joaquim quintino aires a arte de dizer nÃo · uma mesma articulação serve para vários obje-tos...

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Joaquim Quintino Aires A ARTE DE DIZER NÃO

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Joaquim Quintino Aires

A ARTE DE DIZER NÃO

CONTEÚDOS

INTRODUÇÃO 7

> 1 :: A HISTÓRIA PSICOLÓGICA DO NÃO 15

> 2 :: OS PAIS DIZEM NÃO 39

> 3 :: OS AMIGOS DIZEM NÃO 61

> 4 :: NO NAMORO E NO CASAMENTO DIZEMOS NÃO 81

> 5 :: NO TRABALHO DIZEMOS NÃO 109

> 6 :: OS FILHOS DIZEM NÃO 131

> 7 :: NAS COMPRAS DIZEMOS NÃO 151

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INTRODUÇÃO

A palavra Não é a primeira a ser usada com sentido pela

criança. Depois das articulações Mam, Pá, Ão -Ão, e de

mais alguns sons que nos fascinam, por volta dos 18 meses

chega o Não. Mas, repetimos, é já usada com sentido.

Mas o que é isso de umas palavras terem sentido e outras

não?

No último domingo, eu e mais alguns elementos da

minha família passámos momentos muito agradáveis no

parque Marechal Carmona em Cascais, com as minhas

sobrinhas, gémeas, de 15 meses.

Numa das muitas brincadeiras, elas lá davam os seus

passinhos seguindo pombos e chamando -os de ão -ão, a

designação que também usam para os cães. Nada de estra-

nho para quem já acompanhou o crescimento de crianças

pequenas. Uma mesma articulação serve para vários obje-

tos ou seres, o que apenas significa que não têm ainda um

entendimento preciso sobre aquela palavra. Aquele som

articulado, ão -ão, substitui a ação de apontar com os

dedos e as mãos, com que antes sinalizavam para as outras

pessoas o que estava nas suas cabecinhas, mas é ainda

muito vago. Não tem um sentido exato.

A ARTE DE DIZER NÃO

8

Nas suas vidas, como aconteceu com cada um de nós, o

Não será a primeira palavra a ser articulada com sentido,

ou seja com a intenção de manifestar um único significa-

do concreto: responder negativamente, recusando uma

oferta ou um pedido.

A primeira palavra a ser articulada com sentido por qual-

quer humano começa nesse momento a tornar -se elemento

fundamental da sua personalidade. A afirmação negativa

é o instrumento usado para nos diferenciarmos de todos

os outros, permitindo assim edificar a personalidade.

Mas, curiosamente, e apesar de ser a primeira palavra

articulada com sentido em todas as culturas e nos mais

diversos idiomas, o seu uso nada tem de inato. Precisa de

ser aprendido, e nem sempre de uma forma fácil.

Num estudo realizado na minha clínica em 2013, dos

401 novos casos com idades entre os cinco e os 25 anos,

apenas oito por cento mostravam agilidade para usar a

palavra Não, e assim expressarem a sua personalidade a

outros humanos, sem levantar problemas no relaciona-

mento social.

Outros colegas, e muitos estudos publicados, alertam

para a necessidade do uso assertivo da palavra Não nas

sociedades modernas. Quanto maior é o desenvolvimen-

to social, e maior a liberdade interior de cada pessoa, mais

o Não se revela um instrumento absolutamente funda-

mental para a sobrevivência social.

Primeiro com os pais em casa, depois na escola com os

colegas e professores, mais tarde ainda com conhecidos,

INTRODUÇÃO

9

amigos, no namoro e no casamento, e sem esquecer o tra-

balho, a arte de dizer não é um bem necessário para

qualquer humano.

Nos consultórios de psicologia os profissionais percebe-

ram a importância de um trabalho de aprendizagem do

Não na vida de muitos dos seus clientes. Por isso, nas últi-

mas décadas desenvolveram -se diferentes técnicas que

ajudam a dominar essa importante mas difícil arte.

A minha intenção ao escrever este livro é oferecer -lhe a

possibilidade de, começando hoje mesmo, desenvolver

esta arte e, dizendo Não sem levantar problemas, conse-

guir que os outros percebam, e respeitem, as suas opiniões

e as suas escolhas para a sua vida, e desse modo desfrute

de um dia a dia bem mais agradável.

Começo por lhe apresentar a história psicológica do Não.

A seguir apresento vários contextos de relações nas quais

o Não é absolutamente fundamental – como na relação de

pais para filhos, entre amigos, no namoro e no casamento,

na relação de filhos para pais e até quando vai às compras.

