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JOANA THIESEN
MAXIMILIANO LOIOLA PONTE DE SOUZA
TRANSTORNOS MENTAIS GRAVES E PERSISTENTES
São Luís 2016
APRESENTAÇÃO
Prezado aluno,
Este módulo apresenta os transtornos mentais graves e persistentes
(TMGP), em sua maioria, caracterizados por sua gravidade clínica associada à
duração da doença, grau de sofrimento emocional, nível de incapacidade
laborativa, prejuízos nas relações interpessoais e dinâmica familiar. Esta foi uma
denominação adotada para evitar o caráter estigmatizante que adquiriram os
termos crônico e cronicidade.
Dessa forma, neste estudo a esquizofrenia será tomada como transtorno
prototípico entre os transtornos mentais graves e persistentes que cursam com
psicose. Será em contraponto a este transtorno que serão abordados outros
tipos de transtornos classificados como graves e persistentes.
Inicialmente abordaremos os transtornos que cursam com psicose, em
geral, aguda e não são considerados TMGP.
Esperamos que o conteúdo deste módulo contribua para sua prática de
trabalho e melhor assistência aos usuários dos serviços de saúde.
Bom trabalho!
OBJETIVO:
Descrever os transtornos mentais graves e persistentes mais frequentes
na atenção primária e o manejo clínico pelos profissionais de saúde.
1 TRANSTORNOS MENTAIS GRAVES E PERSISTENTES
CASO CLINICO - parte 1
O ACS Alexandre chegou ansioso à unidade de Saúde da Família e logo
procurou o Dr. João, o médico de sua equipe. Relatou que uma família de sua
área estava precisando de ajuda com urgência. Bernardo, o caçula da família,
de 19 anos, há alguns dias vinha apresentando comportamento estranho e
diferente do seu modo habitual de agir. Ele não estava mais saindo de casa,
alegando que pessoas do quartel, onde começou a servir recentemente como
soldado, estariam organizando um plano contra ele. Em casa, andava de um
lado para o outro sem parar e parecia estar com muito medo. Dizia que estava
sendo filmado por câmeras que os militares teriam instalado em sua casa,
inclusive Bernardo afirmava que podia ouvir as vozes deles falando a seu
respeito. Estava dormindo muito pouco e às vezes parecia falar sozinho. Ontem
começou a comentar sobre um plano de fuga para fora do país, o que estava
deixando seu pai muito preocupado, sem saber o que fazer. Já tinham tentado
esquecer essas ideias, mas sem sucesso.
O ACS Alexandre trouxe um relato bastante detalhado de um conjunto de
alterações comportamentais apresentadas por Bernardo. O Dr. João identifica
imediatamente a necessidade de avaliar o quanto antes o paciente. Entretanto,
a partir do relato do ACS, pode-se iniciar um exercício diagnóstico preliminar.
Para tanto, ele precisa identificar os principais sinais e sintomas presentes no
relato e agrupá-los em uma síndrome, levando em conta inclusive o tempo de
evolução do quadro.
QUESTÃO NORTEADORA 1:
Considerando esses aspectos, quais são os principais sinais e sintomas
presentes no relato de Alexandre e como eles podem ser sindromicamente
agrupados?
Ao observarmos o relato do ACS Alexandre sobre o que Bernardo estava
apresentando, podemos verificar a existência de dois principais grupos de
sintomas.
O primeiro grupo está relacionado à crença ou pensamento de Bernardo
sobre acontecimentos irreais.
Por exemplo, Bernardo acredita que há um plano contra ele, bem como
acredita que câmeras estão lhe filmando. As pessoas ao seu redor, como
familiares e colegas de quartel, não acreditam que isso esteja acontecendo. E
por mais que haja tentativa de convencê-lo sobre não está sendo perseguido ou
filmado, Bernardo se mantém firme nessas ideias.
O nome técnico que se dá para esses pensamentos é delírio, sendo
considerado, portanto, um distúrbio do pensamento.
O delírio é uma falsa crença baseada em uma inferência incorreta acerca
da realidade externa que é firmemente mantida, não obstante o que quase todo
o mundo acredita e apesar de provas incontestáveis e óbvias em contrário. A
crença não é habitualmente aceita por outros membros da cultura ou subcultura
da pessoa (isto é, ela não é parte da fé religiosa) (AMERICAN PSYCHIATRIC
ASSOCIATION, 2014, p. 820).
RESPOSTA:
Bernardo, por outro lado, refere ouvir vozes que falam com ele, na
ausência de qualquer estímulo externo. Outras pessoas não ouvem essas vozes.
A certeza da real existência de vozes é de tal ordem que ele inclusive interage
com elas. Os que o observam sem saber da “existência” dessas vozes, pensam
simplesmente que ele está falando sozinho. O termo que utilizamos para
descrever esse tipo de sintoma é alucinação. As alucinações são consideradas,
portanto, como distúrbios da percepção.
A alucinação representa uma experiência semelhante a uma percepção
que apresenta clareza e o impacto de uma verdadeira percepção, mas que
ocorre sem estimulação externa do órgão sensorial relevante. As alucinações
devem ser diferenciadas das ILUSÕES, nas quais um estímulo externo real é
percebido erroneamente ou não interpretado (AMERICAN PSYCHIATRIC
ASSOCIATION, 2014, p. 818).
Os delírios (distúrbio do pensamento) e as alucinações (distúrbio da
percepção), de modo usual, estão associados a outras alterações de
comportamento. No caso de Bernardo, podemos observar a agitação e o medo.
Em outras situações, pode se associar com uma menor expressão de emoções,
desorganização de comportamento etc. Esses sintomas em conjunto
caracterizam o que se chama sindromicamente de psicose.
A psicose é caracterizada por distorções do pensamento e da percepção, bem
como por emoções inadequadas ou a de expressão reduzida. Pode estar presente
também um discurso incoerente ou irrelevante. Alucinações (ouvir vozes ou ver
coisas que não existem), delírios (crenças falsas irredutíveis e idiossincrásicas) ou
desconfianças excessivas ou injustificadas também podem ocorrer. Na psicose,
podem-se observar graves anormalidades do comportamento, que pode estar
Em termos clínicos, é útil caracterizar se a psicose é aguda ou crônica.
Psicose crônica
Quando os sintomas persistem por mais de três meses.
Psicose aguda
Caracteriza-se como aguda nas seguintes situações:
a) quando é o primeiro episódio;
b) quando é uma recaída de um quadro anteriormente
controlado;
c) quando há piora do quadro, a partir de um nível
sintomatológico prévio estabilizado.
E no caso de Bernardo, como você caracterizaria o quadro psicótico
apresentado?
Considerando o relato do ACS Alexandre e por se tratar do primeiro
episódio, pode-se preliminarmente levantar a hipótese sindrômica que Bernardo
estava apresentando um quadro de psicose aguda.
A presença de sintomas psicóticos é um indicativo que estamos diante
de uma condição clínica grave, que demanda intervenções mais
imediatas.
QUESTÃO NORTEADORA 2:
Um aspecto importante a ser considerado é a existência de diferentes
condições clínicas que cursam com sintomas psicóticos e, por isso, demandam
estratégias distintas de cuidado. Quais seriam as principais condições clínicas
que cursam com psicose de especial interesse para os profissionais da atenção
básica?
desorganizado, agitado, excitado, hiperativo ou inativo. As pessoas com psicose
são altamente expostas à violação de seus direitos humanos (OMS, 2010, p. 17).
Entre os transtornos mentais que cursam com psicose, a esquizofrenia é
uma das mais prevalentes, acometendo cerca de 1% da população,
demandando usualmente tratamento farmacológico por toda a vida. A
esquizofrenia em geral inicia entre 15 e 25 anos nos homens e entre 25 e 35
anos nas mulheres. Muito raramente esse quadro inicia-se após os 45 anos
(ABREU et al., 2013).
Na esquizofrenia, os sintomas psicóticos estão presentes por um tempo
superior a um mês, afetando de modo significativo a vida do sujeito (OMS, 1993).
A esquizofrenia pode evoluir com importantes e, em certos casos,
irreversíveis prejuízos na funcionalidade social. As condições clínicas que
cursam com esses prejuízos são operacionalmente classificadas como
transtornos mentais graves e persistentes (TMGP) (CHIAVERINI, 2011).
a) Transtornos psicóticos agudos e transitórios
Estes quadros distinguem-se da esquizofrenia, sobretudo pela duração
mais curta dos sintomas psicóticos, que podem durar horas ou dias. Muito
comumente estão associados a fatores desencadeantes identificáveis
temporalmente, como perdas, fases críticas da vida, exposição a situações
limites, por exemplo. Por definição devem durar menos de um mês e tem,
portanto, melhor prognóstico do que a esquizofrenia. De modo semelhante à
esquizofrenia, para pacientes serem diagnosticados com esse quadro, deve-se
considerar os mesmos diagnósticos diferenciais (OMS, 1993).
RESPOSTA:
Existe uma série de substâncias, tanto de abuso como não, que podem
se associar ao desenvolvimento de sintomas psicóticos, conforme pode ser
visualizado no quadro abaixo:
Quadro 1 - Substâncias que podem ser associadas ao desenvolvimento de sintomas psicóticos.
Categoria Substância
Drogas de abuso
Álcool
Anfetaminas
Cannabis
Alucinógenos
Inalantes
Opioides
Fenodidina
Sedativos hipnóticos
Outras
Medicações
Anestésicos
Analgésicos
Agentes antiasmáticos
Anticonvulsivantes
Anti-histamínicos
Medicações anti-hipertensivas e
cardiovasculares
Antimicrobianos
Medicações antiparkinsonianas
Corticosteroides
Medicações gastrintestinais
Relaxantes musculares
Agentes imunossupressões
Lítio e medicações psicotrópicas com
propriedades anticoagulantes
Toxinas
Anticolinesterase
Inseticidas organofosforados
Monóxido de carbono
Dióxido de carbono
Substâncias voláteis, como
combustíveis e solventes orgânicos
Fonte: Adaptado de: AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Diretrizes para o
tratamento de transtornos psiquiátricos: compêndio. Artmed, 2009. p.64.
A psicose pode estar associada a:
1) Intoxicação por substância
2) Transtorno psicótico secundário ao uso da substância
3) Abstinência
Em razão da prevalência e importância clínica destaca-se aqui o quadro
de síndrome de abstinência do álcool. Deve-se suspeitar desse quadro
principalmente nas seguintes situações clínicas.
IMPORTANTE:
Quando os sintomas psicóticos ocorrem juntamente com confusão
mental, denomina-se delirium tremens. Este quadro, em geral, requer cuidados
em ambiente hospitalar, com prescrição de benzodiazepínicos e reposição
vitamínica. As formas graves, quando não tratadas podem evoluir para o óbito.
b) Delirium
A existência desta sintomatologia indica a necessidade urgente de
avaliação clínica especializada, em nível secundário ou terciário de urgência,
Histórico de uso pesado de álcool, com interrupção ou diminuição importante
recentemente (dias).
Sintomas psíquicos habitualmente precedidos de tremores, sudorese,
aumento da pressão arterial e frequência cardíaca.
