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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ INSTITUTO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MESTRADO ACADÊMICO EM EDUCAÇÃO IVYS DE ALCÂNTARA SILVA COMPOSIÇÕES ESTÉTICAS ENTRE SCHILLER E NIETZSCHE SOBRE A FORMAÇÃO HUMANA: contribuições à prática educativa Belém/PA 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ

INSTITUTO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

MESTRADO ACADÊMICO EM EDUCAÇÃO

IVYS DE ALCÂNTARA SILVA

COMPOSIÇÕES ESTÉTICAS ENTRE SCHILLER E NIETZSCHE

SOBRE A FORMAÇÃO HUMANA: contribuições à prática educativa

Belém/PA

2017

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IVYS DE ALCÂNTARA SILVA

COMPOSIÇÕES ESTÉTICAS ENTRE SCHILLER E NIETZSCHE

SOBRE A FORMAÇÃO HUMANA: contribuições à prática educativa

Texto dissertativo apresentado para defesa de Mestrado na

Linha de Pesquisa Educação: Formação de Professores: teorias

e práticas, do Programa de Pós-Graduação em Educação do

Instituto de Ciências da Educação da Universidade Federal do

Pará, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre

em Educação.

Professora-Orientadora: Dra. Gilcilene Dias da Costa.

Belém/PA

2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ

INSTITUTO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

MESTRADO ACADÊMICO EM EDUCAÇÃO

MEMBROS DA BANCA EXAMINADORA

Orientadora: ________________________________________________________

Profª. Drª. Gilcilene Dias da Costa

Doutora em Educação pela UFRGS/RS.

PPGED/ ICED/ UFPA

Examinador Externo: ___________________________________________________

Prof. Dr. Rogério José Schuck

Doutor em Filosofia pela PUC/RS

PPGEnsino/UNIVATES

Examinador Interno: ________________________________________________

Prof. Dr. Cézar Luís Seibt

Pós-Doutor em Filosofia pela Abert-Ludwigs Universität Freiburg im Breisgau

PPGED/ ICED / UFPA

Suplente: _________________________________________________________

Prof. Dr. Damião Bezerra Oliveira

Doutor em Educação pela UFPA

PPGED/ ICED/ UFPA

Apresentado em:

Conceito:

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Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

Biblioteca do Instituto de Ciências da Educação (ICED / UFPA)

S586c

Silva, Ivys de Alcântara.

Composições estéticas entre Schiller e Nietzsche sobre a formação

humana : contribuições à prática educativa / Ivys de Alcântara Silva ;

orientação Gilcilene Dias da Costa. – Belém, 2017.

137 f.

Dissertação (Mestre em Educação) – Universidade Federal do Pará,

Instituto de Ciências da Educação, Programa de Pós-Graduação em

Educação, Belém, 2017.

1. Estética. 2. Schiller, Friedrich, 1759-1805 – Estética. 3. Nietzsche,

Friedrich Wilhelm, 1844-1900 – Estética. 5. Educação – Filosofia.

6. Prática de ensino. I. Costa, Gilcilene Dias da (orient.). II. Título.

CDD 22. ed. – 111.85

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Ao meu avô Joaquim, o vencedor.

Por ensinar serenamente que vencer não é ser maior nesta vida e que, quem

sempre quer vitória, perde a glória de chorar.

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AGRADECIMENTOS

Ao demiurgo e arquiteto do ser por conceder um sopro de vida a um grão de poeira

cósmica, neste milésimo de segundo do infinito.

Agradeço a todas as minhas famílias.

Aos meus pais Vânia e Francisco pela oportunidade de aprimoramento e pela admirável

educação de base que nos proporcionaram.

A todos os meus irmãos mais velhos, inclusive àqueles que ainda não conheço.

Tamys, Mariedson e a pequena Isys, pelo suporte e todo o philos e ágape envolvido.

À Letícia que contradiz a máxima popular de que “marido não é parente”, agradeço a

paciência e suporte.

Agradeço imensamente à querida profa Gilcilene pela paciência e admirável

sensibilidade, desdobrando as limitações espaço-temporais para nos orientar.

À grande amiga e companheira de orientações e jornadas nômades na UFPA, Rosileide.

Aos velhos amigos que me acompanham na jornada acadêmica: Mestre Sandro e sua

serenidade dionisíaca; Lucival, a representação da hiperatividade do ser do-ente.

Um especial agradecimento aos professores: Cézar Seibt pelos momentos de reflexões

cristalinas que lhe “subtraímos”; Rogério Schuck por aceitar colaborar na pesquisa com

suas percepções acuradas e atravessar o continente brasileiro para tal; Damião Oliveira

por sua amizade e afinidades teóricas.

Aos queridos professores que me acompanharam nesta inevitável parte da jornada:

Arlete Camargo, Olgaíses Maués, Sônia Regina, José Valdinei.

Aos amigos e professores do grupo de pesquisa HERMES: Márcio, Antônio Braço,

Erenilda e Renato.

Aos queridos da secretaria do programa que não perdem a sensibilidade, a despeito das

dificuldades que se lhe apresentam diariamente, com especial agradecimento a Will e

Isalu.

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“NÃO QUERO SORO... EU QUERO É SOPA!”

(Lolita Alcântara)

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RESUMO

Quando se fala em estética qual a primeira imagem que nos vem à mente? A

cada pessoa que se faça essa pergunta poderemos ter uma resposta diversa, tamanha a

plasticidade do termo. Diante desta plasticidade, a presente investigação tem como

ponto principal discutir o papel da estética na formação humana, tecendo um interlúdio

composicional entre alguns aspectos de duas insignes teorias filosóficas que cotejam a

importância da arte e a formação humana do ponto de vista estético, a saber, a

perspectiva estética de Friedrich Von Schiller contidas mormente em suas obras A

educação estética do homem numa série de cartas e Poesia ingênua e sentimental, bem

como a teoria estética de Friedrich Nietzsche diluída em obras como O nascimento da

tragédia, A filosofia na época trágica dos gregos e Humano, demasiado humano. O

debate a ser suscitado entre esses pensadores e suas perspectivas estéticas perpassará

suas principais concepções acerca da estética, tentando vislumbrar em que pontos tais

teorias filosóficas se encontram, para uma possível visualização da estética como

elemento amalgamado às práticas formativas. Diante disso, e tomando a estética como

pedra angular da formação plena do ser humano, esteio que foi soterrado, cumpre-nos a

tarefa de relevar o seu valor formativo na educação. Pelo prisma sensível destes

pensadores, veremos o feixe de luz que nos ajudará a refletir sobre de que maneiras a

estética está amalgamada à educação, aqui entendida de modo amplo como formação.

Palavras-chave: Schiller; Nietzsche; Estética; Educação estética; Formação.

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ABSTRACT

When talking about aesthetics what is the first image that comes to mind? To each

person we ask this question we may have a different answer, due to the plasticity of the

term. In the face of this plasticity, the present research has as main point to discuss the

role of aesthetics in human formation, weaving a compositional interlude between some

aspects of two philosophical theories that compare the importance of art and human

formation from the aesthetic point of view, namely, the aesthetic of Friedrich von

Schiller presented mainly in his works Letters Upon The Aesthetic Education of Man

and Naive and sentimental Poetry, as well as the aesthetic theory of Friedrich Nietzsche

diluted in works such as The Birth of Tragedy, Philosophy in the tragic age of the

greeks and Human, all too human. The debate made between these thinkers and their

aesthetic perspectives will cross their main conceptions about aesthetics, trying to

glimpse at what points these philosophical theories are, for a possible visualization of

aesthetics as an element amalgamated to the formative practices. Faced with this, and

taking the aesthetic as the cornerstone of the full formation of the human being, a pillar

that has been buried, we have the task of emphasizing its formative value in education.

Through the sensitive prism of these thinkers, we will see the beam of light that will

help us reflect on how aesthetics is amalgamated into education, understood here

broadly as formation

Key-words: Schiller; Nietzsche, Aesthetics; Aesthetics education; Formation.

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TÁBUA DE SIGLAS

No intuito de facilitar a identificação das referências das obras de Nietzsche em edições

e publicações diferentes, adotamos esta lista baseada na padronização utilizada pelo

periódico Estudos Nietzsche (ISSN 2179-3441), realizando nela pequenas adaptações.

Estas siglas se aplicam tão somente às obras de Nietzsche, pois que os textos de Schiller

não permitiriam esta mesma peculiaridade de identificação das referências de modo

intuitivo ou conveniente.

NT – O nascimento da tragédia

EH – Ecce Homo

FTG – A Filosofia na época trágica dos gregos

HDH I-II– Humano, demasiado humano I-II

GC – A gaia ciência

GM – Genealogia da moral

CI – Crepúsculo dos ídolos

VME – Sobre a verdade e a mentira no sentido extra-moral

VP – A Vontade de potência

FP I-IV– Fragmentos Póstumos I-IV

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SUMÁRIO

PRELÚDIO....................................................................................................................11

INTERLÚDIO

I- DE QUE ESTÉTICA ESTAMOS TRATANDO?..................................................25

I.1 Estéticas: percursos e percalços.............................................................................26

I.2 Estendendo a compreensão de belo.......................................................................32

I.3 Estética e sensibilidade..........................................................................................36

II- PRINCIPAIS CONCEPÇÕES DO CAMPO ESTÉTICO E JUSTAPOSIÇÕES

NAS PERSPECTIVAS DE SCHILLER E NIETZSCHE .........................................42

II.1 Elementos da estética schilleriana........................................................................44

II.1.1 Sobre a beleza...............................................................................................46

II.1.2 O belo e o sublime........................................................................................54

II.1.3 A Tragédia....................................................................................................60

II.1.4 Ingênuo-Sentimental.....................................................................................66

II.2 Alguns aspectos da estética nietzscheana.............................................................71

II.2.1 Apolíneo-Dionisíaco.....................................................................................73

II.2.2 Sobre a arte, o belo e o feio..........................................................................79

II.2.3 O trágico.......................................................................................................83

II.2.4 Fisiologia da arte..........................................................................................92

III- EDUCAÇÃO ESTÉTICA EM SCHILLER E NIETZSCHE:

CONTRIBUIÇÕES À PRÁTICA EDUCATIVA ....................................................101

III.1 Estética como formação humana......................................................................107

III.2 Apolo e Dioniso em sala de aula: o que pode um professor trágico?...............118

POSLÚDIO..................................................................................................................127

REFERÊNCIAS...........................................................................................................134

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PRELÚDIO

I

Se, como diz o Caeiro de Pessoa, “pensar é estar doente da vista” (PESSOA,

1993b, p.24), então a questão deste prelúdio é a de desvendar como surgiu nosso

problema. De modo mais simples, se, para o virtual poeta Alberto Caeiro, pensar é a

consequência de uma vicissitude que nos afeta, então nossa afecção primeira é

consequência de um relacionamento irresoluto com a arte e com o sentimento estético.

