parecer iphan - moinhos de vento

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MOINHOS DE VENTO Memorando nº 85/09 GEPROT/CFMD Assunto: Ação Civil Pública Ao Senhor Diretor do Departamento de Proteção do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN Professor Dalmo Vieira Filho Senhor Diretor, Encaminho Parecer sobre Ação Civil Pública Ambiental nº 1.05.0318659-0 movida pelo Ministério Público Federal no Rio Grande do Sul contra a Empresa Goldsztein S/A Administração e Incorporações e o Município de Porto Alegre, referente ao Processo Administrativo 01512.000488/2008-23 IPHAN 12ª SR/ IPHAN. I - INTRODUÇÃO Antecedentes Trata-se de Ação Civil instaurada em favor da preservação e recuperação das casas de nº 242, 250, 258, 262, 266 e 272 da Rua Luciana de Abreu, Bairro Moinhos de Vento, Porto Alegre, que estavam em vias de serem demolidas para que no local fosse construído um prédio. A demanda da comunidade para continuidade das residências baseia-se nos argumentos: A preservação do padrão de qualidade de vida; As fisionomias ambiental, cultural e histórica do bairro; A consideração de que os imóveis são patrimônio cultural da cidade, embora alijados de tal categoria com base em análises arbitrárias e ilícitas por parte do Município e na premissa de 1

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Page 1: Parecer IPHAN - Moinhos de Vento

MOINHOS DE VENTO

Memorando nº 85/09 GEPROT/CFMDAssunto: Ação Civil Pública

Ao Senhor Diretor do Departamento de Proteção do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN

Professor Dalmo Vieira Filho

Senhor Diretor,

Encaminho Parecer sobre Ação Civil Pública Ambiental nº 1.05.0318659-0 movida pelo Ministério Público Federal no Rio Grande do Sul contra a Empresa Goldsztein S/A Administração e Incorporações e o Município de Porto Alegre, referente ao Processo Administrativo nº 01512.000488/2008-23 IPHAN 12ª SR/ IPHAN.

I - INTRODUÇÃO

○Antecedentes

Trata-se de Ação Civil instaurada em favor da preservação e recuperação das casas de nº 242, 250, 258, 262, 266 e 272 da Rua Luciana de Abreu, Bairro Moinhos de Vento, Porto Alegre, que estavam em vias de serem demolidas para que no local fosse construído um prédio. A demanda da comunidade para continuidade das residências baseia-se nos argumentos:

A preservação do padrão de qualidade de vida; As fisionomias ambiental, cultural e histórica do bairro; A consideração de que os imóveis são patrimônio cultural da

cidade, embora alijados de tal categoria com base em análises arbitrárias e ilícitas por parte do Município e na premissa de perda da escala urbana existente, compatível com a via pública.

Foi requerida perícia judicial tendo os réus e Autor oferecido quesitos para serem respondidos. A Perícia promoveu vistoria e exame de toda a área em que estão inseridos os lotes e vias publicas, objeto da demanda, especificamente as testadas voltadas para a Rua Luciana de Abreu, inspecionando também outros imóveis da mesma rua, fotografando e recolhendo a documentação necessária à resposta dos quesitos. O produto final foi o Laudo Técnico Pericial Arquitetônico e Urbanístico.

A Perícia consultou e utilizou, para a emissão de pareceres, o documento Patrimônio Ambiental Urbano de Porto Alegre de João Nicolau de Barros de Curtis, datado de 1980, concluindo que não foram reconhecidos valores ou fatos suficientes para a não demolição das residências e que as

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edificações, ainda que portadoras de referência á identidade, à ação e à memória, não possuiriam valores que justificassem sua preservação. Segundo o Perito, as casas em questão não fazem parte das unidades selecionadas para preservação e não possuem aspectos relevantes em relação a cada um dos critérios anteriormente descritos. A arborização da rua, um túnel verde e importante elemento de composição da paisagem, que deve ser objeto de preservação e não as casas.

A participação do IPHAN no Processo

A Senhora Promotora de Justiça Doutora Ana Maria Moreira Marchesan, por meio do Ofício nº. 620 – 2008 – Ma. Proc, requisita à Senhora Superintendente da 12ª. SR-IPHAN no Rio Grande do Sul Arquiteta Ana Lúcia Goelzer Meira, que encaminhe posicionamento do IPHAN acerca das casas localizadas na Rua Luciano de Abreu números 242, 250, 258, 262 e 272, no bairro Moinhos de Ventos em Porto Alegre, RS.

A Superintendente da 12ª. SR-IPHAN no Rio Grande do Sul encaminha-me o Processo, solicitando elaboração do Parecer. Como arquiteto especializado em paisagens culturais e tendo desenvolvido ampla experiência em questões ambientais durante os anos que trabalhei no órgão ambiental nacional, o então IBDF, hoje IBAMA; como membro-associado do Instituto Internacional de Monumentos e Sítios – ICOMOS; tendo representado o Ministério da Cultura no Conselho Nacional de Meio Ambiente - CONAMA por uma década, suponho que minha melhor contribuição é a abordagem dos enfoques patrimonial, de paisagem histórica e de meio ambiente urbano.

Para atender à requisição do Ministério Público e à solicitação da Superintendência Regional, efetuei viagem ao Porto Alegre onde perambulei e fiz vistoria no bairro Moinhos de Vento e em seus arredores. Participei de reuniões com o IPHAN, com moradores e associados da Associação dos Moradores e Amigos do Bairro Moinhos de Ventos – Moinhos VIVE e de outras associações da cidade, todos eles entusiastas defensores da preservação das casas ameaçadas. Além disto, juntamente com a Senhora Superintendente da 12ª. SR -IPHAN, encontrei-me com a Senhora Promotora de Justiça Doutora Ana Maria Moreira Marchesan para discutir pormenores da questão.

Associados da Moinhos VIVE que participaram da vistoria no bairro(...) eram uma dessas famílias (...) que,

durante séculos, se fixam num mesmo recanto da província, puras de qualquer elemento estranho. Famílias como essas são, (...), muito mais numerosas do que se pensa, apesar de todas as mudanças sobrevindas na sociedade: é preciso uma convulsão muito forte para arrancá-las do solo, a que estão presas por tantos e profundos laços, que elas mesmas ignoram. A razão não influi absolutamente nesse apego, e muito pouco o interesse.

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Quanto ao sentimentalismo erudito das recordações históricas, esse só é levado em conta por alguns literatos. O que as prende com laços irresistíveis, é a obscura e poderosa sensação, comum aos mais grosseiros como aos mais inteligentes, de ser desde muitos séculos um pedaço daquela terra, de viver da sua vida, de respirar seu ar, de ouvir pulsar seu coração, como acontece a dois seres deitados na mesma cama, lado a lado, a sensação de perceber seus frêmitos imperceptíveis, as mil nuanças das horas, das estações, dos dias claros ou nublados, a voz e o silêncio das coisas. E não são as mais belas regiões, nem aquelas onde a vida é mais suave, que se apossam melhor do coração, mas sim essas onde a terra é mais simples, mais humilde, mais próxima do homem, e lhe fala uma linguagem íntima e familiar.

Romain Rolland, Jean-Christophe

Raul Agostini, presidente da Moinhos VIVE, executivo de empresas estatais e privadas, sócio fundador da Moinhos VIVE e morador do bairro;

Alda Py Velloso, vice-presidente da Moinhos VIVE, historiadora; Fernando Faria Guaspari, diretor-financeiro da Moinhos VIVE,

empresário e morador do bairro; Marco Pucci, diretor de comunicação da Moinhos VIVE, músico,

numerólogo, locutor de Rádio e TV, morador do bairro; Paulo Antonio Rocha Vencato, diretor de planejamento da Moinhos

VIVE, engenheiro-civil e perito judicial; Carlos Reinigen de Azevedo Moura, diretor de planejamento da Moinhos

VIVE, ex-professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e da Universidade Nacional de Brasília. A empresa fundada por seu pai em 1924, Construtora Azevedo, Moura e Gertum, executou obras como residencias unifamiliares e multifamiliares, edifícios comerciais, públicos e indústriais, o Hipódromo do Cristal em Porto Alegre, postos de serviços e combustíveis e infraestrutura em Porto Alegre e outras cidades do interior do Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro.

