jarouche_mamede04. o prólogo-moldura das mil e uma noites no ramo egípcio antigo

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Resumo: O presente artigo compõe-se de duas partes, uma em árabe e outra em português. Na primeira, discutem-se certos padrões de fixação de texto do Livro das Mil e uma Noites a partir da edição crítica de Muhsin Mahdi (Leiden, 1984) e em segui- da se apresenta a tradução do que seria o “prólogo-moldura” desse livro em seu ramo egípcio antigo, conforme o vem denominando a crítica. Na segunda parte, tal discus- são é encetada em árabe e em seguida se apresenta a fixação de texto do “prólogo- moldura” do ramo egípcio antigo a partir de quatro manuscritos. Palavras-chave: Livro das mil e uma noites, narrativa árabe, ficção árabe, filologia árabe, tradução. Abstract: This article is composed of two parts, one in Arabic and another one in Portuguese. In the first part, certain standards of setting the text of the Thousand and One Nights, from the critical edition of Muhsin Mahdi are discussed (Leiden, 1984). This part is followed by the translation of what could be called, by critics, “prologue-frame” of this book in its old Egyptian branch. In the second part, such a discussion starts in Arabic and then followes by the setting of text of the “prologue-frame” of the old Egyptian branch from four manuscripts. Key words: Thousand and One Nights, Arab narrative, Arab fiction, Arab philology, translation. * UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO.

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PROLOGO MOLDURA1001 NOITES

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  • Resumo: O presente artigo compe-se de duas partes, uma em rabe e outra emportugus. Na primeira, discutem-se certos padres de fixao de texto do Livro dasMil e uma Noites a partir da edio crtica de Muhsin Mahdi (Leiden, 1984) e em segui-da se apresenta a traduo do que seria o prlogo-moldura desse livro em seu ramoegpcio antigo, conforme o vem denominando a crtica. Na segunda parte, tal discus-so encetada em rabe e em seguida se apresenta a fixao de texto do prlogo-moldura do ramo egpcio antigo a partir de quatro manuscritos.Palavras-chave: Livro das mil e uma noites, narrativa rabe, fico rabe, filologia

    rabe, traduo.Abstract: This article is composed of two parts, one in Arabic and another one in

    Portuguese. In the first part, certain standards of setting the text of the Thousand andOne Nights, from the critical edition of Muhsin Mahdi are discussed (Leiden, 1984). Thispart is followed by the translation of what could be called, by critics, prologue-frame ofthis book in its old Egyptian branch. In the second part, such a discussion starts inArabic and then followes by the setting of text of the prologue-frame of the old Egyptianbranch from four manuscripts.Key words: Thousand and One Nights, Arab narrative, Arab fiction, Arab philology,

    translation.* UNIVERSIDADE DE SO PAULO.

  • esde a publicao, em 19841 , da edio crtica do Livro das mil euma noites (LMUN) pelo scholar iraquiano radicado nos Estados

    FONTES

    2004

    p. 70-117

    D

    MMMMMAMEDEAMEDEAMEDEAMEDEAMEDE M M M M MUSTUSTUSTUSTUSTAFAFAFAFAFAAAAA J J J J JAROUCHEAROUCHEAROUCHEAROUCHEAROUCHE*

    O Prlogo-Moldura das Mile uma noites no Ramo

    Egpcio Antigo

    Unidos Muhsin Mahdi, professor da Cadeira James Jewett de Estudosrabes da Universidade de Harvard, retomaram-se duas idias bsicas arespeito desse livro: primeiro, conforme ele afirma, no acrescentarocoisa alguma fortuna crtica das Mil e uma noites os trabalhos que norecorrerem s fontes originais desse texto; e, segundo, como se podedepreender hoje em dia a partir dos muitos manuscritos que dele restaram,o livro se divide basicamente em dois ramos, srio e egpcio, sendoque este ltimo, por sua vez, tambm se divide em dois sub-ramos, anti-go e tardio (ou recente). Tal como a apresentou Muhsin Mahdi, e se-gundo ele prprio declara, essa diviso nada apresenta de novo, remon-tando a orientalistas como Zotenberg e Macdonald.

    A abundncia de manuscritos, ressalve-se, relativa: se existem muitosmanuscritos do que se convencionou chamar de ramo egpcio tardio,sobraram poucos do ramo egpcio antigo (cinco) e menos ainda do ramosrio (quatro, sendo que de um deles se extraviou um volume e o outro cpia direta deste, o que, do ponto de vista filolgico, lhe relativiza sobre-maneira a importncia).

    Talvez essa diviso em ramos requeira por ora alguma descrio um pou-1 Mahdi, Muhsin (org., int. e fixao de texto). Kitb alf layla wa

    layla, min ulihi alcarabiyya all (Livro das mil e uma noites, a partirde seus primeiros originais rabes), Leiden, 1984, 2 volumes (1o., apresen-tao e corpus; 2o., aparato crtico e descrio dos manuscritos e edies).

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    co mais pormenorizada. Depois de mais devinte e cinco anos de paciente pesquisa,Mahdi manteve essa diviso, proposta,

    como j se aludiu, porH. Zotenberg e maistarde por Duncan B.Macdonald. Mas nose limitou a apenasmant-la, tendo-a a-profundado e emba-sado historicamente.Antes de qualquer coi-sa, ele torna patente asituao peculiar doLMUN, no formato ounos formatos em quehoje o conhecemos,como obra produzidadentro do Estado Ma-meluco, o qual, duran-te o sculo XIV, englo-bava Egito e Sria.

    Supondo uma pro-pagao geogrfica li-near do Oriente ao

    Ocidente, Mahdi prope, com base emoutros pesquisadores2 , que a primeira ela-borao do LMUN teria se dado na Bagdgovernada pela dinastia abssida, por vol-ta do sculo IX D.C. Seria esse, ento, oramo iraquiano perdido, pois, curiosa-mente, a nica coisa que se pode afirmar aseu respeito que ele de fato existiu e quenele uma personagem feminina, ahrazdou i>razd, contava histrias a um rei cujo nome no se transmitiu posterida-

    de, valendo-se dos prstimos de outra per-sonagem feminina chamada Dunyzd oumais possivelmente Di>nzd. Tampouco sesabe qual seria o teor de tais histrias, ano ser que, genericamente, visavam en-treter o rei para quem eram narradas, oqual, por motivos ali inexplicados, resol-vera levar a cabo a terrvel tarefa de exter-minar as mulheres que se casavam comele logo aps a primeira noite de npcias.Desse ponto geogrfico, a Mesopotmia,

    espcie de fronteira voltil entre o mundorabe propriamente dito e o persa (de ondeteria provindo uma de suas fontes longn-quas, sob o nome de Hazr afsn, ou milmitos), o livro se transmitiu para a Sria.No se sabe exatamente em quais circuns-tncias isso se deu, mas, tratando-se de umaobra sem autoria conhecida, cuja cpia noestava submetida s rigorosas regrasestabelecidas a respeito para os livros di-tos cannicos, e, indo mais longe, cujouso era cada vez mais intensamente oral, provvel que nesse processo mesmo depropagao seu texto j tivesse sofrido mo-dificaes e adaptaes. Um argumento afavor dessa tendncia reside no fato de queseu texto estava ou passara a ser redigidonuma linguagem intermediria entre o di-aleto rabe urbano do Mdio Oriente, paraa qual apresenta acentuado pendor, e o cls-sico, que contamina a redao o tempotodo. Destarte, conforme se viu no par-grafo anterior, a respeito dessa primeira ela-borao, ou dessas primeiras elaboraesque constituiriam, conforme pensa

    2 Notadamente na pesquisadora iraquianaNabia Abbott (Nabi e do livreirobagdali Annadi>m Alwarra>q, respectivamentenas Pradarias de Ouro e no Catlogo apre-sentam, em alguns manuscritos, mil noitese, em outros, mil e uma noites, o que podeser fruto da correo de algum copista. Oorientalista S. D. Goitien divulgou um dosditos documentos da Geniza do Cairo, comdata de 521 H./1127 d.C., parte do livro denotas de um mdico judeu que era tambmwarra>q, i.e., um homem que consertava, com-prava e alugava livros, trabalhando ainda, porvezes, como notrio; nesse documento, ci-tam-se alguns livros alugados, entre os quaiso livro das mil e uma noites, com MajdAlcazi>zi>. Trata-se da referncia expressa maisantiga ao livro (Cf. Goitien, S. D. The oldestdocumentary evidence for the title Alf Lailawa-Laila, in: Journal of the American Orien-tal Society, volume 78, Issue 4 Oct. Dec.,1958, pp. 301-302).

