joão zanetic - física também é cultura

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FISICA TAMBM CULTURA

Joo Zanetic Tese de Doutoramento, FEUSP, 1989 (Cpia integral reduzida. Os nmeros das pginas no correspondem ao original.) ndice Apresentao....................................................................................................................2 guisa de prefcio...........................................................................................................6 Notas e referncias...............................................................................................12 Captulo 1 - Introduo..................................................................................................14 Notas e referncias..............................................................................................20 Captulo 2 Pressupostos Educacionais........................................................................22 Notas e referncias..............................................................................................37 Capitulo 3 Pressupostos filosficos e o ensino de fsica...............................................41 Notas e referncias...............................................................................................61 Capitulo 4 Histria da cincia e o ensino de fsica......................................................68 Notas e referncias...............................................................................................85 Capitulo 5 Fsica, sociedade e cultura.........................................................................93 Notas e referncias.............................................................................................105 Capitulo 6 A fsica escolar..........................................................................................110 Notas e referncias.............................................................................................121 guisa de concluso.....................................................................................................126 Notas e referncias............................................................................................129

Apndice 1 Instrumentao para o Ensino de Fsica...............................................131 Notas e referncias............................................................................................147 Apndice 2 Evoluo dos Conceitos de Fsica..........................................................149 Apndice 3 O nascimento da mecnica....................................................................

Apresentao

I

A preocupao central deste trabalho relaciona-se com o ensino/aprendizagem de fsica, tanto a nvel universitrio, quanto a nvel do segundo grau, tendo a formao dos professores nos cursos de licenciatura como alvo preferencial. Alm dos universitrios que estudam a fsica profissionalmente, milhes de adolescentes que freqentam o segundo grau tm na fsica uma de suas disciplinas obrigatrias. A confirmar-se a tendncia de caminharmos para uma democracia mais participativa, muitos outros milhes devero chegar a esse nvel escolar nos prximos anos. Desta forma, preocupar-se com o segundo grau, com o primeiro grau, e mesmo com a pr - escola, deve ser uma das dimenses que o trabalho acadmico deve possuir para justificar sua presena social. Que instituio est mais bem preparada para abordar o contedo do ensino/aprendizagem, a ser oferecido por essas escolas, do que aquela que tem por atividade central a reflexo, a produo e a divulgao das vrias reas do saber ? A universidade tem que estar comprometida com a transformao urgente da escola pblica. Este trabalho pretende oferecer uma contribuio que permita a reflexo sobre o contedo de fsica processado por nossas escolas. necessrio fazer com que a escola pblica de segundo grau, bem como nossos cursos universitrios que lidam com a formao dos respectivos professores, atravs das licenciaturas, processe um conhecimento vivo, instrumento de compreenso e transformao da realidade social, econmica e cultural. Focalizo minha ateno no papel educacional da escola pblica, preocupado com a formao cultural da maioria da populao (maioria que inclui, por exemplo os trabalhadores que freqentam a escola noturna). O panorama que predomina na seleo de cultura que define o contedo escolar do segundo grau, com raras excees, atende perspectiva de preparar o adolescente para enfrentar a barreira do exame vestibular, condicional para a formao profissional a ser iniciada em algum curso superior. Esta premissa no se aplica em benefcio da maioria da populao escolar. Em quaisquer circunstncias, apenas uma pequena frao dessa populao alcana cursos efetivamente superiores que no incluem as arapucas auto denominadas superiores que proliferaram neste pas nos ltimos vinte anos. Rejeito a pseudo-funcionalidade da escola que organiza seus contedos e procedimentos educacionais a partir da perspectiva do vestibular, da a razo de considerar que o que vai exposto neste trabalho tambm deve ser dirigido para os que pretendem e conseguem chegar universidade. No proponho, de forma alguma, dois tipos de escola de segundo grau, mas insisto que escola pblica que o educador deve voltar sua preocupao e seu trabalho,

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especialmente no que toca ao ensino mdio, pois nela que mais gravemente se concentram problemas de toda ordem e ela que lida com aquela importante (mas ainda pequena) parcela de jovens brasileiros que, a despeito de suas desvantagens econmicas e culturais terminaram, nas condies que se conhece, o primeiro grau, e buscam uma continuidade necessria em sua formao geral. O trabalho que ser exposto a seguir, em ltima anlise, almeja modificaes no atual processo de ensino/aprendizagem de fsica no segundo grau e, para tanto, busca prever novos componentes para a formao do professor de fsica no curso de licenciatura. A situao do ensino em outras reas do saber, por exemplo nas chamadas cincias humanas, tem passado por questionamento anlogo, que j comea a se refletir inclusive em alguns livros didticos. A prpria discusso acerca do retorno do ensino de filosofia ao segundo grau, e o surgimento de textos didticos e para-didticos especialmente a ele destinados, reflete uma mudana salutar no discurso educacional recente em nosso pas. Mesmo na rea de cincias naturais e matemtica, comeam a surgir iniciativas visando maior abrangncia de contedo, para programas educacionais dos primeiro e segundo graus. A tnica majoritria, contudo, das pesquisas educacionais nesta rea, tem sido os aspectos pedaggicos e metodolgicos mais do que de reformulao dos contedos, no sentido que ser abordado neste trabalho. A importncia daquelas pesquisas inquestionvel, porm necessrio, a meu ver, re-adequar tambm a mensagem, no apenas o meio. Pretendo demonstrar a importncia da ampliao da mensagem no caso da fsica, mas faz-lo ancorado em premissas gerais. Os captulos 1 e 2 deste trabalho delineiam e exploram os pressupostos mais especificamente educacionais e pedaggicos; algo como a profisso de f deste trabalho.

II

Os elementos culturais que poderiam dar embasamento para a transformao que preconizo, a partir da formao dos professores, comparecem nos captulos 3 (pressupostos filosficos e o ensino de fsica), 4 (Histria da cincia e ensino de fsica) e 5 (Fsica, sociedade e cultura), temas cuja motivao abordarei brevemente nesta apresentao inicial. A filosofia das cincias naturais, que tem passado por um estimulante debate nas ltimas dcadas, est suficientemente madura para j constituir um efetivo ingrediente educacional das cincias, sobre as quais desenvolve o seu discurso, e a fsica, nesse contexto particularmente privilegiada, pois, alm de servir como objeto de estudo preferencial desses filsofos, a mais adequada a muitas das teorizaes devido sua prpria histria, to rica em mutaes fundamentais. O problema a ser resolvido ainda a forma mais satisfatria para sua introduo no segundo grau, seja como um dos temas explcitos do currculo ou como elemento que subsidie o tratamento de outros contedos especficos, comparecendo, assim, de maneira implcita no currculo. De qualquer forma, a presena do tratamento filosfico da fsica nos cursos de licenciatura a meu ver um ponto definitivo. Alis, tenho desenvolvido nas disciplinas que ministro na Universidade de So Paulo ("Instrumentao para o ensino de Fsica" e "Evoluo dos conceitos da fsica") uma experincia nesse sentido que ser exposta com mais detalhes num dos apndices deste trabalho.

Outra rea, que tem testemunhado um grande desenvolvimento tambm nas ltimas dcadas, a histria da cincia, em particular, a histria da fsica. No uma mera coincidncia que tanto a filosofia quanto a histria da cincia natural venham passando por este elevado nvel de desenvolvimento. Principalmente devido aos trabalhos de Koyr e Bachelard, numa vertente desse estudo, e Kuhn, noutra vertente, o estudo da filosofia da cincia est intimamente vinculado aos estudos histricos. Para a formao de profissionais cientficos como, por exemplo, os professores de fsica, ainda mais adequada uma mescla entre os dois campos de estudo. Alis, exatamente essa a experincia que estou procurando levar adiante nas disciplinas acima mencionadas, e isto tem sido to mais possvel tomando como referencial, para estabelecer a histria da cincia, aqueles estudos que se protegem da influncia positivista dominante at h bem pouco tempo. Vale a pena lembrar tambm que, na literatura especializada mais recente, h toda uma polmica sobre a utilizao da histria da cincia na formao dos profissionais de cincia (no s de professores). Estes tpicos sero alvos de anlise no captulo 4 deste trabalho. Finalmente, a interao da fsica com a organizao social e com a cultura outro aspecto essencial nessa transformao do papel do ensino de fsica neste final do sculo XX. A finalidade desta seo do trabalho explorar o fato de que a fsica uma instituio social, pelo menos a partir da segunda metade do sculo XVII; como tal, ela sofreu profundas transformaes no seu modo de se relacionar com as demais instituies sociais. Ela sofreu influncias profundas da organizao reinante nos diferentes perodos histricos, bem como influenciou os mais diversos aspectos da vida social: seu papel na indstria, comrcio e organizao militar, que enfatiza a dimenso scio-econmica o que costuma ser salientado, porm, sua influncia nos demais setores culturais tambm no de forma alguma desprezvel. Alis, vrias das obras dos grandes fsicos que iniciaram a revoluo cientfica do sculo XVII, podem ser consideradas, alm de obras fundamentais do desenvolvimento cientfico, obras literrias no sentido mais alto do termo. Kepler, Galileu, Descartes e Newton, nos legaram verdadeiras obras primas que, em vrios sentidos, enfatizam e exemplificam parte das preocupaes expostas nestes ltimos pargrafos. Foi a vertente excessivamente tecnicista do modo de apresentar a fsica que acabou soterrando essa forma de pensar que estava presente nesses fundadores da fsica, bem como nos fundadores da fsica contempornea o incio deste sculo. Tentar mostrar a fsica como um rico "laboratrio" cultural, muito mais complexo, vivo e mutante, como tambm sua influncia nos pensadores de outras reas, uma das intenes da transformao que proponho neste trabalho.

III

A finalidade deste trabalho, portanto, revelar as lacunas e distores do ensino de fsica do segundo grau, principalmente no que diz respeito cultura cientfica e humanstica, que tambm refletem o tipo de formao oferecida aos professores de fsica atravs dos cursos de licenciatura. Pretende-se mostrar que essas distores no so apenas conjunturais mas se originam de uma postura filosfica e de uma concepo de educao. A soluo proposta, para superar estas deficincias, assenta-se na compreenso da fsica enquanto um sofisticado continente cultural a ser desvelado.

