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105 cadernos ufs - filosofia A FILOSOFIA COMO TERAPIA DA ALMA EM SÊNECA Joelson Santos Nascimento, Graduado em Filosofia e professor do Master/Aracaju Resumo: O objetivo deste artigo é o de fazer uma análise de duas obras de Sêneca intituladas Consolação a minha mãe Hélvia e Da tranqüilidade da alma e expor como o conceito de Filosofia e o seu uso são tratados pelos filósofo como uma medicina da alma. Palavras-chaves: Medicina, alma, tranqüilidade. Abstract: The point of this paper is to make an analysis of two works of Seneca called To Helvia on Consolation and On Tranquillity of mind and expose how the concept of philosophy and its use are dealt by the philosopher as a medicine of the soul. Key-words: Medicine, soul, tranquillity.

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cadernos ufs - filosofia

A FILOSOFIA COMO TERAPIA DA ALMA EM SÊNECA

Joelson Santos Nascimento,Graduado em Filosofia e professor do Master/Aracaju

Resumo:

O objetivo deste artigo é o de fazer uma análise de duas obras de Sêneca

intituladas Consolação a minha mãe Hélvia e Da tranqüilidade da alma e

expor como o conceito de Filosofia e o seu uso são tratados pelos filósofo

como uma medicina da alma.

Palavras-chaves: Medicina, alma, tranqüilidade.

Abstract:

The point of this paper is to make an analysis of two works of Seneca

called To Helvia on Consolation and On Tranquillity of mind and expose

how the concept of philosophy and its use are dealt by the philosopher as

a medicine of the soul.

Key-words: Medicine, soul, tranquillity.

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O que Sêneca entende por Filosofia? O objetivo desse artigo é de respon-der essa questão partindo da análise de duas de suas obras, a saber, Conso-

lação a minha mãe Hélvia e Da tranqüilidade da alma. Começaremos com acarta de Sêneca enviada a sua mãe e, em seguida, a que foi enviada ao seuamigo Sereno.

De modo a entendermos o contexto em que Sêneca escreveu a carta, fale-mos o que o levou até o exílio. Segundo Joyau e Ribbeck, (JOYAU e RIBBECK:1988, p. XVII-XVIII) Sêneca teve toda sua educação em Roma. Entre as maté-rias que aprendeu estava a Retórica ligada à Filosofia, estudo este que otornou um advogado famoso. Correlativamente houve também uma ascensãopolítica que o levou a se tornar um membro do senado e, em seguida, questor.Contudo, por que Sêneca estava cada vez mais conquistando o espaço políti-co em Roma, o imperador Calígula sentiu-se ameaçado e planejou assassina-lo. No entanto, foi persuadido a não o fazer, pois o Filósofo estava com asaúde debilitada, era – pensou Calígula – questão de pouco tempo para teruma morte natural.

Calígula, entretanto, morreu bem antes de Sêneca, o que possibilitou aeste certa tranqüilidade, mas não por muito tempo. Em 41 d.C. o filósofo foiacusado por Messalina, primeira esposa de Cláudio César Germânico, e conde-nado pelo suposto crime de adultério com Júlia Lívia, sobrinha do imperador. Acondenação foi o exílio na ilha de Córsega, onde passou cerca de dez anos.Sua mãe ficou ciente do infortúnio do filho e sofria muito com isso. Nessecontexto, Sêneca escreveu-lhe uma carta com o intuito de demonstrar, atra-vés da Filosofia, que não havia razão para que ela sofresse com o seu exílio:

Conquanto folheasse todas as obras compostas pelos maisilustres gênios para acalmar ou pelo menos aliviar as dores,não encontrava exemplo algum de alguém que tivesse conso-lado seus queridos enquanto ele mesmo era por eles lastima-do. De modo que a novidade do empreendimento me faziahesitar e temer que essa não fosse uma consolação, masuma excitação à dor (SÊNECA: 1988, p.183)

Um motivo excitava Sêneca a escrever à sua mãe: ter um pouco mais dealívio em seu próprio sofrimento, caso conseguisse diminuir um pouco osofrimento de sua mãe. Segundo diz: “pondo a mão sobre minha chaga, eralevado a querer curar tuas feridas” (SÊNECA: 1988, p.183). Mas isso poderiaser comparado a um remédio inoportuno, no qual, ao invés de minimizar ador, poderia exacerbá-la. Nesse caso, como um médico poderá curar o seupaciente sem possuir ele mesmo a saúde? A saúde da alma para quem vaicurar é a clareza, o discernimento e a agudeza de espírito que são fundamen-tais para que se possa consolar alguém, e isto somente é possível em umaalma forte, que possua, como afirma Sêneca em a Vida Feliz: “uma razãosegura de si mesma sem dissensões nem hesitações, quer em suas opiniões e

