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IX Congresso Internacional Artefatos da Cultura Negra Universidade Regional do Cariri ISBN: 978-85-65425-48-3 18 a 22 de setembro de 2018 141 AS RELAÇÕES DA TRADIÇÃO ORAL E O ENSINO DA CAPOEIRA Francisco Orismidio Duarte da Silva 45 Josier Ferreira da Silva 46 Cicera Nunes 47 RESUMO Mais que o simples ato de contar algo, a oralidade fortalece os laços sociais proporcionando o aprendizado necessário para que se mantenham vivos os valores e as memórias do povo. Na capoeira não é diferente, muita coisa só se aprende pelo viés da oralidade. Sendo assim, pretendemos com o presente artigo compreender o ensino da capoeira por meio da oralidade e, além disso, compreender a tradição oral como uma importante ferramenta de aprendizado nos espaços formais e não formais de ensino. Usaremos como suporte teórico os estudos sobre a oralidade e africanidades, além de publicações do IPHAN 48 e de mestres e pesquisadores da capoeira relacionados à tradição oral. Esperamos que a partir desse estudo possamos perceber os desafios, para assim potencializar as pesquisas e experiências acerca das africanidades e afrodescendências pelo caminho da cultura afrodescendente capoeira. Palavras-chave: Ensino. Cultura. Oralidade. Capoeira. INTRODUÇÃO Atualmente, observam-se inúmeras pesquisas referentes à prática da capoeira principalmente dentro do contexto esporte/luta. Por pensarmos a capoeira enquanto um rico movimento cultural que ainda mantém vivos os costumes, ritos e tradições dos povos africanos que aqui se reinventaram, o presente artigo busca evidenciar a tradição oral na prática da capoeira, pois se trata de um importante modo de ensino e aprendizado realizado nas mais variadas tradições afrodescendentes 49 . Vamos nos apoiar nos estudos de J. VANSINA (1981), A. HAMPATE BÂ (1981), WALDELOIR REGO (1968), CUNHA JUNIOR (2007), NUNES (2010), CANDAU (2013), PETIT e CRUZ, (1998), como também em estudos de pesquisadores da capoeira que buscam essa relação com a oralidade. O recorte, tradição oral na capoeira, advém do exercício pessoal do pesquisador que após alguns anos de prática busca o seu entendimento enquanto cultura, arte e vida ou mesmo 45 Professor Especialista, Secretaria da Educação do Estado do Ceará – SEDUC. Mestrando em Educação no Programa de Mestrado Profissional em Educação - MPEDU da Universidade Regional do Cariri – URCA. Membro do Núcleo de Estudos em Educação, Gênero e Relações Étnico-Raciais - NEGRER/URCA [email protected], Crato, Ceará, Brasil. 46 Professor do Programa de Mestrado Profissional em Educação - MPEDU, da Universidade Regional do Cariri - URCA. 47 Professora Permanente do Mestrado Profissional em Educação - MPEDU, da Universidade Regional do Cariri - URCA. Coordenadora do Núcleo de Estudos em Educação, Gênero e Relações Étnico-Raciais - NEGRER/URCA e do Congresso Artefatos da Cultura Negra. 48 Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. IPHAN. Órgão vinculado ao Ministério da Cultura. 49 Guiamo-nos no contexto dos estudos do Prof. Dr. Henrique Cunha Junior - UFC.

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IX Congresso Internacional Artefatos da Cultura Negra Universidade Regional do Cariri

ISBN: 978-85-65425-48-3 18 a 22 de setembro de 2018

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AS RELAÇÕES DA TRADIÇÃO ORAL E O ENSINO DA CAPOEIRA

Francisco Orismidio Duarte da Silva45

Josier Ferreira da Silva46

Cicera Nunes47

RESUMO

Mais que o simples ato de contar algo, a oralidade fortalece os laços sociais proporcionando o

aprendizado necessário para que se mantenham vivos os valores e as memórias do povo. Na

capoeira não é diferente, muita coisa só se aprende pelo viés da oralidade. Sendo assim,

pretendemos com o presente artigo compreender o ensino da capoeira por meio da oralidade e,

além disso, compreender a tradição oral como uma importante ferramenta de aprendizado nos

espaços formais e não formais de ensino. Usaremos como suporte teórico os estudos sobre a

oralidade e africanidades, além de publicações do IPHAN48 e de mestres e pesquisadores da

capoeira relacionados à tradição oral. Esperamos que a partir desse estudo possamos perceber

os desafios, para assim potencializar as pesquisas e experiências acerca das africanidades e

afrodescendências pelo caminho da cultura afrodescendente capoeira.

Palavras-chave: Ensino. Cultura. Oralidade. Capoeira.

INTRODUÇÃO

Atualmente, observam-se inúmeras pesquisas referentes à prática da capoeira

principalmente dentro do contexto esporte/luta. Por pensarmos a capoeira enquanto um rico

movimento cultural que ainda mantém vivos os costumes, ritos e tradições dos povos africanos

que aqui se reinventaram, o presente artigo busca evidenciar a tradição oral na prática da

capoeira, pois se trata de um importante modo de ensino e aprendizado realizado nas mais

variadas tradições afrodescendentes49. Vamos nos apoiar nos estudos de J. VANSINA (1981),

A. HAMPATE BÂ (1981), WALDELOIR REGO (1968), CUNHA JUNIOR (2007), NUNES

(2010), CANDAU (2013), PETIT e CRUZ, (1998), como também em estudos de pesquisadores

da capoeira que buscam essa relação com a oralidade.

O recorte, tradição oral na capoeira, advém do exercício pessoal do pesquisador que

após alguns anos de prática busca o seu entendimento enquanto cultura, arte e vida ou mesmo

45 Professor Especialista, Secretaria da Educação do Estado do Ceará – SEDUC. Mestrando em Educação no

Programa de Mestrado Profissional em Educação - MPEDU da Universidade Regional do Cariri – URCA.

Membro do Núcleo de Estudos em Educação, Gênero e Relações Étnico-Raciais - NEGRER/URCA

[email protected], Crato, Ceará, Brasil. 46 Professor do Programa de Mestrado Profissional em Educação - MPEDU, da Universidade Regional do Cariri

- URCA. 47 Professora Permanente do Mestrado Profissional em Educação - MPEDU, da Universidade Regional do

Cariri - URCA. Coordenadora do Núcleo de Estudos em Educação, Gênero e Relações Étnico-Raciais -

NEGRER/URCA e do Congresso Artefatos da Cultura Negra. 48 Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. IPHAN. Órgão vinculado ao Ministério da Cultura. 49 Guiamo-nos no contexto dos estudos do Prof. Dr. Henrique Cunha Junior - UFC.

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a compreensão de “o tudo que a boca come” como disse Mestre Pastinha50 (1889-1981) ao ser

perguntado sobre o que era Capoeira.

Apesar de a capoeira ser conhecida como um esporte genuinamente brasileiro, pelo

fato de também ter sido uma luta desenvolvida no Brasil, é importante perceber que a esta é

uma teia muito complexa, é uma Arte de muitos personagens, muitas vozes e de muitos

caminhos (SILVA, 2017, p. 21). O Aspecto luta nasceu de uma necessidade de sobrevivência,

porém sua prática é cultural, da qual contém vários aspectos que se diferenciam por região,

mestre, escola, dentre outros.

Dessa forma, não pensamos a capoeira apenas enquanto esporte/luta, como algo

estático ou meramente folclórico. Percebemos a capoeira como algo multicultural, pois estamos

diante da nossa própria formação histórica e sociocultural (CANDAU, 2013) que é marcada

principalmente pela mistura de povos brasileiros51 e africanos nas suas mais variadas etnias.

Por entendermos a capoeira como uma cultura afrodescendente, resolvemos embrenhar-

nos em seu universo de ensino/aprendizagem, mais especificamente no aspecto oral, para

compreendermos sua potencialidade através de suas práticas e assim contribuir na ampliação

dos conhecimentos proporcionando uma reflexão sobre a cultura, as características de ensino e

sua importância para a educação brasileira.

SOBRE A CAPOEIRA

Segundo o Dossiê IPHAN nº 12 que trata da Roda de Capoeira e Oficio de Mestres de

Capoeira, a atividade é uma arte que tem registros desde o século XVIII, sejam eles

iconográficos ou documentais. Apesar desses registros vemos ao longo da história que a

capoeira enquanto uma prática sistematizada só veio a se evidenciar nos grandes centros

urbanos, em especial na Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro, principais zonas portuárias

brasileiras. Posteriormente, a partir do processos de folclorização e esportivização, é que ela

veio a se expandir pelo Brasil e outros países.

Porém é importante destacar que a prática da capoeira foi por muito tempo vista como

algo marginal que vinha a representar perigo à sociedade, sendo então proibida através do

decreto 847 de 11 de outubro de 1890 que trazia em seu capítulo XIII intitulado; Dos Vadios e

Capoeiras, uma determinação proibitiva exclusiva aos capoeiras como segue:

50 Vicente Ferreira Pastinha (1889-1981) foi o principal representante da capoeira tradicional chamada Capoeira

Angola. 51 Povos brasileiros referem-se aos grupos étnicos que hoje chamamos índios.

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Art. 402. Fazer nas ruas e praças publicas exercicios de agilidade e destreza corporal

conhecidos pela denominação capoeiragem; andar em correrias, com armas ou

instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumultos ou

desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal:

Pena - de prisão cellular por dous a seis mezes.

Paragrapho unico. E' considerado circumstancia aggravante pertencer o capoeira a

alguma banda ou malta.

Aos chefes, ou cabeças, se imporá a pena em dobro.

Art. 403. No caso de reincidencia, será applicada ao capoeira, no gráo maximo, a pena

do art. 400.

Paragrapho unico. Si for estrangeiro, será deportado depois de cumprida a pena.

Art. 404. Si nesses exercicios de capoeiragem perpetrar homicidio, praticar alguma

lesão corporal, ultrajar o pudor publico e particular, perturbar a ordem, a tranquilidade

ou segurança publica, ou for encontrado com armas, incorrerá cumulativamente nas

penas comminadas para taes crimes. (Decreto Lei 847 de 11 de outubro de 1890)

No decorrer do século XX a prática da capoeira começa a ter mais espaço,

principalmente na Bahia através das práticas de Mestre Pastinha e Mestre Bimba que trouxeram

uma melhor organização, chamando assim a atenção de outras camadas sociais quanto à

potencialidade desportiva da capoeira, o que a levaria a ser retirada do código penal brasileiro

a partir do decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Passando a ser denominada esporte

brasileiro pelo então governo Getúlio Vargas.

Na atualidade, a capoeira é ensinada em todo território brasileiro e em mais de 150

países através dos mais variados grupos, mestres, contramestres, professores, treinéis,

instrutores e monitores oriundos dos estilos Angola ou Regional.