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A fsica tambm cultura. A fsica tambm tem seu romance intrincado e misterioso. Isto no significa a substituio da fsica escolar "formulista" por uma fsica "romanceada". O que desejo fornecer substncia cultural para esses clculos, para que essas frmulas ganhem realidade cientfica e que se compreenda a interligao da fsica com a vida intelectual e social em geral. Com base na reflexo sobre a atividade desenvolvida em cursos de formao de professores de fsica no Instituto de Fsica da Universidade de So Paulo, pretendo prescrever um arco de atividades, leituras e inseres em cursos formativos, que promova a superao destas deficincias e de seus reflexos no ensino de fsica em todos os nveis, particularmente no segundo grau da escola pblica. Acredito que com o auxlio desses elementos culturais ser possvel levar para as salas de aula a fsica desenvolvida neste sculo, antes que ele acabe.

guisa de prefcio

"Qual! no posso interromper o Memorial; aqui me tenho outra vez com a pena na mo. Em verdade, d certo gosto deitar ao papel cousas que querem sair da cabea, por via da memria ou da reflexo." Machado de Assis(1)

Puxando pela memria e filtrando atravs da reflexo, aqui vo, guisa de prefcio, alguns dados que mostram a origem deste trabalho sobre ensino de fsica, fruto de muita leitura, muitas aulas e palestras dadas e assistidas, pesquisas em livros e revistas especializadas. uma tentativa de tornar esse ensino relevante tanto queles que, via seleo no- natural basicamente econmica, vo utilizar a fsica formalmente em cursos superiores quanto, e principalmente, para a grande maioria que ter no segundo grau o ltimo contato com a educao formal. Em particular, penso naqueles alunos que, como eu na dcada de sessenta, freqentam os cursos noturnos e trabalham durante o dia.(2) H uma conjuno de duas motivaes neste trabalho. A primeira, de carter poltico, procura atravs da pesquisa educacional equacionar e buscar solues para a dramtica situao da educao brasileira; a segunda, marcada pela vivncia do sistema educacional de um trabalhador que, merc das circunstncias, conseguiu terminar o antigo ginsio e cientfico cursando, obviamente, a escola pblica que to poucas vagas oferecia naquela poca para os que conseguiam terminar o primrio.(3) E a a memria apresenta uma contradio flagrante: apesar de todas as crticas que se deva fazer quela educao oferecida pela escola pblica de ento, segundo os mais variados parmetros: seu contedo, seu extremo rigor acadmico na avaliao(4), sua tendncia para preparar para os exames vestibulares(5), entre outros, era pelo menos uma educao de nvel razovel. Os professores de ento recebiam um salrio muito superior aos salrios atualmente pagos na rede pblica e, como conseqncia, tinham tempo para preparar suas aulas e, s vezes, at para participar de atividades fora do horrio de aulas. A profisso de professor ainda era valorizada, como seria at o incio da dcada de setenta. As escolas pblicas apresentavam, pelo menos, condies mnimas de ensino. Porm, havia um nmero muito reduzido de escolas e de vagas. A maioria da populao em idade escolar, e que no tinha condies de pagar as escolas privadas, muitas delas de nvel de educao inferior ao da escola pblica, ficava impossibilitada de prosseguir seus estudos. A maioria ficava sem escola. Minhas primeiras inquietaes sobre a questo educacional vm desde a poca que freqentava o ginsio, quando participava de longas discusses a respeito do que era ensinado na escola. Nessas conversas entravam os mais variados temas: a definio de logaritmo e o uso das

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tbuas, os interminveis teoremas de Euclides, as declinaes do latim, as capitais e descries topogrficas e climticas das mais estranhas regies de nosso planeta, a necessidade de decorar o nome dos ossos da Mo, entre outros. Meus colegas e eu estudvamos numa escola pblica localizada no bairro do Brs. Filhos de pais operrios, bancrios ou, no mximo, pequenos comerciantes, muitos j trabalhavam nas mais diferentes atividades, uns seguindo os passos dos pais, outros, querendo fugir dessa caminhada, viam na escola uma passagem para um futuro, se no melhor, pelo menos diferente. Dessa forma, muitos sonhavam, j no ltimo ano do colgio (6), em continuar seus estudos na universidade, mas poucos a ela chegaram. Mesmo para esses, a universidade era uma incgnita quase total; a escolha de um curso universitrio estava associada ao modismo da poca, queles que ofereciam, aparentemente, maiores oportunidades ocupacionais, ao sonho de pais emigrados da Europa que queriam ver pelo menos um de seus filhos na universidade. Tnhamos alguma noo do que era ser engenheiro, mdico ou advogado, as carreiras mais procuradas. As disciplinas do ginsio e do cientfico, distantes de quase tudo que vivamos no cotidiano, comeavam a ter uma razo de ser, pelo menos para os que sonhavam com a universidade: eram necessrias para fazer o tal do exame vestibular. Alis, pelo menos esse nome no nos era estranho, j tnhamos passado por um para conseguir uma vaga no ginsio estadual. Afora esse `objetivo', tudo o mais era tido como algo obrigatrio e pronto. claro que havia aqueles professores que se esforavam para relacionar algo do contedo escolar com a realidade do pas ou com a idade dos que eram submetidos quele contedo. Lembro-me, por exemplo, das conversas com o professor de biologia, fora da sala de aula. No geral, os professores l vinham com seus radicais, os seus movimentos retardado e acelerado, as montanhas rochosas dos Estados Unidos da Amrica, e ns a tudo estudando por que podia "cair" na prova; os que trabalhavam, passavam noites em claro s vsperas das provas; e amos em frente. Muitos foram ficando pelo caminho. As "matrias" que mais reprovavam eram fsica, qumica e matemtica. Enfim, conseguamos at "impressionar" em casa com nossos novos "conhecimentos"; sem contar que "falvamos" alguma coisa em ingls, francs, ou mesmo latim; imagine-se o impacto que causava uma frase do tipo: "a fora eltrica entre duas cargas dada por um sobre quatro pi psilon zero, que multiplica q um por q dois, dividido por r ao quadrado"...; afinal, estvamos aprendendo a deixar de ser trabalhadores manuais ! Enquanto isso, em histria, mal chegvamos revoluo de trinta, enquanto l fora se avizinhava a "marcha da famlia com deus pela liberdade", gerando em seu ventre o monstro da "revoluo" de 64. Os anos se passaram e o curso universitrio foi sendo realizado. Muitas daquelas peas desconexas que pertenciam s diferentes disciplinas cientficas, aparentemente desligadas da minha vida da poca do curso secundrio, comeavam a adquirir um certo sentido. Mas uma dvida persistia mesmo com relao quele "conhecimento" que comeava a perder as aspas: ser que apenas fazendo um curso universitrio que podemos chegar realmente a compreender o significado desse conhecimento ? A matemtica e a fsica, por serem integrantes do meu curso universitrio de Fsica do Instituto de Fsica da USP, e mais, parte do portugus, que me auxiliava na leitura e na escrita de textos tcnicos, e do ingls, que auxiliava no entendimento de muitos textos didticos estrangeiros que utilizvamos at no curso bsico, e um pouco da qumica, eram um tanto quanto instrumentais para o curso. Porm, o que ficava desse conhecimento escolar para aqueles colegas, a maioria, que no haviam prosseguido seus estudos ? Ser que a escola

secundria tinha-lhes oferecido aquele"...acesso ao conhecimento elaborado e sistematizado, ao instrumental terico e metodolgico necessrio a uma viso mais crtica e articulada da realidade"(7)? Durante alguns anos as inquietaes mais propriamente educacionais foram colocadas parte. De um lado, minha iniciao cientfica em fsica nuclear, de outro, meu envolvimento no movimento estudantil, absorveram-me completamente. Mas elas ressurgiam sempre que participava de qualquer discusso que tratasse de algum assunto relacionado com o ensino, particularmente com o ensino de fsica. Tanto isso era assim que, pouco tempo depois de formado, me envolvi em vrios grupos que iniciavam uma incipiente "pesquisa em ensino de fsica", sob a coordenao de Ernst Hamburger. Essas atividades incluam desde a participao nas equipes que preparavam um ensino bsico de fsica diferente (textos, experimentos e filmes) at a colaborao no "Projeto de Ensino de Fsica", voltado para o segundo grau. Terminado o mestrado em fsica, meu envolvimento com esses diferentes temas de ensino de fsica acabaram me conduzindo para uma especializao em ensino de cincias em Londres. Desta forma, comeava a tomar corpo mais definido aquela preocupao relacionada com a problemtica educacional. De fins de 1972 a incio de 1975 permaneci no Centre for Science Education da Universidade de Londres. Embora a motivao bsica desse estgio no exterior estivesse relacionada com interesses basicamente tcnicos do ensino de fsica - o ensino do laboratrio bsico universitrio, que acabou sendo o tema de minha dissertao de mestrado em educao cientfica(8) - fui aos poucos entrando em contato com reas de estudo que foram importantes para sistematizar uma reflexo sobre aquelas inquietaes antes mencionadas. Dado o carter interdisciplinar do Centro em que estava estudando, tive oportunidade de me iniciar em histria da fsica, filosofia da cincia, sociologias da cincia e da educao, que montavam um quadro radicalmente crtico do ensino de cincias da Inglaterra e, conseqentemente, do ensino de fsica do Brasil, particularmente aquele dirigido para a maioria da populao. Foi nessa poca que comecei a me inteirar da obra de Paulo Freire, de quem havia lido algo ainda no Brasil, que estava com seus livros banidos pela censura, nesse momento, no pas. Minha primeira "leitura" de Paulo Freire, em ingls, iniciou-se com uma surpresa, uma agradvel surpresa: estava assistindo um programa de televiso da Open University, pela BBC, quando foi anunciada uma homenagem ao educador Paulo Freire que, se no me falha a memria, estava recebendo algo equivalente a um ttulo de doutor "honoris causa" pelos seus trabalhos na rea de educao de adultos e no repensar a educao de um modo geral. Afinal, no era s o futebol da era Mdice que era exaltado pelos ingleses. Poucos dias depois, folheando o Times Educational Supplement, me deparo com um artigo sobre Paulo Freire e uma resenha de dois de seus livros publicados pela Penguin. assim que passo a ler os livros do mais importante educador brasileiro contemporneo... em ingls. Havia uma espcie de um estranho, melanclico e saudoso prazer de ler os conceitos de "generative themes", "the `banking' concept of education", "dialogical education", entre outros, no seu livro "Pedagogy of the opressed". (9) Havia um choque cultural perpassando tudo isso naqueles momentos. Porm, esses conceitos bsicos da anlise freiriana me levavam de volta, e agora com uma sustentao mais slida, quelas mesmas inquietaes. Agora elas faziam mais sentido pois eram amparadas por uma crtica ao sistema educacional que no ficava apenas ao nvel do existencial, das sensaes, mas ia ao fundo da discusso de cultura, de alienao do trabalhador da educao, de dominao cultural imposta por valores