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conhecimentos, quer nos seus argumentos” (SÊNECA: 2001, p.22). Comohaver uma cura se o consolado tomar o consolador por pessoa infortunada?Assim, após verificar que ele mesmo não estava passando por algumaatribulação, Sêneca começou a consolação à sua mãe, a qual, como afirmaCorbisier, (1984, p.341) foi quem lhe havia ensinado a praticar a virtude:

E, para não afrontar logo [a dor de sua mãe], dela me aproxi-marei antes, e dentro porei tudo o que pode inflamá-la; obser-varei e reabrirei outra vez todas as chagas já cicatrizadas.(SÊNECA: 1988, p. 183)

Caso alguém nos perguntasse qual a melhor maneira de se consolar umapessoa, seria visto como normal que respondêssemos esta: usar palavrascarinhosas, ouvir e compreender o problema, oferecer o famoso “ombro ami-go”. Mas Sêneca não usa este método casual. Com o intuito de ser maisforte do que o sofrimento de sua genitora, tudo o que puder ser dito paraexaltar a dor de sua mãe irá ser usado, causando com isso a reabertura detodos os sofrimentos já cicatrizados. Mas como pode haver cura exacerbandoas dores do paciente? Para compreendermos como isso se daria, façamosuma analogia do caso em questão com a aplicação hodierna de vacinas. Estassão amostras enfraquecidas do vírus das próprias doenças que pretendemcurar e, ao serem aplicadas aos corpos, produzem anticorpos, sem o risco decontaminar as pessoas vacinadas. Sêneca, de forma semelhante, irá expor àsua mãe todas as desventuras passadas por ela ao longo de sua vida (aslembranças ruins são formas mais brandas de sofrer). Ele não quer aplicarremédios que curam apenas os sintomas, mas aplicar a própria vacina tiradados próprios sofrimentos. De que forma? Fazendo com que ela se sinta enver-gonhada, pois como uma pessoa que passou por tantas atribulações, como aperda da mãe ao nascer, ser criada por uma madrasta, perder um querido tio eo marido dentro de um mesmo mês, enterrar os três netos e, vinte dias de-pois, ver o exílio de Sêneca, como uma pessoa assim não pode resistir a maisum golpe da fortuna? Alguém que passou por tantos males precisa ser forte,pois quem passa por tantos males deve ter-se habituado ao sofrimento:

As pessoas que passaram toda a vida na desgraça devemsuportar com forte e imutável constância mesmo as doresmais graves. A perpétua infelicidade só tem isto de bom:endurece por fim os que incansavelmente persegue. (SÊNECA:1988, p. 183)

Após a abertura de todas essas feridas do passado, Sêneca usará o méto-do filosófico por excelência: a demonstração.

Sêneca tentará persuadir sua mãe de que não está sofrendo por uma razãoa qual se possa chamá-los de infortunados. A sorte de ambos não pode ser

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considerada infeliz, pois as coisas que ela pensa que fazem sofrer o filho sãotoleráveis para ele. Ao contrário, a situação em que se encontra o deixa feliz,pois, em sua opinião, o exílio não é um infortúnio.

Sêneca começa a desenvolver seus argumentos afirmando que a naturezanos formou com poucas necessidades para sobreviver. Sendo assim, cadaum, por si só, pode tornar-se feliz. A felicidade depende de nós mesmos enão das coisas exteriores – estas não têm poder nenhum sobre o sábio, nemo abatem, nem o orgulham. No entanto, ele não se considera um sábio, pois,se assim o fosse, seria quase um deus, como afirma no Da vida Feliz:

Não sou um sábio, e para aumentar a tua malevolência, digoque não os serei. Deves, portanto, exigir de mim não que eume iguale aos melhores, mas que seja superior aos maus:basta-me isto, subtrair cada dia algo dos meus vícios e abjuraros meus erros.” (SÊNECA: 2001, p. 46)