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    Muhsin Mahdi, as matrizes antigas ouarqutipos antigos (alummahtalqadi>ma), s possvel afirmar, comsegurana, que efetivamente existiram,e que o enredo de seu prlogo-moldu-ra apresentava semelhanas com oLMUN nos diversos formatos sob osquais hoje conhecido.Deixando de lado as matrizes antigas

    do LMUN, Mahdi lhe refere a matriz ouarqutipo (alumm), elaborada na segun-da metade do sculo XIII, durante a vign-cia do Estado Mameluco na Sria e no Egi-to, com certeza logo depois da destruiode Bagd pelos mongis em 1258, e o tex-to constituinte (addustr), consolidado, nomximo, uma ou duas geraes aps amatriz. Segundo Mahdi, embora tantouma como o outro tenham sido perdidos, possvel dizer, quanto matriz, que eladecerto abarcava todas ou a maioria dashistrias e das expresses contidas nodustr. Quanto ao dustr, seria o nicooriginal ao qual remontam, no final dascontas, todos os manuscritos de ambos osramos, srio e egpcio. Como base parasua edio, Mahdi valeu-se do manuscritomais antigo das noites, que pertenceu a JeanAntoine Galland. Constitudo de trs vo-lumes hoje depositados na Biblioteca Na-cional de Paris, esse manuscrito remonta,segundo avaliao do autor, a meados dosculo XIV3 .Existem, como parece evidente, alguns

    problemas nessa argumentao, pois o au-tor no esclarece devidamente as diferen-

    as entre matriz e constituinte, nemtampouco quando se teria iniciado a dis-perso que deu origem aos dois ramos. Nofica claro, igualmente, se o ramo egpciono seria um simples sub-ramo, quase umgalho torto, do ramo srio. Apesar dessaspequenas ressalvas, trata-se de um traba-lho de qualidadeque somente sersuperado se e quan-do forem localiza-dos outros manus-critos antigos. Deuma perspectiva ri-gorosamente hist-rica, e levando-seem considerao osmateriais de que sedispe hoje em dia,Mahdi realizou umtrabalho quase per-feito.A anlise que faz do livro, dada a lume

    em textos publicados esparsamente em r-gos especializados e reunidos no terceirovolume de seu trabalho4 , uma leitura porassim dizer islmica que, apoiada emmodernas teorias sobre a narrativa, realae valoriza de modo formidvel o carterrabe-muulmano das primeiras histrias,ressaltando-lhes a unidade de concepo edesprezando leituras anteriores que se de-bruavam sobre os aspectos persas, in-dianos e quejandos, absolutamente impro-vveis porque baseadas em textosinexistentes resultantes de transmisses

    3 Segundo Mahdi afirma, esse manuscrito um sculo mais velho do que a mais antiga dataonele registrada, 859 H./1455 d.C. Ainda sobre omanuscrito de Galland, note-se que ele apresentasomente 282 noites, o que, de resto, correspondes caractersticas do ramo srio. Porm, o fato deno conter 1001 noites fez surgirem diversas hi-pteses a respeito de supostos volumes perdidosdo manuscrito, o que no passava, obviamente,de especulao.

    4 Kitb alf layla wa layla, min ulihialcarabiyya all, op. cit., Leiden, 1994, 3o. vo-lume (introduo e ndices). Na introduo secompreendem trs captulos (sobre Galland, seussucessores e as edies impressas das Noites) etrs ensaios de interpretao.

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    tambm inexistentes. No entanto, ainda quetal anlise seja muito interessante e suges-tiva, talvez tenha faltado estrib-la em ar-

    gumentos da poca. Ouso da ironia contra o quese chama de histria-exemplar, v.g., con-quanto pareairretorquvel aps a leitu-ra da anlise de Mahdi,poderia ter sua leitura tal-vez enriquecida e corro-borada por meio de tex-tos contemporneos so-bre esse assunto ou sobreassuntos correlatos.Por outro lado, em

    1988 o orientalista fran-cs Patrice Coussonnetpublicou uma resenha naqual, apesar dos elogiosgenricos aos seus esfor-os, contesta os princpi-

    os nos quais se assentou o trabalho deMuhsin Mahdi5 . As objees e restriesso de diverso calibre, ora diretas ora indi-retas, e, como ou no concordamos comelas ou as consideramos de somenos im-portncia, seguem listadas abaixo, entreaspas, seguidas da resposta:1) O autor edita [o manuscrito de

    Galland] sem nenhuma correo. No verdade. O autor inclui diversas correes,algumas poucas operadas a partir de suaprpria pena, mas a maioria a partir dosoutros manuscritos de que se serviu. Ade-

    mais, no aparato crtico constante do se-gundo volume surgem esclarecimentos es-senciais, como num caso em que a part-cula qad, de uso eminente mas no exclu-sivamente clssico, foi grafada ad, ocor-rendo contaminao pelo uso popular edialetal que transforma a pronncia daoclusiva uvular surda qf na oclusiva glotalsurda hamza. O registro valioso porque,tratando-se de palavra incomum no usodialetal, indica o grau de contaminaoentre ambos os nveis.2) Certos manuscritos importantes

    das Noites no foram utilizados pelo au-tor. Trata-se de informao que deveriaser matizada. De um lado, evidente queso importantes todostodostodostodostodos os manuscritos6 , namedida em que possuem uma historicidadeprpria, suscetvel de ser capturada pelaanlise, e cuja constituio mesma poderefratar parcial ou inteiramente muito domodo de pensar de uma determinada po-ca e nesse caso se incluem at mesmo osfalsos manuscritos forjados por D.Chavis ou M. Sabbagh7 , que de algummodo, somente suscetvel de comprovaomediante estudos exaustivos, incorporarampadres de expectativa de orientalistas eu-ropeus tal como podiam ser percebidos porrabes cristos pouco mais ou menos afei-tos ao Ocidente no sculo XVIII ou no XIX,ou qui fosse melhor dizer: em perodoanterior e posterior Revoluo Francesa.Feita essa ressalva, porm, faz-se misterregistrar que M. Mahdi deixou claro o pou-co interesse apresentado, para seu prop-

    5 Publicado no Bulletin Critique desAnnales Islamologiques, 1988, no. 5, pp. 15-18.

    6 Um excelente exemplo de estudo demanuscrito isolado, que intenta rastrear asdeterminaes da produo textual, o tra-balho de Aboubakr Chraibi, Contesnouveaux des 1001 Nuits. tude dumanuscrit Reinhardt. Paris, LibrairiedAmrique et dOrient/Jean MaisonneuveSuccesseur, 1996.

    7 rabes cristos que exerceram ativida-des intelectuais em Paris. Ambos transcreve-ram, com suas prprias letras, manuscritos dasMil e uma noites que mais tarde se revelaramfalsos ao menos se confrontados com asalegaes por eles apresentadas, de que se tra-tava de cpia fiel de manuscritos originais. Oprimeiro, padre, foi expulso da Frana depoisda revoluo; o segundo foi Frana aps terservido a expedio napolenica no Egito, daqual era entusiasta, e terminou seus dias namais deplorvel misria.