Alucinações visuais vívidas (muito comum ver ou sentir insetos andando pelo
corpo).
uma vez que pode apontar para uma importante descompensação, que inclusive
pode pôr em risco a vida do paciente.
Deve-se suspeitar de delirium: Paciente idoso.
Psicose aguda.
Sintomas flutuantes ao longo do dia, em geral com piora à noite.
Alucinações visuais: as alucinações na esquizofrenia mais comumente são
auditivas.
Desorientação: com exceção dos quadros de demência avançada, os quadros
psiquiátricos não cursam com alteração nesta área.
Rebaixamento do nível de consciência: quadros psiquiátricos primários
usualmente não cursam com sonolência.
c) Afecções do sistema nervoso central, como tumores ou outros
processos expansivos também podem cursar com psicose
Deve-se suspeitar desse quadro os casos nos quais se observa indícios
clínicos de aumento da pressão intracraniana (cefaleia, náuseas, vômitos,
tontura), convulsões, dificuldades de movimentos e/ou de sensibilidade.
d) Demência
Quadro caraterizado pela perda de memória, desorientação (sintomas
não presentes na esquizofrenia) e limitações executivas progressivas podem
cursar com sintomas psicóticos (OMS, 1993). As funções executivas referem-se,
de forma geral, à capacidade do sujeito de engajar- se em comportamentos
orientados a objetivos, ou seja, à realização de ações voluntárias,
independentes, autônomas, auto-organizadas e orientadas para metas
específicas.
PARA SABER MAIS!
Para saber mais sobre funções executivas, leia o artigo:
GODOY, Silvia. Concepções teóricas acerca das funções executivas e das altas habilidades. Cadernos de Pós-Graduação em Distúrbios do Desenvolvimento, São Paulo, v. 10, n. 1, p. 76-85, 2010. Disponível em: <http://www.mackenzie.br/fileadmin/Graduacao/CCBS/Pos-Graduacao/Docs/Cadernos/caderno10/62118_8.pdf>.
Quando se deve suspeitar de demência?
Paciente idoso.
Sintomas psicóticos precedidos por dificuldades na memória recente (não
lembra o que comeu na refeição anterior) preservando em geral a memória mais
remota (lembra-se de fatos de sua infância).
Psicose de início insidioso, sem rebaixamento do nível de consciência.
A idade do início dos sintomas constitui-se em um aspecto importante
para o diagnóstico diferencial entre demência e esquizofrenia, visto que
enquanto a primeira tende a iniciar-se em idades mais avançadas, a segunda
inicia-se, como visto anteriormente, mais comumente no final da adolescência
ou início da vida adulta.
É preciso lembrar que esta não pode ser a única estratégia para
diferenciação dos quadros, visto que existem quadros demenciais precoces,
como os secundários à infecção pelo HIV.
As condições acima apresentadas, com exceção da esquizofrenia,
embora cursem com o quadro de psicose NÃO fazem parte dos chamados
transtornos mentais graves e persistentes. Além da esquizofrenia, outras
condições que fazem parte desse grupo de transtornos são:
Transtornos do humor.
Transtornos do espectro impulsivo-compulsivo.
Transtornos de personalidade (CHIAVERINNI, 2011).
Os transtornos do humor que serão abordados aqui são:
Depressão grave, com sintomas psicóticos.
Transtorno afetivo bipolar.
Tais condições são de especial interesse para esta discussão, visto que
podem cursar com psicose. Quando os sintomas psicóticos surgem no contexto
de um transtorno afetivo não se faz diagnóstico de esquizofrenia, inclusive
porque a abordagem terapêutica farmacológica é diferente, como se abordará
nas próximas perguntas.
A depressão é caracterizada por um período mínimo de duas semanas
com a presença de tristeza constante, desânimo e perda de interesse ou prazer,
associada a um conjunto de outros sintomas como redução da capacidade de
concentração, redução da autoestima, ideias de culpa etc., afetando de forma
substantiva a vida da pessoa, em diferentes áreas (OMS, 1993). (Para rever
sobre esse assunto, acesse o Módulo 4 - Clínica da Saúde Mental na APS).
Chama-se de transtorno depressivo recorrente quando o paciente
apresenta dois ou mais episódios isolados desses sintomas. Em certos casos a
sintomatologia se expressa com tal gravidade, que o paciente pode apresentar
sintomas psicóticos. Em geral, os sintomas psicóticos são precedidos dos
sintomas afetivos, e muitas vezes têm um conteúdo depressivo. O paciente pode
ouvir vozes que dizem que ele não presta, que ninguém gosta dele, que deveria
se matar, bem como pode apresentar delírios de que já está morto, ou que
perdeu os bens que possuía. Tais condições são especialmente graves por
causa do elevado risco de suicídio.
O transtorno afetivo bipolar é caracterizado por episódios nos quais o
humor e os níveis de atividade de uma pessoa ficam gravemente alternados.
Esta alteração algumas vezes consiste, no que se chama de mania, quando há
uma exaltação do humor, com um aumento da energia e da atividade (OMS,
1993). Em outras vezes o paciente pode apresentar quadros depressivos, como
descrito acima.
Entretanto, quando o paciente apresenta apenas episódios de mania,
também é considerado portador de transtorno afetivo bipolar.
Nas fases maníacas, os pacientes podem se apresentar com roupas
excessivamente coloridas ou maquiagem exagerada (considerando seu modo
habitual), falar rápido, mudando de um assunto para o outro, aparentar uma
alegria muito grande, ou irritação, pode haver relato de que o paciente está
dormindo muito pouco e apesar disso não se sente cansado.
O paciente pode ainda se envolver em atividade que envolve prazer de
modo inconsequente, como compras, atividade sexual, uso de substâncias. Em
quadros mais graves pode apresentar sintomas francamente psicóticos, cujos
conteúdos são usualmente, embora não necessariamente, congruentes com o
humor.
Pode apresentar delírios de que é uma pessoa muito importante, rica ou
com a missão de salvar a humanidade. Pode ainda apresentar alucinações
auditivas que lhe dizem que é poderoso, por exemplo.
O paciente pode se apresentar ainda fora das fases maníacas e
depressivas, no estado de normalidade afetiva, que chamamos de eutimia,
podendo não apresentar quaisquer sintomas psiquiátricos. Destaca-se que, nas
fases maníacas, os pacientes encontram-se especialmente vulneráveis a
agravos relacionados à atividade sexual desprotegida e a violências.
2 ABORDAGENS TERAPÊUTICAS
CASO CLÍNICO - PARTE 2
Dr. João solicitou que o ACS avisasse a família que faria uma visita
domiciliar (VD) no fim do dia para avaliar Bernardo. Soube que o psiquiatra do
Centro de Apoio Psicossocial (CAPS), que atende duas vezes por semana na
cidade, estava de férias e só retornaria em três semanas.
Na visita, Dr. João e Alexandre foram recebidos pelo pai de Bernardo e
sua irmã Ana. Bernardo estava trancado em seu quarto, mesmo assim era
possível escutá-lo falando sozinho. Tão logo Dr. João chegou ao local, os
familiares falaram longamente sobre suas preocupações em relação a Bernardo,
e Dr. João os ouviu atentamente e disse que estava lá para tentar ajudá-los e
que entendia as preocupações.
Fez algumas perguntas mais específicas em relação ao quadro de
Bernardo e basicamente confirmou as informações previamente coletadas por
Alexandre, e pôde verificar também que Bernardo não fazia uso de álcool ou
outras drogas, não tinha doenças clínicas conhecidas, e afora o início do serviço
militar não teria passado por situações excepcionais recentemente.
Soube também que antes do início dos sintomas psicóticos não
apresentou sintomas maníacos ou depressivos, embora estivesse mais isolado
e menos comunicativo. Dr. João perguntou se Bernardo estava agressivo ou
colocando-se em risco de algum modo. Exceto pelo plano de “fuga”, o pai negou
que tais situações estivessem ocorrendo. Com um pouco mais de insistência da
família, Bernardo aceitou conversar com o médico, e o ACS Dr. João ficou na
porta do quarto de Bernardo, apresentou-se e disse que gostaria de saber se
haveria algo que poderia fazer para ajudá-lo. Bernardo, que se mostrava
desconfiado, pouco falou. Durante a breve conversa, Dr. João observou que
Bernardo estava vígil, sabia onde estava e quem eram seus familiares. Dr. João
perguntou, em certo momento, se ele ouvia vozes na cabeça ou se sentia
perseguido ou ameaçado. Bernardo apenas olhou para trás e nada respondeu.
Dr. João então lhe perguntou se haveria algo que o incomodava. Bernardo então
disse que a única coisa que lhe incomodava era o "nervosismo". Dr. João
comentou com Bernardo que poderia lhe passar um remédio para ajudá-lo. O
paciente então, interrompeu a conversa e deitou-se em sua cama, cobrindo o
rosto com um lençol, apertando os ouvidos com as mãos.
O médico então explicou aos familiares algumas questões importantes
acerca dos transtornos psiquiátricos, em particular dos quadros psicóticos e em
seguida discutiu com eles se seria possível manter Bernardo sob observação
constante em casa, garantindo assim uma "internação intradomiciliar" até que a
medicação que ele prescreveria fizesse efeito. O pai disse que trabalhava o dia
todo, que só estava ali porque era seu dia de folga, mas a filha, como estava de
férias, poderia ficar cuidando do irmão.
Dr. João prescreveu então risperidona 4 mg/dia (ANEXO 1). Como em
alguns momentos o paciente recusava a comida feita pela irmã, por achar que
estava envenenada, decidiram que Alexandre passaria todos os dias em um
horário combinado para administrar a medicação para Bernardo.
Após três semanas sem melhora significativa, o psiquiatra do CAPS,
durante a VD conjunta com Dr. João a Bernardo, achou melhor aumentar a
risperidona para 6 mg/dia. Na semana seguinte, a irmã, muito assustada, relatou
ao ACS que Bernardo estava andando “todo duro, como um robô”. Dr. João,
após verificar esses sintomas, prescreveu, em associação à risperidona,
riperideno 2 mg, duas vezes dia.
QUESTÃO NORTEADORA 3:
A equipe de Saúde da Família viu-se diante de um relato de um quadro
de psicose aguda ocorrendo em uma pessoa de sua área de abrangência. O
psiquiatra do CAPS não estaria disponível para uma avaliação inicial e, diante
do quadro, a equipe optou por começar a abordagem do paciente realizando
uma visita domiciliar. Quais aspectos devem ser considerados como importantes
pela equipe nessa abordagem?
RESPOSTA:
Abordagem psicossocial ao paciente com TMGP e familiares
A existência de um paciente com um quadro de psicose aguda deve ser
considerada uma situação a ser avaliada o mais brevemente possível,
independentemente da disponibilidade de um profissional especialista. Dessa
forma, a equipe de Saúde da Família, como porta de entrada no sistema de
saúde, deve iniciar a abordagem do caso.
