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JOGO DAS POSSIBILIDADES: MODELAR UMA POÉTICA VISUAL-NARRATIVA GAME OF POSSIBILITIES: MODELING A VISUAL-NARRATIVE POETIC Márcio Lins de Carvalho / UFPA RESUMO Este artigo é um relato das reflexões derivadas do processo em andamento na minha pesquisa de doutorado no PPGArtes-UFPA, na linha de pesquisa de poéticas artísticas, onde desenvolvo um jogo que procura ser um dispositivo de experiências a qual o jogador possa encarnar um personagem e o desenvolva através das possibilidades que o jogo oferece. O artigo se articula como um livro-jogo de escolhas e deverá ser jogado para compreendê-lo totalmente. Aborda-se como a pesquisa foi concebida e que elementos de jogo foram influenciadores na poética em descrição, bem como os desdobramentos materiais, reflexivos e significativos que derivaram de tal; por fim trata de algumas dúvidas e aspirações que esse processo enfrenta no momento em que o artigo é concluído. PALAVRAS-CHAVE: jogo; experiência; escolhas; arquétipos; arcos narrativos. ABSTRACT This article is an account of the reflections derived from the process in progress in my PhD research in the PPGArtes-UFPA, in the research line of artistic poetry, where I develop a game that seeks to be a device of experiences to which the player can embody a character and develop it through the possibilities that the game offers. The article is articulated as a book-game of choices and should be played to fully understand it. It is approached as the research was conceived and that elements of game were influencers in the poetics in description, as well as the material, reflective and significant unfoldings that derived from such; finally it addresses some doubts and aspirations that this process faces at the moment the article is concluded. KEYWORDS: Game; experience; choices; archetypes; narrative archs.

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JOGO DAS POSSIBILIDADES: MODELAR UMA POÉTICA VISUAL-NARRATIVA

GAME OF POSSIBILITIES:

MODELING A VISUAL-NARRATIVE POETIC

Márcio Lins de Carvalho / UFPA

RESUMO Este artigo é um relato das reflexões derivadas do processo em andamento na minha pesquisa de doutorado no PPGArtes-UFPA, na linha de pesquisa de poéticas artísticas, onde desenvolvo um jogo que procura ser um dispositivo de experiências a qual o jogador possa encarnar um personagem e o desenvolva através das possibilidades que o jogo oferece. O artigo se articula como um livro-jogo de escolhas e deverá ser jogado para compreendê-lo totalmente. Aborda-se como a pesquisa foi concebida e que elementos de jogo foram influenciadores na poética em descrição, bem como os desdobramentos materiais, reflexivos e significativos que derivaram de tal; por fim trata de algumas dúvidas e aspirações que esse processo enfrenta no momento em que o artigo é concluído. PALAVRAS-CHAVE: jogo; experiência; escolhas; arquétipos; arcos narrativos. ABSTRACT This article is an account of the reflections derived from the process in progress in my PhD research in the PPGArtes-UFPA, in the research line of artistic poetry, where I develop a game that seeks to be a device of experiences to which the player can embody a character and develop it through the possibilities that the game offers. The article is articulated as a book-game of choices and should be played to fully understand it. It is approached as the research was conceived and that elements of game were influencers in the poetics in description, as well as the material, reflective and significant unfoldings that derived from such; finally it addresses some doubts and aspirations that this process faces at the moment the article is concluded. KEYWORDS: Game; experience; choices; archetypes; narrative archs.

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CARVALHO, Márcio Lins de. Jogo das possibilidades: modelar uma poética visual-narrativa, In Anais do 27o Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 27o, 2018, São Paulo. Anais do 27o Encontro da Anpap. São Paulo: Universidade Estadual Paulista (UNESP), Instituto de Artes, 2018. p.2864-2876.

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Antes de iniciar o artigo, preciso deixar claro alguns pontos:

Estou na linha de pesquisa de poéticas artísticas do Programa de Pós Graduação

em Artes da Universidade Federal do Pará, onde as pesquisas desenvolvidas nessa

linha são focadas no processo artístico e não demandam uma tese escrita nos

rigores da academia.