Ainda conforme o Dossiê IPHAN nº 12 a capoeira “é uma manifestação cultural que se

caracteriza por suas múltiplas dimensões, é ao mesmo tempo dança, luta e jogo”. (p.19, 2014).

Por ela ser uma prática cultural oriunda de nossos irmãos africanos percebemos que a oralidade

faz parte de seu ensino aprendizagem ainda nos tempos de hoje onde o mundo virtual tem

ganhado mais espaço frente ao mundo real.

A ORALIDADE NA CAPOEIRA

"note bem, amigo... a capoeira está dividida em trez parte, a primeira

é a comum, é esta que vêr ao publico, a segunda e a terceira, é

rezervada no eu de quem aprendeu”. Mestre Pastinha.

A capoeira é uma cultura, uma atividade social com ritos, com regras, com influências,

com vivências individuais e coletivas inerentes a cada grupo social, a cada grupo ou

comunidade de capoeira, pois cada um tem sua forma de ser e existir neste mundo. Como disse

Mestre Pastinha: “Cada um é cada um, ninguém joga do meu jeito”.

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A tradição oral na capoeira aparece como uma condição singular, pois se trata de um

aprendizado ao pé do berimbau52 onde o mestre conduz a prática sempre integrada a suas

experiências pessoais e, dessa forma, diretamente associada aos seus fazeres cotidianos seja

trabalho, atividades domésticas ou de lazer.

[...] a tradição oral se funda na iniciação e na experiência, o que produz formas de

aprendizagem totalmente diversas das predominantes no ocidente. Assim os

conteúdos da tradição oral incluem histórias, lendas, mitos, provérbios, adágios e a

genealogia da família e da comunidade. Esses conteúdos são passados de forma

assistemática, essencialmente pela experiência e segundo as circunstâncias da vida.

Como a vida não é cortada em fatias, o conhecimento é passado de forma global

podendo envolver simultaneamente diferentes dimensões da vida e das ciências.

(PETIT e CRUZ, 1998, p. 07).

Pelo viés da oralidade as pessoas partilham seus mitos, suas lendas e histórias, suas

formas de lidar com as coisas e, assim, desenvolvem a compreensão de mundo permitindo aos

envolvidos a construção de suas memórias, a ressignificação de seus valores e o reconhecimento

de suas identidades.

Sendo assim, a oralidade fortalece os laços sociais de comunidades e grupos de cultura

popular. Além disso, proporciona o aprendizado necessário para que se mantenham vivos seus

valores e suas memórias. A partilha destes valores e destas memórias na prática da capoeira

estimulam mestres e grupos a preservarem seus conhecimentos e a fortalecerem suas culturas,

ao mesmo tempo em que nos ensinam coisas que nunca veríamos na escola, pois “a tradição

oral é a grande escola da vida”. (BÂ, 1982, p. 183).

[...]consegue colocar-se ao alcance dos homens, falar-lhes de acordo com o

entendimento humano, revelar-se de acordo com as aptidões humanas. Ela é ao

mesmo tempo religião, conhecimento, ciência natural, iniciação à arte, história,

divertimento e recreação uma vez que todo pormenor sempre nos permite remontar à

unidade primordial. (BÂ, 1982, p. 183).

É desse modo os velhos mestres53 da capoeira conseguiam passar seus conhecimentos

aos seus discípulos. Esta forma de aprendizado faz parte da cultura da capoeira e, assim, de

extrema importância para o capoeirista, pois “uma sociedade oral reconhece a fala não apenas

como um meio de comunicação diária, mas também como um meio de preservação da sabedoria

dos ancestrais [...]”. (VANSINA, 2010, p.139,140).

Muitos capoeiristas entendem ser de extrema importância os modos tradicionais de

52 É um momento em que se deve ter máxima atenção, pois ao pé do berimbau é onde se inicia o jogo da

capoeira. Nesse caso, ao pé do berimbau se refere a uma metáfora comumente usada na capoeira quando alguém

deseja falar mais diretamente há alguém, ou ao grupo, ou mesmo quando se desejar falar pessoalmente com um

camarada. Exige-se então atenção. 53 A expressão velhos mestres é uma expressão de uso comum no meio capoeirístico para designação dos

mestres que já desencarnaram, ou mesmo àqueles muito antigos que ainda estão vivos.

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ensino/aprendizagem da capoeira, principalmente àqueles que vêm das linhagens mais

tradicionais de Angola54 ou Regional55.

Apesar de a grande maioria de praticantes da capoeira ser oriundos das linhagens de

Capoeira Angola e Capoeira Regional, percebemos que ao longo do tempo muitos capoeiristas

têm deixado de lado o aspecto tradicional no ensino da capoeira, dando ênfase apenas ao aspecto

luta, dentro de um treinamento de academia que visa apenas um condicionamento físico dos

corpos, esquecendo todo um legado cultural que a prática da capoeira carrega.

Os conhecimentos tradicionais e a filosofia de vida que tanto se fala na capoeira são

muitas vezes trocados pelo modismo por uma parcela de capoeiristas que seguem o que

conhecemos como cultura de massa isto é, “massificação do indivíduo, onde os valores

máximos são a tecnologia e o dinheiro, e a cultura tem seu grande representante na televisão”

(Capoeira Nestor 2002, p.63).

Apesar de ser arriscado enveredar por este caminho, não podemos desprezar esse

momento onde a cultura de massa impera, onde o capital está acima de tudo, onde o lucro e a

busca incessante pelos desejos pré-concebidos por essa alienação premeditada são a mola

mestre do mundo e do Brasil especificamente, mesmo porque é muito difícil no mundo viver

sem consumir a cultura de massa.

Os novos modelos globais, diretamente aprisionados à indústria de cultural, tem sido

sem sombra de dúvida um fator preponderante neste afastamento quanto ao tradicional na

capoeira, portanto:

[...] podemos também perceber o quanto este processo de homogeneização cultural

vem modificando comportamentos, inaugurando novas formas de expressão e

compreensão do mundo, fortemente influenciadas por uma indústria cultural que

consegue estabelecer-se enquanto referência hegemônica e determinante de gostos e

preferências, onde muito de nossas tradições artístico-culturais vão sendo pouco a

pouco substituídas por um tipo de produto pasteurizado[...] (ABIB, 2004, p. 03).

O modismo ao longo do tempo sempre foi fator de mudanças de comportamentos sociais

e na capoeira não seria diferente. Hoje, se tem na capoeira uma nova tendência que chamam de

estilo contemporâneo. Como esse novo estilo segue uma tendência dita “nova”, se distanciando,

para muitos, da capoeira de Angola e Regional muitos dos aspectos tradicionais da capoeira são

deixados de lado.

Se pensarmos no termo contemporâneo em si logo vamos perceber que não se trata de

um estilo, mas sim de um momento em que todos nós vivenciamos. Sabemos que vivemos em

54 Conhecida como a capoeira mãe, seu principal representante foi o Mestre Pastinha do estado da Bahia. 55 Estilo de capoeira criado por Mestre Bimba na Bahia, no final da década de 20.

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culturas distintas e que os processos de aculturação fazem parte da formação das pessoas, das

sociedades. Seria muito simples e sem maior aprofundamento pensar ou simplesmente acatar

esse termo como sendo um estilo de capoeira ou como explicação para as mudanças que a

capoeira sofre e sofrerá ao longo dos tempos.

A contemporaneidade é o atual, é o agora, é o hoje. É importante tentar compreender

que esse termo “contemporâneo” nos chega porque o termo moderno, já não mais abarcava as

mudanças no mundo e a velocidade que elas ocorrem. Isso diz respeito à arte, à tecnologia, às

mudanças políticas e socioculturais que o mundo moderno vem sofrendo.

Se a capoeira é uma cultura, obviamente também estará ela sofrendo mudanças

constantes. Sabemos que existe a designação de um estilo de capoeira como contemporânea,

mas acreditamos ser equivocado e pensamos que essa denominação vem da falta de

compreensão quanto ao que se pratica hoje com a capoeira e principalmente ao próprio termo.

Todos os grupos e estilos de capoeira praticados hoje são contemporâneos, inclusive

àqueles grupos e mestres (as) que trabalham e preservam as tradições de Capoeira Angola ou

Capoeira Regional, porque o fazem na contemporaneidade, no hoje.

As variadas formas de jogo, as composições das baterias e os rituais estabelecidos

sempre nos mostram que a capoeira é uma cultura de várias tradições, relacionadas a cada

mestre (a) e a cada grupo.

Um (a) mestre (a) de capoeira como também os mestres (as) das diversas

manifestações culturais existentes são seres do mundo, seres contemporâneos, seres que sabem

lidar com o presente, que entendem o passado e que podem vislumbrar o futuro, isto é, eles (as)

são sujeitos à frente dos outros. Como foi o caso de Mestre Pastinha e Mestre Bimba que

souberam criar seus métodos de ensino conforme as necessidades contemporâneas, uma vez

que “a cultura negra encontra-se em constante conflito com as estruturas de dominação”

(NUNES, 2010, p. 48).

Os mestres e as mestras da capoeira mais do que nunca são convocados a atuar enquanto

tradicionalistas (BÂ, 1982) em busca da preservação e continuidade dos preceitos dos vários

mestres (a), em especial os mestres Pastinha e Bimba, sem se esquecer da responsabilidade de

manter vivas as tradições afrodescendentes, isto é, os costumes, a vida aprendida através de

seus antepassados seja por meio da oralidade ou de outras práticas tradicionais, pois só assim

poderemos perpetuar as nossas histórias de vida, de luta e de resistência.

Esse ato os aproxima do que BÂ (1982) vai chamar de o “Guardião dos segredos da

gênese cósmica e das ciências da vida, o tradicionalista, geralmente dotado de uma memória

prodigiosa, normalmente também é o arquivista de fatos passados transmitidos pela tradição,

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ou de fatos contemporâneos”. (BÂ, 1982, p. 175).

Desse modo é importante compreender que frente a esse mundo globalizado onde a

virtualidade é o aspecto que tem dominado as relações cotidianas, a tradição oral é um fator de

suma importância para a preservação dos valores culturais da capoeira e de cada lugar/espaço

afrodescendente pois,

[...] esse ensinamento nos leva a buscar conhecer de onde viemos, quem eram nossos

antepassados e suas histórias. E mesmo para nós, afrodiaspóricos, nem sempre bem

inteirados dessa história, torna-se importante realizar a busca das histórias africanas

que nos envolvem e marcam nosso pertencimento, seja ele biológico ou não, já que se

trata fundamentalmente de relação de ancestralidade cultural, algo que todos nós

possuímos. (PETIT, 2016, p. 666).