Um primeiro ponto que a equipe deve considerar é o fato de a família a
ser visitada estar passando por sofrimento, estranhamento, dúvidas e
perplexidades diante do adoecimento de seu familiar. Dessa forma, tal como feito
por Dr. João, um ponto de partida importante é proporcionar a essa família
espaço de escuta para as suas aflições. Assim, antes mesmo de buscar
informações adicionais para esclarecer o que está ocorrendo com Bernardo, Dr.
João deixou que os familiares falassem livremente sobre o que lhes afligia.
Além de escutar, em situações como essa também é importante
demonstrar empatia em relação ao sofrimento da família.
Empatia significa a capacidade psicológica para sentir o que sentiria outra pessoa
caso estivesse na mesma situação vivenciada por ela. Consiste em tentar compreender
sentimentos e emoções, procurando experimentar de forma objetiva e racional o que
sente outro indivíduo.
Frases simples, como “imagino que a situação deve estar difícil para
vocês”, ou “vejo que vocês estão trabalhando juntos para enfrentar a situação”,
podem ser utilizadas.
A expressão desta empatia em muito poderá ajudar no estabelecimento
de uma aliança com a equipe de Saúde da Família, pois representa um passo
fundamental para que as intervenções construídas possam ter êxito em ajudar o
paciente.
A visita domiciliar é importante para obter informações complementares
sobre a história do paciente e avaliá-lo pessoalmente. Afinal, por melhor que seja
o relato trazido pelo ACS, este não substitui a coleta direta de informações e o
exame do paciente.
O relato trazido por Alexandre já havia dado pistas que Bernardo
apresentava um quadro de psicose aguda. Dr. João descartou uso de
substâncias, não encontrou indícios de doenças clínicas graves nem a presença
prévia ou atual de sintomas afetivos. Pode também ratificar a presença de
sintomas psicóticos.
Para o caso de Bernardo, considerando os sintomas e sua duração pode-
se levantar a hipótese diagnóstica de esquizofrenia, entretanto conforme
discutido na questão anterior, existem diferentes condições clínicas que podem
cursar com psicose.
Na abordagem direta a um paciente que apresenta sintomas psicóticos,
tal como fez Dr. João ao se aproximar de Bernardo, alguns aspectos podem ser
ressaltados.
- Respeitar a distância física:
Muitas vezes pacientes com psicose aguda encontram-se com importante
sensação de perseguição. A proximidade física pode ser compreendida como
uma ameaça. Dessa forma, o bom senso aponta que, por exemplo, o primeiro
encontro com um paciente psicótico agudo talvez não seja o melhor momento
para se fazer um exame físico detalhado. Caso seja necessário realizar esse
procedimento, é recomendável mover-se lentamente, informando ao paciente
calmamente os passos que está seguindo. No caso específico do Dr. João, por
exemplo, ele manteve-se na porta do quarto de Bernardo, e de lá conversou com
o paciente.
- Indagar sobre a presença de sintomas psicóticos:
Profissionais de saúde que não têm experiência em lidar com pacientes
que apresentam sintomas psicóticos têm dúvidas e receios sobre como
perguntar acerca da presença dos sintomas. A melhor forma é fazer isso de
modo direto, como fez o Dr. João. Embora não tenha sido o que aconteceu no
caso descrito, em muitas situações os pacientes sentem-se aliviados com a
possibilidade de falar sobre esse assunto, sobretudo quando a abordagem é feita
de forma empática e sem críticas.
- Não confrontar diretamente, mas também não concordar com suas
ideias delirantes:
Às vezes um paciente com sintomas psicóticos pode perguntar para seu
entrevistador: “Não é verdade, doutor, que as vozes estão falando comigo?”. Em
situações como essa o caminho não é dizer: “Não, não existem vozes nenhuma”,
nem: “Claro, estão falando, sim, com você”. O caminho mais indicado seria, por
exemplo, indagar se outras pessoas ouviam ou se o paciente sabia quem estava
falando com ele. Outro caminho também adequado e que pode ajudar no
estabelecimento da empatia, seria dizer algo mais ou menos assim: “Eu posso
dizer que para você essas vozes são bem reais”.
Tal abordagem também pode ser útil para esclarecer aos familiares que o
paciente percebe como reais tanto as vozes como os delírios, e que isto é uma
característica própria da psicose.
- Buscar um “gancho”:
De modo usual, pacientes psicóticos não buscam ajuda para enfrentar
seus sintomas psicóticos, sendo muito mais comumente levados para
tratamento. Ademais, eles percebem como reais as alucinações e delírios, e não
como sintomas de uma doença a ser tratada. Dessa forma, o profissional de
saúde tem um importante desafio que é buscar convencer, ou justificar para o
paciente a necessidade de tratamento. Um caminho possível é encontrar junto
com o paciente algo que lhe esteja incomodando e ter esse sintoma como alvo.
Destaca-se aqui que não se trata de enganar o paciente. Um paciente
agudamente psicótico pode queixar-se apenas de insônia. O profissional de
saúde pode tomar a insônia como ponto de partida para justificar o tratamento,
informando que a medicação a ser utilizada poderá auxiliá-lo a dormir melhor.
Tal fato não é inverdade, pois o adequado tratamento da psicose irá
facilitar o sono do paciente. No caso descrito o Dr. João utilizou como “gancho”
o “nervosismo” de Bernardo. Outro ponto muito importante nessa primeira visita
domiciliar é verificar a possibilidade da realização do tratamento sem a
necessidade de internação.
De modo geral, recomenda-se abordar essa questão por meio da análise
de um conjunto de três perguntas:
O quanto o paciente está grave?
Nesta dimensão deve-se dar especial atenção a possibilidade do paciente
poder apresentar violência contra si e/ou contra terceiros, a probabilidade de
colocar-se em risco (sair de casa à noite, ficando vagando pelas ruas, por
exemplo); e a aceitação do uso de medicações.
O quanto a família consegue neste momento cuidar do paciente
considerando o grau relativamente elevado de disfuncionalidade que ele
apresenta?
A funcionalidade é um termo que engloba todas as funções do corpo,
atividades e participação; de maneira similar, incapacidade é um termo que
inclui deficiências, limitação da atividade ou restrição na participação.
O quanto o serviço de saúde pode oferecer em relação ao cuidado fora
do ambiente fechado, considerando o quadro clínico atual do paciente?
No caso específico de Bernardo, verificou-se que:
a) Apesar da psicose aguda, o paciente não estava agressivo nem
apresentava maiores riscos para si ou para os outros.
b) Havia uma irmã com disponibilidade para cuidar dele no ambiente
domiciliar.
c) A equipe de Saúde da Família tinha como iniciar o tratamento,
acompanhar de perto o caso e solicitar uma reavaliação por um especialista em
um breve espaço de tempo.
Por fim, a partir desse primeiro encontro em diante, a equipe deve iniciar
as atividades de psicoeducação, que devem ser mantidas indefinidamente.
Promover a psicoeducação referente ao transtorno significa informar os
benefícios do tratamento, discutindo as dificuldades de adesão trazidas pelos
integrantes e estimulando a identificação e reinserção do paciente na
comunidade (CHIAVERINI, 2011).
Algumas mensagens e/ou ideias são de fundamental importância de
serem transmitidas tanto para o paciente como para a família. Abaixo está uma
síntese destas principais mensagens a serem transmitidas pela equipe de saúde
extraídas do MI-GAP Manual de Intervenções (OMS, 2010, p. 20):
Transmita as seguintes mensagens para pessoas com psicose
A possibilidade de se recuperar.
A importância de continuar com as atividades sociais, educacionais e
ocupacionais de modo regular.
O sofrimento e os problemas podem ser reduzidos com tratamento.
A importância de tomar remédios regularmente.
O direito da pessoa de participar das decisões relativas ao seu tratamento.
A importância de buscar se manter saudável (por exemplo, dieta saudável,
atividade física regular, higiene pessoal).
Mensagens para os membros da família acerca das pessoas com psicose
Os pacientes com psicose podem ouvir vozes e crer firmemente em coisas
que não são reais; não acham que estão doentes e, às vezes, podem se
tornar hostis.
São discriminados negativamente.
Devem gozar dos mesmos direitos das demais pessoas.
Podem ter dificuldades para se recuperar ou funcionar em um ambiente com
alto nível de estresse.
O familiar deve identificar o reaparecimento ou piora dos sintomas e a
necessidade de retornar com o paciente para reavaliação nestas situações.
A importância de incluir pessoas com psicose nas atividades da família e
outras atividades sociais.
Os membros da família devem evitar expressar críticas severas ou
constantes ou hostilidades à pessoa com psicose.
É melhor para o paciente manter um emprego ou qualquer ocupação
significativa.
Em geral, é melhor para a pessoa viver com sua família ou membros da
comunidade, em um ambiente de apoio, fora do ambiente hospitalar.
Hospitalizações prolongadas devem ser evitadas.
ATENÇÃO!
Os profissionais de saúde devem ter sensibilidade para perceber quais
mensagens devem ser priorizadas em cada momento ao longo das diferentes
fases do tratamento do paciente.
Abordagem medicamentosa ao paciente com TMGP
O uso de psicofármacos é um aspecto central na condução dos casos de
psicose, seja aguda ou crônica. Após verificar a possibilidade de tratamento
domiciliar, Dr. João optou por introduzir Risperidona, uma medição antipsicótica.
Na prescrição de medicações antipsicóticas na atenção básica, o profissional
deve estar atento para diferentes questões, tais como: indicações,
disponibilidade, perfil de efeitos colaterais, doses mínimas, médias e máximas,
tempo mínimo para efeito clínico, tempo de manutenção. Igualmente importante
é o desenvolvimento de estratégias que busquem facilitar a adesão ao
tratamento tanto de curto quanto de longo prazo.
QUESTÃO NORTEADORA 4:
Considerando a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais
(RENAME), quais são os antipsicóticos relacionados, as principais indicações,
efeitos colaterais mais comuns, bem como as estratégias que podem ser
utilizadas no contexto da atenção básica para maximizar a adesão ao tratamento
farmacológico?
RESPOSTA:
O uso de medicações antipsicóticas faz parte do tratamento da grande
maioria das condições clínicas que cursam com psicose, agudas ou crônicas. No
caso da esquizofrenia, esse uso é uma das pedras angulares do tratamento,
sendo prescrito, praticamente, como uma medicação de uso continuado.
No caso dos transtornos do humor que cursam como psicose, os
antipsicóticos são adjuvantes no tratamento, o que se discutirá mais à frente.
Existe no mercado atualmente uma grande variedade de medicações
antipsicóticas, que se distinguem conforme seus efeitos colaterais, embora não
apresentem, em geral, diferenças na eficácia terapêutica, quando comparadas
em doses equivalentes (CAMOZZATO et al., 2011).
ATENÇÃO!
Uma exceção a esta regra é uma medicação chamada Clozapina, que é
considerada mais eficaz, embora, em virtude da possibilidade de graves efeitos
colaterais hematológicos, geralmente seja prescrita para casos refratários, por
médicos especialistas.
Um aspecto importante a ser considerado na prescrição de medicações
antipsicóticas, sobretudo no contexto de programas de saúde pública, é a
acessibilidade financeira para a população atendida. Nesse sentido, recomenda-
se categoricamente que os profissionais de saúde do SUS prescrevam
medicações disponíveis nas farmácias públicas.