Este é um livro para ler e pensar. Em cada parágrafo

tente recordar -se de uma história da sua vida. O livro não

foi escrito para lhe entregar uma lista de conselhos. Como

sabe, nunca os seguimos… A estrutura do livro foi pen-

sada antes para ajudar o leitor a refletir e a restruturar -se.

Por outras palavras, para o ajudar a tornar -se um mestre

na arte de dizer não.

E para que perceba até que ponto a questão do Não é fun-

damental, vou contar -lhe aqui algumas histórias ocorridas

A ARTE DE DIZER NÃO

10

com clientes meus. Leia -as com atenção e veja se reconhe-

ce nelas alguma coisa de si.

A Maria, de 33 anos, tinha uma grande dificuldade em

dizer não, facto que lhe tem criado grandes problemas e

sofrimento ao longo da vida. “Prefiro prejudicar -me do

que ter de lidar com isso”, confessa -me. “O pior é que mui-

tas pessoas já perceberam essa dificuldade e acabam por

abusar de mim. Eu sei que tenho de aprender a dizer não.

Eu sei a importância que isso pode vir a ter na minha vida.”

Logo quando começou o trabalho de desenvolvimento

pessoal, a Maria percebeu a importância de dizer não.

O problema era controlar a ansiedade que a bloqueava no

momento de o dizer. O treino de análise mais rápida das

situações e contextos, associado a um treino em verbalizar

em mo mentos de elevado stresse, permitiu à Maria uma

vida social absolutamente diferente a par de um aumento

muito significativo da sua autoestima.

Uma fisioterapeuta de 28 anos ficava horas à espera de

uma colega porque se achava na obrigação de lhe dar

boleia após o trabalho. Chegava a faltar a compromissos

pessoais para cumprir o ritual. Na sua vida amorosa, pre-

feria ceder a dizer não sempre que achava que o namora-

do iria ficar chateado. O mesmo acontecia nas relações de

INTRODUÇÃO

11

trabalho e com a família. Sou conhecida como boazinha,

atenciosa ou prestativa, dizia ela.

Mas apesar desta classificação social muito positiva, den-

tro dela a raiva aumentava e a autoestima diminuía. Hoje

é uma mulher muito mais feliz e relata com espanto que

até há mais gente que a admira pela sua personalidade.

Luís tinha 15 anos quando os pais o trouxeram à minha

consulta. A sua recusa em ouvir um Não dos pais era bem

diferente da comum oposição nos adolescentes. Na sua

história não havia a palavra Não e, quando foi mesmo

necessária, depois de três reprovações apenas porque não

gostava dos professores nem achava a matéria escolar inte-

ressante, quando, finalmente, a mãe não aguentou mais

ser insultada de “cabra” nem o pai de “ignorante”, quando

começaram a contrariar comportamentos muito desade-

quados, procuraram então a minha consulta. Várias sema-

nas de terapia, com o Luís e com os pais, fizeram aparecer

um novo rapaz. Aprendeu a reconhecer a autoridade dos

pais, que já lhe sabem dizer não, a sua autoestima aumen-

tou significativamente, é mais social e com um excelente

envolvimento escolar.

Carla, uma mulher de 40 anos foi fazer o teste do HIV

porque o marido dela, que também já tinha feito o teste,

contara -lhe que a amante tinha tido análises com resul-

A ARTE DE DIZER NÃO

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tado positivo… E as dele também eram positivas. Carla

sabia que o marido mantinha esta relação extraconjugal

há anos, mas sempre que ele queria fazer sexo com ela, ela

aceitava e nunca se protegeu na relação sexual. Confron-

tada com esse facto na consulta disse apenas: “É que de

cada vez que ele se chegava a mim eu pensava que era

porque me tinha voltado a amar… Então eu não podia dizer -lhe que não, porque se casámos é para toda a vida, tenho de aguentar.”

Carlos, consultor numa multinacional, casado, numa

viagem de negócios à Tailândia e após ter consumido

bastante álcool, revelou aos colegas que alimentava fan-

tasias sexuais com prostitutas. Os colegas, sem que ele

se apercebesse, juntaram -se e pagaram entre todos os

serviços de uma profissional que já se encontrava semi-

nua no seu quarto quando ele chegou para descansar.

Confrontado com a situação pensou que não queria e

achou que os colegas se tinham precipitado. Mas cedeu.

“Se lhe dissesse que não, os meus colegas iriam saber…

talvez surgissem rumores de me ter negado a fazer sexo

com uma mulher.”