Como tema de discussão acadêmica, as questões relacionadas à estética surgiram desde

a graduação, como inclinação pessoal surgiram desde sempre, como toda inclinação

legítima. Ao que parece, nestes casos em que o afeto por um tema é legítimo, a

inclinação encontra-se latente, indelével, como um imã sempre nos atraindo para o seu

norte como uma força, às vezes imperceptível, mas na maioria das vezes irresistível.

Portanto, não é possível dizer aqui se atraímos uma inclinação ou somos atraídos por

ela, mas é possível dizer que se a afeição por um tema for franca e legítima o encontro

será inevitável.

A primeira pesquisa mais sistematizada no campo da estética em minha

trajetória acadêmica surgiu de uma proposição que pareceu bastante contraditória, nas

primeiras aulas da disciplina de Filosofia da Arte. Que incômodo causou a proposição

de que Platão expulsa o poeta de sua república e, consequentemente, de sua filosofia.

Como seria possível, se mesmo ele continuara a usar a poética em suas composições

filosóficas? Surgindo deste incômodo o primeiro artigo que nos ensejou posteriores

pesquisas acerca da poesia em Platão. A partir da perspectiva platônica, fora inevitável

criticar o fazer poético e colocar a poesia e a arte, sob suspeita. Deste modo, em

qualquer tipo de conflito, sobretudo nos de opiniões e ideias, o mais sensato a se fazer é

escutar ambos os lados, sendo este, portanto, nosso próximo passo. Passo que surge aqui

nesta inicial pesquisa de mestrado em educação, pois que, para ser justo com a arte e dar

réplica à poesia, nada mais indicado do que ouvir o que um poeta tem a dizer a respeito.

O ponto de vista de um artista seria fundamental para nossas inquietações diante do

tema, já que ouviríamos alguém que fala mais por meio de sentimento que por meio de

sistemas. Esse artista foi Schiller, dos quais nos encantou na infância com o conto de

Guilherme Tell, mesmo antes de sabermos ser sua obra.

Neste mesmo intuito de dar voz à arte, seria necessário agora um

interlocutor que fosse o contraponto com a teoria platônica e que se relacionasse e

desenvolvesse melhor a perspectiva de unidade entrevista por Schiller. Esse interlocutor

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foi Nietzsche, com suas considerações acuradas em defesa não apenas da arte, como da

estética. A fatal e irônica correlação entre os três é assegurada pelo fato de que todos

foram mestres não só na compreensão filosófica, mas na poética, mesmo que um deles

não admita isso. Destarte, Schiller e Nietzsche seriam, doravante, os teóricos principais

que nos ajudariam a enfrentar mais um debate relacionado à estética.

Retomando a compreensão do que consideramos “problema”, diríamos que

um problema pode ser inventado. Contudo, para ser um problema autêntico, ele não

deve ser inventado, mas, pelo contrário, ele deve incomodar, existindo aqui uma relação

de proporção entre a sua autenticidade e sua pungência, isto é, quanto mais pungente,

mais necessária é a vontade de entendê-lo. Quanto a isso, Rubem Alves nos dá uma

ilustração ao explicar a afirmação de que o que não é problemático não é pensado:

Você nem sabe que tem fígado até em que ele funciona mal. Nem sabe

que tem coração, até que ele dê umas batidinhas diferentes. Você nem

toma consciência do sapato até que uma pedrinha entre lá. Quando

está escrevendo você se esquece da ponta do lápis até que ela quebra.

Você não sabe que tem olhos – o que significa que vão muito bem

(ALVES, 2005, p.24)

Entende-se disso que todo pensamento mais detido e conspícuo começa por

um problema, pois enquanto as coisas não saem dos seus eixos, ou enquanto não

percebemos que estão saindo, não precisamos problematizá-las. Este fato é ressaltado

com grande impacto nas estrofes da música Piano Bar de Humberto Gessinger, ao

mostrar poeticamente que “Toda vez que falta luz, toda vez que algo nos falta; o

invisível nos salta aos olhos”. Mesmo o poeta Alberto Caeiro que acusa o filósofo de

inventar problemas para o mundo, admite ser necessário “ter o pasmo essencial”

(PESSOA, 1993b, p.24), o espanto de que falavam os pensadores gregos.

Em qualquer modalidade de conhecimento um problema só é

verdadeiramente pensado quando incomoda. Um problema que advenha de algo não

vivido é contingente. Deste modo, o problema que venho perseguindo desde a

graduação não estava entrelaçado tão somente à arte, como pensara, mas fazia parte de

algo que ia um pouco mais além que arte, a saber: a estética. Este algo indistinto sempre

esteve presente, contudo, só nos foi possível distingui-lo mediante o contato com o

estudo filosófico.

Deste modo, se tivéssemos que definir aqui um objeto a ser posto na lâmina

de análise, não seria este a arte, nem a poesia, mas a estética (e suas várias nuances),

mais precisamente a relação entre estética e educação.

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A problemática de tentar compreender qual a abrangência da estética e suas

relações com a formação humana deve necessariamente nos conduzir a elaborar

questões que nos vão nortear no processo de recolha dos indícios deixados pelos

pensadores. Por conseguinte, tais questões norteadoras pensadas aqui são fruto não só

de minha prática docente, mas de minha trajetória acadêmica, como de inquietações

geradas na infância, das quais, muitas delas ficaram de fora, algumas delas, mesmo que

aparentemente absurdas, foram perfeitamente cabíveis.

Inicialmente a questão principal era se ‘a estética é uma potente ferramenta

para a educação?’, uma questão rude e ampla. Deve-se confessar que ao iniciar o projeto

tal questão era considerada adequada aos misteres aqui propostos, mas adentrando o

tema um pouco mais e tendo lido os autores com mais cuidado, vimos que a própria

formulação da questão estava equivocada, indo em direção a uma redução da

abrangência da estética. Ao reformular e ampliar a questão central da pesquisa,

chegamos a seguinte proposição: ‘a estética seria uma potente ferramenta para a

educação, ou, mais que isso, seria ela um elemento mais importante na formação

humana?’. Reformulação que, por ser direta e singela, revela, desde já, pistas acerca de

nossa hipótese principal, tal como a pergunta de Kant sobre ‘como são possíveis os

juízos sintéticos a priori?’, em que já pressupõe que sejam possíveis antes mesmo de

explicar.

Como suporte à proposição principal, pensamos ainda em algumas

Questões secundárias que nos poderão servir como guias, das quais temos: ‘o que se

entende por estética?’, já que o termo é tão ambíguo; e ‘o que se entende por educação

estética?’, e também ‘quais os principais pontos das concepções de formação em

Schiller e Nietzsche?’; e, ainda, ‘em que pontos tais teorias se complementam, para uma

possível visualização destas teorias em práticas formativas?’

Como já dissemos há pouco, a questão central que norteia esta pesquisa já

entrega pistas acerca de nossa hipótese principal que, em linhas gerais reside na ideia

de que ‘a estética, mais que um mero sinônimo para arte ou para sensibilidade, é na

verdade a pedra angular da formação plena do ser humano, esteio que foi soterrado’.

Diante disso, cumpre-nos a tarefa de tentar compreender o amplo conceito de estética,

em que momento ela foi soterrada e como reabilitarmos sua função formativa na

perspectiva de Schiller e Nietzsche. Tais filósofos seriam um contraponto às pesquisas

anteriores, que concediam um lugar secundário ao fenômeno estético, pois um poeta que

filosofa e um filósofo que poetiza proporcionariam uma boa combinação para nos

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ajudar a compreender e dar um tratamento mais sensível ao problema. Pelo prisma

sensível destes pensadores, veremos o feixe de luz que nos ajudará a refletir sobre de

que maneiras a estética está amalgamada à educação, aqui entendida de modo amplo

como formação.

Assim sendo, para a exposição destas reflexões da maneira mais organizada

quanto possível, elencamos as seguintes premissas como Objetivos a serem cumpridos:

O Objetivo geral se concentra em ‘Compreender a correlação inextrincável entre

estética e educação, tomando como ponto de apoio as concepções complementares de

Schiller e Nietzsche’; como desdobramentos deste temos os seguintes Objetivos

específicos: ‘ensaiar acerca do que se entende por estética’, ‘apresentar os principais

conceitos estéticos dos autores’, o que irá nos preparar para ‘compreender suas

principais ideias no âmbito educacional’. Por fim utilizaremos os conceitos previamente

estudados para ‘visualizar as possíveis contribuições destas reflexões em nossas práticas

formativas’. Esta última, sendo a proposição mais insólita dentre as quatro, tem como

principal meta nos instigar a tentar vislumbrar as teorias e reflexões dos pensadores

estudados em pleno funcionamento, nos ajudando assim a, quiçá, seguir o ensinamento

do próprio Schopenhauer, de pensar por nós mesmos.