Aqui, propomos a utilização de três medicações antipsicóticas
reconhecidamente eficazes como antipsicóticos e que estão (ou deveriam estar)
disponíveis no sistema público, por fazerem parte da RENAME. Estas
medicações são: Haloperidol, Clorpromazina e Risperidona, conforme
apresentadas no Quadro 2.
ATENÇÃO!
Torna-se importante destacar que, apesar de serem apresentadas a seguir
as doses médias e máximas previstas na literatura para essas medicações. A
dose adequada para cada paciente deve ser definida de modo individualizado.
Quadro 2 - Demonstrativo de dosagens de medicações.
Nome Apresentações Doses médias
(Usuais) *
Dose máxima
Haloperidol
Comp. 1 e 5 mg
Solução 2 mg/ml (0,1 mg/gt)
Ampola 1 ml, 5 mg/ml
Ampola 1 ml, 50 mg/ml
(forma de depósito)
7 mg (2 a 15 mg)
15 mg
Observações
Como iniciar: com doses de 3 a 5 mg/dia à noite
Contraindicações absolutas: alergia ao fármaco, depressão grave do
SNC.
Efeitos colaterais mais comuns: acatisia, distonias, hipertonia, tremores,
parkisonismo, sonolência.
Gravidez: a experiência clínica não identificou aumento do risco de
anormalidade congênitas. RN de mães que utilizaram no fim da gestação
pode apresentar efeitos colaterais acima.
Lactação: excretado no leite materno.
Idosos: utilizar doses mais baixas.
Precauções:
a) desaconselhar uso de álcool;
b) avaliar possibilidade de gravidez em mulher em idade fértil;
c) pacientes que operam máquinas pesadas devem ser informados do
efeito sedativo.
Nome Apresentações Dose medias (usuais)* Doses máximas
Clorpromazina
Comp. 25 e 100 mg
Solução 40 mg/ml
(1 mg/gt)
Ampola 5 ml, 25
mg/5 ml
400 mg (200 a 600 mg)
1.200 mg
Observações
Como iniciar: iniciar com doses baixas, 25 mg 2x ao dia, aumentando 25
mg a cada dose a cada três dias, até a dose de 300 mg. A dosagem
deve ser individualizada e as doses “padrão”, em alguns pacientes,
podem ser excessivas ou insuficientes, dependerá da efetividade e dos
efeitos adversos da medicação.
Contraindicações absolutas: alergia ao fármaco.
Efeitos colaterais mais comuns: sonolência, boca seca, constipação,
retenção urinária, hipotensão e aumento de peso.
Gravidez: aumenta em 0,4% o risco de má-formação congênita.
Lactação: excretado no leite materno.
Idosos: deve-se ter muita cautela, por causa dos efeitos anticolinérgicos
e hipotensores.
Precauções:
a) desaconselhar uso de álcool;
b) avaliar possibilidade de gravidez em mulher em idade fértil;
c) pacientes que operaram máquinas pesadas devem ser informados do
efeito sedativo;
d) pode agravar bloqueio atrioventriculares pré-existentes;
e) atentar para sinais de discrasias sanguíneas;
f) pode agravar crises convulsivas em pacientes epilépticos;
g) evitar prescrição em pacientes com câncer de mama;
h) risco de hipotensão postural;
i) fotossensibilidade;
j) cuidado com pacientes com risco de tromboembolismo
Risperidona
Apresentação Doses médias (usuais)* Dose máxima
Comp. 1, 2 e 3 mg
4 mg (2 a 6 mg)
8 mg
Observações
Como iniciar: iniciar com 2 mg/dia, dividindo ou não em duas doses ao
dia.
Contraindicações absolutas: alergia ao fármaco, gravidez e lactação,
insuficiência renal ou hepática grave.
Efeitos colaterais mais comuns: sonolência, aumento do apetite, fadiga,
tremor, distonia, acatisia.
Gravidez: contraindicado.
Lactação: excretado no leite materno. Contraindicado.
Idosos: utilizar doses mais baixas.
Precauções:
a) desaconselhar uso de álcool;
b) avaliar possibilidade de gravidez em mulher em idade fértil;
c) pacientes que operaram máquinas pesadas devem ser informados do
efeito sedativo;
d) pode causar hipotensão, no começo do tratamento, principalmente em
idosos;
e) alertar o paciente quanto ao risco de ganho de peso
(ABREU et al., 2013; CAMOZATTO et al., 2011; HENRIQUES et al.,
2011; SANTANA et al., 2011).
* As doses médias usuais se referem ao tratamento da esquizofrenia em indivíduos jovens, hígidos.
Principais antipsicóticos para uso na atenção básica
No quadro abaixo apresentamos uma comparação das principais
indicações dos antipsicóticos sugeridos para uso na atenção básica.
Quadro 3 - Principais indicações para o uso de antipsicóticos.
Transtornos
Indicações medicamentosas
Haloperidol Clorpromazina Risperidona
Esquizofrenia + + +
Transtornos psicóticos agudos e
transitórios
+
+
+
Adjuvantes, com estabilizador do humor na mania
aguda
+
+
+
Adjuvantes, com antidepressivo na
depressão psicótica
+
+
+
Psicose secundário ao uso de
substâncias
+
- +
Agitação na demência
+ - +
Agitação no delirium + - -
Fonte: Adaptado de: HENRIQUES, A.A. et al. Medicamentos: informações básicas. In: In: Cordioli, A.V. (Org). Psicofármacos: consulta rápida. 4. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 2011. p. 431-439.
A seguir, apresenta-se a proposta de uma sequência de ações que o
médico da equipe deveria considerar ao prescrever uma medicação
antipsicótica.
1. Diante de um paciente com psicose o médico deve buscar excluir a
possibilidade de delirium.
Casos de suspeita de delirium devem ser encaminhados para avaliação clínica
de urgência.
2. Excluído o quadro delirium, iniciar o tratamento com antipsicótico.
Assim que possível deve-se discutir o caso com a equipe de apoio matricial.
2. Deve-se iniciar o tratamento com um único antipsicótico por vez.
Para escolha do antipsicótico deve-se considerar:
- Resposta prévia: caso algum tenha sido utilizado com resultados positivos
anteriormente, este será o mais indicado.
- Disponibilidade da medicação: sugere-se aqui o uso das medicações
disponíveis na RENAME (Haloperidol, Clorpromazina e Risperidona).
- Efeitos colaterais: pode-se escolher Clorpromazina para um paciente jovem
agitado, considerando como desejável o efeito colateral da sedação.
- Considerar as indicações de uso dos medicamentos conforme quadro acima.
3. Começar com doses baixas e aumentá-las gradativamente.
Deve-se começar com uma dose baixa, chegando à faixa terapêutica em poucos
dias, para minimizar os efeitos colaterais. Informar ao paciente e família que:
a) a medicação para fazer efeito deve ser tomada corretamente, todos os dias;
b) os primeiros sintomas a diminuírem serão a agitação e a insônia, depois as
alucinações e os delírios;
c) melhoras mais consistentes nesses dois últimos sintomas ocorrerão
principalmente a partir de quatro a seis semanas;
d) explique sobre efeitos colaterais (ver próxima seção).
4. Escalonar o aumento da dose.
Estando nos limites da faixa terapêutica da medicação, reavaliar a dose em uso
a cada quatro ou seis semanas. Se houver melhora dos sintomas, mantem-se a
dose. Enquanto os sintomas forem evoluindo com melhora sugere-se manter a
dose. Havendo estagnação ou piora dos sintomas, sugere-se aumentar a dose, de
modo gradual.
5a. Em caso de estabilidade do quadro clínico.
Sendo o diagnóstico de esquizofrenia considere manter a medicação por vários
anos. Para retirada da medicação, considere: o risco de recaída, os efeitos
colaterais, a opinião do paciente e dos familiares. Sugere-se consultar a equipe de
apoio matricial, para eventual retirada de medicação.
5b. Em caso de resposta insatisfatória.
Verifique se a medicação foi utilizada até a sua dose máxima por um tempo de
quatro a seis semanas. Caso isso tenha ocorrido, ou não tenha sido possível por
causa dos efeitos colaterais, troque a medicação. Se com a troca o paciente
apresentar resposta satisfatória, siga com as orientações apresentadas no item 5a.
Caso contrário, troque novamente a medicação e entre em contato com a equipe de
apoio matricial (ABREU et al., 2013; CAMOZZOTO et al., 2011; CHIAVERINI et al.,
2011; OMS, 2010.
Um dos grandes desafios no tratamento de pacientes psicóticos é a
questão da adesão.
Quais estratégias podem ser utilizadas a fim de maximizar essa
adesão?
1° - Uso de medicações injetáveis de depósito
No contexto do sistema público brasileiro de saúde temos disponível o
Haloperidol Decanoato. Esta medicação é administrada, via intramuscular, de
modo usual com intervalos de 3 a 4 semanas, substituindo o uso oral diário do
Haloperidol.
Recomenda-se não utilizar Haloperidol Decanoato sem conhecimento
prévio da reação do paciente ao uso de Haloperidol, pois caso o paciente
apresente efeitos colaterais graves estes persistirão por um longo período.
Recomendamos ainda que na Atenção Primária a utilização dessa medicação
deve ser indicada pelos especialistas matriciadores, mas sua aplicação e
manutenção devem ser acompanhadas pela equipe básica de referência. A
experiência vem demonstrando que esse cuidado compartilhado tem garantido
a adesão ao tratamento de pacientes com transtornos mentais graves, no âmbito
da atenção básica (FORTES et al., 2014).
2° - Administração da medicação oral supervisionada pela ESF
Este tipo de estratégia somente é possível de ser utilizada em virtude das
especificidades do cuidado que pode ser ofertado na atenção básica.
É semelhante ao que é feito na estratégia de DOTS (Directly Observed
Treatment, Short-Course) para tuberculose, que pode ser feita diariamente ou
com intervalos maiores de tempo, conforme a necessidade do paciente (Fortes
et al, 2014).
Tal medida, além de evitar a posse de um número grande de comprimidos
e a ingestão abusiva ou tentativa de suicídio, permite aumentar as chances de
uso correto.
Esta estratégia foi utilizada pela equipe para aumentar a adesão ao
tratamento de Bernardo, no início do tratamento, no contexto no qual havia uma
importante sensação de estar sendo perseguido, inclusive em relação a
membros da família. A administração da medicação por um membro da equipe
de saúde mostrou-se uma estratégia útil para o enfrentamento da resistência
inicial do paciente ao tratamento.
3° - Manejo dos principais efeitos colaterais ao prescrever medicações
antipsicóticas
Sobre efeitos colaterais há dois pontos iniciais a se considerar:
a) parte deles pode ser minimizada se o antipsicótico for introduzido de
modo lento e gradual.
b) são, em geral, dose-dependente, tendem a aumentar com o aumento
das doses das medicações. Dessa forma, diante dos efeitos colaterais, uma
alternativa sempre a se considerar é reduzir a dose utilizada, lembrando sempre
da necessidade de utilizarmos as medicações dentro de sua faixa terapêutica.