Associados da Moinhos VIVE que participaram das reuniões em Porto Alegre

Tânia Maria Sffogia, diretora de relações públicas da Moinhos VIVE, publicitária e relações-públicas, moradora do bairro;

Luiz Fernando Viñas Bina, diretor financeiro da Moinhos VIVE, engenheiro-civil e administrador de empresas;

Flávio Masina, diretor de comunicação da Moinhos VIVE, engenheiro mecânico;

Luciele Comunello, diretora administrativa da Moinhos VIVE, psicóloga.

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Considerações prévias

  Não é objetivo deste Parecer confirmar ou discordar dos laudos técnicos apresentados em resposta aos quesitos do Ministério Público. Subsidiando o solicitado posicionamento do IPHAN, procura antes fornecer novas informações e formas mais abrangentes e coerentes de percepção do patrimônio cultural, que não foram consideradas na avaliação do valor, não apenas das edificações da Rua Luciano de Abreu, mas de todo o bairro Moinhos de Vento.

Após vistoriar as contigüidades das casas da Rua Luciano de Abreu, concluí que a simples preservação desses bens arquitetônicos não é suficiente para proteger todo o bairro das ameaças que pairam sobre ele. Preservar umas poucas casas sem que ações mais amplas sejam tomadas em defesa do excepcional bairro Moinhos de Vento é como defender partes menos significativas de um todo que é subestimado como patrimônio cultural.

Ocorreu-me então a idéia que áreas mais representativas do bairro poderiam ser tombadas. Por telefone expus a idéia, de forma expedita, ao Senhor Diretor do Departamento de Proteção do IPHAN, Arquiteto Dalmo Vieira Filho, consultando-o sobre a pertinência de sugerir à Associação Moinhos de Ventos que solicitasse ao IPHAN o tombamento dos trechos mais expressivos do bairro Moinho de Ventos. Fui encorajado a levar a frente a proposta. Este é outro objetivo deste Parecer, que transcende a questão das casas de nº 242, 250, 258, 262, 266 e 272 da Rua Luciana de Abreu e busca demonstrar a insuficiência de conceitos traçados há trinta anos atrás e a necessidade de uma visão polissêmica do conceito de patrimônio cultural.

Os pareceristas se orientaram por categorias estabelecidas para revisão do Plano Diretor, apresentadas em um ciclo de palestras sobre o patrimônio cultural de Porto Alegre, realizado em 1979. Cumpre-me chamar a atenção para o fato de que a preservação do patrimônio cultural no Brasil e no mundo muito evoluiu após a década de 1970. Sem desconsiderar os conceitos expressos no documento Patrimônio Ambiental Urbano de Porto Alegre, cuja abordagem é estritamente arquitetônica e urbanística, lembro que o documento tece considerações que, pertinentes à época, tornaram-se já superadas e desatualizadas. Hoje em dia novos pontos de vista somam-se a esses enfoques, em abordagens paisagísticas, ambientais, antropológicas, simbólicas, afetivas e muitas outras.

Deve-se ressaltar que a preservação do bairro Moinhos de Vento, não é recomendável por meio de instrumentos estaduais e municipais de proteção, níveis nos quais a ação institucional é muito mais flexível diante de pressões locais do que no caso do tombamento federal. Além disto considero inquestionável o julgamento de valor do bairro Moinhos de Vento como digno

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de inscrição nos Livros de Tombo do IPHAN. Quem dera bairros como Copacabana1, no Rio de Janeiro, o bairro da Lapa e os a Avenida Paulista e os Jardins paulistas, em São Paulo e tantos outros tivessem sido merecedores de tal interesse, da mesma forma que ocorreu com as cidades coloniais. Testemunhos representativos das diferentes classes que compõem a sociedade e a cidade brasileira teriam sido preservados ao invés de desaparecerem por completo, dando lugar a mega edificações, totalmente alheias à escala humana e urbana, destruidora de áreas livres e vazias, pavimentando e impermeabilizando o solo, com sérias repercussões sobre o micro-clima urbano.

O presente Parecer transcende a fidedigna intenção de defesa das edificações da Rua Luciana de Abreu. Mais do que isto, expõe e justifica as razões que fundamentaram a proposta de tombamento federal acolhida verbalmente pelo Senhor Diretor do Departamento de Proteção do IPHAN e, entusiasticamente, por todos os associados da Associação Moinhos de Ventos. Procura mostrar, ainda que de forma não tão aprofundada quanto deverá ser feito nos estudos de tombamento, a importunidade de se condenar bens de valor cultural com fundamento em um único ponto de vista.

Um novo enfoque para o tombamento

Opinar e decidir sobre a preservação de bens culturais tem sido prerrogativa de elites intelectuais. Ainda que a comunidade que luta pela defesa dos valores patrimoniais do bairro Moinhos de Vento seja composta de profissionais com elevado nível de erudição, decisões sobre preservação não podem continuar a ser privilégio reservado a técnicos especializados. Tampouco devem fundamentar-se exclusivamente em bases teóricas, sobretudo quando obsoletas. Tais decisões devem também considerar a vontade e os valores da população, ainda que leiga, se bem que este não é o caso dos moradores do bairro Moinhos de Vento.

O tombamento de Moinhos de Vento pode encontrar dificuldades dentro do próprio IPHAN. Deve-se chamar a atenção para uma estranha qualidade de alguns grupos intelectuais elitistas que opinam sobre o tombamento. Guiam-se por um pensamento de esquerda e adotam uma postura de direita. É possível se deparar com maneiras preconceituosas, inconcebíveis na seleção e defesa do que existe de mais representativo para um povo. Esses grupos encontram justificativas para tombamentos de palácios, igrejas e outras obras de classes influentes. Consideram também dignos de tombamento produtos de classes mais baixas da sociedade, como a arquitetura vernacular e terreiros de candomblé.

Entretanto, por desdenharem a produção das classes burguesas mais altas, pode ser que cometam a incoerência de nunca aprovar o tombamento de um bairro da classe alta ou média como é o caso do Moinhos de Vento. A

1 Na década de 1970 uma revista publicou uma matéria sobre Copacabana, um bairro que não comportaria todos seus moradores caso saíssem à rua ao mesmo tempo.

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definição do filósofo e historiador político Norberto Bobbio para ser de esquerda é a luta pela igualdade. De forma análoga, proteger o patrimônio é proteger de forma equânime todas as páginas representativas da história de um povo, sem selecionar as mais favorecidas ou as menos ricas, com exclusão das classes média ou alta.

Este Parecer procura chamar a atenção para uma grande relação de formas de ver o patrimônio, nenhuma delas suficiente para a avaliação precisa do valor de um bem. Novas percepções sobre o conceito de patrimônio cultural estão surgindo, outras ainda surgirão, fundindo-se de forma sinérgica com distintas disciplinas. O não reconhecimento do valor de muitos bens hoje aparentemente destituídos de valor poderá causar uma perda que virá a ser lamentada futuramente.

A defesa de um bem cultural não deve ser empreendida apenas de forma isolada, como um objeto em uma redoma. Trata-se de defender seu contexto mais amplo, no caso, a cidade, as condições de vida urbana. Para tanto é forçoso recusar imposições de interesse privado quando formuladas às custas de direitos coletivos, sobretudo quando são perpetradas com apoio de órgãos e autoridades do poder público, por meio de procedimentos corruptos como suborno, propinas e concussão. Mais importante do que defender cinco edificações é procurar salvar do desaparecimento o patrimônio imaterial que elas representam, do qual elas passam a ser um símbolo. Eis uma batalha emblemática, de honra. A vitória só é conquistada pelo resgate, por parte da população, de padrões éticos e morais postos em risco pelos mesmos agentes que ameaçam a integridade do bairro.

Impedir a demolição das casas da Rua Luciana de Abreu tem um sentido simbólico, de defesa, menos do que do patrimônio material, que de valores imateriais como o decoro, a decência, a dignidade de nossos políticos e administradores públicos. Pois de nada vale preservar uma edificação se a postura moral da sociedade está destroçada, a transformar-se em escombros.