Como este estudo irá se centrar nas teorias estéticas de dois filósofos,

podemos afirmar que estamos diante de uma pesquisa qualitativa de cunho

eminentemente bibliográfica. Nossos Instrumentos de pesquisa principais serão os

textos fontes dos filósofos em questão. Para o estudo dos conceitos concernentes à

estética utilizados por Schiller, recorremos a algumas compilações de suas cartas e

artigos que foram publicados no Brasil com títulos que sintetizavam o conteúdo

reflexivo dos textos contidos, tal como Teoria da tragédia que reúne cinco artigos sobre

o tema; Kallias ou sobre a beleza que compila as cartas trocadas entre Schiller e seu

amigo Körner; Poesia Ingênua e Sentimental (1800) que reúne ensaios sobre o fazer

poético publicados inicialmente em uma revista em que Schiller era editor e fundador,

juntamente com Goethe e outras eminências da época, e, ainda, não poderíamos deixar

de mencionar as compilações de cartas publicadas posteriormente sob o título de

Educação estética do homem (1795), que nos servirá como principal base para definir

suas ideias no campo educacional. Sobre Nietzsche perpassamos inevitavelmente sua

primeira obra O nascimento da tragédia (1872), pela riqueza e estrita relação com o

tema; utilizamos algumas passagens de O crepúsculo dos Ídolos (1888), ao tratar do

belo e do feio; também aqui alguns trechos de Humano, demasiado humano (1878-

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1880), sobretudo o II volume, sobre a experiência estética e a arte; e uma compilação

dos textos, aforismos e fragmentos de Nietzsche em relação à educação intitulado

Escritos sobre educação.

Contamos também, com o apoio de comentadores tanto de Schiller quanto

de Nietzsche, dos quais se menciona aqui, Ricardo Barbosa (2011), Pedro Süssekind

(2011), Márcio Suzuki (1991, 2002), Roberto Machado (2002, 2006), Márcio

Benchimol (2002) e Rosa Maria Dias (2003,2005), evocando algumas vezes outros

autores correlatos ao tema, quando necessário.

Ante à tão eminente plêiade de pensadores, sentimo-nos como na expressão

já muito famosa à época de Isaac Newton: ‘como anões montados em ombros de

gigantes’. Tendo a certeza de que desta altura poderemos ver algo proveitoso ao

espírito, uma vez que apoiados em tão generosa literatura – ainda que nos falte algumas

traduções importantes de Schiller ali, e outros manuscritos de Nietzsche aqui – podemos

fazer frente à tentativa de compreender o problema da estética e suas inter-relações com

a arte, com o belo, com o sublime, com o feio e, mormente com a educação, esta última

sempre devendo aqui ser entendida como Paideia ou Bildung.

Como um breve Marco teórico e uma precária introdução ao tema ou,

melhor dizendo, ao problema do relacionamento entre estética – e seus afluentes – e

educação, nos propomos agora a levantar breves compreensões que atacam ainda de

modo inicial e colateral os problemas pensados para o corpus do trabalho. Para tanto,

afim de melhor visualizarmos o debate entre Schiller e Nietzsche, recorremos a alguns

de seus principais textos a respeito do tema. Veremos, doravante, alguns excertos de

textos-fontes destes autores que arrazoam a proposta desta pesquisa correlacionando

educação à educação estética e seus desdobramentos. Será mister iniciar a interlocução

com Schiller, passando, em seguida a breves menções a Nietzsche e seus debatedores.

II

Em sua apreciação inicial a respeito da beleza e da arte, Schiller, em A

Educação estética do homem, assume francamente sua tendência kantiana, como ponto

inicial de suas análises. Porém, como uma prova de sua lisura, isenta este sistema de

quaisquer falhas a que possa incorrer pelo caminho, atribuindo a si possíveis desvios

dos princípios kantianos. Esta empreitada, já relatada em outros textos de Schiller, não é

uma tentativa de encerrar a já conhecida querela entre filosofia e poesia, nem, do

mesmo modo, de solucionar o quebra-cabeça da estética kantiana, tal como afirma na

Carta I de Educação estética do homem:

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Minhas ideias, nascidas antes do trato regular comigo mesmo que da rica

experiência do mundo ou da leitura, não negarão sua origem; serão culpadas

de várias falhas, mas não de sectarismo; irão antes cair por fraqueza própria

ficar em pé por autoridade e força alheia. Não quero ocultar a origem

kantiana da maior parte dos princípios em que repousam as afirmações que se

seguirão; à minha incapacidade, entretanto, e não àqueles princípios, fique

atribuída a reminiscência de qualquer escola filosófica e acaso a vós se

imponha. Vossos próprios sentimentos fornece-me-ão os fatos sobre os quais

construirei; vosso pensamento livre ditará as leis segundo as quais se deverá

proceder. (SCHILLER, 2002a, p.19-20)

Com isso, fica claro que a intenção de Schiller, em suas composições

filosóficas, não é apresentar soluções prontas, porém, seguir esta trilha, tendo consigo,

não uma régua ou esquadro para medir verdades que se enquadrem no sistema kantiano,

mas sim, munido de uma bússola que lhe aponte o norte sem lhe cerrar as vias indicadas

por seus sentimentos, mantendo o equilíbrio entre razão e sensibilidade.

Sua análise começa a dirigir-se para a tentativa de mostrar que o âmbito

estético, mais do que uma simples ferramenta, caracteriza a condição sine qua non para

a formação plena do ser humano, posto que o indivíduo só se torna pleno, mediante o

impulso lúdico que a esfera estética lhe fornece (SCHILLER, 2002a, p.80). Este

impulso lúdico é justamente o jogo equilibrado entre razão e sensibilidade, jogo que não

pode ocorrer com as cristalizações e sobrepujança da razão (SCHILLER, 2002a, p.83).

Destarte, um ser humano pleno, segundo Schiller, só atinge tal completude, de fato,

quando tem a alma livre, o que, por conseguinte, só ocorre quando este indivíduo

estende a mão para essa disposição lúdica. Por conseguinte, compreender em que

consiste a natureza estética humana, implica necessariamente em perscrutar acerca dos

desdobramentos deste conceito, sondar conceitos como belo, feio, arte, sensibilidade e a

influência destes vetores estéticos no espírito humano.

Em sua Educação estética do homem, Schiller, inicia sua carta VI, fazendo

amplo elogio ao modelo grego de formação humana, modelo que, mesmo reformulado

na proposta platônica, alguns aspectos mais marcantes foram preservados. Em seu

elogio, o pensador alemão afirma que,

Numa observação mais atenta ao caráter do tempo, entretanto, admirar-nos-

emos do contraste que existe entre a forma atual da humanidade e a passada,

especialmente a grega. A glória da formação e do refinamento, que fazemos

valer, com direito, contra qualquer outra mera natureza, não nos pode servir

contra a natureza grega, que desposou todos os encantos das artes e toda a

dignidade da sabedoria, sem tornar-se, como a nossa, vítimas de nós mesmos.

Não é apenas por uma simplicidade, estranha a nosso tempo, que os gregos

nos humilham; são também nossos rivais, e frequentemente nossos modelos,

naqueles mesmos privilégios com que habitualmente nos consolamos. Vemo-

los ricos, a um só tempo, de forma e de plenitude, filosofando e formando,

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delicados e enérgicos unindo a juventude da fantasia à virilidade da razão

em magnífica humanidade. (SCHILLER, 2002a, p.35-grifos nossos)

Assim, sua visão a respeito dos gregos mostra não só traços românticos,

como, também, revela sutilmente a necessidade de um equilíbrio entre as potências

assinaladas no final do excerto. Isto é, ao povo grego, pelo menos à sua maioria, era

inerente uma harmonia; sua natureza possuía a simplicidade do meio termo,

distinguindo-se, segundo Schiller, de qualquer outra natureza e afastando-se, mormente,

da atual natureza moderna vigente em sua época, que pelo frequente desequilíbrio

dessas funções nos torna autodestrutivos e vítimas de nós mesmos.

Ainda louvando a florescência grega, Schiller ressalta o fato de que neste

período dourado da cultura grega, a variedade dos saberes, não apontavam, ainda,

caminhos fragmentados dos saberes humanos. Período onde razão e sensibilidade

concorriam juntas para o esclarecimento, sem a soberba de uma, em detrimento de

outra, tal como nos esclarece o poeta-filósofo:

Naqueles dias do belo despertar das forças espirituais, os sentidos e o espírito

não tinham ainda domínios rigorosamente separados; a discórdia não havia

incitado ainda a divisão belicosa e a demarcação das fronteiras. A poesia não

cortejara a espirituosidade, nem a especulação se rebaixara pelo sofisma.

Podiam se necessário, trocar os seus misteres, pois as duas, cada qual a seu

modo, honravam a verdade. Por mais alto que a razão se elevasse, trazia

sempre consigo, amorosa, a matéria, e por fina e rente que a cortasse, nunca a

mutilava. (SCHILLER, 2002a, p.36).

A demarcação desses territórios cerceou as várias instâncias da vida

humana, fragmentando essas instâncias e quebrando a unidade de atuação do homem

em variadas áreas. No período moderno a exigência de uma excessiva especialização,

concepção permeada grandemente pela ciência, acabou com a unidade entre arte e

erudição. Instâncias que conviviam pacificamente na formação do homem grego, se

dilaceraram introduzindo gradativamente a noção moderna de ser humano, na qual o

sujeito se encontra bipartido entre razão e sensação/sentimento.

Segue-se daqui, portanto, uma das primeiras críticas ao fazer artístico no

período moderno, uma visão crítica vanguardista acerca da modernidade e suas mazelas

do ponto de vista estético, tal como afirma Ricardo Barbosa em seu artigo A educação

do homem e a educação estética do homem: “Como notou Habermas, o Schiller das

Cartas sobre a educação estética do homem foi o primeiro a fazer da crítica da

Modernidade uma crítica estética. Schiller escreveu esta obra sob o impacto do terror

revolucionário, execrado por ele desde o primeiro momento” (BARBOSA, 2011, p.28).

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Logo, se a partir deste momento Schiller identifica uma cisão na natureza do homem, o

que é necessário para a junção dessas instâncias, há muito separadas? A resposta a este

problema reporta a um só caminho na perspectiva do filósofo: a reabilitação da

educação estética.

Não obstante, aqui se instala uma das grandes problemáticas da proposta

schilleriana, posto que, tal reunificação é uma tarefa assaz intricada, pelo fato de que a

supremacia de educação racional se encontra arraigada aos mais sensíveis filamentos da

nervura social, uma tarefa que levaria uma centena de anos. Assim, a pergunta

fundamental que devemos nos fazer é a de “como podemos experimentar a sensibilidade

por meio da estética?”. Ou ainda, “como promover a reconciliação entre razão e

sensibilidade no plano de uma educação estética?”.