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    sito especfico, daquilo que ele que classi-ficou de ramo egpcio tardio, ao qualpertencem os manuscritos citados peloresenhista (o de Reinhardt e o de Lenin-grado). Sublinhe-se que no se trata, obvi-amente, da data do manuscrito, e sim docorpus nele contido; o manuscrito 49Gayangos, da Biblioteca da Real Acade-mia de Histria, em Madrid, bastante re-cente talvez de incios do sculo XIX eno entanto apresenta um corpus mais anti-go do que o manuscrito 3612 arabe daBiblioteca Nacional de Paris, produzido nosculo XVII.3) Elaborada ao fim do sculo XIX

    por Zotenberg, essa tese de uma genealogiados manuscritos e de sua diviso em doisramos, srio e egpcio, parece superada.Para que se considere superada, necess-rio que tenha aparecido outra mais consis-tente, mas isso, ao menos no que se refere crtica gentica, ainda no ocorreu. Ade-mais, Muhsin Mahdi sustenta muito bemtal tese e a renova.4) Parece difcil comprovar essa

    sirianidade presumida [dos manuscritos doramo srio]. No, no parece. O autor a de-monstra, e muito bem. bvio que nenhummanuscrito carrega os dizeres: ateno, tra-ta-se de um manuscrito srio. E no se tratade uma sirianidade estritamente regional (emuito menos nacional, o que seria absur-do), mas de um regionalismo, diga-se as-sim, operado numa circunstncia especficaem que duas regies Sria e Egito foramenglobadas por um nico Estado, qual seja, o

    Estado Mameluco. Talvez, em tais condies,a obra tenha sido elaborada, ou reelaborada,com a finalidade de subtrair-se s determina-es exclusivamente regionalistas muito em-bora vrios dialetalismos srios sejam aliobservveis.5) No fica

    bem explicado omotivo pelo qual oautor completa cer-tos contos graasaos manuscritosegpcios e por quedeixa inacabado oprlogo-moldura(rcit-cadre). Deum lado, o que oautor fez foi suprir diversas lacunas medi-ante recurso aos manuscritos egpcios, masdeixando bem claro que tal procedimentose devia existncia de defeitos evidentesno original do ramo srio. Assim, mais doque mera supresso de lacunas, o recursoaos manuscritos do ramo egpcio preten-deu evidenciar, de um lado, que o autordeparou com problemas no solucionveiscom o simples recurso ao ramo srio, e, deoutro, que a soluo se deu a ttulo prec-rio. Quanto a ter deixado o prlogo-mol-dura inacabado, note-se que nenhum dosmanuscritos do ramo egpcio antigo dosquais o autor lanou mo apresenta o ditoacabamento do prlogo-moldura8 , poisele somente se verifica nos manuscritos doramo egpcio tardio, que so os nicos, ali-s, a conter mil e uma noites9 . E existe

    8 Mas isso no significa que, em al-gum de seus estgios mais antigos, o pr-logo-moldura no possusse um rema-te qualquer; lembre-se o brevssimo esobejamente conhecido resumo noAlfihrist, do livreiro Annadi>m Alwarrq,morto por volta do ano 1000 d.C., no qualse faz referncia, decerto, ao enredo deuma das ditas matrizes antigas e se citauma espcie de remate: e assim se pas-saram mil noites, durante as quais ele [orei] dormiu com ela [ahrzd], at queela teve dele um filho e o mostrou etc.etc. (Alfihrist, ed. de Rid{ Tajaddud, Bei-rute, Dr Almasi>ra, 1988, p. 363).

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    pelo menos um manuscrito completo(isto , com 1001 noites), o de Montague,que no apresenta concluso alguma, olvi-dando inteiramente a narradora ahrazdem seu final10 .

    * * *

    Entretanto, no objetivodo presente trabalho encetaruma discusso aprofundadaacerca do excelente e por to-dos os ttulos louvvel traba-lho de Muhsin Mahdi, nemdas crticas de que foi alvo,mas sim aproveitar uma desuas inmeras sugestes: su-pondo-se pertinente a divisodo livro em ramos (srio,egpcio antigo e egpciotardio), existe uma lacunanas publicaes do LMUN: o

    texto do ramo srio, como se exps ao lon-go desta introduo, foi enfim fixado porMuhsin Mahdi em 1984; o do ramo egp-cio tardio que corresponde, basicamente, primeira edio de Blq, de 1251 H./1835 d.C., em dois volumes, revisada peloxeique cAbdurramn Aifati> Aarqwi>,e a segunda edio de Blq, mais adequa-damente chamada do Cairo, em quatrovolumes, de 1279 H./1863 d.C., revisadapelo xeique Muammad Qut {t{a Alcadwi>com auxlio da segunda edio de Calcu-t, de 1839-1842 tem sido editado ereeditado com maior ou menor constncia

    na maioria dos pases rabes. Porm, umramo cujo texto ningum ainda tentou fi-xar, ao menos que se tenha notcia, oegpcio antigo, talvez pelas dificuldadesenunciadas por Muhsin Mahdi. De qual-quer modo, embora o todo seja difcil parano dizer impossvel de editar, no se podedizer o mesmo a respeito de seu prlogo-moldura, entre cujas caractersticas maisnotveis e inquietantes, grosso modo, esta crescente estereotipagem do enredo (aomenos no que tange s primeiras histrias)e a gradativa diminuio do papel deahrazd como narradora dotada de umplano preconcebido, o que fica muito evi-dente nas anlises do texto do ramo sriolevadas a cabo por Muhsin Mahdi.Assim, o que se faz aqui editar em ra-

    be, e em seguida traduzir ao portugus, otexto de um possvel formato do prlogo-moldura do LMUN no ramo egpcio anti-go. Para tanto, lanou-se mo de dois ma-nuscritos principais11 :I) Manuscrito arabe 3615 da Bibli-

    oteca Nacional de Paris, que se estima per-tencer a finais do sculo XVII ou inciosdo XVIII, no qual o prlogo-moldura ocu-pa as pp. 1 v. 8 f;II) Manuscrito Gayangos 49 da

    Real Academia de la Historia, em Madrid;conquanto tardio (possivelmente sculoXIX), contm um corpus visivelmente an-tigo muito embora seu pendor meio pi-cante, em especial nas aberturas e encerra-mentos das noites iniciais, seja coisa maisrecente; nele, o prlogo-moldura ocupa as

    9 Podendo, por eventuais (ou m-gicas, como talvez preferisseBorges) distraes de copista, conterat mesmo mais do que mil e umanoites, como o caso, por exemplo,do manuscrito Z 13523 da Biblio-teca Nacional do Egito, que contmmil e sete noites (e, ao chegar 1007a.noite, o copista registra com bovinaindiferena: e, quando chegou amilsima primeira noite...). Note-seque os ramos srio e egpcio antigono apresentam a quantidade de mile uma noites nem tampouco o re-mate do prlogo-moldura.

    10 Trata-se do manuscrito Mon-tague, no. 550-556, da BodleianLibrary, de Oxford. Sobre as con-cluses das noites, pode-se consul-tar: Grotzfeld, H. Neglectedconclusions of The Arabian Nights,in: Journal of Arabic Literature, vol.XVI, 1985, pp. 73-87.

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    pp. 2v 16 f. ( dele que se extraiu a hist-ria do burro, do boi e do fazendeiro, conta-da pelo vizir para ahrazd a fim dedemov-la de seu projeto, e que no cons-ta do manuscrito anterior).So esses os dois principais manuscri-

    tos em que baseou o presente trabalho.Como textos de apoio, usaram-se ainda osseguintes manuscritos:III) Manuscrito Bodl. Or. 550 da

    Bodleian Library, de Oxford, datado de1177 H. (1864 d.C.); nele, o prlogo-mol-dura ocupa as pp. 3 v. 7 v.;IV) Manuscrito arabe 3612, da Bi-

    blioteca Nacional de Paris, datvel, pelopapel, pela letra e pelas evidncias histri-cas, do sculo XVII. Pertenceu a Benoitde Maillet (1636-1738), cnsul geral daFrana no Egito entre 1692 e 1702.Alm desses manuscritos, recorreu-se

    ainda s citadas edies de Blq (a pri-meira, de 1835) e de Muhsin Mahdi. A tra-duo, evidentemente, ateve-se preci-puamente ao corpus fixado, pois o aparatocrtico do texto em rabe se detm emmincias que, na maioria das vezes, somen-te interessam em sua lngua original. O tex-to em portugus, tendo em vista os objeti-vos do presente trabalho, praticamente ab-dicou do estatuto literrio em favor datraduo literal, a fim de deixar claras aordem de formulaes e as preferncias porassim dizer estilsticas do original. Sir-va o seguinte caso para exemplificao ecompreenso do que se pretende aqui como sintagma traduo literal: no trecho o