Metodologia recomendada para avaliação do valor das casas da Rua Luciana de Abreu

A preservação do patrimônio cultural brasileiro não pode deixar de se comprometer com uma visão mais orgânica da cidade. Uma cidade, que substitua congestionamento de gente, de veículos e poluição por um número mais limitado e melhor distribuído de habitantes, com uma equilibrada densidade de habitações, em áreas delimitada, de forma a cumprir todas as funções essenciais a uma comunidade humana. O valor de um bem cultural perde-se quando seu meio tradicional é degradado.

Este Parecer cita e resume um bom número de documentos altamente especializados. Cada um representa um ponto de vista, uma forma de percepção, abordando um diferente tema e contribuindo, cada qual a seu modo, para a visão, senão completa, pelo menos o mais próxima possível de

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uma visão inteira do significado do patrimônio cultural representado pelas casas da Rua Luciana de Abreu.

Em outro Parecer recentemente emitido para a 12ª. Superintendência Regional do IPHAN no Rio Grande do Sul, chamei a atenção para a forma como Piaget considera o trabalho em grupo. Classifica-o em três tipos de agrupamentos de disciplinas em um mesmo objeto de conhecimento científico: a multidisciplinaridade, a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade.

A primeira é a aglomeração de várias disciplinas voltadas isoladamente para o estudo de determinado elemento, sem contudo lograr obter a interligação entre cada uma delas. Cada matéria contribui com as informações de seu campo de conhecimento, sem uma expressiva integração entre cada uma delas.

A interdisciplinaridade é uma forma de abordagem que estabelece e articula interações entre um número maior de disciplinas especializadas, proporcionando um trabalho muito mais rico e estruturado: os conceitos estão organizados em torno de unidades mais globais, de estruturas conceituais e metodológicas compartilhadas por várias disciplinas. É uma busca de compreensão da complexidade, indispensável a quem trabalha com a paisagem.

A transdisciplinaridade procura, mais do que isto, uma nova compreensão da realidade. Na transdisciplinaridade, a cooperação entre as inúmeras disciplinas torna-se tão forte que fica quase impossível destacarem-se umas das outras. A individualidade de cada disciplina é respeitada, todas se interpenetram e ultrapassam a realidade do objeto de estudo. Neste conceito, de muito maior complexidade, ocorre a interação máxima entre as diferentes matérias sem prejuízo para cada contorno e individualidade. Cada matéria colabora para um saber comum, da forma mais completa possível, sem que se transformem em uma única disciplina.

Segundo a Carta da Transdisciplinaridade, elaborada pela UNESCO em 1994, a transdisciplinaridade não procura o domínio sobre várias outras disciplinas, mas a abertura de todas elas àquilo que as perpassa e ultrapassa.”

Os sítios e paisagens só podem ser percebidos de forma ampla e abrangente dentro de uma visão transdisciplinar que reúna, dentre outros, informações sobre geografia, geologia, geomorfologia, hidrologia, edafologia, flora, fauna, ecologia, fatores sociais e culturais, economia, turismo...

Os cegos, o elefante e a interdisciplinaridade

A avaliação do significado das casas da Rua Luciano de Abreu só pode ser válida se efetuada de forma transdiciplinar. Uma tradicional parábola indiana recolhida e transformada em poema pelo poeta norte americano John Godfrey Saxe, mostra que a totalidade é a soma de diferentes visões, visões

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que devem ser percebidas de forma conjunta e integrada. É exatamente o que ocorreu na avaliação das casas da Rua Luciana de Abreu.

Tendo sido mostrado a seis homens cegos um elefante, cada um tocou- uma parte de seu corpo e segundo o local onde colocavam as mãos, faziam uma observação. O primeiro bateu contra o dorso do animal que confundiu com uma parede. O segundo, segurou-lhe a presa, e tomou-a por uma lança. O terceiro, ao segurar-lhe a presa, afirmou ser uma serpente. Para o quarto, que abraçou uma das patas, o elefante se parecia muito com o tronco de uma árvore. O quinto, que tocou a orelha, acreditou tratar-se de um leque de abanar. O sexto acreditou que o rabo que empunhou era uma corda. Por muito tempo e em voz alta, cada um dos cegos discutiu sua opinião e defendeu com firmeza sua convicção. Apesar de certos em suas formas de percepção, constata-se o equívoco de tomar a parte pelo todo, desconsiderando-se a visão integral do objeto.

Por que tombar o bairro Moinho de Vento?

O Artigo 216 da Constituição da República Federativa do Brasil reconhece como patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem, dentre outros os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico e artístico, valores imediatamente detectáveis no bairro Moinhos de Vento;

O IPHAN, ao propor tombamentos, sempre privilegiou alguns estados e regiões, descuidando-se de outras. O Sul é muito mais rico em bens culturais do que a exígua relação de bens tombados em nível federal pode demonstrar. É necessário rever esta atitude;

O IPHAN, assim como outros órgãos de preservação de bens culturais, municipais e estaduais, necessita ampliar o rol de categorias de bens às quais concede proteção por meio do tombamento.

O IPHAN, assim como outros de órgãos preservação de bens culturais, municipais e estaduais, necessita também diversificar a tipologia de bens a serem contemplados pelo tombamento. Mais inclinado a proteger centros históricos, deve também dedicar maior atenção a bairros, subúrbios e arrabaldes e periferias urbanas. Mesmo para o órgão federal, o bairro Moinhos de Vento apresenta excepcionais valores histórico e arquitetônico e outros a serem detectados pelos estudos de tombamento;

As páginas de nossa história de maior valor não se localizam apenas no Centro Oeste e Nordeste. O país inteiro é um livro a exigir uma leitura mais acurada de todas suas páginas;

Criando, sem o saber, uma inevitável analogia com Moinhos de Ventos, o historiador da arte José Antonio Nonato Duque Estrada de Barros do Iphan, recentemente apresentou justificativas para o tombamento da

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Cinelândia no Rio de Janeiro, discordando radicalmente da opinião manifestada por técnicos do IPHAN de que o conjunto de imóveis da Cinelândia não deveria ser tombado porque foi vitimado pela especulação imobiliária, que teria sacrificado alguns de seus melhores elementos, além de transformá-lo em um conjunto heterogêneo;

O historiador crê que ainda resistem ali, marcos explícitos de um determinado período muito preciso da arquitetura do Rio e testemunhos eloqüentes da verticalização e da “americanização” da cidade, contra a qual tanto se bateu o carioca Lima Barreto;

Até mesmo intervenções impróprias, como as que substituíram edificações de valor no bairro Moinho de Ventos, representam momentos de nossa história e servirão como um futuro testemunho da omissão do poder público. Registrarão a impotência da vontade e dos anseios populares. Denunciarão a postura corruptível e venal do poder público, mais comprometido em assegurar vantagens pessoais do que em defender direitos coletivos. Prestarão depoimento sobre a vitória da tirania dos interesses dos poderosos sobre os direitos da sociedade. Por piores que sejam essas edificações, são páginas de um mesmo livro e devem ser também preservadas;

Se a iniciativa de tombamento federal for criticada por contemplar interesses burgueses, eis mais uma opinião que deverá ser entendida com sendo a favor da idéia pois somente a burguesia teria sido capaz de produzir essa reunião de peculiares testemunhos e somente ela pode reconhecer-lhe integralmente a importância.

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II – MOINHOS DE VENTO 2

A principal função da cidade é converter o poder em forma, a energia em cultura, a matéria inanimada em símbolos vivos de arte, a reprodução biológica em criatividade social.

Lewis Munford, A Cidade na História

O bairro

Moinhos de Ventos, bairro tradicional e de alto padrão de Porto Alegre, deve sua toponímia ao uso conferido ao sítio onde se estabeleceram os açorianos que ali plantaram o trigo e construiram moinhos. Desde essa época até os anos atuais, o bairro registra e expressa toda a diversidade brasileira manifesta, não somente em Porto Alegre mas em todo o Brasil. O bairro inclui desde feições resultantes de antigas intervenções até outras bem mais recentes. Isto resultou em um expressivo conjunto arquitetõnico que recebeu a contribuição de diferentes grupos étnicos e sociais que compõem a sociedade do sul e do Brasil.