Sabemos já que, para a reconquista da sensibilidade estética o excesso da

lógica e da razão torna-se um empecilho ao desenvolvimento da fantasia e das forças

criativas do homem, pois, assinala Schiller,

o predomínio da faculdade analítica rouba necessariamente a força e o

fogo à fantasia, assim como a esfera mais limitada de objetos diminui-

lhe a riqueza. Por isso o pensador abstrato tem, frequentemente, um

coração frio, pois desmembra as impressões que só como um todo

comovem a alma. (SCHILLER, 2002a, p. 39)

Convém, então, diante do conselho de Schiller, reconciliar a unidade dos

gregos, há muito desvanecida, lutando contra a compartimentação e fragmentação das

potências humanas, potências que, como se pode perceber, funcionam mais

harmonicamente em conexão. Exemplo disso, são os primeiros pensadores gregos que

compilavam seus discursos filosóficos e científicos em forma de poesia, tal como

Parmênides, revelando esta unidade das potencialidades humanas. Os gregos, de alguma

forma, compreenderam intuitivamente os mecanismos da inter-relação plena dos vários

saberes, contudo, segundo Schiller, “os gregos haviam alcançado tal grau, e caso

quisessem prosseguir no sentido de uma formação mais alta deveriam, como nós, abrir

mão da totalidade de seu ser e buscar a verdade por rotas separadas” (SCHILLER, 2002a,

p.40). Por conseguinte, esse exercício unilateral das forças leva o homem a concentrar

suas energias compreensivas e criativas em um único elemento. O que leva à seguinte

questão elaborada por Schiller: “dissolvido em entendimento puro e pura intuição será o

espírito capaz de trocar as severas algemas da lógica pelo livre andamento da força

poética, de aprender a individualidade das coisas com um sentido fiel e casto?”

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(SCHILLER, 2002a, p.40). Logo, esta reunificação é a primeira tarefa da educação

estética, posto que, evocando uma metáfora do próprio pensador, “somente o jogo livre

e regular dos membros desenvolve a beleza” (SCHILLER, 2002a, p.40-41), o que nos

leva a aduzir que esta tarefa, imposta a cada um de nós, será um trabalho disciplinar de

anos a fio, com o intuito de tornar o exercício da sensibilidade, um hábito constante.

Este esforço de trazer à tona a educação estética, voltando-se aos elementos

do cultivo da sensibilidade humana, é, em verdade, um esforço de remover-se da

possibilidade de decair ou entregar-se às duas piores consequências geradas pelo

desequilíbrio entre a instância racional e a instância estética, a saber: o retorno ao estado

selvagem ou à recorrência a barbárie. Fato evidenciado no brilhante excerto da carta IV:

O homem, entretanto, pode ser oposto a si mesmo de duas maneiras:

como selvagem, quando seus sentimentos imperam sobre seus

princípios, ou como bárbaro, quando seus princípios destroem seus

sentimentos. O selvagem despreza a arte e reconhece a natureza como

sua soberana irrestrita; o bárbaro escarnece e desonra a natureza, mas

continua sendo escravo de seu escravo, por um modo frequentemente

mais desprezível, que o do selvagem. O homem cultivado faz da

natureza uma amiga e honra sua liberdade, na medida em que apenas

põe rédeas a seu arbítrio” (SCHILLER, 2002a, p.29).

Assim, podemos imaginar que o homem civilizado, não-selvagem, portanto,

por sua condição de instrução, não poderá incorrer em erros, contudo, mesmo dotado de

cultura, ou de um mero verniz cultural, pode recair na barbárie, o que é mais revoltante,

por ser a barbárie um flagelo da própria cultura, ou fruto da distorção dela.

III

A ponta complementar deste estudo afirma-se na importância e no

reconhecimento da florescência grega e de seu modelo de formação do homem, tecendo

o nexo necessário com as considerações filosóficas de Nietzsche, que, mesmo oscilando

entre elogios e acusações, reconhece a grandeza da cultura grega e a unidade da

formação do cidadão, sobretudo a do período denominado de trágico, período que

antecede a virada antropológica da filosofia iniciada por Sócrates. Este recuo à Grécia

Antiga, a despeito de parecer um mero deslocamento histórico, será, em verdade, uma

oportunidade de identificar no rastro genealógico características necessárias à

reconstrução ou reconquista do espírito estético, subjacente ao ser humano, mas há

muito recalcado pela razão cristalizante.

Mesmo que sua admiração pelos gregos, acentuada mormente em seus

primeiros escritos, tenha sido diluída e por vezes negada nos seus escritos mais

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maduros, é sempre subjacente em Nietzsche a Grécia, senão como modelo de educação,

então como modelo de graça. A admiração do jovem Nietzsche fica perceptível ao

escrever O nascimento da Tragédia e A filosofia na época trágica dos gregos (1873),

fazendo inúmeras referências em outros de seus textos e aforismos à genialidade dos

pensadores gregos. Para o filósofo, os gregos conseguiram um feito peculiar em relação

à dimensão estética da existência humana, conseguiram experimentar mais plenamente

a arte, pois mantinham o equilíbrio entre homem e natureza, ou razão e instinto,

potências criadoras fundamentais da existência humana. Em termos nietzschianos, os

gregos do período trágico, por conseguirem manter a harmonia entre os elementos

apolíneos e dionisíacos, harmonia afirmada desde os primeiros dez parágrafos de O

nascimento da Tragédia1, gozaram com plenitude do sentido autêntico do estético e da

experiência estética. A partir do 13º parágrafo, Nietzsche descreve o movimento de

assunção da razão e do apolíneo como elemento superior, operado inicialmente por

Sócrates, movimento que carrega, como uma das infaustas consequências, o

empobrecimento da dimensão e vivência estética em sua plenitude e “aqui o

pensamento filosófico cresce com mais viço do que a arte e obriga-a a se agarrar ao

caule da dialética. No esquematismo lógico a tendência apolínea se transformou em

crisálida” (NIETZSCHE, 2014, p.29–NT, §14).

Mas, podemos nos perguntar, se a razão dominasse a ponto de suprimirmos

completamente a arte de nossas vidas, o que perderíamos? Perderíamos quase tudo do

que somos, perderíamos a esperança na vida, pois, segundo Nietzsche, quem nos

acalenta nesta vida é a arte, ela é como que um lenitivo para nossas mazelas:

Aqui neste supremo perigo da vontade, aproxima-se como uma

feiticeira salvadora, com seus bálsamos, a arte; só ela é capaz de

converter aqueles pensamentos de nojo sobre o pavor e o absurdo da

existência em representações com as quais se pode viver

(NIETZSCHE, 2014, p.24- NT, §7)

Ocorre que, quanto mais nos entregamos ao domínio do impulso ordenador

apolíneo, mais suplantamos a dimensão estética residente e ainda sobrevivente em nós.

Logo, à medida que valorizamos apenas a parte racional de nossa existência, mais

suplantamos esta tendência natural da existência humana.

Nietzsche, discordando de Platão e Aristóteles, afirma que a arte não deve

ser entendida meramente como a tendência natural imitativa, presente em homens e

1 No intuito de facilitar a procura em outras edições, doravante utilizaremos a sigla do livro e a indicação

de parágrafos usualmente adotada na leitura comentada de Nietzsche.

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também em animais. Tal tendência é natural sim, contudo, não se limita a ser

meramente imitativa, pois que “a arte não é somente imitação da efetividade natural,

mas precisamente um suplemento metafísico da efetividade natural colocado ao lado

desta para sua superação” (NIETZSCHE, 2014, p.37- NT§18). Assim, afirmando ser

um lance audacioso, o filósofo assevera neste mesmo aforismo que “somente como um

fenômeno estético a existência e o mundo aparecem legitimados” (NIETZSCHE, 2014,

p.37- NT§18) e que por esse motivo não devemos compreender a estética apenas como

a representação do belo, já que o feio e o desarmonioso também aparecem representados

até mesmo como prazeroso e deleitável na experiência estética. Nos comentários ao

Nascimento da tragédia feitos pelo próprio Nietzsche em A vontade de Potência

(NIETZSCHE, p.44- VP§853, I), vemos que a arte é a mãe de todos os outros consolos

inventados pelo homem para suportar o peso da existência, posto que metafísica,

religião, moral, ciência são brotos da vontade de arte humana (NIETZSCHE, 2014,

p.44,VP,§853, I), sendo a arte a grande possibilitadora e estimulante da vida

(NIETZSCHE, 2014,p 45- VP,§853, II).

O que devemos retomar em nós é essa capacidade estética que há muito se

encontra suplantada e que por nossa própria displicência, colocamos a sensibilidade

estética e artística em segundo plano, em detrimento da razão. Para sermos melhores

professores, pais, amigos e quaisquer outras facetas que nos sejam necessárias nessa

existência é mister repararmos este sentido estético, sentido este fundamental para

tornar nossas relações sociais/existenciais mais agradáveis.

No segundo volume de Humano demasiado humano, Capítulo 1, intitulado

Miscelânea de opiniões e sentenças, o filósofo lança o parágrafo “Necessidade artística

de segunda ordem”, expressando a ideia de como nós nos contentamos com o refugo da

experiência estética, como nós a banalizamos, tomando-a, geralmente, por mera

distração, causando em nós um retrocesso existencial, que nos conduz mais facilmente

ao mal-estar, o mesmo mal-estar na civilização descrito 50 anos mais tarde por Freud.