A capoeira por ser dialética é um ato de resistência. Nas palavras do Mestre Angoleiro,

ela “foi uma forma de dizer não a morte!” E isso faz da capoeira uma possibilidade de atuação

em nossa educação. Vivenciamos através dela costumes, ritos e tradições, além disso,

aprendemos a ter respeito à natureza e a ter conhecimento da história brasileira nunca contada

nas salas de aula. Dessa forma, de um modo mais geral, “a capoeira pode educar para a vida.

Para você ser um cidadão melhor, pra você ter uma relação melhor com as outras pessoas. Uma

educação social, tudo isso a capoeira pode fazer” (COSTA E SCHOOT, 2016, p. 52).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A cultura afrodescendente se faz na oralidade, nos conhecimentos passados através da

vivência, portanto a capoeira enquanto cultura afrodescendente carregará em seu bojo, além do

que vemos e pensamos sobre ela num primeiro olhar mais displicente, a cultura popular, as

regras sociais, os saberes; sobre a vida, sobre as coisas cotidianas, sobre política, sobre ética,

sobre poder, sobre cidadania, sobre etnia, sobre gênero. Ela carrega aspectos inerentes aos

próprios sujeitos e seu mundo.

Sabemos que nos dias atuais, a cultura de massa tem determinado as novas formas de

viver e estar no mundo nos condicionando padrões de perfeição, seduzindo-nos ao consumo de

bens e valores advindos de uma indústria chamada cultural, que transforma tudo em tendência

e moda. Portanto, os mestres e mestras da capoeira não estão blindados a estas determinações

socioculturais contemporâneas, mesmo porque são seres do mundo contemporâneo e assim

sendo, vivem em meio à diversidade e transformações cotidianas.

Mesmo ocorrendo essas transformações socioculturais que nos levam a este caminho de

mudança de hábitos, temos que levar em consideração o fato de a capoeira ser algo ancestral e

que nela existem valores e práticas que, dificilmente, serão desprezados por aqueles que a

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ensinam, como é o caso do ensinar pegando nas mãos56, da conversa ao pé do berimbau, da

comunicação musical realizada pelo toque, pelo ritmo e pela letra executados nas rodas.

Sendo assim, àquele (a) capoeirista que tem ou tiver o privilégio de ter em seus

aprendizados uma melhor ênfase à tradição oral terá ele (a) certamente um melhor

pertencimento de si, de sua cultura ancestral, e porque não de sua sociedade? Pois terá um olhar

mais atento ao seu mundo, ao seu cotidiano.

Dessa forma, a prática da capoeira, por se pautar na tradição oral, é uma prática guiada

em direção à memória e à tradição dos povos ancestrais. É uma prática de autoconhecimento,

de conhecimento da história brasileira, de costumes perdidos e reinventados, de tempo, de vida!

Não se faz incoerente pensar que a capoeira enquanto aliada à educação poderá nos

subsidiar quanto ao pertencimento sociocultural do aluno estimulando-o a realizar as conexões

e contextualizações acerca do conhecimento que ele recebe no ensino formal com o seu

cotidiano, sua ancestralidade, história, suas crenças, suas lendas e seus mitos. Enfim, com sua

cultura.

Iê viva meu mestre!!!!

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DECANIO FILHO, Ângelo Augusto. A Herança de Pastinha. 2ª Ed. Salvador. Coleção São

56 Ensinar pegando nas mãos é uma prática dos velhos mestres da capoeira quanto ao ensino da ginga.

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educacao> acesso em 05/03/2018.

SILVA, Francsico Orismidio Duarte. Terreirada no Cariri. Fortaleza, Premius, 2017.

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AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E A LEI Nº 10.639/03 NAS QUESTÕES DE

ENSINO-APRENDIZAGEM: HISTÓRIA, CULTURA, IDENTIDADE NEGRA E AS

COMPETÊNCIAS PARA UM ENSINO MULTICULTURAL

Francisco Anderson Varela Bezerra57

RESUMO

O presente artigo foi desenvolvido a partir da disciplina de Planejamento e Projetos

Educacionais, no curso de Licenciatura plena em Pedagogia da Universidade Federal de

Campina Grande – Campus Cajazeiras – PB. Tem como principal objetivo discutir e

problematizar as atribuições referentes a Lei nº 10.639/2003 no tangenciamento com as relações

de ensino-aprendizagem no âmbito escolar. Considerando fatores como a negação identitária

dos educandos pertencentes a ancestralidade africana nas escolas; as discussões referentes as

políticas públicas que subsidiam no auxílio teórico-metodológico para um ensino

multiculturalista; bem como as competências na formação docente para o ensino da história e

cultura africana de modo transversal no currículo escolar, contribuindo na constituição de uma

sociedade antirracista. Como aporte teórico, utilizo os seguintes autores Alves (2007), Dias

(2016), Almeida (2014), Tomaim e Tomaim (2009) e Gomes (2011), que contribuíram

sobremaneira para a realização do trabalho. Metodologicamente o artigo está pautado na revisão

de literatura das obras dos autores e autoras supracitados.

Palavras-chave: Relações étnico-raciais; ensino; multiculturalismo; afrodescendência.

INTRODUÇÃO

A educação no Brasil desde o período colonial com as primeiras escolas de ensino

jesuíta, centralizou o saber a partir das perspectivas eurocêntricas, seja em relação a cultura,

religião e as próprias formas de produção de conhecimento. Devido às fortes influências e os

resquícios deixados pela escravatura no país, essa visão hegemônica perpetuou-se. Mesmo com

o final do período escravista a situação relacionada a população negra no país não teve

mudanças significativamente positivas, fazendo com que no pós-abolição diversos direitos

fossem negados aos descendentes de africanos remanescentes no Brasil.

Dentre todos os direitos que historicamente foram negados, destaca-se o direito a

educação, uma das principais formas de manutenção do status quo posta através da visão do

colonizador sobre o colonizado. Fato que contribuiu para a invisibilidade da população negra

no país, partindo da perspectiva como o negro(a) foi e ainda é visto nos livros didáticos, de

forma negativa, assim, contribuindo coercitivamente para a negação identitária de várias

gerações de afrodescendentes no país.

57 Graduando no curso de Licenciatura Plena em Pedagogia da Universidade Federal de Campina Grande – campus

Cajazeiras PB. E-mail: <[email protected]>

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Considerando os fatores supracitados, o presente estudo aborda a temática referente as

relações étnico-raciais e as questões sobre a história, cultura e identidade negra no ensino. A

origem do estudo aconteceu a partir da disciplina de Planejamento e Projetos Educacionais, no

curso de Licenciatura plena em Pedagogia da Universidade Federal de Campina Grande –

Campus Cajazeiras – PB. O objetivo central do trabalho é discutir e problematizar a Lei

10.639/03, no que diz respeito às questões de ensino-aprendizagem e as relações étnico-raciais,

dando ênfase aos conteúdos sobre a história e cultura africana na sua valorização, no sentido de

ressignificar as práticas de ensino numa perspectiva multicultural.

É nítida a relevância socioeducacional da Lei 10.639/03 como promotora de uma

sociedade justa, na qual as relações díspares entre a população negra e branca gradativamente

possam ser alteradas de modo positivo, para tanto, é necessário repensarmos novas práticas e

metodologias de ensino que contemplem as especificidades da referida Lei.

Desta maneira, o estudo foi desenvolvido a partir da seguinte questão problema: como

efetivar um ensino plural pautado na diversidade étnico-racial da Lei 10.639/03, considerando

a valorização da cultura e história africana nas escolas? Como aporte teórico utilizo os seguintes

autores e autoras Alves (2007), Dias (2016), Almeida (2014), Tomaim e Tomaim (2009) e

Gomes (2011) que contribuíram na discussão de forma precisa. A metodologia utilizada para a

realização do estudo está pautada na revisão de literatura das obras dos autores e autoras

supracitados.

É relevante enfatizar também as dificuldades para implementação efetiva da Lei

10.639/03 nas escolas, tomando como base o argumento de que essa discussão ainda não é

considerada como um dos problemas sociais centrais e emergentes no âmbito educacional,

mesmo com a orientação da Lei de Diretrizes e Bases e dos Parâmetros Curriculares Nacionais

(LDB), a discussão ainda é negligenciada em grande parte dos casos.

A negação identitária e afrodescendentes nas escolas

Por séculos a população afrodescendente sofreu com o período escravocrata, no pós-

abolição a situação de marginalização e perseguição da sua estética, costumes, cultura e religião

ainda persistiu, fazendo com que houvessem déficits nos mais diversos setores da sociedade,

no que diz respeito a situação de igualdade e pertencimento de espaços que historicamente

foram negados. Um ponto especifico a ser citado está relacionado a educação. Atualmente, os

conteúdos que são apresentados nas escolas contribuem para a manutenção e negação da

identidade negra, sendo que a centralidade dos currículos ainda está pautada na cultura e visão

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eurocêntrica,

A demasia na estima de elementos pertencentes à cultura européia em nosso currículo,

fruto da educação jesuítica, no período colonial brasileiro, faz com que todas as

adequações no quadro de conteúdos sejam de caráter transdisciplinar e tolera que

conservadores fiquem no status quo, criando ao educando impedimentos quanto ao

direito de conhecer sua própria história (ALVES, 2007, p.30).

A construção de um currículo que coloca em detrimento as contribuições da cultura e

história africana na constituição do país nos aspectos políticos, sociais e econômicos deve ser

analisado em uma perspectiva histórica e social, desde a chegada dos europeus no Brasil, com

o início do período escravocrata, até o pós-abolição.

Houve todo esse processo de negação e ocultamento relacionado à identidade africana

e afro-brasileira. Fato que reflete atualmente no contexto educacional brasileiro, os educandos

pertencentes à descendência africana não são contemplados nos conteúdos que são expostos

sobre a sua cultura originária, fazendo com que coexista, nesse sentido, tanto a negação da

identidade, quanto o desconhecimento das contribuições advindas da cultura e história africana.

A necessidade da efetivação de um ensino plural, que contemple as mais diversas formas

de manifestações socioculturais, pode servir de subsídio e base para os enfrentamentos

relacionados à segregação e descriminação sofridas pela população negra. Modificando essa

visão naturalizada na qual o negro(a) sempre é visto(a) como inferior, como afirma Alves (2007,

p. 27),

Não é nada fácil para uma criança negra ver sua identidade se esvair diante das

terríveis afirmações que surgem nas aulas de história com relação ao advento de seu

povo. O trabalho dos negros no Brasil não é visto como um ato de terror, no qual,

seres humanos são conduzidos criminosamente ao trabalho escravo.

Nesse sentido, é preciso reconhecer a relevância do tratamento positivo no que diz

respeito aos conteúdos ministrados nas escolas, tratando-se das diferentes culturas existentes

no País, principalmente a cultura africana, que ao longo da história vem sofrendo os mais

diversos tipos de perseguições e, muitas vezes, é criminalizada.