Em virtude da minha pesquisa de doutorado, a qual estudo sobre jogos como meio

de expressão artística com foco na experiência, minha proposta de tese é criar um

jogo para evidenciar a experiência de criação e, posteriori, fruição do mesmo.

O jogo que proponho visa expor diferentes experiências de diferentes personagens

(imaginários ou não) que, por escolha do jogador, podem ter diferentes jornadas

com diferentes finais.

Com essas colocações postas, adentro neste escrito no qual pretendo mostrar o

processo da minha pesquisa até onde estou, explicitando as descobertas,

dificuldades e possibilidades que o meio jogo (e minhas reflexões sobre) me

proporcionou nesse primeiro ano de doutorado. Para tal, organizei esse artigo para

simular o modelo que adotei para a estrutura do jogo, atentando para cada momento

desse formato à uma fase do processo de criação que tenho desenvolvido na

academia.

Um breve estabelecimento de regra (ou leitura) A partir do subtítulo seguinte (Início), proponho um jogo com o leitor, ao final de cada

subtítulo, existe uma indicação da continuação do texto para um determinado

subtítulo seguinte, para melhor compreensão do texto recomendo seguir escolhendo

os subtítulos até os dois finais da narrativa que apresento aqui (os subtítulos

Arquétipos e Histórias).

Escolho esse formato por ser o que está estruturando o jogo que desenvolvo nesse

momento e expõe como a minha poética tem se dado durante a pesquisa.

Isto exposto, sigo para meu relato.

Início A proposta inicial que me fez entrar no doutorado é um caminho inverso à

dissertação que desenvolvi no mestrado, onde abordei a experiência de jogo como

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influência ao jogador a recriar tal numa obra diversa, fora jogo. No doutorado queria

criar um jogo onde a experiência fora-jogo fosse reinterpretada num ambiente

dentro-jogo.

Imaginei uma sequência de jogos em que suas mecânicas conversassem com a

experiência a ser narrada, p.e.: um pai que é chamado no trabalho para acompanhar

o parto da esposa, como seria sua jornada? Imaginei um runner game1 onde o pai

desvia de vários obstáculos da cidade a fim de conseguir chegar a tempo para ver o

filho nascer.

A premissa era interessante, mas considerei rasa e sem muito potencial poético, era

o meio jogo se sobressaindo à mensagem. Apesar de insatisfeito com a proposta do

projeto, ele foi aprovado 一 muito pelo potencial, depois me foi informado pela minha

orientadora 一, porém era evidente que experiência fora-jogo passada para a

interface interativa do jogo necessitava de mais reflexão, de conceitos, design e

imagética. Me foi recomendado pela orientadora que estudasse sobre jogos que

passassem uma experiência completa, que tratassem de um processo com início

meio e fim.

Me vi com duas opções.

Na primeira, um vídeo game, já tinha poucos meses que não jogava mais (por conta

de trabalho e processo de seleção do doutorado) e poderia procurar alí algo que

pudesse me dar algumas ideias (visuais, narrativas, interativas etc) sobre como

abordar a experiência no meu jogo. Na segunda opção, um livro-jogo, tinha

comprado um desses meses atrás por pura nostalgia de ter me aventurado nas

histórias de organização confusa a princípio, mas que, seguindo as indicações

dadas pelo texto, compunham história coesa escrita pelo autor e que se constrói

pelas escolhas feitas pelo leitor.

Se quiser seguir com a opção do vídeo game, siga para o subtítulo vídeo game.

Se quiser seguir com a opção do livro-jogo, siga para o subtítulo livro-jogo.

Vídeo Game Depois da homologação do resultado da seleção e tendo a certeza que estava

aprovado no doutorado do PPGArtes/UFPA, me vi com mais tempo para usufruir de

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descanso e poder ver o ato de jogar não somente como meio de pesquisa, mas

como o divertimento que me fez gostar desse meio também como fruição. Escolhi

um jogo chamado Destiny2, que joguei na plataforma XBOX One, o qual havia

parado no meio para pleitear o doutorado.