Já no parágrafo 174, intitulado Contra a arte das obras de arte, temos um

excerto que sintetiza características e a importância da dimensão estética para a

existência humana:

A arte deve antes de tudo e em primeiro lugar embelezar a vida, portanto,

fazer com que nós próprios nos tornemos suportáveis e, se possível,

agradáveis uns aos outros: com essa tarefa em vista, ela nos modera e nos

refreia, cria formas de trato, vincula aos não educados as leis de convivência,

de limpeza, de cortesia, de falar, de calar a tempo certo. Em seguida, a arte

deve esconder ou reinterpretar tudo o que é feio, aquele lado penoso,

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apavorante e repugnante que, a todo esforço irrompe sempre de novo, de

acordo com a condição da natureza humana: deve proceder desse modo

especialmente em vista das paixões e das dores e angustias da alma e, no

inevitável ou insuperavelmente feio, fazer transparecer significativo

(NIETZSCHE, 2014, p.50)

Tais potencialidades geradas no leito da estética estão adormecidas e, por

que não dizer, anestesiadas em nós, competências que são indispensáveis não apenas

por transmutar ou reinterpretar o significado do feio, do repugnante, tornando-o

suportável, mas, principalmente, pela possibilidade de permitir que nos tornemos mais

agradáveis uns com os outros, fato que, como já dissemos, pode nos fazer não apenas

melhores professores, mas melhores seres humanos. Nesse processo de cristalização

racional da existência humana, deixamos de perceber e conceder o devido valor ao que

poderia ser “significativo” das experiências humanas; deixamos de apreciar e perceber o

que é significativo em nossas relações, passando a ser um detalhe, não raro, ignorado,

mas importante. Esses detalhes são as pistas que só a sensibilidade (estética) pode nos

permitir percebê-los. Por conseguinte, para que possamos perceber melhor os detalhes

que o mundo e os outros nos fornecem, dando vazão à capacidade estética que ainda

resiste em nós, de sentir o outro, temos que, segundo Nietzsche, harmonizar o conflito

instaurado, há tempos, entre o homem e a natureza, isto é, entre o apolíneo e o

dionisíaco, tendo como via principal a arte. A esse respeito Nietzsche cita Schiller e

Rousseau, num denso e brilhante recorte do parágrafo 3 de O nascimento da tragédia,

que menciona a dificuldade de encontrar tal estado de harmonia na sociedade:

E aqui é preciso que se diga que essa harmonia e mesmo unidade do homem

com a natureza, vista com tanta nostalgia pelo homem moderno, e que levou

Schiller a pôr em circulação o neologismo naïf (ingênuo), não é, em caso

nenhum, um estado tão simples, que resulta por si mesmo, como que

inevitável, que tivéssemos de encontrar no umbral de toda cultura como um

paraíso da humanidade: nisto só podia acreditar um tempo que tentava pensar

o Emílio de Rousseau também como artista e acreditava ter encontrado em

Homero esse Emílio artista educado no coração da natureza. (NIETZSCHE,

2014, p.22-23- NT, §3)

Esta “ingenuidade” em simbiose com o “sentimental” produz um estado de

unidade do espírito humano, estado este afirmado por Schiller em sua Poesia Ingênua e

sentimental de modo enfático (SCHILLER, 1991, p.52,60-61,81,84,88,95), coincide

com o estado de harmonia entre a o apolíneo e o dionisíaco, estado de equilíbrio,

possível, mas nada simples de se atingir, segundo Nietzsche.

Com efeito, esse debate acerca da conciliação entre o homem e a natureza e

da decorrente ausência do sentido dionisíaco na existência humana aparece em Schiller

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como pano de fundo do debate entre o clássico e o romântico, debate em voga neste

período e muito presente nas artes em geral, sobretudo na poesia. No seguinte recorte

entrevemos uma pista de Schiller acerca do desaparecimento do sentido dionisíaco no

atual panorama existencial humano:

Como é, sendo em tudo o que é a natureza, infinitamente suplantados

pelos antigos, podemos, justamente aqui homenagear a natureza em

um grau mais elevado, apegar-nos a ela com afeição e mesmo abraçar

o mundo inanimado com a mais calorosa sensação? Isso decorre de

que, entre nós, a natureza desapareceu da humanidade, e de que só a

encontramos em sua verdade fora desta, no mundo inanimado.

(SCHILLER, 1991, p.55)

Destarte, se quisermos reconquistar este sentido há muito suplantado, temos

que buscá-lo indo além do já estabelecido em nosso horizonte existencial, retomando o

equilíbrio e harmonização entre as potências em nós latentes e conflitantes, tendo por

via de acesso para tal, a sensibilidade estética. Nossa via de acesso à harmonização deve

ser a arte, pois que, além de libertar o homem e emancipá-lo de uma existência

cristalizada e engessada, a arte tem muito a nos ensinar, tal como preconiza o título do

aforismo 299 de A gaia ciência cognominado O que é necessário aprender dos artistas.

IV

Diante desses dois filósofos e seus respectivos contextos históricos, sociais,

políticos, dentre outros, poderíamos imaginar ser este um caminho puramente metódico

ou, ainda, um retalho historiográfico de dois autores. Contudo, a despeito das

aparências, creio que a justificativa mais fiel desta breve pesquisa está genuinamente

no exemplo de reflexão filosófica que estes dois pensadores nos legaram, exemplos

universais que nada tem de anacrônicos, pois que nos servem como bússolas, não

apenas em nossas expedições sacrificantes da docência, mas, em nosso processo de

constante construção como seres humanos. Logo, a relevância deste trabalho não reside

apenas na exposição e comparação de duas teorias aparentemente distantes, mas sim na

tentativa de seguir essa trilha que nos leva à redescoberta e a importância do plano

estético e sua aplicação em nosso fazer pedagógico, na tentativa de reparar a nobreza, há

muito perdida, de nossa sensibilidade.

Por outro lado, esse aporte, fornecido por ambas as teorias, deverá

representar para nós, uma espécie de rumo teórico, impedindo a queda ao plano

meramente prático, harmonizando, assim, uma carência de reflexões puras, carência

abrasada pelas cobranças da vida cotidiana e da rotina de sala de aula.

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Este razoável prelúdio nos serviu como uma apresentação do problema

cerne desta pesquisa. Por estarmos sempre conectados à arte, tanto teoricamente quanto

empiricamente, convimos chamar estas páginas introdutórias de prelúdio, não pela

simples sinonímia de introdução ou preâmbulo, mas justamente porque consideramos

estas páginas como o aquecimento de voz, ou afinação do violão, ou a música amena e

tranquila que nos prepara para a entrada na peça musical principal. Nosso interlúdio

seria a parte da música onde se intercalam as partes principais de uma longa canção ou

peça musical; aquela parte da música mais trabalhosa e fremente, na qual mais nos

demoraremos. O poslúdio, como se pode deduzir, é a composição musical que encerra a

peça, mas ainda tem o sentido daquele retorno da orquestra ou da banda após o concerto

principal. O que muito bem cabe como analogia ao protocolo acadêmico de

considerações finais (rito que não se vê, por exemplo, nas obras puras).

Sabendo disso, agora podemos dizer que nosso interlúdio, parte mais

delicada e sensível de nossa apresentação, está dividido em quatro principais partes, das

quais a primeira, intitulada I- De que estética estamos tratando?, terá sutis

características de um prelúdio, pois manterá ainda ritmo mais ameno e será uma espécie

de aquecimento, a fim de determinarmos o que se pode entender por estética, para, só

então, adentrarmos propriamente nas obras filosóficas de Schiller e Nietzsche, o que

ocorrerá na nossa próxima parte de estudo; chamada de II- Principais concepções do

campo estético e justaposições nas perspectivas de Schiller e Nietzsche em que

apresentaremos os principais conceitos relacionados às concepções estéticas dos

filósofos de modo a visualizarmos concepções singulares e justapostas que nos podem

ajudar compreender o que há de específico e comum entre os pensadores, bem como

tais definições se relacionam às suas concepções educacionais; o que nos dá ensejo à

terceira parte do estudo III- Aspectos da educação estética em Schiller e Nietzsche:

contribuições à prática educativa, que trata de textos e reflexões dos filósofos acerca

do processo de formação do ser humano e sua articulação com a estética e suas nuances.

Por fim, esta última parte de nosso interlúdio, tendo também leves notas de uma espécie

de ritornello reflexivo, pois que tentaremos trazer o refrão ou o riff dos conceitos

estudados, mas agora com tentames de projetá-los em nossa prática, convidando não só

Apolo, mas também Dioniso para o nosso convívio; ou supondo que a beleza liberta

como diz Schiller, dentre outras tentativas modestas de refletir sobre as perspectivas

estudadas.

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I- DE QUE ESTÉTICA ESTAMOS TRATANDO?

Às portas da virada do ano, numa conversa

informal em frente à escola que trabalhava, o jovem professor

foi inquirido por seu diretor a respeito de seus planos para o ano

vindouro:

– E aí, professor, já fez promessas e planos para a

virada do ano? E, rindo amigavelmente, completou fazendo

alusão a sua compleição física – Pelo menos, prometer que vai

fazer regime para emagrecer, tu não vais precisar fazer!

– É verdade! Nisso tenho que planejar o inverso –

Respondeu o jovem professor, rindo mais por amizade que por

contentamento, e aproveitando a oportunidade para suscitar com

antecedência um pedido para o próximo ano:

– A propósito, que bom que o senhor mencionou

os planos para o próximo ano. Tenho que lhe avisar que este

próximo ano vou começar a me preparar para fazer o mestrado

e que, portanto, vou pedir para me ausentar algumas vezes para

estudar e fazer as provas.

– Ah, que legal, professor! Pode contar comigo.

Apenas me avise, ou me lembre, quando estiver próximo destas

provas, para que eu possa organizar os horários de aula.

– E será onde esse mestrado, professor?

– Estou pesquisando as possibilidades ainda, mas

posso dizer que será na área da estética, que a área que me atrai.

Neste momento, antes mesmo do jovem professor

terminar a sentença, o diretor parece repentinamente se

interessar pela conversa, levantando o rosto e fitando-o,

demonstrando incontida incredulidade não apenas no olhar

como na linguagem corporal, coçando sua barba grisalha e

exclamando em tom de pergunta.

– É sério, professor!? Estética!?

Ingenuamente, e sem ainda ter compreendido a

repentina reação mista de surpresa e incredulidade do diretor, o

professor explica:

– Sim, sim. Estética. Inclusive encontrei uma

instituição em Ouro Preto que oferece um programa de

mestrado especificamente em estética.

– Mas como seria esse teu mestrado? Tu irás

estudar sobre cabelo, manicure, pedicure? – perguntou o diretor,

já com um leve sorriso que transparecia a disfarçada jocosidade.