Sêneca afirma que nunca se deixou ao encargo da sorte. Todas as riquezas, oscargos e os prestígios conseguidos em Roma não faziam com que ele fosseapegado, a tal ponto, de sofrer com a falta deles. Para ele, a sorte ruim apenasdeixa tristes e descontrolados aqueles que se deixam iludir pelas riquezas. Oapego às coisas materiais deixa o homem a mercê da fortuna, mas o sábioconhece que tais coisas não são bens verdadeiros, pois não nos pertencem defato: é ilusão pensar que são nossas as coisas que dependem de outras pessoas.Um exemplo disso está nas Cartas a Lucílio. Aí, Sêneca relata o feito que seatribui a Stilbo. Este teve a pátria tomada, perdeu os filhos e a esposa e, apóssair de um incêndio em um prédio público, foi interrogado por Demétrio, apelida-do de Poliorcetes por sua competência em destruir cidades, se tinha perdidoalguma coisa, e a resposta foi: “Nada – diz Stilbo – perdi (...) todos os meusbens estão comigo.” (SÊNECA: 1991, IX) O exílio, dessa forma, é pensado ruimpelos muitos, mas o sábio, na maioria das vezes, não segue as opiniões do povo.

Viver longe da pátria é intolerável. Olha, pois, para a multidão, à qual nãosão suficientes as casas da imensa Roma: a maior parte dela está longe desua pátria. Afluem de seus municípios, de suas colônias, de toda a terra (...)nenhuma raça de homens falta na cidade. (SÊNECA: 1988, p.185)

Boa parte de Roma era formada por estrangeiros, pessoas que a procura-vam pelos mais diversos motivos. Como afirma o filósofo, Roma é uma cida-de “cosmopolita” (SÊNECA: 1988, p.185) e mais, supondo que fosse feitoum senso na cidade, descobrir-se-ia que grande parte dos cidadãos era oriun-da de outras terras. Em outras cidades a situação era a mesma, eram locaisformados, em grande parte, por pessoas estrangeiras. Caso alguém desejasseuma cidade com menos atrativos do que Roma, o exílio não seria um prêmio?Além do mais, a mudança de lugar é natural. As estrelas, as nuvens, o sol, ouniverso inteiro está a se mover; e o homem, formado pela mesma substanciado universo, também possui essa essência divina e tende ao movimento:

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Continuas, agora, a pensar que a alma humana, formada pe-las mesmas partículas das quais são constituídos os astros,sofre em viajar e em migrar, quando o próprio deus simpatizaou talvez vive justamente pelo seu eterno velocíssimo movi-mento? (SÊNECA: 1988, p.185)

E, além disso, em qualquer lugar que estivermos, duas coisas estarão sem-pre conosco: a virtude de cada um e a natureza que é comum a todos, istoninguém nos pode tirar: o céu e a nossa alma que o contempla.

Assim, após todas essas demonstrações de que o exílio não é algo em simesmo ruim, Sêneca prescreve um remédio à sua mãe: a Filosofia.

Por isso te incito a procurar refúgio onde todos os que procu-ram conforto para suas mágoas deviam refugiar-se: nos estu-dos liberais. Eles saberão sarar a tua ferida, arrancando de titoda queixa (...) Ela te consolará; te deleitará; se entrar emtua alma, acolhida com sincera fé, nela não entrará mais dor,nem as preocupações, nem o inútil tormento de uma vã afli-ção. (SÊNECA: 1988, p.192)

Após as demonstrações de Sêneca de que a dor sentida por sua mãe nãopode ser considerada racional, analisaremos a obra Da tranquilidade da alma,

de modo a tratar de um outro tormento, também do espírito, sofrido por seuamigo Sereno:

A disposição na qual eu me surpreendo mais freqüentemente(pois, por que não me confessarei a ti, como a um médico?) éde não estar nem francamente liberto de minhas crenças erepugnâncias de outrora nem novamente sob seu domínio.Se o estado no qual estou não é pior que possa existir, é, emtodo caso, o mais lamentável e o mais bizarro: não estoudoente nem são. (SÊNECA: 1988, p.197)

Aneu Sereno encontra-se em situação paradoxal: não consegue deliberar arespeito da virtude e do vício e não consegue entender esse estado de espíri-to. Assim, irá escrever uma carta a Sêneca relatando o que sente e obter umaresposta do Filósofo a qual indicará a doença e a cura para tal sentimento.

