstrar que ele, embora certamente não tenha visto isso com toda a clareza

que poderíamos esperar, já antevê a prioridade do sentido proposicional. Mas, seja

como for, o que deve ser considerado é que Mill retira do universo psicológico o

papel de ser o responsável pela constituição da unidade do sentido proposicional. A

proposição se estabelece no âmbito da significatividade dos termos conotativos; é na

maneira como os nomes apresentam seus referentes, naquilo que eles conotam, que

se encontram os elementos constitutivos do sentido proposicional. No capítulo II,

retomaremos este problema a partir da pergunta pelo status da unidade do sentido

proposicional em Mill. Mas, por ora, essas considerações nos bastam e nos levam à

teoria da conotação.

I.3. A teoria da conotação

Uma contribuição decisiva de Stuart Mill ao advento daquilo que se

acostumou chamar de virada lingüística na filosofia do século XIX, e cujos

desdobramentos vieram a determinar os ditames teóricos e metodológicos da

filosofia contemporânea, foi a elaboração de uma teoria semântica na qual o processo

de significação é explicado não a partir de causas psicológicas e com recurso a

entidades subjetivas, mas a partir de categorias objetivas e inerentes aos próprios

nomes em sua significatividade. Num modelo semântico-psicólogico como o de

33 Ver: III.2.5.

38

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Hobbes e Locke, como veremos no Capítulo II, a relação do símbolo com aquilo que

é simbolizado somente pode ser dada por meio de uma mera convenção arbitrária. E

para isso, não é necessária propriamente uma teoria semântica; basta que se explique

a relação do nome com a idéia nomeada a partir de elementos psicológicos, com

referências a processos mentais, como leis psicológicas de associação. Como o que é

nomeado, segundo aquele modelo, são as idéias e não as coisas mesmas, a relação do

nome com um suposto objeto real (segundo Locke, nós não conhecemos as coisas

mesmas, mas somente supomos tacitamente sua existência real) explica-se por meio

da psicologia e não da semântica propriamente dita. E já que os nomes não se

relacionam com coisas, mas somente com idéias, a relação das idéias com as coisas

mesmas se estabelece pela explicação de como as idéias são produzidas nos sujeitos a

partir da percepção sensível do mundo exterior. Ou seja: a psicologia explica a

produção de idéias a partir da observação e também a relação convencional existente

entre os signos da linguagem e as idéias que são seus referentes. E, ainda de acordo

com nossa hipótese, o que Mill ‘colocou no lugar’ da explicação psicológica acerca do

processo de significação foi justamente sua teoria da conotação. As seguintes seções

terão, pois, o objetivo de apresentar essa teoria dentro do seu contexto sistemático.

Para que se possa, porém, expor a teoria da conotação milliana é necessário

apontarmos algumas distinções que o autor realiza com relação à divisão dos nomes

em geral. A classificação dos nomes é efetuada no System of logic através de

distinções sucessivas; ao final das distinções, forma-se uma complexa teia de nomes e

estruturas semânticas, cujo principal conceito é o de conotação. Antes, porém, de

adentrarmos propriamente na classificação dos nomes realizada por Mill, é

necessário salientar algo extremamente importante. Para Mill, na esteira de toda

uma tradição nominalista, nome é qualquer expressão que possa assumir, numa

proposição, o lugar do termo sujeito ou do termo predicado. Trata-se, pois, de uma

39

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concepção de nome absolutamente abrangente. Um nome pode ser tanto um nome

próprio como “João”, “Brasil”, “Lulu”, quanto nomes complexos como “o maior pico

localizado na região sudeste do Brasil”; além disso, adjetivos como “branco”, “velho”,

“sábio”, são também considerados nomes; são nomes que denotam todas as coisas que

podem ser ditas brancas, velhas ou sábias. E, como um bom nominalista, Mill

entende que uma proposição tem por objetivo imediato atribuir nomes, e não

propriamente propriedades. Porém, a novidade que apresentou com relação a esse

mesmo nominalismo é a tese de que as propriedades são, de fato, atribuídas na

proposição, mas não em virtude daquilo que a proposição diretamente afirma, mas

em virtude da maneira como os nomes que a compõem significam34.

No decorrer deste capítulo, essas afirmações se tornarão mais claras.

Passemos, agora, à classificação dos nomes propriamente dita.

I.3.1. Nomes gerais e singulares

A primeira distinção que nos interessa divide os nomes em singulares e gerais.

Um nome singular é aquele que somente pode ser predicado verdadeiramente e com

o mesmo sentido de um único objeto. Por oposição, um nome geral pode ser

predicado verdadeiramente e com o mesmo sentido de um número indeterminado

de objetos35. Nomes próprios, tais como “João”, “Maria”, “São Paulo”, “Pelé” são

claramente nomes singulares. Já os nomes que tomam a forma de adjetivos, que

aparecem na maioria das vezes como predicados de proposições, tais como “branco”,

34 ver: I.4.3. 35 “A general name is familiarly definied, a name which is capable of being truly affirmed, in the same sense, of each of an indefinite number of things. An individual or singular name is a name which is only capable of being truly affirmed, in the same sense, of one thing” (idem: I,ii,3)

40

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“velho”, “sábio”, são exemplos de nomes gerais. Há, certamente, uma infinidade de

objetos dos quais se pode predicar verdadeiramente e no mesmo sentido cada um

desses três nomes, e isso porque cada um deles determina um critério que os objetos

em geral devem obedecer para poderem ser deles predicados; tal critério consiste em

que os objetos possuam um determinado atributo (exatamente o mesmo atributo), no

caso, a brancura, a velhice e a sabedoria.

Os nomes singulares, por sua vez, não se resumem aos nomes próprios, aos

“nomes de batismo”, àqueles que são impressos muitas vezes arbitrariamente aos

indivíduos simplesmente com o objetivo de distinguí-lo dos demais, como os nomes

citados mais acima (“João”, “Maria” etc.); “esta caneta”, ou o “atual presidente da

república” são nomes que somente podem ser predicados verdadeiramente e num

mesmo sentido de um único objeto; são, portanto, nomes singulares, mas não nomes

próprios, pois podem oferecer um critério para sua predicação e este critério pode

consistir na posse ou não de algum atributo, como acontece com os nomes gerais.

Claro deve estar que o mero fato de um determinado nome denotar um único

elemento não é condição suficiente para que seja considerado um nome singular. Um

nome pode ser, em princípio, predicado de verdadeiramente de um único objeto,

mas isso pode se dever simplesmente a uma determinada circunstância. Por exemplo:

“país estrangeiro visitado por João”; a circunstância de João ter visitado em sua vida

apenas um país estrangeiro não faz desse nome um nome singular; em princípio, João

poderia conhecer vários outros países, e pode vir a conhecê-los futuramente, o que

faz com que esse nome tenha um único indivíduo como referência são circunstâncias

do mundo, não algo que seja determinado pela significação mesma do nome; esta

expressa generalidade e supõe, ao menos em princípio, um número indeterminado

de referências possíveis. Um nome singular, pois, deve ser, de forma mais precisa,

definido com um nome que, dada sua carga semântica ou ao seu caráter

41

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convencional que não guardam nenhuma referência aos fatos do mundo, somente

possa ser predicado de um único objeto.

Não se pode também tomar por nome geral um nome coletivo. O XV

regimento de infantaria do exército britânico é um nome singular embora o próprio

regimento seja composto por um grande número de indivíduos; trata-se, no entanto,

de um único regimento e é ao regimento que o nome se refere. Nomes gerais

referem-se a uma pluralidade de objetos e nunca a um objeto determinado , mesmo

que este seja, em sua natureza, coletivo e, assim, composto por uma série de

indivíduos. O soldado João não é o XV Regimento, mas um membro desse

regimento.

A distinção entre nomes singulares e nomes gerais, nos remete a uma outra

definição importante: entre nomes conotativos e nomes não-conotativos; isso porque

é a conotação quem garante, no universo conceitual milliano, a generalidade aos

nomes gerais.

I.3.2. Nomes conotativos e não conotativos

A segunda distinção entre os nomes que será mencionada é também a

mais importante que Mill realiza, pois é nela que se encontra o coração de sua

semântica. Trata-se da distinção entre nomes conotativos e não-conotativos. Um

nome não-conotativo é aquele que se refere a um sujeito ou a um atributo somente;

um termo conotativo designa um sujeito e implica um ou mais atributos36. Devemos,

aqui, entender por sujeito tudo aquilo que possua atributos. Exemplos de nomes não-

36 “A non-connotative term is one which signifies a subject only, or an attribute only. A connotative term is one which denotes a subject, and implies an attribute” (idem II, ii, 5)

42

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conotativos são: João, São Paulo, Brasil; exemplos de nomes conotativos são:

virtuoso, branco, grande. A diferença fundamental existente entre essas duas classes

de nomes reside no fato de que uma delas, a primeira, compreende nomes que são

atribuídos aos indivíduos arbitrariamente, com o único objetivo de distinguí-lo dos

demais, sem, no entanto, apresentar nenhuma informação acerca de seus referentes;

são os chamados nomes próprios. A outra classe compreende nomes que referem-se

aos indivíduos dos quais podem ser verdadeiramente predicados não por mera

associação arbitrária, mas porque determinam um ou mais atributos que os

indivíduos em geral devem possuir para que possam ser por eles nomeados37. Um

indivíduo é chamado João por uma livre escolha de seus pais que assim resolveram

chamá-lo para distingui-lo das demais pessoas. Em princípio, porém, poderia receber

qualquer outro nome sem prejuízo de sua própria natureza, pois o nome “João” não

nos informa nada acerca desta natureza. É bem verdade – e Mill deixa isso claro –

que pode ter havido algum motivo positivo para que lhe pusessem esse nome, mas

ainda assim não se pode dizer que um tal nome seja conotativo:

Um homem pode se chamar João porque esse era o nome de seu pai; uma vila pode se chamar Dartmouth porque está situada na embocadura do Rio Dart; Não há, porém, nada na significação da palavra João que implique que o pai do indivíduo assim chamado também possua esse nome; nem, tampouco, na palavra Dartmouth que esta vila esteja situada na desembocadura do rio Dart. Se a areia viesse a obstruir a desembocadura do rio (...) nem por isso o nome da vila mudaria necessariamente38.

37 Da relação entre a generalidade dos nomes conotativos e a singularidade dos nomes próprios, cuidei em outro lugar: Nomes próprios gerais no contexto da semântica de J. S. Mill; in: Revista Trans-Form-Ação; vol. 28(1), 2005, pp.67- 83. 38 “A man may have been named John, because that was the name os his father; a town may have been named Dartmouth, because it is situated at the mouth of the Dart. But, it is no part of the signification of the word John, that the father of the person so called bore the same name; nor even of the word Darthmouth, to be situated at the mouth of the Dart. Is sand should choke up the mouth of the river, or an earthquake change its course, and remove it to a distance from the town, the name of the town would not necessarily be changed”. (idem)

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Isso não acontece com os nomes conotativos. Um indivíduo é chamado virtuoso não

porque este nome lhe tenha sido atribuído arbitrariamente, mas porque o nome

“virtuoso” implica, compreende, indica ou, como Mill prefere dizer, conota um

determinado atributo que todo indivíduo deve possuir para que o nome virtuoso

possa dele ser predicado verdadeiramente, a saber, a virtude. Pode-se afirmar, em

última instância, que os nomes conotativos são criteriais (segundo Skorupski:

criterial names39) na medida em que fornecem um critério bem determinado que

deve ser obedecido pelos indivíduos que por eles são nomeados. Possuem, pois, uma

carga semântica que vai muito além da mera associação arbitrária de palavras aos

seus referentes, defendida pelo nominalismo clássico. Nomes conotativos referem-se

a indivíduos, mas o fazem através da afirmação de algo que positivamente esses

indivíduos possuem. O que existe em comum entre todos os indivíduos denotados

pelo nome “homem” não é somente o nome “homem”, mas a posse de uma série de

atributos conotados por esse nome. Toda vez que se pronuncia a palavra “homem”,

além de se referir diretamente aos indivíduos dos quais essa palavra é nome, refere-

se também, indiretamente, a todos os atributos relacionados à humanidade: vida

animal, racionalidade, mortalidade etc.. E sabemos que somente a posse de todos

esses atributos em conjunto garante a predicação verdadeira desse nome a qualquer

indivíduo.

A teoria da conotação traz consigo uma conseqüência bastante

significativa no que diz respeito à semântica milliana: que somente os nomes

conotativos propriamente têm significação ou, o que vem a ser o mesmo, que a

significação dos nomes é determinada por aquilo que eles conotam e não pelo que

39 “To know the meaning of a general name like ‘white’, or ‘round’ is to know how to tell whether a thing is white or round. ‘White’ and ‘round’ are given a use in the language by being associated with criteria. Grasping the meaning of such name, at least in the primitive case, is graspoing what facts about an object would warrant predicating the name of it. Let us call such criterial names” (Skoruspiki. J.: John Stuart Mill. Pg. 57)

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eles denotam40. O significado da palavra “homem”, por exemplo, não depende e não

se relaciona aos indivíduos que são verdadeiramente chamados de homem, mas à

carga semântica que o nome carrega consigo, determinada justamente pelos atributos

que conota. O significado de um nome conotativo é a sua conotação. O argumento

para a sustentação desta tese baseia-se no fato de que nomes de diferentes conotações

podem ter a mesma denotação e, no entanto, não têm o mesmo significado41.

Portanto, o significado não pode ser relacionado, utilizando uma expressão fregeana,

à referência do nome, àquilo que o nome propriamente denota. Ao contrário disso,

significação é algo que se relaciona à maneira como o referente é denotado.

Significar é um processo que depende, agora, de elementos objetivos e

eminentemente semânticos, e não mais da mera associação arbitrária. É a carga

semântica que o nome efetivamente trás consigo em sua conotação quem

efetivamente possibilita e determina a relação dos nomes com as coisas nomeadas.

Não se trata mais de postular uma instância psíquica mediado a relação do signo com

o mundo real (ou um suposto mundo real, como quer Locke). Não se trata mais de

submeter a semântica à psicologia, mas de dotar a semântica de uma autonomia até

então incomum na história da filosofia.

Vale apontar também que o elemento de arbitrariedade existente e

determinante na semântica lockeana42 perde toda sua força no contexto milliano. Os

nomes são, de fato, escolhidos ao acaso e a relação do nome com a coisa nomeada

não é absolutamente natural e necessária, mas arbitrária e contingente. 40 “From the preceding observations it will easily be collected, that whenever the names given to objects convey any informations, that is, whenever they have propely any meaning, the meaning resides not in what they denote, but in what they connote. The only names of objects which connote nothing are proper names; and these have, strictly speaking, no signification” (idem; I, ii, 5) 41 Salta aos olhos, aqui, o parentesco entre a posição de Mill e a teoria fregeana do sentido e referência. Infelizmente, não foi possível incluir nesse volume um capítulo tratando desta relação. Espero, porém, no momento oportuno, poder publicar algum material sobre este tema. 42 ver II.3.2

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Determinados objetos do mundo são referidos pelo termo geral “mesa” mas, em

princípio, poderia ser qualquer outro termo – e, de fato, em outros idiomas isso

ocorre. Mas isso - a escolha dos nomes - só é realmente muito relevante numa

semântica da substituição, como a de Locke, na qual o nome é uma marca sensível

que substitui uma idéia não sensível. Já no caso de uma teoria semântica como a de

Mill, baseada no conceito de conotação, o que menos importa é qual o termo, o

símbolo, utilizado como nome geral e as leis psicológicas da associação que explicam

a relação entre um nome e seu referente, mas o que propriamente esse nome conota.

Se o termo é “mesa”, “table”, “bicicleta” ou “tatatá”, isso é o menos importante para

sua sigificatividade. O que realmente importará e determinará a significação do

nome serão os atributos que ele conota. E uma vez identificados esses atributos

conotados, podemos dizer, o nome significa ‘por si só’, pois exprime seus próprios

critérios objetivos de nomeação, sem referência a processos psíquicos de associação.

Há uma característica da teoria milliana da conotação que será apenas

mencionada aqui, mas que, infelizmente, não será explorada como deveria: teoria

milliana da conotação promove uma espécie de ‘revolução copernicana’ na maneira

como os nomes se relacionam com seus nomeados. Numa semântica da substituição,

como parece natural, os nomes são, digamos assim, atribuídos aos seus referentes.

Usando uma imagem, são os nomes que ‘vão’ até seus referentes, são atribuídos e

adicionados a eles como um rótulo é adicionado a uma garrafa ou uma marca de giz é

colocada na fachada da casa, tal como ocorre nas mil e uma noites43. Coisas (ou, no

caso de Hobbes e Locke, idéias) recebem nomes, e isso se deve exclusivamente

àquele elemento de arbitrariedade mencionado a pouco. Ora, no caso dos nomes

43 Mill associa (I, ii, 5), na forma de uma analogia, a atribuição de nomes próprios (não conotativos) ao procedimento do ladrão das mil e uma noites que marcou com um “x” a casa que gostaria de assinalar. No entanto, como tal marca foi realizada arbitrariamente e sem nenhum conteúdo descritivo suposto, ela deixou de cumprir sua função quando todas as outras casas foram marcadas da mesma forma.

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conotativos, não é isso o que acontece. Uma vez determinada a carga semântica pela

conotação dos nomes, serão os objetos que, de acordo com sua própria determinação

ontológica, de acordo com os atributos que positivamente possuem, quem se

adequam ou não ao nome. São os objetos que ‘vão até o nome’ e não o contrário. Um

nome conotativo determina por si só, ou seja, pela sua significação, que objetos

podem ou não ser ‘atribuídos’ a ele. Isso que acabamos de apontar, talvez mereça ser

analisado com mais cuidado (certamente em outro lugar) porque, ao que parece, ela

possui uma característica, em certo sentido, similar à maneira como funciona, na

lógica de predicados fregeana, a relação entre conceitos e objetos. Conceitos, em

Frege, são entidades insaturadas que precisam ser preenchidas por algum objeto para

que se estabeleça um sentido proposicional: conceitos são preenchidos por objetos.

Aqui, os nomes conotativos impõem critérios objetivos capazes de permitir que as

coisas do mundo sejam abarcadas pelo nome. O nome conotativo ‘contém’ na forma

de possibilidades todos as coisas que são aptas a serem por ele nomeadas, tal como o

conceito fregeano ‘contém’, a partir da generalidade que expressa, os objetos que

caem sob ele. Tal problema, no entanto, não será desenvolvido aqui; foi apresentado

somente enquanto uma hipótese a ser pesquisada futuramente.

A distinção entre nomes conotativos e não conotativos e, mais

especificamente, o conceito de conotação como associado à posse, por parte dos

objetos, de determinados atributos conotados, leva-nos a uma outra importante

distinção milliana com respeito aos nomes: nomes concretos e abstratos.

I.3.3. Nomes concretos a abstratos

Mill apresenta, no System of logic, a distinção entre nomes concretos e

abstratos antes de apresentar os nomes conotativos e não conotativos. No entanto,

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entendo que as razões que justificam a necessidade de se utilizar esta distinção estão

diretamente relacionadas à teoria da conotação. Por isso, creio que ficará mais clara

exposta neste momento.

Como apontamos, dentro do universo sistemático de Mill as categorias

morfológicas adjetivo e substantivo, bem como as categorias sintáticas sujeito e

predicado não determinam diferenças lógica ou ontologicamente relevantes quanto

àquilo que denotam. Por exemplo, na proposição “Sócrates é filósofo” não é caso de

que o nome “Sócrates” denote um determinado objeto e que o termo “filósofo”

denote um atributo que é predicado desse objeto na proposição. Tanto “Sócrates”

quanto “filósofo” denotam o mesmo objeto, são nomes de uma mesma coisa. Assim

sendo, torna-se necessário que haja uma classe de nomes que tenha por objetivo

denotar os atributos, aqueles que são conotados pelo nome conotativo. Nesse

sentido, Mill utilizará o termo “nome concreto” para referir-se aos nomes que

denotam objetos e “nome abstrato”, para referir-se aos atributos dos objetos44. Todos

os nomes conotativos, por conotarem atributos, devem possuir um ou mais nomes

abstratos que lhe sejam correspondentes. Por exemplo: o nome geral “branco”, como

vimos, denota todas as coisas que possuem um determinado atributo por ele

conotado, a saber, a brancura. Assim, “brancura” é o nome abstrato correspondente

ao nome geral conotativo “branco”; “brancura” é o nome do atributo conotado pelo

nome “branco”, denota aquilo que o outro conota. Alguns nomes conotativos, no

entanto, podem possuir vários nomes abstratos a eles relacionados. Isso, porque

existem nomes conotativos que conotam mais de um atributo: “racionalidade”,

“mortalidade”, “animalidade” são todos nomes abstratos relacionados aos nome geral

conotativo “homem”.

44 “A concret name is a name which stands for a thing; an abstract name is a name which stands for an attribute of a thing” (Mill. op. oit. I, ii, 4)

48

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Mill afirma estar recuperando o sentido medieval primitivo da expressão

“nome abstrato”45. Essa expressão teria perdido seu sentido original de referir-se a

nomes de atributos para ser utilizadas como sinônimo de “nome geral”. Tal fato se

deveu ao comprometimento quase que inevitável que a expressão “abstrato”, tão

metafisicamente ‘carregada’, manteve com a teoria da abstração. De acordo com isso,

nomes abstratos seriam nomes atribuídos àquilo que é obtido por meio da abstração;

por meio da desconsideração de todas as qualidades diferentes de determinados

objetos tomados em conjunto e a consideração de somente de alguma(s)

propriedade(s) que tenham em comum.

O que importa aqui, todavia, é salientar simplesmente que a teoria da

conotação e, mais precisamente, o fato de que os nomes conotativos denotam objetos

porque conotam propriedades desses objetos exige a estipulação de uma classe de

nomes que tenha como referência não os objetos mesmos, mas as propriedades,

aquilo que os nomes conotativos estabelecem como critérios objetivos para que os

objetos em geral devem obedecer para serem nomeados. Nomes abstratos denotam a

mesma classe de ‘entidades’ que os nomes conotativos conotam.

I.3.4. Nomes relativos e absolutos.

De acordo com Mill, nomes relativos são aqueles que não conotam uma

propriedade somente, mas conotam uma relação. Em outras palavras, é um nome

45“I have used the words concret and abstrac in the sense annexed to them by schoolmen, who, notwithstanding the imperfections of their philosophy, were unrivalled in the construction of thecnical language, and whose definitios, in logic a least, though they never went more than a little way into subject, have seldom, I think, been altered but to be spoiled”. (idem)

49

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conotativo que supõe não um, mas, pelo menos, dois objetos46. Por exemplo: o nome

relativo “pai” somente pode ser predicado a algum objeto desde que haja, e esteja

suposto, um outro elemento chamado filho. Portanto, não faz sentido dizer

simplesmente “fulano é pai”, mas é necessário que se diga “fulano é pai de beltrano”.

Há, certamente, uma série de problemas metafísicos envolvidos nesta

definição de nome relativo. Sobretudo pelo fato de Mill simplesmente afirmar que as

relações são atributos, embora atributos de um tipo especial. Trata-se, pois, de um

atributo que somente pode ser possuído por determinados objetos desde que suponha

outro(s) objeto(s) correlativos. São, portanto, atributos que não se podem identificar

simplesmente pela análise dos objetos individualmente:

Um nome é chamado relativo quando, além do objeto que denota, implica em sua significação a existência de outro objeto, o qual também recebe uma denominação a partir do mesmo fato do qual deriva o primeiro nome; ou melhor, em outros termos, um nome é relativo quando, sendo o nome de uma coisa, sua significação não pode ser explicada senão pela menção a outra coisa; ou seja, quando o nome não pode ser empregado num discurso com sentido a não ser que se expresse ou subentenda o nome de outra coisa. Estas definições são todas, em última instância, equivalentes, pois não são mais que maneiras de expressar de modo distinto esta única circunstância distintiva: que todos os demais atributos de um objeto poderiam sem contradição ser concebidos como existentes ainda quando jamais tivesse existido outro objeto, enquanto que aqueles seus atributos que são expressos por nomes relativos seriam, nesta suposição, eliminado 47

46 “Every relative name which is predicated of an object, supposes another object (or objects), of which we may prdicate either that same name or another relative name which is said to be the correelative of the former” (idem: I, ii, 7) 47 “A name, therefore, is said to be realtive, when, over and above the object which it denote, it implies in its significtion the existence of another object, also deriving a denomination from the same fact which is a ground of the fisrt name. Or (to express the same meaning in other words) a name is relative, when, being the name of one thing, its sighnifiction cannot be explained but by mentioning another. Or we may state it thus – when the name cannot be employed in discouse so as to have a meaning, unless the name of some other thing than what is is istself the name of be either expressed or understood. These definitions are all, at bottom, equivalent, being modes of variouly expressing this one distinctive

50

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Se atentarmos para o que já foi mencionado anteriormente acerca dos nomes

conotativos, de que ele possui uma estrutura sintática bastante peculiar na medida

em que não são propriamente atribuídos às coisas, mas que, ao contrário, são como

que ‘preenchidos’ pelos objetos que obedecem as determinações impostas pela carga

semântica determinada pela conotação dos nomes, podemos claramente ver aqui

que, no caso dos chamados nomes relativos, ocorre algo muito semelhante. Porém,

não se tratam mais de objetos nomeados, mas de pares de objetos correlativos. Ou

seja, um nome relativo é um nome conotativo e, portanto, criterial, mas cujo critério

estabelecido pela conotação para que os objetos sejam nomeados por esses nomes

devem, necessariamente, aparecer em forma de pares ordenados. Em resumo, um

nome relativo é, para Mill, um nome conotativo de ‘dois lugares’, que deve subsumir

dois objetos.

Foge aos nossos objetivos (ao menos no que se refere ao presente trabalho)

adentrarmos mais detidamente nos problemas referentes aos nomes relativos e ao

estatuto das relações em Mill. Mas como não se pretende aqui realizar uma

abordagem crítica da filosofia de Mill nesse particular, o que foi mencionado aqui

sobre as relações, por ora, é o bastante.

De acordo com o que exporemos a seguir, a teoria milliana da conotação foi

capaz de conter grandes e significativas novidades com relação à teoria do

significado, mesmo se mantendo fiel ao modelo proposicional aristotélico, baseado

nas categorias de sujeito e predicado. Apesar de uma sintaxe proposicional arcaica na

qual está inserida, a teoria da conotação foi capaz de promover importantes avanços

no que se refere à relação entre proposição e mundo. Por isso, a partir das próximas

circumstance – what every other attribute of an object might that one had ever existed; but those of this attributes which are expressed by realtive names, would on that supposition be swept away” (idem)

51

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páginas, o presente capítulo estará voltado a expor a maneira como Mill encara a

proposição, e sua relação com a teoria da conotação.

A seguir, abordaremos alguns importantes aspectos referentes ao conceito de

proposição em Mill.

I.4. Teoria da proposição de Mill

Mill dedica três capítulos do Livro I do System of logic ao tratamento das

proposições. O Capítulo IV fala das proposições em geral e dos tipos de proposições

existentes, o Capítulo V do significado das proposições, ou seja, determina aquilo que

as proposições propriamente dizem, e o Capítulo VI trata daquelas proposições que

Mill denomina de meramente verbais. Chega a ser irônico percebermos o que ocorre

quando analisamos o primeiro desses três capítulos com relação aos outros dois e os

comparamos aos desenvolvimentos futuros da lógica e da filosofia da linguagem: o

Capítulo IV apresenta concepções absolutamente arcaicas acerca das proposições, as

classificando nos termos da tradicional silogística aristotélica e excluindo qualquer

possibilidade da consideração de ‘proposições complexas’, cuja assunção está na base

daquilo que veio a se constituir no cálculo proposicional; já no capítulo V, aquele

que trata do significado das proposições, Mill propõe teses absolutamente

progressistas, iniciando movimentos que serão decisivos para as discussões lógicas e

semânticas da posteridade. E no capítulo VI, Mill estabelece aquela tese a partir da

qual a principal característica de sua epistemologia (a saber, a tese de que não existe

conhecimento real a priori) será extraída e fundamentada.

52

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I.4.1. Sobre as proposições em geral.

A classificação realizada por Mill em I.iv acerca das proposições não oferece

nada de significativamente importante com relação à tradição. Segundo sua

exposição, as proposições em geral são compostas por dois termos que se unem por

meio da cópula. Esta tendo a função, além de vincular os dois termos num único

sentido proposicional, de estabelecer se a relação existente entre os termos é inclusão

ou exclusão48.

A conclusão mais geral a que se chega ao analisar o significado das

proposições em geral é a tese de que toda proposição, sem exceção, estabelece uma

dessas seguintes coisas: existência, coexistência, sucessão, causação e semelhança49.

Uma vez que, as proposições, para Mill, estabelecem a relação entre duas ‘coisas’

(representadas pelos termos sujeito e predicado) o que se pode asserir com respeito a

essas duas coisas é uma das relações expostas acima.

Com relação à maneira como as proposições significam, Mill defende posições

absolutamente nominalistas em dois pontos chaves:

1) defende, que toda proposição estabelece, em seu significado, relações entre nomes;

assim, por exemplo, numa proposição S é P, não se afirma, de forma direta, que S

48 Certamente, os termos inclusão e exclusão relacionam-se a uma concepção lógico-semântica – criticada inclusive por Mill no capítulo V – de que todo trabalho significativo da lógica consiste na classificação, ou seja, na atribuição de elementos à classes ou mesmo de classes à classes. O mais correto, com relação a Mill é afirmar que, no caso da proposição afirmativa, o predicado é afirmado do sujeito e, no caso da negativa, é negado. 49 “Existence, Coexistence, Sequence, Causation, Resemblance: one or other of these is asserted (or denied) in every proposition wich is not merely verbal” (idem: I, v, 6)

53

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possui a propriedade P, mas, ao invés disso, que aquilo que é nomeado por S é

também nomeado por P.50

2) com relação aos universais, defende explicita e insistentemente que aquilo que

constitui uma classe é, unicamente, um nome comum a todos os membros da classe;

ou seja, que uma determinada coisa pertence a uma determinada classe porque

possui determinado nome e não que uma determinada coisa possua determinado

nome pelo fato de pertencer a uma determinada classe51.