Com essas perguntas, o professor percebeu que o

diretor, no alto de sua meia idade, agora preocupado com

procedimentos administrativos, carga horária docente, prazos e

pilhas de documentos para assinar e carimbar, não fazia ideia do

que aquele jovem e esguio professor estava falando com tanta

seriedade. Só agora tinha ficado clara a reação tão pasma e

incrédula do diretor, diante da revelação do interesse pela

estética feita pelo professor. (Texto autoral)

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I.1 Estéticas: percursos e percalços

Muitos termos e expressões cunhados em um determinado campo de

conhecimento conseguem se destacar por sua amplitude e compreensão, indo para além

das fronteiras da área de conhecimento que o originou, propagando-se e, por vezes,

ganhando o apreço popular. Contudo, em várias destas ocorrências, sua popularização

leva o termo ou expressão a percorrer caminhos diversificados de sua utilização

original, gerando novas interpretações e compreensões, pouco fundadas, mal fundadas

ou, mesmo, infundadas, como no caso do emprego popular do famoso “amor

platônico”, utilizado para se referir a um amor impossível. Nesta mesma linha de

compreensões pouco fundadas, temos a famosa máxima de Maquiavel onde “Os fins

justificam os meios”, compreendida como o aval para o vício e a corrupção, o a priori

kantiano tomado popularmente como mero conectivo de sentenças, ou, ainda, a

atribuição de “bom selvagem” ao estado de natureza proposto por Rousseau, dentre uma

infinidade de outras expressões popularizadas.

Em outros casos essas expressões se modificam ainda no seio da própria

área em que foi gerada, a fim de ser servir ao propósito explicativo de quem a utiliza,

como é o caso do termo “dialética”, que desde Parmênides até Adorno recebeu inúmeras

compreensões correlatas, obviamente, mas diversas.

Há ainda alguns casos intrigantes onde o termo inicia sua trajetória com um

sentido determinado e plausível, mesmo do ponto de vista etimológico, e por uma má

compreensão o termo acaba por revelar um novo sentido aprimorado e justificado como

válido em suas utilizações futuras, tal como vemos no ocorrido com o termo

“Ideologia”. Quando utilizado inicialmente por Destutt de Tracy, o termo “Ideologia” se

referia a ciência das origens das ideias (GORENDER, 2001, p. XXI). O intrigante no

percurso do termo ideologia ocorre na mudança de rumo operada, intencionalmente e

por questões políticas, por Napoleão Bonaparte, ao usar o termo em um sentido não-

filosófico e pejorativo, popularizando-o desta forma. Mas intrigante ainda, foi a

expansão dada ao termo por Marx, corroborando também o sentido negativo tomado

anteriormente ao conceber um dos vários aspetos da ideologia como “forma ilusória” ou

como “desnaturação das ideias” em seu A Ideologia alemã.

Todos estes exemplos e termos são formidáveis, pela apresentação do

dinamismo da língua que, a despeito do que possa parecer, é viva. Entretanto, ocorre um

caso que reúne todas as formas anteriores em uma só, gerando confusão tanto no âmbito

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de sua aplicação comum quanto no âmbito filosófico, por conta, justamente, de sua

plasticidade e elasticidade de aplicações e compreensões. Estamos falando aqui do

termo “estética”.

Logo, imagine-se o primeiro contato, de estudantes ou não, com o termo

estética e qual a primeira coisa que lhes vêm à cabeça ao ouvirem a palavra.

Certamente, na maioria dos acasos, o termo é avaliado pela apreensão comum,

relacionado a tratamentos e procedimentos de cuidado com a beleza do corpo e com a

aparência, evocando imagens de centros de beleza, clínicas de estéticas, o que, de

alguma sorte, não diverge completamente dos sentidos artístico e filosófico do termo.

Porém tal acepção do termo está restrita ao saber comum, sendo interessante partirmos

delas e irmos além, na compreensão do termo.

Imagine agora a reação de um professor, desavisado em relação das

aplicações do termo em questão, ao ouvir-nos dizer, aqui mesmo nesta pesquisa, que

para sua prática pedagógica ir muito além da mera instrução e atingir o âmbito da

formação será necessário, antes de tudo, procurarmos os conselhos de um esteticista.

Quão confuso saber que, para desenvolvermos nossa plenitude tanto como professor

quanto como ser humano, é necessário irmos numa clínica de estética, num salão de

beleza cuidar da aparência.

Não tomemos aqui tão seriamente os pequenos exemplos das modificações

que passaram alguns termos por nós conhecidos. A função didática desse epítome é

apenas mostrar que todas essas imagens ilustram o fato de que, por vezes, tomamos as

palavras e as coisas em seu sentido corriqueiro, desatentos em buscar outros

significados já perdidos, esquecidos ou soterrados, bem como novos sentidos. Ocorre

que, se não nos atentarmos, somos tragados pela cotidianidade e esquecemos de nos

espantar com as coisas e admirá-las como estrangeiros, não paramos mais para admirar

aquela praça em que transitamos todos os dias, pois estamos com os sentidos embotados

para os cheiros e sabores, os sons e cores que nos cercam. E por isso é tão importante o

conselho do esteticista aqui, pois com ele apresentamos a resistência das forças

pulsantes do humano, já que o esteticismo vem a ser inversão de valores, e retomada

dos valores estéticos como orientadores do fazer humano, tal como nos esclarece

Benedito Nunes em sua Introdução à Filosofia da Arte, ao explicar que “de um modo

geral, o esteticismo, traduzindo opção oposta à de Platão e Tolstoi, é a afirmação da

superioridade dos valores estéticos e do caráter excepcional e autossuficiente da arte”

(NUNES, 2008, p.86).

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Os conselhos de um esteticista como Nietzsche, por exemplo, não nos vão

ajudar a cultivar um belo cabelo ou um longo bigode, mas nos ajudarão em nossa

capacidade de repensar o mundo e, em nosso caso, nossas práticas educacionais,

mostrando perspectivas ignoradas e soterradas não apenas pela cotidianidade, como

também pela tradição racionalizante, que nos fazem esquecer e, muitas vezes, nos

cerceiam de sentir os que estão ao nosso derredor, sejam eles nossos alunos ou não.

Assim, o esteticismo de Nietzsche, diz Benedito Nunes, é a justificação estética de

nossa existência, já que, para o pensador alemão,

Os valores estéticos são superiores aos demais. A arte situa-se acima

do bem e do mal e é a única atividade através do qual o homem,

manifestando a sua vontade de poder, reestabelecendo seu contato

com os instintos agressivos reprimidos pela educação moral, pode

criar um sentido para a existência. Não importando que a criação

artística se afaste da realidade. As suas ilusões são mais humanas que

as exigências morais e mais autênticas do que os conceitos frios e

abstratos da ciência e da filosofia. (NUNES, 2008, p.86)

Desfazendo o susto inicial que causaríamos num professor desavisado,

percorreremos as perspectivas filosóficas do conceito de estética de Schiller e Nietzsche

como uma tentativa de visualizar um possível caminho para exercer este ponto de

resistência contra a tendência apolínea, sendo importante, para tanto, compreendermos

de que estéticas estamos falando e que caminhos diversos tomou o termo, antes de ser

associado a salões de beleza e afins, associações já mencionadas anteriormente.

Como vários conceitos nascidos e empregados na filosofia, o termo estética

é grego de berço, donde em qualquer dicionário, seja de grego ou de filosofia, tal termo

está associado originalmente a aisthesis, que remete às sensações e percepções

sensoriais2. Tal definição não explica, ainda, sua relação com a beleza, aparência, forma

exterior; não obstante, nos dá uma pista já que, é pela via dos sentidos que inicialmente

percebemos e sentimos os efeitos mais externos do belo e do aprazível, para

paulatinamente compreendermos que o senso estético vai bem além dos sentidos. Fato

este percebido pelo espírito acurado da Hélade, porquanto, percebendo a importância e

extensão do senso estético, o povo grego, por sua genialidade e sensibilidade, tratou de

incorporar tal concepção em sua estrutura de formação e perfeição humana, arcabouço

traduzido pela máxima do Kalokagathia, o ideal de associação entre o belo, o bom, o

bem, e, de modo colateral, a verdade.

2 Vide verbete “Estética” em Dicionário Básico de Filosofia (JAPIASSU; MARCONDES, 2001) e

Dicionário de Filosofia (ABBAGNANO, 1998).

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Em seu interessante tratado Historia de la Estetica (1961), Raymond Bayer

inicia sua pesquisa apresentando as primeiras incidências da utilização da palavra belo

(kallos) nas obras dos poetas gregos e como este conceito foi gradativamente assimilado

e incorporado no ideal de formação humana (paidéia) do povo grego. Segundo Bayer, o

primeiro a vislumbrar as primeiras silhuetas do ideal de kalokagathia, foi Hesíodo ao

perceber a associação entre o bem e o belo, mas, mais que isso, seus pontos de

distinções:

Hesíodo entrevió la relación entre lo bello y el bien. En él, la primera

concepción del bien se refiere a la calidad útil: tales días son buenos

para la siembra, o propicios para el nacimientos de hijos varones; la

esperanza y el pudor son buenos para los indigentes; tal instrumento

es bueno para hacer tal cosa. Hesíodo adivinó igualmente una de las

diferencias mas radicales entre la belleza y el bien: lo útil y lo

mediato. Toda idea de utilidad presupone un medio (un objeto) y un

fin, es decir, dos elementos. La belleza no presupone estos dos

elementos: es un acto único, total y global. Es la primera antinomia

entre lo bello y lo bueno. (BAYER, 1980, p. 23 - grifo nosso)

O bom pode gerar o belo, o aprazível, mas nem sempre o belo se preocupa

em se converter em bom ou em bem. O bem sempre é mediato, isto é, um meio para um

determinado fim, mas nem sempre, ou quase nunca, o belo se preocupa com o fim, do

mesmo modo que o bem. Logo, se existe uma antinomia tão grande entre tais princípios,

qual a necessidade de torná-los um ideal conjunto e sintetizá-los na mesma fórmula para

compor a formação humana de um povo?