    rei encontrou sua mulher dormindo ao ladode um dos garotos que trabalhavam na co-zinha; estavam abraados, talvez fossemais escorreito e econmico, em portugu-s, traduzir simplesmente: o rei encontrousua mulher dormindo abraada a um dosgarotos que trabalhavam na cozinha. Deu-se preferncia, porm, primei-ra formulao, que, sem perdanenhuma de inteligibilidade,acompanha pari passu o origi-nal rabe, no qual ficam clarasas gradaes do olhar do rei:primeiro, ele v a mulher dor-mindo ao lado de um homem,e somente em seguida observaque estavam abraados. Ade-mais, dizer abraada supealguma prevalncia da mulher,ao passo que o original , pas-se o termo, democrtico: nem ela estavaabraada, nem o garoto estava abraa-do; o que ocorria que estavam ambosambosambosambosambosabraados. Trata-se de uma nuance lite-rria stricto sensu que deve ser respeitadae mantida, sob pena de descaracterizaodo texto. Mantiveram-se igualmente todasas ocorrncias da interferncia amide re-barbativa mas muito tradicional em rabedisse o narrador, bem como determina-das expresses que so resultado dadestinao oral a que o livro foi submetidoa certa altura de sua trajetria.Como palavras finais, deve-se registrar

    que, primeira vista, o prlogo-moldu-ra do que se denomina ramo egpcio an-

    11 Usaram-se, para a realizaodo presente trabalho, os micro-filmes dos manuscritos. Por essemotivo, as eventuais menes aquiefetuadas para a datao (papeletc.) baseiam-se nos estudos dequem manuseou os originais de taismanuscritos, em especial MuhsinMahdi (op. cit.) e H. Zotenberg,Histoire dAla al-Din ou La LampeMerveilleuse.Texte arabe publieavec une notice sur quelquesmanuscrites des Mille et une Nuits,Paris, 1888.

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    tigo do LMUN parece, com efeito, pade-cer de certa incoerncia narrativa. Contu-do, justamente essa incoerncia o maisevidente resqucio, runa evanescente, doprocesso de reescritura que o texto sofreu

    em terras egpcias. Num estudo ainda emfase de preparao, pretendemos efetuaruma comparao mais pormenorizada en-tre esses diferentes estgios de elaborao.

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    EEEEESTESTESTESTESTE OOOOO RELATORELATORELATORELATORELATO DASDASDASDASDAS MILMILMILMILMIL EEEEE UMAUMAUMAUMAUMA NOITESNOITESNOITESNOITESNOITES12

    Em nome de Deus, Misericordioso, Misericordiador, em quem est o socorro

    Conta-se e Deus sabe mais sobre o que est ausente, e mais sapientesobre o que ocorreu, passou e se acabou nas crnicas das naes que existiamno reino dos sassnidas, na pennsula da ndia, dois reis irmos por parte de paie me; o mais velho se chamava hriyr, e o mais novo, h Zamn13 ; o reinodo mais novo era a terra de Samarcanda, e o do mais velho a Alta China interior.Permaneceram em tal situao durante dez anos.Disse o narradorDisse o narradorDisse o narradorDisse o narradorDisse o narrador: e o motivo pelo qual hriyr, o mais velho, fora empossado na

    China tinha uma histria admirvel, envolvendo uma questo emocionante e espantosaque era a seguinte: o pai de ambos costumava realizar expedies contra o reino daChina todos os anos, quando ento se davam a guerra e os combates de parte a parte.Ento ocorreu que, certa vez, quando seu pai fazia teno de marchar contra a China,conforme seu hbito, com seus soldados, cavaleiros e tropas, trouxe sua presena osdois filhos e lhes disse: fiquem sabendo que na guerra a sorte varivel; numa hora aseu favor, na outra contra. Estou saindo para a guerra e a luta, e no sei o que condiesirei ficar: quem ser o vencedor, quem o derrotado, quem o caador, quem o caado.Assim, estou nomeando meu filho h Zamn governador de Samarcanda, ao passo quevoc, hriyr, vir comigo para a luta e o combate, devendo ficar atento s questesatinentes aos soldados e cavaleiros, pois voc que est indicado para ser rei depois demim. Assim sero as coisas, pois quem bem zela por seus interesses ser bem sucedi-do. O filho assentiu a suas palavras, e o rei ento marchou at a cidade de seu inimigo;a guerra se deflagrou e o rei venceu e matou o inimigo, apossando-se de sua cidade, naqual se instalou por uns poucos dias, vindo a morrer em seguida. hriyr foi ento

    12 A presente verso parteda traduo integral do texto queo autor est atualmente realizan-do.

    13 A grafia dos nomes apre-senta variaes. No manuscritoutilizado como base, hZamn encontra-se separado.

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    entronizado em seu lugar, a permanecendo pelo perodo de dez anos na melhor situ-ao.14

    Mas o rei hriyr, sentindo saudades de seu irmo h Zamn, convocou seuvizir que tinha duas filhas, a maior chamada ahrazd e a menor, Di>nzd elhe ordenou que se dirigisse at a terra do irmo a fim de ter com ele. O vizirento se preparou e saiu em viagem, avanando durante dias e noites at chegara Samarcanda. O rei h Zamn, informado de que o vizir de seu irmo hriyr

    chegara de viagem, saiu para recepcion-lo acompanhado de um grupo de homens desua corte; apeando-se do cavalo, abraou-o e perguntou-lhe sobre o irmo. O vizirinformou que ele estava bem e que o havia enviado para levar o irmo caula at si.Anuindo a tal solicitao, h Zamn hospedou o vizir [nas cercanias] da cidade, e lheenviou tudo de que necessitava: provises, materiais para melhor acomodar-se, forra-gem; cumpriu com seus deveres durante dez dias, at que ficou pronto para a viagem,nomeando em seu lugar um dos secretrios da corte. Saiu com suas roupas, tendas,soldados e todos os apetrechos de que necessitava para a viagem, e passou aquelanoite no pavilho do vizir; quando foi no meio da noite, o rei h Zamn levantou-se,entrou na cidade e seguiu avanando at o seu palcio, onde entrou. Quando chegou aseu aposento de dormir, encontrou sua mulher dormindo ao lado de um dos garotosque trabalhavam na cozinha; estavam abraados. Assim que os viu, o mundo se escu-receu a seus olhos e ele balanou a cabea dizendo: no h estratgia nem fora senoem Deus poderoso! De Deus viemos e a ele volveremos! Se isso ocorre em meupalcio comigo ainda presente, como ser ento quando eu me ausentar? Mas as mu-lheres no so mesmo de confiana. E ento ele desembainhou a espada e golpeou aambos decepando-lhes a cabea e atirando-os no fosso. Saiu ao encontro do vizir deseu irmo, ordenando-lhe que viajassem naquela noite. Quanto a seu segredo, ele oguardou e nada falou a respeito. Tocaram-se ento os tambores que anunciavam oincio da jornada e eles partiram em viagem. Mas no corao do rei h Zamn haviaum fogo que no se apagava e uma labareda que no se extinguia em virtude do quelhe havia sucedido por parte da esposa: como pudera tra-lo e troc-lo por um garotoda cozinha? Continuaram avanando at que se aproximaram da cidade de seu irmohriyr, o qual, ao ouvir sobre a chegada do irmo, saiu a fim de recepcion-lo.Assim que seus olhos se encontraram, ele abraou h Zamn, aproximou-o de si, co-briu-o de honrarias e hospedou-o num palcio ao lado do seu. O rei hriyr, que tinhaum belo jardim entre os dois palcios, destinou o palcio de hspedes para uso exclusivode h Zamn, ordenando a ida de empregados que arrumaram tudo e abriram as janelasque davam para o jardim.