Efeitos colaterais dos antipsicóticos
Os efeitos colaterais dos antipsicóticos podem ser descritos em dois
grupos:
1) Efeitos extrapiramidais - mais comum com uso de Haloperidol ou
doses mais elevadas de Risperidona.
2) Efeitos anticolinérgicos - mais comuns com o uso de Clorpromazina.
Extrapiramidais:
No quadro abaixo estão sumarizados os principais efeitos colaterais.
Quadro 4 - Principais efeitos colaterais.
Efeito colateral
Surgimento após introdução
ou aumento de antipsicótico
Apresentação
Distonia aguda
1 a 5 dias
Espasmos musculares, acometendo
principalmente face, pescoço e
língua.
Parkisonismo Variável 5 a 30 dias Máscara facial, rigidez muscular,
andar robotizado.
Acatisia
Variável 5 a 60 dias
Inquietude motora, andar no mesmo
lugar (amassando barro), não
conseguir ficar parado (ABREU et al.,
2013; CAMOZZATO et al., 2011;
ENRIQUES et al., 2011; Santana et
al., 2011).
IMPORTANTE!
Em todas as apresentações acima a conduta é bem semelhante.
1. Se a sintomatologia for importante, considerar a administração de
Biperideno 5 mg (intramuscular).
2. Posteriormente, verificar se é possível reduzir a dose do antipsicótico.
3. Se não for, acrescentar à prescrição Biperideno 2 mg duas a três vezes
ao dia, ou Prometazina 25 mg, na mesma posologia.
4. No caso de uso desta última medicação haverá maiores efeitos
sedativos, que a depender do caso podem ou não ser desejáveis.
ATENÇÃO!
Sobre ACATISIA:
É preciso ter atenção para possibilidade da ocorrência deste efeito
colateral, pois o profissional de saúde pode interpretar a inquietude do paciente
como agitação e aumentar a dose do antipsicótico, o que aumentará a agitação.
Ainda nos casos de acatisia, pode ser útil prescrever benzodiazepínicos como
Clonazepam 0,5 mg, 2 vezes ao dia.
Dada a relativa frequência dos efeitos colaterais extrapiramidais e os
efeitos negativos que sua ocorrência pode ter na adesão ao tratamento,
recomenda-se que ao se utilizar doses acima de 5 mg de Haloperidol e de 4
mg de Risperidona, já se prescreva de modo concomitante Biperideno ou
Prometazina, conforme detalhado anteriormente. Posteriormente, com a
adesão ao tratamento e o vínculo terapêutico estabelecido, pode-se avaliar a
retirada dessas medicações acessórias.
E no caso em discussão, como Bernardo pode ser avaliado?
Bernardo parecia estar apresentando um quadro de parkinsonismo, após
a elevação da dose de Risperidona. A possibilidade de redução da medicação
não parecia ser razoável, considerando que em níveis mais baixos não se
observou efeitos antipsicóticos consistentes. É possível inferir que, caso
tivessem acrescentado o Biperideno ou a Prometazina à prescrição após a
elevação da dose da Risperidona, esse efeito colateral poderia ter sido evitado.
Efeitos anticolinérgicos
Estes efeitos são particularmente problemáticos em pacientes idosos, o
que acaba por limitar muito o uso das medicações nessa fase. O quadro abaixo
apresenta recomendações para como lidar com estes efeitos colaterais.
Quadro 5 - Recomendações - efeitos colaterais.
Boca seca
- Molhar a boca várias vezes;
- Mascar balas ou chicletes dietéticos;
- Escovar os dentes com maior frequência
para evitar cáries.
Constipação
- Dieta rica em fibras;
- Aumentar a ingesta hídrica e de fibras
vegetais (2 a 4 colheres ao dia).
Retenção urinária
- Importante problema nos idosos, sobretudo
naqueles com hiperplasia de próstata (ABREU
et al., 2013; CAMOZZATO et al., 2011;
ENRIQUES et al., 2011; Santana et al., 2011).
Por fim, um último ponto a se abordar nesta discussão refere-se ao
tratamento dos transtornos afetivos, que podem cursar com sintomas psicóticos,
ou seja, o transtorno bipolar e a depressão grave com sintomas psicóticos.
Inicialmente é preciso destacar que ambos os casos tratam de quadros
complexos que demandam apoio da equipe de matriciamento e/ou
encaminhamento para CAPS.
Caso em sua cidade não exista esse dispositivo, o que você faria para
realizar o atendimento a pacientes com esse tipo de quadro clínico?
Diante de um paciente com transtorno bipolar em quadro de mania, com
exaltação do humor e sintomas psicóticos, um primeiro ponto a se observar é se
o paciente está fazendo uso de alguma medicação antidepressiva. Caso esteja,
deve-se suspendê-la. Pacientes com transtorno bipolar ao fazerem uso de
medicação antidepressiva correm o risco de passarem abruptamente para fase
maníaca. A prescrição de medicação antipsicótica é uma conduta inicial
possível, pois existem fortes evidências de que essas medicações podem tratar
os episódios maníacos (HENRIQUES et al., 2011).
Ao médico de família, cabe identificar os pacientes com esse diagnóstico,
suspender medicação antidepressiva (se estiver utilizando), prescrever
medicação de urgência conforme acima sugerido, referenciar o caso para uma
equipe matriciadora ou para o serviço especializado da região.
É importante frisar que mesmo durante o acompanhamento mais próximo
pela equipe matriciadora ou pelos especialistas, a ESF deve continuar próxima
ao paciente, mantendo o vínculo, apoiando familiares, lidando com a saúde física
do paciente, e orientando sobre a necessidade de uso correto das medicações
e da adesão às demais medidas terapêuticas instituídas.
Embora não haja uma padronização fortemente embasada na literatura,
a experiência dos autores aponta que após um ano de estabilização do quadro
pelo especialista o paciente poderá voltar a ser conduzido pela ESF. Baseado
ainda nesta experiência, sugere-se que pacientes bipolares estabilizados em
acompanhamento pela ESF possam ser avaliados pelo menos duas vezes ao
ano por médico especialista.
Dessa forma, é importante que o médico da equipe conheça os principais
efeitos colaterais dos estabilizadores de humor e os exames laboratoriais que
devem ser regularmente solicitados, uma vez que podem ser procurados por
pacientes com alguma dessas intercorrências clínicas.
As três principais medicações estabilizadoras do humor que constam na
RENAME são:
1) Carbonato de Lítio
2) Valproato
3) Carbamazepina.
Abaixo seguem informações gerais sobre estes fármacos, embora se
recomende buscar auxílio da equipe de apoio matricial para prescrevê-los.
Quadro 6 - Estabilizadores do Humor adaptada do MHG Intervention Guide.
Medicamentos Carbonato de Lítio Valproato Carbamazepina
Dose efetiva típica
(mg)
600-1200 1000-2000 400-600
Mania aguda:
Nível sanguíneo
desejado
0.8-1.0 mEq/l
Manutencao:
0.6-0.8 mEq/l
O controle laboratorial
regular é fundamental.
Não se recomenda
de rotina.
Não se recomenda de
rotina.
Principais efeitos
colaterais:
Perturbação da
coordenação, poliuria,
polidipsia, problemas
cognitivos, arritmias
cardíacas, diabetes
insípido, hipotireoidismo.
Deve ser usado com
cautela em caso de
doença hepática.
São possíveis
efeitos colaterais:
perda de cabelo e
pancreatite (rara).
Diplopia, perturbação da
coordenação,
exantemas, elevação de
enzimas hepáticas.
Efeitos mais raros:
síndrome de Stevens-
Johnson, anemia
aplástica.
Sedação ++ ++ ++
Tremor ++ ++ ++
Aumento de peso ++ ++ ++
Hepatotoxicidade - ++ +
Trombocitopenia - + +
Leucopenia (leve,
assintomática)
- + +
Exames laboratoriais
Litemia (o sangue
deve ser coletado 12
horas após a última
dose de lítio) no
início do tratamento e
a cada 3 a 6 meses.
Antes de começar o
tratamento, solicitar
Teste de gravidez no
início do tratamento,
hemograma completo,
TGO e TGP a cada 6
meses.
Teste de gravidez no
início do tratamento,
hemograma
completo, TGO e
TGP a cada 6
meses.
teste de gravidez,
ECG se mais de 40
anos ou risco de
cardiopatia, ureia,
creatinina, TSH,
hemograma completo
e eletrólitos (repetir
os 5 últimos a cada 6
meses).
Fonte: Adaptado de: OMS. MI-GAP Manual de Intervenções para transtornos mentais,
neurológicos e por uso de álcool e outras drogas na rede de atenção básica. Genebra: OMS, 2010. Disponível em: http://www.who.int/mental_health/publications/IG_portuguese.pdf.
Já nos quadros de depressão grave com sintomas psicóticos, a prescrição
de antipsicóticos pode atenuar parte dos sintomas.
Entretanto, o paciente também demandará o uso de medicações
antidepressivas. Antecedendo a prescrição de antidepressivos, é de
fundamental importância investigar, pela história clínica, a ocorrência prévia de
episódios maníacos. Caso tenham ocorrido episódios maníacos prévios, o
diagnóstico deve ser modificado para transtorno afetivo bipolar, devendo-se
seguir o orientado no tópico acima. Dada a complexidade desses casos, sugere-
se que a condução de pacientes com esses quadros seja feita juntamente com
a equipe de apoio matricial, ou pela equipe do CAPS.
CASO CLÍNICO - parte 3
No dia seguinte à prescrição do Biperideno, Dr. João ao chegar à unidade
de Saude da Família foi abordado pelo pai de Bernardo. Dr. João perguntou se
teria ocorrido algo com Bernardo. O pai imediatamente disse que não, mas
gostaria de falar com o médico sobre uma preocupação que estava tendo. Disse
para Dr. João que ao longo do ultimo mês viu seu filho melhorar
progressivamente. Tal situação deu-lhe confiança para fazer algumas perguntas
ao médico.
Disse ter receio de que Bernardo esteja com a mesma "doença" da mãe,
Francisca, internada há alguns anos em um hospital psiquiátrico de um município
vizinho. Recentemente, a assistente social do hospital havia contactado a família
para conversar sobre a possibilidade de a paciente voltar para casa. Tal situação
estava gerando ansiedade para todos da família.
Dr. João disse que precisaria conhecer melhor o caso da mãe de Bernardo
para avaliar se poderia ou não ter a mesma doença. Disse que iria tentar
descobrir mais sobre a situação e depois conversariam a respeito. No fim do dia,
Dr. João conversou com a assistente social do Nucleo de Apoio da Saude da
Família (NASF) para solicitar que entrasse em contato com o hospital em que a
mãe de Bernardo estava internada para obter mais informações sobre o caso,
tanto no que se refere ao quadro clínico quanto à perspectiva de alta.
A assistente social agendou uma visita ao hospital, na companhia da
psicóloga do NASF para conhecer a paciente e participar de uma reunião com
os profissionais que estavam acompanhando-a.