Apesar desse nominalismo que salta aos olhos quando analisamos as teorias

millianas com respeito aos nomes e às proposições, veremos um pouco mais adiante

que esse mesmo nominalismo manifesto no nível das proposições, assume ares

extremamente peculiares quando conjugado à teoria da conotação. A maneira como

os nomes conotativos referem-se aos seus objetos, num certo sentido, irá dotar de

uma abrangência ontológica realista aquilo que, no nível da proposição, se dá

simplesmente no nível dos nomes. Em I.4.3. trataremos dessa questão de forma um

tanto mais detida. Antes disso, porém, abordaremos o tratamento dado por Mill às

proposições complexas.

I.4.2. Proposições complexas

Após haver oferecido uma espécie de classificação das proposições com

respeito à qualidade (afirmativa ou negativa) e estabelecido o papel da cópula nesse

50 “Now the first glance at a proposition shows that it is formed by putting together two names” (idem. I, i, 2) 51 “It is not unusual, by way of explaning what is meant by a general name, to say that it is the name of a class. But this, though a convenient mode of expression for some purposes, is objectionable as a definiton, since it explains the clearer of two things by the more obscure. I would be more logical to reverse the proposition, and turn it into definition of the word class: ‘A class is the indefinite multitude of individuals denotede by a general name” (idem: I, ii, 3)

54

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processo, bem como sua função temporal (é, foi, será...), Mill distingue as

proposições em hipotéticas e categóricas. Mas, em seguida, trata de esvaziar esta

distinção ao declarar não haver, de fato, proposições complexas e que as chamadas

proposições hipotéticas, em última análise, podem ser reduzidas à forma categórica.

Na realidade, Mill não considera que as partículas “e”, “ou”, “se...então”, como

conectivos lógicos, condição para a consideração das chamadas proposições

moleculares, e, para cada uma dessas três partículas ele fornece uma explicação em

termos distintos.

Em primeiro lugar, “e”, no caso da conjunção, nada mais é do que um artifício

estilístico utilizado para abreviar duas ou várias proposições numa expressão mais

sucinta52: assim, quando se diz “João e Maria são estudantes” são afirmadas, em

realidade, duas coisas: João é estudante e Maria é estudante. Até aqui, parece não

haver muitas diferenças entre o que preconiza a lógica proposicional. Mas deve ser

apontado que, de acordo com o ponto de vista milliano, não se pode perguntar pela

verdade ou falsidade de “João e Maria são estudantes” como um todo, pois ele não

reconhece a função lógica da partícula “e”. É necessário, pois, que se considerem as

proposições em separado e se atribuam os valores de verdade em separado. No caso

de João ser estudante e Maria não o ser, deve-se considerar uma proposição

verdadeira e a outra falsa, mas não a falsidade da proposição como um todo.

52 “At first sight this division (simple and complexes propositions) has the air of an absurdity; a solemn distction of things into one and more than one; as is we to divide horses into single horses and teams of horses. And it is true that what is called a complex (or compound) proposition is often not a proposition at all, but several propositions, held together by a conjunction. Such, for example, is this: Caesar is dead, and Brutus is alive: or even this, Caesar is dead, but Brutus is alive. There are here two distinct assertions; and we might as well call a street a complex house, as these two proposition a complex proposition. It is true that the syncategorematic words and and but have a meaning; but that meaning is so far from making the two propositons one, that it adds a third proposition to them. All particles are abbreviations, and generally abreviation of propositions” (idem: I, iv, 3)

55

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Com relação à disjunção e ao condicional, o tratamento dado no System of

logic é um tanto diferente. Seguindo a tradição silogística, Mill considera ambos os

casos como proposições hipotéticas. O primeiro passo nesse sentido consiste em

assimilar as proposições disjuntivas à forma condicional. O raciocínio é o seguinte:

na proposição “A ou B” o sentido oculto que deve ser clarificado é a condicionalidade

da asserção; “A ou B” significaria, assim, “Se A então não B e se B então não A”.53

Temos, então, duas condicionais (des)vinculadas pela partícula “e”, já explicada

acima. Como é possível perceber, Mill considera, diferentemente do que ocorre no

cálculo proposicional, somente a disjunção exclusiva. Se considerasse a disjunção

inclusiva, certamente, não seria possível tal redução, ao menos da forma como

realiza.

Falta ainda um passo a ser dado. Reduziu-se a disjunção à forma condicional.

No entanto, uma proposição condicional ainda contém, ao menos em princípio, duas

proposições como partes constitutivas; usando a terminologia técnica moderna, o

antecedente e o conseqüente. A resposta de Mill parte da suposição de que

proposições hipotéticas constituem, de acordo com o ponto de vista adotado, uma

espécie bastante diferente de proposições categóricas. Isso, porque as proposições

hipotéticas não falam nada acerca do mundo, mas somente acerca das próprias

proposições. O raciocínio adotado é mais ou menos o seguinte: Quando se afirma “Se

A então B”, não se afirma absolutamente a verdade ou falsidade nem de A nem de B.

O que se estabelece é uma relação de dependência lógica entre A e B; ou seja, se A

for verdadeira então B também o será. Assim, a tradução necessária para se

identificar a verdadeira forma lógica de uma proposição condicional deve ser a

53“...the disjunctive form is resolvable into the conditional; every disjunctive propositions being equivalent to two or more conditional ones. ‘Either A is B or C is D’, means, ‘if is not B, C is D; and if C is not D, A is B’. All hypothetical propositions, therefore, though disjunctive in form, are conditional in meaning; and the words hypothetical and conditional may be, as indeed they generally are, used synonymously” (idem)

56

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seguinte: “Se A então B” significa “B é uma conseqüência de A”54. Neste caso, o

sujeito da proposição como um todo é, por sua vez, uma proposição, o conseqüente

do condicional, e o predicado é a propriedade que possui essa proposição de ser

inferida a partir do antecedente. Nesse sentido, de acordo com Mill, a complexidade

das proposições é um fenômeno apenas aparente; aparência essa que deve ser

eliminada pela análise lógica da linguagem.

Mas adiante, em I.4.4, trataremos de uma classe de proposições extremamente

importante dentro da arquitetura do sistema milliano: as proposições meramente

verbais. Tais proposições, conforme veremos, são aquelas que não nos informam

nada acerca do mundo efetivamente, mas tem por objeto a própria linguagem: é a

linguagem referindo-se a si mesma. Embora ainda falaremos sobre essas proposições

verbais, vale apontar, no presente momento, que as proposições ‘condicionais’, aos

olhos de Mill, possuem exatamente este estatuto. Ora, a proposição “se João é

paulista então João é brasileiro” não diz, de acordo com a leitura milliana, nem que

João é brasileiro nem que João é paulista; aliás, nada diz com relação a João. Afirma

que a proposição “João é brasileiro” é uma conseqüência da proposição “João é

paulista”. Portanto, fala simplesmente de uma relação de dependência lógica

existente entre duas proposições. Fala das proposições e não do mundo real: é, pois,

uma proposição meramente verbal que tem por objeto a própria linguagem. O

Objeto do discurso numa proposição condicional é o universo lingüístico

intermediário entre a subjetividade psicológica e a objetividade física do qual

falaremos a seguir.

54 “The subject and predicate, therefore, of an hypothetical proposition are names of propositions. The subject is some one proposition. The predicate is general realtive name aplicable to propositions; oh this form – ‘an inference from so and so.’ A fresh instance is here afforded of the remark, that particles are abbreviations; since ‘If A is B, C is D,’ is found to be an abbreviation of the following: ‘The proposition C is D, is a legitimate inference from the proposition A is B’” (idem)

57

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Mill oferece também uma classificação das proposições com respeito à

quantidade, dividindo-as em universais, particulares e singulares. Segue mantendo,

contudo, o mesmo sistema quantificacional aristotélico.

I.4.3. Predicação e nomeação

Citando Hobbes, Mill estabelece que toda proposição verdadeira possui uma

característica comum, a saber, que nela, aquilo de cujo termo sujeito é um nome, o

termo predicado também o é55. Quando se diz, assim, “todo homem é mortal”, o que

se quer afirmar é que as coisas que são nomeadas pelo termo “homem” são todas, sem

exceção, nomeadas pelo termo “mortal”. Se isso de fato ocorre, a proposição é

verdadeira. De acordo com seu ponto de vista, não há dúvida de que essa definição

de proposição verdadeira é absolutamente aplicável a qualquer tipo de proposição

(desde que seja verdadeira, certamente). Entretanto, o problema apontado com

relação ao nominalismo está em que, mesmo sendo esta uma característica de todas

as proposições, a definição acima não esgota tudo o que, de fato, as proposições em

geral significam. Todas as proposições estabelecem uma relação entre nomes e coisas

nomeadas, e sobre isso não há dúvidas. Porém, somente algumas poucas proposições

têm seu significado esgotado por essa fórmula nominalista, a saber, aquelas em que

tanto o termo sujeito quanto o predicado são nomes próprios56 - sem significação, de

55 “In every proposition (say he [Hobbes]) what is signified is, the belief of the speaker that the predicate is a name of the same thing of which the subject is a name; and if really is so, the propositon is true. Thus the proposition, All men are living being (he would say) is true, because living being is a name of everything of which man is a name. All men are six feet hight, is not true, because six feet hight is not a name of everything (though it is of some things) of which man is a name”(idem: I. V, 2) 56 “The only propositions of which Hobbes’ principle is a suficient account, are that limited and unimportant class in which both the predicate and the subject are proper names” (idem)

58

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acordo com os pressupostos millianos57. Quando se diz, por exemplo, que Edson

Arantes do Nascimento é Pelé, está sendo estabelecida uma relação de identidade

entre os objetos (ou melhor, o objeto) nomeados pelos termos sujeito e predicado; e

esta proposição não afirma nada além disso, uma vez que, por serem ambos os termos

nomes próprios, a relação de significatividade mantida entre os nomes e a coisa é

arbitrária e artificial, não havendo nenhum outro tipo de ‘processo semântico’

envolvido nas nomeações que protagonizam tal proposição.

No entanto, no caso em que um ou os dois termos são nomes conotativos, a

fórmula nominalista não é suficiente. Isso, porque a significação dessas proposições

se dá, podemos dizer, em duas etapas: uma no nível da proposição (e aí o esquema

nominalista vale sem exceção) e outra no nível dos nomes. A conseqüência disso é a

constatação de que existe, por assim dizer, um sentido implícito nas proposições que

não é aquele que transparece de forma direta e imediata no enunciado proposicional.

Ou seja, o verdadeiro sentido de uma proposição composta por nomes conotativos

deve ser obtido por meio de uma certa retradução daquilo que o enunciado expõe de

maneira direta. Como já foi mencionado anteriormente, no universo milliano

proposições estabelecem relações entre nomes; porém, os nomes referem-se às

coisas, e isso em virtude de sua conotação. Por exemplo: a proposição “Sócrates é

filósofo” afirma que o objeto denotado pelo nome “Sócrates” é também denotado

pelo nome “filósofo”; como esse é realmente o caso, a proposição é verdadeira.

Porém, a maneira como o nome “filósofo” refere-se ao seu objeto na proposição é

muito diferente da maneira pela qual o nome “Sócrates” o faz. O nome “filósofo”

refere-se a Sócrates porque Sócrates possui as propriedades por ele conotadas. Desta

forma, o verdadeiro sentido da proposição “Sócrates é filósofo” não se esgota pela

fórmula nominalista. A proposição afirma, certamente, que “Sócrates” e “filósofo” são

57 Ver: I.3.2.

59

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nomes do mesmo objeto; mas não afirma só isso. Dizer que o objeto denotado por

“Sócrates” é denotado também por “filósofo” equivale a dizer algo como o seguinte: o

objeto denotado por “Sócrates” possui todos os atributos conotados pelo nome

“filósofo”. Ou seja, uma propriedade é atribuída positivamente a Sócrates, e não

apenas um nome. O nominalismo manifesto no nível da proposição transforma-se,

em certo sentido, numa espécie de realismo no nível dos nomes. Proposições

atribuem nomes, mas os nomes atribuem propriedades reais às coisas. Por isso as

proposições, em última instância, falam das coisas, e este é o sentido oculto que deve

ser identificado nas proposições.

Certamente, as considerações realizadas acima estão longe de serem

definitivas ou de terem esgotado os problemas referentes à relação entre o conteúdo

semântico da proposição com o conteúdo semântico dos nomes que a compõem. Mas

vale salientar mais uma vez que a velha e insuficiente sintaxe proposicional

aristotélica, conjugada a uma semântica progressista representada pela teoria da

conotação, fornece conseqüências inusitadas. A teoria da conotação, dada à novidade

que estabeleceu, mostra-se avançada em demasia com relação a algumas posturas

arcaicas defendidas por Mill. Embora o próprio Mill não tenha se dado conta disso, é

importante notarmos que seus movimentos ao menos foram responsáveis por

tornarem explícitas algumas deficiências da tradição que vieram a ser superadas

futuramente. Conforme acredito, a necessidade de ser identificado um ‘sentido

oculto, nas proposições – tanto no que se refere à sua estrutura sintática, no caso das

proposições complexas, quanto com relação à sua abrangência semântica, como

vimos na presente seção – demonstra que Mill está notando, ao seu modo, a

necessidade de movimentos teóricos inovadores com relação á lógica de seu tempo.

E, certamente, uma das passagens mais importantes, não só da lógica e da semântica

60

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millianas, mas de toda sua filosofia, é a distinção entre proposições reais e

proposições meramente verbais, que veremos a seguir.

I.4.4. Proposições meramente verbais

Talvez a principal tese que o System of logic busca estabelecer é aquela que

afirma que nenhum conhecimento real é a priori; portanto, as chamadas ciências

dedutivas, como a lógica e a matemática, uma vez que, de acordo com Mill,

produzem conhecimentos reais, têm origem empírica. Esta tese é uma conseqüência

quase que natural da distinção por ele realizada entre proposições reais e proposições

meramente verbais. As primeiras falam sobre o mundo, as segundas sobre o

significado dos nomes; ou seja, operam exclusivamente no âmbito da linguagem; nas

primeiras, conhecimentos novos acerca do mundo são fornecidos, nas segundas nada

de além do que o conteúdo semântico dos nomes (i. e. as propriedades conotadas

pelo nome) é explicitado.

O ponto de partida da argumentação milliana é a consideração das chamadas

proposições essenciais, presentes há séculos no vocabulário filosófico desde, pelo

menos, Aristóteles. Tais proposições têm sua fundamentação a partir da célebre e

histórica distinção entre predicados acidentais e predicados essenciais. Os primeiros

são aqueles predicados que não estabelecem a natureza essencial de um determinado

gênero; por isso mesmo, um elemento qualquer de um determinado gênero pode

possuir ou não possuir um desses predicados sem prejuízo de sua essencialidade, sem

deixar de pertencer ao seu gênero. Os segundos são aqueles que fazem parte dessa

natureza íntima; portanto, não se poderia conceber um indivíduo desse gênero sem

algum dos predicados essenciais; os predicados essenciais estariam intimamente

ligados à constituição ontológica mais íntima de cada indivíduo pertencente às

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classes impostas por tais predicados. Por exemplo: a proposição “o homem é

brasileiro” afirma uma propriedade acidental do sujeito “homem”, pois é uma mera

contingência o fato de o homem em questão ter nascido no Brasil; seria

perfeitamente possível concebe-lo como tendo outra nacionalidade sem que seja

inviabilizada sua humanidade essencial. Por outro lado, a proposição “o homem é

racional” afirma uma propriedade que possui uma característica bastante diferente

do anterior. Pelo seguinte motivo: podemos conceber um homem sem a

nacionalidade brasileira, mas o podemos, assim acreditavam, sem a racionalidade.

Portanto, a racionalidade seria um predicado dito essencial, na medida em que faz

parte da essência humana.

Seguindo o caminho de Locke58, e na esteira da tradição nominalista, Mill

nega a existência de ‘essências de classes’, de essências gerais. E, tal como Locke,

considera essas supostas essências gerais como simplesmente nominais, existindo

somente no nível da linguagem. No entanto, Locke tinha à sua disposição uma teoria

da linguagem fundamentada na psicologia. Portanto, aquilo que ele denomina

essência nominal nada mais são do que entidades psicológicas, frutos do processo

subjetivo da abstração. Portanto, a expressão “essência nominal”, em Locke, somente

se justifica porque lá os nomes gerais são estabelecidos por meio de processos

psicológicos, uma vez que são nomes de idéias gerais. Mas, acredito, não fosse por

esse peculiar papel da linguagem no sistema lockeano, o mais apropriado seria

chamarmos as essências nominais de Locke de essências psicológicas, ou essências

mentais. Mill, diante do problema das essências e dos predicados essenciais, coloca as

coisas em outros termos; substitui efetivamente boa parte dos elementos psicológicos

envolvidos no sistema lockeano por elementos semânticos, a partir de sua teoria da

conotação. Por isso, em Mill, a distinção entre real e nominal (ou verbal) é muito

58 Ver: II.3.

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mais profícua e controvertida do que em Locke. Em Locke, uma proposição frívola

nada mais exporá do que os resultados dos processos subjetivos de abstração, ou seja,

as idéias menos gerais que estão contidas nas idéias mais gerais. Assim, por exemplo,

a proposição “Todo homem é mortal” afirmaria simplesmente que a idéia geral

representada pela expressão “homem” é subsumida pela idéia mais geral expressa

pela expressão “mortal”. E, por isso mesmo, a idéia geral expressa por “mortal” faz

parte da definição nominal da idéia geral expressa por “homem” . Em Mill, dada sua

semântica não psicológica, o esquema permanece o mesmo, mas as conseqüências

serão bem diferentes.

Em sua exposição, Mill aponta a seguinte constatação: seguindo o exemplo

oferecido mais acima, podemos conceber um ser humano que não seja brasileiro, mas

não podemos concebe-lo sem ser racional. Coloca-se, então, a pergunta: será que

realmente não podemos conceber um ser que possua todas as chamadas qualidades

essenciais que constituem a humanidade, menos uma: a racionalidade? A resposta

milliana é: sim, podemos. Entretanto, se acaso vier a existir esse ser que facilmente

podemos conceber, a única coisa que não estaríamos autorizados a fazer é chamá-lo

de “homem”59. Ou, utilizando outra expressão, não poderíamos classifica-lo entre os

homens. Ora, mas a classe, como já fora insistentemente apontado, dentro do

universo nominalista no qual estamos transitando, nada mais é do que o conjunto de

indivíduos nomeados por um mesmo nome geral. E, de acordo com Mill, o que

determina a significação dos nomes gerais, e, portanto, o que fundamenta uma

suposta classe, é a conotação dos nomes. Logo, quando se afirma “o homem é mortal”

59 “They are said, truly, that man cannot be conceived without rationality. But though man cannot, a being may be conceived exactly like a man in all points except that one quality, and those others which are the conditions that man cannot be conceives without rationality, is only, that if he had not rationality, he would not be reputed a man. There is no impossibility in conceiving the thing, nor, for aught we know, in its existing; the impossibility is in the conventions of language, which will not allow the thing, even if it exist, to be called by name which is reserved for rational beings” (idem: I, vi, 2)

63

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não se está afirmando nada com relação à essência geral da humanidade, pois ela é

negada, nem da relação entre idéias mais e menos gerais, como em Locke, mas tão

somente da conotação dos nomes. E como o significado dos nomes resume-se,

segundo Mill, àquilo que eles conotam, as supostas proposições essenciais nada mais

são do que proposições meramente verbais, que só nos informam acerca do

significado das palavras, dos atributos conotados pelo nome. Nesse sentido, afirmar

“o homem é mortal” significa simplesmente afirmar que o atributo mortal é

conotado pelo nome homem. Estaríamos, neste caso, transitando no universo da

linguagem e da semântica. Essas proposições não nos falam nada acerca de essências

reais; portanto, não pertencem à ontologia. Também não falam nada acerca de idéias

gerais abrangidas umas por outras; portanto, não pertencem à psicologia. Falam, pois,

da carga semântica dos nomes, das propriedades objetivas conotadas pelos nomes

conotativos. É a linguagem falando dela mesma.

De acordo com Mill, as únicas proposições verdadeiramente a priori são as

meramente verbais. E essas, dada sua natureza, não são instrutivas, não aumentam

nosso conhecimento acerca do mundo60 e, portanto, são somente indiretamente úteis

à ciência. Kneale & Kneale, com relação à essa posição milliana, têm uma opinião

bastante interessante: se as proposições meramente verbais nos informam acerca do

significado dos nomes, se versam sobre a carga significativa dos termos da

linguagem, então não é certo toma-las por inócuas ou frívolas. Ao contrário, elas são

instrutivas e aumentam nosso conhecimento61. Certamente, tal conclusão não é 60 A proposition of this sort [merely verbal], however, conveys no informations to any one who previouly understood the whole meaning of the terms. The propositions, Every man is a corporal being, Every man is a living creature, Every man is rational, convey no knowledge to any one who was already aware of the entire meaning of the word man, for the meaning of the word includes all this: and that every man has the attributes connoted by all these predictes, is already asserted when he is called a man. Now, of this nature are all the propositions which have been called essential. They are, in fact, identical propositions” (idem) 61 “É óbvio que as proposições verbais são aquelas que Locke chamou de frívolas e Kant analíticas, mas a designação ‘verbal’ e a sugestão de que podem dar informação acerca dos nomes introduzem,

64

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incorreta. De fato, aprendemos algo, aumentamos nosso conhecimento quando nos

esclarecemos com respeito ao significado dos termos da linguagem. Mas é, contudo,

bastante compreensível a postura de Mill em favor da frivolidade das proposições

verbais. E isso tem a ver com o empirismo radical e preconceituoso de nosso autor. A

militância empirista de Mill não o permitiu perceber o quão profícua para a filosofia

foi a introdução de um universo conceitual alternativo à velha dicotomia

sujeito/objeto. Como bem notou Frege62, o radical empirismo de Stuart Mill o levou

a pender toda sua filosofia para o lado do mundo exterior. Mill acertou ao

desvalorizar o universo psicológico na fundamentação do conhecimento e da

objetividade do discurso, mas pecou, na mesma medida, por supervalorizar o mundo

exterior acessível pela observação empírica. Faltou a ele ter enxergado uma terceira

via. Ou melhor: não faltou, pois esta terceira via está presente em seu pensamento; é

o reino da linguagem e da semântica. Nosso autor, porém, graças ao seu empirismo

tão radical quanto inconseqüente, não teve olhos para explorar todas as

possibilidades de sua teoria. Voltaremos a esse assunto nos dois capítulos seguintes.

I.5. Conclusão do capítulo

O capítulo que aqui se encerra possui, dentro da arquitetura do presente

trabalho, o objetivo de conter alguns conceitos com os quais trabalharemos nos dois

capítulos seguintes. Trata-se, pois, de um capítulo introdutório destinado a infelizmente, uma confusão. Se a forma de palavras ‘O homem é mortal’ é na verdade alguma vez usada para dar informação acerca do sentido das palavras ‘homem’ e ‘racional’ então a proposição que esta forma de palavras exprime não é nem analítica nem frívola, mas sintética e informativa ou, na linguagem de Mill, é uma proposição real, porque as palavras, ‘homem’ e ‘racional’ em certo sentido são coisas e o fato de as usarmos tal como as usamos é contingente” (Kneale, W & Kneale, M.: “O desenvolvimento da lógica”, trad. M. S. Lourenço. Pg. 380) 62 Trataremos da posição fregeana frente ao empirismo de Mill no Capítulo III

65

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apresentar algumas premissas para muitos dos argumentos que se seguirão. Por isso,

podemos estabelecer que, ao contrário dos dois capítulos que se seguirão, este

primeiro capítulo muito mais expositivo do que propriamente propositivo. Alguns

pontos que serão discutidos nas paginas que se seguirão foram mencionados, mas tão

somente de modo a esclarecer e apontar para onde estarão dirigidas nossas

considerações nos capítulos seguintes..

Do que foi apresentado aqui, alguns tópicos devem ser salientados, por

tratrem-se, ao menos nossos propósitos específicos, das teses millianas mais

significativas para as discussões lógico-semânticas que buscaremos explorar a seguir.

São elas:

a) tese de a lógica possui duas faces, uma científica na qual os processos psíquicos

envolvidos no ato do raciocínio são analisados e outra artística que se constitui

num instrumento normativo capaz de orientar os raciocínios corretamente e

justificar por meio de razões (embora, ‘razões’, aqui, deva ser entendido num

sentido bastante peculiar, graças à natureza, segundo Mill, empírica das regras

formais do raciocínio) a adequação das conclusões extraídas a partir de

determinadas premissas dadas;

b) a tese de a significatividade dos nomes se estabelece através da carga semântica

que eles expressam por meio de sua conotação, o que substitui, com relação ao

modelo nominalista-psicológico (conceitualista, como veremos a seguir),

elementos psíquicos por conteúdos objetivos no processo de significação;

c) a tese de que as únicas proposições verdadeiramente a priori são as proposições

meramente verbais, aquelas que se destinam simplesmente a estabelecer o

significado dos nomes conotativos, e que, portanto, nada nos informam sobre o

mundo real, mas tratam do universo da linguagem.

66

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No bloco seguinte será exposta a crítica milliana ao conceitualismo, ou seja, à

tese de que os significados dos termos da linguagem são entidades mentais. De

acordo com nossa hipótese, tal crítica possui uma importância sistemática

fundamental, tanto para a organicidade interna do sistema milliano, quanto para os

desenvolvimentos futuros da reflexão filosófica acerca da linguagem e sua

objetividade.

67

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Capítulo - II

Refutação do conceitualismo

Será aqui apresentada a crítica milliana à tese, corrente na filosofia britânica moderna e cristalizada no Essay concerning human understanding de John Locke, de que os nomes referem-se a entidades mentais e não às coisas mesmas. De acordo com nossa hipótese, a refutação dessa tese representou um importante movimento em favor dos esforços antipsicologistas do final do século XIX. Serão levantadas algumas hipóteses com respeito à natureza do objeto da crença, a partir dos supostos lógicos, semânticos e epistemológicos de Stuart Mill.

68

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II.1. Preliminares

Numa das principais passagens do System of logic, e que para os nossos

propósitos possui uma importância fundamental, Stuart Mill refuta aquilo que ele

denomina conceitualismo; mais precisamente, ele derruba a tese (que segundo nossa

hipótese, é um dos alicerces do psicologismo lógico) de que o significado das palavras

são idéias, entidades puramente psicológicas. Rompe, assim, com a tradição

psicologizante representada, sobretudo, pela teoria das idéias de John Locke. Se

aceitarmos, como já fora sugerido no capítulo anterior, que uma das principais

características da filosofia moderna foi seu caráter prioritariamente idealista e

subjetivista, e que o advento daquilo que se acostumou chamar de filosofia

contemporânea foi determinado pela necessidade de se superar um tal modelo

filosófico em favor de uma postura que busca fundamentar a objetividade do

conhecimento a partir de categorias lógico-semânticas, então, certamente, teremos

que situar a crítica milliana ao conceitualismo como um dos marcos importantes

dessa virada histórica. Como foi sugerido no capítulo anterior, seguindo a leitura de

Dummet63, foi necessário, em certo sentido, que a filosofia, para superar um modelo

filosófico já agonizante representado pelas diversas formas de idealismo que

marcaram o pensamento moderno, efetuasse algo como um passo atrás, na medida

em que retorna um ponto de vista que, em muitos aspectos, remonta à tradição

escolástica: colocar a lógica e a semântica como prioritárias com relação à

epistemologia. Numa importante passagem do An Examination of Sir William

Hamilton’s philosophy Mill parece apontar claramente para essa necessidade: ao

analisar as diversas teorias acerca do significado das palavras, mais especificamente

63 ver I.2.2.

69

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com relação ao problema dos universais, Mill aponta o surgimento de uma escola

alternativa ao realismo e ao nominalismo, a saber, o conceitualismo64. O

conceitualismo é uma espécie de nominalismo, posição clássica entre os medievais,

contaminado pelo espírito subjetivista moderno. E a crítica implacável a esse

modelo, que exporemos a seguir, sugere claramente a repulsa, por parte Mill, a esse

espírito subjetivista tipicamente moderno, e particularmente presente na filosofia de

Locke65. Antes, porém, de analisarmos o teor da crítica milliana ao modelo

semântico conceitualista, convém uma breve apresentação desse modelo em sua

roupagem clássica, a saber, no contexto da teoria das idéias de Locke.

II.2. Hobbes e Locke

Dado que nosso objetivo é identificar, no System of logic, elementos que

possam endossar nossa hipótese de que a virada lingüística da história da filosofia

teve uma influência direta e decisiva de John Stuart Mill, e como, ainda de acordo

com nossos pressupostos, essa virada lingüística foi marcada, senão exclusivamente,

mas certamente de forma decisiva, pela superação do modelo semântico chamado

por Mill de conceitualista, dedicaremos as próximas seções à apresentação desse

64 “A third doctrine arose, which endevoured to steer between the Two (realism and nominalism). According to this, wich know by name od Conceptualism, generality is not an attribute solely of names, but also of thoughts.” (Mill, A Examination..., XVII, pg. 302) 65 Vale salientar aqui que, ao contrário do fez no System of logic, onde assimila a tese conceitualista a Hobbes, na passagem da A examination... mencionada acima, Mill menciona Locke quando se refere ao conceitualismo: “... External objects ideed are all individual, bu to every general name correspond a General Notion, or Conception, called by Locke (Essay, II, xxxii, 6-8) and others an Abstract Idea. General Names are names of Abstract Idea” (idem). Essa constatação será importante para próxima seção deste capítulo, na qual buscaremos demonstrar que, embora Mill tenha se dirigido a Hobbes em sua crítica ao conceitualismo no System of logic, o mais importante de tudo serão os estragos que tal crítica causará com relação ao modelo semântico-psicológico representado pela filosofia de Locke.

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modelo semântico. E para isso, tomaremos o livro III dos Essay concerning human

understanding de John Locke como referência direta.