Figura 1: tela do jogo Destiny, jogadores cooperando contra um inimigo. Fonte: site Venture Beat

Ao jogá-lo percebi vários elementos visuais que achei interessantes. Apesar de o

jogo ser um FPS3 visualmente tecnológico, ambientado num futuro distópico em que

o planeta Terra fora invadido por uma raça alienígena e o jogador encarna um herói

que rechaça essa ameaça com aparatos altamente tecnológicos e poderes

fantásticos advindos desses, a interface apresentada ao jogador se inspira em

iconologias antigas, próximas das imagens medievais, como brasões, títulos

similares à nobreza, facções (ou guildas), alguns instrumentos considerados

medievais como espadas e escudos (mas com a abordagem tecnológica do jogo),

entre outros.

O que mais me chamou a atenção foi a tela de seleção de missões que o jogador

dispõe, onde os mapas mostrados são representados como os feitos à mão, mapas

antigos com suas ranhuras, falhas de tinta, desproporções ante à real dimensão do

terreno a ser explorado pelo jogador. Admito que essa anacronia visual proposta

pelo jogo me chamou atenção, primeiramente, mais pela ousadia estética e beleza

da composição dos mesmos, mas posteriormente vi nessa representação um

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potencial elemento visual para o jogo que me dispus a desenvolver durante o

doutorado.

Figura 2: um dos mapas mostrado ao jogador de Destiny, ícones com brasões e outros símbolos mostram locais possíveis de visitar e/ou missões a serem completadas. Fonte: Gamepressure

Pensei no mapa como um espaço que o jogador construirá sua experiência em jogo,

valendo-se de um ponto de partida com opções a serem escolhidas, e cada escolha

feita comporia uma cidade, nesse argumento o mapa completo seria um mapa da

experiência de escolhas do jogador.

Comecei a esboçar as mecânicas e possíveis possibilidades de usos dos mapas no

jogo que desenvolvo.

Figura 3: desenhos que fiz para experimentar a composição de mapas no jogo, além de possíveis nomes para o próprio. Fonte: Autor.

Mas algumas dúvidas começaram a surgir. Uma delas era sobre o elemento de

desafio que todo jogo propõe; como entregar desafio ao jogador ao criar mapas?

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Uma segunda dúvida também pairou; que elementos usar para deixar evidente as

escolhas do jogador?

Se quiser seguir para a primeira dúvida, siga para o subtítulo desafio.

Se quiser seguir para a segunda dúvida, siga para o subtítulo escolhas.

Livro-jogo Ao me ver com tempo para descansar do extenuante processo de seleção que

passei, resolvi voltar ao livro-jogo O Feiticeiro da Montanha de Fogo4, nesses livros

一 também chamados de “aventuras solo” 一 você toma as decisões do personagem

principal através das opções dadas pelo próprio livro no final de cada capítulo,

geralmente são dadas duas ou mais opções ao leitor/jogador que, ao escolher uma

delas, é conduzido a uma página distante da que estava lendo, onde tem a

continuação baseado na escolha feita.

Primeiramente não atentei ao sistema como uma pista ao jogo que desenvolvia, mas

o ato de marcar as páginas que passava deixou a mim uma pista de um processo de

experiência ao desenvolver a história do meu personagem no livro-jogo.

Figura 4: marcadores no livro jogo supracitado, os pontos que passei foram indicativos de uma jornada narrativa particular. Fonte: Autor.

A narrativa se mostrou um guia interessante para conduzir sensivelmente o jogador,

os marcadores eram como pontos de ligação visual referentes às escolhas feitas

durante a leitura. Narrativa e escolhas passaram a ser elementos importantes que

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poderiam enriquecer o jogo que desenvolvo para evidenciar o trajeto da experiência

do jogador.

Neste ponto abordo uma estrutura “quase invisível” que o jogo poderia ter, como

uma árvore de escolhas e consequências propostas ao jogador para que uma

história se desenvolva. Resolvi materializar isso de alguma forma e resolvi elaborar

um esquema dessas escolhas para deixar claro e visível como tudo poderia

funcionar; usei cartões conectados por linhas para ver como tudo poderia funcionar.

Figura 5: cartões costurados em ligação de opções, para materializar a organização de uma história e suas possibilidades. Fonte: Autor.