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determinados pelos que detinham o poder de definir, inclusive, qual escola era "necessria" para a maioria da populao, da falta de relao (intencional) do contedo escolar com a realidade vivenciada por essa mesma populao, da doao de contedo a uma "platia" passiva, enfim, era um discurso que dava forma quelas inquietaes e que, a partir de ento, alterou profundamente meu cotidiano como professor. Como saltaram daquelas pginas a concepo de "educao bancria", a viso de cabeas que eram consideradas como se fossem vasilhas vazias prontas para serem cheias por qualquer "conhecimento", de professor que deixa de s-lo para, ao ser transformado em educador, ser tambm um educando! Foi a partir dessas incurses iniciais no universo freireano que comecei a direcionar meu estudo com o intuito de trabalhar aquelas dvidas sobre o papel da educao, e nesta, sobre o lugar da fsica na formao do cidado brasileiro contemporneo. As inquietaes, afinal, no eram s minhas... Paralelamente a essa nova conceituao educacional, ia-se formando u concepo ma crtica sobre o processo de desenvolvimento cientfico tradicional "popularizado" nos cursos universitrios atravs dos textos didticos que so utilizados desde os cursos introdutrios bsicos at os mais avanados cursos de ps-graduao. Este novo posicionamento foi estimulado atravs da leitura do "The structure of the scientific revolutions"(10), de Thomas Kuhn que, publicado pela primeira vez em 1962, apenas no final da dcada de sessenta e incio da seguinte comeou a ter forte influncia no debate envolvendo filsofos, socilogos e historiadores da cincia. Esse livro desencadeou, durante a dcada de setenta, uma polmica em torno da racionalidade/irracionalidade do desenvolvimento cientfico, dos conceitos de progresso e verdade na cincia, da crtica ao indutivismo clssico e ao refutacionismo popperiano e deste ao dualismo cincia normal/revoluo cientfica. Assim, era problematizada a forma linear e cumulativa de apresentao das teorias cientficas atravs dos manuais. Em 1975, de volta ao Brasil, encontrei pela frente um estimulante desafio educacional no curso de licenciatura: dar aulas na disciplina de "Instrumentao para o ensino de fsica". Juntamente com Amlia Imprio Hamburger foi iniciada a reestruturao dessa disciplina que, desde sua criao em 1962, tinha no projeto PSSC(11) seu eixo central. Os quatro anos seguintes, 1975 a 1978, foram fundamentais na busca de concretizar na prtica de sala de aula algumas das novas idias recentemente aprendidas. O dilogo quase que dirio com Amlia na procura de um caminho novo para a "Instrumentao" abriu vrias possibilidades de explorao na rea de ensino de fsica voltada para o segundo grau. Escrevamos textos para os alunos, estes tinham, como uma das tarefas da disciplina, que escrever "notcias" sobre as aulas-conferncias (12) que ocorriam semanalmente para publicar no "Jornal do 363" , orientados por ns os alunos desenvolviam projetos sobre os mais variados temas, alguns chegando a ser apresentados em simpsios. Participaram tambm dessa experincia os colegas Hideya Nakano (1975) e Diomar Bittencourt (1976 a 1978). Naqueles anos, o salrio do professor secundrio ainda no estava to desvalorizado, e tnhamos mais de cem alunos freqentando a disciplina de Instrumentao, entre o diurno e o noturno (13) . Uma frao pondervel destes alunos j lecionava no segundo grau, o que tornava a discusso em sala de aula muito prxima da problemtica por eles vivenciada em sua iniciao como professores. Era comum trazer o real ensino de fsica do segundo grau para debate em "Instrumentao". Foram anos riqussimos na minha formao como professor e como pesquisador. (14)

A partir de 1975, ento, influenciado por aquelas duas posturas crticas, uma dirigida ao sistema educacional outra ao procedimento tradicional de se apresentar o desenvolvimento cientfico, e motivado pelo desafio de trabalhar com alunos que j eram ou que iam ser professores de fsica do segundo grau, levei essa discusso num dilogo aberto na disciplina Instrumentao. Nesses dilogos tnhamos oportunidade de colocar em discusso os textos mais utilizados nas escolas de segundo grau, como tambm iniciar uma conversa sobre a escola e seu contedo, no nosso caso relacionado especificamente com a fsica. O impacto provocado pela leitura dos textos de Paulo Freire, nessa altura j editados em portugus, era s vezes at dramtico. E a partir da comeamos uma discusso, que foi constante nos vrios anos em que trabalhei com alunos de Instrumentao, sobre o contedo geral de fsica que era abordado nas escolas de primeiro e de segundo graus. Discutamos questes do tipo: no deveria ser apresentada uma fsica mais prxima do mundo que nos cerca ? A fsica apresentada na escola no deveria envolver tambm os ltimos avanos conseguidos pela fsica deste sculo? E o papel da histria nesse ensino ? Por essa mesma poca essas questes eram tambm o ponto de partida de um grupo de estudos envolvendo alguns alunos da ps-graduao em ensino de fsica e alguns docentes do Instituto de Fsica, particularmente Luis Carlos de Menezes e eu. Entre os alunos destacavam-se Demtrio Delizoicov, Jos Andr Angotti e Mrio Takeya, hoje docentes universitrios e, os dois primeiros, investigadores na rea de ensino de fsica que, juntamente com Menezes, eu e outros colegas, iniciaram uma caminhada que prossegue at hoje. O tema principal deste grupo, nessa poca inicial, era a problemtica da educao popular. Tambm estava presente nessas discusses uma forma de tornar o ensino abstrato da fsica mais prximo de experincias reais, como mostra o ttulo de um trabalho desenvolvido nessa poca por alguns de ns: "Um laboratrio de termodinmica baseado no estudo de ciclos reais." (15) Porm, boa parte do tempo foi tomada com uma leitura sistemtica das obras de Paulo Freire e seu relacionamento com o ensino de fsica. Dois dos componentes do grupo de estudos, Demtrio Delizoicov e Jos Andr P. Angotti, acabaram aplicando esse estudo terico num contexto social que era, ento, muito mais propcio: a recm independente Guin-Bissau.(16) Luis Carlos de Menezes descreve com mais detalhes um pouco da histria no s desse grupo de estudos como de outros trabalhos em sua recente tese de livre docncia.(17) Ainda por essa poca, um outro envolvimento que se mostrou importante nos anos seguintes estava relacionado com a tentativa de implantao da licenciatura curta nas universidades pblicas, inclusive na Universidade de So Paulo. Em 1975, Vera Lucia Lemos Soares, eu e dois alunos de licenciatura de ento, Jos Domingos T. Vasconcellos e Roberto Kishinami, fizeram um estudo dessa tentativa na USP e da Resoluo 30 do Conselho Federal de Educao, responsvel por essa poltica juntamente com a lei 5692/71.(18) Logo depois conseguamos um posicionamento da Sociedade Brasileira de Fsica contra essas medidas na sua reunio anual desse ano.(19) Nos anos seguintes o movimento de oposio a essa licenciatura curta ganhou amplos setores das sociedades cientficas e educacionais.(20) Nos anos de 1978 a 1980 participei, como representante do Instituto de Fsica, numa comisso criada pela reitoria da USP para estudar a "licenciatura em cincias" na universidade. Nessa comisso defendi a no criao, naquele momento, de uma licenciatura em cincias (seria em "cincia integrada"?) enquanto persistisse a legislao que insistia nos cursos de curta durao. Argumentava que a

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matria "cincias" das ltimas quatro sries do primeiro grau poderia ser desdobrada em disciplinas distintas, isto , em cada srie a nfase poderia ocorrer numa das cincias podendo, desta forma, ser ministrada por licenciados "longos" correspondentes. Assim, numa srie poderia ser ensinada apenas a biologia, na seguinte a qumica e numa outra a fsica. Os professores formados para dar aulas no segundo grau poderiam perfeitamente lecionar tambm no primeiro grau. Como sada legal, sugeria-se a incluso de pequenas mudanas nas licenciaturas oferecidas de tal forma a permitir que os formandos nas licenciaturas da USP pudessem ser autorizados a lecionar tambm no primeiro grau. Como costuma acontecer com propostas de comisses de estudo, essas sugestes ficaram por a. De qualquer forma, a Resoluo 30 ficou meio engavetada. Ao mesmo tempo, uma comisso da SBPC, coordenada por Ernst Hamburger, da qual tambm participei, estabeleceu uma proposta sobre a licenciatura em cincias que foi encaminhada ao MEC.(21) Em 1978, durante a reunio anual da Sociedade Brasileira de Fsica, coordenei um encontro que discutiu a divulgao da fsica no ensino mdio e universitrio. Desse encontro surgiu a concepo de uma publicao dedicada aos diferentes aspectos do ensino de fsica. Nascia, assim, a Revista de Ensino de Fsica, cujo primeiro nmero foi publicado em janeiro de 1979. Fui o editor dessa revista desde esse nmero at o vigsimo, publicado em 1988. Foram vinte nmeros publicados em dez anos. Ao longo destes ltimos dez anos, paralelamente a essas atividades, dediquei-me a estudos em histria e filosofia da cincia, sempre tendo como preocupao central a possibilidade de sua utilizao no ensino de fsica, particularmente na formao de professores. A um aprofundamento na leitura de Kuhn juntou-se, um aprendizado das idias de Popper, Feyerabend e, ultimamente, a descoberta de Gaston Bachelard e seu discurso dialtico, rico para a problemtica pedaggica. Ao mesmo tempo, um estudo das vrias formas de fazer a histria da fsica foi surgindo da leitura de artigos especializados sobre o assunto. Uma compreenso da fsica como uma atividade socialmente organizada tambm foi sendo aprofundada ao longo desse perodo. A partir de 1984 uma outra atividade fundamental comeou a ser desenvolvida, tendo como inspirao um curso de extenso sobre a "Fsica das coisas", ministrado por Menezes a professores de fsica do segundo grau. Da surgiu a idia de se constituir um grupo de trabalho visando a elaborao de material didtico. Disso resultou o GREF (Grupo de re-elaborao do ensino de fsica) que contou com a participao de quase duas dezenas de professores do segundo grau, coordenados por Luis Carlos de Menezes e Yassuko Hosoume e contando tambm com a minha colaborao. O material produzido, e j publicado pela Editora da USP, bem como as inmeras discusses havidas ao longo de sua construo, foram extremamente enriquecedores para todos os participantes como tambm para o trabalho que estou desenvolvendo. Todos esses estudos influram na minha concepo de ensino de fsica, enquanto uma atividade cultural que procurei, sempre que possvel, levar para os meus alunos, seja atravs da disciplina de "Evoluo dos Conceitos da Fsica", seja atravs da "Instrumentao para o Ensino de Fsica", no Instituto de Fsica da Universidade de So Paulo. Ao mesmo tempo, levava essas idias aos cursos regulares e de extenso e s palestras, ministrados em diversas ocasies ao

