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1 Mestranda na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. E-mail: [email protected]. revista Fronteiras – estudos midiáticos X(1): 29-35, jan/abr 2008 © 2008 by Unisinos A visão e o olhar: A Janela da Alma e a apresentação da subjetividade O presente artigo descreve as formas de construção do sujeito documental de modo que lhe dê autonomia e coerência, liberando os realizadores de rótulos de “subjetivistas” ou “perspectivistas” e não representadores da realidade. A busca de uma suposta representação da realidade no documentário é feita através de uma objetividade discursiva que passa pela legitimação do sujeito documental, o recurso da identificação ou participação afetiva e a apresentação de tópicas sociais sensíveis, sendo que o estigma é tipicamente uma delas. Observamos essas questões no filme brasileiro “A Janela da Alma” (2001), de João Jardim e Walter Carvalho. Palavras-chave: documentário, antropologia visual, sujeito documental, estigma. El presente artículo describe las formas de construcción del sujeto documental dándole autonomía y coherencia, librando a los realizadores de rótulos “subjetivistas” o “perspectivistas” y no representadores de la realidad. La búsqueda de una supuesta representación de la realidad en el documental se hace mediante una objetividad discursiva que pasa por la legitimación del sujeto documental, el recurso de la identificación o participación afectiva y la presentación de tópicas sociales sensibles, siendo el estigma una de ellas. Observamos esas cuestiones en la película brasileña “A Janela da Alma”, o La Ventana del Alma, (2001), de João Jardim y Walter Carvalho. Palabras claves: documental, antropología visual, sujeto documental, estigma. Sight and look: The Window of the Soul and the presentation of subjectivity. The present article describes the construction paths of the subject in a documentary in a way that it is provided with autonomy and consistency, thus liberating the filmmakers from labels such as “subjectivism” or “perspectivis” or that they do not represent reality. The quest for a supposed representation of reality in the documentary is carried out through what we call discursive objectivity that is formed by the legitimation of the subject, resorting to the identification or affective participation and presentation of sensitive social topics, the stigma being a typical one. We observe these issues in the Brazilian movie “A Janela da Alma” (2001), or “The Window of the Soul”, by João Jardim and Walter Carvalho. Key words: documentary, visual anthropology, subject in documentary, stigma. Lucimeire Vergilio Leite 1

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1 Mestranda na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. E-mail: [email protected].

revista Fronteiras – estudos midiáticosX(1): 29-35, jan/abr 2008© 2008 by Unisinos

A visão e o olhar: A Janela da Alma e aapresentação da subjetividade

O presente artigo descreve as formas de construção do sujeito documental de modo que lhe dê autonomia e coerência, liberando osrealizadores de rótulos de “subjetivistas” ou “perspectivistas” e não representadores da realidade. A busca de uma suposta representaçãoda realidade no documentário é feita através de uma objetividade discursiva que passa pela legitimação do sujeito documental, o recursoda identificação ou participação afetiva e a apresentação de tópicas sociais sensíveis, sendo que o estigma é tipicamente uma delas.Observamos essas questões no filme brasileiro “A Janela da Alma” (2001), de João Jardim e Walter Carvalho.

Palavras-chave: documentário, antropologia visual, sujeito documental, estigma.

El presente artículo describe las formas de construcción del sujetodocumental dándole autonomía y coherencia, librando a los realizadoresde rótulos “subjetivistas” o “perspectivistas” y no representadores dela realidad. La búsqueda de una supuesta representación de la realidaden el documental se hace mediante una objetividad discursiva quepasa por la legitimación del sujeto documental, el recurso de laidentificación o participación afectiva y la presentación de tópicassociales sensibles, siendo el estigma una de ellas. Observamos esascuestiones en la película brasileña “A Janela da Alma”, o La Ventanadel Alma, (2001), de João Jardim y Walter Carvalho.

Palabras claves: documental, antropología visual, sujeto documental,estigma.

Sight and look: The Window of the Soul and the presentation ofsubjectivity. The present article describes the construction pathsof the subject in a documentary in a way that it is provided withautonomy and consistency, thus liberating the filmmakers fromlabels such as “subjectivism” or “perspectivis” or that they do notrepresent reality. The quest for a supposed representation of realityin the documentary is carried out through what we call discursiveobjectivity that is formed by the legitimation of the subject,resorting to the identification or affective participation andpresentation of sensitive social topics, the stigma being a typicalone. We observe these issues in the Brazilian movie “A Janela daAlma” (2001), or “The Window of the Soul”, by João Jardim andWalter Carvalho.