Rogério, empregado bancário, tem 25 anos. Queixa -se de

dificuldades financeiras e de como gasta o pouco que ganha

em bares com amigos. “É que se eu não bebo chamam -me

INTRODUÇÃO

13

maricas e eu não gosto. Eles oferecem -me bebidas e eu

não consigo dizer que não… E depois tenho de retribuir

e fico sem dinheiro.”

Num anúncio na Internet oferecia -se a pintura de unhas.

Tratava -se de um centro de formação e quem quisesse usu-

fruir desse serviço grátis estaria a ajudar as formandas nas

suas horas de formação prática. Apenas se informava que

o trabalho das alunas poderia durar de três a oito horas e

que as cores usadas seriam as indicadas no curso. No dia

marcado uma cliente, mal se sentou na cadeira e vendo o

frasco verde-florescente que a formadora deu à aluna, ficou

assustada e disse para a aluna: “Não me vai pôr isso nas

minhas unhas, pois não?” Ao que a aluna respondeu: “A

senhora foi avisada e aceitou. Eu apenas sigo as ordens da

minha formadora. Se quiser, vá falar com ela.” A senhora

explicou então à formadora que não podia ir para o tra-

balho com as unhas daquela cor e quando foi avisada das

condições não imaginou aquilo, tendo imaginado cores

diferentes, mas não tão estranhas. A formadora foi cate-

górica. Disse -lhe que ela tinha aceitado as condições e que

deveria voltar para o seu lugar para a aplicação do verniz,

o que a senhora cumpriu e passou toda a aplicação das

unhas de gel, em cor verde-florescente, a chorar.

A ARTE DE DIZER NÃO

14

Estas são histórias da vida de pessoas normais. Depois

do nosso espanto, e em alguns casos até do nosso riso,

perguntamo -nos porque não dizem estas pessoas, nestas

situações: Não, não quero!

1.A HISTÓRIA PSICOLÓGICA

DO NÃO

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Nove em cada dez dos meus clientes1 têm alguma dificul-

dade em dizer não. Raramente esta é a causa explícita que

justificou a consulta. A maioria dos meus clientes não chega

ao meu consultório e diz: “Não consigo dizer não.” Mas

quando começamos a conversar e a estudar as suas vidas,

e o que justificou aquela consulta, rapidamente percebe-

mos que a dificuldade em dizer não está na origem, ou

pelo menos é um importante fator, da procura de uma

ajuda especializada.

Os contextos em que cada pessoa não consegue dizer

não variam bastante. Desde a dificuldade em terminar

um namoro ou casamento, apesar de assumidamente esse

relacionamento já não trazer qualquer gratificação ou cres-

cimento ao casal; não dizer um ao outro o que pensam e

do que não gostam, por medo de que o outro se zangue

ou se vá embora; a mulher ou o homem que tem dificul-

1 Causa por vezes alguma estranheza a utilização do termo “cliente” para referir quem procura os serviços de um profissional de Psicologia. Este termo não apareceu ao acaso, mas depois de bastante discussão sobre o uso do termo “paciente” que se usava antigamente. Nos novos modelos de trabalho psicológico a pessoa que procura o psicólogo não é um ator passivo no processo, nem o psicólogo é o todo poderoso que tudo sabe e que tudo faz no processo psicoterapêutico. Pelo contrário, ambos cola-boram no processo de mudança. E como este é um serviço prestado e convertido num valor em dinhei-ro é comum usar o termo cliente para nos referirmos a quem procura o trabalho de um psicólogo.

A ARTE DE DIZER NÃO

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dade em dizer ao companheiro ou à companheira que não

lhe apetece fazer sexo naquele dia; o pai ou a mãe incapa-

zes de dizer não a um filho pré -adolescente que insiste em

dormir com um deles, separando assim os pais à noite

para que um durma com ele; o pai ou a mãe que permite

que o filho esteja horas a jogar videojogos porque “se eu

lhe disser alguma coisa ele fica muito revoltado”; a falta

de energia para dizer Não ao consumo de drogas por parte

de um filho que, adolescente ou já adulto, ainda vive em

casa dos pais; o casal que não consegue dizer aos pais dele

ou dela que estão cansados dos almoços em família todos

os fins de semana e continuam todas as semanas a sentir

a mesma irritação; o aluno que está sistematicamente a

emprestar os apontamentos aos colegas, sem ser capaz de

lhes dizer Não; os filhos que não dizem que Não a pais

demasiado intrusivos que procuram saber a todo o custo

sobre a vida dos filhos mesmo que estes já sejam comple-

tamente autónomos, casados e estejam a viver nas suas

próprias casas; o trabalhador que não diz Não ao patrão

quando este o manda fazer tarefas que nada têm a ver com

o seu contrato; etc., etc., etc.