Antes, porém, de ser iniciada propriamente tal apresentação, faz-se

necessários alguns esclarecimentos acerca de uma opção sistemática que foi aqui

adotada. A pergunta que será colocada agora busca esclarecer um ponto, no mínimo,

intrigante do System of logic: por que Mill, ao refutar a tese conceitualista, ou seja, a

tese de que os nomes referem-se a idéias e não às coisas mesmas, dialoga diretamente

com Hobbes e seu Computation ou logic e não com Locke, que foi aquele que

forneceu um modelo psicológico-nominalista mais acabado e elaborado no Livro III

dos Essay concerning human understanding? No parágrafo 1 do Capítulo II do

primeiro livro do System of logic, Mill cita uma passagem do Computation or logic

de Hobbes e dirige seus argumentos contra esse autor. O objetivo dessa seção é, pois,

esclarecer a seguinte questão referente à organicidade interna do presente trabalho:

se Mill dirige-se a Hobbes, por que a abordagem adotada aqui partirá da relação

entre as teses de Mill contrapostas às de Locke?

A resposta é simples, embora não seja em nenhuma medida óbvia: o fato é

que, ao menos nos pontos que nos interessam particularmente, a teoria da

significação e, mais importante que isso, a concepção acerca da função da linguagem

no conjunto das atividades humanas, não se modifica de um autor para o outro.

Locke mantém as mesmas teses e os mesmos pressupostos sistemáticos de Hobbes, ao

menos nos pontos em que Mill dirigirá diretamente suas críticas. Em outras palavras,

o que Mill diz com respeito a Hobbes valerá também para Locke. E isso justifica o

fato de Mill ter se dirigido ao primeiro e não ao segundo. Talvez por uma questão de

justiça: se Locke seguiu os passos de Hobbes neste particular, deve-se reportar ao

primeiro e não ao segundo. Mas não resta dúvidas, e creio que isso ficará bastante

claro nas páginas seguintes, que a crítica ao conceitualismo direciona-se clara e

71

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certamente ao modelo lockeano também e prioritariamente. Nos pontos, porém, em

que Locke efetivamente promove algum tipo de adição ou inovação com relação ao

seu antecessor, como no caso, por exemplo, da crítica que fará ao conceito lockeano

de essência real em oposição à nominal, aí sim o interlocutor direto de Mill será

Locke. Mas nos pontos em que existe uma equivalência de teorias e pontos de vista,

Mill se reportará ao primeiro. Nesse sentido, uma vez que nosso objetivo não é o de

simplesmente abordar as teses do System of logic isoladamente ou a polêmica

específica entre Mill e Hobbes, mas referi-las aos desdobramentos futuros das

filosofias da lógica e da linguagem; e dado que Locke, e não propriamente Hobbes,

foi talvez quem exerceu maior influência ao modelo semântico-psicológico que será

combatido por Mill, creio que a referência direta à qual devemos contrapor a crítica

milliana ao conceitualismo seja a teoria das idéias de Locke, e não os rudimentos

desse modelo contidos no Computation ou logic de Hobbes. Portanto, são razões

sistemáticas e histórico-interpretativas que justificam a contraposição de Mill a

Locke nesse particular. Foi Locke o grande influenciador de toda uma escola de

pensamento calcada num subjetivismo psicoligizante e que desembocou claramente

naquilo que alguns autores do século XIX chamarão de psicologismo. Por isso, Locke

nos interessa especificamente.

De acordo com a visão esquemática que estamos propondo no presente

trabalho, podemos identificar algumas obras (ou pedaços de obras) clássicas que

determinam claramente os estágios de desenvolvimento da filosofia da linguagem -

mais especificamente, teorias acerca da proposição e do fundamento da unidade de

seu sentido - entre a modernidade e a contemporaneidade: 1) o Livro III do Essay de

Locke; 2) o Livro I do System de Mill; 3) os Grundlagen de Frege e 4) o Tractatus de

Wittgeinstein. No Essay de Locke, o significado dos termos são idéias e, portanto, a

unidade do sentido proposicional se estabelece no reino da subjetividade psicológica.

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No Livro I do System, Mill rompe com a tese conceitualista de que os significado dos

nomes são entidades mentais e postula a existência de um universo genuinamente

semântico, constituído pela carga significativa dos nomes conotativos; e a unidade da

proposição se constituirá justamente neste universo lingüístico alternativo à

subjetividade psicológica e à objetividade física. Frege postulará a existência de um

terceiro reino, o reino da racionalidade e da objetividade não real; postulará a

unidade prioritária da proposição e sua anterioridade com relação às suas partes.

Wittgenstein, por sua vez, postulará a ‘organização lógica’ do mundo na forma de

fatos e estabelecerá que a unidade da proposição se dá por conta dela ser uma

figuração lógica dos fatos do mundo e compartilhar com eles a mesma forma lógica.

Podemos, acredito, a partir dessa breve explanação, identificar, se não uma

‘evolução’, ao menos uma linha de (des)continuidade, um ‘movimento’ que leva o

fundamento da unidade da proposição do sujeito lockeno ao universo lingüístico de

Mill; deste, ao terceiro reino fregeano, até ser dissolvido pela teoria da figuração do

Tractatus. Ora, se estivermos certos em traçar esse caminho histórico-esquemático,

isso justificar nossa preocupação prioritária com o Livro III do Essay de Locke. É nele

que se cristaliza o modelo semântico-psicológico que Mill se apressará em derrubar.

Além disso, como veremos mais adiante, deve se apontada a relação intrínseca

entre a teoria das idéias lockeana e o psicologismo lógico que, num certo sentido, é

um dos objetos de nossa investigação. Uma teoria semântica como a de Locke, que

afirma serem o significados das palavras entidades puramente mentais, conjugada

com uma sintaxe lógica aos moldes aristotélicos, no qual a proposição estabelece uma

relação entre dois termos representados pelo sujeito e pelo predicado, implica

necessariamente numa concepção de Lógica como tratando de leis psicológicas de

associação de idéias. Se a proposição relaciona o que é significado pelos nomes, e se

esses significados são idéias, então a proposição estabelece uma relação entre idéias.

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Se a teoria silogística estabelece as inferências válidas a partir da relação entre os

termos S, P e M, e se S, P e M significam idéias, então as regras silogísticas devem ser

consideradas como regras de associação de idéias. Enfim, se a lógica constitui-se a

partir da consideração dos processos relacionados à associação de idéias, certamente,

na base da ciência da lógica, deve estar a psicologia. Nesse sentido, de acordo com o

que estamos supondo, o psicologismo lógico encontra nas páginas do Essay de Locke

uma importante base de sustentação. Nas origens do psicologismo lógico figura, certa

e decisivamente, o Livro III da grande obra lockeana.

Além do que acabamos de mencionar, deve ser salientado, devemos atentar ao

seguinte fato, que, no fundo, é o que justifica efetivamente nossa opção

metodológica: em sua refutação do conceitualismo, como veremos, claramente, tudo

aquilo que Mill diz contra Hobbes vale incondicionalmente para Locke, como

veremos a seguir:

Duas teses que formam, digamos assim, a espinha dorsal do modelo semântico

que será criticado e derrubado no System of logic de Mill:

a) os nomes referem-se a idéias e não às coisas mesmas;

b) a função da linguagem no conjunto das atividades humanas é “comunicar

pensamentos” ou, utilizando uma expressão mais fortemente lockeana, “transmitir

idéias”.

Ou seja, as respostas que serão por Mill oferecidas quando derruba o modelo hobbes-

lockeano deverão dirigir-se às seguintes perguntas:

a') o que os nomes significam?

b') qual a função da linguagem?

Existe claramente uma anterioridade lógica da segunda pergunta em relação à

primeira. O argumento de Hobbes utilizado para justificar a resposta à primeira

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pergunta, ou seja, o argumento utilizado para demonstrar que os significados das

palavras são as idéias e não as coisas mesmas supõe a resposta à segunda pergunta, de

que usamos a linguagem para comunicar nossos pensamentos. Se a linguagem deve

comunicar idéias, certamente os significados dos termos da linguagem só podem ser

idéias. Isso demonstra, em primeiro lugar, que aquilo que Mill chamará de

conceitualismo, a tese de que os nomes significam idéias e não as coisas mesmas,

possui, dentro do contexto sistemático em que é proferida, uma dimensão pragmática

prioritária. Será a função que a linguagem exerce no conjunto das atividades

humanas que determinará a tese acerca do significado das palavras. Vemos,

claramente, a submissão de semântica à pragmática. Ou, para sermos mais preciso,

será justamente porque a semântica está submetida à pragmática que ela será

reduzida à psicologia, como veremos nas páginas seguintes.

Hobbes escreve:

Um nome é uma palavra tomada ao acaso para suscitar em nosso espírito um pensamento semelhante a algum outro pensamento que tivemos antes e que, sendo formulado ante os demais homens, é para eles um signo do pensamento que havia no espírito do interlocutor antes de falar (...) e, dado que, de acordo com sua definição, as palavras que formam o discurso são signos de nossos pensamentos, é claro que não são signos das coisas mesmas; pois, como compreender que o som da palavra pedra é o signo de uma pedra, senão no sentido de que aquele que ouve este som infere que aquele que pronuncia pensa numa pedra? 66

Ora, a passagem acima, citada e devidamente refutada por Mill, como será visto mais

adiante, expõe com clareza as duas características do modelo semântico-

66 “A name is a word taken at pleasure to serve for a mark which may raise in our mind a thougth like to some thought we had before, and which being pronouced to others, may be to them a sign of what thought the speaker had before in his mind (...) But seeing names orderer in speech (as his defined) are signs of our conceptions, it is manifest they are not sign of the things themselves; for that the sound of this word stone should be the sign of a stone, cannot be indestood in any sense but this, that he that hears it collects that he that pronounces it thinks of a stone”. (Hobbes: Computation or logic, cap. II)

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conceitualista a pouco mencionadas, e que Hobbes praticamente repete, de forma

menos detalhada, no Leviatã:

...a mais proveitosa invenção foi a linguagem, que se baseia em nomes e nas conexões entre eles. Por meio desses elementos os homens registram seus pensamentos, os recordam quando já se passaram, e os enunciam uns aos outros para mútua utilidade e conversação67

E pouco mais adiante

O uso geral da linguagem consiste em transpor nossos discursos mentais em verbais; ou a série de nossos pensamentos numa série de palavras68

Como é possível notar, há aqui um forte apelo ao aspecto utilitário da linguagem. A

linguagem cumpre uma função, tem uma finalidade prática específica que, em última

análise, determina e possibilita a própria vida em sociedade, sendo, portanto, um dos

alicerces da civilização. Não devemos perder de vista que Hobbes, como Locke

também, é um autor que defende uma postura contratualista com relação à

organização social e política. E a linguagem exerce uma função fundamental para o

estabelecimento da tese contratualista, pois, certamente, o contratualismo exige que

os contratos sejam firmados com base em alguma linguagem objetiva. A única

maneira que o homem tem de sair de seu estado de barbárie originária será pelo

estabelecimento de acordos para a mútua convivência. Daí a necessidade quase que

orgânica de ser estabelecido os alicerces teóricos sobre os quais se apóia a atividade

comunicativa humana como fundamento do processo civilizatório. E o pressuposto

67“... the most noble and profitable invention of all other, was that SPEECH, consisting of nomes or appellations, and their connexion; whereby men register their thoughts; recall them whem they are past; and also declare them one to another for mutual utility and conversation” (Hobbes: Leviatã, Livro I, cap. IV) 68 “The general use of speech, is to transfer our mental discourse, into verbal; or the train of our thougth, in a train of words” (idem)

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elementar desse processo comunicativo é o de que os pensamentos devem ser

comunicados. Por isso as palavras só podem ser signos das idéias.

Comparemos essas passagens com a posição de Locke. Seguindo a mesma

linha de raciocínio e partindo dos mesmos pressupostos conceituais de Hobbes,

Locke dirá:

Além dos sons articulados, foi mais tarde necessário que o homem tivesse a habilidade de usar esses sons como sinais de concepções internas, e fazê-los significar as marcas das idéias internas de sua própria mente, pelas quais elas serão conhecidas pelos outros, e os pensamentos das mentes dos homens serão mutuamente conhecidos69.

Claramente, as duas características da linguagem mencionadas acima estão presentes

e são igualmente determinantes para a teoria da linguagem lockenana. Os sons

articulados devem ser usados como sinais de concepções internas para que os outros

sujeitos tenham a possibilidade conhecer o que se passa no universo psicológico do

falante. Ora, Mill, quando derruba a tese conceitualista, como veremos mais adiante,

dirige suas críticas às palavras de Hobbes atacando justamente a tese de que a função

da linguagem é transmitir idéias. E Mill deixa muito claro que não se trata

unicamente de uma polêmica sua com Hobbes individualmente o que motivará suas

críticas, mas a toda uma escola que ele chama de ‘metafísica’. Colocada a pergunta

sobre se os nomes referem-se às coisas ou às idéias Mill esclarece:

São os nomes, mais propriamente, ditos nomes das coisas ou de nossas idéias das coisas? A primeira significação é a do uso comum; a segunda corresponde a alguns metafísicos que acreditaram, ao adota-la, consagrar uma distinção da

69 “Besides articulate sounds therefore, it was farther necessary, that he should be able to use these sounds as signs of internal conceptions; and to make them stand as marks for the ideas within his own mind, whereby they migth to made known to others, and the thougths of men’s minds be conveyed from one to another.” (Locke: Essay concerning human understanding, III. i. 2)

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mais alta importância. O eminente pensador citado acima parece compartilhar desta última opinião.70

Acredito que seja ocioso salientar que entre os tais ‘metafísicos’ que comungam da

segunda opinião, e que Mill, portanto, ira refutar em sua obra, encontra-se, além do

próprio Hobbes, certamente Locke e o seu Essay concerning human understanding.

Embora dirigindo-se diretamente a Hobbes, não resta dúvidas que a crítica milliana

tem por objetivo derrubar toda uma tradição semântica que remonta não a um único

autor, e dentro dessa tradição encontram-se tanto Hobbes quanto Locke. Creio, por

isso, que contrapor Mill a Locke, neste particular, é um expediente não só

perfeitamente justificado, mas absolutamente coerente com os nossos propósitos; por

isso, tomaremos os textos de Locke em nossa abordagem, por ser certamente este o

modelo mais bem acabado da semântica que será refutada por Mill. E por ter sido a

teoria lockeana das idéias um dos pilares do psicologismo lógico em sua roupagem

britânica71.

Passemos, agora, à exposição do modelo semântico-psicológico representado

pela teoria da linguagem de John Locke. 70”Are names more properly said to be the names of things, or of our ideas of things? The first is a expression in common use; the last is that of some metaphysicians, who conceived that adopting it they were introducing a highly importat distinction. The eminent thinker, just quoted, seems to countenance the latter opinion” (Mill: op.cit. I, ii, 1) 71 Sobre isso, MUSGRAVE, nos diz: “While the prevailing logic was Aristotelian logic, the prevailing philosofhy of logic (at least in England) was psychologism. These two facts quere not unconnected. English philosophy was devoted to the ‘new way of ideas’ inaugurated by john Locke. Locke had aimed to give a ‘plain historical’ (i. e. descriptive) account of the way men acquire knowledge. But, in fact, Locke’s psychological views were arrived at by translating Aristotelian logic into psychoplogical terms(a process which Descartes had begun) Aristotelian logic is the logic of simple categorial or subject-predicate proposition like ‘Socrates is wise’. These all consist of a subject (e.g. Socrates), a copula (e.g. is), and a predicate (e.g. wise). Locke simply psychologized these categories. Instead of the subject and predicate we have two ideas for which, according to him they stand. And instead of the copula Locke has the ‘conection that the mind gives to ideas’. Just as, for the Aristotelian logician. All (non-compound) propositions are of the subject-predicate form, so also, for Locke, all our knowledge consist in the joining or separating of two ideas. (...) We can see, then, how Locke’s views result from a translation of Aristotelin logic into psychological terms. (George Boole and the psychologism; in: Scientia, pp. 594)

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II.3. Locke: psicologia e linguagem

Nas próximas páginas apresentaremos algumas passagens importantes do

pensamento de John Locke, focalizando o estatuto da linguagem dentro do seu

empirismo psicológico. Estamos tomando como uma premissa sistemática de nosso

trabalho72 a tese de que houve uma influência decisiva exercida pela teoria das idéias

para o estabelecimento daquilo que mais tarde veio a ser chamado de psicologismo

lógico; que uma lógica aos moldes silogísticos, associada a uma semântica psicológica,

na qual a referência dos termos da linguagem são entidades mentais, impõe de forma

implacável a necessidade de se considerar a lógica como tratando da relação entre

idéias e, portanto, descrevendo processos mentais. As próximas seções são destinadas

a apresentação desse modelo semântico lockeano.

II.3.1 Origem empírica das idéias

John Locke é um autor que se contrapõe de forma radical ao inatismo tão

comum e difundido nas escolas filosóficas continentais, que vem desde, pelo menos,

Platão até Descartes e Leibniz. De acordo com Locke, todos os nossos conhecimentos

ou, para utilizar a expressão mais genuinamente lockeana, todas as nossas idéias (pois

conhecimento, para o Locke, é algo que se refere tão somente a idéias), têm origem

ou por meio da experiência sensível imediata, ou por meio da reflexão, do trabalho

72 Infelizmente, a necessidade de cumprimentos dos prazos fez com tal assunção não tenha sido completa e devidamente justificada. Seria necessário, verificarmos, a partir de outros autores que seguiram a tradição estabelecida por Locke e sua semântica psicológica e que desembocaram em teorias psicologistas. Mas, ainda assim, creio que a influência do Essay de Locke na edificação de uma mentalidade filosófica baseada na valorização de entidades subjetivas, que abriu espaço para psicologismo lógico na Inglaterra é tão evidente, que nossa hipótese sistemática possa se aceita sem maiores problemas.

79

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de “processamento” dessas impressões por parte do espírito. Temos, por isso, tanto

idéias simples, diretamente obtidas a partir experiência sensível, quanto idéias

complexas, obtidas por meio de operações psicológicas sobre essas idéias simples. E a

teoria semântica expressa no Essay concerning human understanding toma por

suposto essas premissas epistemológicas, que são bastante claras e inegociáveis do

ponto de vista do autor. Ele somente fala da linguagem no Livro III de sua obra, logo

após ter, primeiro, refutado a possibilidade de qualquer tipo de inatismo no Livro I e

de ter minuciosamente descrito os processos psicológicos envolvidos na formação e

aquisição de nossas idéias no Livro II. Tenham ou não as ideais diversas sua origem

diretamente vinculada às impressões sensíveis, em última instância, todas nossas

idéias terão uma origem, imediata ou não, na experiência sensível. Daí resulta sua

célebre teoria da tábua rasa, segundo a qual nosso espírito é algo como uma folha de

papel em branco na qual as impressões sensíveis se inscrevem, na forma de idéias, ao

longo de nossa existência. Sendo assim, portanto, toda atividade intelectual humana

deve resumir-se basicamente à aquisição e transmissão de idéias, sejam elas simples

ou complexas. As idéias simples seriam, assim, algo como átomos de pensamento, e

todo o resto das atividades intelectuais do ser humano se resumiria às relações entre

essas idéias e à constituição de idéias mais complexas por meio do trabalho de

reflexão.

É importante notarmos que, para Locke, o conceito de pensamento é

extremamente amplo. Pensar é ter idéias, relacionar idéias, e essas idéias são dos

mais variados tipos e têm as mais variadas características. Idéias podem ser tanto

‘imagens mentais’ como aquelas que temos quando recordamos ou percebemos

algum objeto sensível, mas também podem ser as paixões, os desejos, os conceitos,

idéias gerais etc. Veremos mais adiante73 que um dos principais movimentos que

73 Ver: III.2.7

80

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determina o advento da tradição semântica na história da filosofia, sobretudo a partir

do pensamento de Frege, é justamente a separação do joio do trigo, será o

estabelecimento daquilo que pode ser considerado como “pensar” em seu sentido

objetivo (no caso de Frege, captar Gedankes) e daquilo que será considerado como

atividades psíquicas (ter representações - Vorstellung). Estão sendo feitas essas

considerações aqui para que não se perca de vista que a crítica que fará Mill ao

modelo Lockeano abrirá as portas para uma nova concepção de pensamento, menos

amplo e mais preciso, ligado à apreensão de verdades e não à representação de idéias.

Mas sobre isso, voltaremos no momento apropriado.

O que nos interessa, porém, particularmente, no presente momento, é a

existência, em Locke, de todo um universo psíquico como que mediando a relação do

sujeito com o mundo, com o real propriamente dito. A referência ao real se dá por

meio de uma suposição tácita74; porém, toda a atividade cognitiva humana versará

sempre direta e exclusivamente sobre as idéias. Conhecimento é conhecimento sobre

idéias, a verdade se refere às nossas idéias ou, mais precisamente, à adequação ou não

da relação entre idéias no espírito75, e as proposições, enquanto enunciados verbais,

nada mais são do que a transposição por meio de palavras das chamadas proposições

mentais, da associação de uma idéia à outra no universo psicológico76.

74 Por exemplo: “words often secretly referrred (...) to reality of things. (...) because mem would not be thougth to talk barely their own imaginations, but of things as really they are, therefore they often suppose the words to stand also fot the reality fo things” (idem: III, ii, 5) 75 “Knowledge them seems to me to be nothing but the perception of the conexion and agreement, or disagreemente and repugnancy, of any of our ideas” (idem: IV, i, 2) 76 “To form a clear notion of truth, it is very necessary to consider truth of thourght, and truth of words, distinctily one from another: by yet is a very difficult to treat of the asunder. Because it is unavoidable, in treating of mental propositions, to make use of words: and then the instances given a mental proposition cease immediately to barely mental, and become verbal. For a mental proposition being nothing but bare consiederation of the ideas, as they are in our minds stripped of names, they lose, as they are in our minds stripped of names, they lose the nature of purely mental propositions as soon as they put into words” (idem. IV, v. 3)

81

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De acordo com os pressupostos epistemológicos empiristas de Locke, somente

podem ser consideradas como dotadas de existência efetiva coisas particulares. O

nominalismo-empirista-psicologizante de Locke nos leva a isso: toda generalidade é

um produto, uma “criatura do entendimento”.77 Por isso, embora no mundo não

exista, segundo o ponto de vista aqui mencionado, universais, existe sim, dentro do

universo psicológico, idéias gerais. E dado que todo nosso conhecimento versa sobre

idéias e não sobre as coisas mesmas, é possível sim falarmos sobre um

“conhecimento” acerca dos universais. Porém, o fundamento último desse

conhecimento não se explica por meio da ontologia, mas somente em termos

psicológicos. Explicar os universais não é explicar como as essências reais se

articulam no mundo, pois essas essências são negadas, mas como nós formamos idéias

gerais a partir das existências particulares. Não se explica a formação de classes a

partir da verificação de como seus elementos se articulam no mundo real, mas a

partir da teoria da abstração78, demonstrando como somos capazes de classificar os

particulares do mundo por meio de processos subjetivos.

É com referência ao modelo epistemológico que acabamos de esboçar que a

filosofia lockeana da linguagem deverá se estabelecer. Locke delegará um lugar

sistemático privilegiado à linguagem relacionando-a à necessidade que temos de

comunicar, por meio de algum signo sensível, o conteúdo de nossa vida psicológica,

as nossas idéias. Passemos, então, à consideração do papel da linguagem na estrutura

sistemática da filosofia lockeana.

77 “To return to general words, it is plain by what has been faid, that general and universal belong not to real existence of things; but are the inventions and creatures of de undertanding” (idem, III, iii,11) 78“...since all things that exist are only particulars, how come we by general terms, or where find we those general natures they are suposed to stand for? Words become general, by being made the signs of general ideas, and ideas become general, by separating from them the circunstacnes of time, and place, and any other ideas, that may determine them to this or that particular existence. By this way of abstraction they are made capable of representing more individuals than one; each of which having in it a conformity to that abstract idea, is (as we call it) of that sort” (idem, III, iii, 6)

82

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II.3.2. A Linguagem em Locke

A filosofia da linguagem lockeana é perfeitamente coerente com sua teoria

das idéias e, conseqüentemente, com seu conceito de pensamento. Uma vez que

podemos falar, em Locke, de um certo ‘atomismo psicológico’, isto é, que o

pensamento possui elementos simples a partir dos quais as atividades psíquicas são

realizadas, Locke baseia sua teoria semântica nas palavras, que seriam algo como que

‘átomos de linguagem’. Tanto é assim que o Livro III do Essay não tem por título “a

Linguagem”, mas “As palavras”. Da mesma forma que o livro segundo tem por título

“As idéias” e não “O pensamento”. E isso se torna mais claro e justificado quando

nos deparamos com o papel da linguagem no âmbito do sistema lockeano. Diante de

supostos lockeanos, a linguagem assumirá uma função extremamente importante

dentro da organicidade interna de seu sistema. De acordo com Locke, porque não

somos dotados da capacidade de termos acesso direto e imediato às idéias de outras

pessoas, dado o caráter não sensível dessas idéias e sua dimensão eminentemente

subjetiva, fez-se necessária a introdução de signos sensíveis capazes de servir como

substitutos apreensíveis dessas idéias, a fim de elas pudessem ser transmitidas às

outras pessoas. Locke nos diz:

Ainda que o homem tenha uma grande variedade de pensamentos, dos quais, tanto os outros como ele mesmo devem receber proveito e prazer, todos eles, entretanto, estão no interior de si mesmo, invisíveis e escondidos dos outros, e nem podem se manifestar por si mesmos. O bem estar e a vantagem da sociedade não sendo realizáveis sem a comunicação de pensamentos, foi necessário ao homem desvendar certos sinais sensíveis externos, por meio dos quais estas idéias invisíveis, dos quais seus pensamentos são formados, pudessem ser conhecidas por outros.79

79“Man, though has great variety of thougths, and such, from which others, as well as himself, migth receive profit and delight; yet they are all within his own breast, invisible and hidden from others, nor can of themselves be made appear. The comfort and advantage of society not being to be had without

83

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Em poucas palavras, a linguagem, para Locke, é uma espécie de substituto sensível

do pensamento não sensível. E como o pensamento é associação de idéias, a

linguagem será a associação de palavras. Dito de outra forma, a linguagem está para o

pensamento assim como as palavras estão para as idéias. Usar a linguagem é

relacionar palavras, pensar é relacionar idéias. É nesse sentido que deve ser

compreendida a afirmação de que a linguagem é um substituto sensível para o

pensamento. O que notamos, pois, no modelo semântico lockeano é algo que

podemos chamar de paralelismo psico-lingüístico. O ‘universo’ do pensamento é

absolutamente independente do ‘universo’ da linguagem, e a linguagem somente se

realiza no conjunto das atividades humanas, porque possui uma função pragmática

bem determinada: comunicar pensamentos.

Duas conseqüências interessantes são extraídas daí:

a) a linguagem não serve como um instrumento útil ao pensamento (ao contrário

do que dirá Mill80), mas como um instrumento útil somente à transmissão inter-

subjetiva desses pensamentos; não precisamos absolutamente da linguagem pensar,

mas somente para exteriorizar os pensamentos;

b) linguagem é um instrumento útil à transmissão do pensamento, mas não é

necessário que tal instrumento seja efetivamente a linguagem, ou, ao menos, a

linguagem dos sons e dos sinais gráficos articulados.

Porque o homem é dotado da capacidade de formar sons articulados (e os papagaios

também o são) foram escolhidos, por uma determinação contingente e arbitrária,

esses mesmos sons para servir de substituto sensível dos pensamentos; mas, em

communication of thoughts, it was necessary that man should find out some external sensible signs, where of those invisible ideas, which his thoughts are made up of, might be made kanown to others” (idem, III. ii. 1) 80 ver I.2.2.

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princípio, poderiam ser outros meios. Por isso, a linguagem, tal como a conhecemos,

é algo absolutamente contingente e arbitrário. Poderia ou não existir sem prejuízo

das atividades puramente intelectuais humanas, uma vez que não necessitamos

absolutamente da linguagem para exercer essas atividades, mas somente para

comunicá-la aos demais seu conteúdo. Além disso, a linguagem é, por natureza,

arbitrária, mas essa arbitrariedade não só se dá quando se refere à escolha de

determinados sons para significar determinadas idéias, mas também no sentido de

que o próprio expediente de usar sons articulados para servirem de substitutos das

idéias invisíveis foi uma escolha humana. São as palavras, mas, em princípio,

quaisquer outros elementos sensíveis poderiam ser utilizados como signos de nossos

pensamentos. Mas o fato é que, seja como for, em Locke o conceito de significação

pode ser definido, em última análise, como equivalente ao de substituição: significar

é substituir uma idéia por uma palavra, ou por qualquer outro elemento sensível

capaz de se prestar a essa função.

II.3.3. Locke e a generalização

Agora, talvez, torne-se mais claro o que fora afirmado mais acima, acerca dos

universais no pensamento de Locke. O que existe de geral não são existências, mas

somente idéias. E é sobre as idéias que os nomes se referem, não às coisas mesmas.

Logo, torna-se evidente que o fundamento dos chamados termos gerais, aqueles

nomes que se referem a mais de um indivíduo, deve ser explicado demonstrando a

maneira como somos capazes de generalizar, ou seja, de criar idéias gerais.

Locke aponta a generalização subjetiva e a conseqüente introdução na

linguagem de termos gerais algo não só útil, como também necessário. Primeiro,

85

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porque seria impossível que cada coisa particular existente no mundo tivesse um

nome específico, um nome próprio. Segundo, porque, mesmo que fosse possível,

seria inútil, pois a multiplicação de nomes impossibilitaria o acordo intersubjetivo

necessário para a estipulação dos significados dos termos81. Não é isso, porém, o que

nos interessa no presente momento, mas sim o fato de que pode ser mais uma vez

justificado aquilo que chamamos a pouco de paralelismo psico-lingüístico. Se os

universais só existem no nível psicológico, enquanto idéias gerais, e se a linguagem

necessita de termos gerais, certamente a linguagem somente pode ser referida,

dentro desse universo teórico, às idéias mesmas, ao mundo psíquico e não ao mundo

real. A partir de um argumento simples, podemos expor sistematicamente o

fundamento do conceitualismo lockeano:

P1: No mundo não existem universais, mas somente coisas particulares

P2: A grande maioria dos termos da linguagem é composta por nomes gerais

P3: A generalização é um processo subjetivo que se dá por meio da abstração

C: Os nomes gerais só podem se referir aos produtos dessa generalização subjetiva,

ou seja: idéias gerais.