Key words: documentary, visual anthropology, subject indocumentary, stigma.

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Lucimeire Vergilio Leite

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Introdução

A construção do sujeito do documentário traz consigoescolhas que vão além das ferramentas cinematográficastécnicas, vinculando-se com padrões presentes numadeterminada sociedade e com a forma com que o diretor ourealizador se relaciona com tais padrões. Isso porque nuncasai da perspectiva da elaboração de um documental arepresentação de uma realidade, que vai adquirirtonalidades particulares a partir da idiossincrasia das lentes.O princípio do qual partimos está claro, então: a realidadenão é única e passível de ser representada, per se, através dacâmera, supostamente uma máquina de mostrar verdades.Ao contrário, a câmera cria verdades e textos que serãolidos, por sua vez, com outras lentes: as dos espectadores.Neste sentido, “A Janela da Alma”, documentário de JoãoJardim e Walter Carvalho, de 2001, é um filme cujo lequede escolhas realizadas, enquanto pautas a serem seguidas,um roteiro, se quisermos, estão claramente arranjadas, eemanam destas escolhas, como conseqüências, umaconstrução específica dos sujeitos.

O objetivo central deste trabalho será identificar osconceitos estruturantes da narrativa do documentário emquestão, observando como esses conceitos se relacionamcom aspectos sociais mais gerais, centrando-nos em algunsautores que abordaram essa questão desde a antropologiavisual. Com isso, a partir das escolhas formais dosrealizadores, poderemos reconstruir um sujeito apresentadoou representado como objetivo, que adquire entidadeautônoma e coerente dentro da obra, desvinculando-o deuma criação artística ou de rótulos “subjetivistas” ou“perspectivistas”. Veremos, ademais, como as conseqüênciasda tomada de posição narrativa desembocam numadeterminada perspectiva referente ao cinema documentalcomo representação da realidade.

“A Janela da Alma” apresenta 19 pessoas entrevistadasacerca da visão e seus problemas2. A imensa maioria dessesentrevistados é famosa, principalmente na área das artes, oque trará conseqüências pontuais para a construção do sujeito,como veremos adiante. As entrevistas são alternadas comimagens fora de foco, ou com trechos dos trabalhos realizadospelos entrevistados, mais especificamente, pelos cineastas. Osassuntos tratados, de modo geral, giram em torno da dificuldadede enxergar, a necessidade de usar óculos ou lentes de contato,

da cegueira, do estrabismo e também da dificuldade de vernum sentido mais amplo, ou seja, de possuir uma perspectivamais completa acerca de um determinado assunto ou daimportância de outros elementos, além de olhos sãos, quepossibilitam uma visão mais abrangente. Este último, ponto devista compartilhado por quase todos os entrevistados, seráum aspecto central da narrativa do documentário. Portanto, ofilme alterna entre aspectos físicos e metafóricos da visão,muitas vezes fazendo com que os primeiros sejam exemplosdos segundos.

Pode-se dizer que o filme responde aleatoriamenteas seguintes perguntas: (i) o que é a visão?; (ii) qual a relaçãoentre visão e emoção?; (iii) qual é o papel da imaginação?;(iv) o que é o olhar?; (v) qual a importância da imagem?; (vi)como você lida com seu problema (seja ele os óculos, acegueira ou o estrabismo)?; e (vii) o que é a beleza? Essasmesmas perguntas poderiam ser feitas também acerca dodocumental enquanto gênero, sua abrangência e pertinência.As respostas poderiam ser as mesmas dadas nesse filme e,por isso, a metalinguagem está presente até um ponto emque esse vai-e-vem entre a visão (física) e o olhar (conceitual)termina num mise en abîme, num redemoinho em cujo olhoestá a relação entre a possibilidade de ver e a necessidadede, para isso, dispor de um marco conceitual.

As cinco primeiras perguntas mencionadas nosconduzem pelo questionamento acerca da subjetividade eobjetividade; a sexta pergunta, mais isolada da perguntadocumental em si, nos leva a relacionar o documental comquestões sociais vigentes, principalmente no referente aoestigma; a sétima, finalmente, ergue-se como uma perguntapertencente ao ramo da filosofia ou da estética que, no filme,aparece como justificativa das escolhas dos cineastas, masvai além dos propósitos e possibilidades deste trabalho fazeruma análise minimamente interessante ou válida a respeito.Procuraremos centrar-nos nessas duas questões básicas paravermos como o sujeito é construído em “A Janela da Alma”.