Na reunião, a psiquiatra do hospital fez um relato do caso de Francisca,
mãe de Bernardo. Disse que ela tem 45 anos e seu problema mental apresenta
uma longa evolução de pelo menos 20 anos. No início do quadro, apresentava
alucinações, delírios persecutórios e episódios de heteroagressividade,
principalmente contra o esposo. Nunca fez tratamento regular e seu marido a
levava à emergência do hospital psiquiátrico quando entrava em "crise".
Somando as várias reinternações, a heteroagressividade e as dificuldades da
família em lidar com o caso, a paciente tornou-se de “longa permanência” (de
internação prolongada em hospital psiquiátrico).
Nos ultimos anos, seus sintomas foram se transformando, não fica mais
agressiva nem apresenta alucinações tão frequentemente. Porém, permanece
por longos períodos sem fazer qualquer atividade, quase não conversa,
demonstra poucos interesses, e às vezes leva papéis que encontra no hospital
e esconde-os embaixo de seu colchão. Sua psiquiatra informou que Francisca
recusava algumas de suas medicações, afirmando que estas a matariam, mas,
apesar disso, obteve melhora parcial dos sintomas. Assim, ela já estaria em
condições de ter alta, desde que seus familiares consigam oferecer-lhe cuidados
essenciais.
Dona Francisca apresenta ainda um quadro de hipertensão e diabetes,
além de obesidade. As profissionais do NASF explicaram que o filho de
Francisca começara a apresentar sintomas psicóticos e todos concordaram que
seria melhor aguardar a melhora clínica dele para Dona Francisca poder retornar
à sua casa. Enquanto isso, as profissionais do NASF fariam uma articulação com
a equipe do CAPS, por haver o entendimento que ela poderia ter benefícios com
um acompanhamento mais intensivo, a partir de sua participação nas atividades
no CAPS.
QUESTÃO NORTEADORA 5:
A preocupação do pai de Bernardo é que seu filho tenha um quadro que
necessariamente irá evoluir como o da mãe. Conhecendo ambos os casos, o
que poderíamos responder para o pai de Bernardo? Seu filho teria a mesma
doença da mãe? E mais: Bernardo teria necessariamente o mesmo prognóstico
da mãe?
RESPOSTA:
A partir de uma relação mais próxima com a equipe de Saude da Família
construída por meio do acompanhamento de Bernardo, seu pai adquiriu
confiança e assim conseguiu compartilhar suas duvidas e anseios, tanto quanto
ao futuro do filho como ao possível retorno de sua esposa a casa, assunto que
costumava evitar por achar que as pessoas o criticariam por não ter tentado com
mais empenho trazê-la novamente ao convívio familiar.
Quadro 7 - Subtipos de síndromes de esquizofrenia.
Fonte: DALGALARRONDO, Paulo. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. 2. ed.
Porto Alegre: Artmed, 2008.
1. Síndrome negativa ou
deficitária:
2. Síndrome positiva ou
produtiva:
3. Síndrome
desorganizada:
Definição: redução ou perda de
funções psíquicas e
empobrecimento global da vida
afetiva, social e cognitiva do
indivíduo. São eles:
Definição: surgimento de
manifestações novas,
adicionais ao funcionamento
psíquico.
Definição há o predomínio
da desorganização mental
e comportamental.
Principais sintomas:
a) Distanciamento afetivo;
b) Retração social;
c) Alogia (empobrecimento da
linguagem e do pensamento);
d) Diminuição da fluência
verbal;
e) Diminuição da vontade
(avolição) e hipopragmatismo;
f) Negligência quanto a si
mesmo;
g) Lentificação e
empobrecimento psicomotor.
Principais sintomas:
a) Alucinações;
b) Ideias delirantes;
c) Agitação psicomotora;
d) Ideias bizarras;
e) Produções linguísticas
novas, como neologismos.
Principais sintomas:
a) Pensamento
desorganizado;
b) Comportamento
desorganizado;
c) Afeto inadequado;
d) Afeto pueril.
De acordo com os sintomas descritos pela psiquiatra, podemos concluir
que Francisca e o filho possuem a mesma doença, a esquizofrenia. Ela
apresenta ou apresentou ao longo da história de sua doença sintomas
característicos, como:
(1) delírios persecutórios (a crença de que a medicação a mataria);
(2) alucinações;
(3) comportamento desorganizado (esconder papéis debaixo do colchão);
(4) sintomas negativos - poucos interesses e atividades.
Para entender o que são sintomas negativos, é preciso saber que os
sintomas característicos da esquizofrenia costumam ser agrupados em três
subtipos de síndromes, conforme quadro a seguir:
Avaliando os casos de Bernardo e Francisca, observa-se que eles diferem
entre si, conforme fica evidenciado no quadro abaixo:
Quadro 8 - Comparativo de sintomas apresentados por Bernardo e Francisca.
Bernardo Francisca
Início Atual
Positivos
a) Delírios: crença sobre haver um complô contra ele e que estaria sendo filmado. b) Agitação psicomotora: ficava andando de um lado para outro. c) Alucinações auditivas: ouvia vozes que falavam a seu respeito e falava sozinho, ou seja, apresentava solilóquios, que é entendido quando o paciente apresenta alucinações auditivas.
a) alucinações; b) delírios (persecutoriedade); c) agressividade.
a) delírios: acredita que as medicações poderiam matá-la.
Negativos
a) Retração social: não querer sair de casa.
a) Empobrecimento psicomotor: permanece longos períodos sem fazer qualquer atividade; b) Alogia/retração social: conversa pouco;
c) Avolição: demonstra poucos interesses.
Desorganizados
a) Desorganização de comportamento: leva papéis que encontra no hospital e esconde-os embaixo de seu colchão.
No caso de Bernardo, predominavam os sintomas positivos, embora
também apresentasse sintomas negativos. Já no caso de Francisca, no início da
doença, predominavam os sintomas positivos. Com a evolução do quadro, estes
diminuíram de frequência e intensidade, e passaram a predominar os sintomas
negativos, embora também apresente sintomas de desorganização e positivos.
Esta evolução sintomatológica observada no caso de Francisca é
relativamente comum em casos de esquizofrenia: síndromes produtivas evoluem
para síndromes deficitárias, com deterioração progressiva e prejuízo funcional
significativo, conforme afirma Hales; Yudofsky (2006), o que caracteriza os
TMGP como definimos anteriormente.
VOCÊ SABIA?
De acordo com o clássico e histórico “Estudo-piloto Internacional sobre
Esquizofrenia” de 1975, da Organização Mundial de Saude (OMS), os cinco
preditores mais importantes de mau prognóstico eram isolamento social,
duração longa dos episódios, história pregressa de tratamento psiquiátrico, ser
solteiro e ter história de problemas comportamentais na infância (HALES;
YUDOFSKY, 2006). O resumo dos fatores prognósticos mais comuns é
mostrado na tabela abaixo:
Quadro 9 - Características associadas ao bom e mau prognóstico na esquizofrenia.
Característica Bom prognóstico Mau prognóstico
Idade Mais velho Mais jovem
Gênero Feminino Masculino
Classe social Alta Baixa
Estado civil Casado Solteiro
História familiar de
esquizofrenia
Negativo Positivo
Complicações perinatais Ausentes Presentes
Fatores transculturais Países em
desenvolvimento
Países
industrializados
Funcionamento pré-mórbido Bom Ruim
Início Agudo Insidioso
Duração Curta Crônica
Sensório Obnubilado Claro
Sintomas/subtipos Subtipo paranoide Síndrome deficitária
Sintomas afetivos Presentes Ausentes
Funcionamento neurológico Normal Presença de sinais
menores
Neurocognição Normal Anormal
Anomalias cerebrais
estruturais
Nenhuma Presentes
Fonte: Adaptado de: HALES, R.E.; YUDOFSKY, S.C. Tratado de psiquiatria clínica. 4. ed.
Porto Alegre: Artmed, 2006.
O Estudo-piloto da OMS indicou ainda que nos países em
desenvolvimento, o prognóstico dos pacientes com esquizofrenia é melhor que
nos países desenvolvidos. Para explicar este resultado inesperado, algumas
justificativas foram aventadas: as pessoas com esquizofrenia seriam mais bem
aceitas nos países em desenvolvimento, têm menos exigências externas e maior
probabilidade de receber cuidados dos familiares (HALES; YUDOFSKY, 2006).
Considerando os casos específicos em análise, entende-se que a história
de tratamento farmacológico irregular, as internações frequentes e de longa
duração e a ausência de intervenções psicossociais significativas certamente
contribuíram para a evolução desfavorável, no caso de Francisca. Por outro lado,
na medida em que se puder oferecer a Bernardo outro tipo de acompanhamento
e cuidado, seu prognóstico poderá ser diferente do de sua mãe.
QUESTÃO NORTEADORA 6:
A ampliação da cobertura da ESF e dos CAPS no Brasil vem
possibilitando a desinstitucionalização de pacientes com transtornos mentais
graves, que até recentemente ficavam internados em hospitais psiquiátricos por
muitos anos, e muitas vezes, ao longo de todas as suas vidas. Esse modelo de
tratamento foi questionado pelo movimento da Reforma Psiquiátrica, que propôs
abordagens alternativas para esses casos. Como vem se constituindo a Reforma
Psiquiátrica no Brasil? De que modo os diversos dispositivos da RAPS podem
se organizar no acompanhamento desses casos? Quais são as funções da
ESF/NASF/CAPS nesse acompanhamento?
RESPOSTA:
A Reforma Psiquiátrica no Brasil teve início na década de 70, e foi
contemporânea à Reforma Sanitária. Foi um movimento político e social
complexo, de crítica ao modelo asilar centrado no hospital psiquiátrico e que
propôs transformações no campo das práticas, saberes e valores sociais e
culturais, tendo por meta promover a cidadania dos pacientes psiquiátricos. Teve
por principal inspiração a Reforma Italiana liderada por Franco Basaglia.
Em 1989, o Projeto de Lei do deputado Paulo Delgado deu entrada no
Congresso Nacional, propondo a regulamentação dos direitos das pessoas com
transtornos mentais e a extinção progressiva dos manicômios no país.
Inspirados por este Projeto de Lei, a partir de 1992, os movimentos sociais
conseguiram aprovar em vários estados brasileiros as primeiras leis que
determinaram a substituição progressiva dos leitos psiquiátricos por uma rede
integrada de atenção à saude mental.
Com o compromisso firmado pelo Brasil na assinatura da Declaração de
Caracas e com a realização da II Conferência Nacional de Saude Mental,
passaram a entrar em vigor no país as primeiras normas federais
regulamentando a implantação de serviços de atenção diária, iniciadas a partir
das experiências dos primeiros CAPS e Hospitais-dia, e as primeiras normas
para fiscalização e classificação dos hospitais psiquiátricos. A Lei Paulo Delgado
foi sancionada com algumas modificações apenas em 2001.
A Lei Federal nº 10.216 dispôs sobre a proteção e os direitos das pessoas
com transtornos mentais, mas não instituiu mecanismos claros para a
progressiva extinção dos manicômios. Nesse período, a desinstitucionalização
de pacientes de longa internação foi impulsionada pelo Programa de Volta Para
Casa, cujo objetivo é contribuir efetivamente para o processo de inserção social
dessas pessoas, por meio do pagamento mensal de um auxílio-reabilitação aos
seus beneficiários.