Será a partir desta base teórica que Locke lançará mão de seus célebres

conceitos de essência real e essência nominal. Essências reais são exclusivamente

particulares e, por isso mesmo, possuem uma dimensão ontológica efetiva. Essências

nominais82, são meramente proveniente das chamadas idéias gerais, e, portanto, são

eminentemente subjetivas. Em realidade, a expressão “essência nominal” é

propositalmente auto-contraditória, e possui o claro objetivo de sugerir quão 81 “If it were possible [that every particular thing should have a distinct peculiar name (#2)] it would yet be useless; because it would no serve to the chief end of language. Mem would in vain heap up names of particular things, that would not serve them to communicate their thoughts” (idem: III, iii, 3) 82 Em realidade, a expressão “essência nominal” nada mais é do que um mero artifício para negar a essencialidade dos universais.

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inconseqüente é o expediente de se falar em essências universais. O adjetivo

“nominal” retira qualquer referência a uma essencialidade entendida em sentido

estrito, pois toda sua dimensão ontológica é simplesmente suprimida em nome da

generalização subjetiva. Trata-se, pois, de uma pérola do nominalismo psicológico.

II.3.4. Significado e entendimento

Uma deficiência importante da teoria semântica lockeana consiste nela ser,

podemos dizer, uma semântica de ‘dois pólos’, de ‘dois sentidos’83. Ora, se o papel da

linguagem é comunicar pensamentos, torna-se clara a necessidade de se encontrar

explicações distintas - e ambas psicológicas - para o que ocorre tanto na mente de

quem fala, quanto na de quem escuta. Isso por uma razão bastante clara; segundo

Locke, o significado imediato das palavras são as idéias na mente de quem fala84. Eu

tenho uma idéia e a comunico por meio de uma palavra. Logo, o significado dessa

palavra não pode ser outra coisa além da idéia que estou tendo atualmente. Portanto,

minha palavra, para cumprir o seu papel de comunicar o que penso, deve ter um

significado85. No entanto, para que esse processo de comunicação de idéias seja

completo e efetivamente cumpra seu papel, é necessário que o interlocutor, aquele

83 Ver BENNETT, J.: Locke, Beckeley and Hume: Central theme, cap. 1 84 “Thus we may conceive how words, which were by nature so well adapted to that purpose, come to be made use of by men, as the signs of their ideas; not by any natural connexion that there is between particular articulate soud an certain ideas, for then there would be but one language amongst all men.” (idem III, ii, 2) 85 Já nos é possível notar pelo que foi exposto até aqui que o conceito de significado em Locke está baseado na substituição: significar = substituir. Uma palavra tem significado se ela é um substituto sensível de uma idéia.

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que ouve, compreenda aquela palavra, ou seja, a utilize como marca sensível de uma

idéia que também é sua, e traga à consciência, no ato da audição, também uma idéia.

Portanto, não basta somente que a palavra tenha significado - ou seja, que substitua

uma idéia na mente de quem fala - mas é necessário também que haja entendimento.

Aquele que ouve deve ser capaz de trazer à tona a idéia que está sendo comunicada e

que a tenha também como uma idéia sua.

Ora, qual é o inconveniente dessa conseqüência que acabamos de expor? O

fato de que não basta para uma palavra ter significado para simbolizar algo

efetivamente. Se a função da linguagem é comunicar, somente a ocasião da palavra

ter significado (i. e. ser um substituto de uma idéia do falante) não é suficiente para

que a comunicação de fato se dê e que a linguagem efetivamente se realize. Significar

passa a ser um procedimento unilateral, que tem a ver exclusivamente com o falante

e suas ideais privadas. Torna-se perfeitamente possível, no universo conceitual

lockeano, uma linguagem privada, ao menos no nível do significado. Mas aí, o

problema se desdobra, pois a possibilidade de uma linguagem privada fere um dos

pressupostos mais elementares da teoria lockeana da linguagem, a saber, sua

dimensão prioritariamente pragmática, seu papel de ser um instrumento de

comunicação intersubjetiva. Dito talvez de uma maneira mais precisa, o significado

de uma palavra, para Locke, é privado; mas a linguagem tem sua função e, portanto,

sua razão de ser, na realização de algo que é por natureza intersubjetivo, a

comunicação entendida como transmissão de idéias.

Essas considerações servem para salientar que o modelo semântico lockeano

não se reduz propriamente a uma teoria do significado, não sendo, por isso,

efetivamente semântico, mas eminentemente psicológico. Significar é algo que se

reduz a processos psicológicos e não propriamente a categorias de ordem semântica,

como o Sinn fregeano ou a conotação de Mill. Nesse sentido - e essa é uma

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importante tese do presente trabalho - Stuart Mill foi, senão o primeiro, mas ao

menos um pensador anterior a Frege e o seu Sinn und Bedeutung, que enunciou uma

teoria do significado objetiva e puramente semântica, capaz de dissolver a

necessidade de explicar os dois pólos do discurso. A teoria da conotação tem, pois,

efetivamente, o caráter unitário reclamado há pouco. Ela assume, tanto no processo

de superação do modelo hobbes-lockeano, quanto para o advento de uma abordagem

mais genuinamente semântica do processo de significação, um papel de destaque que

deve ser salientado. Resolverá, ao seu modo, o problema da função da linguagem

enquanto instrumento de comunicação humana utilizando-se, para isso, somente de

uma teoria do significado, sem a necessidade de se considerar explicações causais de

ordem psicológica que dêem conta do processo de entendimento. E, mais importante

do que isso, produzirá uma teoria unitária, sem a necessidade de se considerar os dois

pólos do discurso (falante e ouvinte), pois ambos estarão abarcados na ‘carga

semântica’ que o nome conotativo traz consigo, que é justamente determinada pela

conotação dos nomes gerais. A ‘carga semântica’ determinada pela conotação de um

nome significa, por assim dizer, por si só, e é absolutamente objetiva; é, por isso,

comum aos diversos sujeitos, não necessitando de explicações distintas e

independentes do que acontece individualmente aos interlocutores no uso da

linguagem. O que menos importará em Mill será a arbitrariedade da aplicação do

nome, mas o que o nome efetivamente significa. É nesse sentido que dissemos que,

em Locke, não existe, positivamente, uma teoria da significação; ou melhor: existe

uma teoria da significação, mas essa teoria não é uma teoria efetivamente semântica.

É uma teoria psicológica que serve a uma causa pragmática.

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II.3.5. Locke e a proposição

Locke adota uma posição com respeito à estrutura proposicional claramente

aristotélica. A proposição é ‘algo complexo’, fruto da relação e da articulação de dois

‘elementos’, um determinado pelo termo sujeito e outro pelo termo predicado. Ora,

uma vez que, como vimos, segundo Locke, os elementos primários das atividades

intelectuais humanas são as idéias obtidas, em última instância, por meio da

experiência sensível, e dado que a linguagem tem por objetivo ser um substituto

apreensível dessas idéias que são, por natureza, insensíveis, torna-se claro que uma

proposição verbal, ou melhor, que aquilo que se articula e se relaciona num símbolo

proposicional, deve ser o substituto lingüístico – e, portanto, sensível - daquilo que

se passa no intelecto de quem associa e relaciona idéias. A teoria da linguagem como

substituto sensível de idéias insensíveis exige esse paralelismo psico-lingüístico. Eu

relaciono idéias em meu intelecto de uma determinada maneira, ou seja, incluindo

ou excluindo uma idéia à outra mais geral, e tenho, assim, o que será por Locke

chamado de proposição mental. Isso significa que é na mente, no intelecto, enfim, no

interior do universo subjetivo e psicológico que a unidade da proposição se constitui.

E a enunciação dessa proposição mental por meio da linguagem será nada mais do

que um substituto sensível e apreensível daquilo que se passa no pensamento.

Ora, se o processo cognitivo primário, que é a experiência sensível, somente

proporciona a aquisição de idéias, e se a proposição se constitui já num nível

mediato, na medida em que tem seu sentido constituído a partir de um processo

psicológico de aquisição e relações de idéias, torna-se evidente que a verdade

somente terá seu lugar se relacionada diretamente às idéias, ou melhor, à maneira

como essas idéias estão associadas no intelecto de um sujeito determinado. Locke nos

diz textualmente:

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Desde que a mente em todos os seus pensamentos e raciocínios não tem outros objetos imediatos exceto suas próprias idéias, e apenas isso é que pode ser contemplado, torna-se evidente que nosso conhecimento se relaciona somente com elas.86

Não vem ao caso agora, em virtude de nossos interesses específicos, descrever a

maneira como Locke sistematiza sua teoria e apresenta os diversos tipos de relações

entre idéias que constitui aquilo que pode ser objeto de conhecimento – e, portanto,

ser expresso numa proposição. Importa salientar simplesmente que, para Locke, a

experiência imediata não nos fornece verdades ou conhecimentos, mas somente

idéias, e que a unidade do sentido proposicional se estabelece no universo

psicológico. Quanto ao primeiro ponto, vimos no capítulo anterior que em Mill, por

recusar a teoria lockeana das idéias, as coisas se darão de forma um tanto diversa, o

que fará uma grande diferença: Segundo Mill, a experiência sensível primária e

imediata tem o poder de nos fornecer verdades e não meramente idéias, o que

possibilitará, de acordo com nossa hipótese, a identificação já de um sentido

proposicional primário e imediato, disponível aos sujeitos por meio da faculdade da

intuição. Logo adiante, levantaremos o problema referente à unidade do sentido

proposicional em Mill, a partir de sua crítica ao modelo conceitualista lockeano.

Antes, porém, abordaremos um pouco mais detidamente a relação da teoria lockeana

das idéias com o psicologismo lógico.

86 “Since the mind, in all its thoughts and reasonings, hath no other immediate oblesct but its oun ideas, wich it alone does or can comtemplate; it is evident, that our knowledge is only conversant about them” (idem: IV, i, 1)

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II.3.6. Locke e o psicologismo

De acordo com o que foi exposto até aqui, podemos certamente chegar a uma

conclusão importante para nossos propósitos: que aquilo que mais tarde será

chamado de ‘psicologismo lógico’ e que será combatido por Frege tem, ao menos em

sua roupagem britânica, uma conexão quase que necessária com a teoria lockeana das

idéias e sua teoria da linguagem. Por uma razão bastante simples e compreensível.

Antes, porém, de expô-la, faz-se necessário alguns esclarecimentos de ordem

conceitual. E necessário identificarmos ao menos dois sentidos nos quais se pode

falar em psicologismo; ou melhor: duas manifestações do psicologismo, que são

distintas, mas intimamente ligadas. Em primeiro lugar, podemos falar num

psicologismo semântico, ou seja, na tese de que os significados das palavras são

entidades mentais e que, portanto, a semântica se reduz à psicológia. Dentro de

nosso universo conceitual, o psicologismo semântico se identifica com aquilo que

Mill irá refutar com relação a Hobbes e Locke e que chamará de conceitualismo.

Mas, também, podemos falar num outro aspecto do psicologismo, que chamamos de

psicologismo lógico, ou seja, a tese que as regras lógicas de inferência descrevem

processos mentais, e que, portanto, a lógica é uma parte, um ramo da psicologia. O

psicologismo, de um modo geral, apresenta-se como algo que não possui uma

definição muito clara, mas certamente deve-se considerar que, ao menos uma dessas

duas possibilidades citadas há pouco, constitui o elemento conceitual básico de uma

teoria psicologista87. Mas, de qualquer modo, certamente esses dois aspectos do

psicologismo estão intimamente ligados e isso fica mais claro quando analisamos o

87 John Skorupiski, por exemplo, nos diz: “’Psychologism’ is a loose term but we take it to consist in one or both of two views: (1) that laws of logic are simply psychological laws concerning our mental processes; or (2) that ‘meanings’ are mental entities, and that judgements asserts relationships among these entities” (Language and logic; The Cambridge companion to Mill, pag. 46-47)

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que se passa quando uma teoria das idéias como a de Locke está em conjunção com

uma lógica aos moldes aristotélicos, com uma lógica silogística. Ora, como funciona

a silogística aristotélica? As regras de inferência se aplicam por meio da relação que

mantém os termos do silogismo entre si. De acordo com a maneira com estão

relacionados os termos S e P com o termo M é que se pode ou não inferir a verdade

necessária da conclusão no caso de as premissas serem verdadeiras e determinar a

validade de um argumento cuja conclusão envolve os termos S e P. Ora, se, de

acordo com Locke, o significado dos termos são idéias, e mais do que isso, se as

proposições verbais que formam um silogismo expresso na linguagem nada mais são

do que os substitutos sensíveis daquilo que se passa no intelecto de quem raciocina

silogisticamente, não há como escaparmos da conclusão de que as “leis lógicas”

envolvidas na correção ou não do argumento são, em última instância, leis

psicológicas; que as regras de inferência silogística são determinadas por meio das

regras de associação de idéias estabelecidas pelo sujeito psicológico. É nesse sentido

que se vincula de forma orgânica o modelo semântico lockeano com o chamado

psicologismo lógico. Certamente, quando os autores do século XIX falam e criticam

o psicologismo, não estão se voltando exclusivamente para esse modelo que

acabamos de expor. Os desdobramentos da filosofia kantiana e sua recepção por

parte de das primeiras gerações de filósofos pós-kantianos produziram também na

Alemanha, e por vias diversas, conseqüências psicologistas88. Mas, embora o esquema

que expusemos acima não seja suficiente para dar conta da gênese conceitual do

psicologismo como um todo, certamente ela dá conta de aspectos importantes e de

manifestações determinantes desse mesmo psicologismo.

88 Richard Brockaus nos diz: “But pychologism has much deeper roots in two rather different philosophical movements. On one hand, German psychologism results, in parte at laest, from corruption of the Kantian Critical Philosofy (...) On the other, psychologism found fertile soil in the antipathy towards abstract entities central to British Empirism”. (Realism and psychologism en 19th century logic; in: Philosophy and Phenomenological Research; Pag. 495)

93

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Ora, de acordo com nosso ponto de vista, a refutação da tese conceitualista

por parte de Mill, ou seja, a superação do psicologismo semântico que, como

acabamos de ver, é um dos alicerces do psicologismo lógico, ao menos em uma de

suas versões, será um importante elemento para a superação desse mesmo

psicologismo. Quando Mill afirmar com todas as letras que “a lógica é uma parte da

psicologia” ele não estará sendo totalmente coerente consigo mesmo. O que ele diz

textualmente e o que é sugerido por suas teses parecem não concordar.

Certamente não fizemos da forma detalhada, como possivelmente a

complexidade dos problemas apontados nessas primeiras seções exige, a análise e

exposição dos principais elementos conceituais envolvidos no modelo semântico-

psicológico que chamamos de hobbes-lockeano. Mas, acredito que tenha sido

possível ter claro o papel que desempenha as duas teses citadas no início desse

capítulo como constituindo o modelo semântico que será criticado e derrubado por

Mill, e que, de acordo com nosso ponto de vista, abrirá caminho para o advento da

semântica como disciplina filosófica fundamental a partir da chamada virada

lingüística do século XIX.

O que importará, no decorrer do presente trabalho, será demonstrar em que

medida o fato de Mill ter-se voltado para a linguagem primeira e prioritariamente

em seu System of logic tem uma relação direta e orgânica com a necessidade de se

superar os pressupostos mais elementares desse modelo hobbes-lockeano exposto até

aqui. E com essa superação, a própria pergunta filosófica elementar, o próprio

entendimento de qual seja o papel do saber filosófico como um todo sofrerá

importantes modificações. Embora um tanto superficial, não é exagero afirmar que,

para Locke, por exemplo, o papel da filosofia dentro do universo cognitivo humano é

o de descrever e explicar as origens de nossas idéias; a filosofia devendo-se voltar

para o próprio sujeito psicológico e suas condições psico-cognitivas. Superar o tal

94

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modelo semântico ao qual nos referimos significará, por isso mesmo, superar toda

uma concepção acerca do que se compreende pela própria natureza do pensar

filosófico. E isso é o mais importante de toda essa história. Toda uma escola de

pensamento será posta em xeque no exato momento em que Mill propõe sua teoria

da conotação e refuta o conceitualismo. E será com vistas a esse estado de coisas que

apresentaremos, nas seções seguintes, a crítica milliana ao modelo semântico-

psicológico representado pelo modelo semântico-psicológico hobbes-lockeano.

II.4. A refutação do conceitualismo

No início de sua grande obra, após ter justificado a necessidade de se começar

um tratado de lógica pela análise da linguagem e de ter determinado em que consiste

essa ciência de acordo com seus pontos de vista89, Mill oferece aquela que, sem

dúvidas, é uma das principais teses do System of logic. Diretamente contra Hobbes,

mas também contra Locke, conforme foi estabelecido nas seções anteriores, Mill

afirma que o significado imediato e primeiro dos nomes não são nossas idéias, mas as

coisas mesmas. Buscaremos mostrar nesta seção que, tão importante como a própria

tese e o que ela significa, tanto para a estrutura interna do System of logic, quanto

para a virada semântica à qual estamos nos referindo, será o argumento utilizado

para defendê-la, pois nesse argumento enunciam-se já, ao menos de forma

embrionária, algumas teses que serão de grande valia para Frege.

Conforme aquilo que foi colocado há pouco, a tese conceitualista de que os

nomes se referem a idéias e não às coisas mesma, num certo sentido, é uma

conseqüência quase que necessária de uma outra tese que lhe é logicamente e

89 ver: I.2.1

95

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sistematicamente anterior: de que usamos a linguagem para comunicar nossos

pensamentos. Nesse sentido, a semântica seria, por um lado, reduzida à psicologia,

pois a relação entre os nomes e o suposto mundo real (de acordo com Locke as coisas

reais às quais nossas idéias se referem somente são afirmadas por meio de uma

suposição tácita) se explicaria, em última instância, por meio de causas psicológicas,

que determinam a maneira como adquirimos nossas idéias a partir da experiência

empírica. Mas, por outro lado, a semântica também se reduz à pragmática, uma vez

que é o uso que fazemos da linguagem (transmitir pensamentos) quem impõe a

necessidade de uma semântica psicológica. Ora, de acordo com essa situação, claro

deve estar que, para refutar a tese conceitualista de que os nomes se referem às

idéias, será necessário refutar a tese que dá suporte e fundamento a esse

conceitualismo, ou seja, dado que a tese semântica de que os nomes significam

imediatamente idéias supõe a tese pragmática de que a linguagem é usada para

transmitir pensamentos, somente será possível mexer na primeira se a segunda

também for alterada. Stuart Mill fará justamente isso. Contra a tese conceitualista ele

nos diz:

Se isto (a tese conceitualista) quisesse dizer simplesmente que a concepção só, e não a coisa mesma, é recordada e transmitida pelo nome, não haveria nada a se opor. No entanto, parece razoável seguir o uso comum dizendo que a palavra Sol é o nome do Sol e não de nossa idéia de Sol. Com efeito: os nomes não estão destinados somente a fazer conceber aos outros aquilo que concebemos, mas também para informar o que nós cremos90

E, um pouco antes, ao tratar das proposições em geral Mill afirma:

90 “If it be merely meant that the conception alone, and not the thing itselfs, is recalled by the name, or imparted to the hearer, this of the course cannot be denied. Nevertheless, there seems good reason for adhering to the common usage, and calling the word sun the name of the sun, and not the name of our idea of the sun. For names are not intended only to make the heares conceive what we conceive, but also to inform him what we believe” (op. cit. I. ii. 1)

96

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Tudo o que pode ser objeto de crença e não crença deve ser expresso por palavras e assumir a forma de uma proposição.91

O trecho acima, de acordo com os nossos interesses específicos, é, sem dúvida, uma

das principais passagens do System of logic. Isso, porque é aqui que Mill estabelece as

bases a partir das quais se sustenta seu anticonceitualismo. Como podemos notar,

Mill nega que os nomes tenham idéias como seus referentes imediatos, mencionando

o fato de que não usamos a linguagem simplesmente para comunicar aos nossos

interlocutores o conteúdo de nossas representações subjetivas, aquilo que

concebemos em nosso universo psicológico. Certamente, quando enuncio uma

proposição na qual figura o termo “sol” devo ter em mente uma idéia do sol; mas

isso não deve significar que é sobre a idéia de sol que o discurso proposicional se

refere. Isso porque o sol, embora figure enquanto idéia no intelecto de quem enuncia

uma tal proposição, é reivindicado com integrante de um fato objetivo do mundo, e é

sobre esse fato objetivo que a proposição deve estar referida. Certamente, de acordo

com o ponto de vista milliano, devo pensar no sol para enunciar uma proposição na

qual a palavra “sol” apareça, mas nem por isso devemos daí inferir que é sobre a idéia

de sol que o discurso proposicional se refere. É porque a palavra “sol” se apresenta

enquanto parte de um conteúdo proposicional que busca representar um fato do

mundo, que ela não pode ter por referência a idéia de sol na mente de quem fala.

Qual é, para nossos propósitos, a principal conseqüência de tal argumento? Ele

enuncia já, ainda que forma rudimentar e embrionária, aquilo que mais tarde Frege

colocará com clareza e dentro de um contexto lógico-conceitual mais apropriado: o

princípio do contexto. É certo, e não há como irmos contra isso, que talvez a

principal característica do princípio do contexto seja a anterioridade do todo

proposicional em relação às partes que compõe a proposição, a tese fregeana clássica

91 “Whatever can be na object of belief, or even of disbelief, must, when put into words, assume the form of a proposition” (idem. I, i, 2)

97

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de que a análise do todo proposicional não supõe uma síntese anterior, que o todo

proposicional é anterior às suas partes. Mill, por sua vez, ainda trabalha com uma

teoria da proposição aos moldes aristotélicos, na qual o sentido proposicional é

determinado pela síntese de dois termos ligados pela cópula; ou seja: é um símbolo

complexo que supõe elementos simples prioritários. No entanto, o que deve ser

apontado aqui é o argumento utilizado por Mill: se a linguagem de fato servisse

somente para comunicar aos outros aquilo em que estamos pensando, ou seja, as

idéias que estamos tendo atualmente, o conceitualismo teria razão; penso num

cachorro e pronuncio a palavra “cachorro”; certamente, meu interlocutor saberá, ao

me ouvir, que penso num cachorro e, nesse caso, torna-se óbvio que o significado

imediato de palavra “cachorro”, tal como foi proferida, somente pode significar a

idéia de cachorro na minha mente no ato da enunciação. No entanto, quando utilizo

a palavra “cachorro” para expressar uma crença num fato do mundo no qual o

cachorro participa, a palavra cachorro terá um outro significado, e isso graças ao fato

de estar inserida num “contexto proposicional”; e aí se torna insustentável a tese de

que o significado do termo é meramente uma idéia na mente de quem fala.

Certamente devo estar pensando num cachorro e devo ser capaz de ter uma idéia de

cachorro para que eu possa enunciar uma proposição no qual o termo “cachorro”

aparece92. E isso Mill vê claramente, quando diz, após ter citado a tese conceitualista:

Esta definição de nome como palavra ou grupo de palavras que servem ao mesmo tempo como marca para recordarmos a semelhança de um pensamento anterior e do signo para faze-lo conhecer aos demais, parece

92 Como veremos no capítulo III, em Frege isso não é necessário. Com relação aos termos numéricos, Frege defende que, mesmo não nos sendo possível representar um número na forma de uma imagem mental, ela não deixa de ter significado. No entanto, esse significado somente pode ser estabelecido no contexto de uma proposição no qual o termo numérico aparece. (ver: III.2.6.)

98

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irrefutável. Sem dúvida, os nomes fazem muito mais que isso; porém, tudo o que fazem além disso é resultado desta dupla propriedade...93

Como podemos notar, Mill está assumindo que tudo o que fazemos lingüisticamente

deve supor uma referência a entidades subjetivas. No entanto, se aceitarmos, com

Mill, que não usamos a linguagem para comunicar o conteúdo dos nossos

pensamentos (que em termos lockeanos é sinônimo de comunicar idéias), mas que a

função prioritária da linguagem está ligada à enunciação proposicional, que a função

da linguagem não é comunicar o que concebemos em nossas mentes na forma de

imagens mentais, mas sim as nossas crença em verdades, então a representação

subjetiva deixa de ser relevante, embora esteja suposta.

Ora, qual é a importância de tal argumento para nossos propósitos? Salientar

que Mill já notou a necessidade de se priorizar a noção de verdade numa teoria

semântica. Ele não deixa, certamente, de fornecer á sua teoria uma dimensão

pragmática: a linguagem possui uma função, um uso. No entanto, não usamos a

linguagem simplesmente comunicar aos outros o conteúdo atual de nossas

representações, mas (também) para comunicar o ‘objeto de nossas crenças’. E,

embora a crença em si mesma seja um estado de consciência e, por isso mesmo, uma

manifestação absolutamente subjetiva, quando cremos, cremos em algo, e esse algo é

algo absolutamente objetivo. A verdade, ao contrário do que dizia Locke, não se

refere às nossas idéias, mas a fatos objetivos do mundo. Esse foi o principal

movimento realizado por Mill no que tange aos problemas que nos interessam

particularmente: delegar à linguagem uma roupagem lógica-veritativa em oposição à

visão sócio-pragmática presente no modelo hobbes-lockeano. Naquele modelo, a

93 “This simple definition of a name, as word (or set of words) serving the double purpose of a mark to recall to ourselves the likeness of a former thought, and a sign to make it know to others, appears unexceptionable. Names, indeed, do much more than this; but whatever else they do, grows out of, and is the result of this” (idem, I, ii, 1)

99

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teoria da linguagem tem por objetivo sua fundamentação enquanto instrumento

necessário para o estabelecimento do contrato social; por isso supõe que sua função é

comunicar pensamentos, pois só ‘trocando idéias’ (literalmente), os indivíduos

podem estabelecer os acordos necessários ao mútuo convívio. Aqui, no universo do

System of logic, a linguagem é fundamentada enquanto discurso proposicional,

enquanto instrumento necessário à enunciação de verdades. Creio que seja ocioso

lembrar o quanto essa mudança de ponto de vista com relação à natureza e função

pragmática da linguagem foi determinante para muitas das discussões que serão

empreendidas por filósofos como Frege, Russell, Moore ou Wittgenstein, para citar

somente os mais importantes.

II.4.1. Mill e a unidade do sentido proposicional

Na seção anterior, foi apontado que o argumento milliano contra o

conceitualismo está baseado na afirmação de que usamos a linguagem, ao contrário

do que defende a escola hobbes-lockeana, para expressar nossas crenças; e que

crença, em Mill, remete-nos à uma dimensão lógico-veritativa. Não vem ao caso,

porém, investigarmos aqui qual o significado do termo crença (belief), a partir de sua

dimensão psicológica no universo sistemático de Mill, mas tão somente seu aspecto

lógico; é importante notarmos a conexão íntima existente entre crença e verdade94.

De acordo com a passagem citada mais acima, vimos claramente que a crença em

Mill está sempre relacionada a um conteúdo crido, e que a crença consiste na

atribuição do valor de verdade Verdadeiro a esse conteúdo. Quando se pronuncia, no

uso geral da linguagem, a proposição “o sol é causa do dia” o que se está afirmando é

algo como “eu acredito que o sol é a causa do dia” ou, mais especificamente “para 94 Sobre a relação entre crença, proposição e verdade tratamos em I.2.3.

100

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mim ‘o sol é a causa do dia’ é uma proposição verdadeira’”. A crença, pois, deve

sempre estar referida a um conteúdo que é crido. A crença é sempre uma crença em

algo. Não se pode dizer, com sentido, de maneira alguma, “eu creio” simplesmente,

mas deve-se sempre dizer algo como “eu creio que P”. Ou seja, o ato da crença deve

sempre se referir a algo, e esse algo não pode ser confundido com o próprio ato da

crença. Devemos extrair das colocações de Mill que o ato da crença deve possuir um

caráter intencional. A crença se estabelece por sua relação a algo objetivo, que

transcende a própria consciência. A pergunta que se coloca, então, é a seguinte: qual

é o objeto da crença? Qual o status daquele ‘algo’ que é crido como verdadeiro?

Frege conseguiu encontrar uma saída arrojada para um problema similar. Se

assimilarmos, o que parece plausível, a atribuição de um valor de verdade em Frege,

com o ato da crença em Mill, no qual uma proposição é tomada por verdadeira,

veremos que nos dois casos existe a necessidade de se perguntar pelo portador da

verdade. Ou melhor, em Frege perguntamos pelo portador da verdade, em Mill pelo

objeto da crença, mas nos dois casos a questão se mantém similar: qual a referência

do ato intencional da atribuição de verdade? Frege fornece a seguinte resposta: o que

pode ser verdadeiro ou falso, o que recebe nosso assentimento no ato da asserção é

um Gedanke, um pensamento entendido como conteúdo objetivo, é algo que está

vinculado ao que Frege estabeleceu como o ‘terceiro reino’, um conteúdo objetivo

que deve ser captado pelos sujeitos; que é objetivo no sentido de ser exatamente o

mesmo para todos os sujeitos que são capazes de captá-los, mas que nem por isso são

efetivamente reais95. Mill, no entanto, por razões de princípio, por conta de posições

bastante definidas com relação à origem empírica do conhecimento, não pôde, ao

menos explicitamente, seguir caminho que foi mais tarde trilhado por Frege, embora

95 No capítulo III trataremos de forma mais detida essa questão.

101

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já tivesse ao seu dispor muitos dos instrumentos necessários para isso. Veremos na

seção seguinte como Mill trata o problema.

II.4.2. Proposição e juízo

Sem dúvida, uma tese fundamental do System of logic, ao menos para nossos

propósitos, repousa na distinção que Mill realiza entre, de um lado, o ato subjetivo

da crença e, do outro, o conteúdo objetivo dessa crença ou, para usar a expressão

mais propriamente milliana, o objeto da crença. Escreve ele:

Um estudo da natureza das proposições deve ter por finalidade uma dessas duas coisas: análise do estado de espírito chamado crença, ou a análise do objeto dessa crença. (...) A lógica, tal como é concebida aqui, não tem porque se ocupar com ato de crer ou de julgar. O estudo de tal operação, enquanto fenômeno do espírito, é objeto de oura ciência.96.