A construção de um sujeitolegítimo

O filme se inicia com sons, seguidos de uma imagemdissociada deles, enfatizando já desde o começo uma

2 Dentre essas pessoas, encontram-se: Evgen Bavcar, José Saramago, Wim Wenders, Hermeto Paschoal, João Ubaldo Ribeiro, OliverSacks, Agnès Varda.

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divergência entre dois marcos cognitivos que explicita aindependência da capacidade visual da auditiva. Asferramentas para lidar com o mundo ultrapassam aquelaproposta pela visão. O sensível também está no som. Maisainda: o filme começa com uma tela em negro e com o somde água ao fundo, que traz quase uma sensação sinestésicaque vai se intensificando até se transformar, nitidamente,numa praia com ondas quebrando na orla, enquanto vãoaparecendo, primeiro, os letreiros do filme e, depois, a imagemde uma fogueira. A dissociação som e imagem, portanto,acompanha a dissociação da visão e a compreensão, ou danecessidade daquela para que esta ocorra. Isso é mencionadono filme por vários entrevistados, como nos seguintestrechos: “ver é algo que se dá em parte através dos olhos, masnão totalmente” (Wim Wenders); “(sem lentes) eu nem ouçodireito” (Marieta Severo). O olhar, a perspectiva, aaprendizagem do entorno e do mundo dissociado dascapacidades de enxergar vão ser a chave do questionamentodos entrevistados e, em última instância, dos realizadoresdo filme. A compreensão do mundo estará sempre atreladaa uma sensibilidade mais ampla que aquela da visão, e énesse marco mais amplo que se constrói a subjetividade.Assim, o mundo não é algo objetivamente dado, que podeser apreendido desde que se tenha a visão como ferramentabásica, mas sim algo que é construído por cada sujeito, dotadode limitações e capacidades.

Isso não é um assunto menor se tomarmos odocumentário como questão. Michael Renov chama aatenção para o fato de que sempre houve uma tentativa dese minimizar (sendo impossível abolir) a subjetividade3. Sóde uns tempos para cá ocorreram mudanças importantes aesse respeito. Precisamente a partir dos anos noventa, asubjetividade começou a ser considerada como “o filtroatravés do qual o real entra no discurso” (Revov, 2004,p. 176)4. Por sua vez, Elizabeth Cowie afirma que adescentralização do sujeito clássico da visão havia começadomuito antes das primeiras tecnologias fotográficas,suplantando a visão como método central de conhecimento.Assim, o documentário começa a ser visto como umapossibilidade de chegar à verdade e ao conhecimento,representando o próprio discurso científico. “Agora, porém,o olho humano é mostrado como um órgão limitado, traiçoeiroe imperfeito nas suas observações, e a visão humana se

torna, então, um âmbito falível. A subjetividade da visãoentra em cena ao mesmo tempo e como corolário de umasobrevalorização da cientificidade/objetividade dasmáquinas” (Cowie, 1999, p. 23).

No cinema documental, e poderíamos estendê-lo àtelevisão e à fotografia, o que a imagem revela é tido comorealidade. Assim, ainda segundo Cowie, a pergunta “isso éverdade, é real?” termina por desembocar na pergunta “euexisto?” No filme, essa relação entre a existência da imagemcomo representação do real5 e, portanto, a existência dopróprio sujeito faz eco com o que Saramago diz: “Nós nuncavivemos tanto na caverna do Platão como hoje. [...] As imagensque vemos da realidade substituem a realidade”.