    14 Este relato sobre omotivo de hriyr viver naChina consta somente domanuscrito arabe 3615.

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    O rei h Zamn permanecia o dia inteiro no div com o irmo, e, ao final do dia,subia ao palcio para dormir; quando amanhecia, ia at seu irmo no div.Mas o rei h Zamn se lembrou do que ocorrera sua mulher por causa da desgraa

    e do infortnio que a mudana dos tempos provocava, e ento suspirou profundamentee reprimiu a tristeza, pondo-se a vagar com o pensamento e dizer: no suponho que aningum tenha sucedido algo igual ao que me sucedeu, e diminuiu o comer e beber; suacor se alterou, seu ser se amarelou e seu estado se modificou. Ao v-lo em tais condi-es, alterando-se diariamente e desmilingindo-se a olhos vistos, seu irmo sups queaquilo se devia ao fato de estar separado de seu reino e de seus parentes e pessoas de suaconvivncia e pensou: creio que este pas no est sendo agradvel a meu irmo; masvou preparar-lhe um belo presente e mand-lo de volta sua terra. Assim, o rei hriyrse ps a reunir presentes, dinheiro e jias caras para o irmo durante o perodo de umms inteiro; depois, mandou chamar seu irmo, que se apresentou, e lhe disse: eupretendo, meu irmo, sair para a caa, em busca de oportunidades para distrair-me,durante o perodo de dez dias; na volta, prepararei voc para a viagem ao seu pas.Gostaria de ir caar comigo e depois retornar ao seu pas? h Zamn respondeu: porDeus que, se eu no estivesse com o peito opresso e o pensamento aflito, iria e nodeixaria voc partir sozinho. Mas deixe-me e v com a paz de Deus altssimo. Ao ouvirtais palavras do irmo, que tornavam impossvel insistir mais, hriyr deixou-o e via-jou com os soldados; entraram no campo e circunscreveram o espao para caar osanimais.Disse o narradorDisse o narradorDisse o narradorDisse o narradorDisse o narrador: isso quanto ao rei e seus soldados. Quanto a h Zamn, depois da

    viagem do irmo ele se dirigiu ao palcio onde estava hospedado, abriu as janelas quedavam para o jardim, olhou para as rvores, flores e aves, recordou-se da mulher e doque ela havia feito contra ele, e como o trara, e suspirou profundamente, reprimindo atristeza.Enquanto ele assim estava em sua obsesso e tristeza, eis que uma porta secreta do

    palcio de seu irmo se abriu e dela saiu a senhora esposa de seu irmo entre vintecriadas dez brancas e dez negras, requebrando no meio delas como se fora uma gazelasedenta. Ele os olhava de um ponto no qual no era visto. Continuaram avanando atficar sob o palcio em que estava h Zamn o qual supunham ter viajado com o irmopara a caa e todos arrancaram as roupas; eis que as dez criadas negras eram dez escra-vos machos que se lanaram sobre as dez criadas brancas, enquanto a senhora esposa dorei gritava: Mascd!, e eis que um escravo negro desceu de uma rvore e foi at ela,sobre a qual caiu e satisfez seu desejo. E assim permaneceram at o meio do dia. Quan-do terminaram tal atividade, lavaram-se no jardim, vestiram suas roupas e saram do

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    jardim pela porta secreta do palcio; quanto ao escravo Mascd, ele despencara pelomuro do jardim e j estava longe do alcance da vista.Disse o narradorDisse o narradorDisse o narradorDisse o narradorDisse o narrador: aps essa cena, o rei h Zamn comeou a refletir sobre o que

    ocorrera sua cunhada; tendo visto essa enorme desgraa e terrvel desdita, ele pensouem como podiam viver no palcio de seu irmo dez escravos machos em trajes femini-nos; como dormiam em seu palcio, em meio s suas concubinas; e como o escravoMascd havia possudo sua cunhada. Ficou muito aborrecido, mas as preocupaes esussurros que o acometiam tornaram-se mais leves. Pensou: se isso ocorreu ao meuirmo, que o maior rei da terra, se at a ele sucedeu tamanha desgraa dentro de suacasa sem que ele saiba, como ser ento o caso de outros homens? O que me sucedeu porparte de minha mulher mais fcil de suportar! E eu que pensava que essa coisa jamaisocorrera a nenhum outro alm de mim? Por Deus que minha desgraa mais suportvelque a do meu irmo! Assombrado com aquilo, ps-se a censurar o tempo, de cujasdesgraas e calamidades ningum fica a salvo. Depois, j esquecido de suas preocupa-es e distrado de sua desgraa, devorou com apetite e alegria todo o jantar; trouxeram-lhe bebida e ele bebeu, e se dissiparam as fadigas e dores que ele trazia no corao e namente. Divertiu-se, arrebatou-se e disse: no sou eu o primeiro nem o nico que foiafligido por uma desgraa.E assombrado ele permaneceu at que seu irmo regressou. h Zamn recebeu-o

    feliz e alegre, parabenizando-o pelo bom retorno. Ento o rei hriyr, muito afvel como irmo, disse-lhe: por Deus, meu irmo, que o meu desejo era que voc estivessecomigo na caa. h Zamn agradeceu-lhe por isso. Foi servido um banquete e elescomeram at ficar saciados; a comida foi recolhida e eles comearam a conversar at oanoitecer, quando ento lhes trouxeram bebida, e eles beberam, alegraram-se e ficaramem estado de arrebatamento. O rosto do rei h Zamn ficou vermelho e, tendo-sedivertido e ficado em arrebatamento, retomou seu antigo estado [anterior crise provocadapela traio de sua mulher]. Olhando para o irmo, que recuperara as cores, e estando ass com ele, o rei hriyr lhe disse: meu irmo, quando voc chegou aqui notei queestava com as cores alteradas e comendo pouco. Como voc ficou assim por todo otempo, eu supus que isso se devesse ao fato de estar separado da sua famlia, da suacidade e do seu reino; por isso, nada perguntei a respeito. Porm, depois de eu ter viaja-do e voltado, vejo que voc readquiriu suas foras e recuperou a cor. Gostaria que medeixasse a par do motivo, sem nada esconder de mim.Disse o narradorDisse o narradorDisse o narradorDisse o narradorDisse o narrador: ao ouvir as palavras do irmo, h Zamn abaixou a cabea e disse:

    rei, quanto ao motivo de minha fraqueza, eu lhe falarei a respeito; porm, quanto aomotivo que me fez recuperar as foras e aliviou meu pensamento dos transtornos, eu no

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    posso dizer-lhe. Assim, peo que a sua generosidade me dispense de faz-lo.Disse o narradorDisse o narradorDisse o narradorDisse o narradorDisse o narrador: o rei hriyr ficou intrigado com a recusa e irrompeu em seu

    corao a labareda do fogo; disse: absolutamente imperioso que voc me conte ambasas coisas. Porm, conte-me por ora a sua primeira histria.Disse o narradorDisse o narradorDisse o narradorDisse o narradorDisse o narrador: ento h Zamn contou-lhe o que sucedera com sua

    esposa na noite da viagem, de cabo a rabo, pela frente e pelo avesso erepetir no vai repercutir15 . Disse: como poderia minha cor no se alterare meu ser no se transtornar, irmo? Cada vez que eu me lembrava, maisme desmilingia e ficava ofegante, com preocupaes e obsesses me per-seguindo. Foi esse, pois, o motivo de minha alterao, emagrecimento edebilidade. E ento parou de falar. Ao ouvir as palavras do irmo, o rei hriyr ficouassombradssimo e balanou a cabea, considerando terrveis as artimanhas e a perver-sidade das mulheres; disse: por Deus, irmo, que essa apenas uma parte das perfdiasde que elas se valem. Voc agiu certeiramente matando-a, e essa sua atitude satisfez aminha nsia. Por Deus que eu o julgo justificado: o que aconteceu a voc nunca aconte-ceu a nenhum outro. Se fosse eu, no me bastaria matar nem cem mulheres e mil ho-mens: eu sairia por a enlouquecido. Graas a Deus que voc pde dissipar suas preocu-paes e aflies. Agora me diga qual foi o motivo disso. Disse h Zamn: por Deus,meu irmo, dispense-me disso. Respondeu: absolutamente imperioso que me infor-me. Disse h Zamn: eu temo que voc seja atingido por aflies e obsesses pioresdo que as minhas. Disse o rei: estou perdendo a pacincia. Disse h Zamn: querdizer que isso de fato imperioso? Respondeu: sim. Ento h Zamn relatou ahriyr a histria do comeo ao fim: o que tinha sucedido sua esposa com Mascd, es dez criadas com os dez escravos. Continuou h Zamn: quando vi essa desgraa eessa terrvel situao, distra-me de minhas preocupaes a aflies; disse de mim paramim: se mesmo sendo o meu irmo o maior rei da terra e lhe ocorre tal desgraa nointerior de seu palcio, o que me ocorreu de somenos; libertei-me das preocupaes eaflies, dissiparam-se minhas obsesses e comi e bebi. esse o motivo da minhaalegria e recuperao.Disse o narradorDisse o narradorDisse o narradorDisse o narradorDisse o narrador: as ouvir as palavras do irmo e o que sucedera com sua esposa e

    com suas criadas, hriyr foi tomado por uma insupervel clera e disse: no acreditoat ver com meus prprios olhos. Respondeu h Zamn: se quiser ver, basta fingirque vai viajar; sairemos noite eu e voc junto com os soldados e, quando estivermosfora da cidade, voltaremos escondidos para o palcio em que eu estou hospedado, eento voc vai poder ver as ocorrncias com seus prprios olhos.Disse o narradorDisse o narradorDisse o narradorDisse o narradorDisse o narrador: o rei disse: isso o que se deve fazer, e ordenou que os soldados

    15 e repetir no vai re-percutir: foi a soluo en-contrada para traduzir o bor-do rimado wa laysabilicda ifda, repetirno vai trazer proveito.