Algo importante deve ser apontado a partir da passagem acima: Mill, mais uma vez,

está estabelecendo uma distinção fina e importante com respeito à relação entre

lógica e psicologia. Em I.2.1., vimos que Mill estabelece, a partir da tese de que a

lógica é composta por uma parte científica e outra artística, a necessidade de se

distinguir as explicações causais referentes ao que se passa no intelecto dos

indivíduos quando raciocinam de fato, daquilo que fundamenta a correção dos

raciocínios. Na passagem acima, Mill enuncia a necessidade de distinguirmos o ato

da crença enquanto processo subjetivo, do conteúdo da crença, que deve ser,

certamente, objetivo. Veremos no capítulo seguinte o quanto ambas distinções são

96 “An inquiry into the nature of proposition must have one of two objects: to analyse the state of mind called Belief, or to analyse what is believed (...) Logic, according to the conception here formed of it, has to concern with the nature of the act of judging or believing; the consideration of the act, as a phenomenon of the mind, belongs to another science.” (Idem: I, v, 1)

102

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caras ao antipsicologismo fregeano. Mas, por ora, devemos apontar na passagem

acima que, mais uma vez, Mill está professando seu repúdio ao subjetivismo típico

dos modernos manifestado na tendência de assimilar o ato subjetivo de julgar com o

conteúdo julgado. O que deveriam ser teorias da proposição acabaram se tornando,

para os modernos, teorias do juízo97. Em oposição a isso, Mill está reclamando a

necessidade de se considerar separadamente duas coisas que equivocadamente foram

assimiladas uma à outra: ato de julgar e conteúdo julgado, o estado de espírito

chamado crença e o objeto da crença.

Embora, em seu livro, Mill tenha se referido explicitamente a Descartes,

Leibniz e Locke como defensores dessa postura, podemos encontrar em Kant, talvez,

sua maior expressão. Para Kant, como é bem sabido, o juízo (i. e. aquilo que pode ser

verdadeiro ou falso) depende inexoravelmente da figura de um sujeito que, a partir

do aparato transcendental cognitivo que possui, é capaz de “processar” o múltiplo da

intuição e produzir, por meio da síntese, enunciados acerca do mundo (juízos). Nesse

sentido, o conteúdo desses enunciados não pode ser dissociado dos processos

subjetivos que o produzem. Assim, o próprio ato subjetivo envolvido numa asserção

seria ele mesmo o ‘produtor’ do enunciado; a constituição daquilo que se acostumou

chamar de ‘sentido proposicional’ é um processo que se confunde com a assunção da

verdade do enunciado no ato do juízo. O que Mill reivindica é a necessidade de

distinguirmos duas instâncias nesse processo – o ato do juízo e a coisa julgada; com

isso o próprio conceito de juízo se modifica, pois se transforma num procedimento

puramente passivo de crença ou não crença num conteúdo objetivo previamente

constituído.

97 Conformably to these views, almost all writers in Logic in the las two centuries, whether English, German, or French, have made their theory of Proposition, from one edn to the other, a theory of Judgments. They considered a Proposition, or a Judgment, for they used the two words indiscriminatly, to consist in affirming or denying one idea of another” (idem: I, v, 1)

103

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Como já foi mencionado, para Mill, numa proposição, algo é associado a algo;

trata-se da união de duas ‘coisas’98, uma determinada pelo termo sujeito e a outra

pelo termo predicado. Ora, antes da manifestação da crença na verdade desse

complexo proposicional é necessário que o próprio complexo seja concebido

independentemente de sua verdade ou falsidade ou, como diz Mill,

independentemente da crença que possamos ter ou não acerca de sua verdade. Para

não crer que Maomé é um apóstolo de Deus é absolutamente necessário que Maomé

e apóstolo de Deus sejam previamente concebidos como unidos num sentido

proposicional99. Somente na posse desse complexo proposicional objetivo, em

princípio ‘neutro’ com relação ao seu valor de verdade, é que os sujeitos podem

manifestar sua crença ou descrença em sua verdade e, assim, enunciar um juízo (que,

guardadas as devidas proporções, se equivale àquilo que Frege chamará de asserção, a

assunção de que o enunciado é verdadeiro).

Diante disso, coloca-se a seguinte pergunta: qual é o status desse conteúdo?

No que consiste essa unidade de sentido objetiva que é tomada por verdadeira no ato

da crença? De acordo com Mill, não se trata de uma ‘entidade’ psicológica ou

subjetiva, como as proposições mentais lockeanas, mas algo ‘exterior’ ao espírito, um

fato no mundo100. Embora, de acordo com Mill, seja necessário, certamente, que algo

se passe no universo psicológico quando damos assentimento a um conteúdo

proposicional, não são a esses estados psicológicos que o ato da crença se refere. O

que Mill está estabelecendo é a necessidade de se separar o joio do trigo; de fato,

98 “coisa”, aqui, entendido no sentido mais neutro que se possa supor. 99 “We must have the idea of gold and idea of yellow, and these two ideas must be brought together in our mind. But in first place, it is evident that this is only a part of what takes place; for we may put two ideas together without any act of belief; as when we merely imagine something, such as a golden montain; or even we actually disbelieve: for in order even desbelieve of Mahomet and that os an apostle of God, we must put two ideas together, is one of the most intricate of metaphysical problem” (idem) 100 “...propositions (except sometimes when the mind itself is the subject treated of) are not assertions respecting our ideas of things, but assertions respecting the things themselves” (idem).

104

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ocorrem processos subjetivos e psicológicos quando damos assentimento a algum

conteúdo proposicional, idéias são associadas e relacionadas no âmbito das

representações privadas dos sujeitos. Mas isso, embora ocorra, nada tem a ver com a

lógica. O objeto da psicologia é a análise do estado de espírito chamado crença, o

objeto da lógica é a análise do objeto dessa crença. Na terceira parte deste trabalho,

veremos como essa postura é cara e valiosa para o antipsicologismo de Frege, mas por

ora, cabe ressaltar a necessidade de se identificar o status do conteúdo objetivo crido

no ato do juízo.

No universo milliano, é a teoria da conotação o principal elemento que joga

em favor da objetivação do conteúdo proposicional. As proposições nas quais

ocorrem nomes conotativos, o objeto da crença deve ser determinado não pela

consideração das idéias e da relação entre idéias no âmbito da subjetividade, mas pela

consideração da carga semântica que os nomes conotativos possuem. Assim, quando

afirmamos, por exemplo, que a parede é branca estamos dando nosso assentimento

ao um conteúdo que se estabelece na medida em que se considera, no complexo a ser

julgado, que um determinado objeto que possui o(s) predicado(s) conotado(s) pelo

nome “parede”, possui também o(s) predicado(s) conotado(s) pelo nome “branco”.

Ora, podemos extrair daí que o objeto da crença não é subjetivo, que não está

relacionado ao universo psicológico do sujeito. É, portanto, objetivo. Mas é objetivo

no mesmo sentido em que as coisas do mundo o são? O conteúdo da proposição “a

parede é branca” é tão objetivo quanto a própria parede? Sabemos que em Frege não.

Frege diferencia dois níveis de objetividade: a objetividade do mundo físico exterior,

percebido pelos sentidos e a objetividade do pensamento, captada pelo razão101. Ora,

se em Mill não existe, ao menos explicita e manifestamente, o postulado do terceiro

reino, parece que a única saída é realmente assimilar a objetividade do conteúdo

101 ver III.3.

105

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proposicional à objetividade do mundo físico. A postura milliana, graças em grande

medida ao seu empirismo, é de ‘factualizar’ o conteúdo proposicional. Entretanto, tal

saída parece muito pouco aceitável, mesmo dentro dos próprios pressupostos

millianos. Por uma razão bastante simples: embora Mill não admita isso, sua teoria

da conotação estabelece algo que talvez possa ser chamado de um “terceiro reino

semântico”. Entre o universo subjetivo da associação das idéias, e o mundo exterior

que Mill pretende valorizar, existe um ‘universo semântico’ estabelecido pela carga

significativa que os nomes conotativos possuem. Uma coisa são as idéias, outra coisa

são os objetos do mundo físico exterior, e uma terceira coisa muito diferente é a

linguagem e seus ‘mecanismos autônomos’ de significatividade. Um nome conotativo

significa independentemente das idéias subjetivas e das coisas do mundo. Ele

significa exclusivamente por meio da carga semântica determinada por sua

conotação. E essa não se confunde com os sujeitos nem tampouco com os objetos do

mundo exterior. Elas constituem efetivamente um reino autônomo. A própria teoria

das proposições verbais demonstra isso: nelas não se fala nada sobre o mundo

exterior nem sobre o universo psicológico, mas sobre um ‘universo intermediário’,

relacionado exclusivamente à linguagem. Nesse sentido, talvez possamos responder

nossa pergunta com relação ao status do objeto da crença situando-o nesse universo

intermediário. Cremos num conteúdo proposicional que é estabelecido

exclusivamente com relação à conotação dos nomes. Em última análise, cremos que

aquele conteúdo objetivo estabelecido no âmbito da linguagem, realiza-se no mundo

exterior. E a teoria da conotação, da maneira como é estabelecida, possui

particularmente a capacidade de vincular o universo da linguagem ao mundo

exterior sem a necessidade de se postular categorias subjetivas. Certamente, Mill não

chegou ao extremo fregeano de identificar o conteúdo proposicional como unidades

de sentido prioritárias, mas claramente dotou a proposição de uma objetividade

106

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absolutamente peculiar com relação à velha dicotomia sujeito/objeto ou

interior/exterior.

Vale também apontar, como mais um argumento em favor de nossa posição,

que o radical empirismo de Mill, por paradoxal que possa parecer, acaba por nos

direcionar a uma objetivação não real do conteúdo proposicional. Mill tente a

considerar que as proposições expressam um fato real, um fato do mundo exterior.

As proposições não nos dizem nada acerca de nossas idéias, mas acerca do mundo.

Há, entretanto, que se realizar uma distinção fina que Mill aparentemente não

realizou: que a circunstância de que a proposição nos informa sobre fatos do mundo

não deve necessariamente significar que a própria proposição, enquanto unidade de

sentido e objeto intencional da crença, seja ela própria um fato do mundo. Ora,

seguindo toda uma tradição empirista, Mill defende a tese de que só existem no

mundo coisas individuais; e que a proposição, enquanto signo complexo, deve estar

voltada a essas coisas e não às nossas idéias das coisas. A pergunta que se coloca é a

seguinte: se a unidade do sentido proposicional não se constitui no nível psicológico,

devemos, então, extrair daí que ela se constitui no próprio mundo exterior? Não! A

menos que queiramos identificar no System of logic algo como o embrião do

Tractatus de Wittgenstein, no qual o fato proposicional nada mais é do que uma

figuração lógica dos fatos reais; que a unidade do sentido se estabelece no nível da

proposição, porque o mundo resolve-se em fatos102, se organiza de forma

‘proposicional’, embora sejam os objetos aquilo que existe efetivamente, como as

substâncias (individuais) do mundo103. E nesse caso, a unidade da proposição teria

uma fundamentação ontológica. Em última análise, no Tractatus, o mundo

originariamente é proposicional. No entanto, não é isso absolutamente o que ocorre 102 “Das Welt zerfällt in Tatsachen” (Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus; 1.2) 103 “Die Gegebtände bilden dir Substanz der Welt. Darum können sie nicht zusammengesetzt sein” (idem: 2.021)

107

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em Mill. A unidade proposicional se estabelece no âmbito da linguagem, na instância

‘paralela’ determinada pelo conteúdo semântico dos nomes conotativos. Se em Locke

essa unidade se estabelece no universo do sujeito psicológico por meio das

proposições mentais e em Wittgenstein esse problema é dissolvido pela tese de que o

fato proposicional compartilha a mesma forma lógica do fato real que é figurado na

proposição, em Mill ela se estabelece exclusivamente no nível da linguagem, e mais

especificamente, da semântica. É no âmbito da carga semântica que os nomes

conotativos carregam que o conteúdo proposicional se estabelece. A proposição

segue sendo um símbolo complexo, que articula duas ‘instâncias’; porém, o que é

articulado na constituição da unidade do sentido proposicional é a abrangência

semântica dos nomes. Esse, acredito, é um importante motivo em favor de nossa tese

mais geral que busca estabelecer a o papel de destaque do System of logic no

movimento da filosofia direção à linguagem; deu, portanto, um importante passo em

direção ao caminho que Frege, por exemplo, veio a seguir depois. Mill trouxe o foco

das discussões para os domínios da semântica; e isso, apesar de todos os problemas e

inconsistências que sua filosofia da lógica possam carregar, é suficiente o

enxergarmos como um importante precursor - senão o inaugurador! - da filosofia

analítica contemporânea.

II.5. Conclusão do capítulo

A partir do que foi exposto neste capítulo, talvez seja possível compreender

qual o sentido da afirmação de que a crítica milliana ao conceitualismo exerceu

fundamental importância para os desdobramentos futuros do pensamento filosófico,

principalmente no que diz respeito à chamada virada lingüística do século XIX. E

isso por alguns motivos:

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a) Mill introduz, em oposição ao modelo hobbes-lockeano que concebe a

linguagem como um instrumento vinculado à uma dimensão sócio-

pragmática, uma dimensão lógico-veritativa. A linguagem não se presta

prioritariamente ao estabelecimento do contrato social, mas à enunciação de

verdades. Ora, a radicalização desse ponto de vista veio a desembocar no

Tractatus de Wittgenstein e sua concepção absolutamente restritiva da

linguagem enquanto fundamentada exclusivamente a partir do

estabelecimento do sentido proposicional. O que pode ser dito, no Tractatus,

é o que pode ser expresso proposicionalmente, e acredito que não seja exagero

afirmar que um dos embriões dessa tendência, da priorização da proposição

numa teoria acerca da linguagem, pode ser identificado na crítica que faz

Stuart Mill ao conceitualismo, na medida em que ele privilegia o caráter

lógico-veritativo da linguagem em oposição à dimensão sócio-política

representada pelo modelo lockeano.

b) Ao negar que a dimensão psicológica da linguagem exerce papel relevante na

constituição do sentido proposicional, Mill acaba por apontar, mesmo que

implicitamente, a necessidade do estabelecimento do significado dos nomes

dentro do contexto proposicional: utilizamos a linguagem para expressar

nossas crenças, para explicitar o que consideramos serem verdades sobre o

mundo; por isso, os significados devem, necessariamente, possuir uma

dimensão objetiva. E essa objetividade somente pode ser obtida pela

referência a um conteúdo proposicional. Veremos, a seguir, o quanto essa

posição milliana será útil a Frege na elaboração de seu princípio do contexto.

c) Ao fundamentar a objetividade da linguagem a partir de sua teoria da

conotação, Mill estabelece um terceiro universo como que mediando a

relação entre sujeito e mundo exterior: o universo da linguagem e, mais

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especificamente, da semântica. A conotação dos nomes, que é o terreno no

qual se estabelece a unidade do sentido proposicional, não é nem dependente

do universo psicológico e suas idéias privadas, nem do mundo físico exterior

propriamente dito. Tanto é assim que Mill identifica uma classe de

proposições, que são meramente verbais, que não nos dizem nada com

respeito ao mundo exterior nem ao universo psicológico, mas somente ao

universo da linguagem.

d) Ao negar a tese de que os nomes referem-se a idéias, Mill rompe com um dos

pilares que sustentam o psicologismo lógico. E sabemos que a superação desse

psicologismo foi de fundamental importância para a superação definitiva do

que ainda existia de pensamento moderno no século XIX.

No capítulo seguinte, analisaremos com mais detalhes a relação de Stuart Mill

com o psicologismo, sobretudo a partir da consideração do antipsicologismo fregeano

e da maneira como Frege leu o System of logic. Se, no Capítulo I, nosso interesse

esteve voltado à explicitação de algumas teses do System of logic acerca da natureza

da lógica e dos mecanismos de significação dos nomes baseados no conceito de

conotação, e neste segundo, à refutação por parte de Mill do modelo semântico

psicológico representado pela teoria das idéias lockeana e as conseqüências disso para

o problema acerca do estabelecimento da unidade do sentido proposicional,

abordaremos a seguir, dentro de um ponto de vista bastante específico, a recepção

das teorias lógico-semânticas millianas por parte de Frege. Pretenderemos responder

se, aos olhos de Frege, Mill era, de fato, um psicologista. Esperamos que a posição de

Frege frente às teses de Mill, no que se refere ao problema do psicologismo (que, de

acordo com nossa hipótese, não foi o alvo a ser objetivado por Frege em suas críticas

ao System of logic), conjugados ao que acabamos de apresentar, forneçam elementos

suficientes para que possamos estabelecer aquela que é nossa hipótese mais geral e

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mais importante: que Mill foi um protagonista no movimento que superou o que

ainda restava da filosofia moderna no século XIX, e que, portanto, foi um dos

principais inauguradores da filosofia contemporânea.

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Capítulo - III

Mill e o antipsicologismo fregeano

Abordaremos aqui a questão referente ao suposto psicologismo milliano a partir do ponto de vista do antipsicologismo de Frege. Serão apresentados alguns conceitos importantes referentes ao projeto logicista de Frege a fim de estabelecer as bases de seu antipsicologismo lógico. Em seguida, são analisadas as posições de Stuart Mill com relação aos principais pilares desse antipsicologismo fregeano.

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III.1. É Mill um psicologista?

A pergunta acerca de um possível psicologismo milliano não pode receber

uma resposta simples, do tipo sim ou não. E isso por alguns motivos. Em primeiro

lugar, devido à falta de uma definição precisa com respeito ao próprio conceito de

psicologismo enquanto tal104. Por ser a expressão ‘psicologismo’ um rótulo utilizado,

sobretudo, por parte daqueles que, de alguma forma, buscavam criticar uma certa

maneira de se considerar a natureza da lógica, e não um ‘título’ cunhado e

reivindicado por parte daqueles pensadores que defendem posturas consideradas

psicologistas, muitas vezes os critérios utilizados para se enquadrar uma determinada

filosofia da lógica ao psicologismo são confusos, imprecisos e, sobretudo, demasiado

genéricos. E, nesse sentido, de acordo com o acento que se dá a esta ou aquela

característica considerada como sendo central na estipulação do conceito de

psicologismo, Mill pode ser aproximado ou afastado da ‘acusação’ de ser um

psicologista.

Psicologismo é um conceito pertencente à filosofia da lógica que, de uma

maneira geral, pode ser definido como a posição que afirma ser a lógica não uma

disciplina autônoma, mas, ao contrário disso, é uma parte, um ramo da psicologia.

Nesse sentido, as leis da lógica, as regras e princípios utilizados para fundamentar a

validade das inferências, devem ser tomados não como princípios racionais objetivos,

mas como leis psicológicas que descrevem os processos subjetivos envolvidos no ato 104 Podemos, certamente, analisando a posição de alguns filósofos e intérpretes, identificar alguns pontos comuns nas definições de psicologismo que defendem. No entanto, tais constantes não são suficientes para garantir uma univocidade conceitual nesse particular. Dummet, por exemplo, aponta para o caráter semântico do psicologismo, dando maior ênfase à tese de que os significados dos termos são entidades puramente mentais. Skorupiski salienta duas características marcantes do psicologismo: identificação das regras de inferência como generalização de processos mentais e a tese de que os significados são idéias. Brokaus, por sua vez, somente enfatiza o a dependência das leis lógicas com relação a processos psicológicos do pensamento atual.

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de pensar. A lógica seria, pois, de acordo com tal ponto de vista, uma ciência

empírica, uma vez que suas leis nada mais seriam do que generalizações realizadas a

partir da observação exaustiva de como os homens efetivamente pensam. E, mais do

que isso, seria uma ciência descritiva, tal como uma ‘física do pensamento’105; uma

ciência marcada pela identificação das leis que regem os processos mentais

envolvidos quando se realiza uma inferência. Certamente, problemas importantes

estão envolvidos na polêmica acerca da natureza da lógica na qual o psicologismo

está inserido. Entre outras coisas, a própria objetividade princípios dos lógicos mais

elementares está comprometida dentro de um tal ponto de vista, pois a lógica teria

um caráter eminentemente subjetivo e prioritariamente factual.

Ora, se o conceito de psicologismo é tomado assim, de uma forma genérica

como acabamos de fazer, fora de qualquer contexto sistemático, a tentação de se

considerar Mill um psicologista é muito grande, e tal posição pode parecer, em

princípio, inevitável. Em primeiro lugar, porque Mill é adepto de um empirismo

ultra-radical – considerado por Frege como preconceituoso; tão radical ao ponto de

afirmar ser a lógica (como também as matemáticas) uma ciência empírica, e suas leis

as mais elementares generalizações realizadas a partir da experiência. E, como

veremos mais adiante, o psicologismo é uma posição eminentemente empirista: todo

psicologismo é necessariamente empirista – embora a recíproca não seja

necessariamente verdadeira. Por isso, o empirismo de Mill pode, ao menos em

princípio, parecer direcioná-lo ao terreno psicologista, dada a tentação que se pode 105 Segundo nos informa Wolfgang, havia uma discussão acalorada no Alemanha dos tempos de Frege acerca natureza prescritiva ou descritiva das leis da lógica. Seria a lógica algo como a ‘ética’ ou a ‘física’ do pensamento? Lipps, defendeu a segunda hipótese contra Wundt. De acordo com Wolfgang, Lipps “...criticised Wundt’s claim that logical laws are normative. He used de pinthy formula ‘logic as the physics, not as the ethics of thinking’ and dintinguished two different kinds of norms: prescriptive norms and ‘norms of nature’, which are laws of nature. Now, the logical laws are not prescriptive because they are not the result of some kind of ‘autoritative will’. Are they then, ‘laws of nature of thinking’? Lipps to give a positive answer to this question by taking logical laws as ‘rules according to which one has to proceed if one is to think corretly” (Frege’s theorie of sense and reference, pag. 14)

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ter de assimilar, sem mais, empirismo e psicologismo. Mas existe ainda um elemento

mais forte e aparentemente definitivo que parece decidir de vez a questão em favor

de um Mill psicologista. Trata-se de uma passagem textual do próprio Mill citada por

Husserl numa célebre passagem de suas Investigações Lógicas106: Mill afirma com

todas as letras que a lógica não é uma ciência autônoma, mas que, ao invés disso, é

uma parte, um ramo da psicologia. Ou seja, Mill repete com todas as letras aquele

que é, ao menos em princípio, a principal característica do psicologismo lógico: a

submissão da lógica à psicologia. Tal estado de coisas levou, não só Husserl, mas uma

série de pensadores e interpretes a considerar a lógica milliana com um modelo

lógica psicológica107, e a alguns anti-psicologistas a tomá-la com um inimigo a ser

batido. No entanto, as coisas, nesse particular, não podem ser tomadas de uma

maneira tão simplista; a postura de Mill com relação ao papel dos processos

subjetivos na edificação da ciência da lógica e à objetividade dos princípios lógicos,

além de seu manifesto realismo semântico, podem sugerir a possibilidade de se

desvendar, por de trás de seu empirismo ‘ingênuo’, uma lógica com fortes traços

anti-psicologistas108.

106 HUSSERL, B.: Logische Untersuchungen; (3, #18) 107 O trabalho de Richard Brockaus intitulado Realism na psychologism in 19th Century logic apresenta-nos um Mill fortemente psicologista. Em linhas gerais, o autor defende que o fato de Mill ter confundido, de acordo com a crítica fregeana dos Grundlagen der Arithmetik, a explicação da maneira como supostamente adquirimos o conceito de número a partir da experiência empírica, das razões que estão envolvidas numa definição de número que possa ser útil à redução das verdades aritméticas até seus primeiros princípios, como um expediente eminentemente psicologista. 108 O principal interprete do pensamento milliano que joga em favor da tese de um Mill, senão anti-psicologista, ao menos não-psicologista, é John Skorupski. Segundo esse autor, o caráter normativo que Mill delega à lógica em seu System of logic acaba fazendo com a própria arquitetura interna de seu sistema se mostre incompatível com as teses psicologistas. O autor nos oferece alguns argumentos em favor de sua tese, dos quais apontaremos dois: a) se o psicologismo defende que as leis da lógica são produtos da generalização realizada a partir da verificação dos processos subjetivos envolvidos no pensamento atual, elas devem ser necessariamente a posteriori. Ora, se as ‘leis da lógica’ são a posteriori, não podem ser universais (em sentido kantiano), ou seja, aplicáveis a todas as esferas dos fenômenos. Mas é justamente esse o status que Mill delega aos princípios lógicos mais elementares. b) Mill, como sabemos, fundamenta sua lógica no princípio da indução. A lógica trata, segundo sua definição, das verdades não intuitivas, não

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Esse estado de coisas indica-nos a necessidade que temos de tomar uma

premissa sistemática que será fundamental ao presente trabalho: pelo fato de Mill

não ser, ao menos do ponto de vista daqueles que observam sua filosofia a partir de

categorias conceituais a ele anacrônicas (embora valiosas para o entendimento dos

movimentos que levaram ao advento daquilo que se acostumou chamar de filosofia

contemporânea), um pensador coerente no que se refere à sua posição com respeito

àquilo que se acostumou chamar de psicologismo lógico, de acordo com o maior ou

menor acento que se dá a este ou aquele aspecto do seu pensamento lógico milliano

ou mesmo do próprio conceito de psicologismo lógico, Mill pode e não pode ser

considerado psicologista. Tanto quem acusa Mill de psicologismo, quanto quem

busca defendê-lo de tal acusação podem estar certos e têm motivos bastante fortes

para defender esta ou aquela posição.

diretamente disponíveis à intuição, mas inferidas a partir das verdades indutivas às quais temos acesso unicamente por meio da observação empírica. E como a observação empírica somente pode fornecer verdades particulares, toda inferência lógica terá, em última análise, premissas particulares. Por conta disso, o raciocínio indutivo é o principal sustentáculo da lógica milliana. E nesse sentido, cabe-nos fazer a pergunta a respeito do status epistemológico do próprio princípio da indução. Se considerarmos, como deve ser feito, o princípio da indução como um ‘cânon’ da indução enumerativa, teremos que considera-lo como um conjunto de enunciados normativos que visam determinar uma certo procedimento a ser realizado a partir da observação empírica. Se aceitarmos, com Skorupski - o que parece bastante plausível - ser necessário traçar uma distinção clara entre proposições factuais e normativas, entre aqueles enunciados que buscam afirmar positivamente a ocorrência algum fato no mundo, daquelas que tem por objetivos servir de cânon para balizar determinadas condutas - no caso, para instruir o correto raciocínio - que são prescritivas ao invés de descritivas, uma conseqüência importante deve ser extraída: uma vez que a distinção a priori - a posteriori somente pode ser utilizada se referida à maneira como a verdade de um enunciado factual pode ser justificada, ela não se aplica aos enunciados normativos. Vimos que Mill traça uma distinção importante entre proposições reais e aquelas meramente verbais; e que as proposições reais, ao contrário das verbais que nos informam somente acerca do significados das palavras, são as únicas que efetivamente nos dizem algo a respeito do mundo e que, por conseguinte, aumentam nosso conhecimento. Certamente, as proposições reais são as únicas que podem legitimamente ser chamadas de factuais e, portanto, a posteriori. Ora, no campo das proposições normativas o problema da justificação não se coloca, ou, melhor dizendo, se coloca não em termos de a priori – a posteriori. Nesse sentido, seria no mínimo uma impropriedade lógica e sistemática por parte de Mill a tese de que as leis e princípios lógicos são a posteriori. Se aceitarmos esta característica da lógica milliana, podemos facilmente afasta-la de uma posição psicologista.

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Diante disso, nosso objetivo aqui não será o de tentar decidir se Mill é ou

psicologista, nem tampouco de realizar um inventário das diversas interpretações

que o situam deste ou daquele lado da polêmica. Ao invés disso, buscaremos abordar

o problema do suposto psicologismo milliano, a partir de um ponto de vista bastante

específico. Não se trata de responder sim ou não à pergunta sobre se Mill é ou não

psicologista, mas de responder a uma pergunta mais especificamente formulada.

Nosso objetivo será responder se, de acordo com a crítica que Frege realiza ao

psicologismo, e com o papel que exerce o anti-psicologismo dentro da arquitetura

interna do seu pensamento, Mill pode ser considerado um psicologista. Em outras

palavras: quando Frege critica implacavelmente o psicologismo, é Mill um dos

destinatários de sua crítica? Nosso objetivo não será decidir se Mill é ou não um

psicologista, mas de verificar se, e até que ponto, Frege o considerava com tal. Para

isso, será necessário, primeiramente, compreender qual o significado sistemático da

crítica fregeana ao psicologismo a fim de verificar até que ponto as coisas que pensa

Mill com relação à lógica são ou não incompatíveis com a posição fregeana frente ao

papel executado pelos processos e ‘entidades’ subjetivas na edificação de uma ciência

demonstrativa. Em segundo lugar, será necessário analisar as críticas que Frege

abertamente faz ao pensamento de Mill, a fim de constatarmos se existe nelas alguma

acusação de psicologismo.

Um outro problema deve ser abordado: a relação existente entre psicologismo

e empirismo. Certamente, o psicologismo é uma forma de empirismo; resta, pois,

sabermos se todo empirismo é necessariamente psicologista e, particularmente, se o

empirismo de Mill o é. Que Frege critica abertamente o empirismo milliano não

existe nenhuma dúvida. No entanto, se for possível estabelecer que, aos olhos de

Frege, o empirismo não se confunde com o psicologismo creio que teremos bons

argumentos em favor de nossa hipótese, a saber, de que Frege, ao invés de criticar

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um suposto psicologismo milliano, encontrou nas posições defendidas no System of

logic acerca ciência da lógica preciosos elementos em favor de seu próprio anti-

psicologismo, e que o teor das críticas que Frege dirige a Mill é eminentemente

epistemológico, não estando relacionado nem ao conceito milliano de lógica, nem

tampouco a uma suposta confusão, em lógica, entre as razões que sustentam

demonstrações e as explicações causais a respeito de processos psíquicos envolvidos

no ato do raciocínio, principal característica do antipsicologismo fregeano.