A implantação da linha de bonde Indepêndencia pela Companhia Carris Urbanos e a abertura do Prado Independência propulsionaram as grandes modificações que, desde o final do século XIX, vêm modificando o bairro sem contudo roubar seu encanto. No início do século XX, após a construção da Hidráulica Moinhos de Vento, novas ruas foram sendo abertas. Mais tarde construiu-se o Hospital Alemão, hoje Hospital Moinhos de Vento. A transferência do Prado para outro bairro deu lugar ao Parque Moinhos de Vento, excelente área verde e cenário de atrações culturais. Um dos prédios mais tradicionais do bairro, o edifício Colonial, foi construído na década de 1950. Um exemplo de bairro de excelente qualidade de vida, conta com a Associação Leopoldina Juvenil e o Grêmio Náutico União Moinhos de Vento, o melhor hotel de Porto Alegre e o Moinhos Shopping.

Se compreendermos por qualidade de vida as condições do indivíduo em sua posição na vida, no contexto social e cultural e nos sistemas de valores objetivos, incluindo as expectativas, padrões, preocupações e relações com as características mais relevantes do seu meio ambiente e urbano, Moinhos de Vento é um dos bairros mais agradáveis e com melhores condições de vida no país.

O bairro impressiona pela farta arborização. Na primeira metade do século XX foram plantados pés de jacarandás e tipuanas, em um plano de arborização que previu o plantio de quatro mil árvores, como cinamomos, ligustros, plátanos e outras espécies. A defesa deste patrimônio arbóreo levou os moradores a se mobilizarem pela preservação integral de vários túneis

2 O livro Moinhos de Vento – Histórias de um Bairro de Porto Alegre, de autoria de Carlos Augusto Bissón, publicado em 2008, narra a história do bairro registrando os fatos mais significativos aí ocorridos.

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verdes. Possui áreas verdes que, mesmo isoladamente, poderia ser tombadas como jardins históricos, ampliando o tão exíguo elenco desses bens no país.

Moinhos de Vento possui belas residências, diversas lojas e prédios comerciais, e muitas opções de diversão e lazer distribuídas por um rico roteiro cultural. Suas ruas, sobretudo a chamada Calçada da Fama, são pontos obrigatórios na noite porto-alegrense. Abrigam grande quantidade de bares e restaurantes, por onde circulam pessoas de todo o país, atraídas pelos diversos bares, restaurantes e lojas.

A história do país está presente nas ruas e casas do bairro. Não apenas em épocas felizes como em instantes sombrios, como alguns terríveis assassinatos. Moinhos de Vento já abrigou e ainda abriga ilustres moradores de renome regional e nacional como os irmãos do presidente Getúlio Vargas, o presidente João Goulart, Leonel Brizola, Oswaldo Aranha e outros políticos. Músicos, intelectuais e literatos como o escritor Érico Veríssimo, em cuja obra Caminhos Cruzados, um personagem constrói um palacete no bairro. Grandes empresários como Otto Ernst Meyer, fundador da Varig e A. J. Renner, fundador das lojas Renner, aí viveram.

Existem ainda muitas edificações no bairro Moinhos de Vento, destacando-se as da primeira metade do século XX, projetadas por renomados arquitetos como, Egon Weindorfer, de Luca, Filsinger, Fernando Corona e outros, todas elas ameaçadas pelos empreendimentos que, anunciando a venda de apartamentos no bairro, destroem justamente as qualidades que vendem.

O valor do bairro Moinhos de Ventos como patrimônio nacionalO que lembro, tenho.João Guimarães Rosa

Este Parecer não tem por finalidade apresentar pormenorizada pesquisa sobre os valores do bairro Moinhos de Vento mas indicar linhas de abordagem de questões axiais que não foram aventadas no desenrolar do Processo. Não se pode contudo questionar o valor histórico e arquitetônico das edificações que o compõem. Basta citar a importante contribuição de um grupo formador da sociedade á arquitetura nacional3, os alemães.

As casas localizadas na rua Luciana de Abreu, sob números 242, 250, 258, 262 e 266, são projetos do Arquiteto Franz Andreas Egid Filsinger, construídas em 1932. A casa de número 272, é projeto de outro renomado arquiteto, Egon Weindoerfer.

3 O artigo Arquitetos Alemães no Sul do Brasil, do Doutor Günter Weimer relata que dificuldades financeiras do após-guerra na Alemanha levaram muitos arquitetos germânicos a procurarem o Brasil e aqui adquirirem renome. Weimer, cita os mais conceituados arquitetos europeus que vieram para o Brasil onde projetaram edificações, das quais muitas ainda remanescem no bairro Moinhos de Vento.

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Os órgãos de preservação do patrimônio cultural apresentam atualmente uma forte tendência a promover tombamentos de toda a obra de um só autor, desdenhando as contribuições de outros arquitetos que, sem ações de acautelamento, desaparecerão sem deixar grandes vestígios materiais

O significado das casas da Rua Luciano de Abreu sob os pontos de vista patrimonial e ambiental

A arquitetura é como a centralização e a proteção dessa influência sagrada (....) Nós podemos viver sem ela, nós podemos adorar sem ela, mas sem ela nós não nos podemos lembrar. John Ruskin.

O desenvolvimento sustentável procura criar modelos econômicos capazes de gerar riqueza e bem estar social conjunta e simultaneamente com a promoção da união social, a valorização e preservação dos recursos naturais, a conservação do meio ambiente, da paisagem e dos bens culturais.

A substituição de edificações tradicionais, sobretudo quando de singular valor como é o caso das casas localizadas da rua Luciana de Abreu, é danosa sob todos esses pontos de vista. Danosa ao meio ambiente, por concentrar atividades e alterar fatores ambientais, energéticos e mecânicos da cidade. Adversa ao patrimônio cultural, por destruir traços peculiares da identidade de um povo, trocando-os por intervenções grosseiras, completamente alheias á cultura brasileira. Prejudicial à paisagem, até então harmoniosa, roubando-lhe o equilíbrio e as qualidades adequadas à vida. Maléfica à cidade por provocar congestionamentos de fluxos que deveriam ser mantidos livres.

Talvez por não ser de Porto Alegre, meu olhar sobre o bairro Moinhos de Vento é muito mais aberto e livre de preconceitos do que o de quem vive na cidade. Suas edificações são peculiares, fogem aos padrões convencionais do Sudeste, utilizando-se de novas e diferentes soluções, bastante fascinantes para um arquiteto. Perder esses testemunhos da história da arquitetura é um grave prejuízo para a cultura nacional.

Tendo tido oportunidade de entrar em uma residência, impressionou-me a integridade de estilo e a autenticidade de época. Na sala onde fui recebido e nos ambientes que entrevi de meu lugar, todos os elementos decorativos eram do mesmo período, um art-déco um pouco tardio na arquitetura mas vanguardista na ornamentação, como ocorria à época, quando os estilos arquitetônicos não conseguiam acompanhar a moda européia. Terminada uma edificação, os elementos decorativos eram importados e seu desenho era muito mais arrojado do que o estilo da edificação.

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O reconhecimento do significado das casas da Rua Luciano de Abreu por arquitetos de Porto Alegre

Importantes dados para o reconhecimento do valor das edificações são expostos em pareceres que compõem o processo. Segundo  o arquiteto Maturino Salvador Santos da Luz, as cinco residências geminadas de números 242, 250, 258, 262 e 266, o conjunto de edificações em três pisos, projeto do arquiteto alemão Franz Andreas Egid Filsinger, um dos mais importantes de Porto Alegre na década de 1930, é um conjunto representativo de linguagem própria de arquitetura alemã, com características que evocam o funcionalismo da arquitetura modernista. A residência de número 272, foi projetada em 1929 pelo arquiteto austríaco Egon Weindorfer, um dos mais produtivos da primeira metade do século XX, um introdutor da arquitetura moderna em Porto Alegre cuja obra destaca-se pela qualidade e inovação arquitetônica. Segundo o Parecer, a importância do valor arquitetônico, simplesmente ignorado pelo Município em relação aos imóveis, não se mede apenas pela frontaria dos imóveis, mas pela inserção de sua linguagem arquitetônica no espaço urbano.