longo dos ltimos anos, bem como atravs de alguns artigos e resenhas em diversos rgos de divulgao. Notas e referncias 01. Assis, Machado de. Memorial de Aires. Coleo Saraiva, So Paulo, 1964, pg. 78. 02. Moraes, Carmen Sylvia Vidigal de. Os cursos noturnos e a educao do trabalhador. In: Fischmann, Rosely (org.). Escola brasileira. Editora Atlas, So Paulo, pg. 133. A autora informa que "Levando-se em considerao os dados de 1982, da Fundao Carlos Chagas, temos que, na Grande So Paulo, 68% dos jovens entre 15 e 18 anos esto fora do 2o grau. Do restante, 70% cursam o 2 o grau noturno. (...) Na rede estadual noturna 81% dos alunos trabalham, enquanto, na escola particular, a porcentagem dos que o fazem atinge 76%." 03. Eis o que dizia Florestan Fernandes a este respeito sobre o sistema educacional no ano de 1957, quando eu freqentava a 2a srie do ginsio: "O que espanta, nesses dados, a distribuio vertical das oportunidades educacionais. (...) Sobre 6.465.579 matrculas no ensino primrio, observamos 26.879 matrculas no ensino elementar extra-primrio, 972.894 matrculas no ensino mdio e 85.753 matrculas no ensino superior. Em outras palavras, o total de matrculas de todos esses ramos do ensino equivale a 1/6 da populao educacional das escolas primrias, o que patenteia ser nfimo o nmero de indivduos que consegue varar, nas condies atuais, na direo de oportunidades educacionais mais complexas." Florestan Fernandes. Educao e sociedade no Brasil. Dominus Editora e EDUSP, So Paulo, 1966, pg. 23. 04. Apenas para dar uma idia do ndice de reprovao (a desistncia no era muito grande) basta dizer que quando iniciei o 1o ano do cientfico tnhamos trs classes com cerca de quarenta alunos em cada uma e quando iniciei o 3o ano s restava uma nica classe com pouco menos de quarenta alunos. 05. A influncia dos vestibulares no era to dramtica como nos ltimos 15 ou 20 anos. Naquela poca no havia um vestibular unificado o que diminua um pouco a influncia desse exame na definio real dos programas. 06. A diviso entre o "cientfico" e o "clssico" uma mostra da influncia do curso superior sobre o ensino mdio. O colegial era a passagem obrigatria para continuar a estudar. 07. Moraes, Carmen S. Vidigal de. Ref. 2, pg. 140. 08. Zanetic, Joo. Practical work in the teaching of physics at the university level. MEd. Dissertation, University of London, 1974. 09. Freire, Paulo. Pedagogy of the oppressed. Penguin Books, London, 1972. 10. Kuhn, Thomas S. A estrutura das revolues cientficas. Ed. Perspectiva, So Paulo, 1975. 11. Physical Science Study Committee. 12. Jornal do 363 foi publicado em 1975 e 1976. O nmero 363 vem do cdigo da disciplina FEP 363. Nele eram publicadas as "notcias" de cada aula terica por cada uma das trs

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classes (duas no noturno e uma do diurno), a programao do curso, resumo dos projetos realizados pelos alunos e outras informaes. 13. Se compararmos com os nmeros de hoje teremos mais um dado sobre a deteriorao do ensino de segundo grau em So Paulo. O curso de licenciatura em fsica mais antigo do Estado est quase desaparecendo. Em 1988, apenas cerca de 20 alunos concluram a disciplina de Instrumentao, obrigatria para os alunos de licenciatura, quando o nmero em 1975 era prximo de 100. 14. Vrios colegas da rea de ensino de fsica chamaram a ateno para o fato de que muitos dos temas abordados em Instrumentao nesses anos acabaram se transformando em temas de pesquisa em ensino de fsica nos anos seguintes. 15. Takeya, Mrio; Zanetic, Joo e Menezes, Luis Carlos de. Um laboratrio de termodinmica baseado no estudo de ciclos reais. Rev. Bras. de Fsica, So Paulo, volume especial 2, outubro/1976, pg. 450. 16. Seus trabalhos culminaram em dissertaes de mestrado em ensino de fsica onde relatam a experincia educacional vivenciada. Demtrio Delizoicov. Concepo problematizadora para o ensino de cincias na educao formal. Dissertao de mestrado, FEUSP/IFUSP, 1982. Jos A. P. Angotti. Soluo alternativa para a formao de professores de cincia; um projeto educacional desenvolvido na Guin Bissau. Dissertao de mestrado, IFUSP/FEUSP, 1982. 17. Menezes, Luis Carlos. de Crise, cosmos, vida humana. Fsica para uma educao humanista. Tese de livre-docncia, IFUSP, 1988, pgs. 176/239. 18. Soares, Vera Lucia L.; Zanetic, Joo; Vasconcellos, Jos Domingos T. e Kishinami, Roberto. Crticas implantao da resoluo 30 na USP, mimeografado, 1975.19. Nesse mesmo ano no se conseguiu aprovar um documento idntico na Assemblia Geral da SBPC. Porm, em 1976, isso foi conseguido.

20. Uma polmica longa sobre a licenciatura curta. Rev. de Ensino de Fsica, vol. 2, no 3, ago/80, pgs. 67/81. (Material editado por Joo Zanetic e Vera Lucia Lemos Soares). 21. Diversos autores. Sugestes para a formao de professores da rea cientfica para as escolas de 1o e 2o graus. Rev. Ens. Fsica, 2(4), dez/80, pgs. 41/56; ou Cincia e Cultura, 33(5), mar/81, pgs. 369/377.

Captulo 1 Introduo "A Cincia pode ser encarada sob dois aspectos diferentes. Ou se olha para ela tal como vem exposta nos livros de ensino, como coisa criada, e o aspecto o de um todo harmonioso, onde os captulos se encadeiam em ordem, sem contradies. Ou se procura acompanh-la no seu desenvolvimento progressivo, assistir maneira como foi sendo elaborada, e o aspecto totalmente diferente descobrem-se hesitaes, dvidas, contradies, que s um longo trabalho de reflexo e apuramento consegue eliminar, para que logo surjam outras hesitaes, outras dvidas, outras contradies. (...) A Cincia, encarada assim, aparece-nos como um organismo vivo, impregnado de condio humana... como um grande captulo da vida humana social." Bento de Jesus Caraa(1) ponto pacfico a aceitao da escola como o lugar ideal para o adestramento das jovens geraes naquele conjunto de informaes, conhecimentos bsicos e tcnicos, instrumentais para sua colocao na vida em sociedade, entendida esta como sendo o futuro envolvimento no mercado de trabalho - afinal, todos temos que trabalhar - e a preparao para posteriores estudos visando, como alvo maior, o possvel ingresso num curso superior. Assim que, se nas primeiras sries do primeiro grau (correspondentes ao antigo primrio) as letras e os nmeros desempenham papis quase inquestionveis de iniciao e desvelamento para uma linguagem, portanto, organizao estruturada do mundo, o mesmo no pode ser afirmado quando nos propomos a analisar o que passa por conhecimento representativo das diferentes reas do saber. A, a dimenso quase exclusivamente propedutica toma a posio de destaque, sendo uma srie escolar o pr-requisito para a srie seguinte, n uma seqncia que aponta para um (2). essa aceitao pacfica dos contedos abordados em nossa hipottico exame vestibular escola que ser questionada ao longo deste trabalho, focalizando, particularmente, o ensino da fsica no segundo grau, mediatizado pela formao do respectivo professor atravs dos cursos de licenciatura.

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Cheguei a uma dura avaliao do estado atual do ensino de fsica, fruto do conhecimento do contedo ministrado na escola pblica, da familiarizao com os textos didticos, da experincia com as licenciaturas em fsica, do conhecimento dos exames vestibulares e do contato permanente com professores da rede pblica. No geral, este ensino, mais que deficiente, realmente danoso por apresentar uma viso distorcida da fsica enquanto cincia; vale a pena delinear algumas caractersticas da perverso educacional que denuncio: i. praticada apenas uma operacionalizao muito pobre dos conceitos e leis da fsica clssica. A forma dominante do ensino de fsica restringe-se mera apresentao de um sumrio dos conceitos, leis, grandezas fsicas e unidades de medida, seguidos de uma extensa lista de exemplos resolvidos e exerccios propostos. De um modo geral, nos livros didticos adotados, o nmero de pginas dedicado a esses exemplos e exerccios supera o dedicado exposio "terica". Assim, a nfase a operacionalizao de conceitos e leis, deixando entender que a soluo correta de testes e problemas uma medida adequada da aprendizagem em fsica. A avaliao dessa aprendizagem raramente se d de outra forma que no seja a solicitao de resoluo desse tipo de problemas que, por seu turno, representam configuraes de situaes que servem to somente aplicao de frmulas que sintetizam as leis e conceitos correspondentes aos temas abordados. No se trata sequer de enfatizar o formalismo da fsica, mas sim o seu "formulismo". Isto significa que tais exerccios acabam tendo pouca relevncia na compreenso da fsica enquanto um ramo do conhecimento que, em primeira instncia, busca uma familiaridade com a natureza fsica. Assim, o treino no algoritmo da fsica, destreza necessria, se d num vazio intelectual e vivencial. ii. Foi suprimida a prtica experimental que era bsica para a compreenso de conceitos, teorias e mtodos. Este um dos aspectos mais discutidos nos trabalhos que tratam das deficincias no ensino de fsica. Embora a atribuio do termo "cincia experimental" tenha uma carga essencialmente positivista ou indutivista, no se pode deixar de criticar a inexistncia de experincias prticas no ensino de fsica. E aqui devemos entender tanto experimentos que tragam esclarecimentos com relao construo terica estabelecida, quanto a experincias ligadas vida cotidiana. iii. No se contempla a mudana epistemolgica por que passou a fsica desde a sua estruturao clssica a partir do sculo XVII. Apresenta-se o contedo terico da fsica como se seus conceitos e leis houvessem nascido meramente de uma atitude contemplativa inteligente dos fenmenos fsicos ou a uma genialidade transcendental de uns poucos iluminados. Quando alguma discusso metodolgica ou filosfica comparece de forma implcita, transparece aquela descrio do mtodo cientfico que remonta ao modelo indutivista mais primitivo. iv. Est ausente a histria da fsica, tanto a internalista, isto , a histria do surgimento dos conceitos e leis universais que compem as teorias, quanto a externalista, isto , aquela que procura relacionar a evoluo das idias da fsica ao contexto social. H um arremedo de histria quando se apresentam as datas de determinados acontecimentos e de nascimento e morte de alguns fsicos. A impresso que se tem que as idias da fsica surgiram num vazio intelectual e na ausncia de determinantes sociais e econmicos. v. A fsica apresentada como um ramo do conhecimento neutro, apoltico e desligado do cotidiano. A extrema abstrao dos exemplos resolvidos, a a-historicidade e a no influncia do contexto social, acima indicados, levam a uma concepo de autonomia da fsica face vida