III.2 O antipsicologismo fregeano

O antipsicologismo de Frege não deve ser compreendido como algum tipo de

preconceito contra questões e explicações psicológicas, nem tampouco com uma

postura ideológica que visa simplesmente privilegiar uma ciência em detrimento de

outra. Em realidade, o antipsicologismo de Frege é somente a contraparte negativa

de seu projeto filosófico fundamental, de seu logicismo: todo vigor de seu

pensamento esteve sempre voltado à sua intenção de reduzir a aritmética à lógica. E

a fundamentação da aritmética em bases puramente lógicas exige, como um preceito

metodológico inegociável, uma radical e precisa distinção entre conceitos envolvidos

na demonstração das verdades aritméticas, as razões que fundamentam as

inferências, em oposição àqueles conceitos evolvidos nas explicações causais

referentes aos processos subjetivos de raciocínio (psicologismo), ou a quaisquer

outros elementos que possam estar envolvidos, de alguma forma, nas atividades

aritméticas, mas que não exercem nenhuma função positiva com relação à

justificativa racional do cálculo (formalismo, fisicalismo, indutivismo). Somente

devem ser considerados, na redução dos teoremas aritméticos até os primeiros

princípios, aqueles conceitos que exercem efetivamente alguma função na cadeia

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demonstrativa; e todas as explicações que se mostrem irrelevantes à redução das

verdades aritméticas até seus primeiros princípios, serão simplesmente desprezadas e

excluídas do corpo de conceitos que devem constituir a aritmética enquanto ciência

dedutiva. Há uma passagem, na introdução dos Grundlagen que ilustra bem esta

posição: ao referir-se à definição de número de Stricker como representações

motoras dependentes de sensações musculares, Frege aponta para o fato de que o

matemático não saberá o que fazer com uma tal definição, e que ela será

absolutamente inútil para as demonstrações aritméticas109. Em outra passagem

importante, Frege nos diz:

Uma tal descrição dos processos internos que precedem a formulação do juízo numérico, ainda que correta, nunca poderá substituir uma determinação genuína do conceito. Nunca se poderá recorrer a ela para a demonstração de uma proposição aritmética; por meio delas não aprendemos nenhuma verdade sobre os números110.

O número dos matemáticos não pode ser o número dos psicólogos. E a aritmética

somente estará fundamentada sobre alicerces seguros, se unicamente razões

demonstrativas estiverem evolvidas no corpo de verdades que a constitui.

Frege aponta razões históricas para endossar a pertinência de seu projeto: a

aritmética, diferentemente do que ocorrera com a geometria – em parte, segundo

ele, graças à origem hindu de seus conceitos – não se desenvolveu clamando pelo

rigor de suas demonstrações. A aparente trivialidade dos conceitos aritméticos mais

elementares fez com os matemáticos desenvolvessem ao longo dos séculos a ciência 109 Wenn z. B. Stricker die Vorstellungen der Zahlen motorisch, von Muskelgenfühlen abhängig nennt, so kann der Mathematiker seine Zahlen darin nicht wiederkennen und weis mit einem solchen Satze nicht anzufagen. Eine Arithimetik die auf Muskelgefühlen gegründet wäre, würde gewiss recht gefühlvoll, aber auch ebenso verschwommen ausfallen wie diese Grundlage” (Der Grundlagen der Arthimetik, Einleitung) 110 “Eine solche Beschreibung der innern Vorgänge, die der Fällung eines Zahlurtheils vorhergehen, kann nie, auch wenn sie zutreffender ist, eine eigentliche Begriffsbestimmung ersetzen. Sie wird nie zum Beweise eines arithmetischen Satzes herangezogen werden können; wir erfahren durch sie keine Eigenschaft der Zahlen (idem: #26)

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aritmética a partir de uma forma de pensamento mais frouxa que o da geometria.

Nesse sentido, o projeto fregeano está voltado não somente a se igualar à geometria

em rigor nas demonstrações dos teoremas aritméticos até seus primeiros princípios,

mas em supera-la. Estamos diante de um projeto de axiomatização da aritmética. E,

certamente, a aritmética, para ser axiomatizada e fundamentada de forma cabal,

necessita que se possua uma definição precisa do conceito de número natural, aquele

que pode servir de resposta á pergunta “quantos?”. Todos os outros conceitos mais

complexos envolvidos na aritmética, como os de números negativos ou irracionais,

em última instância, devem ser obtidos por dedução a partir do conceito de número

natural. Tal como Descartes necessitava do cogito para erguer, a partir dele, o

edifício dedutivo de sua metafísica, Frege necessita do conceito de número natural

para assentar sobre ele o edifício da aritmética.

Nesse sentido, o status epistemológico da aritmética, bem como sua relação

com as demais ciências dentro do universo do conhecimento humano, será decidido

de acordo com a maneira como o conceito de número natural for definido. Para Mill,

por exemplo, para quem o número é propriedade dos objetos exteriores e, portanto,

algo que se fundamenta na experiência, a aritmética é uma ciência empírica; para

Kant que estabelece como princípio das leis fundamentais da aritmética a intuição

pura do tempo, a aritmética será sintética a priori. Para Frege, só existe uma

possibilidade: o conceito de número natural deve ser definido em termos puramente

lógicos. Assim, em última instância, os teoremas da aritmética devem ser

considerados teoremas da lógica e a aritmética uma ciência analítica.

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III.2.1. A analiticidade da aritmética

Uma das maneiras de se compreender o papel exercido pelo logicismo dentro

do pensamento de Frege é atentar para o status epistemológico que ele delega às

proposições aritméticas. De acordo com Frege, ao contrário do que pensava Kant, as

verdades aritméticas são analíticas. Frege concorda com Kant com relação ao status

da geometria: a geometria necessita de um fundamento intuitivo, por isso suas

verdades devem ser sintéticas a priori. Entretanto, a universalidade e necessidade

absoluta das verdades aritméticas não permitem que Frege lhe delegue tal status.

Para compreendermos, primeiramente, o significado da tese fregeana de que

as verdades aritméticas são analíticas, é necessário esclarecer que o conceito de

analiticidade de Frege é diferente do de Kant. De acordo com Kant, um juízo

analítico é aquele em que o predicado está contido no sujeito111. O que significa isso?

Para Kant, um conceito é determinado por um conjunto finito de predicados. Nesse

sentido, por exemplo, o conceito de homem é composto pelos predicados mortal,

animal, bípede, racional etc. Portanto, todas as vezes que um juízo simplesmente

afirmar um desses predicados do sujeito ‘homem’, teremos um juízo analítico. Um

juízo analítico é, pois, segundo Kant, obtido por meio da análise do conceito do

termo sujeito: se o predicado pertencer já ao conjunto de predicados que compõe o

conceito representado pelo sujeito temos um juízo analítico, caso contrário, um juízo

sintético. De acordo com a posição kantiana, os juízos analíticos possuem sua

fundamentação no princípio de não contradição; afirmar que um conceito não possui

um predicado que faz parte dele próprio implica numa contradição. Afirmar, por

exemplo, que o homem não é mortal seria como dizer: “o homem, que é mortal (pois

111 Kant. (Kritik der reinen Vernunft; B10-11)

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isso seu conceito já estipula a priori), não é mortal”, o que é, claramente,

contraditório. De acordo com isso, o resultado do conceito kantiano de analiticidade

não poderia ser outro: os juízos analíticos são meramente triviais e não aumentam

em nada nosso conhecimento, apenas tornam mais claro aquilo que já sabemos de

antemão.

O conceito de analiticidade Fregeano é bastante diferente do de Kant. Num

ponto, porém, ambos concordam: na fundamentação eminente lógica das verdades

analíticas e na sua conseqüente aprioridade. Em Kant, os juízos analíticos se

fundamentam por meio do princípio lógico de não contradição. Em Frege, por meio

das razões envolvidas na demonstração, razões essas que devem ter uma natureza

eminentemente lógica. Frege nos diz:

...importa, pois, encontrar sua demonstração (de uma verdade) e nela remontar até as verdades primitivas. Se neste caminho somente encontramos leis lógicas gerais e definições, temos uma verdade analítica, pressupondo-se que também sejam consideradas as proposições sobre as quais se assenta a admissibilidade de uma definição...112

Claro está, de acordo com a posição fregeana, que a analiticidade não está

relacionada ao conteúdo dos conceitos, mas com as razões demonstrativas. A

demonstração de qualquer teorema da aritmética, se a considerarmos analítica em

sentido fregeano, deve, pois, ser levada adiante até que se chegue aos primeiros

princípios; esses devem ser ou princípios lógicos elementares, como os de não

contradição ou de identidade, ou definições. Tais definições, entretanto, não podem

ser estipuladas senão por meio de mecanismos e categorias lógicas. Daí a necessidade

112 “Es kommt nun darauf an, den Beweis zu finden und ihn bis auf die Urwahrheiten zurückuverfolgen. Stösst man auf diesem Wege nur auf die allgemeinen logischen Gesetze und auf Deninitionen, so hat man eine analytische. Wahrheit, wobei vorausgezetzt wird, dass auch die Sätze mit in Betrracht gezogen werden, auf denen etwa die Zulässigkeit einer Definiton beruht.” (Frege, Der Grundlagen der Arithmetik. #3)

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de se elaborar uma definição lógica do conceito de número. As verdades aritméticas

serão consideradas analíticas se o edifício sistemático da aritmética estiver assentado

sobre alicerces que são da natureza eminentemente lógica, sejam esses alicerces

princípio lógicos, sejam definições obtidas no âmbito da lógica, sem referência a

nenhuma outra ciência particular e sem apelo também à intuição; caso contrário,

serão sintéticas:

...se não é possível, entretanto, levar a demonstração sem servir-se de verdades que não são de natureza lógica geral, mas que remetem a um domínio científico particular, a proposição é sintética.113

Há que se destacar aqui que, ao contrário do que ocorre em Kant, é possível, de

acordo com o conceito fregeano de analiticidade, que uma verdade analítica não seja

trivial e aumente nosso conhecimento. Analiticidade, em Frege, está diretamente

relacionada às razões demonstrativas e não à maneira como os termos sujeito e

predicado se relacionam em referência a um conceito (até porque não temos mais

sujeito e predicado na lógica de Frege). Portanto, derivar teoremas a partir das

verdades primitivas da aritmética, se realmente Frege conseguir estabelecer sua

natureza lógica, será um procedimento analítico e, no entanto, uma atividade

científica que está longe de ser trivial, de ser uma simples clarificação daquilo que já

sabemos acerca das propriedades dos números. Não estão contidas no conceito de

número natural, que deve ser o ponto de partida de toda aritmética, todas as

propriedades de todos os números, nem tampouco as leis aritméticas gerais; elas são

deduzidas a partir dos princípios fundamentais da aritmética, seguindo determinadas

regras de inferência. Verdades analíticas, para Frege, produzem conhecimento

efetivamente. Uma verdade analítica se obtém não pela decomposição de um

113 “Wenn es aber nicht möglich ist, den Beweis zu führen, ohne Wahrheiten zu benutzen, weiche nicht allgemein logischer Natur sind, sondern sich auf ein besonderes Wissensgebiet beziehen, so ist der Satz ein synthetischer” (idem)

123

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conceito, mas por meio da derivação e dedução de verdades mais complexas a partir

de verdades mais elementares, desde que essas verdades sejam a priori e

eminentemente racionais.

De acordo com a definição fregeana de analiticidade, para fundamentar a

aritmética enquanto ciência analítica, será necessário comprovar que as leis

fundamentais da aritmética, a partir das quais estão assentados seus teoremas, são

todas verdades lógicas gerais ou definições obtidas dentro do âmbito da lógica. Nos

parágrafos 12 a 17 dos Grundlagen, Frege trata de resolver esta questão. Basicamente,

dois argumentos são oferecidos para justificar sua opção pela analiticidade da

aritmética: um com referência à necessidade inabalável das suas verdades, outro com

relação à universalidade de suas aplicações.

Vamos, primeiramente, abordar o argumento da necessidade. Kant imaginava

que o caráter sintético a priori, reivindicado por ele para as ciências em geral114, era

suficiente para garantir a absoluta necessidade e universalidade das leis científicas.

Isso graças ao caráter transcendental reivindicado para as categorias subjetivas que

determinariam a objetividade do conhecimento. Para Kant, objetividade é sinônimo

de intersubjetividade e, nesse sentido, as formas puras da intuição sensível e as

categorias do entendimento, embora subjetivas, seriam suficientes para garantir a

objetividade, necessidade e universalidade dos juízos que fossem obtidos de forma a

priori, ou seja, fundamentados ou pelo princípio lógico geral da não-contradição

(juízos analíticos) ou pela referência somente às formas puras da intuição e às

categorias do entendimento (juízos sintéticos a priori). No entanto, a história se

incumbiu de refutar Kant nesse particular. A descoberta de físicas não newtonianas e

de geometrias não euclidianas comprovou definitivamente que, ao menos nos

114 Como sabemos, ciência para Kant é conhecimento necessário, universal e cumulativo; essas características, para ele, somente os juízos sintéticos a priori podem oferecer.

124

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moldes kantianos, a universalidade da ciência não pode ser fundamentada a partir de

categorias subjetivas. É possível construir todo um sistema geométrico, assentado em

axiomas e definições, no qual, por exemplo, o postulado das paralelas não valha. É

possível estabelecer princípios para uma geometria, e efetivamente levar adiante

uma tal ciência demonstrativa, no qual o espaço possua outras propriedades que não

aquelas estabelecidas por Euclides. Mesmo que isso não seja intuitivo.

Ora, qual a importância dessas constatações para nossos propósitos? Segundo

Frege, a possibilidade de geometrias não euclidianas demonstra que os princípios a

partir dos quais a geometria se assenta não são princípios absolutamente universais,

mas, ao invés disso, repousam sobre nossa intuição do espaço; e a intuição, agora,

fora do universo da Crítica da razão pura, não mais garante necessidade e

universalidade. A intuição pode, ao menos em hipótese, ser contradita sem que isso

implique em alguma impossibilidade lógica. E uma ciência dedutiva estabelecida a

partir de princípios que contradizem a intuição não necessariamente será uma

ciência contraditória ou inconcebível racionalmente. Frege nos diz:

Do ponto de vista do pensamento conceitual, sempre é possível assumir o contrário de um ou outro axioma da geometria, sem incorrer em contradições ao se fazer deduções a partir de tais assunções contraditórias à intuição. Tal possibilidade demonstra que os axiomas geométricos são independentes entre si e em relação às leis lógicas primitivas, e, portanto sintéticos....115

Aliás, segundo Frege, foi justamente no momento em que se começou a indagar

pelos fundamentos lógicos da geometria que o axioma das paralelas foi

115 Für das begriffliche Denken kann man immerhin von diesem oder jenem geometrischen Axiome das Gegentheil annehmen ohnen dass man in Widerprüche mit sich selbst verwickelt wird, wenn man Schlussfolgerungen aus solchen der Anscheuung widerstreitenden Annahmem zieht. Diese möglichkeit zeigt, dass die geometrischen Axiome von einander und von den logischen Urgesetzen unabhängi, also synthetisch sind.” (idem: # 14)

125

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questionado116, e abriu-se o caminho para a edificação de uma geometria do espaço

não plano. Isso é o suficiente, segundo Frege, para determinar o caráter sintético da

geometria euclidiana (e das geometrias em geral): demonstrando os teoremas

geométricos a fim de remontar às verdades mais elementares que estão em sua base

não encontramos somente princípios lógicos ou definições estabelecidas no âmbito

da própria lógica, mas princípios fundamentados na intuição pura do espaço. Negar

alguns desses princípios pode gerar uma geometria ‘não intuitiva’, mas ainda assim,

uma geometria pensável.

Já na aritmética, isso não acontece. Kant havia considerado as matemáticas

(geometria e aritmética) e a física como sintéticas a priori e, por isso mesmo, de

acordo com seu ponto de vista, necessários e universais. Os fatos mostraram,

contudo, a possibilidade tanto da edificação de físicas não newtonianas, quanto de

geometrias não euclidianas. Mas não se pode, de maneira alguma, conceber alguma

outra aritmética na qual os princípios fundamentais sejam outros e,

conseqüentemente, as propriedades dos números sejam diferentes daquelas que

conhecemos. Podemos conceber uma geometria na qual as ‘paralelas’ se cruzam mas

não podemos conceber uma aritmética na qual as propriedades dos números sejam

outras; na qual, por exemplo, os números pares não sejam divisíveis por dois. A

conclusão que Frege pôde extrair, a partir desse argumento particular, é que a

aritmética, ao contrário do que ocorre na geometria que é eminentemente intuitiva,

deve assentar-se sobre princípios puramente lógicos, e, por isso mesmo,

absolutamente objetivos e necessários. Somente uma fundamentação puramente

racional pode fundamentar a necessidade inabalável das leis aritméticas. Portanto, de

116 “Indem man sich selbst an der euklidischen Streng nicht genügen liess, ist man auf die Untersuchungen geführt worden, welche sich an das Parallelenaxiom, geknüpft haben” (idem: # 2)

126

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acordo com a definição de analiticidade exposta acima, a aritmética deve ser uma

ciência analítica.

Há um outro argumento, diretamente relacionado ao anterior, que Frege

utiliza em favor da analiticidade da aritmética; ele diz respeito não à necessidade,

mas à universalidade de suas leis. Por estar relacionada com nossa intuição pura do

espaço, certamente estão sob os domínios da geometria todos os fenômenos espaciais.

Nesse sentido, ela está restrita ao reino do que é intuível ou do efetivamente real117.

A aritmética, por sua vez, tem uma abrangência muito maior, estando envolvida em

qualquer âmbito da atividade racional. A aritmética é, pois, ao contrário da

geometria, absolutamente universal, pois se aplica a todo universo humano, real ou

meramente pensável.

Os delírios extravagantes, as invenções mais atrevidas das lendas dos poetas, que fazem animais falarem, as estrelas imobilizarem-se, as pedras transformarem-se em homens e os homens em árvores, e contam como sair de um pântano puxando os próprios cabelos, tudo isso, na medida em que permanece intuível, está preso aos axiomas da geometria (...) As verdades aritméticas governam o domínio do enumerável. Este é mais inclusivo; pois não lhe pertencem apenas o efetivamente real nem apenas o intuível, mas todo o pensável.118

117 Veremos, mais adiante, que uma das principais teses fregeanas é aquela que distingue o que é efetivamente real do que é objetivo, e que essa é uma tese eminentemente epistemológica que fundamenta o chamado ‘terceiro reino’ fregeano. A distinção epistemológica entre o que pode ser conhecido por meio dos sentidos e o que pode ser ‘captado’ pelo pensamento, que em Frege tem um caráter absolutamente objetivo, determinará os âmbitos do real e/ou intuível e do objetivo não real, ou seja, o meramente pensável. 118 “Die tollstein Fieberphantasien, die kühnsten Erfindungen der Sage und der Dichter, welche Thiere reden, Gestirne stille stehen lassen, ans Satyeinen Menchen und aus Menchen Bäume machen, und lehren, wie man such am eigen Schopfe aus dem Sumpfe zieht, sie sind doch, sofern sie anchaulich bleiben, an die Axiome der Geometrie gebunden (...) Die arithmetischen Wahrheiten beherrschen das Gebiet des Zählbaren. Dies ist das umfossendste, denn nicht nur das Wirkliche, nicht nur das Anschauliche gehört ihm an, sondern alles Denkbare” (idem: #14)

127

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Isso significa que, mesmo onde a intuição espacial não joga nenhum papel, como,

por exemplo, no âmbito das maneiras possíveis de resolver um problema

matemático, no âmbito de conceitos abstratos como os de felicidade, liberdade ou

justiça; enfim, fora daquilo que podemos conceber com submetido ao reino do

espacial, ainda assim, as leis da aritmética valem e operam. Não é possível

conceber espacialmente a justiça, a liberdade ou a felicidade, não é possível

operar geometricamente sobre tais conceitos, mas é possível enumerá-los. Não é

possível intuir espacialmente maneiras distintas de se demonstrar um mesmo

teorema, mas posso dizer que existem duas ou três maneiras de se chegar a uma

tal demonstração. Enfim, não se pode exercer a atividade racional do pensamento

prescindindo das leis aritméticas, como também não o podemos prescindindo da

lógica. A aritmética, ao contrário da geometria, possui a objetividade, necessidade

e universalidade comparáveis somente às da própria lógica enquanto tal. Essas

razões parecem ser suficientes para endossar a posição logicista fregeana: somente

estabelecida dedutivamente a partir de verdades lógicas elementares e de

definições realizadas por meio de mecanismos puramente lógicos a aritmética

pode se assentar, dada sua total abrangência e necessidade.

III.2.2. Uma nova lógica

Vimos, a partir da análise da tese de que a aritmética é, ao contrário, por

exemplo, da geometria, uma ciência analítica, em que sentido deve ser

compreendido logicismo fregeano. Trata-se, pois, de um trabalho de ‘purificação’ da

aritmética que deve ser fundamentada a partir de princípios lógicos. E é com vistas a

esse projeto de fundamentação lógica da aritmética que deve ser abordado o

chamado antipsicologismo de Frege. Entretanto, a empreitada fregeana esbarra em

128

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dificuldades significativas; em primeiro lugar, do ponto de vista do instrumental

lógico que lhe estava disponível: a lógica, enquanto sistema silogístico aos moldes

aristotélicos, aquela mesma que Kant havia proclamado com pronta e acabada, é por

demais simplória, imprecisa e mal fundamentada, para servir ao projeto fregeano.

Uma lógica que se estabelece a partir de uma estrutura proposicional baseada nas

categorias de sujeito e predicado, que não é capaz de dar conta de maneira não

artificiosa de enunciados tão simples quando “João ama Maria” ou ‘todo homem ama

alguma mulher”119, certamente não pode estar apta a servir de fundamento para a

derivação da aritmética, tal como exige o projeto logicista de Frege. Para citar um

único exemplo dessa insuficiência, podemos mencionar que Frege definiu número

natural como algo relacionado aos conceitos120. No entanto, na sintaxe da teoria

silogística sequer figura a categoria lógica de conceito. Conceito, tal como figura ao

longo da história da filosofia desde Aristóteles até, pelo menos, Locke e seu séqüito,

tem uma roupagem muito mais epistemológica, ou mesmo psicológica, do que

propriamente lógica, uma vez que são produtos do processo subjetivo da abstração.

Foi necessário, portanto, que Frege concebesse a lógica de uma maneira bastante 119 Os dois exemplos citados são exemplos lapidares de proposições que somente podem ser explicados no universo da sintaxe silogística de forma artificial e imprecisa. O primeiro exemplo “João ama Maria” é uma proposição relacional; o segundo, “todo homem ama alguma mulher”, é um proposição na qual ocorre quantificação múltipla. Ora, de acordo com teoria da proposição baseada nas categorias de sujeito e predicado, torna-se necessário, no primeiro exemplo, considerar que “amar Maria” é um predicado de João, e não há maneira de concebê-la como expressando o que realmente ela expressa: uma relação entre João e Maria. No segundo caso, o problema é ainda mais espinhoso. Isso porque no sistema silogístico, o quantificador tem sempre a função de determinar se a inclusão ou exclusão do termo sujeito ao termo predicado é total ou parcial; logo, os quantificadores devem referir-se exclusivamente ao termo sujeito. E em nosso exemplo, claramente, há o quantificador “todo” quantificando o termo sujeito e o quantificador “alguma” quantificando o termo predicado. Tal procedimento é proibido dentro da teoria da proposição na qual se baseia a lógica silogística. 120 “Wenn ich in Ansehung derselben äussern Erscheinung mit derselben Wahreit sagen kann: ‘dies ist eine Baumgruppe’ und ‘sies sind fünf Bäume’ oder ‘hier sind vier Compagnien’ und ‘hier sind 500 Mann,’ so ändert sich dabei weder das Einzelne noch das Ganze, das Aggregat, sondern meine Benennung.Das ist aber nur das Zeichen der Ersetzung eine Begriffes durch einen anderrn. Damit wird uns als Antwort auf die erste Frage des vorigen Paragraphen nahe gelegt, dass die Zahlangabe eine Aussage von einem Begriffe enthalte” (idem # 46)

129

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diferente daquela que manteve-se praticamente intacta durante mais de dois mil

anos. E nessa nova lógica de Frege, a categoria conceito deve ser logicizada, a fim de

que a definição de número natural enquanto propriedade de conceitos seja uma

definição lógica. Definir número natural como propriedade de conceitos e manter

que conceito é uma categoria psicológica, uma idéia geral obtida por meio do

processo de abstração, ou coisa do gênero, não resolveria o problema do ponto de

vista do projeto logicista. Nesse sentido, Frege elabora uma teoria da proposição na

qual conceito e objeto, e não mais sujeito e predicado são as partes constituintes do

conteúdo proposicional. Esse expediente, conjugado com uma poderosa teoria da

quantificação, produziu um sistema lógico engenhoso que, se não conseguiu de fato

proporcionar ao projeto logicista de Frege o êxito esperado, fez, contudo, com que a

lógica nunca mais fosse a mesma, e que a afirmação kantiana121 de que ela estava

pronta e acabada fosse refutada implacavelmente.

No entanto, essas dificuldades técnicas referentes às limitações da teoria

silogística não nos interessam aqui particularmente. A afirmação de que Frege

refundou a ciência da lógica deve ser compreendida em mais de um sentido. Não só

os problemas referentes ao instrumental lógico analítico necessário ao seu projeto de

fundamentação lógica da aritmética impuseram a Frege a necessidade de conceber a

lógica em outras bases; não só problemas meramente instrumentais deveriam ser

superados. Interessa-nos, pois, um outro problema, relacionado não ao instrumental

lógico analítico que Frege necessitava, mas a questões ligadas mais diretamente à

filosofia da lógica ou, mais precisamente, à epistemologia da lógica: o projeto

fregeano consiste na descontaminação da aritmética com relação a elementos de

outra ordem que não efetivamente lógicos; entretanto, a própria lógica, do ponto de

vista de muito de seus contemporâneos, era concebida de uma maneira que a tornava

121 Kant. (op. cit. B VIII)

130

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impregnada de elementos extra-lógicos. Era comum entre os contemporâneos de

Frege a postura de vincular a lógica à psicologia, de subordinar a primeira à segunda.

Nesse sentido, como seria possível a construção de uma aritmética edificada a partir

de princípios puramente lógicos, se a própria lógica não se mostrasse ‘puramente

lógica’? É, pois, dentro do contexto dessa problemática que deve ser abordado o

antipsicologismo fregeano. Aquele espírito purificador incorporado por Frege no que

se refere à distinção precisa entre aquilo que efetivamente exerce algum papel na

demonstração das verdades aritméticas, e que garantiria sua analiticidade, deve

também, e sobretudo, estar presente no que tange à fundamentação da própria

lógica. O racionalismo fregeano é o racionalismo das razões demonstrativas, das

verdades objetivas que devem ser encadeadas na edificação das ciências dedutivas.

Assim sendo, o projeto de fundamentação axiomática da aritmética, que aos olhos de

Frege exige uma purificação racional das verdades, tem como condição de sua

possibilidade o antipsicologismo lógico. Trata-se, pois, do projeto de delegar à lógica,

e conseqüentemente à aritmética dela derivada, um caráter absolutamente objetivo.

Antipsicologismo, nesse sentido, deve ser entendido antes como uma valorização da

lógica do que desvalorização da psicologia. Não se trata, simplesmente, de dizer:

‘tudo o que é psicológico deve ser descartado’ mas, ao contrário, deve-se dizer: ‘tudo

o que não é lógico (o psicológico, entre outras coisas) deve ser descartado’. Isso

porque a lógica, assim como a aritmética é uma ciência dedutiva, analítica, objetiva e

absolutamente a priori.

III.2.3. Frege e a objetividade

Frege define número como objetos. Não nos cabe aqui expor a maneira como

ele elabora sua definição lógica de número – ou, mais precisamente, de número

131

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enquanto objeto lógico – mas, tão somente, apontar um aspecto importante da

concepção fregeana de número: a tese fregeana de que números são objetos possui,

além de seu aspecto ontológico, uma roupagem fortemente epistemológica, pois está

associado à faculdade cognitiva racional. A análise lógica do pensamento (Gedanke),

cuja expressão na linguagem se dá por meio das sentenças122, dividiu o universo

lógico em duas categorias: conceito e objeto. Conceitos são insaturados, incompletos

e necessitam serem preenchidos por objetos para que se constitua um conteúdo

proposicional, um sentido, ou seja, um Gedanke. Assim, números devem ser

considerados objetos, completos e saturados, e não como conceitos. É esse status que

devem possuir os números.

No entanto, conceber o número como objeto lógico, como entidades saturadas

em oposição aos conceitos saturados e completos, é apenas um sentido no qual se

deve tomar a objetividade da aritmética. Devemos levar em consideração, ao

tratarmos da objetividade das proposições aritméticas, a posição fregeana que

desvincula o conceito de número, por um lado, de nossas representações, e, por

outro, da dependência do mundo exterior disponível aos sentidos. Para instituir sua

tese referente à objetividade da aritmética, Frege teve que trabalhar em, pelo menos,

duas frentes: precisou estabelecer a independência dos números, tanto com relação a

entidades e processos psicológicos, quanto com relação às impressões sensíveis.123

Com a primeira distinção, afirma-se a objetividade da aritmética; com a segunda, seu

caráter não empírico; é esse o status peculiaríssimo que assume o conceito de

122 “Der Gedanke ist der Sinn eines Satzes, ohne damit behaupten zu wollen, dass der Sinn jedes Satzes ein Gedanke sei. Der na sich unsinnlich Gedanke kleidet sich in sinnliche Gewand des Satzes und wird damit fassbarer. Wir sagen, der Satze drücke einen Gedanken aus” (Der Gedanke: in: Kleine schriften. Pag. 345) 123 Na seção que vai dos parágrafos 21 a 25 dos Grundlagen, Frege trata de derrubar a tese de que os números são propriedades das coisas exteriores; nos parágrafos 26 e 27 refuta a posição daqueles que consideram algo subjetivo.

132

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número e a aritmética como um todo aos olhos de Frege: são objetivos, mas não são

empíricos.