É necessário considerar a diversidade étnico-racial do alunado e as consequências

futuras para as crianças negras, a não valorização da sua cultura e o total desconhecimento sobre

a história dos seus ancestrais pode fazer com que a sua identidade seja negada, partindo da sua

subjetividade até o exterior, com a rejeição dos seus traços estéticos, fenótipos e culturais, em

busca da aceitação do padrão social imposto, o ser branco.

Como a autora Dias afirma (2016, p. 2) “a abordagem superficial e distante do

cotidiano escolar reforça estereótipos, naturaliza os problemas raciais e sociais como algo

comum que não deve ser levado em consideração, como, por exemplo: ‘Negro é violento’,

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‘índio é preguiçoso’ ...”, a superação dessa visão carregada de estereótipos negativos, construída

ao longo da história, só pode ser superada através da educação, uma educação que seja pautada

nas múltiplas formas de contribuições e conhecimento advindos da cultura africana. Para que

isso ocorra, é necessário que sejam discutidos todos os tipos de culturas e saberes existentes no

meio social, e não somente a visão eurocêntrica, que prevalece atualmente nos currículos

escolares.

Discussões sobre as políticas para os afrodescendentes no âmbito educacional e a lei

10.639/03

A implementação e efetivação de políticas e projetos de lei que possam ressignificar

as práticas de inclusão para a população afrodescendente nos mais diversos setores da

sociedade, também podem ser consideradas como forma de buscar uma sociedade justa e

igualitária para todos, independentemente da sua etnia, raça e cultura. O modo como a educação

está centralizada nos currículos atualmente necessita de mudanças urgentes, levando em

consideração como foi/é colocada nos livros didáticos a figura do negro(a) no meio educacional.

Nesse sentido, as reivindicações do Movimento Negro no país sobre as políticas de

implementação da modificação dos currículos na educação, vem em contra argumentação a essa

visão,

As questões como a discriminação do negro nos livros didáticos, a necessidade de

inserção da temática racial e da História da África nos currículos, o silêncio como

ritual a favor da discriminação racial na escola, as lutas e resistências negras, a escola

como instituição reprodutora do racismo, as lutas do Movimento Negro em prol da

educação começam, aos poucos, a ganhar espaço na pesquisa educacional do país,

resultando em questionamentos à política educacional (GOMES, 2011. p.4).

Fruto de todas essas lutas e mudança de uma visão na qual os afrodescendentes são

inertes há séculos no país, começam a ser reavaliadas a partir da implementação de leis.

Segundo Gomes (2011), tanto na Constituinte de 1988 quanto na elaboração da nova Lei de

Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96), houve participação marcante da

militância negra nos anos 80. O Movimento Negro foi bastante decisivo no que diz respeito aos

frutos de todas essas lutas e reinvindicações.

Como por exemplo, a Lei 10.639/03 com o intuído de inserir no âmbito educacional

as discussões relativas a descentralização dos currículos pautados na visão eurocêntrica, com a

obrigatoriedade do ensino da cultura e história africana, resignificando os saberes sobre os

afrodescendentes no Brasil,

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É nesse intuito, de construir um instrumento de reação e prevenção aos

comportamentos preconceituosos e discriminadores, institucionalizados quase

secularmente pela educação brasileira, que a lei 10.639/03 surgiu, sendo este um

utensílio importante para a política pública educacional, pois ao regulamentar a LDB,

também fornece subsídios para educação básica, como orientações filosóficas e

pedagógicas e com princípios voltados à formação escolar e educacional (DIAS, 2016,

p.2).

Deste modo, a prioridade na efetivação de um ensino que possa idealizar mudanças no

contexto social que historicamente segregou a população negra é de extrema importância,

levando em consideração que a Lei 10.639/03 vem nessa perspectiva de contribuir na equidade

social entre a população negra e branca.

Na cartilha publicada pelo Ministério da Educação em “Contribuições para

Implementação da Lei 10.639/2003”, na Proposta do Plano Nacional de Implementação das

Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de

História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, é citado no objetivo central a seguinte questão:

Promover a valorização e o reconhecimento da diversidade étnico-racial na educação

brasileira a partir do enfrentamento estratégico de culturas e práticas discriminatórias

e racistas institucionalizadas presentes no cotidiano das escolas e nos sistemas de

ensino que excluem e penalizam crianças, jovens e adultos negros e comprometem a

garantia do direito à educação de qualidade de todos e todas (BRASIL, 2008, p.11).

Apesar de haver todos esses avanços, tratando-se das discussões relacionadas as

discrepâncias sociais nas quais a população afrodescendente se encontra, ainda existem

inúmeros fatores que antagonicamente se dissociam da realidade que a Lei prioriza. Em seus

objetivos específicos, publicado na cartilha, é citado o seguinte argumento: “Promover a

institucionalização da lei n. 10.639/2003 no âmbito de todo o Ministério da Educação e nas

gestões educacionais de municípios, estados e do DF, garantindo condições adequadas para seu

pleno desenvolvimento como política de Estado.” (BRASIL, 2008, p.11).

O que realmente acontece na prática, no contexto educacional atual, é a parcial falta

de conhecimento dos docentes referente a Lei 10.639/03 e as suas atribuições com relação as

questões de ensino-aprendizagem. Corroborando com afirmativa, as autoras Nascimento e

Costa (2014, p. 2) citam que:

Apesar de ter sido publicada em janeiro de 2003, e tendo em mente a obrigatoriedade

do que prevê essa lei, seu cumprimento ainda é bastante escasso nas escolas do Brasil.

Ora, haja vista essa pluralidade que originou esse país, deixar de lado o estudo desses

conteúdos é praticamente esquecer uma parte de nossa própria história.

Vários fatores contribuem para as dificuldades enfrentadas na efetivação da Lei

10.639/03 nos currículos escolares e nas práticas pedagógicas dos docentes nas instituições de

ensino. Alguns desses podem ser caracterizados pela formação deficitária na graduação dos

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professores, a negligência em relação a temática por parte dos gestores escolares e a visão

errônea de que os problemas sociais relativos as desigualdades sofridas pela população negra

devem ser resumidas em uma única data do ano, como no 20 de novembro, dia da Consciência

Negra. Complementando essa ideia, Dias (2016, p. 4) enfatiza que,

Além de esbarrar na deficiência da estrutura física e material, com professores sem

especialização, a falta de livros didáticos dentre outros. Apesar de algumas escolas,

procurarem desenvolver projetos pedagógicos mais progressistas, relacionados ao

resgate da cultura afro-descendente, percebe-se que tais tarefas estão associadas à

cultura popular como exemplo o folclore. Constata-se com isso uma deficiência para

desenvolver uma pedagogia com referencial histórico das culturas afrodescendentes.

A superação dessa deficiência supracitada, parte do pressuposto de que a mudança

efetiva deve ocorrer a partir da junção harmoniosa entre todos os setores da sociedade, em busca

de combater as desigualdades raciais existentes. Desde as instâncias políticas governamentais,

perpassando pelas secretarias de educação, os responsáveis na gestão das escolas e, por último,

mas não menos importante, os próprios docentes, que serão os responsáveis por colocar em

prática todas as ações idealizadas em relação as políticas educacionais antirracistas, para que

possam valorizar todos os saberes advindos da cultura e história africana nas suas múltiplas

formas de manifestação na sociedade.

As competências na formação docente para o ensino da história e cultura africana e

transversalidade do ensino multiculturalista

Atualmente a formação de professores não atende por completo as demandas teórico-

metodológicas no que diz respeito as discussões pautadas em um ensino plural, fazendo com

que a educação ministrada no âmbito das salas de aula permaneça de forma segregada,

excluindo os saberes da cultura e história afrodescendente. Muitas dessas dificuldades

perpassam pela constituição dos currículos nos Centros de Formação de Professores e a escarces

de conteúdos que contemplem a diversidade étnica e cultural, sendo esse um dos principais

fatores para a dificuldade da implementação da Lei 10.369/03,

Faz-se necessário, nos cursos de qualificação docente, discutir e refletir sobre essas

representações que eventualmente surgem no cotidiano escolar, uma vez que este é

um caminho para que ocorra uma mudança efetiva. Lança-se assim, a possibilidade

de termos professores sensíveis e capazes de conduzir as relações entre diferentes

grupos étnico-raciais, essenciais para o processo de transformação da educação

brasileira (TOMAIM; TOMAIM 2009, p.8).

Esse processo de transformação e sensibilização no âmbito educacional relacionado

aos docentes em formação, deve ser trabalhado numa perspectiva de enfrentamento dos

problemas sociais e históricos vivenciados pela população afrodescendente no País, sendo

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assim, necessita-se

Revermos o problema racial no ambiente escolar faz-se necessário um trabalho

pedagógico realmente democrático, intencionado em construir e desenvolver uma

consciência crítica e emancipadora em todos os envolvidos no processo educacional

(TOMAIM; TOMAIM; 2009, p.9).

Essa tomada de consciência emancipatória, a priori, deve ser trabalhada no processo

de formação dos docentes na graduação, para que ao adentrar na efetivação da profissão no

âmbito da sala de aula, possa realizar atividades educacionais que valorizem as especificidades

étnicas e culturais do alunado. Corroborando com a ideia, Dias (2016) diz que,

Ao tratar da história da África e da presença do negro no Brasil, os professores devem

relatar esta história de forma positiva, para que os alunos afrodescendentes sintam-se

valorizados em sua cultura. A escolha de um bom livro didático também é fator

importante para a promoção da igualdade social, haja vista que alguns livros reforçam

o racismo presente na sociedade brasileira. (DIAS, 2016. P.8)

A autora ainda cita outra questão relevante, no que diz respeito aos processos de

ensino-aprendizagem e a efetivação da Lei 10.639/03 nas escolas, considerando a seguinte

afirmativa,

O trabalho da escola é de suma importância para que a lei seja cumprida, pois sabemos

que será no ambiente escolar que se dá a formação do cidadão. Por isso, faz-se

necessário e fundamental ampliar as discussões quanto a esta temática, além de criar

projetos pedagógicos que privilegiem a igualdade entre os povos, lembrando que os

negros foram arrancados de sua terra natal, escravizados e jogados nos navios

negreiros para trabalhar sem nenhuma remuneração. (DIAS, 2016, p.11)

Dentre todas as questões que foram citadas, é importante salientar que esses processos

de inserção das discussões sobre a valorização da cultura e história africana nas escolas são

assegurados conforme documentos legislativos, como a própria Lei 10.639/03 que “Altera a

Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação

nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática

‘História e Cultura Afro-Brasileira’.” (BRASIL, 2003). Sendo necessário o conhecimento de

todos envolvidos no âmbito escolar para que a Lei possa ser realmente efetivada.