social que dificulta sobremaneira a transferncia do conhecimento para outras situaes distintas do contexto escolar, sejam elas simplesmente de aplicao a situaes novas, seja a compreenso das implicaes scio-econmicas de determinados acontecimentos em que a fsica poderia vir em auxlio. vi. O contedo da fsica se restringe aos diferentes ramos consagrados da fsica clssica, com a total ausncia dos desenvolvimentos por que passou a fsica contempornea aps o advento da relatividade e da mecnica quntica. Alis, esse no um problema apenas brasileiro ou dos pases subdesenvolvidos. Num recente editorial do American Journal of Physics, situao anloga era criticada, apontando que "A ausncia da fsica moderna em nossos cursos introdutrios uma medida do nosso fracasso... O contedo bsico da fsica introdutria tem permanecido essencialmente o mesmo por dcadas. (...) O contedo de nossos cursos , como tem sido por cerca de um sculo, mecnica, calor e termodinmica, eletricid ade e magnetismo, e tica." (3) vii. Como coroamento desses pontos negativos, e para terminar esta lista, vem a sensao de desconforto para com a fsica demonstrada pelos adolescentes que pela primeira vez se defrontam com a fsica escolar. H uma forte rejeio da fsica escolar. a disciplina que mais reprova. aqui que a palavra disciplina retorna s suas origens, designando um instrumento de sadismo intelectual (o chicote ou vara utilizados na escola medieval). Essa situao no se restringe ao ensino/aprendizagem de fsica, uma caracterstica que compreende todas as disciplinas que compem o currculo de nossas escolas. Como a escola , via de regra, entendida como uma seqncia hierrquica de aquisio de conhecimento, a caracterstica propedutica acaba sendo a dominante. Isto , quem no prosseguir o estudo aps a concluso do primeiro grau no ter uma viso razovel da geografia, da histria, das cincias, etc., j que um aprofundamento maior promete ser dado nas aulas do segundo grau. Porm, com certeza, quem no prosseguir os estudos aps a concluso do segundo grau, tambm no ter uma viso razovel da geografia, histria, fsica, qumica, biologia, etc., j que um aprofundamento maior promete ser dado nas aulas dos cursos universitrios. Porm, sem dvida quem no prosseguir os estudos aps a concluso da universidade, tambm no ter uma viso razovel de ... Esta uma seqncia que no tem fim. Desta forma, em nossas escolas pblicas de primeiro e segundo graus h uma apresentao fragmentada e incompleta das diferentes reas do saber que so contempladas na escolha curricular. Isto dito desta forma pois h todo um elenco de outras reas que sequer atingem as salas de aula, no so selecionadas para serem "transmitidas" como formas d e conhecimento. Sob outras perspectivas educacionais, outras disciplinas poderiam participar do curriculum, tais como, filosofia (que comea a retornar), psicologia, antropologia, economia, geologia, artes plsticas diversas, poltica, msica clssica e popular, tradies folclricas, e ... histria da cincia. indiscutvel que a escola, em qualquer de seus nveis, do pr-primrio ps-graduao, nunca poder oferecer um panorama completo e definitivo da viso de mundo total de uma forma de conhecimento. A educao em qualquer campo um processo permanente de estudo e reflexo, no termina nunca. Apesar disso, possvel e necessrio estruturar um mnimo de conhecimento bsico que permita ao indivduo auto-educar-se da para frente. com este sentido que deve entender-se a terminalidade da escola mdia: preparar o indivduo tanto para o

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prosseguimento eventual dos estudos, como tambm fornecer os elementos mnimos que lhe permitam participar da aventura do conhecimento genuno. A fim de que o currculo escolar possa desempenhar esse duplo papel, algumas questes gerais poderiam servir de orientao: i. do conhecimento acumulado ao longo da histria da humanidade o que deve ser selecionado para ser ensinado na escola ? ii. essa seleo permite que um cidado contemporneo entenda melhor o universo em que vive no sentido de abarcar a sua localizao no espao e no tempo, seu papel na produo, o conhecimento do mundo fsico, o funcionamento bsico de seu corpo e de sua mente, as potencialidades de seu pas, o funcionamento do Estado e as razes da organizao social reinante e sua possvel transformao, etc., etc. ? iii. essa seleo vai ser til no seu trabalho de tal forma a torn-lo um trabalhador flexvel e no apenas um mero apndice da mquina ? iv. esse conhecimento selecionado vai ajud-lo a usufruir suas horas de lazer ? v. esse conhecimento til no prosseguimento dos estudos ? Tentando responder uma seqncia de questes como a acima exposta certamente construiramos um currculo cujo contedo diferiria em muitos aspectos do atual. Mais adiante procurarei aprofundar um pouco isso no que diz respeito fsica. Como j mencionei no incio deste captulo, o ensino de fsica no segundo grau, com rarssimas excees, como atestam os livros didticos de fsica "mais populares", totalmente dedicado ao "ensino/aprendizado" da soluo de exerccios e problemas restando pouco tempo das aulas experimentao, discusso terica, evoluo das idias e teorias que compem o universo da fsica. A. Villani salienta que este "modelo" de ensinar fsica comparece, com pequenas variantes, nos diferentes nveis de escolarizao, mostrando "... seu poder quase totalitrio..." sobre os professores.(4) Como conseqncia deste "modelo" a excessiva nfase no paralelismo entre "contedo de fsica" e as "frmulas da fsica" reduz o ensino/aprendizagem da fsica utilizao dessas frmulas na soluo de problemas tpicos, diferindo o enfoque nos 2o e 3o graus meramente na dificuldade matemtica correspondente. (5) claro que a aprendizagem da soluo de problemas tpicos, que envolve o domnio de uma metodologia de trabalho, um formalismo matemtico adequado, a utilizao correta de grandezas e unidades fsicas, bem como a avaliao final do resultado obtido, parte fundamental da aquisio de conhecimentos fsicos, a parte que evidencia o potencial do que foi aprendido na soluo de problemas tericos e/ou prticos. Sem chegar a essa aplicao do conhecimento cientfico raramente se poder dominar as teorias que o compem. Porm, esse aspecto, basicamente tcnico da aprendizagem cientfica, no suficiente para fornecer uma viso razovel do complexo sistema representado por qualquer ramo do conhecimento, especialmente a fsica. provvel que o ensino/aprendizagem dessas tcnicas envolvidas na soluo de problemas tpicos de fsica desempenhe um papel de familiarizar e adestrar no formalismo matemtico os alunos que prosseguiro o estudo da fsica num curso superior. Porm, acredito que um ensino de fsica que contemple o que ser proposto ao longo deste trabalho, ser ainda mais til, mesmo para esses alunos, pois dar um "sabor" ao saber. Ao longo deste trabalho, onde deixarei clara minha crtica a essa forma de aprendizagem/ensino e proporei uma estratgia educacional alternativa, voltarei a tratar da aprendizagem, inclusive dos alunos que se dirigem aos cursos superiores onde seguiro uma

carreira cientfica ou de aplicao dos conhecimentos cientficos. No entanto, minha preocupao central com a grande maioria de alunos do segundo grau que ter neste nvel de escolarizao a ltima (e nica) oportunidade de manter um estudo sistemtico de fsica com orientao de um professor. Acredito que devamos oferecer, aos alunos do segundo grau, um contedo de fsica que consiga transmitir um pouco que seja da "cultura cientfica" viva, que est presente no contnuo aperfeioamento deste ramo das cincias exatas. Um ensino de fsica que dar a base para os que prosseguiro seus estudos nas universidades bem como p aqueles que desejarem faz-lo ara autonomamente como uma atividade intelectual enriquecedora, como parte de uma educao permanente. Ou ainda uma educao em fsica que a torne instrumental, no sentido que Paulo Freire empresta a esse termo: "Estvamos, assim, tentando uma educao que nos parecia a que precisvamos. (...) Realmente instrumental, porque integrada ao nosso tempo e ao nosso espao e levando o homem a refletir sobre sua ontolgica vocao de ser sujeito. E se j pensvamos em mtodo ativo que fosse capaz de criticizar o homem atravs do debate de situaes desafiadoras, postas diante do grupo, estas situaes teriam de ser existenciais para os grupos. Fora disso, estaramos repetindo os erros de uma educao alienada, por isso ininstrumental." (6) No meu entender esse ensino/aprendizagem de fsica s ser instrumental, nesse sentido freiriano de concepo problematizadora que leva em conta o carter histrico da humanidade, se se propor a responder a questes do tipo das que foram formuladas antes. o que pretendo fazer brevemente a seguir. Para satisfazer essa instrumentalidade o ensino de fsica deve ser estruturado de tal forma a atender as seguintes condies: 1. Oferea aos alunos um domnio de conceitos e das respectivas ferramentas matemticas e experimentais de tal forma que possam utiliz-los na soluo de problemas tericos e de situaes associadas ao cotidiano. Isto significa que o aluno dever ser capaz no apenas de apreender o potencial dessas ferramentas enquanto uma construo intelectual que desvende parte do universo fsico, como tambm, seu potencial na compreenso de fenmenos e aparelhos utilizados no cotidiano. Por exemplo, a teoria bsica envolvida no modelo clssico de corrente eltrica permite ao mesmo tempo tanto a compreenso de determinados fenmenos fsicos bsicos como, por exemplo, a diferenciao entre condutores e isolantes, os campos eltrico e magntico, etc., quanto a explicao de mecanismos bsicos de aparelhos simples, como lmpadas, chuveiro eltrico, motores, etc.(7) 2. Torne claras as metodologias utilizadas pelos fsicos. Aqui se pretende uma anlise razovel sobre o chamado "mtodo cientfico". H uma vasta literatura antiga e contempornea que deveria ser parte integrante do curso de licenciatura em fsica de tal forma a fornecer uma formao mnima aos futuros professores de fsica. A inteno seria a de desmistificar a crena no mtodo cientfico tradicional que vem desde a poca de Bacon (sculo XVII) e que ainda hoje veiculada, explcita ou implicitamente, pela escola e pelos meios de comunicao. Assim, importante enfatizar que h procedimentos metodolgicos bem distintos: uns que partem de resultados experimentais e que, de forma indutiva, permitem a elaborao de