O que observo é que um elemento absolutamente fun-

damental na comunicação (e portanto na relação entre as

pessoas) – a palavra NÃO – está demasiado ausente na lin-

guagem. E devido a essa falta, muita gente sofre e é infeliz.

Na psicologia, ou pelo menos na perspetiva em que a

trabalho, entende -se que a atividade da mente é mediada

pela linguagem. Quer dizer, a origem da atividade cons-

1. A HISTÓRIA PSICOLÓGICA DO NÃO

19

ciente e a sua manutenção com padrões de boa adaptação

e equilíbrio acontece através da linguagem, numa partilha

mútua e comprometida com outros seres humanos.

Através da fala, podemos comunicar de uma forma mais

eficiente. Partilhamos ideias, o que permite que conheçamos

o pensamento do outro, mas também que esse pensamen-

to, atitudes e opiniões possam ser discutidos e eventual-

mente gerar novos consensos.

Porque falam os humanos?

A pergunta parece não precisar de resposta, mas não é

assim tão simples como isso. E olharmos para a resposta

é certamente um modo útil de começarmos este livro,

pois acredito que vai alertar o leitor para algumas verda-

des nas quais talvez nunca tenha pensado.

Falar é muito mais do que dizer coisas. Ao falar, os huma-

nos trocam e partilham ideias. Mas também se afirmam

perante os outros, expressam a sua personalidade, e podem

mesmo alterar os comportamentos de terceiros com quem

se cruzam e relacionam. E porque ao falar também refletem,

e desta forma conhecem -se a si mesmos, podem equacio-

nar e até mesmo reformular a maneira como querem agir.

Naturalmente, através desse processo, conhecem o mundo

de uma forma muito mais esclarecida. Portanto, comu-

nicam e pensam, e inventam um outro mundo onde pode-

A ARTE DE DIZER NÃO

20

rão viver de uma forma diferente, tendencialmente uma

forma melhor.

Nenhuma outra espécie animal conseguiu um desen-

volvimento tão grande. E estou convencido, juntamente

com muitos outros cientistas, que grande parte desse desen-

volvimento se deve exatamente ao aparecimento da fala.

Sabemos hoje, já com bastante certeza, que a origem da

fala não tem nada de genético. Naturalmente que a fala

emerge e acontece no corpo humano, e que este precisa

do genoma humano para se formar. Mas o genoma huma-

no não tem informação para a fala.

Desde 2001 que muito se escreveu sobre o foxp2, que se

pensou poder ser o gene para a linguagem. Mas poucos

anos depois da descoberta desta sequência no braço longo

do cromossoma 7, também se descobriu que não era um

gene de expressão, mas um fator de transcrição impor-

tante para o gene cntnap2, também este no cromossoma

7 um pouco mais à frente. O gene cntnap2 é importante

para a aprendizagem de sequências motoras com grande

exigência de precisão e harmonia, como acontece no caso

da fala; mas como acontece também com o canto das aves

canoras ou os movimentos de outras espécies como os

peixe -zebra.

A fala, para se estruturar no cérebro de cada humano,

necessita da interação entre seres humanos falantes. Essa

interação é fortemente motivada por um profundo dese-

jo de comunicar, de ser entendido, e de que a mensagem

que contém a sua intenção seja confirmada pela resposta

1. A HISTÓRIA PSICOLÓGICA DO NÃO

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contingente de um outro humano. Podemos dizer que

esta relação está na origem da mente, e portanto do pro-

cesso que transforma cada humano em pessoa. Para mui-

tos, eu incluído, é mesmo a origem da Pessoa humana.

Da mesma forma que o genoma humano é a nossa ori-

gem como humanos – membros de uma espécie a que os

cientistas chamaram Homo sapiens –, a fala é a nossa ori-

gem como pessoas, uma vez que é por ela que se constrói

a nossa personalidade, que nos conhecemos, e que come-

çamos a agir como seres únicos, diferentes de todos os

outros. Com uma personalidade própria.

A construção da personalidade pela fala é possível graças

a duas das suas características. A fala medeia a relação

entre humanos – o sistema pragmático – e reformula o

processo de pensamento – o sistema semântico. Tentando

ser um pouco mais específico, não em exagero, mas apenas

o necessário para que possa acompanhar o que lhe tento

agora explicar, podemos olhar para a fala como estando

organizada em vários níveis ou sistemas:

> pragmático, que organiza a relação entre as pessoas;> fonológico, sons com significado dentro das

palavras;> morfológico, a forma como as palavras se modificam

para originar diferentes significados;> sintático, a organização das palavras na frase;> semântico, com acesso ao pensamento.