Mas dúvidas se mostraram na reflexão desse sistema; fazer com que isso se

manifeste visualmente seria um desafio, talvez cartões com as escolhas ofertadas

ao jogador seriam boas opções? Estruturar o jogo numa linha coerente poderia ser

outra opção, talvez estabelecer arcos narrativos para que o jogador pudesse

entender suas escolhas como algo que desenvolve seu personagem na história?

Se quiser seguir para a primeira dúvida, siga para o subtítulo escolhas.

Se quiser seguir para a segunda dúvida, siga para o subtítulo arcos narrativos.

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Desafio Obstáculos e problemas são forças que movem um jogador a se engajar na

experiência de jogo; na proposta da criação de um mapa de experiência a questão

“o que faria um jogador criar o mapa de sua experiência?” demanda um elemento

adicional que motiva esse percurso imaginário proposto pelo jogo ao seu jogador.

Nesse momento do desenvolvimento do jogo, uma obra surgiu como possível

proposição dos motivos para a elaboração desse mapa. No livro O sonho do

cartógrafo: meditações de Fra Mauro na corte de Veneza do século XVI, do

romancista James Cowen, é mostrado uma construção imaginária do escritor do

diário de Fra Mauro, um monge do Mosteiro de San Michelle di Murano, tem como

sonho criar o mapa de toda a criação de Deus, porém o mesmo tem medo de viajar

e não tem intuito de sair de sua cela no mosteiro, para realizar seu sonho o monge

começa a receber visitas de viajantes, mercadores, informantes, até mesmo de

agentes do Papa da época, que fornecem a ele informações orais de suas

experiências pelo mundo a fim de ajudá-lo na criação cartográfica.

Ciente de que seu mapa não terá a precisão geográfica-métrica, Fra Mauro assume

que seu mapa é fruto de seus anseios e desejos, um mapa enriquecido pelo seu

imaginário e de quem ele recebe em sua cela, vendo nesse caminho uma forma

legítima de tentar alcançar a criação em si.

Eu especulo. Os criadores de mapas têm de especular, pois sabem que não estão de posse de todos os dados. Estamos sempre lidando com narrativas em segunda mão, resumos de impressões. Não trabalhamos com uma ciência exata. O que fazemos é imaginar contornos litorâneos, penhascos e estuários para compensar aquilo que não conhecemos.” (COWEN, 1999, pp.33).

Tendo essa perspectiva de que a criação de mapas pode ser, também, uma criação

sob a subjetividade do próprio cartógrafo, me ficou evidente que tanto a elaboração

do mapa pelo jogador quanto a interpretação deste mesmo mapa quando finalizado

é diversa e, talvez, não somente na construção do mapa em si, também na

interpretação dos caminhos trilhados, o desafio habite.

Nesse ponto percebi que o caráter imagético do mapa pode carregar uma camada

interessante de representação da experiência, aberta a reflexão do jogador em

relação a jornada que trilhará.

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A proposta do jogo começou a se configurar em colocar o jogador no lugar similar ao

de Fra Mauro, que recebe um personagem que relata sua história, e no de seus

visitantes, que relatam a ele suas viagens, as experiências e suas possibilidades são

dadas (incorporando o papel dos visitantes) e cada possibilidade habitará um ponto

no mapa (como Fra Mauro provavelmente teria colocado).

Tal modelo de representação acabou por me revelar que essas possibilidades

poderiam construir um tipo de arquétipo, modelos gerais que diferem em

determinados pontos, mas seguem um modelo comum de personalidade,

comportamento ou moral. O que acabou levando para a reflexão do papel que esses

arquétipos fariam numa representação em mapas.

Para continuar às considerações, seguir para o subtítulo arquétipos.

Escolhas Para um jogo que deriva de uma pesquisa sobre experiência, ter noção de que é

virtualmente impossível lidar com todas as possibilidades de escolhas que um

fenômeno nos entrega é imprescindível para se conformar com os limites que temos

ao explorar esse campo. Portanto limitar as escolhas do jogador foi o modo que me

pareceu mais viável para aliar os elementos visuais e funcionais que compõem o

jogo.