Em última instância, portanto, a dissociação entre aimagem ou a capacidade visual e o conhecimento nos leva aquestionar a objetividade ou verossimilhança do documental.Essa questão está dada no filme não desde uma ênfasenum realismo que busque a semelhança entre a imagem euma suposta realidade, o que aqui denominamosobjetividade. De fato, as cenas mostradas entre asentrevistas muitas vezes estão fora de foco ou mostrandosomente parte do objeto ou pessoa. A imagem é deixadapara um segundo plano, os entrevistados são meras “cabeçasfalantes” que não realizam ações relevantes para osignificado geral da obra. Por exemplo, a proximidade dacâmera aos entrevistados retira qualquer detalhe maissignificativo que possa ajudar a montar um cenário ou panode fundo significativo ao redor deles. Em sua maioria, osentrevistados estão sentados em alguma parte de uma casaou escritório. As duas exceções mais claras são os dois cegos(Eugene Bacvar e Arnaldo Godoy) que estão em movimentopela cidade, uma vez mais mostrando certa distância entrea imagem e a idéia: supor-se-ia que os cegos, pelo menosestereotipicamente, apresentariam mais dificuldades demobilidade, mas são eles os que aparecem indo de lá paracá. “A Janela da Alma” pareceria estar de acordo com JimMoran (in Gaines 1999, p. 6) que diz que “a realidadedocumental nunca está dentro da imagem, mas sempre numcampo discursivo em torno a ela”.

Portanto, dentro de um questionamento centralacerca da subjetividade e objetividade do conhecimento, osrealizadores não deixam de buscar uma objetividadediscursiva estabelecendo, como diz Cowie, as “bases para a

3 Tratamos aqui a subjetividade como a perspectiva pessoal do realizador, contrapondo-a à objetividade supostamente esperada de umdocumentário.4 Todas as traduções das citações incluídas neste artigo são de responsabilidade da autora.5 Lembremo-nos do filme Blow up (1966), de Michelangelo Antonioni, que dentro do cinema ficcional, se pudermos nos valer dessadiferenciação, propõe como real aquilo que pode ser captado pela lente da câmera fotográfica.

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credibilidade dos lugares e pessoas mostrados através daautoridade e conhecimento do narrador” (Cowie, 1999, p.30). Isso é logrado mediante uma legitimação alcançadapelo poder que o capital simbólico dos entrevistados lhesdá (Bourdieu, 1999, p. 49). Sem dúvida, um artista sensívelà amplidão e diversidade do real falará sobre a imagem, atelevisão e a realidade desde perspectivas especificamentediferentes de uma “pessoa-da-rua” ou um “joão-ninguém”.Vale dizer, a posição dos entrevistados na estrutura socialque, por um lado, outorga eficácia simbólica ao discursopermite, por outro, que a idéia central dos realizadores sejamelhor transmitida. Os desconhecidos entrevistados, comoa menina que tem vergonha de usar óculos ou a filha dovereador, estão ali para enfatizar algum ponto de vistaapresentado por outro entrevistado principal. Ademais, atransposição da pergunta “o que é a visão” de um âmbitofisiológico a outro filosófico adquire características beminteressantes desde a perspectiva de pessoas que trabalhamcom a arte visual (como Wim Wenders, Eugen Bacvar,Agnès Varda ou Marjut Rimminen, entre outros) ou com aliteratura (como, por exemplo, José Saramago, Manuel deBarros, Antonio Cícero ou Paulo Cezar Lopes). Seusdepoimentos alcançam uma profundidade (sem dúvida,intencional) por parte dos realizadores, que estendem,através da palavra, uma ponte entre a visão e o olhar.

Igualmente, os closes nos entrevistados contribuempara uma maior identificação entre o espectador e o filme,que é o objetivo central de qualquer documentário,assegurando com maior consistência ainda essa objetividadediscursiva da qual falamos. Em “A Janela da Alma”, talidentificação não provém apenas de um colocar-se no lugardo outro, mas sim da credibilidade e legitimidade outorgadapelo capital simbólico dos entrevistados. Além disso, oimportante é que o que esses entrevistados digam condigacom sua posição social e que seja algo “razoável” (Cowie,1999, p. 32).

Nessa construção do sujeito documental, osentrevistados desempenham um papel-chave, logicamente,contribuindo com os limites, as censuras, bem como com asaberturas e entregas das suas experiências de vida aoscineastas. Se nos lembrarmos do que Erving Goffman dizacerca de como estamos constantemente atuando,diferentemente segundo espaço e tempo, não podemosdeixar de ver que os entrevistados, expansivos ou taciturnos,também estão em pose, tentando, como disse Morin,“mascarar o temor e a intimidação que nascem da câmera”,realizando “esta quase impossibilidade de ser natural anteum olhar extra-lúcido” (Morin, 2001, p. 43).