Mas em que consiste esse paradoxo de sentimentos? Sereno começa aexplicar que é uma pessoa que possui costumes simples: tem um servo comtrajes comuns; gosta da baixela rústica de seu pai, homem também rústico;tem uma mesa simples que não causa espanto nem ciúmes a quem nelaesteja; é um homem que não se deixa atrair por iguarias. Apesar disso, quan-do pensa estar acostumado a esse modo frugal de viver, ao visitar a casa deum homem rico deixa-se fascinar pela pompa de um escravo bem vestido;

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pela beleza das baixelas; pela mesa farta e por todos conhecida e que deleitaos olhos dos convivas. Como diz o próprio Sereno: “Posso dizer que o luxo,ao sair de uma longa e ingrata temperança, me envolve de repente com seubrilho e me rodeia com seu tumulto, e sinto meus olhos vacilarem.” (SÊNECA:1988, p.198).

Mas a confusão de sentimentos continua em outras instancias de suavida. Em um momento decide participar dos negócios públicos com o intuitode auxiliar os amigos e todas as pessoas da cidade em razão de um sentimen-to de querer ajudar a toda a humanidade; em outro, ao sofrer uma humilhaçãoou uma contrariedade, recolhe-se em seu lar; Em certa hora afirma que nãodevemos priorizar a forma da expressão de uma idéia, mas sim a própria idéia;em outra, importa-se mais com o estilo literário, em detrimento do pensamen-to. Assim, pede Sereno a Sêneca que encontre um remédio para a sua almaindecisa, pois, apesar disso não acarretar intranqüilidade profunda, tal estadoo incomoda: “Assim, pois, eu te suplico, se conheces um remédio capaz dedeter as indecisões que me agitam, não me julgues indigno de te dever atranqüilidade.” (SÊNECA: 1988, p.199).

Ora, o que Sereno procura, a tranqüilidade da alma, para Sêneca é algonobre, chegando quase a ser divina. Antes, porém, de atingir esse objeti-vo, i.e. procurar saber como a alma pode manter-se firme em seu caminhosem se afastar de sua calma, ter-se-á de descobri qual o mal que assola oamigo.

Partindo de casos diversos de doentes que possuem humores inconstan-tes, como os que amam apenas o que abandonam, os que são passivos e sematitude, os que amiúde mudam de plano, tem-se como resultado um únicotipo de doença: o descontentamento de si, que “é uma inconstância, umaagitação perpétua, inevitável, que nasce dos caracteres irresolutos.” (SÊNECA:1988, p.199). Essas pessoas possuem uma alma sem objetivos fixos, estãosempre presas às paixões, mas arrependem-se de suas atitudes más e temempraticá-las novamente; recolhem-se ao ócio e aos estudos, mas logo se an-gustiam e, para se curarem desse incomodo, procuram viajar para os maisvariados lugares e se esquecem de que para todo e qualquer lugar aondecheguem estarão sempre com eles mesmos.

Definido ser esse o “mal”, isto é, a doença de Sereno, Sêneca reflete:“Queres saber o que aconselho contra esta melancolia? O melhor seria, naopinião de Atenodoro, obrigar-se à atividade, tomando parte nos negóciospúblicos.” (SÊNECA: 1988, p.200).

Afirma Sêneca que, segundo Atenodoro, a vida social é um modo de tor-nar-se útil à cidade e consequentemente aos seus concidadãos. O exercitarda alma, semelhante aos exercícios físicos praticados pelos atletas, em prolda vida civil, impede a progressão da melancolia. Contudo, a vida pública,assim como eleva a alma humana, pode também desvirtuá-la; então, casofosse necessário abandonar a vida pública para manter a retidão da alma, épossível tornar-se útil na vida particular.

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Sêneca cita Atenodoro como exemplo de conduta que não está de acordocom a doutrina estóica, ou seja, que não deve ser praticada. Pois, afirma, sairda vida pública rapidamente apenas para se proteger das corrupções e dodesvirtuamento da alma é praticar uma ação covarde. Recuar diante de umaderrota é comum, mas antes devemos lutar com todas as armas que possuí-mos e, caso não consigamos vencer, devemos procurar outros meios de nostornarmos úteis à cidade:

A carreira militar lhe é proibida? Que ele pretenda as magis-traturas: está reduzido à vida particular? Que advogue. O si-lêncio lhe é imposto? Que ele dê aos seus concidadãos oapoio mudo de sua presença. Mesmo o acesso ao fórum lhe éperigoso? Que nas residências particulares, nos espetáculos,à mesa, ele se mostre companheiro honesto, amigo fiel, con-viva moderado. Ele não pode cumprir com seus deveres decidadão? Restam-lhe os deveres de homem. (...) Daí o princí-pio do qual nós estóicos estamos orgulhosos: o de não nosencerrarmos nas muralhas de uma cidade só, mas de entrar-mos em contato com o mundo inteiro e de professarmos quenossa pátria é o universo, a fim de oferecer a virtude o maisamplo campo de ação. (SÊNECA: 1988, p.202).