Outro fator relevante a ser citado, conforme a os Parâmetros Curriculares Nacionais é

que, os temas que são considerados como problemas sociais devem obrigatoriamente constar

nos currículos escolares e disciplinas ministradas de forma transversal, como está redigido no

documento oficial:

As problemáticas sociais são integradas na proposta educacional dos Parâmetros

Curriculares Nacionais como Temas Transversais. Não constituem novas áreas, mas

antes um conjunto de temas que aparecem transversalizados nas áreas definidas, isto

é, permeando a concepção, os objetivos, os conteúdos e as orientações didáticas de

cada área, no decorrer de toda a escolaridade obrigatória. (BRASIL, 1947, p. 45)

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O conhecimento dos documentos legislativos que subsidiam no auxílio teórico-

metodológico de práticas de ensino plural que englobe as mais diversas formas de

manifestações socioculturais, pode ser considerado como um dos requisitos basilares para que

os docentes possam exercer um ensino pautado na diversidade, como é citado nos Parâmetros

Curriculares Nacionais, também na Lei 10.639/03.

CONSIDERAÇÕES

Diante do exposto ao longo do trabalho, correlacionando as discussões referentes aos

desafios e possibilidades das práticas de ensino pautadas na Lei 10.639/03 e as suas atribuições

e especificidades tratando do ensino da cultura e história afro-brasileira, é possível perceber as

inúmeras dificuldades enfrentadas no que diz respeito a efetivação da Lei no âmbito da sala de

aula, desde o conhecimento da Lei 10.639/03 por parte de todo o corpo escolar, como também

o currículo que privilegia a visão eurocêntrica na formação dos professores, fazendo com que

sua formação não ofereça um suporte teórico-metodológico para discutir as questões étnico-

raciais.

As práticas de ensino exercidas na sala de aula atualmente, em grande parte dos casos,

desconsideram a diversidade sociocultural e étnico-racial dos discentes, fazendo com que os

afrodescendentes desconheçam sua história e cultura, contribuindo na negação da sua

identidade e na perpetuação de uma sociedade segregacionista e racista. A reversão desse

quadro parte da perspectiva da democratização do ensino, na qual o docente deve compreender

que existe uma multiplicidade de culturas e costumes no âmbito da sala de aula e não somente

a visão eurocêntrica, que está enraizada nos currículos escolares.

Para tanto, se faz necessário um conjunto de requisitos que possam dar subsídios para

um ensino pautado no multiculturalismo e na diversidade ético-racial, por exemplo, o

conhecimento dos documentos legislativos que auxiliam nas práticas de ensino, ter um olhar

sensível para os problemas sociais existentes, bem como a busca por formação continuada

pautada na diversidade, desta forma, exercendo à docência de modo inclusivo, auxiliando os

educandos afrodescendentes no reconhecimento da sua cultura e história.

Somente a partir de novas perspectivas que possam ressignificar as práticas de ensino,

enquanto educadores, poderemos contemplar a diversidade existente no âmbito da sala de aula,

deste modo, contribuindo na construção de uma sociedade na qual as relações sociais aconteçam

de forma equânime.

REFERÊNCIAS

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ALMEIDA, S. M. S. C. Identidade negra nas turmas de 9º anos do Ensino fundamental

na escola maria augusta Russo dos santos em redenção. CE. 2013. Monografia apresentada

como exigência do Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em nível de Especialização em

Culturas e História Afro-Brasileira, Indígena e Africana - UNILAB. Redenção, 2014.

ALVES, R. S. Ensino de história e cultura afrobrasileira e africana: da lei ao cotidiano

escolar. 2007. 74.p. Monografia (graduação) - Faculdade de Ciências, Universidade Estadual

Paulista, Bauru, 2007.

BRASIL, Congresso Nacional Lei 10.639, de 09 de janeiro de 2003. Estabelece as diretrizes e

bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a

obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências.

Diário Oficial da União de 10 de janeiro de 2003.

______. Contribuições para Implementação da Lei 10.639/2003. Ministério da Educação.

2008.

______. Parâmetros curriculares nacionais: introdução aos parâmetros curriculares

nacionais. Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília. 1997.

DIAS, N. M. S. L. História e cultura afro-brasileira no ensino fundamental: aplicabilidade

da lei nº 10.639/03 em escolas estaduais de Aracaju. Faculdade São Luís de França. 2016.

Disponível em: <https://portal.fslf.edu.br/wp-

content/uploads/2016/12/Historia_e_cultura_afro_brasileira_no_ensino_fundamental_a.pdf>

Acesso em: 16 jul. 2018.

GOMES, N. L. Diversidade étnico-racial, inclusão e equidade na educação brasileira:

desafios, políticas e práticas. Universidade Federal de Minas Gerais/Brasil. 2011. Disponível

em:<http://www.anpae.org.br/iberolusobrasileiro2010/cdrom/94.pdf> Acesso em: 10 jul.

2018.

TOMAIM, V. R. R. TOMAIM, C. S. O professor e as relações étnico-raciais: os desafios e

as contribuições da Lei nº 10.639/2003. 2009.

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LITERATURA INFANTIL CLÁSSICA, POUCAS REFERÊNCIAS PARA MUITA

DIVERSIDADE

Jéssica Araújo de Sousa 58

RESUMO

Esta pesquisa foi realizada como exigência parcial para conclusão da disciplina Pesquisa

Educacional II, no ano de 2014 na Universidade Regional do Cariri – URCA. O objetivo foi

conhecer se as estórias clássicas da literatura infantil podem semear a formação de preconceito

racial nas crianças de 2 a 6 anos. Com base bibliográfica e de campo, nossa metodologia teve

uma abordagem qualitativa, com coleta de entrevistas e organização de dados a partir do

Discurso do Sujeito Coletivo - DSC. O referencial teórico traz autores como Bruno Bettelheim

(2002) e Fanny Abramovich (1997) que nos auxiliaram a entender melhor as facetas e

peculiaridades dos contos de fadas. Esta temática é importante pois as estórias infantis são o

primeiro contato que as crianças têm com a literatura, elas aumentam sua compreensão de

mundo pois as relacionam com os fatos ocorridos na realidade ao seu redor, no entanto, essas

estórias em sua maioria apresentam princesas ricas, esbeltas e brancas, o que pode causar um

estranhamento enorme em crianças pobres, negras e/ou gordas. Sendo assim, concluímos que é

necessário termos uma visão crítica sobre essa temática, pois somente estudando e

compreendendo os fatos podemos de alguma maneira tentar amenizar ou reverter essa situação.

Palavras-chave: Literatura Infantil. Preconceito Racial. Diversidade.

INTRODUÇÃO

Vi pela internet um trecho do espetáculo teatral “7 Conto” do ator Luís Miranda, o qual,

no palco, dá vida a sete personagens peculiares que tratam de questões sociais de forma cômica,

a parte que eu vi em vez de me fazer rir, como a todos no teatro, me fez chorar. Era a passagem

da peça que falava sobre racismo, e foi tratado no esquete da personagem Caroline. “Caroline

é uma atriz mirim negra que não se conforma com os papéis que lhe são reservados no teatro e

televisão. Ela percebe que não há negras nos contos de fadas e questiona isso" Luis Miranda,

ator.

Após esse dia incansavelmente busquei estudar sobre o assunto. No referencial teórico

que pesquisamos temos autores como Bruno Bettelheim (2002) afirmando-nos que, os contos

de fadas além de divertir as crianças, ajudam a esclarecer sobre a personalidade de cada uma

delas e favorecem o desenvolvimento de sua personalidade. Fala que me deixou ainda mais

convicta da grandeza do problema que vi no vídeo. E Fanny Abramovich (1997) que na sua

obra “Literatura infantil: Gostosuras e bobices” nos revela detalhadamente qual o padrão de

beleza exigido para uma personagem principal de um livro clássico de literatura infantil, seja

58 Graduanda em Pedagogia, Universidade Regional do Cariri - URCA, [email protected], Crato,

Ceará - Brasil.

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uma princesa, uma mocinha, uma fada ou até uma menina “normal”, contextualizando

perfeitamente a fala da personagem Caroline. Ambos nos fazem compreender a influência que

a literatura infantil tem sobre as crianças e o impacto causado a elas pelas características

particulares de cada personagem encontrado os quais sempre seguem o mesmo padrão. Por isso,

pretendo entender na realidade se, e como as estórias infantis e contos clássicos podem

influenciar na formação do preconceito racial na educação infantil.

Para isso, buscamos realizar uma pesquisa que parte da abordagem metodológica

qualitativa, onde os dados reunidos são de suma importância e tem relevância em todo o projeto.

Visando compreender a realidade social e analisar o comportamento humano. Fomos apanhar

dados em uma escola particular do município de Juazeiro do Norte, utilizando a técnica da

entrevista com professoras que atuaram e atuam na educação infantil, em busca de um parecer

sobre essa temática. A realização desta pesquisa tenta mostrar que as crianças negras não estão

sendo representadas no mundo em que vivem; nem em estórias infantis, nem no cinema e muito

menos em brinquedos. Tais carências devem ser analizadas, afinal como diria Fanny

Abramovick, “Preconceitos não se passam apenas através de palavras, mas também – e muito!!

– através de imagens.”

METODOLOGIA

Entender o impacto e o sofrimento que as crianças negras passam quando não

conseguem se encontrar em um conto infantil é muito difícil, mas vê-lo por ai é nem tanto. Se

você for em qualquer escola e tentar encenar uma peça de literatura infantil clássica,

dificilmente poderá colocar como personagem principal uma criança negra sem causar

estranhamento, e/ou gerar comentários como: “Não existe Branca de Neve preta!” ou até “A

Bela Adormecida não tem cabelo ruim!”. Como será que as negras iriam se sentir? E as brancas

têm culpa de pensar desta forma?

Para entender um pouco desta realidade irei fazer uma pesquisa com base no eixo

epistemológico fenomenológico.

A atitude do pesquisador na fenomenologia é a de encontrar-se aberto ao que se mostra,

compreendendo e interpretando esse objeto. (...) É uma proposta de pensar o cotidiano,

onde o sujeito avança para conhecer o dado que se mostra, desvenda o objeto

ultrapassando a descrição/aproximação, e alcança a interpretação e compreensão do

processo, embasado na reflexão (MATOS, 2001, p. 29)

Trabalharemos com a técnica da entrevista e o aspecto descritivo, pois os dados

coletados serão relatados fielmente como foram ditos durante a entrevista, além de que o

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processo detalhado da pesquisa será todo detalhado no corpo do texto.

A entrevista é uma das técnicas mais simples, conhecidas e utilizadas na pesquisa

educacional. Assim, como a observação, permite um contato direto do pesquisador com

o entrevistado, para que um possa responder as perguntas feitas pelo o outro. (MATOS,

2001, p. 61)

Com uma pesquisa qualitativa por nos atermos a qualidade e veracidade das

informações coletadas e não a quantidade.