A forma de exposição de escolhas foi um dos pontos que mereceu ser refletido na

interface do jogo, os marcadores num livro ou cidades entre caminhos num mapa,

poderiam ser indicações das escolhas feitas, precisava haver um suporte para expor

as opções dadas ao jogador, nesse momento me apareceram as cartas.

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Figura 6: estudos para interface do jogo, aqui as cartas começam a aparecer como formas de mostrar as opções que o jogo oferece a seu jogador. Fonte: Autor.

As cartas se mostraram como um pequeno rasgo de interface ante a interface maior

que abriga o jogo e permite ao jogador identificar a opção dada para a construção de

experiência proposta.

Aspirando chegar a alguma conclusão, me vieram dois caminhos, diferentes e

complementares. Essas escolhas podem trabalhar os arquétipos dos personagens,

máscaras que o jogador poderá vestir para encarar uma perspectiva sobre o que é

apresentado nas cartas. Depois, paralelamente à construção dessas personas em

jogo, a história e seus conflitos/obstáculos precisará de um significado (que

compreendo, irá variar para cada jogador); o que o personagem viesse a passar se

enriqueceria mais se ressoasse com os sentimentos, experiências e perspectivas de

vida de quem joga.

Se quiser seguir para a primeira consideração, siga para o subtítulo arquétipos.

Se quiser seguir para a segunda consideração, siga para o subtítulo histórias.

Arcos Narrativos Um ponto perceptível ao se trabalhar com as variadas opções é que as escolhas

desenvolvem arcos narrativos que constroem personagens.

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Um arco narrativo são variações numa história que servem de modelo (e não regra)

para os diferentes acontecimentos que delineiam o comportamento, caráter e

mesmo a moral (se tal for aplicável) de um personagem e uma história; o modelo

popular é o de três atos5, originado do conceito de monomito 一 ou “A Jornada do

Herói” como é mais conhecido 一, desenvolvido por Joseph Campbell no livro O

Herói de Mil Faces, onde mostra um início, meio e fim, com uma introdução inicial,

seguido da apresentação e desenvolvimento do problema, terminando com o clímax

e resolução. Muito usado, este é um molde simples e largamente usado na contação

de uma história.

Como estamos lidando com escolhas que definem um personagem que o jogador

encarnará, tais precisam seguir um modelo igual ou similar aos três atos, as opções

precisam deixar evidente que o personagem tem um determinado status inicial e que

esbarrará com um problema que (negando ou não) precisará resolver, como será

resolvido caberá às escolhas do jogador ante as opções dadas.

Essa imprecisão de “como será resolvido” é onde encontro um dos maiores

potenciais da minha pesquisa, pois engloba uma faceta da experiência em jogo: a da

construção de histórias significativas, onde as escolhas estabelecem um ponto de

vista do jogador ante os acontecimentos mostrados pelo jogo.

Para seguir a consideração desta faceta, siga para o subtítulo histórias.

Arquétipos A construção arquetípica que o jogador deverá passar na experiência proposta pelo

jogo me é um dos pontos de maior interesse na pesquisa, os arquétipos de

personagem são máscaras que variam durante e entre cada história contada. Mais

conhecido pelo trabalho do estudioso Carl Gustav Jung, ele estabelece um espectro

de comportamentos que delineiam como certos personagens encaram a história que

estão inseridos, bem como são vistos por seus expectadores.

No jogo, me ficou evidente que as grande áreas que abrigam certos arquétipos

poderiam ser terrenos férteis para apresentar personagens diferentes no jogo e

explorar máscaras que variam nessa faceta; as grandes áreas são: liberdade, em

certa oposição à ordem, e ego, em certa oposição à social. Em cada uma dessas

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áreas, arquétipos habitam e se movimentam para enriquecer o comportamento e o

protagonismo de personagens numa história.

Figura 7: gráfico expondo os doze arquétipos e suas colocações no espectro das grandes áreas. Fonte: A Luz é Invencível.