Santos da Luz chama a atenção para peculiaridades arquitetônicas das frontarias dos imóveis. As edificações residenciais do Bairro Moinhos de Vento foram implantadas com recuo frontal e distantes da via pública, permitindo uma distinção entre o espaço público, a rua, e o espaço privado, a residência. Uma solução bastante peculiar, a meu ver. Desconheço tal recurso em outras cidades brasileiras. A distância entre a passagem do espaço público para o privado é intermediada por um espaço em parte é público, porque à vista do pedestre, em parte privado, por se achar dentro do lote. Um jardim é o espaço de transição, o que não acontece em bairros com moradores de nível econômico mais baixo, onde as casas são tradicionalmente em fita, coladas umas às outras, sem recuos frontais, confundindo-se umas às outras. Apenas essa peculiaridade, única a meu ver, bastaria para justificar o tombamento como jardim histórico.

O parecer da arquiteta Raquel Rodrigues Lima afirma que a edificação residencial de número 272, da Rua Luciana de Abreu, em forma de palacete e com elementos do estilo eclético, apresenta clara característica da arquitetura histórica, reflexo da sua origem cultural, uma linguagem arquitetônica que nos anos 20 e 30 do século passado marcou o Bairro Moinhos de Vento. É uma arquitetura produzida para a elite de maior sucesso econômico. Raquel Rodrigues Lima reconhece, nas demais edificações residenciais, datadas de 1932, uma arquitetura funcionalista, oriunda da arquitetura modernista, com um tratamento de fachada em planos lisos, despojadas de figurações do historicismo. Segundo a parecerista, a partir de uma análise no universo da semiótica urbana, é evidente que este correr de edificações da Rua Luciana de Abreu é sinalizador da identidade dos processos de formação e ocupação do bairro e representativo de seu patrimônio cultural. Os imóveis foram projetados em uma linguagem arquitetônica denominada pelos alemães de Sachlichtkeit, Objetividade. Caracterizam-se pela qualidade construtiva e pelo esmero das técnicas de construção, de reconhecido valor documental.

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A arquiteta ressalta a importância do ponto de vista cultural, dos elementos que compõem os imóveis, dentro do universo que torna Moinhos de Vento rico na diversidade de imagens, ritmos e informações, provenientes da diversidade dos signos arquitetônicos, o que demonstra a economia da época, típica das cidades em desenvolvimento. Recomenda a adoção de uma abordagem que contemple duas instâncias da perspectiva analítica: uma que considere os valores individuais das edificações, outra que se refira aos valores globais das edificações, visualizando-as como elementos constitutivos de um determinado espaço urbano, que apresentam uma singularidade dada pela sua relação com o processo histórico de constituição da totalidade urbana de Porto Alegre.

Raquel Rodrigues Lima pondera sobre o processo histórico de urbanização do bairro, devido à construção das casas em questão. Lembra que, segundo o Professor Günter Weimer, foram projetadas pelo profissional alemão Franz Filsinger, para a cervejaria que aí existiu pudesse alojar seus mestres cervejeiros, já que a carência de habitações para empregados obrigava os empresários a assumir e solucionar a questão, em épocas em que ainda não existiam institutos de aposentadoria e pensões

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III - PATRIMÔNIO CULTURAL, UM CONCEITO EM CONSTANTE EVOLUÇÃO

Existe um problema mais altoE mais angustiante : o do Futuro.Lecomte du Noüy, L’ Avenir de l’ Esprit

A moderna preservação do patrimônio cultural

Além da contribuição oriunda da experiência vivida de forma prática no dia a dia, a ação dos órgãos de preservação do patrimônio cultural é definida de forma teórica por documentos contendo normas e recomendações técnicas, a maior parte elaborada por órgãos internacionais especializados. Após rigorosos estudos técnicos, representantes de diversos países, dentre eles o Brasil, tornam-se signatários de cartas, declarações, decisões, compromissos e recomendações que passam a ser os documentos oficiais para a condução das questões que afetam o patrimônio.

Dentre esses órgãos, destaca-se o International Council on Monuments and Sites – ICOMOS, organização civil internacional ligada à UNESCO, formada por profissionais especializados na preservação do patrimônio cultural, que vem contribuindo para ampliar o conceito, a forma de percepção e os valores do patrimônio cultural. O ICOMOS é um foro para diálogo entre profissionais e um veículo para a coleta, avaliação e disseminação de informações sobre princípios, técnicas e políticas de conservação do patrimônio cultural.

A base de toda a condução da preservação do patrimônio cultural no mundo é a Convenção do Patrimônio Mundial da UNESCO, de 1972. Às constantes mudanças do planeta, da sociedade e de seus valores, correspondem novas e mutáveis formas de conceituação e percepção do patrimônio. Novas demandas passam a exigir novas formas de atuação para a defesa dos bens de interesse coletivo. Sem excluir ou enfraquecer o valor de sua própria contribuição e de outras organizações nacionais, o IPHAN vem evoluindo, ampliando e enriquecendo sua ação institucional em conformidade com os subsídios de origem internacional. Como uma forma de orientar e atualizar a ação institucional, o IPHAN, assim como outros órgãos de preservação de bens culturais, adota esse valioso conjunto de documentos técnicos, as Cartas Patrimoniais, como referência para a defesa da herança comum.

À medida que novas e imprevistas situações vão surgindo, decorrentes da instabilidade imposta pelo mundo moderno, novas cartas, sempre em conformidade com a Convenção do Patrimônio Mundial da UNESCO, vão sendo elaboradas, levando o IPHAN à tomada de posições muito mais amplas e diversificadas para o exercício da atribuição legal de defesa do patrimônio cultural. A postura institucional do IPHAN e de outros órgãos análogos pode ser dividida segundo as distintas épocas de suas histórias e as diferentes necessidades para defender os bens culturais, sobretudo os bens imóveis.

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O conceito de patrimônio cultural - diferentes formas de percepção e fases da evolução

A opção mais certa é o futuro já que o passado está sempre mudando.Emmanuel Wallenstein

Leigos na preservação de bens culturais acreditam que o conceito de

patrimônio é estável e até mesmo imutável. Ao contrário do que se supõe vulgarmente, os bens culturais e as formas como são percebidos e como devem ser preservados são extremamente dinâmicos e diversificados. Passam por sucessivas e constantes fases de evolução. Um bem cultural inventariado ou tombado, com o passar do tempo, irá revelando novos e diferentes valores, muitos desconhecidos ou não registrados, à época do inventário ou do tombamento. O tempo presente anexa-lhe novos significados, o tempo passado cada vez mais lhe desvenda aspectos enigmáticos, sempre de uma forma nova e diferente. Um bem aparentemente anódino, não reconhecido como de preponderante interesse coletivo, poderá por isto desaparecer sem o reconhecimento de seu valor. O reconhecimento poderá ocorrer, tardiamente, no futuro, quando, após ter desaparecido, poderá vir a ser considerado importante e digno de medidas para preservação.

Um bem cultural pode ser avaliado segundo critérios objetivos ou subjetivos. Critérios como o valor artístico e histórico, a associação a um fato ou personagem histórica, o valor de mercado4, o valor da matéria prima com a qual foi fabricado, o valor religioso, ideológico ou cultural, o significado simbólico ou afetivo, podem ser conferido conforme contextos mais restritos ou mais amplos.

O bem edificado visto de forma isolada

Na história da preservação de bens culturais no Brasil, em um primeiro momento, a percepção do patrimônio edificado restringiu-se principalmente aos que detivessem valor histórico e artístico, sobretudo do período colonial. À época, as ameaças eram menos imperiosas, envolvendo apenas bens avulsos, sem abranger o ambiente circundante. Normas e pareceres técnicos do IPHAN eram formulados por técnicos, em geral arquitetos, sem necessidade do concurso de outros profissionais. Foram então concebidos alguns preceitos institucionais que, mesmo não tendo deixado de vigorar, constituem hoje apenas um – e não a mais importante – componente de um complexo sistema de variáveis, em contínuo processo de transformação.