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    sassem para a caa, permanecendo com o irmo no palcio de hspedes16 . Quandoacordaram pela manh, abriram a janela do palcio e se sentaram esperando, e eis que aporta secreta [do outro palcio] se abriu, dela saindo a senhora e as vinte criadas; cami-

    nharam at ficar debaixo do palcio em que ambos estavam e arrancaram asroupas; os dez escravos se lanaram sobre as dez criadas; quanto senhora,ela gritou: Mascd!, e eis que um escravo negro desceu de uma rvore,foi at a senhora e se lanou sobre ela at se satisfazer; de igual modo agiramos dez escravos. Depois, todos se levantaram, lavaram-se, vestiram as rou-pas e saram do jardim pela porta secreta, fechando-a atrs de si. Quanto aMascd, ele pulou o muro do jardim, tomou seu caminho e partiu.Disse o narradorDisse o narradorDisse o narradorDisse o narradorDisse o narrador: ao ver aquilo, o rei perdeu o juzo e disse: ningum

    est a salvo neste mundo! Esta no seno uma terrvel desgraa. E emseguida recitou os seguintes versos:

    Quem coabitar com putasforosamente sofrer desgraas;mesmo que construa mil palcios

    reforados com chumbo,tais construes iro destruir-se

    mesmo que tenham sido habitadas com zelo.As mulheres traioeiras

    para se satisfazer vo caa:fazem as mozinhas,arrumam a cabeleira,

    ajeitam o negro turbante,e levam a engolir o desgosto.

    Depois, dirigindo-se ao irmo, disse: quero que voc me siga no que vou fazer:abandonaremos nossos reinos e percorreremos o mundo; caso encontremos algum quetenha sofrido uma desgraa pior do que a nossa, voltaremos aos nossos reinos; casocontrrio, continuaremos andarilhos pelo pas, sem necessidade de reinos. O irmorespondeu: ouo e obedeo. Em seguida, o rei hriyr invadiu o palcio, desembai-nhou a espada e matou todos quantos ali estavam. Depois voltou at o irmo e ambos sepuseram em marcha, viajando at o meio dia, quando ento chegaram s margens de ummar salgado. Sentaram-se e se puseram a comer e a beber. Enquanto estavam nisso, eisque um estrepitoso grito saiu do meio do mar, fazendo-os temer por suas vidas. Depois,o mar se cindiu, dele se erguendo uma coluna negra que logo atingiu as nuvens no cu.

    16 Nesta passagem, a narrativa pa-dece de alguma incoerncia, uma vezque no se segue a proposta do ir-mo caula. O nico manuscrito emque isso ocorre o arabe 3615. Nosoutros, narra-se a sada (de ambos oude hriyr sozinho) com os solda-dos, o retorno s escondidas etc. etc.

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    Ambos subiram numa enorme rvore, ocultando-se entre sua folhagem. Nisso, a colunanegra avanava pela gua e rompia o mar, na direo da rvore em que estavam. Obser-vando bem, ambos notaram que se tratava de um demnio da raa dos gnios, de eleva-da estatura, negro, carregando cabea um grande ba com quarenta cadeados de ferro.Depositou o ba sob a rvore em cima da qual estavam os dois reis, pegou uma chave,abriu as fechaduras, ergueu a tampa e do ba saiu uma mulher de lindos membros, docesorriso, rosto semelhante lua em noite de lua nova. O gnio retirou-a do ba, f-lasentar-se a seu lado, olhou para ela e disse: minha senhora, pretendo agora dormir umpouquinho. Em seguida, colocou a cabea nos joelhos dela e se ps a roncar. J a moaergueu a cabea em direo arvore e viu os dois reis. Retirou ento do colo a cabea dognio, colocando-a no cho, e fez com as mos sinais para que ambos descessem at ela.Ao perceberem que a jovem os havia visto, temeram por suas vidas e pediram-lhe que ospoupasse de descer. Ela disse: absolutamente necessrio que vocs desam at mim.Ento eles apontaram em direo ao demnio e disseram: esse a inimigo da raahumana; deixe-nos a salvo da perversidade dele. Ela disse: por Deus que se vocs nodesceram eu vou acordar este demnio e ele os matar da pior maneira. Ento elesdesceram da rvore e ela se deitou de costas e disse: satisfaam-se em mim ou ento euvou acordar este demnio. Eles disseram: por Deus, poupe-nos disso. Ela disse: porDeus que absolutamente imperioso que vocs copulem comigo, ou ento eu vou acor-dar o demnio. No podendo divergir, ambos copularam com ela, que disse: dem-meseus anis, e, puxando um saco no qual haviam noventa e oito anis das mais diversascores e materiais, perguntou-lhes: vocs por acaso sabem o que so estes anis? Res-ponderam: no sabemos. Ela disse: saibam que os donos destes anis todos copula-ram comigo nos cornos deste demnio cornudo, que me seqestrou e prendeu neste bacom quarenta cadeados cuja chave est com ele, e me manteve neste vasto mar encapelado,grosso e de ondas revoltas, e me vigiou, pretendendo que eu fosse ao mesmo tempoesposa e mulher secreta; porm, o que ele no sabe que o destino no se impede nem nadapode evit-lo, e que a mulher, quando deseja alguma coisa, ningum pode impedi-la; assim,eu me reuni com cem homens sem que este demnio soubesse de nada, e o derrotei.Disse o narradorDisse o narradorDisse o narradorDisse o narradorDisse o narrador: quando o rei hriyr e seu irmo ouviram as palavras da jovem,

    ficam assombradssimos e disseram: pois que vossas artimanhas so terrveis17 , e lhederam os anis, que ela colocou no saco. Depois, sentou-se ao lado da cabea do gnio ecolocou-a de novo em seu colo, ao passo que o rei e seu irmo arrepiavam carreira. O reidisse ao irmo: voc ver o que eu irei fazer. E continuaram a marcha at queo rei chegou a seus guardas na manh do terceiro dia; entrou no palcio e tomoua determinao a no se manter casado com mulher nenhuma mais do que uma

    17 Alcoro, 12, 28.

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    nica noite, matando-a assim que amanhecesse. Disse: no creio que em toda a face daterra exista uma nica mulher que possa ser esposa. Em seguida, enviou o irmo de voltapara seu pas, dando-lhe presentes, jias e dinheiro; e o irmo despediu-se e regressou.Disse o narradorDisse o narradorDisse o narradorDisse o narradorDisse o narrador: o rei hriyr instalou-se em seu trono e ordenou a seu vizir, o pai das

    duas jovens, que o casasse com a filha de algum membro da corte; ento o vizir lhearranjou casamento com uma delas. O rei tomou-a, possuiu-a e pela manh ordenou aovizir que a matasse, e o vizir assim fez. Depois, ele se casou com a filha de um de seuscomandantes militares; dormiu com ela naquela noite e quando amanheceu ordenou aovizir que a matasse, e ele assim fez. Depois, casou-se com uma terceira, e logo uma quarta,e assim foi fazendo at que deu cabo da vida de muitas jovens durante o perodo de trsanos, a tal ponto que desapareceram as jovens, as mes choraram e as mulheres e moasfugiram. Ento, foram informar ao rei que no restara na cidade uma s mulher. Incapaz de

    resolver a questo, o vizir entrou em casa choroso, o corao entristeci-do, e sua mulher chorou por causa de seu choro, e se entristeceu porcausa de sua tristeza. O vizir tinha duas filhas, a maior chamada ahrazde a menor, Di