Consideremos, primeiramente, a tese fregeana na qual o autor se opõe àqueles

que consideram número uma ‘entidade’ subjetiva, dependente das - ou equivalente

às - representações e toda sorte de manifestações psicológicas. Ao se contrapor à tese

de que o número é uma representação Frege nos diz:

Uma descrição dos processos internos que precedem à formulação do juízo numérico, ainda que correta, nunca poderá ser substituto de uma determinação genuína do conceito (de número). Nunca se poderá recorrer a ela para a demonstração de uma proposição aritmética: por intermédio delas não aprendemos nenhuma propriedade dos números.124

Dois motivos levam Frege a negar a interferência de processos e entidades mentais

na aritmética: em primeiro lugar, por conta do problema da objetividade dessa

ciência; se ela for fundamentada a partir da consideração dos processos psíquicos,

certametne terá uma validade tão somente privada. Em segundo lugar, como estamos

salientando de forma insistente, porque as descrições de processos psíquicos e aquilo

que pode ser obtido a partir dessas descrições não interferem absolutamente nas

razões que sustentam o cálculo. A partir disso, Frege expõe sua tese de que o número

é algo objetivo, mas que, nem por isso, é algo empírico, dependente da percepção

externa:

O botânico quer dizer algo tão factual quando indica o número de pétalas de uma flor como quando indica sua cor. Uma não depende mais de nosso arbítrio do que a outra. Há, portanto, certa semelhança entre o número e a

124 “Eine soche Beschreibung der innern Vorgänge, die der Fällung eines Zahlurtheils vorhergehen, kann nie, auch wenn sie zutreffender ist, eine eigentliche Begriffsbestimmung ersetzen. Sie wird nie zum Beweise eines arithmetischen Satzes herangesongen werden können; wir erfahren durch sie keine Eigenschaft der Zahlen” (Grundlagen de Arithmetik: #26)

133

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cor; mas ela não consiste em serem ambos perceptíveis pelos sentidos a partir de coisas exteriores, mas de serem ambos objetivos.125

E depois:

Distingo o objetivo do palpável, espacial e do efetivamente real...126

Como podemos notar, Frege desvincula as verdades aritméticas das explicações

causais referentes à elaboração do juízo numérico, garantindo, assim, sua

objetividade. Na medida em que o número não é dependente de coisas, cuja validade

é apenas privada, a aritmética se estabelece, segundo Frege, como uma ciência

objetiva e universal. Mas isso não deve significar, necessariamente, que, uma vez não

sendo dependentes do universo psicológico, os juízos aritméticos sejam factuais,

comparáveis aos juízos que expressam verdades empíricas acerca do mundo físico.

Estamos, pois, diante da enunciação da célebre tese fregeana acerca do terceiro

reino, o reino da objetividade não real. A história da filosofia acostumou-se a

estabelecer uma dicotomia entre sujeito, de um lado, e objeto, do outro. O que

ocorre ‘internamente’ na mente de algum ser pensante, aquilo que depende das suas

determinações privadas como sua história, desejos, expectativas... pertencem ao

reino da subjetividade. Aquilo que é ‘externo’, real no sentido de palpável, tangível,

enfim, que pode ser percebido pelos sentidos externos, é objetivo. Nesse sentido,

objetividade e subjetividade são categorias que dependem muito mais de uma certa

determinação de ‘lugar’ (dentro ou fora da mente) do que de outros critérios. Frege,

ao propor sua tese do terceiro reino, da objetividade não real, coloca a relação

objetividade/subjetividade em outros termos, em termos não de uma determinação

125 “Der Botaniker will etwas ebenso Thatsächliches sagen, wenn er die Anzahl der Blumenblätter einer Blume, wie wenn er ihre Farbe angiebt. Das eine hangt so wenig wie das andere von unserer. Willkühr ab. Eine gewisse Aehnlichkeit der Anzahl und der Farbe is also da; aber diese besteht nicht darin, dass beide an äusseren Dingen sinnlich wahrnehmbar, sodern darin, dass beide objectiv sind” (idem) 126 “Ich unterscheide das Objective von dem Handgreiflichen, Räumlichen, Wirklichen” (idem)

134

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de lugar, mas como uma distinção eminentemente epistemológica, diretamente

dependente das faculdades envolvidas.

...entendo por objetividade uma independência com respeito ao nosso sentir, intuir, representar, ao traçado de imagens internas a partir de lembranças de sensações exteriores, mas não uma independência com relação à razão127

Frege, distingue, portanto, faculdades eminentemente subjetivas, como a intuição,

representação, imaginação, das faculdades que produzem conhecimentos objetivos.

Mas essas são duas e não uma só: sentidos da percepção externa, que garante o acesso

ao objetivo real, e a razão, que garante acesso ao objetivo não real. E os números

estão ligados a esta última opção: não são propriedades exteriores das coisas

percebidas pelos sentidos, mas também não são ‘entidades subjetivas’ como

representações ou algo dependente das representações e de nossas faculdades de

representar ou imaginar. São objetos cujo acesso somente pode ser possível por meio

da faculdade cognitiva racional, faculdade essa que é o fundamento epistemológico

do chamado terceiro reino. O reino da objetividade não real é o reino da razão,

daquilo que não depende das condições subjetivas do pensamento atual nem das

condições objetivas do mundo físico.

Vimos, logo acima, que o projeto logicista fregeano consiste num trabalho de

purificação racional dos conceitos envolvidos nas ciências demonstrativas analíticas

(segundo ele, lógica e aritmética; ou melhor: lógica, pois a aritmética é entendida

como um ramo da lógica). Ora, diante do que estamos vendo, tal trabalho de

purificação significa isolar o que é da alçada exclusivamente da faculdade racional

em relação aos elementos cognitivos dependentes das outras faculdades. Os

princípios lógicos – e, conseqüentemente, a aritmética, que, segundo Frege, é

127 “So verstehe ich unter Objectivität eine Unabhängigkeit von userm Empfinden, Anschauen und Vorstellen, von dem Entwerfen innerer Bilder aus den Erinneurungen früherer Empfindungen, aber nicht eine Unabhängigkeit von der Vernunft” (idem)

135

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estabelecida exclusivamente a partir deles – não são extraídos do mundo exterior

pelos sentidos, como quer Mill, nem tampouco são ‘entidades’ psicológicas,

produzidas por meio de nossas faculdades subjetivas, como a intuição, representação

e imaginação; ao invés disso, são acessíveis tão somente por meio de nossa faculdade

racional. São, portanto, princípios universais e imutáveis; não podem depender da

faculdade cognitiva relacionada à sensibilidade exterior, nem tampouco de

ocorrências ou entidades psicológicas.

Nesse sentido, a distinção entre objetividade e subjetividade assume uma

dimensão que pode ser estabelecida em termos da distinção entre o que é privado e o

que possui validade intersubjetiva. Em realidade, Frege não nega que processos

subjetivos estejam diretamente envolvidos na produção de conhecimento em geral,

nas atividades comunicativas ou nos raciocínios lógico-matemáticos, quando

realizados efetivamente pelos sujeitos. Tal com o Mill já o fizera128, Frege distingue o

ato subjetivo do juízo – i.e. o reconhecimento de que um pensamento é verdadeiro -

que pode ser explicado por meio de causas psicológicas, do conteúdo objetivo que é

considerado verdadeiro no ato do juízo. As explicações psicológicas somente podem

dar conta do ato do juízo, não do conteúdo objetivo que é aceito como verdadeiro

nesse ato. Mas elas não são relevantes e não devem ser consideradas, ao menos no

que tange à lógica.

III.2.4. Leis do ser verdadeiro

A pergunta que se coloca, a partir do que foi exposto até aqui é a seguinte:

qual o critério para que se estabeleça o que é racional, da alçada da lógica e, portanto,

128 ver: II.4.2

136

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daquilo que é efetivamente relevante para as ciências demonstrativas analíticas? O

que determina a natureza da lógica enquanto ciência autônoma, segundo Frege, é a

relação intrínseca que ela mantém com a verdade. Tal como a estética se edifica por

referência ao conteúdo da palavra “belo”, a lógica se edifica por referência ao

conteúdo da palavra verdadeiro129. Em realidade, todas as ciências guardam uma

relação íntima com a verdade, na medida em buscam estabelecer verdades acerca de

seus objetos. No entanto, a Lógica vincula-se com a verdade de uma forma bastante

peculiar, pois trata daquilo que Frege chama leis do ser verdadeiro. À lógica

interessa tão somente as razões a partir das quais uma verdade pode ser justificada,

demonstrada com base em outras verdades dadas. E é justamente nesse ponto que a

oposição entre lógica e psicologia se estabelece: explicações causais acerca dos

processos psíquicos envolvidos no ato do juízo devem explicar as causas que

determinam o que ocorre no universo psicológico de quem enuncia ou infere

verdades, mas também de quem enuncia ou infere falsidades.130 Isso, porque, do

ponto de vista dos processos psíquicos envolvidos no ato do juízo, a distinção entre

verdade e falsidade, tal como interessa à lógica, não é relevante. Determinadas causas

psíquicas são responsáveis pelo juízo verdadeiro, mas também determinadas causas

psíquicas são responsáveis pelo juízo falso. E a verdade, como Frege insiste em

129 “Wie das Wort “schön” der Ästhetik und “gut” de Ethik, so weist “wahr” usw. der Logik dir Richtung” (Kleine Schriften, p. 343). “Psychology is only concerned with truth in the way every other science is, in that is goal is to extend the domain of truths; but int the field it investigates it does not study the property ‘true’ as, in its field, physics focuses on the proprieties ‘heavy’, ‘warm’, etc. This is what logic does. It would not perhaps be besides the mark to say that the laws of logic are nothing other than an unfolding of the content of the word ‘true’” (Posthumous Writings: pag. 3) 130 “Der irrtum, der Aberglaube hat ebenso seine Ursachen wie die richtige Erkenntnis. Das Führwahrhalten des Falschen uns das Fürwahrhalten des Wahren kommen beide nach psychologischen Gesentzen zustande. Eine Ableitung aus diesen und eine Erklärung eines seelischen Vorganges, der in ein Fürwahrhalten ausläuft, kann nie einen Beweis dessen ersetzen, auf das sich dieses Führwahrhalten bezieht” (Der Gedanke; Kleine Schriften; p. 343)

137

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salientar, não depende de seu reconhecimento por parte dos sujeitos131; portanto as

causas psíquicas relacionadas ao ato do juízo não guardam nenhuma relação com a

verdade e suas propriedades. E a explicação psicológica deve estar vinculada tão

somente às essas causas.

Através de uma analogia talvez seja possível compreender a posição de Frege

com quando sustenta a necessidade de se realizar uma purificação da lógica com

relação a elementos extra-lógicos, e como as leis da verdade estão relacionadas a isso:

quando um matemático, por exemplo, resolve uma equação com lápis e papel,

certamente podemos dizer que vários fatores estão envolvidos naquele ato em

particular. Desde as razões envolvidas na resolução do problema, até coisas como a

composição química do papel ou do grafite, ou mesmo a composição da massa

encefálica de quem raciocina, entre outras coisas. Ora, embora esses elementos

estejam presentes, e dentro de determinados pontos de vista possam ser

absolutamente relevantes, eles em nada influenciam nas razões envolvidas na

resolução mesma do problema, e, portanto, não guardam qualquer relação com as

leis da verdade. A correção ou não da resolução de um problema matemático não

depende em nada da composição química do papel ou do grafite, nem da massa

encefálica do matemático. Decerto podemos explicar como o grafite age sobre o

papel, ou como a quantidade de fósforo no cérebro do matemático operam naquele

ato particular, mas jamais encontraremos aí as razões que garantam a correção de

uma demonstração ou a verdade de uma proposição. Ora, tal como a composição

química do papel exerce alguma função no ato na resolução efetiva do tal problema

matemático, embora essa função seja irrelevante para as razões evolvidas na

demonstração, também elementos de ordem psicológica estão envolvidos. Algo se

131 “What is true independently of our recongnizing it as such. We can make mistake” (Posthumous Writings: pag. 2)

138

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passa no universo subjetivo daquele que raciocina, e isso tem a ver com toda uma

história mental do sujeito. No entanto, esses elementos subjetivos são absolutamente

privados e nada têm a ver com as razões objetivas que garantem a correção do

cálculo.

III.2.5 Representação e conteúdo proposicional

Como sabemos, a atividade racional, em Frege, passa pela ‘captação de

Gedankes’, conteúdos proposicionais objetivos que se apresentam enquanto unidades

de sentido. Assim, da mesma forma como acontecimentos psíquicos não devem

exercer papel relevante no que tange à demonstrações de verdades a partir de razões

objetivas, também no que se refere à captação do sentido proposicional ocorre algo

semelhante. As representações que são produzidas nos diversos sujeitos quando

captam Gedankes, quando têm acesso a um conteúdo proposicional objetivo, não

podem interferir na própria constituição desse mesmo conteúdo. São, por isso,

semanticamente irrelevantes. Se alguém pronuncia, por exemplo, diante de um

grupo de pessoas, uma proposição como “o carro é branco”, certamente cada ouvinte

irá representar, na forma de uma ‘imagem mental’, um carro branco qualquer. E o

que cada um representará em seu universo subjetivo dependerá exclusivamente de

suas respectivas histórias mentais. E, embora não seja possível serem comparadas

essas diversas representações, temos fortes razões para imaginar que são todas

diferentes umas das outras. Mas, seja como for, o que importa é que possuem uma

validade absolutamente subjetiva, e não podem guardar relação alguma com a

objetividade do pensamento expresso pela sentença. Isso, porque, mesmo

representando imagens mentais privadas e não intersubjetivamente comunicáveis,

todos entendem a mesma coisa; o mesmo conteúdo objetivo é expresso pela sentença

139

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e captado pelos ouvintes. Imagens e processos psicológicos exercem alguma função

no ato de captação de um Gedanke, de um conteúdo proposicional? Sim; mas de uma

forma análoga àquela que os elementos químicos exercem no ato de resolução de um

problema por parte de um matemático que usa papel e lápis. No entanto, tal como a

composição química do papel e do grafite em nada interfere na objetividade racional

do cálculo, também em nada interferem as representações subjetivas com relação à

constituição do conteúdo objetivo expresso pela sentença.

As considerações que acabamos de fazer estão diretamente relacionadas à um

tese clássica do pensamento fregeano, da qual falaremos a seguir: o chamado

princípio do contexto.

III.2.6. Lógico x psicológico: o princípio do contexto

Na introdução dos Grundlagen der Arithmetik Frege estabelece três

princípios que devem ser obedecidos para que seja levado a cabo seu projeto de

fundamentação lógica da aritmética:

1) a necessária a separação entre lógico e psicológico, objetivo e

subjetivo;

2) a necessidade de se perguntar pelo significados das palavras

somente no contexto da proposição, e

3) a necessidade de se de considerar a diferença entre conceito e

objeto.132

132 “Als Grundsätze habe ich in dieser Untersuchung folgende festgehalten: - es ist das Psychologische von der Logischen, das Subjective von der Objectiven scharf zu trennen; - nach de Bedeutung der Wörter muss im Satzzusammenhange, nicht in ihrer Vereinzelung gefragt werden;

140

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Dos três princípios mencionados, os dois primeiros nos interessam particularmente.

Até porque, de acordo com as palavras do próprio Frege, ambos estão intimamente

ligados133. E justamente na medida em que vinculamos os dois primeiros princípios,

notamos a intrínseca relação entre a lógica e semântica fregeanas. Apesar de Frege,

quando escreveu seus Grundlagen der Arithmetik, ainda não ter estabelecido sua

teoria semântica em bases definitivas - o que só aconteceu anos mais tarde,

sobretudo com a publicação de seu Sinn und Bedeutung - já podemos encontrar aqui

um elemento fundamental da teoria fregeana do significado: a tese de que os

significados das palavras não são nossas representações, mas sim a contribuição da

palavra para o estabelecimento do sentido proposicional. Ora, estamos tratando, já

há várias páginas, do projeto fregeano de redução da aritmética à lógica; e temos

visto que tal projeto consiste em ‘purificar’ a aritmética e a lógica de quaisquer

elementos que não sejam de natureza racional e objetiva. E é sobre isso que trata o

princípio 1); da separação entre as esferas da lógica e da psicologia. O princípio 2),

por sua vez, fornece a contraparte semântica desse logicismo. Se devemos separar

cabalmente o que é da alçada da lógica daquilo que depende de nossa vida mental,

certamente os eventos mentais não podem interferir na constituição do sentido

proposicional, uma vez que esse é o portador da verdade; e a verdade, numa lógica

que se pretende radicalmente objetiva e racional, não pode ser atribuída a entidades

mentais nem a nada que seja dependente dessas entidades. E por que isso acontece?

Por uma razão bastante simples: se perguntarmos pelo significados das palavras de

forma isolada, seremos levados a acreditar que as palavras têm por referência as

representações que suscitam nos sujeitos. Se tomo a palavra “casa” isoladamente, sou

- der Unterschied zwischen Begriff und Gegenstand ist im Auge zu behalten.” (Der Grunlagen der Arithmetik. Einleitung) 133 “Wenn man den zweiten Grundsatz unbeachtet lässt, ist man fast genöthigt, als Bedeutung der Wörter innere Bilder oder Thaten der einzelnen Seele zu nehmen und damit auch gegen den ersten zu verstossen” (idem)

141

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levado a representar uma casa na forma de uma imagem mental; e essa imagem

mental seria, pois, tomada por sua referência. Nesse caso, teríamos uma semântica

psicologista, e a partir dela teríamos uma lógica fundada na psicologia, uma vez que

as proposições estabeleceriam relações entre essas representações. O que Frege nos

diz, entretanto, é que, se perguntarmos pelo significado das palavras no contexto da

proposição, seremos levados a considerá-lo não como sendo as imagens mentais

produzidas pela palavra isoladamente, mas algo objetivo, como uma parte do

pensamento objetivo (Gedanke) expresso na proposição, parte essa obtida por meio

da análise desse pensamento. O que Frege está propondo é uma inversão na ordem

das coisas: a proposição é prioritária com relação às suas partes. Por meio de nossa

faculdade racional somos capazes de captar unidades de sentido, e os significados das

palavras devem ser considerados como constituintes dessa unidade de sentido. A

análise da proposição é algo como uma decomposição na qual o todo é anterior às

suas partes. O todo proposicional fregeano não é a união de suas partes, mas é

prioritário com relação a elas134. Por isso, o significado dos termos, enquanto ‘partes’

do sentido proposicional, somente pode ser estabelecido cabalmente com referência

ao conteúdo prioritário da proposição.

Frege possui uma necessidade sistemática que o leva a fazer uso de seu

princípio do contexto. Como sabemos, nos Grundlagen Frege pretende fornecer uma

134 Pode parecer paradoxal a afirmação que o todo proposicional é anterior às suas partes, que o todo não pressuponha partes constitutivas. Mas essa impressão é apenas aparente. Há um caso análogo, nos domínios da aritmética, que pode fornecer um exemplo de como esse relação entre todo e partes pode se dar: devemos, certamente, considerar que frações ½ ou ¼ são partes da unidade. Mas nem por isso devemos considerar que o 1 seja formado a partir da soma de suas frações. Mas, ao contrário, consideramos o 1 como prioritário e anterior às suas frações, e essas somente podem ser obtidas por divisão ou decomposição da unidade originária. Ocorre algum análogo com relação ao todo proposicional e suas partes constitutivas na teoria fregeana; as partes da proposição não são autônomas, mas sim dependentes do todo proposicional. A ordem é a seguinte: primeiro captamos Gedankes como unidade de sentido, depois o decompomos pela análise. A análise do todo proposicional não pressupõe uma síntese anterior.

142

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definição lógica do conceito de número natural; por isso, está prioritariamente

preocupado em acomodar, num sistema lógico-semântico coerente, o sentido das

proposições aritméticas, aquelas nas quais figuram expressões numéricas. Frege

constata, pois, algo importante: os objetos que são a referência das expressões

numéricas não são capazes de produzir representações, mas nem por isso deixam de

ter significado135. Não podemos ter uma intuição, nem criar uma imagem mental que

possamos associar ao símbolo “5”, mas isso não significa que tal expressão não tenha

um significado. Esse significado, no entanto, somente pode ser compreendido na

medida em que se compreende o sentido de uma proposição no qual ele figura. E tal

significado deve consistir tão somente no papel exercido pelo termo no contexto

proposicional, sua contribuição para sentido proposicional.

Existe um ponto importante a ser salientado aqui com relação ao princípio

fregeano do contexto: o raciocínio utilizado por Frege quando estabelece seu

princípio é similar àquele utilizado por Mill em sua crítica ao conceitualismo, do

qual tratamos no capítulo anterior. De acordo com Mill, o conceitualismo (a tese de

que os significados das palavras são entidades mentais) estaria equivocado, porque

não utilizamos as palavras para comunicar o conteúdo de nossas representações, mas

sim para expressarmos nossas crenças. E vimos também que a crença é uma atividade

intencional que se refere a um conteúdo proposicional crido, ou seja, tomado por

verdadeiro. Ora, se guardarmos as devidas diferenças de vocabulário, notaremos que

ambos dizem coisas muito semelhantes: se não vincularmos a semântica à lógica, se 135 “Wie soll uns denn Zahl gegeben sein, wenn wir keine Vostellung oder Anschauung von ihr haben können? Nur im Zusammenhange eines Satzes bedeuten die Wörter etwas. Es wird also darauf ankommen, den Sinn eines Satzes zu erklären, in dem ein Zahlwort vorkommt. Das giebt zunächts noch viel der Willkühr anheim. Aber wir haben schon festgestellt, dass unter den Zahlwörtern selbständige Gegenstände zu verstehen sind. Damit ist uns eine Gattung von Sätzen gegeben, die einen Sinn haben müssen, der Sätze, welsche ein Wiederkennen ausdrüken. Wenn uns das Zeichen a einen Gegenstand bezeichnen soll, so müssen wir ein Kennzeichen haben, welches überall entscheidet, ob b daselbe sei wie a, wenn es auch nicht immer in unserer Macht steht, dies Kennzeichen anzuwenden. In unserm Falle müssen wir den Sinn des Satzes. (idem: #62)

143

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não submetermos o significado das palavras ao conteúdo objetivo reivindicado como

verdadeiro no ato do juízo, somos levados necessariamente a tomar o significado das

palavras por entidades psicológicas. Se levarmos em conta o fato de Frege ter lido o

System of logic de forma bastante atenta (a julgar pelas críticas incisivas que dirige a

essa obra) e atentarmos para a similaridade das duas posturas com respeito à relação

existente entre entidades psíquicas e conteúdo proposicional, talvez seja possível

identificar aqui um importante fator de influência positiva de Mill com relação á

Frege. Mill enxergou, ao seu modo e por meio do repertório conceitual do qual

dispunha, a necessidade de serem retirados do reino da subjetividade psicológica os

mecanismos semânticos que fundamentam sua teoria do significado; e notou

também, claramente, que esse procedimento passa pela atrelagem do significado dos

termos a um conteúdo proposicional. É nesse sentido que, de acordo com nossa

hipótese, a crítica milliana ao conceitualismo está organicamente relacionada ao

princípio fregeano do contexto. Como foi mostrado136, Mill refutou a tese

conceitualista de que o significado dos termos são idéias apontando para o fato de

não usamos a linguagem para comunicar aquilo que concebemos na forma de idéias

ou imagens mentais, mas para expressar o conteúdo de nossa crenças. E vimos

também que o ato de crença deve referir-se a um conteúdo objetivo prévio, expresso

na forma de uma proposição. Portanto, de acordo com o que podemos entender das

palavras de Mill, quando deixamos de perguntar pelo significado dos nomes

isoladamente (ou seja, sem referência ao conteúdo de nossas crenças) o

conceitualismo se impõe. Mas quando atrelamos o significado dos nomes ao objeto

de nossas crenças a tese conceitualista cai por terra. A enunciação proposicional é

responsável, tanto em Mill quanto em Frege, pela objetivação do significado dos

termos que compõem o sentido proposicional. É claro que Mill não chegou ao

136 II.4

144

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extremo fregeano de postular a anterioridade do sentido proposicional com relação

às suas partes, pois segue mantendo que a proposição é um signo complexo obtido

por meio da associação de dois nomes, mas Mill já enxergou a necessidade de se

vincular a semântica à lógica e os significados dos termos a um conteúdo

proposicional objetivo.

III.2.7. Pensar e representar

O que foi exposto até aqui nos leva a uma tese fundamental referente ao

antipsicologismo fregeano: a distinção entre pensar e representar. Quando se fala,

dentro do universo conceitual fregeano, em separar o lógico do psicológico, pode-se,

equivocadamente, imaginar que Frege está pensando numa distinção entre duas

classes de eventos que se submetem à autoridade da lógica ou da psicologia. Algo

como o seguinte: ‘quando faço ciência, estou no âmbito do pensamento lógico,

quando reflito acerca de minha condição e meu comportamento, por exemplo, estou

no âmbito psicológico’. Poderíamos, pois, se fosse assim, distinguir formas de

pensamento diversas dentre as quais identificaríamos o pensamento lógico em

oposição ao pensamento psicológico. Vimos, porém, que não é isso que ocorre. A

distinção entre lógico e psicológico está diretamente relacionado com a forma de

abordagem dos mesmos fenômenos. Se formos capazes, como acredita Frege, de

desvincular o que existe de efetivamente objetivo daquilo que possui validade

meramente privada, de desvincular as causas psíquicas de um juízo das razões

envolvidas numa demonstração, as imagens mentais produzidas por um sentido

proposicional nos sujeitos diversos, do conteúdo objetivo que constitui tal sentido

proposicional, então, certamente, poderemos entender que a distinção entre lógico e

psicológico, objetivo e subjetivo, não deve ser compreendida como uma ‘demarcação

145

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de território’, mas como maneiras diferentes, pontos de vista distintos, de se abordar

os mesmos acontecimentos. Em realidade, há uma distinção prioritariamente

epistemológica que divide os fenômenos cognitivos com relação às faculdades nos

quais se apóiam. Não se pode dizer “isso é um pensamento lógico e aquilo é um

pensamento psicológico”, mas, ao contrário, deve-se identificar, com relação aos

mesmos fenômenos, o que é da alçada da lógica e o que é da alçada da psicologia137.

É nesse sentido que devemos entender a distinção fregeana entre pensar e

representar. Representação é identificada com a produção de imagens mentais por

parte dos sujeitos, entre outras coisas, quando captam um determinado sentido

proposicional ou quando têm uma impressão sensível; pensar deve ser identificado

com a própria captação do sentido e com a relação que guarda a verdade das

proposições com respeito à verdade de outras proposições delas derivadas. Porque

somos capazes de pensar, de captar e compreender os conteúdos objetivos das

proposições e de experimentar percepções sensíveis, representamos, criamos imagens

mentais. Da mesma forma, porque existem razões demonstrativas objetivas que

podem garantir a verdade de uma proposição com base na verdade de outras é que

raciocinamos de fato, e essas razões devem servir de justificativa das inferências

obtidas pelo raciocínio. No entanto, os raciocínios efetivos realizados pelos diversos

sujeitos, enquanto processos psíquicos, não se explicam por meio daquelas razões.

Frege, portanto, por paradoxal que possa parecer a primeira vista, objetiva o conceito

de pensamento, vinculando-o de forma estreita com a verdade e as leis do

verdadeiro. O que é da alçada da psicologia é o que se vincula ao universo da

137 Há uma passagem nos Posthumous writings no qual Frege propõe uma analogia que expressa bem o que estamos querendo demonstrar: “...we must reject all distinctions in logic that are made from a purely psychological stanpoint and have no bearing on inference. Similarly, in pure mechanics we don’t disntinguish substances according to their chemical propriets, but speaks only of ‘mass’ and physical bodies, so thatwe don’t have, say, to establish a special law for each chemical sunstances in place of the one law of inertia” (Posthumous writings. Pag. 5)

146

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subjetividade, e o que possui validade somente subjetiva são a representações, que

são eminentemente privadas. O que é da alçada da lógica é aquilo que possui

validade objetiva - naquele sentido que mencionamos há pouco: objetividade

racional e não física; pensar está relacionado a essa objetividade.

III.3. Frege crítico de Mill

Chegamos agora ao momento de relacionar aqueles que são os principais

pilares do logicismo e do antipsicologismo fregeano com as posições de Mill com

respeito a cada um deles. O objetivo aqui será verificar se, e até que ponto, o

empirismo milliano possui uma roupagem psicologista, se considerarmos o

psicologismo, a partir do ponto de vista de Frege.

O projeto fregeano de fundamentação da aritmética a partir da lógica, e da

lógica a partir de princípios racionais objetivos, exige, por um lado, uma crítica ao

empirismo, ou seja, à tese de que a objetividade somente pode ser fundamentada na

experiência sensível e, por outro, uma crítica ao psicologismo, ou seja, à tese de que

os processos subjetivos envolvidos no ato de pensar (entendendo pensamento aqui

num sentido não fregeano) determinam e constituem os fundamentos a partir dos

quais a lógica se estabelece. Para sermos mais precisos, trata-se de duas manifestações

do empirismo, pois o psicologismo também é uma espécie de empirismo138. A

diferença, no entanto, reside no fato de que Mill busca estabelecer o fundamento da

objetividade da experiência empírica não a partir do sujeito psicológico, mas a partir

138 Segundo Sluga, o que há de comum entre todos os adversários de Frege na fundamentação lógica da aritmética é o fato de todos serem adeptos de manifestações diferentes do empirismo: “Anti-empirism is in fact pervasive in Frege’s book (...) The views Frege attacks have one, and only one, festure in commom. Industivism, physicalism, psichologism, and formalism are all different forms of empirism” (Sluga: Gotlob Frege; pag.102)

147

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dos próprios fatos do mundo. A observação empírica, em Mill, não precisa da

chancela subjetiva das idéias para se constituir enquanto experiência, uma vez que a

objetividade dos fatos do mundo, juntamente com a carga semântica dos nomes

conotativos, estabelece, por si só, a unidade do sentido proposicional, sem a

necessidade de se considerar entidades psicológicas, como as proposições mentais de

Locke, por exemplo. Temos aqui, talvez, um importante argumento em favor de

nossa tese de que a crítica que Frege dirige a Mill nos Grundlagen der Arithmetik

não se refere ao seu suposto psicologismo, mas ao seu empirismo. Se Frege distingue

três, e não duas, instâncias a partir das quais se pode estabelecer as diversas formas

de conhecimento - a saber, subjetividade, objetividade empírica e objetividade

racional - e se o projeto fregeano consiste em fundamentar a lógica e a aritmética a

partir da objetividade racional em detrimento das outras instâncias, devemos, pois,

identificar dois alvos da crítica fregeana: um empirismo subjetivista, representado

pelo psicologismo lógico, e o empirismo objetivista, como aquele de Mill. Trata-se,

pois, de duas formas de empirismo: um empirismo psicologizante, cujo modelo

podemos identificar, por exemplo, nos desdobramentos da filosofia britânica a partir

da influência de Locke, do qual se falou no capítulo anterior, e um empirismo

externalista, representado por Mill, que pretende retirar do reino da subjetividade a

fundamentação da certeza do conhecimento – não devemos esquecer que Mill,

diferentemente das conclusões que outros autores, sobretudo Hume, extraíram de

uma epistemologia empirista, tinha total aversão ao ceticismo139 e acreditava que o

princípio da indução fosse suficiente para evitar uma tal conclusão. De acordo com

nossa hipótese, que já foi mencionada, Frege se limita a criticar o empirismo de Mill;

e, mais do que isso, o empirismo de Mill, criticado por Frege, em muitos e 139 Há uma passagem na An Examination... em que Mill expõe sua posição sobre o ceticismo: “That imaginary being, a complete Sceptic, might be supossed to answer, that perhaps we do not know anything at all. I shall not reply to this problematical antagonist in the usual manner, by telling him that is he foes not know anything, I do. (pag. 125)

148

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importantes sentidos, fornece a Frege elementos preciosos para sua própria crítica ao

psicologismo.