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leis fundamentais; noutro extremo, h outros que se baseiam quase exclusivamente em "experincias de pensamento" dando lugar imaginao criadora do cientista buscando a articulao e desenvolvimento de uma dada viso de mundo. 3. Mostre que o desenvolvimento da fsica parte integrante da histria social, um produto da vida social, estando assim condicionada por uma imensa gama de fatores e interesses, que so cambiantes dependendo da poca em que determinadas teorias e concepes sobre o mundo foram desenvolvidas. Interesses econmicos foram e so importantes na orientao e desenvolvimento da pesquisa em reas especficas, como ocorreu, por exemplo, com o desenvolvimento das mquinas trmicas e da correspondente construo terica, a termodinmica, durante o sculo XIX; um outro exemplo, segundo alguns autores, o prprio desenvolvimento da mecnica newtoniana, muito prxima dos problemas tcnicos enfrentados pela nova organizao social nascente da crise do feudalismo do sculo XVII, como por exemplo, o estudo do movimento de projteis acoplado ao uso e construo de diferentes tipos de armas. A astrologia serviu de motivao para o estudo do movimento dos corpos celestes e elaborao de mapas celestes bem precisos, bsicos para o desenvolvimento da astronomia que, por sua vez, levou criao de teorias fsicas. Esta influncia esteve presente desde a Antigidade at a poca do Renascimento com os trabalhos de Kepler, por exemplo. A fsica nuclear teve um grande impulso no seu desenvolvimento a partir do incio da dcada de quarenta com as pesquisas voltadas para a construo de artefatos nucleares (bombas atmicas); mais recentemente, problemas militares acabaram influenciando outros campos da fsica. Aspectos teolgicos tambm compareceram, em diferentes pocas, no desenvolvimento do conhecimento cientfico, particularmente na histria da fsica, ora alimentando as concepes dos pesquisadores, como ocorreu com os pesquisadores aristotlicos da idade mdia ate o sculo XVII, ora exercendo o poder de censura, priso ou morte, como ocorreu com Coprnico, Bruno, Descartes e Galileu, entre outros. Aqui estavam envolvidas concepes bsicas como as que atribuam movimentos Terra, universo infinito, rugosidade na superfcie da lua, possibilidades de vida em outros corpos celestes, etc. Enfim, o conhecimento cientfico um produto da vida social e como tal leva a marca da cultura da poca, da qual parte integrante, influenciando e sendo influenciado por outros ramos do conhecimento, sendo o relacionamento da fsica com a filosofia um dos melhores exemplos. 4. Oferea aos alunos uma viso da fsica que aproxime a "fsica escolar" dos mais recentes avanos construdos pelos fsicos contemporneos. Isto significa que o contedo da Fsica a ser trabalhado no segundo grau no pode ficar restrito apenas fsica conhecida at fins do sculo XIX, sob pena de dar uma impresso totalmente falsa e incompleta da perspectiva de mundo oferecida atualmente. Isto porque no final do sculo passado e incio deste a fsica conheceu um desenvolvimento de tal monta que toda a concepo de mundo que se tinha teve que ser repensada. A fsica newtoniana, por exemplo, que continua vlida quando nos referimos a corpos macroscpicos e a velocidades normais dos veculos existentes (mesmo dos mais velozes foguetes), deixa de ser vlida no micromundo (aquele habitado por tomos e molculas) ou para grandes velocidades (aquelas presentes nos fenmenos eletromagnticos, por exemplo). A comeam a atuar a Mecnica Quntica e a Teoria da Relatividade, respectivamente. Muitos fenmenos s tm uma explicao razovel quando apelamos para essas duas teorias do sculo XX, totalmente ausentes nas aulas do segundo grau. claro que ainda hoje existem dificuldades

de apreender e de passar adiante esse "novo" conhecimento. Certamente as novas geraes tero menos dificuldade na apropriao do contedo dessas teorias se se depararem com elas ainda no segundo grau. Quando menos, essas teorias certamente contribuiro para aguar o imaginrio, a fantasia, o esprito criador, que devem tambm ser parte integrante do objetivo educacional de nossas escolas de segundo grau. E mais, no suficiente dizer-se que um timo aprendizado da fsica clssica prepara o terreno para a aprendizagem posterior, na auto-educao fora da escola, da fsica contempornea, pois, a metodologia presente nesta de outra qualidade, muito mais sofisticada e que rompe no apenas conceitualmente com as teorias anteriores. , enfim, a tentativa de apresentar a fsica como um elemento cultural bsico para a compreenso do mundo contemporneo, para o entendimento de concepes do mundo fsico que existiram na histria e para a "satisfao cultural" do cidado contemporneo.(8) E, acima de tudo, como afirma Bento de Jesus Caraa, na epgrafe que abre este captulo, a tentativa de apresentar a fsica como "um organismo vivo impregnado de condio humana". Notas e Referncias 01. Caraa, Bento de Jesus. Conceitos fundamentais da matemtica. Lisboa, 1975, pg. XIII. Original de 1941. Caraa (1901 - 1948) foi professor de matemtica, em Portugal, e autor de vrios artigos e livros sobre matemtica. Escreveu tambm sobre histria da cincia. Seu livro, aqui mencionado, embora se refira ao ensino da matemtica, apresenta inmeros trechos de histria da cincia, procurando tambm relacionar a origem de conceitos matemticos com a evoluo histrica. 02. Neste trabalho parto do pressuposto de que a grande maioria dos alunos do 2o grau tem um hipottico ingresso na universidade como motivao maior para freqentar esse nvel de ensino. Um estudo recente, realizado em Curitiba, mostrou que mesmo entre alunos da classe trabalhadora se verifica essa predominncia de opo pelo 2o grau: 40% dos alunos indagados apontaram o ingresso na universidade, 25% indicam o ingresso no mercado de trabalho e 35% disseram ter sido motivados para "...a melhoria das condies de vida, a aquisio de conhecimento e o prazer de estudar". Kuenzer, Acacia. Ensino de 2o grau - o trabalho como princpio educativo. Cortez Editora, So Paulo, 1988, pg. 101. 03. Rigden, J. S. Editorial. Am. J. Phys., 54 (12), December 1986,pg. 1067. Ainda nesse editorial lemos o seguinte: "O significado derivado da fsica informa o intelecto sobre as mais bsicas realizaes do universo; ela nos ensina sobre a massa-energia que toma a forma de um tomo, a protena, uma folha de carvalho, uma criana; ela forma a imaginao humana e encontra expresso na arte, literatura e msica; ela inspira hbitos de pensamento que estabelecem o tom, o carter da cultura humana." Num editorial um pouco, o mesmo autor destaca a pouca ateno dada aos aspectos culturais da fsica pelos fsicos contemporneos. Diz ele que, nas dcadas de 30 e 40, havia uma grande preocupao por parte dos fsicos com esses aspectos. E acrescenta:

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"Os fsicos daquelas dcadas entendiam sua disciplina como uma parte central e penetrante da cultura imediata e da cultura futura. A viso dos fsicos com relao ao lugar da fsica dentro da cultura contempornea , por comparao, mope". Am. J. Phys., 54 (3), March 1986, pg. 205. 04. Villani, Alberto. Contedo cientfico e problemtica educacional na formao do professor de cincias. Tese de livre-docncia. IFUSP, So Paulo, 1987, pg. 11. 05. Villani, A. Ref. 4, pgs. 14/17. 06. Freire, Paulo. 07. Uma proposta de ensino/aprendizagem de fsica a partir da fenomenologia do cotidiano foi desenvolvida pelo Grupo de Reelaborao do Ensino de Fsica (GREF) do Instituto de Fsica da USP. Trata-se de um conjunto de textos para professores do segundo grau abordando a mecnica (volume 1), a fsica trmica e a tica (volume 2) e o eletromagnetismo (volume 3), com passagens pela fsica contempornea. Alm da abordagem no-convencional da Fsica, que satisfaz parte da proposta de ensino "instrumental" no sentido freireano, o GREF apresenta uma estratgia e uma metodologia apropriadas ao novo contedo construdo a partir de eventos e equipamentos do cotidiano. 08. Segundo conceituao formulada por Snyders. Snyders, Georges. A alegria na escola. Editora Manole, So Paulo, 1988.

Captulo 2 PRESSUPOSTOS EDUCACIONAIS

"No se pode dizer que o ndio analfabeto porque vive numa cultura que no conhece as letras. Pr ser analfabeto preciso viver no meio das letras e no conhecer elas." Um campons (1) A Educao um processo social que surge na histria muito antes do aparecimento da escola. um processo que tende a promover a humanizao, a iniciao nas tarefas mais simples do cotidiano, atingindo a todas as esferas da atividade social, no trabalho, no lazer, na rua, no clube, no sindicato, como tambm na escola. A educao atravs da escola o alvo deste trabalho. Um dicionrio da lngua portuguesa, muito utilizado entre ns, assim apresenta o verbete :"educao" "Educao, s.f. Ao exercida pelas geraes adultas sobre as geraes jovens para adapt-las vida social; trabalho sistematizado, seletivo e orientador, pelo qual nos ajustamos vida, de acordo com as necessidades, ideais e propsitos dominantes;..." (2) No precisamos estar vivendo no pior dos mundos para contestar essa "definio" de educao, conformista e autoritria por excelncia. claro que poderemos ser tentados a afirmar que caso a organizao social reinante seja de nosso agrado tal definio no seria to problemtica assim. No penso dessa maneira. Acredito que a educao tem que ser um elemento social continuamente dinmico, crtico, criativo, libertador e mutvel mesmo no melhor dos mundos. As geraes adultas num mundo vertiginosamente cambiante no podem ter a pretenso de tutela sobre a orientao "adaptadora" das jovens geraes. antes a interao, a educao dialogal, que deve ser o princpio dominante.

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O que foi dito acima no significa que os educadores devam abdicar de sua tarefa de levar avante suas propostas educacionais, de cairmos num "laisser faire" inconseqente. Como nos lembra sempre Paulo Freire, o modo novo do educador realizar suas tarefas, nunca deixando de ser um educando, o que vem se constituir num desafio a ser enfrentado. No podemos continuar encarando o processo educacional como um interminvel depositar de idias inertes, desligadas da vida real, pobres em contedo, sobre as "cabeas desavisadas" de crianas e adolescentes (as "vasilhas" da educao bancria, como nos diz Paulo Freire) com a esperana de que sejam como ns quando crescerem. (3) O costume ingnuo ou intencional de aceitar como neutros os contedos educacionais, mesmo numa rea do conhecimento como a fsica, tem que ser abandonado. Embora devamos evitar cair no extremo oposto de negar, pura e simplesmente, o discurso educacional tradicional, temos que ter presente que "... o modo como uma particular sociedade seleciona, classifica, distribui, transmite e avalia o que se entende por conhecimento educacional reflete a estrutura de poder e os princpios de controle social."(4) Esta constatao de Bernstein est presente em toda e qualquer organizao social. O problema como implementar esse procedimento de seleo de forma a construir uma educao emancipadora e que, ao mesmo tempo, realmente indique o que vai passar por conhecimento a ser processado na escola de modo democrtico, competente, culturalmente significativo e comprometido com a transformao social que tenha por eixo os interesses e necessidades da maioria da populao. O educador comprometido com uma educao transformadora no pode esquecer que a escola no apenas uma "organizao-que-processa-pessoas", ela , tambm, uma "organizao-que-processa-conhecimento". necessrio, assim, problematizar o contedo do que vai ser abordado nas aulas, isto , o conhecimento tem que ser avaliado segundo uma anlise crtica.(5) Vrios tericos da educao e educadores, preocupados com a construo dessa educao emancipadora, procuraram equacionar esta problemtica educacional partindo das mais variadas premissas e objetivos. Os autores que menciono neste captulo esto entre aqueles que problematizaram o contedo curricular, alm das demais questes pertinentes viso da educao. Por exemplo, B. Bernstein tentou jogar um pouco de luz sobre estes problemas elaborando um pouco mais um procedimento que inicialmente foi estudado pelo socilogo e educador E. Durkheim quando introduziu os conceitos de "solidariedade mecnica" e "solidariedade orgnica". A solidariedade orgnica seria caracterstica de uma sociedade na qual os indivduos entram em contato, interagem socialmente, atravs de uma "interdependncia complexa de funes sociais especializadas". Assim, nesta sociedade a integrao social se realizaria principalmente atravs das diferenas entre os indivduos. Por outro lado, a solidariedade mecnica diz respeito sociedade na qual os indivduos se integram apenas na medida em que tenham algo em comum (valores, crenas, etc.) a compartilhar.(6) Bernstein sugere que, pelo menos ao nvel terico, a organizao escolar est passando por uma fase de mudana de nfase: da solidariedade mecnica para a solidariedade orgnica. Ele tenta explicitar essa tendncia afirmando que se est deixando de discriminar crianas pelo quociente de inteligncia (QI), pelo sexo, ou pela idade; o professor est deixando de ser um "doador-de-