As pesquisas qualitativas têm se preocupado com os significados dos fenômenos e

processos sociais, levando em consideração as motivações, crenças, valores,

representações sociais, que permeiam as redes de relações sociais (PÁDUA, 2004,

p.36).

E também.

A metodologia qualitativa preocupa-se em analisar e interpretar aspectos mais

profundos, descrendo a complexidade do comportamento humano. Fornece análise

mais detalhada sobre as investigações, hábitos, atitudes, tendências de comportamento

e etc. (LAKATOS,MARCONI, 1999, p. 269)

É um trabalho de natureza aplicada e com fontes bibliográficas e de campo, ou seja,

pesquisamos autores, livros e fomos a uma instituição para fazermos uma análise presencial.

Por fim, a organização e análise dos dados foram feitos a partir do Discurso do Sujeito Coletivo,

onde foram explorados os depoimentos individualmente e depois as entrevistas foram unidas e

ordenadas para que seus discursos fossem estudados no geral.

O Discurso do Sujeito Coletivo engloba depoimentos sintetizados e analisados,

redigidos na primeira pessoa do singular e expressando o pensamento coletivo por meio

do discurso dos sujeitos. Dessa forma, ao se colher vários depoimentos percebem-se

elementos comuns que delineiam o discurso coletivo, que são as Representações Sociais

que caracterizam um determinado grupo. Os discursos contêm o conjunto das

Expressões Chave dos depoimentos, que possuem Ideias Centrais e/ou Ancoragens com

características semelhantes. Esta técnica busca expressar uma determinada opinião ou

posicionamento sobre um tema, levando em consideração o aspecto social e cultural

(ALVÂNTARA, p.16).

A ANÁLISE

Demonstrarei agora a junção dos dados obtidos nas entrevistas intercaladas de passagens

retiradas de obras estudadas e de comentários próprios, a fim de criar uma ligação entre a teoria

e a realidade relatadas.

Fomos a campo com a seguinte indagação “VOCÊ ACHA QUE AS ESTÓRIAS

CLÁSSICAS PODEM INFLUENCIAR NA FORMAÇÃO DO PRECONCEITO RACIAL NA

EDUCAÇÃO INFANTIL?” As respostas foram:

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Com certeza essas estórias elas influenciam no preconceito. Quando elas, as crianças,

escutam uma estória, um conto, elas se imaginam nele. Quando fala ‘a princesa tinha um

cabelão, cabelos longos’, pode prestar atenção, quando você está contando, as crianças

dizem: ‘Ah tia eu sou a Cinderela, ah tia eu sou a fulaninha de tal’. Então porque que nos

contos não tem a gordinha? Não tem a baixinha? Não tem a pretinha? É sempre a

branquinha, a do olho azul, a do cabelo bom. Elas são sempre lindas. A branca de neve:

branca, tão branca como a neve! E onde ficam as outras? A de cabelo ruim? Não tem! Onde

essas crianças se encaixam?

Vemos que as estórias apresentam em sua maioria um protótipo de beleza que não é

totalmente aceito por todas as crianças, algumas não conseguem se enxergar naquelas estórias

e ficam sem saber onde encontrar seus ícones infantis, afinal toda criança necessita de um herói

para se espelhar. Aqui fica claro notar a preocupação da professora em indagar ‘Onde essas

crianças se encaixam?’.

Ficar atento aos estereótipos, estreitadores da visão das pessoas e de sua forma de agir

e de ser... E ajudar a criança leitora a perceber isso. O resultado visual até pode ser

bonito (e é, muitas vezes) mas onde vamos parar em termos dos preconceitos

transmitidos? Afinal, preconceitos não se passam apenas através de palavras, mas

também – e muito!! – através de imagens. (ABRAMOVICH, 1997, p. 40)

Quando a “tia” lê uma estorinha de princesas brancas, lindas, a menina negra se sente

rejeitada. Nunca houve algo dizendo que elas eram morenas! Todas elas não mostram uma

criança morena, uma criança pobre! É sempre rica. É sempre em palácio. Sempre branca.

Tem sempre cabelo bom, cabelos claros ou cabelos lisos. Só tem a estorinha daquela menina:

“Cachinhos de ouro” que tem cabelo encaracolado, mesmo assim é loirinha. Não têm assim,

umas características de quem é pobre ou de quem é moreno. São sempre assim

características de quem é princesa. É tanto que a gente já fez esse projeto aqui, não tem

continuidade, a escola pede os livros, mas quem é que traz? Os pais só buscam os livros

mais antigos. Afinal, é difícil você encontrar tanto em estórias antigas como em estórias

novas personagem que sejam característicos realmente de cores mulatas, cabelos escuros.

É difícil, pra não dizer impossível, achar com facilidade a estória de alguma princesa

negra. Quando se é falado em princesa, naturalmente é imaginado uma mocinha branca, magra,

com vestido longo e rodado, cheio de babados e imaculado, cabelos longos e lisos e beleza

incontestável. Porém, nem sempre essa beleza é igual a beleza das crianças que estão recebendo

essa estória, o que as deixam deslocadas quando buscam algum personagem com aparência

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semelhante a sua e não encontram. Ela afirma que os pais não trazem livros diferentes e

inovadores quando a escola solicita para os projetos e que por isso leem os mesmos livrinhos,

acredita que mesmo que seja criadas estorinhas novas, elas não vão fazer sucesso como as

clássicas (Branca de Neve e Cinderela).

A fada, a princesa, a mocinha, são sempre protótipos da raça ariana: cabelos longos e

loiros, olhos azuis, corpo esbelto, altura média, roupa imaculada.... (ABRAMOVICH,

1997, p. 16).

Tem muitas crianças em sala de aula que por serem morenas os coleguinhas têm preconceito,

não querem brincar com elas porque elas são moreninhas. Às vezes nas adaptações que

fazem pro cinema, nos re-contos, como a gente fala, eles alteram alguma coisa, mas sempre

dá esse ar de preconceito. Nunca mostra àquela cor escura, ‘aquela’ cor, a cor bonita do

Brasil. Até porque o preconceito já surge dentro de casa. Eu acho que alguns pais já têm

preconceitos com outras crianças e passam isso para os filhos. Acho que elas se sentem até

envergonhadas. O preconceito já começa aí. E não tem nenhuma estória que fale sobre isso

e quando tiver não faz sucesso como essas outras. É a mesma coisa que eles pregam com o

príncipe. Aquele homem que vai chegar num cavalo branco que vai salvar a princesa. Não

tem um gordinho, um feinho, um pobrezinho. Ele não vai chegar numa bicicleta, vai chegar

num cavalão branco. Até o cavalo é branco! O preconceito é até com os animais. E não é

numa carroça, é numa carruagem!

A professora relata a influência dos pais na introdução do racismo nas crianças e atenta

que os estereótipos não se restringem as princesas, os príncipes (meninos) e até os animais têm

uma beleza padronizada.

O mocinho, o príncipe, é alto, corpulento, forte, elegante, bem barbeado (ou até

imberbe), sempre com o aspecto de quem acabou de sair do banho, mesmo depois de

ter cavalgado dias a fio e enfrentando mil perigos de toda espécie e qualidade...”

(ABRAMOVICH, 1997, p. 16).

E sempre termina na riqueza. Cada um no seu castelo. Elas criam uma imagem que não é a

realidade. E as meninas negras não se encontram naquelas estorinhas lidas. Elas estão sendo

excluídas a partir daqueles livrinhos. A influência também vem justamente do que é assistido

hoje em dia. Por exemplo, a Barbie, como é Barbie? É uma modelo, magrinha, não tem um

pingo de gordura, branquinha, cabelos loiros. Eu não concordo. A mudança tem que ser na

sua sala de aula. Se a professora conversar sobre isso eu acho que já incentiva muito.

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Por fim se entende que para que as crianças não se sintam tão excluídas e sejam

rejeitadas, quando o assunto for contos de fadas, é necessário que a professora tenha uma

postura diferente, que conscientize os pais e as crianças e que modifiquem suas ações em sala,

criem e contem estórias adaptadas para todas as outras raças e etnias, sem deixar nenhuma

criança de fora por seu cabelo, cor de pele e etc.

É através duma história que se podem descobrir outros lugares, outros tempos, outros

jeitos de agir e de ser, outra ética, outra ótica... É ficar sabendo História, Geografia,

Filosofia, Política, Sociologia, sem precisar saber o nome disso tudo e muito menos

achar que tem cara de aula... Porque, se tiver, deixa de ser literatura, deixa de ser prazer

e passa a ser Didática, que é outro departamento (não tão preocupado em abrir as portas

da compreensão do mundo) (ABRAMOVICH, 1997, p. 17).

As crianças negras ainda recebem em seus ombros o peso do racismo, herança dos

antigos tempos de preconceito e escravidão que perpassam o tempo e se mostram de diferentes

maneiras até hoje. O primeiro passo foi saber a quantas anda o projetar do racismo na educação

infantil, que é onde se alicerça a base de tudo, inclusive e do racismo e do sofrer como foi

relatado pelas falas das professoras.

RESULTADO DO DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO

O Discurso do sujeito coletivo foi finalizado com a junção das falar das professores e

deu o seguinte resultado.

DSC

Com certeza essas estórias elas influenciam no preconceito. Quando elas, as crianças,

escutam uma estória, um conto, elas se imaginam nele. Quando fala ‘a princesa tinha um

cabelão, cabelos longos’, pode prestar atenção, quando você está contando, as crianças

dizem: ‘Ah tia eu sou a cinderela, ah tia eu sou a fulaninha de tal’. Então porque que nos

contos não tem a gordinha? Não tem a baixinha? Não tem a pretinha? É sempre a

branquinha, a do olho azul, a do cabelo bom. Elas são sempre lindas. A branca de neve:

branca, tão branca como a neve! E onde ficam as outras? A de cabelo ruim? Não tem! Onde

essas crianças se encaixam?

Quando a “tia” lê uma estorinha de princesas brancas, lindas, a menina negra se sente

rejeitada. Nunca houve algo dizendo que elas eram morenas! Todas elas não mostram uma

criança morena, uma criança pobre! É sempre rica. É sempre em palácio. Sempre branca.

Tem sempre cabelo bom, cabelos claros ou cabelos lisos. Só tem a estorinha daquela menina:

“Cachinhos de ouro” que tem cabelo encaracolado, mesmo assim é loirinha. Não têm assim,

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umas características de quem é pobre ou de quem é moreno. São sempre assim

características de quem é princesa. É tanto que a gente já fez esse projeto aqui, não tem

continuidade, a escola pede os livros, mas quem é que traz? Os pais só buscam os livros

mais antigos. Afinal, é difícil você encontrar tanto em estórias antigas como em estórias

novas personagem que sejam característicos realmente de cores mulatas, cabelos escuros.