A necessidade de proteger as diferentes expressões de nosso povo e do processo de construção de nossa sociedade levou os órgãos de patrimônio cultural a se voltarem para o que há de mais representativo de outras classes

4 Geralmente o valor imobiliário é mais respeitado do que o valor coletivo já que fere interesses menos difusos.

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sociais, o que conduziu ao tombamento de diferentes testemunhos, sobretudo de conjuntos arquitetônicos e centros históricos, incluindo seu entorno.

O bem edificado e seu entorno

A desordenada aceleração do ritmo de crescimento urbano e demográfico, ao gerar novas e graves ameaças ao patrimônio, sobretudo a pressão por espaços para especulação imobiliária, exigiu uma mais efetiva adoção de mecanismos específicos para cada nova questão que passasse a afetar o patrimônio edificado. A defesa desses bens demandou um cumprimento mais rigoroso do conceito já previsto na legislação de patrimônio histórico e artístico nacional, o conceito de vizinhança ou entorno. Mais tarde impôs-se também a adoção de novas considerações como o de ambiência, que inclui não apenas o entorno mas insere o bem edificado na inteireza do espaço que constitui o meio físico, sua organização arquitetônica e tudo aquilo que o anima, incluindo a especial organização do meio estético e psicológico, indispensável ao exercício das atividades humanas.

Sem se desconsiderar os conceitos de integridade e autenticidade, a visão de patrimônio foi enriquecida pelos novos juízos de pluralidade, diversidade, peculiaridade. Elementos isolados foram supridos pela visão de conjunto, pelo conceito de sistema. A preservação do patrimônio cultural passa a incluir a preservação semiótica, a interessar-se de forma progressiva pelos usos urbanos, por aspectos de apreensão visual como composições, limites, continuidade no tempo e no espaço, pelas características herdadas, por outras em presente processo de evolução, pelas possíveis formas futuras do patrimônio.

Instrumentos e critérios ambientais para a defesa do patrimônio cultural

O constante e acelerado agravamento da questão ambiental, associada a deterioração urbana, determinou o estabelecimento de novas formas de atuação dos órgãos culturais. Desde os anos 1980, o setor responsável pelo patrimônio natural e pela paisagem cultural do IPHAN tem tomado de empréstimo ao direito ambiental o instrumento de estudo prévio de impacto ambiental e seu respectivo relatório de impacto ambiental como forma de avaliar impactos sobre o patrimônio cultural,.

Sob o ponto de vista legal, o instrumento de defesa do patrimônio como bem coletivo é previsto pela Política Nacional do Meio Ambiente; recepcionado pela Constituição Federal; regulamentado pela Resolução CONAMA nº 01/86. A Lei 7.347 de 1985 disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. O Estatuto da Cidade regulamenta e estabelece diretrizes gerais da política urbana e utiliza, dentre outros instrumentos, o estudo prévio de impacto ambiental, cuidando da proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído,

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do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico e de áreas de interesse histórico, cultural ou paisagístico.

Os estudos de impactos ambientais exigem a prévia estimativa das consequências positivas e negativas que a possível implantação de um empreendimento apresentará sobre o ambiente para o qual é proposto e destacam a avaliação de impactos sobre o patrimônio cultural. Identificam e avaliam, de forma imparcial e puramente técnica, os efeitos que um projeto poderá causar às áreas direta e indiretamente afetadas e, quando pertinente, propõe medidas mitigadoras.

Todo e qualquer projeto que afete bens, interesses e direitos coletivos, que ameacem o consumidor, a ordem urbanística ou os bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, deve atentar ao conjunto de exigências, aspirações e necessidades humanas. Não apenas materiais como também espirituais, estéticas, sociais. O processo da avaliação ambiental deve envolver procedimentos específicos como a realização de audiência pública, abrangendo todos os segmentos da população interessada ou afetada pelo empreendimento. Trata-se de uma ferramenta interdisciplinar para avaliação de todos os efetivos e potenciais impactos que a implementação de qualquer empreendimento ou atividade possa causar ao patrimônio e a seu ambiente, cuja eficácia depende da atuação de uma equipe interdisciplinar.

O setor de jardins históricos, patrimônio natural e de paisagem cultural do IPHAN encara a cidade sob o ponto de vista da ecologia urbana. A cidade é um sistema constituído por uma comunidade de espécies, da qual homem é apenas uma, a mais ativa e única capaz de gerar cultura, que mantém uma relação com o meio em que vivem e convivem todas as demais.

A ecologia urbana aplica o modelo de ecossistema ao estudo das sociedades humanas, considerando-as como um conjunto com todas suas partes inter-relacionadas. Reconhece o valor do conjunto de espécies que têm a cidade por habitat e dos fatores ambientais, energéticos e mecânicos configuradores da estrutura do sistema urbano, no qual qualquer intervenção afeta o bioma, o clima, as condições e a qualidade da vida humana.

Avaliação de impacto ambientais sobre o patrimônio cultural urbano

Fundamentada na legislação ambiental, o setor de patrimônio natural e de paisagem cultural do IPHAN, desde a década de 1980 recomenda, para toda intervenção que possa afetar o patrimônio cultural, a adoção de uma avaliação de Estudos e Relatório de Impacto Ambiental, para empreendimentos propostos para a malha urbana. Tal avaliação deve levar em conta, de forma isolada, reunida, integrada e sinérgica, diferentes fatores. Deve considerar o impacto da ação proposta, a relação entre os diferentes impactos decorrentes dessa ação, a relação do empreendimento com os usos locais, a relação do empreendimento com os usos do entorno, as implicações de caráter irreversível e irreparável decorrentes da implantação do empreendimento. Os trabalhos de análise e avaliação de impactos devem ser feitas da forma mais

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ampla possível. Devem considerar irreversibilidade, equidade e custos, efeitos primários, secundários e acumulados.

O próprio tombamento deveria ser encarado como um empreendimento que fosse também objeto de estudos de impacto, com vistas a uma precisa definição de normas e critérios para sua maior eficácia. De certa forma o tombamento difere substancialmente de outros empreendimentos. Ao contrário da maior parte de empreendimentos, os efeitos sociais, culturais e ambientais dele decorrentes são sempre positivos, enquanto os impactos econômicos podem ser aparentemente negativos ou seja, embora pareçam inicialmente negativos revelam-se, em longo prazo, positivos.

Fatores ambientais a serem considerados em intervenções urbanas

o O ciclo hidrológico da cidade;o Gestão, planejamento e estratégias alternativas;o Contaminação do ar;o Área de influência dessa contaminação, com ênfase para metais

pesados;o Perigos e efeitos da contaminação atmosférica sobre a saúde e o

comportamento;o Perigos e efeitos da contaminação sonora sobre a saúde e o

comportamento;o Modelos e tendências do assentamento humano;o Distribuição espacial;o Detecção dos pontos de aglomeração;o Análise dos usos do solo;o Análise das mudanças que os usos do solo podem causar sobre a

população humana urbana;o Análise das mudanças que os usos do solo podem causar sobre as

distintas formas de vida da cidade como a vegetação e espécies de pássaros e os níveis de pragas.

○Fatores energéticos a serem considerados em intervenções urbanas

o Temperatura;o Insolação;o Iluminação e sombreamento;o Absorção e armazenamento de calor;o Micro clima;o Modelos e tendências do assentamento humano;o Água.

○Fatores mecânicos a serem considerados em intervenções urbanas

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o Redes principais;o Acessos;o Tráfico local e de trânsito;o Fluxos para o centro da cidade;o Análise do transporte e de sua ubiquação;o Paisagem;o Mobiliário urbano;o Silvicultura urbana;o Estrutura, composição e dominância da vegetação;o Tipos de espécies vegetais;o Características do solo;o Urbanização;o Paisagismo;o Espaços vazios, espaços abertos, espaços livres, parques, jardins e

zonas verdes;o Preferências urbanísticas dos moradores;o Preferências paisagísticas dos moradores;o Valoração dos bairros históricos;o Valoração de elementos históricos e locais antigos dos bairros;o Substituição da tendência de destruição desses elementos por sua

conservação e reabilitação;o Métodos econômicos e matemáticos para a localização de

atividades.