Porém, além da visão apresentada pelo próprioentrevistado (ou personagem), a visão dos cineastas não

pode ser deixada de lado. “Não existe, durante a filmagem,um único ponto de observação que nos permita excluir donosso campo visual as câmaras, os aparelhos de iluminação,os assistentes e outros objetos alheios à cena” (Benjamim,1985, p. 186). A objetividade da obra é, nesse sentido, umaconstrução discursiva conformada pelas perspectivas dosrealizadores, dos documentados e também dos espectadores.Ou seja, o sujeito documental é uma construção legitimadaque abrange, por um lado, as escolhas dos realizadores(incluindo a opção por recorrer à eficácia simbólica comomeio de legitimação do discurso), as entregas dosentrevistados, indefectivelmente mediadas pela câmera queos grava, e que, finalmente, reverbera no espectador atravésda identificação. É assim que vemos pelo olhar do outro.

Imagem, imaginação eidentificação

Diversos entrevistados afirmam que a imaginaçãocompleta a capacidade visual ou a visão, ou o que a tornapossível: “o ato de ver e olhar não é só olhar para fora, não é olharpara o que é visível, mas também para o que é invisível. Decerta forma, a isso chamamos imaginação” (Oliver Sacks); “oprimitivo manda na minha alma mais do que os olhos [...], aimaginação é que transfigura o mundo” (Manoel de Barros).Wim Wenders relaciona isso diretamente com o cinema,dizendo que antes era possível entrar nas “entrelinhas” deum filme e imaginar-se nele, porque havia espaços suficientespara isso entre uma imagem e outra. Hoje, ele diz, os filmessão mais lacrados e what you see is what you get. Nesse sentido,o sujeito não se compõe apenas pelo seu aparelho sensível. Oque ele “vê” está impregnado pelo arsenal teórico construídopor cada um ao longo de sua vida.

As imagens mentais estão relacionadas não só como inconsciente, mas também com o consciente. Elas partemdo mundo sensível para adquirirem forma e conteúdopróprios no inconsciente (momento subjetivo), para depoisganharem mais intensidade no exterior, adquirindo corpoou autonomia (momento objetivo). Desta forma, nossosmedos e desejos são projetados na nossa imaginação, mastambém nas coisas ou na realidade física. Esse processo foidenominado, primeiramente, por Freud, de projeção, tal comonos explica Morin. Umas das partes que compõem oprocesso de projeção é o desdobramento, ou melhor, “aprojeção do nosso próprio ser individual numa visãoalucinatória na qual nos surge nosso espectro corporal”; por

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sua vez, “na identificação, o sujeito, em vez de projetar-seno mundo, absorve o mundo nele mesmo” (Morin, 2001, p.62), integrando em si esse mundo de forma afetiva. Aidentificação e a projeção, porém, não são processostotalmente separados: se eu me projeto num ser amado, porexemplo, colocando-me em seu lugar, identifico-me comele, possibilitando o processo inverso assim como uma maiorcompreensão ou internalização do outro, o que pode levar anova projeção. É por isso que esse processo de projeção-identificação também é denominado participação afetiva.Isso se dá também, de forma constante, tanto na vida realcomo no cinema.

Morin é taxativo ao afirmar que na tela do cinemasó há jogos de luz e sombras. Se lhes atribuímoscaracterísticas da realidade é porque ocorre o processo deprojeção. Isso é o que Wim Wenders parafraseia quandofala sobre poder entrar no filme, sobre o poder da imaginação.Uma vez mais, também, nos fala Saramago sobre a cavernade Platão, onde os homens vêem sombras, mas pensamque elas são o mundo real.

Ademais, Morin sublinha que o cinema está repletode técnicas que provocam, aceleram e intensificam aparticipação afetiva, como, por exemplo, a utilização de umdeterminado tipo de música, a distância entre a câmera e oobjeto, a dilatação ou condensação temporal, o uso dedeterminado tipo de luz ou sombra, ou de certo tipo deenquadramento. Para dar alguns exemplos do nosso filme,a utilização de uma música melancólica, suave, ao piano,leva à introspecção e ao estado de espírito proposto pelosrealizadores; as cenas de close extremo ajudam noquestionamento da relação acerca do que se vê quando sevê ou até mesmo acerca da possibilidade da objetividade; opróprio enquadramento centrado no entrevistado permiteque nos concentremos somente em suas palavras, semdistrair-nos com situações do seu entorno.