solues" para passar a ser um "colocador-de-questes"; o currculo est tendendo a deixar de ter a disciplina (matria) como unidade para centrar-se num tpico multidisciplinar.(7) claro que Bernstein est apenas sugerindo que estas tendncias existam, no que elas j estejam dominando o cenrio educacional contemporneo. Essa tendncia de mudana significaria uma abertura para uma educao que colocasse menos nfase na especializao, uma educao na qual as disciplinas que compem o currculo no apresentassem suas fronteiras muito bem definidas e demarcadas; esta uma viso que se ope clssica idia de "formas de conhecimento" estratificadas. Seria, portanto, uma defesa do ensino de "cincia integrada"(8) ou melhor, do "ensino integrado de cincias", onde as vrias cincias deveriam contribuir para o estudo de um determinado tema que orientaria todo o trabalho escolar. D. Delizoicov(9) e J.A. Angotti(10) desenvolveram um trabalho, inspirados em Paulo Freire, que levou-os elaborao de "temas unificadores" em cincias, que nada mais so que uma explicitao dos "temas geradores" freireanos. Percebemos aqui, portanto, uma confluncia entre as idias de Bernstein e as do educador brasileiro. A crtica de Bernstein prtica educacional reside no seu descontentamento com a chamada "educao em profundidade" ou excessivamente especializada, que muito comum nas melhores escolas inglesas, se bem que a expanso da "escola compreensiva", ocorrida na dcada de 70, um dos exemplos de mudana de tendncia a que se refere o prprio Bernstein. Nesse sistema especializado de ensino, uma criana, de 10 ou 11 anos, que desejasse (?) ser um cientista natural ou um matemtico precisaria permanecer estudando, desde o incio da escola secundria, quase exclusivamente cincias naturais e disciplinas correlatas. Bernstein e M. Young sugerem que essa educao especializada cria um sistema monoltico de autoridade servindo a funes elitistas, onde o mistrio real do conhecimento deixado para ser estudado nos ltimos estgios da vida educacional, de tal forma que somente uns poucos privilegiados experimentaro o conhecimento real. Crticas semelhantes s acima esboadas deram origem a que se desenvolvessem novas perspectivas sociolgicas, tais como, a fenomenologia, interacionismo, entre outras. Estas novas perspectivas comearam a se desenvolver quase simultaneamente com os movimentos estudantis do final da dcada de 60. Socilogos comeavam ento a se preocupar com as implicaes da "sociologia do conhecimento" na educao. Este novo movimento, que no nada novo j que crticas dessa espcie vm desde meados do sculo passado (com Marx, por exemplo), comeou com a fenomenologia social que trata da "construo intersubjetiva da realidade"; assim, segundo esta interpretao, quando o homem est "olhando" para o m undo (objetivo), ele interpreta esse mundo atravs de um "sistema de interpretao" (ou sistema de referncia). Um dos axiomas centrais desta interpretao que toda relao entre homem e sociedade dialtica, isto , no apenas o homem est na sociedade, mas a sociedade est no homem. Ou, como afirmam Marx e Engels "... as imagens nebulosas no crebro dos homens so sublimaes necessrias do seu processo material de vida... desenvolvendo a sua produo material e o seu intercmbio material. Os homens mudam, com esta sua realidade efetiva, tambm o seu pensamento e os produtos do seu pensamento. A conscincia no determina a vida, mas a vida determina a conscincia." (11)

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Outros importantes tericos que tambm abordaram a questo da escola e a problemtica do conhecimento e da cultura que so nela processados, foram Louis Althusser e Antonio Gramsci. Vou tratar de suas idias mais extensamente devido ao impacto por elas provocado ao longo das duas ltimas dcadas. Althusser(12) , ao tratar da reproduo do modo capitalista de produo, seguindo a conceituaro e metodologia desenvolvidas por Marx, destaca a reproduo da fora de trabalho, e dentro desta o desenvolvimento de qualificaes diversificadas, que no seriam obtidas atravs da "aprendizagem na prpria produo" mas, principalmente, atravs do "sistema educacional capitalista". Nele as crianas comeariam a ser introduzidas no know-how tcnico como tambm nas "regras de bom comportamento", isto , "nas regras estabelecidas pela dominao de classe". Portanto, manifestam-se duas reprodues simultneas: das habilidades tcnicas e da "submisso ideologia dominante". E, para isso, a escola, como tambm outras instituies do Estado como a Igreja e o Exrcito, seria um instrumento bsico dessa reproduo. Assim, Althusser parte para discutir a estrutura da sociedade em termos de infra-estrutura (base econmica) a superestrutura (instncias poltica e ideolgica), e a funo primordialmente repressiva do aparato de Estado, isto , "a definio do Estado como estado de classe". Ele distingue o "poder de Estado" do "aparato de Estado" e, neste ltimo elemento, ele fala de uma outra "realidade" que vai representar pelo conceito de "aparato ideolgico de Estado" (AIE), distinto, mas, agindo conjuntamente com o "aparato repressivo de Estado" (o Governo, a Administrao, o Exrcito, a Polcia, etc.). Althusser lista alguns AIE: as diferentes igrejas, o sistema educacional, a famlia, etc. Ele afirma que exatamente pelo exerccio do poder de Estado por intermdio dos aparatos (repressivo e ideolgico) de Estado que se assegura a "reproduo das relaes de produo". (13) Mais adiante, Althusser afirma que nas sociedades capitalistas maduras o AIE dominante o "aparato ideolgico educacional", que substitui o a ntigo AIE dominante do perodo prcapitalista, a Igreja. Eis um outro trecho contundente de seu trabalho: "A escola recebe as crianas de todas as classes sociais, desde o jardim de infncia, e ento por vrios anos - os anos em que a criana mais "vulnervel", comprimida entre o aparato de Estado familiar e o aparato de Estado escolar - lhes inculca "saberes prticos" tomados da ideologia dominante (o idioma materno, a aritmtica, a histria, as cincias, a literatura) ou simplesmente a ideologia dominante em estado puro (a moral, a instruo cvica, a filosofia)..." (14) Assim, cada grupo ejetado do sistema escolar acaba sendo provido com a ideologia conveniente ao papel que deve cumprir na sociedade de classe, seja ele o "papel de explorado", o "papel de agente de explorao", o "agente de represso" ou o "papel de idelogo profissional". E mais: os mecanismos que produzem esses resultados estariam encobertos e dissimulados pela "... ideologia que apresenta a escola como meio neutro, desprovido de ideologia..." (14) Althusser em toda sua argumentao entende que os sujeitos que compem o sistema escolar, professores e alunos, e os grupos sociais que dele se servem, pouco podem fazer para mudar a situao reinante. Esse seu posicionamento fica claro nesta citao de outro trecho de seu ensaio:

"Peo perdo aos professores que, em condies espantosas, tratam de voltar contra a ideologia, contra o sistema e contra as prticas nas quais esto imersos, as poucas armas que podem achar na histria e no saber que "ensinam". So verdadeiros heris. Mas eles so raros, e a maioria nem sequer suspeita do "trabalho" que o sistema os obriga a fazer... (eles) contribuem efetivamente - com sua dedicao - para manter e desenvolver uma representao ideolgica da Escola que a converte em algo to "natural", til e indispensvel e, inclusive, benfica na opinio de nossos contemporneos..." (15) , sem dvida, uma anlise por demais amarga e que, aparentemente, no deixa muita sada para quem milita na escola.(16) Retornarei a ela mais adiante. Antonio Gramsci(17), que tambm estudou o papel do Estado nas sociedades capitalistas contemporneas, chegou (nas dcadas de 20 e 30) a algumas concluses a que Althusser retornaria mais tarde. Gramsci entendia que o Estado no podia ser reduzido apenas ao aparato repressivo, mas, deveria incluir algumas instituies, que constituam a "sociedade civil": a Igreja, a Escola, os sindicatos, etc. No que respeita a escola, Gramsci atacava o sistema de duas escolas: a profissional (destinada s classes instrumentais) e a acadmica (destinada s classes dominantes e aos intelectuais). Propunha a "escola nica inicial", com uma ampla base de cultura geral, humanista e formativa que procuraria dosar eqitativamente o trabalho manual com o trabalho intelectual. Gramsci descia a detalhes ao descrever essa escola unitria: ela deve ser pblica, deve ter uma baixa relao aluno-professor, deve ter um prdio especializado, "... com vida coletiva diurna e noturna, liberta das atuais formas de disciplina hipcrita e mecnica." (18) Gramsci dizia ainda que essa escola deveria ser "ativa", isto , uma escola que, embora passasse por certo grau de conformismo dinmico, deveria ter como meta transformar-se numa escola criadora, numa escola que levasse a uma maturidade intelectual que possibilitasse um rompimento com o isolamento que a escola tradicional apresenta com relao vida real. Gramsci tinha em mente, enfim, uma escola que propiciasse "... o incio de novas relaes entre trabalho intelectual e trabalho industrial no apenas na escola, mas em toda a vida social." (19) Ele introduz tambm o conceito de "princpio educativo", isto , "... o conceito e o fato do trabalho (da atividade terico-prtica) o princpio educativo imanente escola elementar..." (20) Ele criticava tambm a diviso exagerada entre instruo e educao, adiantando que s se pode falar em educao recheada de um contedo instrucional concreto, que exija uma participao ativa do aluno e que esteja intrinsecamente ligada vida dos alunos. Gramsci atacava tambm a concepo de escola profissional, afirmando que "... este novo tipo de escola aparece e louvada como democrtica, quando, na realidade, no s destinada a perpetuar as diferenas sociais, como ainda a cristaliz-las em formas chinesas." (21) Ele argumentava tambm que, ao lado do conjunto instrucional propriamente dito, esta escola ativa deveria formar hbitos e atitudes caractersticas do trabalho intelectual e que so estranhos queles que esto acostumados apenas aos do trabalho manual. Desta forma, ao mesmo tempo em que deixava claro seu ataque e crtica concepo de educao e, portanto,