Tem muitas crianças em sala de aula que por serem morenas os coleguinhas têm preconceito,

não querem brincar com elas porque elas são moreninhas. Às vezes nas adaptações que

fazem pro cinema, nos re-contos, como a gente fala, eles alteram alguma coisa, mas sempre

dá esse ar de preconceito. Nunca mostra àquela cor escura, aquela cor, a cor bonita do Brasil.

Ate porque o preconceito já surge dentro de casa. Eu acho que alguns pais já têm

preconceitos com outras crianças e passam isso para os filhos. Acho que elas se sentem até

envergonhadas. O preconceito já começa ai. E não tem nenhuma estória que fale sobre isso

e quando tiver não faz sucesso como essas outras!!! É a mesma coisa que eles pregam com

o príncipe. Aquele homem que vai chegar num cavalo branco que vai salvar a princesa. Não

tem um gordinho, um feinho, um pobrezinho. Ele não vai chegar numa bicicleta, vai chegar

num cavalão branco. Até o cavalo é branco!!! O preconceito é até com os animais. E não é

numa carroça, é numa carruagem.

E sempre termina na riqueza. Cada um no seu castelo. Elas criam uma imagem que não é a

realidade. E as meninas negras não se encontram naquelas estorinhas lidas. Elas estão sendo

excluídas a partir daqueles livrinhos. A influência também vem justamente do que é assistido

hoje em dia. Por exemplo, A Barbie, como é Barbie? É uma modelo, magrinha, não tem um

pingo de gordura, branquinha, cabelos loiros. Eu não concordo. A mudança tem que ser na

sua sala de aula. Se a professora conversar sobre isso eu acho que já incentiva muito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As estórias clássicas são uma das bases para a criatividade e a imaginação. Quando ainda

criança, são os pais e professores que as introduzem no vasto mundo encantando dos contos de

fadas, ao contar contos e estórias onde belos personagens lutam por seus sonhos, enfrentam

dragões, monstros e bruxas malvadas para finalmente terem um final feliz.

Porém, as estórias que primeiro chegam aos ouvidos das crianças são aquelas

tradicionais (Branca de Neve e Os Sete Anões, Cinderela, Rapunzel, etc) disseminadas a anos

de uma forma tão repetitiva que não se precisa nem de livros para saber conta-las, e é nessas

histórias clássicas, já decoradas por gerações que o padrão de beleza apresentado não bonifica

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todas as raças receptoras dessas estórias. Analisando os resultados obtidos vemos que as estórias

clássicas podem sim influenciar na formação do preconceito racial, baseando-se em fatos

verídicos, testemunhas, leitura de textos e afirmações contidas em livros e dissertações.

Já existem muitos livros infantis que vem contra esse padrão, livros que contam estórias

magníficas e diferentes, mas como disse uma das professoras não faz sucesso, não em todos os

lugares, a ponto de se tornar tão conhecido que traga representatividade a todas as crianças

brasileiras. Porém, nós professores não podemos desistir, levar essa nova literatura deve ser

missão de todos, buscando acabar com um único padrão de raça aleita, até onde todos devem

sonhar igualmente.

REFERÊNCIAS

ABRAMOVICH, Fanny. Literatura Infantil: gostosuras e bobices. São Paulo. Ed. Scipione,

1997. (Pensamento e ação no magistério.)

ALVÂNTARA, Anelise Montañes. As representações sociais do discurso do sujeito coletivo

no âmbito de pesquisa qualitativa. São Paulo. IESPP.

BETTELHEIM,Bruno.A psicanálise dos contos de fadas.Rio de Janeiro,Paz e Terra,1978.

LAKATOS, Eva Maria. MARCONI, Maria de Andrade. Metodologia qualitativa e

quantitativa. In: Metodologia Cientifica. São Paulo: Atlas, 1999.

MATOS, Kelma Socorro Lopes de. VIEIRA, Sofia Lerche. Pesquisa Educacional: o prazer

de conhecer. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, EUCE, 2001.

PÁDUA, Elisabete Matallo Marchesini de. Metodologia da Pesquisa: Abordagem Teórico-

prática. Ed. 1º. Campinas, São Paulo. Papirus, 2001. (Coleção Magistério Formação e trabalho

pedagógico).

Links da internet:

GILVONEI. Caroline - 7 conto em Camaçari. Disponível em:

<http://www.youtube.com/watch?v=1dj_bapYN64>. Acesso em: 19 mai. 2014.

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ZABUMBAR: MÚSICA, EDUCAÇÃO POPULAR E INCLUSÃO SOCIAL

NO CARIRI

Jean Alex silva de Alencar

Jéssika Bezerra Oliveira Leite

RESUMO

Esse texto busca relatar como os referenciais ancestrais do povo da região do Cariri contribuem

na formação das práticas de transmissão e construção de saberes junto as experiências das

Escolas da Tradição; seus referenciais e percursos de elaboração enquanto espaço de inclusão

social e ressignificação dos papeis sociais e culturais de pessoas em sofrimento mental e com

deficiência intelectual e/ou múltipla. A partir da integração de ações focadas na educação

musical, sonoridade caririense e desenvolvimento de metodologias fundamentadas na educação

popular, ancestralidade e diálogos com a contemporaneidade construídas e vivenciadas nos

terreiros culturais e espaços de educação do Cariri, onde ocorrem as ações descritas.

Palavras-chave: Música. Educação popular. Inclusão. Saúde Mental.

INTRODUÇÃO

CARIRI: ARTES E INTERAÇÕES

O Cariri cearense é um território com musicalidade própria. Ao sul do estado do Ceará

e em meio a Chapada do Araripe é historicamente conhecido por suas riquezas naturais,

culturais, diversidade, fé e resistência política. A terra dos índios Cariris, Barbara de Alencar,

Beato José Lourenço e do Padre Cícero, constitui um manancial cultural que agrega elementos

de tradições indígenas, africanas e mouriscas que compõem uma realidade cultural rica e

dinâmica.

A arte popular produzida e perpetuada ao longo dos séculos nas periferias e

comunidades constitui um patrimônio imaterial brasileiro riquíssimo e um instrumento de

expressão e organização do povo. É através da arte produzida nos terreiros que o povo resiste

em sua força, sua cultura e sua fé. Uma arte espontânea e criativa que pulsa e mantém viva na

memória coletiva os saberes ancestrais. É nesse universo brincante da cultura popular e da

tradição que o artista-brincante experimenta possibilidades criativas e formas de organização

social.

Nesse contexto surge em 2009 o Zabumbar, um movimento nascente em torno da

musicalidade Cariri que tem se constituído como uma escola aberta de saberes brincantes.

Resultado do processo de construção artística a partir da vivência no cenário da diversidade

presente na tradição e cultura popular, que acontece como oficina-intervenção de caráter

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democrático e interativo com foco na utilização da música, educação popular, inclusão e

acessibilidade. É composto por usuários da rede de saúde mental do Crato, pessoas com

deficiência intelectual e/ou múltipla, artistas, brincantes, mestres, crianças, jovens, adultos e

idosos com participação livre nas atividades artísticas e formativas.

As reflexões desse texto buscam partilhar as experiências vivenciadas no Universo

Brincante do Cariri, a construção de práticas educativas do Zabumbar como uma Escola Aberta

de Saberes Brincantes e seu papel enquanto espaço de inclusão social e ressignificação dos

papeis sociais de pessoas em sofrimento mental e com deficiência intelectual e/ou múltipla.

UNIVERSO BRINCANTE DO CARIRI E AS ESCOLAS DA TRADIÇÃO

A sonoridade caririense é um misto de música afro indígena, iberoeuropeia, barroca,

trovadoresca e moda de viola, resultando no que hoje ouvimos nas bandas cabaçais, violas de

repente, cocos, reisados, guerreiros, lapinhas, maneiro-pau e maracatus. Isso favoreceu o a

criação de um cenário musical com influencias de cantos e povos do Brasil, principalmente dos

estados da Paraíba, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Piauí e Alagoas.

No decorrer da longa transição para o capitalismo agrário e, mais tarde, na formação

e no desenvolvimento do capitalismo industrial, houve uma luta mais ou menos

continua em torno da cultura dos trabalhadores, das classes trabalhadoras e dos

pobres. Este fato deve constituir o ponto de partida para qualquer estudo, tanto da base

da cultura popular quanto de suas transformações. As mudanças no equilíbrio e nas

relações das formas sociais ao longo dessa história se revelam, frequentemente, nas

lutas em torno da cultura, tradições e formas de vida das classes populares. (HALL,

2003, p. 247).

O Padre Cícero Romão Batista teve papel fundamental na construção social, política e

cultural de Juazeiro do Norte, cidade mais populosa e que mais agrega grupos de tradição da

região. Ele convidava os romeiros a permanecerem com suas famílias em Juazeiro e tinha como

mote "Em cada casa um santuário e em cada quintal uma oficina".

Essa perspectiva possibilitou a transformação do pequeno povoado da fazenda

Tabuleiro Grande na cidade de Juazeiro do Norte. Ao passo que as práticas laborais se

desenvolviam e se reinventavam, os folguedos ou brincadeiras – aqui entendidas como os

momentos de pausa, “folga” do trabalho, onde os trabalhadores amenizavam seus cansaços com

a música, dança e atividades e oralidades, cresciam e se multiplicavam.A exemplo Mestre Noza

(1883/ 1987), rabequeiro Cego Oliveira, Banda Cabaçal dos Irmãos Marcos De Sousa "1901"

hoje Banda Santo Expedido e Banda Cabaçal Padre Cícero “1908”.

Nesse contexto as crianças acompanhavam seus pais e aprendiam o labor e o folguedo.

Minha bisavó, hoje centenária, relata suas vivências de quando acompanhava o plantio e o

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beneficiamento dos produtos colhidos. Para ela, tudo aquilo era uma festa, brincava de fazer

suas bonecas de palha atravessando noites nas casas de farinhas ou engenhos, ouvindo causos

e dormindo ao som das pisadas e cantigas de trabalhadores. Ou seja, um tempo em a educação

das gerações dialogava com suas práticas cotidianas.

Nos dias atuais o Cariri cearense é tido como um "caldeirão cultural” onde

manifestações da cultura e tradição dos povos seculares ocorrem diariamente em espaços

chamados de Terreiros. Estes terreiros da tradição são conduzidos pela presença de um/a

mestre/a - pessoas que ao longo dos anos de suas vidas dedicaram-se ao trabalho do sustento

(agricultores, ferreiros, santeiros, donas de casa, artesãs) e ao brincar.