Atualmente, dois movimentos simultâneos configuram a Reforma
Psiquiátrica:
1) Construção de uma rede de atenção à saude mental substitutiva ao
modelo centrado na internação hospitalar.
2) Fiscalização, redução progressiva e programada dos leitos
psiquiátricos existentes (BRASIL, 2005).
Gráfico 1 - Proporção de recursos federais destinados à saúde mental em serviços
hospitalares e em serviços de atenção comunitária/territorial (Brasil, dez/2002
a dez/2013*).
Fonte: BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Assistência à Saúde. Informativo eletrônico de dados sobre a Política Nacional de Saúde Mental. Saúde Mental em Dados - 12, Brasília, ano. 10, n. 12, out. 2015. Disponível em: < http://www.mhinnovation.net/sites/default/files/downloads/innovation/reports/Report_12-edicao-do-Saude-Mental-em-Dados.pdf>.
PARA SABER MAIS:
Se quiser saber mais sobre a reforma psiquiátrica brasileira, leia:
BRASIL. Ministério da Saude. Secretaria de Atenção à Saude. Reforma psiquiátrica e política de saude mental no Brasil: documento apresentado à Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saude Mental: 15 anos depois de Caracas. OPAS. Brasília, 2005. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/Relatorio15_anos_Caracas.pdf>.
A rede de atenção à saude mental em 2011 foi instituída como Rede de
Atenção Psicossocial (RAPS) por meio da Portaria nº 3088, como já discutido no
Módulo 2. É composta por diversos pontos de atenção, também já apresentados,
mas aqui enfocaremos os serviços responsáveis mais diretamente pelo cuidado
aos pacientes com TMGP.
As pessoas com transtornos mentais graves e persistentes necessitam de
cuidados continuados, cuja coordenação é de responsabilidade da ESF.
Contudo, os casos graves que necessitam de atendimento intensivo também
devem estar inseridos nos CAPS, onde podem participar de atividades
terapêuticas diariamente, se necessário, individuais ou grupais, conduzidas por
uma equipe multiprofissional.
Aqueles que, mesmo graves, não necessitam dessa intensidade de
acompanhamento, podem ser encaminhados aos ambulatórios especializados
de saude mental, quando esses dispositivos estiverem presentes na rede local.
Nos períodos de estabilidade dos sintomas psicóticos, os usuários podem ser
acompanhados exclusivamente pela ESF, sobretudo se houver apoio do
profissional de saude mental matriciador, seja do CAPS ou do NASF (FORTES
et al., 2014).
Há também usuários que têm indicação para serem encaminhados ao
CAPS ou ao ambulatório, no entanto a própria gravidade do transtorno dificulta
a adesão ao tratamento, incluindo a ida aos serviços mais indicados, e acabam
acessando ou sendo acessados pela ESF (FORTES et al., 2014).
Outro dispositivo importante da rede são os Serviços Residenciais
Terapêuticos (SRT), onde pacientes graves, geralmente egressos de longas
internações e que não têm a mesma sorte de Francisca, isto é, não têm família
ou se recusa a recebê-los em suas casas, podem morar e ser reinseridos na
sociedade.
A ESF possui funções importantes na construção do Projeto Terapêutico
Singular (PTS), uma vez que coordena o cuidado integral da saude do usuário,
da promoção à reabilitação, e detém um conhecimento mais ampliado da
comunidade, da família, da adesão ou não ao tratamento por parte do paciente.
A ESF também apresenta maior facilidade em fazer busca ativa por meio
das visitas domiciliares aos que abandonaram o tratamento, inclusive em outros
serviços, e em identificar aqueles que nunca demandaram tratamento, alguns
até mantidos em cárcere privado pelos familiares. A partir de intervenções
adequadas, esses pacientes podem estabelecer novas relações com a família e
com a comunidade, adquirindo mais autonomia (FORTES et al., 2014).
É bastante comum pacientes com problemas mentais graves
apresentarem períodos de piora clínica, o que pode acontecer por motivos
diversos: a própria evolução do transtorno, a não adesão ao tratamento
farmacológico e a existência de fatores estressores psicossociais importantes.
Nesses casos, deve-se fazer, em um primeiro momento, uma avaliação
inicial dos riscos que justificam uma internação em ambiente protetor, conforme
discutido na
QUESTÃO NORTEADORA 7:
Se houver indicação de internação psiquiátrica, esta pode se dar no
hospital geral ou no hospital psiquiátrico ou o paciente pode ainda ser acolhido
em CAPS III, dependendo de quais dispositivos estiverem disponíveis na rede
do território e de qual pode oferecer um cuidado mais adequado ao paciente em
questão.
RESPOSTA:
O quadro a seguir faz um resumo das medidas a serem adotadas na
unidade básica de saude, em situações de agudização grave de sintomas
psicóticos, que chamaremos aqui de crise:
Quadro 10 - Medidas de manejo da crise.
Se o paciente estiver em agitação psicomotora, apresentando riscos de auto
e heteroagressão, pode precisar ser imobilizado. Para tal, deve-se providenciar
reforço, recorrendo ao serviço de segurança do posto ou à polícia. Depois disso,
inicia-se a sedação do paciente, que pode ser feita com duas ampolas de
Prometazina, intramuscular, associadas a uma ampola de Haloperidol, também
intramuscular. Posteriormente, uma ampola de Haloperidol poderá ser
administrada a cada 30 minutos até que haja sedação do paciente, ou seja,
atingido um total de seis ampolas.
Enquanto se procede à imobilização e sedação do paciente, outra pessoa da
equipe deve contactar o SAMU (192) para que o paciente seja então conduzido à
emergência psiquiátrica de referência o mais rápido possível. Deve-se orientar a
família quanto à necessidade dessas medidas protetoras e posteriormente discutir
o caso com o serviço para o qual o paciente foi levado, avaliado e possivelmente
internado.
Se o paciente precisar de internação, mas não houver necessidade de que
esta seja imediata, pode-se fazer contato com o serviço de saude mental que já o
acompanha; se houver, para discutir qual a melhor forma de providenciá-la, bem
como o local mais adequado, dependendo dos serviços disponíveis da rede.
Nas situações em que não é necessária a internação, como quando o
paciente está mais agitado ou irritado, mas não apresenta maiores riscos, com
dificuldades de sono etc., pode-se fazer um ajuste da medicação, aumentando a
dose do antipsicótico. Se este já estiver em dose máxima, deve-se consultar o
psiquiatra de referência. Se houver dificuldade de acesso ao especialista, uma
opção é associar um benzodiazepínico. Se for avaliado que a agitação se deve à
acatisia, como já se discutiu anteriormente, a conduta é a oposta: deve-se reduzir
o antipsicótico. Reforça-se com os familiares a necessidade do controle rigoroso
da medicação e se o paciente de fato está tomando. Deve-se, também, orientar
os familiares quanto ao surgimento de sinais de piora clínica e, caso ocorram, que
façam contato imediato com a equipe de ESF para o paciente ser reavaliado.
Deve-se, diante da piora clínica, reduzir o espaçamento entre as consultas
ambulatoriais e as visitas domiciliares até que ocorra a reestabilização clínica do
paciente.
Fonte: Adaptado de: CHIAVERINI, D. H. et al. (Org.). Guia prático de matriciamento em
saude mental. Brasília, DF: Ministério da Saude, 2011. http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_pratico_matriciamento_saudemental.pdf
IMPORTANTE!
A comunicação entre os serviços envolvidos permite a reavaliação
constante dos quadros clínicos dos pacientes e de seus PTS. Encontros
regulares para discussão e consultas conjuntas são fundamentais na articulação
do cuidado em rede, definindo e redefinindo os papéis de cada dispositivo de
modo dinâmico.
CASO CLÍNICO – PARTE 4
Alguns dias depois, já sem apresentar distonia, e agora com remissão
importante dos sintomas psicóticos, Bernardo foi com sua irmã à unidade
conversar com Dr. João. Já estava conseguindo sair de casa e aos poucos
começava a retomar as atividades habituais, com exceção do serviço militar.
Seria avaliado por uma junta médica militar, que definiria se seria desligado ou
não. Mas Bernardo não desejava voltar para o quartel. Ele gostaria de trabalhar
com seu tio, em um bar próximo à sua casa. E assim foi feito, mantendo seu
acompanhamento pela ESF, com o suporte do NASF.
Francisca retornou a casa após longos anos internada. A família precisou
se readaptar ao seu convívio. Passava algumas horas do dia no CAPS fazendo
atividades manuais. Ela gostava mais de participar da oficina de mosaico. Na
unidade de Saude da Família, passou a fazer parte dos programas de
acompanhamento dos pacientes hipertensos e diabéticos, bem como colocou
em dia seu exame preventivo de câncer de colo de utero.
Dr. João ajustou os hipoglicemiantes que usava, e como ela recusava
terminantemente o "comprimido azul" (haloperidol), a psiquiatra do CAPS
substituiu o haloperidol oral pelo haloperidol decanoato, duas ampolas
(intramuscular) a cada quatro semanas. A enfermeira da equipe fez um bom
vínculo com a paciente, conseguindo sua participação em algumas ocasiões no
grupo de caminhada.
A filha mudou seus horários de trabalho, de modo que Francisca quase
não ficava sozinha, pois quando a filha estava no emprego, ela ficava no CAPS.
A assistente social do NASF pesquisou quais benefícios sociais a paciente teria
direito e que poderiam compor a renda familiar.
QUESTÃO NORTEADORA 7:
Francisca e Bernardo, como visto anteriormente, apresentam a mesma
doença, entretanto o plano terapêutico individual de cada um deles é diferente.
Discuta sobre as semelhanças e diferenças nas estratégias adotadas para cada
caso? Cite quais benefícios sociais a assistente social do NASF poderia indicar
para o caso de Francisca.
RESPOSTA:
A semelhança que podemos perceber na condução dos casos de
Bernardo e Francisca, é que ambos permaneceram vinculados à equipe da ESF,
que, como dito anteriormente, é o ordenador do cuidado. Em ambos os casos,
houve também participação dos profissionais do NASF oferecendo o suporte
necessário.
Francisca necessitou ainda do acompanhamento intensivo do CAPS, uma
vez que seu transtorno é caracterizado por uma síndrome deficitária, como já
vimos, de maior comprometimento funcional. Já Bernardo, por ter apresentado
um quadro psicótico agudo, e ter respondido bem à medicação antipsicótica,
pôde retomar boa parte de suas atividades de vida diária, apresentando assim
uma boa recuperação.
Além do tratamento farmacológico já discutido anteriormente,
intervenções psicossociais são importantes no seguimento dos pacientes com
TMGP, algumas delas estão incluídas nos PTS de Francisca e seu filho. Elas
podem ser promovidas em vários dos serviços da rede, especialmente na ESF,
no CAPS e nos ambulatórios de saude mental:
Atendimentos individuais
Podem ser atendimentos pontuais ou regulares, utilizando técnicas mais
especializadas como em uma psicoterapia ou não, mas que já oferece um
espaço de escuta, reflexão, acolhimento.