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    Certo mercador, agricultor experimentado, tinha um burro, um boi e muito dinheiro.Tambm tinha filhos e esposa; morava na roa e conhecia a linguagem dos quadrpedese animais; e o segredo, nisso, consistia em que, se ele revelasse a algum seu conheci-mento a respeito da linguagem deles, morreria imediatamente. Assim, ele conhecia alinguagem de toda espcie de animal, mas no revelava o fato a ningum por medo deperder a vida. Ele tinha em sua casa um boi e um burro, cada qual amarrado em seucanto mas prximos um do outro. Certo dia, o mercador sentou-se, com a esposa ao ladoe os filhos brincando nas proximidades, e ouviu o boi dizer ao burro: parabns, esperto,pelo conforto, pelos servios que recebe, constantes esfregaes e lavaes; seu servidoro limpa e lhe peneira a cevada antes que coma, e voc s toma gua fresca. Quanto amim, levam-me quando ainda noite, me obrigam a arar, botam em meu pescoo acanga e o arado; trabalho o dia inteiro, arando no barro e cortando as terras de cima abaixo; me obrigam ao insuportvel; sofro com as chicotadas do lavrador, que me esfo-lam e rasgam os flancos; utilizam-me de noite a noite; quando me conduzem para opaiol, trazem-me fava suja de terra, e minha palha vem com o talo; durmo no calor ou nofrio a noite toda e o dia todo. Mas voc est sempre sendo esfregado, lavado, com boaforragem e palha lisa; fica sempre descansado; dorme sombra; no frio o aquecem; nasraras vezes em que o seu dono monta em voc para uma coisa qualquer, logo volta namelhor condio. Assim, voc em qualquer situao est confortvel e eu em qualquersituao estou fatigado; voc dorme e eu fico de viglia.Disse o narradorDisse o narradorDisse o narradorDisse o narradorDisse o narrador: quando o touro encerrou o discurso, o burro voltou-se para ele e

    disse: simplrio, no mente quem diz que voc um boi: isso corresponde exatamen-te ao seu nome, pois voc no tem astcia nem esperteza e tampouco malcia; exibe asbanhas e se esfora e se mata por causa dos outros. Por acaso no ouviu o ditado que dizquem no v o bom caminho no obtm sucesso? Voc sai de manhzinha para ocampo, enfrenta os maiores tormentos e sovas at a noite; ento, voc volta e o lavradoro amarra; a, voc fica balanando com o rabo e golpeando com os chifres; quando lhetrazem a fava, voc avana com voracidade, coragem e fora, arremetendo em direo comida e bufando; e no pra de devorar com vontade. Isso no bom para voc. Se,assim que sair do campo, voc deitar e se aquietar ou fingir sonolncia, e quando joga-rem fava na sua frente voc no comer com fria, mas sim cheirar e se afastar, limitan-do-se palha e mostrando estar cansado, eles o deixaro e voc ver como o descansovai chegar.Disse o narradorDisse o narradorDisse o narradorDisse o narradorDisse o narrador: ao ouvir essa recomendao do burro, o boi percebeu que ele esta-

    va dando-lhe um bom conselho e agradeceu por aquilo, rogando por ele e dizendo:voc me salvou do mal, conselheiro de f, esperto! Isso tudo foi ouvido pelo

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    mercador, que compreendeu o que era dito pelo boi e pelo burro. No dia seguinte, veioo lavrador, recolheu o boi, colocou-lhe o arado e o utilizou conforme o hbito. Mas o boirealizou mal suas atividades e demonstrou preguia, e o lavrador o chicoteou; o boilanou mo do estratagema que o burro lhe havia recomendado, caindo toda vez que olavrador o golpeava, at que o dia acabou e ele foi conduzido para casa, amarrado aopesebre. O boi no fez sua agitao habitual nem nada do que fazia antes, deitando-selonge do pesebre. O lavrador ficou intrigado. Quando ele ps a rao, o boi cheirou-a ese afastou, pondo-se a mordiscar a palha e os gros que estavam espalhados nos cantosdo pesebre. Pela manh, o lavrador veio e encontrou o pesebre ainda cheio de rao, semfaltar nada, e viu o boi estirado, estufando a barriga e se esfregando no cho. Triste porele, pensou: este boi era muito bom, e em seguida dirigiu-se ao mercador e disse:meu senhor, o boi no comeu e nem sequer provou a rao. Sabendo da histria por terouvido a conversa do burro e do boi, e a recomendao do primeiro para o segundo, omercador disse ao lavrador: tome o burro e coloque-lhe o arado; faa-o arar bastante afim de que ele supra o trabalho do boi.Disse o narradorDisse o narradorDisse o narradorDisse o narradorDisse o narrador: e o lavrador foi at o burro, recolheu-o e ps-lhe o arado. Deixando de

    lado o boi, saiu com o burro, indo at o campo; amarrou-lhe o arado, conduziu-o e chicoteou-o tanto que o burro arou a parte do boi; seu pescoo, flancos e orelhas ficaram esfolados.Quando se findou o dia, levou-o para casa; o burro estava que no podia, extenuado com oque havia sofrido e humilhado como nunca. J o boi havia passado o dia tranqilo, dormindode lado e ruminando; comera a rao, bebera e pusera-se a rogar pelo burro por causa da boaestratgia que lhe traara. Quando entrou a noite e o burro chegou naquele estado deplorvel,o boi se colocou de p a fim de receb-lo e lhe disse: muito boa noite; por Deus que voc mefez bem e um grande favor; que Deus o recompense por mim. O burro estava com tantaraiva que no respondeu; mas pensou: isso que me aconteceu s se deve companhia desseboi e da lamentvel estratgia que tracei para ele. Eu estava deitado em paz, mas perturbou-me a curiosidade falaz. Seja como for, se eu no armar um ardil e uma estratgia para que eleretorne ao seu lugar, irei me extenuar muito mais. Em seguida, foi para sua rao, aindarefletindo, enquanto o boi continuava ruminando.Nessa altura, o vizir voltou-se para a filha e disse: de igual modo, minha filha, voc

    poder ser morta em virtude de sua m estratgia; eu estou aconselhando. Respondeu amenina: absolutamente imperioso, meu pai, que eu v at esse rei; d-me a ele. O vizirdisse: no faa isso. Ela disse: absolutamente imperioso. Ele disse: se no pararcom isso, vou fazer com voc o mesmo que o mercador fazendeiro fez com a esposa. Elaperguntou: e o que o mercador fazendeiro fez com a esposa, meu pai? Ele disse:Saiba que quando se deram aquelas ocorrncias entre o burro e o boi, o mercador e sua

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    esposa saram sob o luar e foram at o paiol, e ali ele ouviu o burro dizendo ao boi em sualngua: pai da agricultura, o que voc far amanh quando o lavrador lhe trouxer arao? O boi respondeu: o mesmo que voc me sugeriu, pois pude descansar; nuncamais farei nada diferente daquilo: fingir-me-ei de fraco, deitarei e estufarei a barriga. Oburro balanou a cabea e disse: no aja assim, pois eu ouvi o mercador dizendo aolavrador: se o touro no comer a rao nesta noite, chame o aougueiro para abat-lo;tome sua pele, transforme-a em tapete, venda-a e com o dinheiro compre outro boi. E porisso, companheiro, eu temo que o abatam. esse o meu conselho, e o conselho parte daf: quando lhe trouxerem a rao, coma com apetite, pule, d chifradas e grite; s no faao que voc estava pensando, pois assim ser morto.Disse o narradorDisse o narradorDisse o narradorDisse o narradorDisse o narrador: ao ouvir o que disse o burro, o boi, temendo ser sacrificado e

    supondo que o burro continuava a ser o mesmo bom conselheiro que fora daprimeira vez, ps-se de p, gritou, comeou a dar trompadas nas paredes e apular. Disse o narradorDisse o narradorDisse o narradorDisse o narradorDisse o narrador: o mercador riu bem alto, at quase desmaiar, do quesucedera entre o burro e o boi. Sua mulher perguntou: o que o fez rir? Elerespondeu: eu no posso dizer o que me fez rir, pois eu tenho medo: trata-sede um segredo que, se revelado, acarreta no mesmo instante a morte paraquem o fizer. um saber que Deus ensina a quem bem quiser.19 Ela disse:por Deus que voc est mentindo; isso no passa de desculpa. Por Deus que,se no me contar e explicar o motivo do seu riso, no ficarei mais ao seu lado,nem comerei ou beberei com voc. E insistiu, mas ele no cedeu. Ento elaentrou em casa e comeou a chorar. E no parou de chorar desde o cair danoite at a alvorada. O mercador disse: pare logo com isso; j chega; deixe-nos em paz. Ela disse: absolutamente imperioso que voc me conte o queocorreu; no voltarei atrs; absolutamente imperioso. Ele perguntou: quer dizer que imperioso que eu lhe explique o que disseram o burro e o boi, revelando o segredo emorrendo? Ela respondeu: absolutamente imperioso, no importa que voc viva oumorra. Ele disse: convoque os seus familiares, e eles vieram, e tambm os vizinhos.O mercador lhes informou que ele estava preste a morrer. Todos choraram por ele,grandes e pequenos, escravos e servas, lavradores e fazendeiros. Depois ele chamou astestemunhas, que vieram, deu mulher o dote e o valor previsto no contrato de casamen-to, fez suas recomendaes, alforriou os servos e despediu-se de seus familiares. Todoschoraram, at mesmo as testemunhas, que tentaram intervir junto mulher; todos, osfamiliares dela e dele e os vizinhos diziam-lhe: volte atrs, pois o seu marido s no lherevela a verdade porque, caso revele o segredo, morrer imediatamente. Ela lhes disse:no voltarei atrs at que ele me conte o que aconteceu. Ento todos choraram e o luto