De acordo com o que foi exposto até aqui, podemos estabelecer a principal

característica do antipsicologismo de Frege:

a) a distinção precisa, em lógica, entre causas psíquicas e razões demonstrativas;

Para estabelecer tal distinção, responsável pela demarcação das fronteiras entre

lógica e psicologia, Frege necessita servir-se:

b) de uma semântica objetiva, ou seja, uma semântica na qual os significados dos

termos não sejam representações, e, portanto, as representações causadas nos

sujeitos pelos termos da linguagem não exerçam papel algum no

estabelecimento do sentido proposicional; e

c) do estabelecimento de uma relação intrínseca da Lógica com a verdade, ou,

como Frege prefere dizer, com as leis do ser verdadeiro.

Na presente seção, nosso objetivo será verificar qual é a posição de Stuart Mill com

relação aos três pilares do antipsicologismo fregeano exposto acima. Comecemos pelo

primeiro: como pudemos verificar no início deste trabalho, Mill, após ter

mencionado um suposto duplo caráter da lógica - a saber, sua definição como arte e

ciência do raciocínio - só levou em consideração, no decorrer de suas explanações,

um desses dois aspectos. A parte científica da lógica seria algo como a análise dos

processos mentais envolvidos no ato do raciocínio e a outra parte seria algo como um

cânon objetivo a partir do qual os sujeitos pensantes devem guiar-se para raciocinar

corretamente; estaria, pois, preocupada com a justificativa das inferências. É

importante notarmos que, logo após ter estabelecido essa dúplice característica da

Lógica, Mill somente desenvolve aquilo que ele mesmo denominou lógica enquanto

arte. Isso, na medida em que define a lógica como ciência da prova e da justificativa.

149

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Somente o que pode justificar inferências são regras que estabelecem, de alguma

maneira, a relação entre verdades dadas e suas conseqüências. E certamente aí as

explicações causais dos processos psíquicos não podem interferir. Mill, ao seu modo,

soube enxergar a necessidade de se distinguir a análise dos processos mentais, as

explicações causais a respeito do que se passa no intelecto dos seres pensando quando

raciocinam, daquilo que pode justificar a correção dos raciocínios. A lógica, como

vimos, deve estar voltada para todo o conhecimento que somos capazes de obter,

desde que não sejam conhecimentos intuitivos e imediatos, mas conhecimentos

obtidos por meio de inferências. E a lógica deve ser o juiz de tais inferências,

devendo julgar de acordo com determinadas regras. Ora, na medida em que

perguntamos pelo status dessas regras, esbarramos no empirismo radical milliano,

uma vez que nosso autor busca derivar tais regras a partir da observação do mundo

exterior. Mas é importante notarmos que o ponto de divergência explícito entre

Frege e Mill nesse particular está relacionado tão somente ao status epistemológico

das leis da lógica, e não à uma suposta confusão, cometida por Mill, entre processos

psíquicos e razões demonstrativas. Mill é empirista e Frege racionalista; portanto,

Mill defende uma fundamentação empírica para as ‘regras’ da lógica, ao passo que

Frege defende sua natureza objetiva, racional e independente de qualquer

observação. Porém, no que tange à delimitação dos campos da lógica e da psicologia,

essa divergência de princípio não é a mais relevante. Frege e Mill discordam com

respeito ao status epistemológico dos princípios lógicos, mas não no que diz respeito

ao papel que exerce a lógica no conjunto das atividades humanas, nem em sua

relação com a psicologia, se entendermos por psicologia, a análise dos processos

mentais.

Como foi afirmado mais atrás, há sentidos possíveis nos quais Mill pode ser

considerado um psicologista: ele afirma com todas as letras que a lógica inclui uma

150

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etapa científica na qual os processos psicológicos devem ser abordados. Mas isso não

é o mais importante; importa, pois, salientar aqui simplesmente que Mill enuncia

aquele que será um preceito metodológico fundamental para o antipsicologismo

fregeano: a distinção precisa que deve existir entre, de uma lado, explicações causais

dos processos subjetivos envolvidos no ato do raciocínio e, do outro, as razões que

justificam a inferência. Acredito, pois, que o acento deve ser dado não no fato de

Mill ter afirmado que a lógica possui uma parte científica que engloba a análise dos

processos mentais; se o fizermos seremos direcionados a uma posição que enxerga na

lógica milliana uma posição psicologista. A diferença fundamental entre Mill e Frege

neste particular é que Mill realizou sua distinção no âmbito da própria lógica,

dizendo que as duas abordagens constituem duas partes dessa disciplina, ao passo que

Frege faz sua distinção excluindo aquilo que Mill denomina ‘parte científica’ da

lógica, relacionando-a tão somente à psicologia. Mas, volto a salientar, Mill afirma

que a lógica possui um ‘parte científica’, mas quando propõe uma definição mais

precisa de lógica, a define como tendo por incumbência justificar as inferências, o

que descarta, segundo a própria organicidade do System of logic, a análise dos

processos mentais. Nesse sentido, acredito que podemos enxergar em Mill muito

mais um aliado de Frege, nesse particular, do que o adversário.

No que diz respeito ao ponto b), à tese fregeana de que as representações

subjetivas em nada influenciam na determinação do sentido proposicional, vemos

também que nesse ponto Mill antecipou Frege de uma forma importante. A tese,

milliana exposta no capítulo II do presente trabalho, de que os significados dos

nomes não podem ser idéias, tal como determinara Locke e seu séqüito, retira

qualquer determinação psicológica no estabelecimento do sentido proposicional. E,

mais uma vez aqui, vemos, ainda que de forma embrionária, o esforço por parte de

Mill de separar o joio do trigo: ele não nega que, de fato, idéias são reivindicadas

151

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quando os sujeitos em geral se utilizam da linguagem, que ao ouvir uma determinada

palavra os sujeitos em geral representam determinadas imagens mentais. Mas isso

não significa que no uso proposicional na linguagem tais entidades subjetivas

exerçam alguma função relevante. Foi levantada, no capítulo II, a pergunta sobre o

que determina, em Mill, a unidade do sentido proposicional; e decidimos que tal

sentido se constitui no âmbito da linguagem e de suas condições de significatividade,

e não no interior do mundo psicológico dos sujeitos. Apesar de Mill não ter chegado

ao extremo fregeano de postular a anterioridade da proposição com relação às suas

partes (embora, algumas passagens do System of logic, como mencionamos, parecem

sugerir isso), e não ter delegado uma objetividade racional ao pensamento expresso

pelas sentenças, ele deu, sem dúvidas, o primeiro passo rumo à despsicologização do

sentido proposicional. A enunciação proposicional por parte do sujeito (juízo) tem

por objetivo apresentar aquilo que o sujeito crê ser verdadeiro. E Mill viu claramente

que a verdade não é uma propriedade das nossas representações, mas deve estar

vinculada, de forma direta e imediata, com os fatos do mundo exterior. Entre a

proposição e mundo exterior ao qual a proposição se refere não existe a mediação do

universo psicológico, mas existe simplesmente a carga semântica dos nomes

conotativos, principal responsável pela constituição do sentido proposicional. Numa

proposição, de acordo com Mill, não são relacionadas idéias por meio da cópula, mas

são relacionados nomes. E esses nomes, graças à teoria da conotação, por si só, sem a

necessidade de qualquer intervenção subjetiva, são capazes de constituir um sentido

proposicional, uma vez associados pela cópula. Os nomes trazem em si algo que os

tornam autônomos em relação ao universo psicológico, e esse ‘algo’ é a sua

conotação. Creio, por isso, que também no que se refere ao papel (ou melhor, à falta

de papel) exercido pelas representações na constituição do sentido proposicional,

Mill antecipou Frege de uma maneira importante, apesar de todas as divergências de

princípio existente entre os dois autores.

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No que tange ao ponto c), à vinculação por parte de Frege da lógica com as

leis do ser verdadeiro, à determinação de que a lógica trabalha com vistas

unicamente a justificar verdades demonstrativas, podemos, mais uma vez, encontrar

pontos de contato entre o que dizem Mill e Frege, apesar de utilizarem vocabulários

conceituais bem distintos. Como vimos, Mill vincula a lógica à justificação das

verdades inferidas. A função da lógica é exclusivamente decidir se verdades extraídas

a partir de outras verdades dadas o foram de forma correta e justificada. Ora, isso

somente pode significar que, para a lógica, somente deve ser relevante aquilo que de

alguma forma exerce alguma função positiva com relação à derivação de tais

verdades. Se a lógica deve julgar se, a partir das premissas dadas, as conclusões foram

extraídas de forma cabal, claro deve estar que somente interessa à lógica o que for

relevante para a justificação das verdades. As leis da lógica são as leis que garantem a

verdade das proposições inferidas. É certo que Mill delega às leis da lógica um status

empírico, o que vai radicalmente contra o racionalismo fregeano. Mas - creio que

não haja dúvidas quanto a isso - vincular a lógica à justificação das verdades inferidas

nada mais pode significar do que vincular a lógica às leis da verdade, leis capazes de

estabelecer a derivação de verdades a partir de outras verdades dadas. Ou seja, as leis

da lógica, sejam elas leis eternas e a priori como quer Frege, sejam elas leis obtidas a

partir da observação por indução, como quer Mill, devem ser leis que,

exclusivamente, decidam ou ajudem a decidir acerca da correção ou não dos

raciocínios. E isso somente pode ser compreendido se tais leis possuírem uma relação

orgânica com a verdade, sendo, portanto, utilizando uma expressão fregeana, leis do

ser verdadeiro.

Pelo que foi exposto até aqui, talvez esteja clara aquela que é a principal tese

defendida no presente trabalho: que, ao menos aos olhos de Frege, a lógica de Mill

não é uma lógica psicologista; que o empirismo milliano não é um empirismo

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psicologizante, como o de Locke, por exemplo; e que a tentação que se tem de

relacionar a critica fregeanas a Stuart Mill à critica fegeana ao psicologismo nada

mais é do que fruto de uma precipitação: a de vincular, sem mais, empirismo e

psicologismo.

Na próxima seção, abordaremos algumas passagens dos Grundlagen der

Arithmetik nas quais Frege dirige críticas contundentes a Stuart Mill. Buscaremos,

pois, demonstrar que o teor de tais críticas não passa por algum tipo de acusação de

psicologismo. O que Frege critica clara e abertamente é o empirismo de Mill, sua

incapacidade de fornecer uma alternativa satisfatória àquilo que ele foi tão feliz em

refutar: o subjetivismo psicoligizante, representado por aquilo estamos chamando de

conceitualismo. Ao retirar do universo subjetivo o fundamento da objetividade do

discurso proposicional, Mill não enxergou a via da objetividade não real que foi mais

tarde explorada por Frege. A partir da consideração das posições millianas com

respeito ao status das proposições aritméticas e dos princípios a partir dos quais essa

ciência pode ser demonstrada, apontaremos qual o teor da crítica contundente de

Frege.

III.3.1. Aritmética e empirismo

Na seção que engloba os parágrafos 5 a 8 dos Grundlagen der Arithmetik,

Frege pergunta se as fórmulas aritméticas são passíveis de demonstração ou se são

verdades indemonstráveis. Vimos, à exaustão, que o projeto fregeano de

fundamentação da aritmética joga em favor da demonstrabilidade das verdades

aritméticas até que se remonte aos seus primeiros princípios, que devem ser verdades

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lógicas elementares ou definições obtidas no âmbito da própria lógica. Ao tratar da

opinião de alguns filósofos sobre este ponto, Frege se refere à posição de Mill:

Dever-se-ía pensar que as fórmulas aritméticas são sintéticas ou analíticas, a priori ou a posteori, conforme o sejam as leis gerais sobre as quais se assenta a demonstração. John Stuart Mill tem, contudo, outra opinião. Na verdade, desde o início ele parece, tal como Leibniz, pretender fundamentar a ciência sobre definições, pois define os números singulares como este; mas seu preconceito de que todo saber seja empírico arruina imediatamente a concepção correta. Ele nos informa que essas definições não o são em sentido lógico, que elas não apenas estipulam o significado de uma expressão, mas assertam um fato observado.140

Ora, o que vemos aqui? Uma clara crítica ao empirismo preconceituoso de Mill e não

uma crítica à maneira como ele encara a demonstrabilidade das proposições

aritméticas. O que Frege critica claramente é o status delegado por Mill às definições

envolvidas na aritmética a partir das quais suas verdades devem ser deduzidas, e não

o procedimento de assentar a aritmética sobre definições. Como podemos ler, o

empirismo radical de Stuart Mill fez com que se estragasse uma postura que Frege

considerou inicialmente correta. Frege critica a postura milliana de querer derivar as

definições envolvidas na aritmética dos fatos observados, de não admitir que possam

haver definições que se baseiem em princípios puramente racionais. Os argumentos

que Frege fornecerá na seqüência do trecho citado estão todos voltados a demonstrar

que não há fatos observados que justifiquem e fundamentem as definições envolvidas

na aritmética. E aqui, como parece claro, não se faz nenhuma referência a quaisquer

participações de processos subjetivos ou explicações causais substituindo as

140 “Man sollte denken, dass die Zahlformeln synthetisch oder analythisch, aposteriori oder apriori sind, je nachdem die allgemeinen Gesetze es sind, auf die sich ihr Beweis stützt. Dem steht jecoch die Meinung John Stuart Mill’s entgegen. Zwar scheint er zunächst wie Leibniz die Wissenschaft auf Definitionen gründen zu wollen, da er die einzelnen Zahlen wie dieser erklärt; aber sein Vorurtheil, dass alles Wissen empirisch sei, verdirbt sofort den richtigen Gedanken wieder. Er belehrt uns nämlich, dass jene Definitionen keine im logischen Sinne seien, das sie nicht nur dir Bedeutung eines Ausdruckes festsetzen, sodern damit auch eine beobachtete Thatsache behaupten” (idem; #7)

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demonstrações. Mas tão somente uma crítica epistemológica com respeito à origem

das definições aritméticas. Mais atrás, quando tratávamos da concepção fregeana da

aritmética enquanto ciência analítica dentro do contexto de logicismo, afirmamos

que, conceber a aritmética como ciência demonstrativa, deduzida a partir do

conceito de número natural, mas definir número natural a partir de categorias não

lógicas, em nada adiantaria para os objetos do projeto logicista fregeano de

fundamentar a aritmética enquanto ciência analítica. É mais ou menos isso o que faz

Stuart Mill com relação à aritmética: ele pretendeu fornecer ao conceito de número

uma natureza empírica; não enxergou, tal como fizera Frege, que a absoluta

universalidade da aritmética e seus princípios não podem derivar de outra fonte que

não princípios racionais eternos e imutáveis. Vimos, com relação à geometria, qual

era o fundamento de sua sinteticidade: embora seja uma ciência demonstrativa, parte

de princípios que dependem de fatores extra-lógicos e extra-racionais, no caso, a

intuição pura do espaço. Mill, por seu turno, com relação à aritmética, também

colocou elementos de ordem extra-racional em sua base. Pretendeu derivar os

princípios da aritmética a partir da observação empírica. Vemos aqui aquilo que

estamos apontando insistentemente no presente capítulo: a principal divergência

entre Frege e Mill, no que diz respeito ao seu projeto logicista, refere-se ao status

epistemológico dos princípios a partir do qual se edificam a lógica e a aritmética;

porém, uma vez estabelecidos esses princípios, as divergências deixam de ser

significativas.

Entre os parágrafos 9 e 11 dos Grundlagen der Arithmetik, ainda com o

objetivo de estabelecer qual a natureza das proposições aritméticas, Frege considera e

rebate a tese de que as verdades aritméticas são indutivas. Mais uma vez aqui, o

‘adversário’ é Mill. Vimos que o empirismo objetivista de Mill optou por não

fundamentar a objetividade da experiência empírica e do discurso sobre o mundo a

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partir de categorias psicológicas, tal como fizera Locke. Portanto, aquilo que os

racionalistas denominam princípios elementares da razão deve ser obtido por meio

da observação dos fatos do mundo, mas sua ‘transformação’ em postulados a partir

dos quais as chamadas ciências demonstrativas se edificam não podem ser

determinados por meio de processos subjetivos, da relação entre idéias. O que

garante a generalização a partir das experiências particulares não pode ser a

formação, por parte dos sujeitos, de idéias gerais, mas deve estar baseada sobre outro

fundamento. Para Mill, tal fundamento é a indução. A generalização, que no modelo

lockenano é um processo psicológico, em Mill se torna um processo lógico-indutivo.

O teor da crítica fregeana ao empirismo de Mill, aqui, repousa numa crítica ao

estatuto da indução. Frege tem razões suficientes para considerar que a indução não

pode ser o fundamento das verdades aritméticas e o teor dessa crítica repousa na

constatação de que a indução se assenta numa teoria das probabilidades; por isso,

pressupõe as leis da aritmética. A indução é um raciocínio enumerativo, depende de

uma certa quantidade de experimentos particulares para que se estabeleça a

conclusão geral. A conclusão indutiva estará melhor estabelecida quanto maior o

número de premissas particulares a corroborá-la. E isso não se consegue sem as leis

gerais da aritmética. Ou seja: Mill busca fundamentar a aritmética na indução, mas

ocorre justamente o contrário, pois, segundo Frege, é a indução que se fundamenta

na aritmética141.

141 “Vernunthlich kann das Verfahren de Induction selbst nur mittels allgemeiner Sätze der Arithmetik gerechtfertigt werden, wenn man darunter nicht eine blosse Gewöhnung versteht. Diese hat nämlich durchaus keine wahrheitverbürgende Kraft. Während das wissenchaftliche Verfahen nach objectiven Maasstäben bald einer einzigen Bestätigung eine hohe Wahrscheinlichkeit begründet findet, bald thausendfaches Eintreffen fast für werthlos erachtet, wird die Gewöhnung, durch Zahl und Stärke der Eindrüke und subjective Verhältnisse bestimmt, die keinerlei Recht haben, auf das Urtheil Einfruss zu üben. Die Induction muss sich auf die Lehre von der Wahrscheinlichkeit stützen, weil sie einen Satz nie mehr als wahrscheinlich machen kann. Wie diese Lehre aber ohne Voraussetzung arithmetischer Gesetze entwickelt werden könne, ist nicht abzusehen”(idem: #10)

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Pois bem: a aritmética deve ser demonstrada a partir de primeiros princípios e

esses não podem ser obtidos por meio da indução. Logo, não pode ser propriedade

das coisas exteriores. De acordo com Frege, o problema ocorre porque

Mill confunde sempre as aplicações que se podem fazer das proposições aritméticas, freqüentemente físicas e pressupondo fatos observados, com a própria proposição puramente matemática.142

Assim sendo, Frege utiliza a segunda seção do capítulo II dos Grundlagen der

Arithmetik para refutar a tese, atribuída a Mill, de que os números são propriedades

das coisas exteriores. E o principal argumento utilizado por Frege para isso é também

precioso para que sua própria definição de número natural seja estabelecida. Frege

nos diz:

De fato, como diz Mill, duas maçãs são fisicamente diferentes de três maçãs, dois cavalos diferem também de um cavalo, cada um sendo um fenômeno distinto. Mas deve-se concluir daí que a doisidade ou a tresidade sejam algo físico? Um par de botas pode ser o mesmo fenômeno sensível e visível de duas botas. Temos aqui uma diferença numérica e que não corresponde a nenhuma física; pois dois e um par não são absolutamente o mesmo, como Mill, de modo singular, parece acreditar. Enfim, como é possível que dois conceitos se distingam fisicamente de três conceitos?143

Ora, no que consiste, então, a principal objeção de Frege com relação a Mill nesse

particular? Consiste na acusação de que Mill não foi capaz de enxergar que os

números são propriedades dos conceitos e não do mundo físico exterior. O mesmo

142 “Mill verwechselt immer Anwendugen, die man von einem arithmethischen Satze machen kann, welche oft physikalisch sind und beobachtete Thatsachen zur Voraussetzung haben, mit dem rein mathematischen Satz selber” (idem; # 9) 143 “In der That sind, wie Mill sagt, zwei Aeplfel von drei Aepfeln, zwei Pferde von der einem Pferd physikalisch verschieden, ein davon verschiedenes sichtliches und fühlbares Phänomenon. Aber ist daraus zu schliessen, dass die Zweiheit, Dreiheit, etwas Physikalisches ist? Ein Paar Stiefel kann dieselbe sichtbare und fühlbare Erscheinung sein, wie zwei Stiefel. Hier haben wir einen Zahlenunterschied, dem kein physikalischer entspricht; denn zwei uns Ein Paar sind keineswegs desselbe, wie Mill sonderbarer Weise zu glauben scheint. Wie ist es endlich möglich, dass sich zwei Begriffe von drei Begriffen physikalisch unterscheiden?” (idem; # 25)

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fato físico pode ser subjugado a partir de conceitos distintos. O mesmo fato físico

pode se apresentar como um time de futebol ou onze jogadores, pois o que determina

o juízo numérico não é o fato físico em si, mas os conceitos que são reivindicados na

‘leitura’ do fato físico observado. É possível utilizar os números aplicados aos fatos

físicos, mas somente no momento em que ele segue acompanhado de um conceito ao

qual, em realidade, se refere. Os números, embora muitas vezes aplicados aos fatos

físicos, também são aplicáveis a coisas não físicas. Vimos, quando falávamos da

analiticidade da aritmética, comparando-a com a geometria, que uma das coisas que

jogaram em favor da postura fregeana em afirmar a racionalidade essencial da

aritmética foi sua aplicabilidade universal. Já a geometria, por depender de nossa

intuição pura do espaço, tem sua aplicabilidade restrita ao universo físico exterior; a

aritmética, por estar fundamenta a partir de princípios racionais objetivos, é

aplicável a todo reino do pensável, e não só ao mundo físico. Ora, a acusação de

Frege com relação a Mill repousa aqui na incapacidade milliana em desvincular a

aritmética do reino da sensibilidade espacial e, consequentemente, em notar

aplicabilidade universal da aritmética. E de acordo com Frege, essa aplicabilidade

universal da aritmética repousa na aplicabilidade universal daquilo que Frege

denomina “conceitos”, os verdadeiros objetos dos juízos numéricos.

A partir do que foi exposto até aqui, creio ter ficado claro qual o objeto das

críticas fregeanas a Stuart Mill: exclusivamente seu empirismo, e não um suposto

psicologismo. O empirismo milliano não é psicologista e talvez tenha sido esse o

principal incômodo causado em Frege pelo System of logic: Mill deu um passo

importante na medida em que despsicologiza a lógica e a aritmética, mas esse passo

somente o levou à metade do caminho, pois o que foi retirado do sujeito foi jogado,

sem mais, para o mundo exterior:

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Chegamos à conclusão de que o número não é uma coisa física ou espacial, como os aglomerados de pedrinhas e bolinhas de Mill, nem tampouco subjetivo, como as representações, mas não sensível e objetivo.144

A passagem acima é clara e nos mostra que são dois os adversários de Frege: Mill de

um lado, e o psicologismo do outro. E as duas críticas não se confundem, mas se

contrapõem, pois marcam exatamente o ponto ao qual Frege que chegar: a

objetividade não empírica. Faltou a Mill ter dado um passo a mais: sua aversão ao

subjetivismo idealista típico dos modernos estava absolutamente correta. O que,

segundo Frege, estragou a posição milliana foi o inglês não ter enxergado que, entre

a subjetividade psicológica e o mundo físico, há uma terceira alternativa. Por isso,

acredito que Frege estava pensando também em Mill quando enunciou, na

Introdução de sua grande obra:

Surpreenderam-me muitas vezes exposições que, aproximando-se muito de minha concepção em um ponto, em outros divirjam delas tão fortemente.145

De fato, Mill chegou muito próximo de Frege; talvez na metade do caminho. Mas

seu empirismo, inconseqüente aos olhos de Frege, fez com que, em outros aspectos,

sua filosofia se situasse numa posição tão distante daquela do fundador da lógica

contemporânea.

144 “Und wir kommen zu dem Schlusse, dass die Zahl weder räumlich und physikalisch ist, wie Mills Haufen von Kieselsteinen und Pfeffernüssen, noch aunch subjectiv wie die Vorstelungen, sodern unsinnlich und objective” (idem: #27) 145 “Ich habe mich manchmal gewundert, dass Darstellungen, die in Einem Punkte meiner Auffassung so nahe kommen, in andern so stark abweichen” (idem; Einteilung)

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Conclusão

A conclusão a que chegamos, ainda que parcial, leva-nos a identificar a Lógica

de Stuart Mill como um importante momento nos esforços que possibilitaram o

advento daquilo que se acostumou chamar de filosofia contemporânea, sobretudo em

sua vertente analítica. Se é certo que o grande desafio de parte da filosofia do século

de XIX foi, em algum sentido, superar o agonizante modelo filosófico moderno

baseado na epistemologia e na psicologia em favor de uma filosofia voltada para

análise da linguagem, justamente pela incapacidade que se tornou evidente de se

fundamentar a objetividade do conhecimento e do discurso a partir do sujeito, então

podemos certamente encontrar nas páginas do System of logic alguns insights que

vieram abrir caminho para o linguitic turn, para a guinada da filosofia em direção à

linguagem. E como muitos filósofos que estabeleceram seus pensamentos em

períodos de transições importantes, e que de alguma forma contribuíram com elas,

Mill e sua lógica encontram-se num nível ainda embrionário, e, por isso mesmo,

confuso com relação a muitos dos problemas que os desdobramentos futuros da

filosofia vieram a estabelecer. Conforme buscamos mostrar, Mill coloca uma

semântica requintada e progressista a serviço de uma sintaxe lógica ultrapassada e já

claramente insuficiente, e de um empirismo tão radical quanto inconseqüente; ao

mesmo tempo, estabelece uma importante distinção entre aquilo que deve ser da

alçada da lógica em oposição ao que é próprio psicologia, mas acaba não enxergando

com clareza que deve se tratar de uma divisão a ser estabelecida fora dos domínios da

lógica, e não como uma mera subdivisão da lógica em duas ‘faces’. Na realidade,

embora muitos de seus insights tenham sido corretos e tenham antecipado teses que

se tornariam célebres a partir de Frege, Mill não teve ao seu dispor elementos

conceituais suficientemente elaborados para faze-lo perceber qual era o inimigo a ser

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batido e o problema a ser resolvido. Diferentemente do que ocorrera com Frege, para

quem o antipsicologismo era uma bandeira muito clara - e que se estabeleceu, graças

ao seu projeto logicista, como uma necessidade sistemática inexorável - Mill não viu

com clareza esta necessidade, e nem comungou da mentalidade que veio a impô-la.

Seu projeto filosófico não passava pelo antipsicologismo, embora sua filosofia tenha

contribuído, à sua maneira, para seu advento. Talvez isso justifique o fato de que

Mill, mesmo tendo ido tão longe em alguns pontos, tenha se mantido, em outros, tão

distante dos resultados que foram alcançados por Frege. Como bem expressaram

Knealle & Knealle no clássico The developement of logic, Mill mistura o novo e o

velho numa confusão bizarra.146 Apesar disso, o que é novo no pensamento lógico de

Mill é suficientemente importante para estabelecermos que ele foi um pensador

decisivo para o advento da filosofia contemporânea.

Deve ser salientado, ademais, que o trabalho que se seguiu não contém a

totalidade da pesquisa que fora proposta quando da elaboração do projeto de tese

apresentado no início do curso. Não fossem as condições objetivas desfavoráveis e a

necessidade inexorável de cumprimento dos prazos, o presente trabalho teria ainda

uma quarta parte, no qual seria analisada a influência exercida pela teoria milliana da

conotação na elaboração, por parte de Frege, da distinção entre sentido e referência.

Como sabemos, será com essa teoria que Frege resolverá pendências importantes

referentes à semântica que dá suporte à sua lógica. E sabemos que as leituras que

Frege realizou do System of logic foram de grande valia também para a realização de

seus projetos semânticos. Na medida em que não se recorre mais ao universo

subjetivo na tentativa de dar conta de coisas como a significatividade dos termos da

linguagem e a unidade do sentido proposicional, fez-se necessária a introdução de

categorias extra-psicológicas, de categorias semânticas capazes de explicar a relação

146 Cap. V, #5

162

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que deve existir entre o signo e sua referência, que não é mais considerado como

mera representação subjetiva. Algo deve tomar o lugar dos processos psíquicos na

explicação da maneira como os nomes relacionam-se aos seus referentes; esse algo,

no sistema milliano, é a carga semântica dos nomes conotativos, e em Frege, o

conteúdo descritivo que constitui o sentido dos nomes. Embora não seja possível, ao

menos sem muitas ponderações, assimilar simplesmente a conotação milliana com o

sentido fregeano (e por isso investigar essa relação se justifica), parece não haver

dúvidas que ambas categorias ocupam o mesmo espaço sistemático, cumprem uma

função análoga no que diz respeito à maneira como os nomes devem significar e à

sua relação com entidades psíquicas. Creio, por isso, que, dentre os interesses que

motivaram a pesquisa que desembocou no presente trabalho, é de suma importância

a abordagem da relação entre Mill e Frege também nesse particular.

Marília, abril de 2006

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