Em relação aos pacientes psicóticos, evitam-se geralmente técnicas
voltadas para o insight, dando-se preferência a abordagens cognitivo-
comportamentais, de apoio e de resolução de problemas (HALES; YUDOFSKY,
2006).
No caso da ESF, o acompanhamento mais próximo de questões clínicas
frequentemente negligenciadas pelos pacientes com TMGP, por causa do
autocuidado muitas vezes prejudicado, é fundamental.
Pode-se monitorar melhor a partir dos atendimentos a adesão aos
tratamentos clínico e psiquiátrico, bem como os riscos associados ao uso de
medicação psicotrópica por meio de avaliação clínica e exames complementares
de rotina.
Atividades em grupo
Os objetivos mais importantes da realização de atividades em grupo com
pacientes psicóticos são: promover a psicoeducação referente ao transtorno,
informar os benefícios do tratamento, discutindo as dificuldades de adesão
trazidas pelos integrantes, estimular a identificação e reinserção do paciente na
comunidade (CHIAVERINI, 2011).
As atividades podem ser mais voltadas para a fala, como as terapias de
grupo, grupos operativos, terapia comunitária, grupos de suporte mutuo, ou de
outros tipos, estes mais frequentemente realizados nas unidades de Saude da
Família: grupos de caminhada, de atividades físicas e lazer, grupos temáticos
relacionados a determinadas patologias (hipertensão, obesidade, diabetes),
oficinas temáticas (geração de renda, artesanato), grupos de medicação etc.
(BRASIL, 2014).
As atividades, em muitos casos, não precisam envolver apenas pacientes
psicóticos, pelo contrário: é importante incentivar a participação destes em
grupos variados na medida do possível, fortalecendo assim os vínculos coletivos
e diminuindo o estigma na comunidade. Naturalmente, é preciso levar em conta
se o paciente se adequa ao perfil do grupo, uma vez que, dependendo da
gravidade do transtorno, sua participação pode ser de fato dificultada. É
importante fazer essa discussão ao se construir o PTS.
Intervenções familiares
Variam desde alguns atendimentos pontuais aos familiares do paciente até
a terapia de família mais estruturada, com uma só família ou com um grupo de
famílias. Os profissionais podem fornecer orientações quanto ao diagnóstico,
tratamento do transtorno e manejar dificuldades nas relações interpessoais,
melhorando assim a comunicação entre os familiares e reduzindo o nível de
estresse e sentimentos como raiva, frustração e impotência.
Reabilitação psicossocial
O objetivo da reabilitação psicossocial é reinserir as pessoas na
comunidade, ampliando capacidades e acesso a direitos essenciais. A OMS
(2010, p. 20), em seu Manual mhGAP de Intervenções para Transtornos Mentais,
Neurológicos e por Uso de Álcool e outras Drogas para a Rede de Atenção
Básica à Saude, sugere que a Atenção Básica:
Coordene as intervenções com o pessoal da saude e com colegas dos
serviços sociais, incluindo as organizações que trabalham com incapacidades.
Facilite os contatos com os recursos de saude e sociais disponíveis, a fim de
satisfazer as necessidades físicas, sociais e de saude mental da família.
Encoraje ativamente a pessoa a retomar suas atividades sociais, educacionais
e ocupacionais, conforme seja apropriado, e aconselhe os membros da família
a esse respeito.
Facilite a inclusão em atividades econômicas, incluídos empregos apoiados,
apropriados social e culturalmente.
Trabalhe com agências locais a fim de explorar oportunidades de emprego ou
educacionais, com base nas necessidades e no nível de capacidade da
pessoa.
Explore as possibilidades de apoio habitacional ou de residência assistida, se
necessário e possível (OMS, 2010, p. 20).
As pessoas com psicose frequentemente são discriminadas, porém é importante
superar preconceitos internos e externos. Trabalhar para conseguir a melhor qualidade
de vida possível.
Para ler mais sobre o processo de estigmatização, leia o texto:
SOARES, Rhaisa Gontijo et al. A mensuração do estigma internalizado: revisão sistemática da literatura. Psicologia em Estudo, Maringá, v.16, n.4, p.635-645, out./dez. 2011. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/pe/v16n4/a14v16n4.pdf.
IMPORTANTE!
As pessoas com psicose e seus cuidadores precisam estar envolvidos
ativamente, na medida do possível, na construção de seu PTS, em que será
discutida sua participação ou não nessas modalidades de tratamento, desde o
planejamento dessas intervenções até sua implementação e avaliação.
Quanto aos benefícios que a assistente social do NASF deve ter analisado
para Francisca, os que merecem destaque para os casos de TMGP, são:
1. Programa De Volta Para Casa, já mencionado quando abordamos o
tema da Reforma Psiquiátrica, e que tem por requisitos cumulativos para a sua
obtenção, conforme disposto no art. 3, da Lei Nº 10.708/03:
(I) pacientes egressos de internação psiquiátrica com duração mínima de dois anos; (II) que a situação clínica e social do paciente não justifique sua permanência em ambiente hospitalar e a conjugação entre o binômio reintegração social e necessidade do auxílio financeiro; (III) expresso consentimento do paciente ou representante legal; (IV) será garantido o tratamento continuado, em rede de saude (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PSIQUIATRIA, 2015).
2. Benefício de Prestação Continuada da Lei Orgânica da Assistência
Social (BPC/LOAS): A Previdência Social mantém um grupo de benefícios
assistenciais a idosos com mais de 65 anos e pessoas que tenham deficiência,
desde que a renda familiar, em ambos os casos, seja menor que ¼ do salário
mínimo. O valor deste benefício é de um salário mínimo. Para ter direito ao
benefício não é necessário ter contribuído para a Previdência (BRSIL, 2015).
Diante de tantas possibilidades de cuidado aos pacientes com TMGP na
Atenção Primária, não há duvidas de que a Estratégia de Saude da Família tem
muito a contribuir, em parceria com outros dispositivos da RAPS, sobretudo no
que se refere à sua reinserção social na comunidade, uma vez que seu trabalho
se efetiva mais fortemente no território, por onde hoje podem circular e se
relacionar pessoas que há poucas décadas seriam institucionalizadas em
hospícios.
REFERÊNCIAS
ABREU, P.B. et al. Psicoses. In: DUNCAN, B.B. et al. (Org.). Medicina ambulatorial: condutas de atenção primária baseadas em evidencias. Porto Alegre: Artes Médicas, 2013. p. 1124-1138. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PSIQUIATRIA. Programa “De Volta para Casa”: um benefício desconhecido. 2015. Disponível em: http://abp.org.br/portal/clippingsis/exibClipping/?clipping=9381. Acesso em: 30 set. 2015. AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Diretrizes para o tratamento de transtornos psiquiátricos: compêndio 2006. Artmed, 2009. p.64. _____. Manual estatístico e diagnóstico de transtornos mentais. 5. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 2014. BRASIL. Ministério da Saude. Secretaria de Atenção à Saude. Reforma psiquiátrica e política de saude mental no Brasil: documento apresentado à Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saude Mental: 15 anos depois de Caracas. OPAS. Brasília, 2005. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/Relatorio15_anos_Caracas.pdf>. Acesso em: 11 ago. 2016. _____. _____. _____. Núcleo de Apoio à Saúde da Família. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2014. 116 p. (Cadernos de Atenção Básica, n. 39). Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/nucleo_apoio_saude_familia_cab39.pdf. Acesso em: 11 ago. 2016. _____. _____. Secretaria de Assistência à Saúde. Informativo eletrônico de dados sobre a Política Nacional de Saúde Mental. Saúde Mental em Dados - 12, Brasília, ano. 10, n. 12, out. 2015. Disponível em: < http://www.mhinnovation.net/sites/default/files/downloads/innovation/reports/Report_12-edicao-do-Saude-Mental-em-Dados.pdf>. Acesso em: 11 ago. 2016. CAMOZZATO, A. et al. Esquizofrenia. In: CORDIOLI, A.V. (Org.). Psicofármacos: consulta rápida. 4. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 2011. p. 23-395.
CHIAVERINI, D. H. et al. (Org.). Guia prático de matriciamento em saude mental. Brasília, DF: Ministério da Saude, 2011. http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_pratico_matriciamento_saudemental.pdf. Acesso em: 11 ago. 2016. DALGALARRONDO, P. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2008. FORTES, S. et al. Psiquiatria no século XXI: transformações a partir da integração com a Atenção Primária pelo matriciamento. Physis Revista de Saude Coletiva, Rio de Janeiro, 24, n.4, p.1079-1102, 2014. GODOY, S. Concepções teóricas acerca das funções executivas e das altas habilidades. Cadernos de Pós-Graduação em Distúrbios do Desenvolvimento, São Paulo, v. 10, n. 1, p. 76-85, 2010. Disponível em: <http://www.mackenzie.br/fileadmin/Graduacao/CCBS/Pos-Graduacao/Docs/Cadernos/caderno10/62118_8.pdf>. Acesso em: 11 ago. 2016. HALES, R.E.; YUDOFSKY, S.C. Tratado de psiquiatria clínica. 4. ed. Porto Alegre: Artmed, 2006. HENRIQUES, A.A. et al. Medicamentos: informações básicas. In: In: CORDIOLI, A.V. (Org.). Psicofármacos: consulta rápida. 4. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 2011. p. 431-439. OMS. Classificação de transtornos mentais e de comportamento da CID 10: descrições clínicas e diretrizes diagnósticas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993. _____. MI-GAP Manual de Intervenções para transtornos mentais, neurológicos e por uso de álcool e outras drogas na rede de atenção básica. Genebra: OMS, 2010. SANT’ANA, M.K. et al. Efeitos colaterais e seu manejo. In: CORDIOLI, A.V. (Org.). Psicofármacos: consulta rápida. 4. ed. Porto Alegre: Artes médicas, 2011. p. 549-612. SOARES, R. G. et al. A mensuração do estigma internalizado: revisão sistemática da literatura. Psicologia em Estudo, Maringá, v.16, n.4, p.635-645, out./dez. 2011. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/pe/v16n4/a14v16n4.pdf. Acesso em: 11 ago. 2016.
ANEXO 1
Nome Apresentações Doses médias (usuais)*
Dose Máxima
Observações
Risperidona Comp. 1, 2 e 3mg
4 mg (2 a 6 mg) 8 mg Como iniciar: iniciar com 2 mg dia, dividindo ou não em duas doses ao dia. Contraindicações absolutas: alergia ao fármaco, gravidez e lactação, insuficiência renal ou hepática grave. Efeitos colaterais mais comuns: sonolência, aumento do apetite, fadiga, tremor, distonia, acatisia. Gravidez: contra-indicado Lactação: excretado no leite materno. Contra-indicado. Idosos: Utilizar doses mais baixas. Precauções: a) desaconselhar uso de álcool; b) avaliar possibilidade de gravidez em mulher em idade fértil; c) pacientes que operaram maquinas pesadas devem ser informados do efeito sedativo; d) pode causar hipotensão, no começo do tratamento, principalmente em idosos; e) alertar o paciente quanto ao risco de ganho de peso.