    19 O estatuto, diga-se assim, des-se saber permanece indeterminadonas noites: no claro se a restriode divulgao incide sobre prpriosaber (logo, ele no poderia revelarque detinha tal saber) ou somente so-bre o seu contedo (logo, ele no po-deria revelar o que aprendia medi-ante tal saber). Todos os manuscri-tos, mesmo os do ramo srio, pare-cem um tanto ou quanto inconsisten-tes no que se refere a esse aspecto.Mas pode tratar-se de uma artima-nha narrativa.

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    se instalou na casa. Os criados choraram por ter de se separar de seu patro, e por causade sua morte. O mercador tinha cinqenta galinhas e um galo.Disse o narradorDisse o narradorDisse o narradorDisse o narradorDisse o narrador: nesse momento, o mercador sentou-se entristecido por ter de aban-

    donar o mundo, seus familiares e filhos. Enquanto ele assim refletia, no lhe restandoseno revelar o segredo, eis que um cachorro da casa falava em sua lngua. O mercadorolhou para ele a fim de ouvi-lo, e eis que o galo estava montado em uma das galinhas,com quem cruzou; descendo de cima dela, montou em outra, e tambm cruzou; descen-do dessa ltima, montou em outra; tudo isso com o mercador vendo; ento, ele ouviu ocachorro dizer ao galo em sua lngua: galo, como voc desavergonhado! Por Deusque voc anda a com essas feias atitudes neste momento, enquanto o dono da casa estcom muitas atribulaes. O galo perguntou: e qual o motivo que o deixa to atribu-lado? Disse o cachorro: por acaso voc no est sabendo que a mulher do mercadorquer ser informada acerca do segredo que Deus lhe concedeu, mas quando ele fizer issomorrer imediatamente? Esto os dois nesse terrvel problema, j vieram as testemu-nhas e todos se despediram. Ela quer que ele revele o segredo que Deus lhe concedeu edepois morra. Todos estamos tristes por ele enquanto voc fica batendo as asas, montan-do em cima dessa e descendo de cima daquela. No tem vergonha? Ento o mercadorouviu as palavras do galo, que respondeu ao cachorro: bobalho, se o nosso dono notem juzo nem estratgia, mostrando-se incapaz de cuidar de sua relao com a esposa,mesmo sendo ela uma s, qual o sentido da vida dele? Perguntou o co: e o que eledeveria fazer? Disse o galo: eu tenho cinqenta mulheres; adestro uma, agrado outra,dou comida a outra, fico com outra, vou visitar outra e preparo boas estratgias paraoutra; agora, o nosso dono alega ter juzo mas no consegue arranjar as coisas com umanica mulher?Disse o narradorDisse o narradorDisse o narradorDisse o narradorDisse o narrador: nesse momento o cachorro perguntou ao galo: pai valente, diga-

    nos ento o que nosso dono deve fazer. Respondeu o galo: deve pegar um pedao depau e surr-la at quebrar-lhe as mos e os ps e dizer: por que motivo voc est per-guntando sobre aquilo que no lhe concerne? Ento ela lhe dir, por causa do sofrimen-to: nunca mais lhe perguntarei nada nem voc deve me dizer mais nada, nunca. Sefizer isso depois de uma surra prolongada, ele vai se livrar das preocupaes e viver, e oluto se acabar. Todavia, ele no tem estratgia nem juzo nem entendimento.Meus caros senhores, quando ouviu a conversa entre o cachorro e o galo, o mercador

    levantou-se rapidamente, tomou um bom galho de carvalho, entrou na despensa, orde-nou esposa que entrasse, trancou a porta e ps a surr-la com o galho nas costelas eombros at que seus ossos quase se rompessem. Ela gritava por socorro e dizia: eu novou mais perguntar nada. E arrependeu-se em Deus altssimo. Nesse momento, a porta

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    se abriu e a mulher saiu arrependida. As testemunhas disseram: voc abandonou asperguntas? Ela respondeu: sim. E todos ficaram muito contentes com isso; a tristezatransformou-se em alegria e o marido aprendeu do galo a boa estratgia.[Prosseguiu o vizir:] e quanto a voc, ahrazd, volte atrs quanto a esse casamento

    com o rei hriyr, caso contrrio eu farei o mesmo que o mercador fez com a esposa. Eladisse ao vizir: meu pai, por Deus que no voltarei atrs. Essa histria no vai me demoverdo que eu pretendo nem de meu objetivo e, se quisesse, eu poderia contar-lhe muitashistrias. Agora, se voc no me levar ao rei por bem, eu irei at ele s escondidas e lhedirei: rei, voc nunca viu ningum como eu. O vizir disse: ento isso mesmoimperioso? Ela respondeu: sim, absolutamente imperioso.Meus senhores, quando o vizir se convenceu e cansou, reconhecendo que era

    absolutamente imperioso fazer o que estava na cabea da filha, ele subiu aopalcio real, foi at o rei, beijou20 o cho diante dele e o informou do que a filhaqueria, e que assim ele a dava em casamento naquela noite para o rei, o qual,assombrado, disse: vizir, como voc pode dar a sua filha em casamento paramim? Juro por Deus poderoso que, pela manh, quando eu lhe disser mate-a e vocno o fizer, eu o matarei e a ela. Respondeu o vizir: eu j a preveni quanto a isso,meu senhor, mas ela no se demoveu. Disse o rei: v e arrume as coisas dela e vejao que precisa, e depois traga-a para mim. O vizir dirigiu-se rapidamente at a filha einformou-a daquilo dizendo: que Deus no me faa perd-la, minha filha; criei vocpara outro. No h fora nem recurso seno em Deus altssimo. Ao ouvir tais pala-vras, ahrazd ficou muito feliz; levantou-se, arrumou-se e ajeitou as coisas de queprecisava. Depois, voltou-se para a irm menor e disse: entenda a minha recomenda-o: quando o rei me possuir, eu vou mandar chamar voc; venha at mim e diga:minha irm, por Deus, conte-nos uma de suas histrias maravilhosas, e ento eucontarei ao rei histrias que sero o motivo da minha salvao e das outras jovens queo rei ainda poder matar. E a irm lhe disse: ouo e obedeo. Em seguida, o viziraprontou a filha e a enviou ao rei, que a possuiu e deflorou. Como ela chorasse, o reiperguntou: o que a faz chorar? Ela respondeu: rei, eu tenho uma irm que se crioucomigo, de quem gosto muito e da qual no consigo separar-me. Se quiser autorizarque ela passe comigo esta noite para nos despedirmos e conversarmos, faa-o. Entoo rei ordenou que a irm comparecesse e ela assim fez: cumprimentou o rei beijandoo cho diante dele e ps-se a conversar com a irm. Depois disse: por Deus, minhairm, conte-nos uma de suas histrias maravilhosas. Disse a irm mais velha: se orei autorizar, eu contarei. E o rei disse: conte.

    20 Termina aqui otrecho provenientedo manuscrito 49Gayangos.

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    Egito, sculo XI (detalhe).Egito, sculo XI (detalhe).Egito, sculo XI (detalhe).Egito, sculo XI (detalhe).Egito, sculo XI (detalhe).

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