A ARTE DE DIZER NÃO

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Todos estes níveis se originam e desenvolvem na relação

entre seres humanos. O pragmático é uma evolução dos

esquemas naturais, biológicos, de comunicação entre huma-

nos. O semântico forma um reflexo do mundo, e será a

base da personalidade da pessoa.

Os três centrais – fonológico, morfológico e sintático –

são sistemas específicos da linguagem. Formam -se para

servir os outros dois. O modo de os servirem consiste numa

reformulação, desde uma forma primitiva e natural, de

comunicação e de pensamento, para níveis mais elevados

a que chamamos cognitivos ou mentais.

Só com este pequeno texto acredito que já lhe consegui

transmitir que a linguagem tem um papel fundamental

na vida de todos nós e dá um contributo único para o

nosso bem -estar psicológico. De entre todas as palavras

que um humano pode usar, a palavra Não tem um papel

único na comunicação.

Se está a ler este livro, certamente já passou bastante

tempo desde a sua infância. Idealmente o Não já entrou

na sua vida e já é capaz de o usar sempre que necessário.

Ou talvez ainda não.

O desenvolvimento psicológico nem sempre se relaciona

com a idade no cartão de cidadão, e muitos processos psico-

lógicos, típicos da infância, acompanham as nossas vidas

na adolescência, na idade de jovens adultos e até mesmo

na adultez tardia. Ou seja, o desenvolvimento psicológico

não acontece apenas porque o tempo passa. É preciso que

determinados processos de interação aconteçam de deter-

1. A HISTÓRIA PSICOLÓGICA DO NÃO

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minada forma. Quando não acontecem, o desenvolvimen-

to psicológico fica à espera de uma nova oportunidade.

A palavra mágica aqui é exatamente “uma nova opor-

tunidade”. Tudo o que é psicológico pode sempre ser trans-

formado em qualquer idade. Por isso mesmo, e também

para si que já está na idade adulta, se muitas vezes lhe custa

dizer o Não, este capítulo pode ser -lhe de grande utilidade.

Perceber como alguma coisa surge e se desenvolve é sem-

pre um excelente contributo se realmente pretendemos

adquirir, transformar e integrar esse caminho para o desen-

volvimento da nossa personalidade. Por tudo isto, a minha

sugestão é que não salte a leitura deste capítulo. Ele vai

ser -lhe útil para mais rapidamente entender os outros.

Porque precisamos do Não e qual a importância dessa palavra para o desenvolvimento?

É opinião generalizada na sociedade que um bebé ou uma

criança pequena que faz muitas birras “tem muita perso-

nalidade”. Aliás é esta a forma como a maioria dos pais

se refere aos filhos difíceis: “Ele tem muita personalidade!”

Nada mais errado! Um bebé, ou uma criança pequena,

que faz muitas birras revela ainda acentuada incapacida-

de de interação; e porque na medida em que ainda está

muito imaturo nas suas competências comunicativas, pre-

cisa de gritar e de usar a força para se afirmar. A arte da

relação humana deve ser fluida, confortável, e sem grande

A ARTE DE DIZER NÃO

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desgaste nem desconforto, quer para quem se afirma quer

para quem atende, compreende e respeita.

O tempo dos choros e das birras é um tempo do animal

biológico que é cada humano ao nascer. Confuso e con-

fundido no novelo muito baralhado dos contactos huma-

nos, o bebé e a criança pequena não sabem bem o que

querem e o que não querem, do que gostam e do que não

gostam, e por isso não têm ainda uma meta nem uma

direção para a qual devam dirigir os seus comportamen-

tos de apelo e de exigência. Por isso mesmo, muitas vezes

parece que a sua vontade aponta numa direção e num sen-

tido, e depois rapidamente muda. Não têm essa meta por-

que ainda nem se conhecem a si próprios como pessoas.

E não se poderiam conhecer, porque na verdade ainda

nem existem como pessoas, apenas como humanos que

mais tarde se tornarão pessoas.

O bebé e a criança pequena apenas sentem conforto ou

desconforto. Quando predomina o desconforto, utilizam

a força para produzir alguma alteração no ambiente que

os rodeia, mas muitas vezes sem saberem orientar essa

aplicação da força numa direção específica. Nem o pode-

riam fazer, porque desconhecem a direção a tomar para

reduzir o desconforto.

Gritos, birras, zangas, tudo serve para forçar a mudan-

ça. E muito do insucesso na conquista desse objetivo resul-

ta da ausência de uma representação interna, uma ideia

formada acerca da mudança adequada no ambiente que