Nos seus depoimentos, Wim Wenders e JoséSaramago levantam a questão do excesso de imagens aoqual estamos constantemente expostos. Este afirma que éimpossível relacionar-se eficientemente (por projeção-identificação) com todas essas imagens; esse excesso nosentorpece, de modo tal que só as imagens extremamenteinsólitas podem chegar a nos tocar, ou seja, já não háparticipação afetiva nas histórias simples. Isso termina, então,nos levando a recorrer pouco à imaginação e muito àvalorização da imagem pela imagem (sem correlatoinconsciente), onde a projeção-identificação se encontratruncada.

Igualmente, voltamos à idéia de que é a imaginaçãodo homem que, através de projeções ou mesmo inferências,une as imagens (sombras e luzes) apresentadas na tela de

forma coerente, sempre ancoradas nas suas própriasexperiências subjetivas. Isso está relacionado, por sua vez,com a ligação que os entrevistados fazem entre visão eemoção, como Agnès Varda, que afirma que o modo comoela filmou Jacques Remy, tanto naquele super close da suapele como no momento em que ele veste o suéter, estáfundado no sentimento que ela tinha por ele. Também PauloCezar Lopes afirma que “a gente não conhece as coisas comoelas são; só mediadas por nossa experiência”.

Também é interessante mencionar que a frase deManoel de Barros dizendo que o primitivo manda na suaalma para dialogar com Morin quando este diz que “ouniverso do cinema pode aproximar-se ao da percepçãoprimitiva” (Morin, 2001, p. 38). Isso porque há uma aberturada percepção prática ao elemento fantástico e este, por suavez, possui traços da realidade objetiva. No cinema, apercepção prática e a visão mágica (ou, nos termos dosentrevistados, a visão e a imaginação) se solapamsincreticamente, aceitando que o fantástico penetre o real.

“Eu uso óculos”

Devemos relembrar que o surgimento dasubjetividade no documentário pós cinema verité, como dizMichael Renov (2004, p. 177), está relacionado ao climacultural presente, onde os antigos movimentos sociaisuniversalistas (antiguerra, direitos humanos, etc.) deramlugar aos movimentos centrados nas identidades individuais(raça, sexualidade, deficiências físicas, etc.). Podemos dizerque “A Janela da Alma” se inclui nesse apelo a um tema deidentidade pessoal: a questão dos deficientes visuais.

Igualmente, enquanto produto cultural, inserido emcontextos e processos sócio-históricos específicos, odocumentário sempre vai reproduzir tópicos vigentes. Alémdas questões já mencionadas, outra abordada no filme éaquela que se refere ao trauma ou às dificuldades trazidaspelo problema que os entrevistados têm com a visão, sejaele o estrabismo, o usar óculos ou lentes ou mesmo a cegueira.No filme, diversos entrevistados mostraram desde certoincômodo com os óculos (como o caso de Marieta Severo,Carmela Gross ou Paulo Cezar Lopes, por exemplo), ou ocaso a menininha com vergonha de ir de óculos à escola, atéa experiência decididamente traumática de MarjutRimminen com o estrabismo.

Goffman (1986) denomina estigma umcomportamento proscrito pela normatividade dominante.

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O estigma seria qualquer comportamento que possadesacreditar o indivíduo que o pratica ou que possui oatributo determinado. Ele é ou invisível, tendo o sujeito degerir esse segredo de modo a não ficar desacreditado -embora possa ser desacreditável a qualquer momento; ouvisível e, dada a sua natureza desviante, infratora deconsensos sociais, uma vez descoberto numa determinadapessoa tem o dom de impor esse traço relativamente aosdemais papéis desempenhados pelo indivíduo - a pessoa édesacreditada em todos os momentos. Passa-se, por isso, aser a prostituta, o homossexual, o drogado, o cego, etc, emvez de se permitir uma identidade mais heterogênea.

Assim, um sujeito pode ser uma pessoadesacreditável, encontrando-se diante da necessidade deuma constante manipulação da informação; mantendo laçoscom o normativo social, mas paralelamente mantendocontatos com pequenos grupos desviantes, aos quais se aliapara praticar os seus comportamentos condenáveis pelanormatividade dominante; ou uma pessoa desacreditada,se seu estigma for visível, a pessoa enfrenta um cicloquotidiano de restrições, chegando até a uma segregaçãoespacial e relacional. O sujeito deixa de contar, nos casosmais extremos, com o apoio da comunidade normativa, sendoque o grupo de apoio passa a ser exclusivamente o desviante.