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IV – CARTAS PATRIMONIAISAntes que o homem moderno possa

colocar as forças que hoje ameaçam a sua própria existência, é necessário que retome posse de si mesmo. Isso fixa a principal missão para cidade do futuro: criar uma estrutura regional e cívica visível, destinada a colocar o homem à vontade em face de seu ego mais profundo e de seu mundo mais amplo, ligados a imagens de nutrição e amor humano.

Lewis Munford, A Cidade na História

Impacto do clima na herança cultural

De forma isolada ou conjunta, toda intervenção na malha urbana ou em sua vizinhança contribui para alterar as condições climáticas da cidade e do planeta, somando-se aos danos causados pelo homem à natureza e ao planeta e resultando em graves ameaças às condições da vida humana.

A preocupação com o meio ambiente perpassa todas atividades humanas em todo o mundo e obviamente faz-se presente na preservação de bens culturais. Dentre as cartas internacionais que definem normas para o tratamento de questões patrimoniais, cite-se o documento Impacto do Clima na Herança Cultural, publicado em 2007, pelo ICOMOS que revela a preocupação com as mudanças crescentes, aceleradas e sem precedentes nos padrões climáticos do planeta. O documento trata dos efeitos que essas mudanças climáticas irão provocar ao patrimônio cultural em bens como sítios, edificações, assentamentos, paisagens, bens móveis e tradições vivas nas várias regiões do mundo, validando a forma de atuação já pioneiramente adotada pelo setor de patrimônio natural e paisagem cultural do IPHAN.

Dentre as recomendações do ICOMOS sobre a preservação da herança cultural e as mudanças climáticas, na qual reconhece os inúmeros riscos que ameaçam o patrimônio, cite-se, dentre outras alterações danosas às condições do planeta; o aquecimento global; o derretimento das calotas polares; as inundações, cada vez mais comuns; a subida do nível das águas dos oceanos; a penetração de águas salinizadas; a desertificação; a proliferação de microorganismos.

O ICOMOS classifica esses danos como sendo de micro ou de macro grau, segundo afetem locais específicos ou regiões. Recomenda estratégias de adaptação, específicas para a preservação de sítios, edificações, paisagens, bens móveis e manifestações de tradições culturais vivas. Enfatiza o papel do patrimônio cultural para a questão ambiental, para as economias nacionais, o turismo, a geração de empregos. Recomenda que se consignem protocolos para enfrentar tais riscos, convocando a ação de poderes públicos e organizações não governamentais internacionais, instituições acadêmicas e os cidadãos individualmente.

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O bem edificado inscrito em seu entorno e a paisagem cultural

Para comprovar a parcialidade e insuficiência dos critérios que avaliaram as casas da Rua Luciana de Abreu, lembre-se que, apenas após os anos 1980, o ICOMOS aprovou mais de duas dezenas de documentos sobre a preservação do patrimônio edificado. Nenhum desses documentos parece ter sido considerado na avaliação do valor das casas da Rua Luciano de Abreu.

O próprio estado do Rio Grande do Sul prestou valiosa contribuição à preservação do patrimônio cultural brasileiro quando, reunidos na cidade gaúcha de Bagé, em agosto de 2007, representantes da Secretaria Municipal de Cultura de Bagé, do Ministério da Cultura, do IPHAN, do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico do Estado do Rio Grande do Sul – IPHAE, da Universidade Regional da Campanha – URCAMP e da Universidade Federal de Pelotas – UFPEL, abordaram, de forma pioneira uma nova questão, a paisagem cultural, decidindo pela elaboração de uma Carta, denominada Carta de Bagé ou Carta da Paisagem Cultural, com objetivo de defesa das paisagens culturais.

Apoiada na definição de paisagem cultural brasileira da Constituição da República Federativa do Brasil de 1980, segundo a qual o patrimônio cultural é formado por bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem as formas de expressão, os modos de criar, fazer e viver, as criações científicas, artísticas e tecnológicas, as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artistico-culturais, os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico, a Carta define a paisagem cultural como sendo o meio natural ao qual o ser humano imprimiu as marcas de suas ações e formas de expressão, resultando em uma soma de todas os testemunhos resultantes da interação do homem com a natureza e, reciprocamente, da natureza com homem, passíveis de leituras espaciais e temporais;

Segundo a Carta, adotada pelo IPHAN para conduzir sua futura atuação em relação à paisagem cultural brasileira, a paisagem cultural é um bem cultural, o mais amplo, completo e abrangente de todos, que pode apresentar todos os bens indicados pela Constituição, sendo o resultado de múltiplas e diferentes formas de apropriação, uso e transformação do homem sobre o meio natural. A paisagem cultural inclui, dentre outros, sítios de valor histórico, pré-histórico, étnico, geológico, paleontológico, científico, artístico, literário, mítico, esotérico, legendário, industrial, simbólico, pareidólico, turístico, econômico, religioso, de migração e de fronteira, bem como áreas contíguas, envoltórias ou associadas a um meio urbano.

O bairro Moinho de Ventos é uma paisagem cultural de indiscutível valor, cuja integridade e autenticidade acham-se ameaçadas pela destruição de seus

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bens tradicionais e substituição por espigões completamente alheios às proporções do bairro e da cidade de Porto Alegre e à escala humana. Se este erro já foi cometido por todo o país, não significa que Porto Alegre tenha de aceitá-lo em um de seus mais valiosos recantos.

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V - O ATUAL CONCEITO DE PATRIMÔNIO CULTURAL

A dimensão imaterial do bem edificado

A Constituição Federal, em uma percepção pioneira e arrojada, considera o patrimônio cultural brasileiro segundo suas dimensões materiais e imateriais ou, na terminologia adotada pela UNESCO e pelo ICOMOS, dimensões tangíveis e intangíveis. As cartas patrimoniais internacionais ampliaram a percepção do conceito de patrimônio, tornando imperativas novas formas de atuação por parte dos órgãos culturais. O ICOMOS empenha-se em considerar valores intangíveis como memória, crenças, conhecimentos tradicionais, a relação de ligação do homem a seu lugar. No que diz respeito ao manejo e preservação de monumentos e sítios, leva ainda em conta as comunidades locais, guardiãs destes valores.

  Modernamente todos esses fatores acham-se conjugados. mesmo os mais sutis aspectos não deixam de ser considerados como igualmente imprescindíveis ao conceito uno de patrimônio. A identidade cultural é o conjunto de caracteres próprios ou exclusivos de uma cultura que permite sua percepção ou reconhecimento de forma individual ou coletiva. A globalização é uma ameaça à diversidade cultural por tender a uniformizar a sociedade, daí a necessidade de se preservar, não apenas os bens materiais mas também a identidade cultural coletiva e individual.

Documentos imprescindíveis à avaliação do patrimônio culturalSomos todos feitos de retalhos e de uma contextura tão informe e tão diversa que cada pedaço, cada momento, cumpre seu pequeno papel.Montaigne

Dentre os inúmeros documentos aprovados pelas assembléias gerais do ICOMOS desde o fim da década de 1970, citem-se apenas as mais conhecidas, lembrando que nenhuma delas parece ter sido consultada para o veredicto que condena à destruição as casa da Rua Luciano de Abreu:

Carta de Florença, sobre a preservação de jardins históricos;

Carta Internacional De Toledo, sobre a salvaguarda das cidades históricas;

Carta do Turismo Cultural, para os locais de valor patrimonial e turístico;

Carta da Arquitetura Popular; valorizando a arquitetura popular como um ponto central da afeição e do orgulho de todos os povos;

Carta de Cracóvia, sobre a conservação de patrimônio construído;

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Carta Urbana Européia, uma declaração sobre os direitos urbanos; Diretrizes para a Educação e Formação na Conservação de Monumentos, Conjuntos e Sítios que, situando a conservação do patrimônio cultural dentro do campo do desenvolvimento ambiental e cultural, recomenda estratégias sustentáveis com a integração das atitudes de conservação com as metas econômicas e sociais.