Tal objeção é fundamental e irá retornar de quando em quando nas margens

desta pesquisa, já que, de alguma forma ela orienta o problema da atuação da dimensão

estética na educação. Podemos nos objetar, ainda, sobre como, ao falar do percurso do

termo estética, acabamos por cair nas proximidades do conceito de Kalokagathia e qual

a importância disso para o foco da pesquisa?

Os gregos, com sua inexplicável sabedoria, conseguiram perceber que na

formação humana, mais que um mero auxílio, é indispensável o concurso da dimensão

estética, já que só por meio desta temos a capacidade de atingir o conhecimento, e as

coisas que nos cercam, como um todo, só a dimensão estética nos possibilita esta visão

global. Porém, observemos o seguinte: falamos de uma dimensão estética na paidéia

helênica, no entanto, os próprios gregos não usavam o termo estética para falar de tal

dimensão e até o advento da filosofia socrática, não tinham teorizado francamente sobre

a questão. Logo, mencionamos o conceito de Kalokagathia aqui para mostrarmos a

amplitude plástica e a influência deste termo tão difuso que é a estética, aplicado mesmo

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antes de ter sido conceituado, e mostrar também que o que se entende por estética hoje,

foi aplicado pelos gregos nos ideais de formação humana com outros termos.

Ao que parece, ainda hoje a estética como dimensão do humano é percebida

por todos nós. Porém, devido nossa formação ser voltada à racionalização-

especialização e sua definição ser tão elástica ao ponto de, por vezes ser lacônica,

preferimos não nos preocuparmos com tais conceituações, ou preferimos, por ser mais

fácil, deixar cada coisa em sua caixa separada: belo no lugar do belo, arte no lugar da

arte, sensibilidade no lugar da sensibilidade, e estética no salão de beleza.

Como já dissemos no início deste tópico, não são tão raras na história da

filosofia as confusões com termos que são criados, ou inventados para algum fim, mas

que depois tomam um caminho que anteriormente nem tinham sido empregado pelo

criador, tomando proporções maiores. Exemplo disso, é o famoso conto que circula nos

cursos de história da filosofia da criação do termo “metafísica”, como sendo os textos

que ficavam nas estantes que estavam “além” ou “depois” das estantes dos textos de

física, na biblioteca particular de Aristóteles. Portanto, não podemos recriminar a

banalização do termo estética, já que os próprios filósofos colaboraram para instaurar

esta confusão, tal como observou o mais velho dos irmãos Schlegel, na Introdução aos

seus Cursos sobre Literatura Bela e Arte, ao ponderar que o termo “estética”, após ter

sido inventado por Alexander Baumgarten, caiu no gosto do público que o filósofo

chama de “estrangeiro”, isto é, caiu no gosto popular de várias nações e tomou variados

caminhos e definições mundo afora (SCHLEGEL, 2014, p.22).

Assim, com Alexander Baumgartem, por volta de 1750, se inicia o nó

através do qual o termo aisthesis vem a se enlaçar e se relacionar com o belo, com a

arte, com a sensibilidade e, mais tardiamente, com as clínicas de estética. Ainda

segundo August Schlegel, o mais velho dos irmãos Schlegel, “Baumgartem sem dúvida

tem o mérito de ter feito, pela primeira vez, o esforço consciente (embora fracassado) de

ter estabelecido de modo pleno uma teoria filosófica das artes” (SCHLEGEL, 2014,

p.24), estabelecendo uma doutrina que se dirigia à interpretação da beleza e da arte

mediante o relacionamento destas com as faculdades de conhecimento proporcionadas

pelos sentidos (SCHLEGEL, 2014, p.22). E, relacionando-se diretamente com nossa

sensibilidade, a beleza e a arte afetavam não apenas nossos sentidos, mas nossos

sentimentos, nossa imaginação e nossas emoções (NUNES, 2008, p.12). Provém daqui,

portanto, uma das origens de tantas atribuições a um mesmo termo e seu entrelaçamento

com diversos sinônimos como sensível, sensibilidade, sentimento, belo, aparência, arte,

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disciplina da filosofia, dentre outros que, parcialmente ou lateralmente, apresentam um

predicado ou uma qualidade da estética.

Retomando o raciocínio de Schlegel, vemos que essa virada no conceito de

estética, perpetrada por Baumgarten, deu um novo fôlego e direção às pesquisas na

menosprezada área da Filosofia da Arte, mas que, entretanto, trouxe consigo uma

enxurrada de indefinições, pois que, segundo Schlegel,

Sem dúvida esse termo provocou grandes estragos: o estético tornou-

se uma verdadeira qualitas occulta e por trás da palavra

incompreensível puderam ocultar-se tantas afirmações que não dizem

nada e tantos círculos viciosos que, de outra maneira, certamente

teriam sido notados em seu ponto fraco. (SCHLEGEL, 2014, p.23)

Esse caráter de qualitas occulta, diz respeito a algo que não admite

explicação simples, algo insondável e sem uma definição distinta e resoluta, como um

buraco negro que absorve e assimila tudo que dele se aproxima. Por um lado, tal

afirmação é justificável, já que estamos diante de uma definição que não se deixa

facilmente definir e permite várias afirmações sobre si (sendo aqui intencionalmente

tautológico). Por outro lado, é improfícua quando afirma que, por não se ter uma

imagem e definição clara e distinta, é fracassada ou vazia. Não significa isto, uma

defesa de Baumgarten ou de suas acepções de estética (isto não é necessário), mas sim a

reflexão do fato de que, inevitavelmente, a filosofia deve estar disposta a lidar com

conceitos indistintos e indefinidos, caso contrário nenhum papel mais lhe restará no

mundo, já que o papel de trabalhar com conceitos distintos e resolutos pertence agora à

ciência. Aceitar isso nos permite, por extensão de sentido, aceitar também que

realmente não se trata aqui, nesta primeira parte desse estudo, de estabelecer uma

definição segura e bem delimitada de estética, pelo contrário: a energia da estética está

na plasticidade. Entretanto, é fundamental para que possamos estabelecer uma

compreensão mínima, eleger um ponto fundamental e apontar nortes compreensivos, já

que disso não se pode fugir tão facilmente.

Tomando emprestado o procedimento feito por Thomas Kuhn ao definir a

estrutura das revoluções na ciência, utilizando, para tanto, conceito de paradigma de

modo brilhantemente elástico, assumimos que aqui trataremos a estética, na maioria das

vezes, como uma dimensão da essência humana, como uma parte indelével do ser

humano, uma dimensão que compreende os vários significados atribuídos a ela e que se

estende a todo e quaisquer fazeres humanos. Contudo, nos permitiremos, outrossim,

espraiar o conceito de estética às suas definições orbitárias, quando necessário. Deste

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modo, para entendermos essas manifestações da estética, é importante passarmos

rapidamente por entre algumas considerações e relações entre a estética e seus

principais circunstantes, tais como o belo, a arte, sensibilidade; considerações que serão

relevantes para compor a trilha que iremos seguir doravante.

I.2 Estendendo a compreensão de belo

Mesmo sem fazermos quaisquer considerações filosóficas sobre o assunto,

parece evidente que exista uma correlação entre o que é bonito e a arte, ou entre a arte e

o que é bonito. Entretanto esta correlação oculta aspectos que não são tão evidentes

assim, pois, ainda fora do terreno arenoso da filosofia, se nos esforçarmos um pouco

conseguiremos perceber que nem tudo que é belo pertence à arte, como o arco-íris, por

exemplo, e, inversamente, nem tudo que é arte ou artístico é necessariamente belo ou

expressão convencional de beleza, como o quadro cubista Guernica de Picasso, por

exemplo. Com efeito, reside nessa correlação entre arte e beleza um dos grandes

equívocos que pode nos levar a sérias contradições, já que, se consideramos que a

formidável pintura Guernica faz parte de uma das mais notáveis formas de arte,

assumimos seu caráter de bela ao assentá-la no âmbito das Belas-artes, mesmo que a

intenção de Picasso não tenha sido suscitar a beleza em sua acepção mais tradicional.

Deste modo, o conceito de estética pode ajudar a dirimir a mixórdia entre

arte e beleza, por açambarcar ambos os conceitos. Contudo, agora já nos encaminhando

à senda filosófica, se ainda continuássemos considerando que arte e beleza são gêmeas,

estaríamos diante do dilema de definir se a área da estética na filosofia seria o estudo do

belo ou o estudo da arte. Apontando uma resposta para o dilema, Benedito Nunes

explica que, inicialmente, a proposta de Baumgarten, e de pensadores posteriores que

ampliaram o estudo da estética, era de estudar a correlação entre ambos, beleza e arte:

A perspectiva inicial da Estética, definida pelo fundador dessa

disciplina, Baumgarten, e consolidada por Immanuel Kant, desdobra-

se, pois, em muitas perspectivas parciais interligadas: filosofia do

Belo, estudo da experiência estética, investigação da estrutura das

obras de arte – que são objetos dessa experiência – e conhecimento

dos valores a que esses mesmos objetos se acham ligados. Assim, na

acepção ampla para a qual todas essas correntes confluem, a Estética é

tanto filosofia do Belo como filosofia da Arte (NUNES, 2008, p.15)

Todas essas características da estética ligadas ao belo, à arte e, como diz o

subtítulo de um dos estudos de Hegel na área, ao estudo belo na arte, são as primeiras

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motivações do estudo filosófico da disciplina que, outrora secundária, se tornará a partir

de então um dos principais eixos da filosofia, juntamente com a Gnoseologia (teoria do

conhecimento, epistemologia) e com a ética (e seus adjuntos moral e política). Com

isso, o estabelecimento de uma estética como disciplina filosófica, passa a ser condição

sine qua non para o estabelecimento de uma teoria filosófica em sua completude.

Apenas a título de curiosidade, podemos deduzir que, justamente dessa condição de

completude, isto é, o estabelecimento destes principais eixos da filosofia, provém o

pudor da maioria dos bacharéis em filosofia em se chamar de filósofos, fato que não

ocorre em ouras áreas do conhecimento.