Mesmo diante da forte intervenção das novas tendências econômicas, as práticas

culturais permanecem ativas e se reinventam na dança, música e teatro, contando e transmitindo

seus saberes ancestrais através da oralidade nos espaços das Escolas da Tradição. A educação

dialoga entre os espaços formais de ensino e o mundo das interações socioculturais, traduzindo

para as novas gerações os saberes da tradição popular dos seus ancestrais.

PRÁTICAS BRINCANTES DE EDUCAÇÃO: PERCURSOS NO CARIRI

Em 2008 iniciamos um trabalho de musicalização com as crianças do reisado e

guerreiro da União dos Artistas da Terra da Mãe de Deus, uma instituição de caráter cultural e

social que ficava localizada no bairro João Cabral na cidade de Juazeiro do Norte. Participamos

de um processo de educação com fluente troca de saberes entre educadores, mestres da tradição

e crianças, deste modo percebemos como a cultura poderia ser ponto central no processo de

aproximação, formação, organização e transformação de um povo e lugar. Na União dos

Artistas da Terra da Mãe de Deus as pessoas partilhavam seus saberes e ofícios multiplicando

e transformando, através da arte e do belo, um lugar esquecido pelas políticas públicas e

marginalizado pelas localidades vizinhas.

Além dos ensaios de reisado, guerreiro e teatro brincante haviam atividades como

plantio, brinquedoteca com brinquedos populares (coordenada pelas próprias crianças,

inclusive com escalas de atividade), artes plásticas e oficinas de violão, rabeca, pífano e

percussão com violões, rabecas, pífanos e percussão. As aulas de música enfocavam a música

popular de tradição do Cariri, principalmente a sonora do reisado, guerreiro e coco que fazia

parte do cotidiano das crianças. Instrumentos como zabumbas, caixas, alfaias, ferros, pandeiros,

caxixis e xequerês se encontravam e casavam ritmos diferentes, o Zabumbar nascia no João

Cabral.

Em 2009 foi iniciado um trabalho de musicalização na APAE do Crato que resultou no

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grupo Tambores do Encantado. Os alunos – adolescentes, jovens e adultos com deficiência

intelectual e/ou múltipla – passaram por oficinas, vivencias e reflexões sobre as culturas afro-

brasileira, indígena e as manifestações populares do Nordeste em especial as tradições kariris.

Começaram a interagir com os atores da União no João Cabral em ações artístico-culturais, isso

marcou o início do processo de ressignificação de seus papeis.

Simultaneamente iniciamos um trabalho voluntário no Hospital Dia do Crato (uma

extensão do hospital psiquiátrico – Casa de Saúde Santa Tereza fechado em 2016) focado na

musicalização. Utilizamos a música como ponto de reencontro das memórias e histórias

individuais, no intuito de fortalecer o espírito de unidade e ressignificar a prática da dança e

canto fora dos espaços de consumo de drogas. As perspectivas da empatia e da coletividade

permitiram a construção de alternativas terapêuticas que fortaleceram o cuidado de um usuário

para com o outro e o vislumbre de novos rumos e significados de vida. No decorrer realizamos

oficinas de construção de instrumentos musicais de material reciclado, rodas de música ativa,

alongamentos e danças que permitiam a livre participação e expressão.

Em 2013 viemos morar no município de Crato-CE onde já tínhamos vínculos,

respectivamente, como educador e enfermeira, a partir de participações e ações de formação

artística, musical e brincante com grupos e comunidades. As oficinas de percussão começaram

a acontecer em comunidades rurais, associações e espaços como praças e centros culturais,

gratuitas e abertas ao público agregando mestres, grupos, artistas, crianças, jovens, adultos e

idosos vivenciando, construindo e partilhando os saberes da arte popular. Os alunos da APAE

Crato que estavam no processo de ressignificação de seus papeis sociais e culturais estiveram

presentes nas oficinas, onde atualmente são artistas, educadores e educandos, o Zabumbar

estava se constituindo no Crato.

Em 2014 iniciamos o Projeto ArtÉ Saúde no Centro de Atenção Psicossocial de Crato

(2014-2016) fundamentado na música, cultura popular e educação popular em saúde com

pessoas em sofrimento mental usuárias da Rede de Saúde Mental do Crato. O projeto

compreendeu oficinas formativas e terapêuticas, grupos terapêuticos, rodas de conversa e

vivências coletivas, que integravam o cronograma do serviço e ampliou as ações da rede de

atenção psicossocial do Crato. Nessa perspectiva da efetivação das redes de cultura e saúde os

usuários passaram a participar assiduamente dos encontros de formação.

Este, atualmente mantém as atividades de formação com oficinas de música, danças

populares e teatro brincante gratuitas e abertas nas praças e comunidades e participa do

calendário artístico-cultural da região do Cariri.

As metodologias utilizadas no Zabumbar são fundamentadas na educação popular e

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valorizam os saberes ancestrais, a oralidade, a corporeidade, a circularidade e a cooperatividade.

A educação popular considera o saber do outro fundamental e afirma que ninguém educa

ninguém (FREIRE, 1987) e sim, se constrói um saber mútuo através do diálogo, fundamentado

naquilo que o sujeito social compreende e o que é vivido. A partir das experiências dos

educadores e educandos a interação acontece espontaneamente e a música se evidencia como

um elemento de acesso ao imaginário de ambos que favorece essa interação. Uma relação de

igualdade que respeita a diversidade e a identidade de cada um.

SAÚDE MENTAL, CULTURA POPULAR E INCLUSÃO

No Brasil, houveram avanços conquistados a partir da luta antimanicomial, Reforma

Psiquiátrica e lei 10.216 que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de

transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental (BRASIL, 2001). Com

a criação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) a atenção psicossocial passa a ter o

enfoque comunitário e o serviço aberto oferece ações intersetoriais que fomentam a reinserção

social do sujeito.

Em 2011 a portaria 3.088 institui as Redes de Atenção Psicossocial cuja finalidade é a

criação, ampliação e articulação de pontos de atenção à saúde para pessoas com sofrimento ou

transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no

âmbito do Sistema Único de Saúde (BRASIL, 2011). Assim outros serviços como unidades da

atenção básica, hospital geral, serviços de emergência, associações e organizações sociais e

culturais passam a integrar a rede oferecendo uma atenção psicossocial integral e voltada a

realidade de cada sujeito.

Foi a partir da vivência no Hospital dia em 2009 que despertamos para a necessidade

da construção de práticas em saúde mental desenvolvidas no Sistema Único de Saúde (SUS),

com estratégias mais afetivas, voltadas aos sujeitos e as coletividades, que considerasse as

singularidades e a diversidade de forma inclusiva e capazes de acessar cada ser a partir de sua

ancestralidade.

Em 2014, na unidade do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) do município de

Crato-CE, com o Projeto artÉ Saúde buscamos promover a reinserção social a partir de

estratégias fundamentadas na educação popular, no holismo e na arteterapia. Entre as estratégias

desenvolvemos oficinas com foco na música, dança e jogos populares no desenvolvimento da

consciência de si, percepção, lateralidade e relações interacionais a partir do corpo e do som;

os grupos de socialização musical com escuta e execução em que os usuários tocavam

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instrumentos, cantavam e participavam do processo de escolha musical e repertório de maneira

espontânea, acontecia como grupo terapêutico em espaços dentro da unidade do CAPS; o

encontros em praças com relaxamento, alongamento, música, danças circulares, diálogos,

ocupação de espaços, intervenção e interação abertos à participação popular; e um espetáculo

musical e teatral protagonizado por usuários do CAPS do Crato, alunos da APAE-Crato, artistas

e brincantes numa perspectiva de mistura de linguagens, inclusão e construção coletiva

fortalecem valores como o amor, o respeito e a diversidade. O Projeto gerou frutos como o

grupo artístico de música e o grupo de mulheres voltado ao apoio e empoderamento de mulheres

que vivenciam ou vivenciaram situações de violência. O projeto foi encerrado junto ao serviço

do município (fim de 2016) mas mantém suas ações de maneira voluntaria e independente com

a participação de enfermeira, educadores e usuários.

Os usuários passaram a participar de ações fora da unidade de saúde em suas

comunidades e junto a grupos culturais da região, assim como os alunos da APAE, esse processo

de ação-reflexão tem contribuído visivelmente para a ressignificação de seus papeis sociais e

culturais, fomentado a autonomia e a conquista de espaços, a partir do questionamento das

estruturas, da consciência de si como sujeito ativo e de direitos. O usuário deixa de se

reconhecer como “o doente”, “o deficiente” ou “o incapaz” e passa a se reconhecer enquanto

sujeito com sentir, querer e pensar, e se colocar enquanto ativo e artista– aquele que faz arte,

questiona e aparece.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A música, de acordo com Piazzeta (2010) permite a interação consigo e com o mundo

ao redor, além disso, tem mecanismos socializantes na partilha de memórias, fortalecimento

das relações e reconstrução de papeis sociais desencadeados pela valorização das múltiplas

potencialidades dos indivíduos além de suas limitações e rótulos.O autoconceito que o

indivíduo adquire decorre das experiências sociais vivenciadas, influem no papel que ele

desempenha, nos julgamentos sobre si e sobre outras pessoas e as diversidades culturais

(MYERS, 2014).

E de acordo com Fischer (1979) a arte “é o meio indispensável para a união do

indivíduo com o todo” e “reflete a infinita capacidade humana para a associação, para a

circulação de experiências e ideias”. Assim, a música e as práticas sociais e culturais das

Escolas da Tradição têm favorecido através dos referenciais ancestrais do Cariri a acessibilidade

e inclusão social, artística e cultural de públicos historicamente excluídos e construído a partir

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da intervenção artístico-brincante uma ruptura nos valores da ordem dominante e da

normalidade.

REFERÊNCIAS

BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Lei nº 10.216, Lei da Reforma Psiquiátrica de 06 de

abril de 2001. Diário Oficial da União. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm>. Acesso em: 20/02/2017.

BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE.Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011.

Disponível em:

http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt3088_23_12_2011_rep.html.

Acesso em: 20/02/2017.

FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. 7. ed. Trad.: Leandro Konder. Rio de Janeiro: Zahar

Editores,1979.

FREIRE, Paulo. Educação e mudança. Coleção educação e comunicação vol.1. 19ª Ed. Rio

de Janeiro-RJ: Paz e Terra, 1979.

HALL, Stuart. Da diáspora: Identidades e mediações culturais / Stuart Hall;Organizacao Liv

Sovik; Tradução Adelaine La Guardia Resende ... et al.- Belo Horizonte: Editora UFMG;

Brasília: Representação da UNESCO noBrasil, 2003.

MYERS, D. G. Psicologia Social. 10ª. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2014.

PIAZZETTA, C. M. Musicalidade Clínica em Musicoterapia: um estudo transdisciplinar

sobre o musicoterapeuta como um ser „musical-clínico‟. Dissertação de Mestrado, UFG –

GO, Goiânia: 2006.