Remediado a parte que se refere ao exercício da vida pública, Sêneca de-monstra por qual motivo Sereno não se deve afetar pela riqueza.

Além de todos os males oriundos da riqueza serem mais pesados e severosdo que outros, não possuir dinheiro é mais tolerável do que perdê-lo; seriaengano pensarmos que as pessoas de posse suportariam a pobreza de modomelhor que os pobres: “Bíon disse com fineza: ‘Não é porque se tem maiscabelos sobre a cabeça que é menos desagradável sentir arrancá-los’.”(SÊNECA: 1988, p.204). Os sofrimentos, tanto dos afortunados quanto dospobres, são um só.

Imagem maior da vantagem de ser desapegado às seduções do luxo, Sênecadá-nos com o filósofo da escola Cínica, Diógenes, o cão. Segundo diz, acompreensão do filósofo cínico sobre os perigos da riqueza fez com que eletivesse o cuidado de nada possuir, pois desse modo nada podia ser tirado.Nisso consiste a felicidade: não ter nada que possa ser perdido. Quem colo-car a felicidade de Diógenes em questionamento, estará afirmando serem osdeuses infelizes, pois estes não necessitam de bens materiais. Diógenes La-ércio (LAÉRCIO: 1988, p.161-162), ao falar sobre uma das mais conhecidasações do filósofo cínico, nos conta que Diógenes estava tomando banho desol quando chegou Alexandre, o grande, e perguntou ao cão: “Pede-me o quequiseres”. E o cão responde: “deixa-me o meu sol!” Nada do que o rei poderiaoferecer de bens materiais serviria para Diógenes, pois o que este precisavade fato, aquele não poderia dar.

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Outro exemplo nos é dado por Xenofonte nas Memoráveis (XENOFONTE:1999, p.111): o sofista Antífon zomba de Sócrates afirmando que em razãode seu manto pobre, sua alimentação grosseira e sua bebida ordinária, Sócratesé, na verdade, um mestre de miséria. Ao que Sócrates responde que o alimen-tar-se com apetite torna o tempero dispensável e, quando se bebe com pra-zer, muito fácil é não levar em conta a falta de vinhos caros; quanto àsroupas, as pessoas as usam em razão de sentirem frio ou calor e, como elenão sofre com nada disso, por que ter um manto para cada ocasião? TantoDiógenes quanto Sócrates, podemos concluir, não foram escravos da riquezae do luxo e, desse modo, nada sofreram, porque nada tinham. Com essasdemonstrações Sêneca receita um remédio a Sereno: o exemplo de vida dossábios, isto é, a própria Filosofia.

Assim, pudemos notar que todas as atribulações passadas por sua mãe emdecorrência do seu exílio e por seu amigo Sereno pelo fato de ser um espíritoindeciso foram tratadas por Sêneca como doenças da alma. O tratamento,então, consistiu em demonstrar filosoficamente como nos devemos portardiante das dificuldades impostas por nós mesmos. Prescritas por um médicoda alma, as receitas, i.e. as cartas enviadas, possuem diversos termos ligadosà Medicina: remédio, cura, paciente, médico, o que nos leva a deduzir queestamos a tratar ser a filosofia, na concepção de Sêneca, uma medicina daalma que tem o intuito de curar àqueles que a procuram.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CORBISIER, Roland, Introdução à Filosofia: Tomo II- Parte primeira- Filosofiagrega, 2ª Edição, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984.JOYAU E. & RIBBECK G., Estudos introdutórios in SÊNECA, Consolação a

minha mãe Hélvia, Da tranqüilidade da alma, Trad. de Agostinho da Silva, SãoPaulo: Nova Cultural, 1998.LAÊRTIOS, Diógenes, Vida e obra dos filósofos ilustres, Trad. Mário da GamaKury, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1988.SÊNECA, Consolação a minha mãe Hélvia, Da tranqüilidade da alma, Trad. deAgostinho da Silva, São Paulo: Nova Cultural, 1998.______, Cartas a Lucílio, Trad. de José Antonio Segurado e Campos, Lisboa:Fundação Calouste, 1991.______, Da vida feliz, Trad. de João Carlos Cabral Mendonça, São Paulo:Martins Fontes, 2001.XENOFONTE, Ditos e feitos memoráveis de Sócrates, Trad. de Mirtes Coscodai,São Paulo: Nova Cultural, 1999.