Pode parecer um exagero tratar o uso de óculos, oestrabismo ou a cegueira como estigma, ou como“comportamentos desviantes”. Carmela Gross, por exemplo,diz que não tem muito contato com o espelho, passando porele sem olhar muito e sempre que ela se vê no espelho elaestá de óculos. Se tirar os óculos, ela tem que ver seu “duplo”muito de perto, perdendo o foco adequado. Paulo Cezar Lopesfala, mais especificamente, do medo de como o outro o trataria,sem saber se ele estaria enxergando-o ou não, e que essemedo é, em última instância, vergonha de usar óculos. Tambéma garotinha Jéssica Silveira fala da vergonha de usar óculospara ir à escola. Como diz Goffman (1986, p. 7) “a vergonhase torna uma possibilidade central, oriunda da percepção doindivíduo de que um dos seus atributos seja algo desonrosoe que ele poderia facilmente ver-se sem ele”.

Um aspecto central do estigma na vida do indivíduoé a aceitação do atributo em questão. Há diversas estratégiasàs quais ele poderá recorrer para lidar com seu problema:poderá tentar corrigir, até onde possível for, o que ele vêcomo falha (como a cirurgia plástica ou, no caso do nossodocumentário, o uso de lentes); poderá também recorrer à“vitimização”; poderá corrigir sua condição dedicando-se aáreas de que ele tradicionalmente teria que ser excluídodevido ao seu atributo ou comportamento (como umdeficiente físico que se dedique a praticar esportes ou umcego que se dedique à fotografia, como no caso de Eugen

Bacvar); igualmente, poderá utilizar seu estigma para obterganhos secundários ou como desculpa para algum fracasso;poderá também considerar seu sofrimento como uma bênçãoque lhe permitiu aprender sobre a vida.

A estratégia geral dos entrevistados do filme, sejaela motivada pela presença da câmera ou não, tem a vercom mostrar como o estigma pode ser superado ou atémesmo como ele é uma característica valorizada peloentrevistado. Assim, eles se mostram como desacreditáveis,mas não como desacreditados. Hermeto Pascoal, porexemplo, afirma: “Que vista rica! Estou vendo vocês duasvezes!” ou quando ele conta do “casamento oculto” onde eletinha a vantagem de que as meninas não sabiam para ondeele estava olhando, então vinham duas ou três na direçãodele. Wim Wenders também fala de como, em certomomento, tentou usar lentes, mas que se bem elas lheajudam a enxergar bem, ele terminava vendo demais: avantagem dos óculos para ele é que eles tornam a visãomais seletiva e mais contida, dando um enquadramento aoque se vê.

Marjut Rimmenen é a única que, de certo modo,recorre a uma vitimização, dizendo que sua mãe sempre aolhava tristemente como se dissesse “oh, my poor child!” etambém que ela não conseguia atuar de princesa nas peçasdo colégio. Entretanto, ela estava determinada a não ser umfracasso e lutou para se desenvolver em algo que ela tivessede especial e, por isso, ela se tornou uma cineasta, e, maisespecificamente, de filmes de animação. Agora, ela disse,ela pode fazer o papel de princesa e todos os papéis quequeira porque é ela quem faz seus bonecos ou desenhos. Omais interessante ou paradoxal, como ela diz, é que, depoisde ter feito uma cirurgia para corrigir seu estrabismo,ninguém notou a melhora. Ou seja, era uma deformidadeque representava um trauma para ela, mas queaparentemente ninguém notava.

Esses dados acerca da relação dos entrevistados como estigma são essenciais para definir a apresentação de umsujeito documental, a partir da forma como ele se relacionacom o mundo. Em última instância, há um ir e vir constanteentre o subjetivo (perspectiva do estigma) e o objetivo (relaçãocom o mundo a partir do estigma). Além disso, devemoslembrar-nos que a veracidade do documentário passa, aqui,pela adequação do discurso com o capital simbólico dosentrevistados e não por uma suposta autenticidade do quese diz. O discurso exposto é, como qualquer outro, passívela filtros, censuras e aberturas controladas pelo próprioentrevistado segundo seus critérios.