Documento sobre a Autenticidade, produzido em Nara, chama a atenção para um importante e fundamental princípio da UNESCO, que considera que o patrimônio cultural de cada um é o patrimônio cultural de todos e que a responsabilidade por este patrimônio e seu gerenciamento pertence, em primeiro lugar, à comunidade cultural que o gerou, e secundariamente àquela que dele cuida;

Carta de Nara considera ainda que, além destas responsabilidades, a adesão às cartas internacionais e convenções desenvolvidas para a conservação do patrimônio cultural, obriga a considerar os princípios e responsabilidades por estas preconizados. Equilibrar suas próprias necessidades com aquelas de outras culturas é, para cada sociedade, algo extremamente desejável, desde que, ao alcançar este equilíbrio, não abra mão de seus próprios valores culturais;

Declaração de Santo Antônio, do Simpósio Americano sobre Autenticidade na Conservação e Gestão do Patrimônio Cultural, que relaciona diretamente o patrimônio cultural à identidade cultural de cada povo;

Nova Carta de Atenas, pretende ser uma base para a construção da cidade do futuro, tendo como princípios orientadores a coerência social, a coerência econômica e a coerência ambiental;

Carta da Sustentabilidade das Cidades Européias, uma compreensão de como o atual modo de vida urbano, particularmente estruturas como repartição e funções do trabalho, ocupação dos solos, transportes, produção industrial, agricultura, consumo e atividades recreativas são responsáveis pelos numerosos problemas ambientais com os quais a humanidade se confronta;

Normas do Conselho Europeu de Urbanistas para o Planejamento de Cidades, estabelece um compromisso com a construção das cidades;

A Carta para Roteiros Culturais e a Carta sobre Interpretação e Apresentação do Patrimônio Cultural, reconhecem a importância das dimensões intangíveis do patrimônio e o valor espiritual dos lugares, evidenciando a evolução das idéias a respeito da visão dos itinerários e a crescente importância dos valores de entorno e de escala territorial, pondo em evidência a macro estrutura do patrimônio em seus diferentes níveis. Contribui para a concepção social contemporânea dos valores do patrimônio cultural como um recurso para um desenvolvimento social e econômico sustentável.

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A Declaração Xi’ an, sobre os monumentos e os sítios em seu entorno, que chama a atenção para a conservação de contextos e aspectos físicos, visuais e naturais, assim como práticas sociais e espirituais, costumes, conhecimento tradicional e outras formas e expressões intangíveis na proteção e promoção dos monumentos e sítios que compõem o patrimônio mundial. Chama também a atenção para a abordagem multidisciplinar e as diversificadas fontes de informação para melhor compreender, administrar e conservar o patrimônio. Diante de um contexto de desenvolvimento e mudanças aceleradas, recomenda que autoridades, instituições e especialistas do mundo inteiro ampliem os conhecimentos sobre a adequada proteção e gestão das edificações, dos sítios e das áreas do patrimônio, como as cidades históricas, as paisagens, os itinerários culturais e os sítios arqueológicos.

○O mais novo documento de preservação do patrimônio cultural

A última carta divulgada pelo ICOMOS, em outubro de 2008,a Declaração de Québec, trata da preservação do spiritus locii. O termo latino significa originalmente um ser espiritual que habita um local em particular. Modernamente o conceito é percebido como uma agregação de elementos tangíveis como sítios, edifícios, paisagens, rotas, objetos e outros, intimamente associados a elementos intangíveis como memória, narrativas, documentos escritos, festivais, celebrações, rituais, conhecimento tradicional, valores, texturas, cores, odores e outros.

Os componentes físicos e espirituais conferem sentido, emoção e mistério a um determinado lugar. Todos esses elementos são uma importante contribuição para o entendimento de um lugar e para conferir-lhe um significado mais profundo e completo. A percepção do conceito de patrimônio cultural não pode excluir esse sutil entendimento.

A Declaração contém princípios e recomendações dirigidos organizações governamentais e não governamentais, a autoridades nacionais e locais, a todas instituições e especialistas habilitados a contribuir, por meio de legislação, de políticas e de processos de planejamento e gestão, para melhor proteger e promover os lugares e seu espírito. Trata-se de um conceito inovador e eficaz para assegurar o desenvolvimento sustentável e social no mundo.

A moderna consideração patrimônio cultural intangível, por conferir um significado mais rico e mais completo ao patrimônio material, deve ser levada em conta em toda e qualquer ação, projeto ou legislação referente ao patrimônio cultural. Sendo o espírito do lugar um conceito complexo e multiforme, os governos e outros interessados devem convocar a perícia de equipes de pesquisa multidisciplinar e de especialistas para uma melhor compreensão, preservação e transmissão deste espírito, um processo em permanente reconstrução que corresponde à necessidade de mudanças e continuação das comunidades. Sobretudo no caso das casas da Rua Luciano

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de Abreu, uma avaliação foi feita de forma rudimentar, parcial e insuficiente, deverá ser revista por uma equipe interdisciplinar de especialistas.

Geralmente, comunidades locais podem melhor compreender o espírito do lugar, sobretudo no caso de grupos culturais tradicionais como é o caso dos moradores do bairro Moinho de Vento. Esses grupos são a melhor contribuição à compreensão do valor de qualquer bem cultural. Acham-se municiados para sua salvaguarda, estão intimamente associados em todos os esforços para preservação e transmissão do espírito do lugar, que é construído exatamente por esses atores sociais, seus arquitetos e gestores, assim como pelos usuários que contribuem ativa e conjuntamente para dar-lhe um sentido;

O espírito do lugar, uma visão mais rica, dinâmica e abrangente do patrimônio cultural, oferece uma compreensão mais abrangente do caráter vivo e permanente de monumentos, sítios e paisagens culturais.  Um conceito construído por seres humanos em resposta as suas necessidades sociais e praticamente presente todas as culturas do mundo. Comunidades que habitam um lugar, especialmente as sociedades tradicionais, estão sempre intimamente associadas à proteção da memória, vitalidade, continuidade e espiritualidade de um lugar..

O bairro Moinhos de Ventos é um lugar rico em espírito dos lugares , requerendo ações para preservação dos valores sociais intangíveis de suas edificações, monumentos e sítios. A comunidade que o habita, melhor do que qualquer outra, absorveu esse espírito e mais do que qualquer parecer técnico, pode reconhecer seu real significado.

 

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VI - CONCLUSÃO

As casas de nº 242, 250, 258, 262, 266 e 272 da Rua Luciana de Abreu, Bairro Moinhos de Vento em Porto Alegre são espaços de relevância cultural e histórica que reúnem valores que as tornam merecedoras de proteção como patrimônio cultural;

A avaliação dos valores dessas edificações e de seus espaços livres foi feita sob um único ponto de vista , ou seja, de forma rudimentar, parcial, insuficiente e superficial;

Não apenas as casas de nº 242, 250, 258, 262, 266 e 272 da Rua Luciana de Abreu como todo o bairro Moinho de Vento apresentam excepcionais significados locais e também nacionais;

A vontade popular de preservar as casas e o bairro Moinho de Vento deve ser respeitada, o que pesa tanto, senão mais, do que qualquer argumento técnico;

O patrimônio do bairro Moinhos de Vento deverá ser analisado de forma interdisciplinar;

A análise deverá levar em contas os documentos internacionalmente adotados para a preservação de bens culturais;

Essa análise servirá também para subsidiar os estudos para o tombamento federal das áreas mais significativas do bairro Moinho de Ventos;

Os componentes materiais e imateriais do patrimônio são essenciais à preservação da identidade das comunidades que o criaram e transmitiram e não podem ser subestimados pela análise;

Rio de Janeiro, 26 de março de 2009-03-25

______________________________________________________________Carlos Fernando de Moura Delphim

DEPAM / IPHANMatrícula SIAPE n° 223.192

CREA MG / 12 746

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