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de escola, inerente estrutura da sociedade capitalista, Gramsci, ao contrrio de Althusser, acreditava ser possvel, e mesmo necessrio, um trabalho pedaggico nessa escola visando a transformao do homem e da estrutura social que o domina e constrange. uma anlise relativamente otimista quando comparada com aquela apresentada por Althusser. Para Gramsci a escola, e portanto, a educao, tinha um importante papel a desempenhar na transformao social. E da, possvel fazer uma escolha entre os referenciais tericos de Althusser e Gramsci ? Creio que ficou claro nos pargrafos precedentes que, para uma proposta educacional crtica visando a transformao da estrutura social dominante, visando a um educao emancipadora e, portanto, do interesse das classes majoritrias oprimidas, a resposta pergunta acima seria: Gramsci. Tentarei justificar essa resposta, apelando tambm para a anlise realizada por alguns educadores e pesquisadores militantes de uma educao radical. Vou retomar as idias de Althusser por meio do artigo crtico de Erben e Gleeson. Esses autores afirmam que, ao mesmo tempo em que Althusser bem sucedido na descrio da escola como agente preferencial de reproduo cultural (reproduo da produo e dos processos ideolgicos), ele minimiza ou mesmo anula o papel que professores e alunos poderiam ter dentro dessa instituio, no sentido de reverter o vetor dominante ou pelo menos enfraquecer sua intensidade. Desta forma, estaria dando a entender que qualquer mudana radical no interior da escola estaria fora do referencial de mestres e alunos. No concordando com essa posio, Erben e Gleeson deixam claro que "... Althusser desenha um modelo de homem como se este fosse uma marionete ou um idiota cultural completamente constrangido pelos agentes ou mecanismos do sistema... Althusser falha ao no considerar adequadamente as ambigidades na produo, que influenciam as habilidades dos homens de tomar decises em face da intimidao, medo e violncia..." (22) Assim, para estes autores, Althusser parece no perceber a natureza dinmica em que esto situados os personagens que compem a cena escolar. E, quase ao final de seu artigo, apontam para o fato de que ele apenas descreve o que "j se sabe" sobre a escola como aparato ideolgico, mas acrescenta muito pouco sobre como agir para colocar em movimento as condies que permitiriam a ocorrncia de mudanas educacionais coerentes com a transformao social. A interpretao dominante, entre esses pesquisadores, sobre os escritos de Althusser relacionados com a posio da escola face ao Estado, parece-me semelhante exposta no pargrafo anterior. M. Young e G. Whitty chegam a lamentar que esse tipo de anlise proposta por Althusser "... estimule uma forma infeliz de quietismo entre os professores socialistas que deveriam aguardar a situao "correta" para a luta revolucionria..." (23) No Brasil tambm encontramos severos crticos da anlise desenvolvida por Louis Althusser. Por exemplo, Dermeval Saviani, num estudo recente, classifica as teorias educacionais em dois grupos: "teorias no crticas", onde ele situa as pedagogias "tradicional", "nova" e "tecnicista" e "teorias crtico-reprodutivistas", no qual ele situa a "teoria da escola enquanto aparelho ideolgico de Estado" de Althusser. Saviani condena

"... tanto o poder ilusrio (que caracteriza as teorias no crticas) como a impotncia (decorrente das teorias crtico-reprodutivistas)." (24) Em outro estudo dedicado anlise das diversas tendncias pedaggicas em que estiveram envolvidos os educadores brasileiros das duas ltimas dcadas, Jos Carlos Libneo argumenta que "Ao lado de contribuies altamente positivas, como a tomada de conscincia da educao como ato poltico e da acentuao dos determinantes estruturais da escola, esse movimento difundiu um clima pessimista, colocando as relaes escola-sociedade e a prpria ao pedaggica num beco sem sada, pelo menos dentro das condies existentes. Por um perodo razovel de tempo, os educadores escolares permaneceram perplexos frente ao que se configurava como uma atividade profissional no vazio, j que qualquer atuao a nvel de escola pblica significava uma contribuio para o fortalecimento do poder das classes dominantes." (25) Esses e outros estudos de vrios educadores brasileiros apontam, portanto, para uma avaliao negativa dos chamados crtico-reprodutivistas e buscam, segundo as palavras de Acacia Kuenzer, "... chegar a uma formulao terica da educao que superasse o crticoreprodutivismo." (26) Essa viso, imputada a Althusser, , s vezes, comparada viso apresentada por Ivan Illich; ambos apontam a escola como uma instituio privilegiada para servir como instrumento de controle social. Mas a comparao fica apenas nesse aspecto, j que enquanto Althusser coloca a escola como um aparato que reflete a situao dialtica de um determinado estgio da sociedade, Illich identifica na prpria escola a situao problemtica, propondo, portanto, o simplista e individualista remdio da desescolarizao como soluo, deixando a ntida impresso de uma anlise terica idealista no-dialtica e a-histrica. H. Gintis descreve o trabalho de Illich "... como diversionista com relao s imensamente complexas tarefas polticas, organizacionais, intelectuais e pessoais de reconstruo revolucionria nas prximas dcadas."(27) Alis, embora reconhea em Illich qualidades de um intelectual que tem apontado os vcios e autoritarismos de diferentes instituies sociais contemporneas (educao e medicina, por exemplo), a sua tese da "desescolarizao da sociedade" est fora de lugar nos pases subdesenvolvidos que tm grande parte de sua populao alijada de qualquer tipo de escolarizao. A no ser que interpretemos sua proposta de "desescolarizao" como metafrica, como crtica contundente forma tradicional dominante do cenrio escolar.(28) claro que Illich tambm quer significar com sua proposta que a escola no o nico, nem o melhor lugar, para a educao das crianas e adultos. Vai isso como um atenuante crtica acima esboada. Apesar de pouco acrescentar ao aspecto ideolgico, j formulado por Marx mais de um sculo antes dele ter apresentado sua descrio, acredito que Althusser avana nesse seu ensaio uma compreenso mais aprofundada das relaes entre infra-estrutura e superestrutura, e nesta ltima o papel desempenhado pelas instncias poltica e ideolgica que desenvolvem funes complementares. Ele aprofunda tambm o papel dos aparatos de Estado e, algo no tratado explicitamente por Marx e Engels, o papel da escola como aparato ideolgico dominante (se bem

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que na "Ideologia Alem essa funo pode ser inferida indiretamente). Assim, com esse seu ensaio Althusser delineia uma estrutura terica mais rica que a esboada por Gramsci, j que desce a detalhes no atingidos por este. No entanto, a riqueza do pensamento de Gramsci, sua postura dinmica face situao de educadores e educandos numa sociedade em busca de transformao, quando comparada com a de Althusser d, s vezes, a impresso de que Gramsci pertence s dcadas de 60 e 70, enquanto Althusser pertenceria s dcadas de 20 e 30. necessrio aqui, em funo da abordagem estabelecida nos pargrafos anteriores, esclarecer que a crtica anlise althusseriana acima esboada est muito distante daquelas que, como salienta Moacir Gadotti, chegam a afirmar que a viso "crtico-reprodutivista" de Althusser e outros pensadores marxistas franceses (29) teria sido adotada "oficialmente" por governos latino-americanos recentes. Isto porque " pelo menos estranho que os governos reacionrios da Amrica Latina tenham adotado a crtica marxista. Isso s pode ser aceito na medida em que se esvazia o pensamento desses socilogos, dissociando sua crtica escola capitalista de sua proposta de uma escola socialista." (30) Com o intuito de enfatizar o papel que a escola, provida de uma pedagogia comprometida com a transformao social, pode desempenhar em nossa sociedade, no necessrio, como fazem alguns dos autores mencionados, demolir, muitas vezes injustamente e erroneamente, teorias ou anlises de pensadores que, apesar de tudo, tambm ajudam no desnudamento do sistema educacional dominante, como o caso de Althusser e Illich, por exemplo. No meu entender, Althusser e Gramsci exorcizam de vez a viso um tanto quanto idealista sobre o papel da educao e de seus contedos acrticos; seus elementos de anlise do uma viso mais madura do papel da escola de forma complementar e ainda atacam, definitivamente, portanto, a idia ingnua de que seria possvel transformar o sistema educacional a partir exclusivamente do seu interior, tratando-o como uma entidade autnoma face aos poderes repressivo e ideolgico do estado. Por outro lado, uma interpretao pessimista, ou equivocada, de Althusser, deixa lugar para um imobilismo fatal para os educadores engajados na transformao social. J, com base na proposta de Gramsci, so abertas perspectivas de atuao para o educador, vitais na transformao da sociedade, sem perder de vista as advertncias de Althusser. Apesar da aparncia, para a grande maioria da populao, de que o sistema educacional (brasileiro, por exemplo) algo que tem um desenvolvimento "natural", e que o Estado estaria pouco ligando para o que nele acontece, de fato, a escola, em todos os nveis, tem recebido uma ateno muito especial do Estado. No poucas vezes este faz uso do seu brao repressivo para fazer retornar ao "caminho correto" a orientao educacional que, por vezes, por ao clara dos agentes educacionais envolvidos (alunos e professores), teima em percorrer vias no previstas ou contra os interesses das classes dominantes. No caso brasileiro basta lembrar o ocorrido nos ltimos anos de vigncia do Estado extremamente autoritrio que usou e abusou de todos os aparatos disponveis, dando-se ao luxo de inventar alguns no previstos de forma explcita pelos tericos, como o "aparato corruptor de Estado". Assim, no sistema educacional brasileiro contemporneo, as vrias mudanas propostas por esse Estado, representadas pela legislao educacional ps-64, tanto no tocante escola de 1o e de 2o grau quanto escola superior, tm

conotaes claramente polticas e de dominao e uma flagrante ausncia de princpios pedaggicos que pudessem receber o carimbo de "neutros". Assim que a Reforma Universitria, representada pela lei 5540/1968, e dispositivos regulamentares adicionais, acaba incorporando, como "medidas educacionais", vrios instrumentos legais que partiram de organismos que estavam diretamente envolvidos com a represso poltica, desencadeada no pas contra os movimentos estudantis e de professores. A cassao de direitos de inmeros professores universitrios, a aplicao do decreto 477, a nomeao de reitores confiveis ao Estado, o boicote financeiro s atividades cientficas criadoras, particularmente no setor de cincias humanas, entre outros, servem como exemplo da interferncia direta do Estado nos "negcios da educao". No setor de 1o e 2o graus, foram vrias as experincias educacionais interrompidas manu militari como, por exemplo, o caso dos Ginsios Vocacionais de So Paulo. No aspecto mais ideolgico e sutil fica-se, como exemplo, com a iniciativa de instituio de cursos de curta durao para formao de professores (a chamada licenciatura curta) e a introduo de um "professor polivalente" formado nessas "faculdades" que aceitaram essas licenciaturas. Complementando essas medidas, sugeria-se a introduo da "Cincia Integrada" e dos "Estudos Sociais"(8); o professor Duglas Monteiro denominava esse estranho pacote uma "verdadeira proposta de emburrecimento nacional". (31) De um lado, estes breves exemplos podem servir para invalidar a tese de que todo trabalho crtico e de conscientizao realizado no mbito escolar intil, j que os professores que tentam desafiar o sistema seriam impotentes para conseguir qualquer coisa de mais concreto. Por outro lado, esses mesmos exemplos podem ser utilizados para corroborar as interpretaes imobilistas, se considerarmos que todas essas violncias cometidas e as resistncias a elas interpostas significam pouco ganho palpvel no sentido daquelas transformaes sociais almejadas. neste ponto, repetindo mais uma vez, que a anlise de Gramsci a alternativa estimuladora de aes educacionais transformadoras, em oposio postura conformista decorrente de uma interpretao "quietista" de Althusser. G. Mardle apresenta um estudo que vai nesta direo ao indicar que a "... mudana mais qu