É válido mencionar aqui que tanto Walter Carvalhocomo João Jardim, realizadores do documentário, são míopes,sendo que o primeiro usa óculos de -7.5 graus e o segundo

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de -8 (Conti, 2001). Certamente, vários comentários feitosnos depoimentos não lhes são estranhos. Sem querer fazeraqui a psicologia dos autores, nem cair no desfiladeiro do “oque eles quiseram dizer”, podemos apontar somente queeste é um exemplo claro do processo de projeção-identificação que vimos anteriormente. Ademais, se nosremetermos ao trabalho de Benjamim (1985) acerca deProust, vemos ali, e concordamos com o autor, que a obra éum produto das relações externas (ou sociais) do autor e doseu estado psíquico. Ao mesmo tempo, a obra cria ummundo em si mesmo que só pode ser auto-referente,enquanto que a relação entre a obra e o leitor, nos termos deBenjamin, é quase mística (Morin diria mágica).

A janela se abre

A objetividade do sujeito documental não é dada,mas sim decorrente da elaboração, de um constructointencional dos realizadores que, mediante referenciaissociais vigentes, criam um sujeito que se conforma e culminapela sua própria fala no filme, a escolha dos realizadores decolocar determinadas partes das entrevistas e não outras,amparadas, por sua vez, pela identificação que o espectadorconsegue ter com os entrevistados dada por uma pautasocial comum, como os processos de projeção ou o estigma.

Se a realidade é construída a partir do olhar de cadaum, pode haver alguma positividade na beleza? Na últimaparte do filme, há um breve questionamento acerca dabeleza. Para Agnès Varda, o belo é visto a partir dosentimento que temos pelo objeto. Assim, na sua filmagemde Jacques Remy pondo o suéter novo, ela enfoca só aquiloque lhe causa amor, prazer ou atração, de modo que atémesmo Catherine Deneuve passa desapercebida. ParaWalter Lima Jr., a beleza passa pela simplicidade, peloirredutível, o substantivo. Saramago vê a beleza nas suasplantas crescendo no jardim, nos seus frutos e folhas, nocrescimento do novo na medida em que sua própria vida seaproxima do fim. Podemos ver este bloco como a metáforadas escolhas dos cineastas: abordaram um tema que lhesinteressava pessoalmente, escolheram as pessoas e asentrevistas que resumiam o que queriam transmitir e, agoraque o filme chega ao fim, eles podem apreciar a completudedo trabalho realizado. Portanto, também o belo éapresentado como construção subjetiva e intersubjetiva. O

olhar do criador sobre a criação é o que lhe outorga beleza evida, sendo o espectador também um criador.

A cena final do filme mostra o nascimento de umbebê sob um silêncio penetrante que é logo interrompidopela voz da enfermeira dizendo “Raimunda, olha para cá” eentão escutamos o choro da criança. Encontramos aqui, maisuma vez, a dissociação entre som e imagem, neste caso aausência de som que é cortada pela interpelação echamamento ao olhar. O olhar termina se impondo, mesmoquando, enquanto verbo transitivo, seu complemento podeser até mesmo o som, como o choro de um bebê. Finalmente,ao abrir os olhos, o bebê vê por primeira vez e é, ao mesmotempo, visto. Abre-se a janela da alma que, como diz OliverSacks, não é passiva, não é um receber informações, mas umir e vir entre as experiências do sujeito (mesmo que tãopequeno) e o mundo.

Referências

BENJAMIM, W. 1985. Obras escolhidas: Magia e técnica, arte epolítica. São Paulo, Editora Brasiliense, 253 p.BOURDIEU, P. 1999. ¿Qué significa hablar? Economía de losintercambios linguísticos. Madrid, Akal Ediciones, 160 p.CONTI, M.S. 2002. Documentário “Janela da Alma” discutequestões do ver e da visão. Folha Online. Acessado em: 14/04/2008, disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/critica/ult569u741.shtml.COWIE, E. 1999. The spectacle of actuality. In: J. GANES eM. RENOV. Collecting Visible Evidence. Minnesota, Universityof Minnesota Press, p. 19-46.GAINES, J. 1999. The real returns. In: J. GANES e M. RENOV,Collecting Visible Evidence. Minnesota, University of MinnesotaPress, p. 1-19.GOFFMAN, E. 1986. Stigma. Notes on the management of spoiledidentity. Nova Iorque, Simon & Schuster, 256 p.MORIN, E. 2001. El cine o el hombre imaginario. Barcelona,Paidós Comunicación, 222 p.RENOV, M. 2004. New subjectivities: documentary and self-representation in the post-verité age. In: M. RENOV, The subjectof documentary. Minnesota, University of Minnesota Press, p.171-181.

Submetido em: 20/02/2008Aceito em: 28/02/2008

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