Visualizar que arquétipos serão seguidos pelo jogadores, ou mesmo quais as

flutuações dos mesmos numa mesma jogatina, é onde vejo que terei pistas para

entender a transposição da experiência fora-jogo para o jogo em si, os arquétipos

podem traçar uma linha que poderá ser vista e analisada para deixar evidente as

perspectivas de diferentes jogadores sobre uma experiência, levando em conta o

“avatar”6 que encarna dentro de jogo.

Minha pesquisa ainda está num caráter fetal, dúvidas ainda me incorrem nesse

processo, como “quais histórias devo disponibilizar?” ou “que escolhas cada história

deverá ter”, mas acredito que tenho em mãos um modelo (não definitivo, portanto

mutável) para construir um dispositivo que me permita entender não somente o

processo que relatei nesse artigo, mas que desdobramentos poderei ter na provável

obra que derivará de tal.

Histórias De todos os momentos, esse é onde me encontro mais próximo, tenho em mente

que as histórias contadas, independente de personagens, precisam se valer do arco

narrativo posto ao jogador e das escolhas do mesmo para que se componha uma

história significativa.

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Para entender que tipo de “história significativa” estou tentando alcançar, tenho

como ajuda o trabalho de Hans Ulrich Gumbrecht com seu conceito de produção de

sentido e produção de presença, onde deixo o próprio intelectual explicar cada

termo.

Na produção de sentido, pode-se explicar:

Se atribuirmos um sentido a alguma coisa presente, isto é, se formarmos uma ideia do que essa coisa pode ser em relação a nós mesmo, parece que atenuamos inevitavelmente o impacto dessa coisa sobre o nosso corpo e nossos sentidos. (GUMBRECHT, 2010, pp. 14).

Enquanto que para produção de presença, o trecho elucidativo diz:

Se producere quer dizer, literalmente, “trazer para frente”, “empurrar para frente”, então a expressão “produção de presença” sublinharia que o efeito de tangibilidade que surge com as materialidades de comunicação é também um efeito permanente. Em outras palavras, falar de “produção de presença” implica que o efeito de tangibilidade (espacial) surgido com os meios de comunicação está sujeito, no espaço, a movimentos de maior ou menor proximidade e de maior ou menor intensidade. (GUMBRECHT, 2010, pp. 38-39).

O que pretendo alcançar com as histórias contadas, paralelamente aos arquétipos, é

que o jogador produza sentido e presença durante o jogo, que as histórias possam

afetá-los e que durante cada jogo esses sentidos e presenças possam mudar e se

resignificar, trazendo outros pontos de vista sobre o jogo em si e seus elementos,

fazendo do jogo um dispositivo de reflexão da experiência vivida dentro e fora do

jogo, permitindo ao jogador fazer paralelos entre as experiências. Ou não. Essas

variações me parecem frutos interessante para se expor nesta pesquisa.

Notas 1 Estilo de jogo onde um personagem controlado pelo jogador corre incessantemente, o jogador controla apenas os comandos necessários para que o personagem desvie dos obstáculos encontrados no caminho até seu destino. 2 Jogo lançado em 2014 e desenvolvido pela empresa Bungie. 3 Sigla para First Person Shooter, ou Atirador em Primeira Pessoa numa tradução literal. 4 De Steve Jackson e Ian Livingstone, publicado no Brasil pela Jambô Editora. 5 Mostrado no livro “Manual do Roteiro”, de Syd Field. 6 O termo é usado para designar a persona que o jogador encarna dentro do ambiente de jogo. Em “Super Mario Bros”, p.e. o avatar que o jogador encarna é o personagem Mario, que o jogador controla visando a conclusão de sua jornada para salvar a princesa e derrotar o vilão.

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CARVALHO, Márcio Lins de. Jogo das possibilidades: modelar uma poética visual-narrativa, In Anais do 27o Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 27o, 2018, São Paulo. Anais do 27o Encontro da Anpap. São Paulo: Universidade Estadual Paulista (UNESP), Instituto de Artes, 2018. p.2864-2876.

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Márcio Lins de Carvalho Doutorando em Artes pelo PPGArtes/UFPA e técnico pela Fundação Cultural do Estado do Pará. Desenvolve pesquisa em artes digitais, com focos nos jogos eletrônicos, sob a lente da experiência.