Ainda envolvidos na trama causada pelo conceito de arte e beleza, fica claro

que ambos os estudos, da arte e da beleza, mesmo estando correlacionados, ou não,

estão compreendidos no âmbito da estética, com a exceção de não participarem da

estética de modo direto, apenas nos casos em que se trata de um estudo meramente

técnico (SCHLEGEL, 2014, p.24), como a composição química dos pigmentos das

tintas para a pintura ou o cálculo estrutural e a topografia na Arquitetura, por exemplo.

Recorrendo antecipadamente a um dos protagonistas desta pesquisa, vemos que Schiller

menciona e elucida esta diferença em uma das séries cartas, chamadas em sua

compilação de Kallias: ou Sobre a Beleza (1847), bem como nas cartas que futuramente

vão gerar sua Educação Estética do Homem e que produziram sua outra compilação

chamada no Brasil de Cultura Estética e Liberdade (1793)3, onde se explica que, “se se

dissocia o técnico do estético e se separa do conceito da espécie (da bela-arte) o que diz

respeito apenas ao conceito do gênero (da arte pura e simplesmente), está-se então no

caminho correto para a descoberta das regras da beleza” (SCHILLER, 2009, p.162),

deixando claro, assim, que não se pode confundir as regras técnicas com as regras da

beleza ou, mais amplamente, com as regras estéticas.

Ao evocarmos, no primeiro parágrafo deste tópico, o quadro Guernica, obra

prima de Pablo Picasso, e, mesmo no recorte supracitado de Schiller, mencionamos en

passant o dúbio termo que designa um conjunto principal de artes clássicas que, com a

invenção do cinema, recebeu sua sétima representante: as Belas-artes. Com efeito, o

problema suscitado pelo termo não diz respeito meramente ao fato de ser restritivo e

deixar de considerar como belas uma infinidade de formas de arte, mas diz respeito,

3 Trata-se aqui da compilação das cartas ao príncipe Augustenburg, que versa sobre tema da estética e da

formação pela estética, cartas que ensejaram A educação estética do homem, sugerindo, inclusive, a

forma intencional de correspondência adotada por Schiller para esta obra.

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mormente, ao problema que gera ao tratar e considerar como produto da arte apenas o

belo, produzindo um termo, desastrado e, de acordo com Schlegel (SCHLEGEL, 2014,

p.21), desajeitado por ser uma transposição impensada da expressão belles lettres, já

respeitada, reconhecida e amplamente usada no século XVIII (BAYER, 1980, p.251).

Após criticar a concepção de doutrina da arte como ciência das belas-artes, tal problema

é posto de modo insigne por August Schlegel, nos seguintes termos:

Mas, mesmo diante da expressão belas-artes surgem dúvidas. De um

lado supõem-se que as artes não devem e nem podem produzir outra

coisa senão o belo, de modo que esse é o alvo e a essência da arte

mesma, sendo o adjetivo menos supérfluo e tautológico. Ou, de outro

lado, vê-se ainda como algo problemático o fato de que as duas

esferas, a do belo e a da arte, estarem ou não separadas uma da outra,

o fato de se interpenetrarem ou de se recobrirem inteiramente: assim,

por meio do acréscimo ocorre uma antecipação ao percurso da

investigação e ultrapassa-se o fato puro que está dado na existência da

arte (SCHLEGEL, 2014, p.22).

Tal questão, apontada por Schlegel, será fundamental para ampliarmos as

definições e a correlação da estética com a arte, pois, como vemos no excerto acima, a

arte não tem a possibilidade de produzir somente o belo, a beleza, o bonito, o agradável,

mas, em verdade, tem a plena capacidade de produzir o assustador, o terrível, o

indizível, o feio, dentre outras manifestação que não se enquadram no conceito de belo e

que, por vezes, não se deixam nem mesmo enquadrar tão facilmente na pequenez das

classificações. Com efeito, a despeito de parecer atual, essa percepção do feio e do

grotesco como partes inalienáveis do fazer artístico e, mais amplamente do processo

estético, já remonta dos apontamentos de Aristóteles acerca da arte em sua Poética.

Destoando da interpretação platônica da arte, para Aristóteles as artes

imitativas constituem uma característica própria do ser, que se empenham a imitar tanto

o belo e o virtuoso, quanto o grotesco e o vicioso, isso porque nos comprazemos com o

imitado, seja ele belo ou terrificante, ao transformá-lo em uma experiência verossímil,

isto é, possível de ser vivida pela arte,

Sinal disso é o que acontece na experiência: nós contemplamos com

prazer as imagens mais exatas daquelas mesmas coisas que olhamos

com repugnância, por exemplo, as representações de animais ferozes e

de cadáveres. Causa é que o aprender não só muito apraz aos

filósofos, mas também, igualmente, aos demais homens, se bem que

menos participem dele. Efetivamente, tal é o motivo porque se

deleitam perante as imagens: olhando-as, aprendem e discorrem sobre

cada uma delas, e dirão, por exemplo, “esse é tal” (Poética,1448b, 9-

17).

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Ousando levemente na explicação de Aristóteles, diríamos que essa

experiência mencionada, mais que uma experiência comum e corriqueira do cotidiano

humano ou uma experiência artística, é, na verdade, a experiência estética, que não está

limitada a uma única manifestação ou à finalidade de ter uma função meramente

instrutiva ou informativa. Por isso, no capítulo XIV da Poética, que trata do trágico, do

monstruoso, da catástrofe, Aristóteles vai afirmar que tanto o terror quanto a piedade,

fazem parte do espetáculo (Poét, 1453b, 1-13), mas que também, por meio do feio e do

disforme, pode apresentar o cômico e o hilário, e por isso a máscara do cômico é

representada de maneira feia e disforme no teatro (Poét, 1449a, 34-36), demonstrando

que não apenas no bonito no perfeito reside a experiência estética.

Essa inesperada virada na construção da beleza e do fazer artístico,

apresentada inicialmente por Aristóteles, pressente o conceito de sublime,

proporcionando, com isso, a ampliação necessária em tais conceitos, nos ajudando a

expandir mais ainda os horizontes do que aqui chamamos de estética e apresentando

mais possibilidades de compreensão do termo, não só pela via da beleza no sentido

estrito, da harmonia, da simetria. Tal ampliação nos ajudará a entender de modo muito

mais amplo o que Schiller compreende por belo, e a relação deste com o sublime, bem

como o que Nietzsche entende por belo, e a relação deste com o dionisíaco.

É fundamental, portanto, a compreensão do belo não apenas pela ótica da

beleza como proporção, razão (ratio), medida, padrão, beleza como perfeição, mas,

outrossim, como abertura ao deleitável, ao que causa prazer e satisfação, ao que não

prende e liberta para a experiência estética, mesmo que se apresente sob a forma do

sublime assustador, do imperfeito ou inclassificável. Por conseguinte, tal experiência,

que é a mais rica e formadora do gênero humano, não deve estar presa a concepções que

empobrecem e precarizam sua abrangência.

Por fim, o objetivo deste pequeno preâmbulo sobre arte e beleza, justifica-

se, em primeiro lugar, pela necessidade de ampliarmos minimamente a concepção do

que pode ser beleza e, em segundo lugar, pelo fato de ressaltar que estamos falando não

de uma beleza ideal e perfeita, no sentido mais platônico, mas de uma beleza que está

pautada no prazer que tal coisa pode nos causar, mesmo que sua fonte seja a feiura, o

imperfeito, o banal. Não é a meta aqui justificar uma relativização irresponsável de

concepções do que é belo e do que é feio, tampouco para justificar ou se aplicar na

compreensão aprofundada de ditados como “quem ama o feio, bonito lhe parece” ou

“gosto não se discute”, mas sim de um alargamento de concepções, ampliação

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necessária por carência de nossa própria linguagem humana em compreender e

expressar este entre-lugar, localizado na interseção belo-feio. Não que aqui estejamos

empenhados em desenvolver um novo signo de identificação, mas já o fato de sentirmos

que há um terceiro espaço nesse trânsito estético entre o belo e o feio, e que tais estão

sim atrelados e são constituintes legítimos da experiência estética, serve-nos como

convite ao ingresso esclarecedor nas teorias estéticas de Schiller e Nietzsche.

Veremos, a seguir, que mais uma distinção é importante para essa abertura

ao estético. Uma distinção e abertura necessária em prol da compreensão dos múltiplos

sentidos gerados também pela plasticidade do termo estética: a abertura à sensibilidade.

I.3 Estética e sensibilidade

Vimos que, a Estética, como disciplina, surge com a intenção de estudar os

efeitos do belo no ser humano. No entanto, Benedito Nunes esclarece que “o que

caracteriza a Estética não é simplesmente o estudo do belo” (NUNES, 2008, p.11) e que

a originalidade desta disciplina filosófica, está em associar a compreensão do belo a

outros elementos como a arte, a natureza, o feio, o sublime, os sentimentos e sentidos.

Estes últimos são o ponto interessante desta nova matéria filosófica, já que, se na esteira

da tradição platônica os sentidos são tidos como figurantes deixados em último plano,

daqui em diante eles passam a ser importantes coadjuvantes, uma vez que o próprio

nome da disciplina está ligado diretamente aos sentidos e que estes, por seu turno, são

considerados fundamentais na compreensão do belo por serem os canais pelos quais são

derramados no ser humano os efeitos criados pelas experiências estéticas:

Dois sentidos, a vista e o ouvido, desemprenham função primordial na

produção de tal deleite. O Belo, que não reside nas impressões visuais

e auditivas, manifesta-se, principalmente, por intermédio delas, a uma

espécie de visão interior, da qual, na primeira metade do século XVIII,

Shaftesbury (1671-1713) falava. Mais próxima do sentimento do que

da Razão, essa visão interior constitui, para Addison (1672-1719),

uma faculdade inata, específica, que é privilégio da espécie e que

permite ao homem deleitar-se com o reconhecimento do Belo. Esse

deleite não se compara com qualquer outro: é um prazer do espírito,

em função do qual as coisas naturais nos agradam ou desagradam

(NUNES, 2008,11-12).

Mais que uma “visão interior”, arriscaríamos dizer que o senso estético é um

conglomerado de sentidos interiores, que trabalham em sinergia com a razão para

construir as sensações de agrado ou desagrado. Outro pormenor interessante de se notar

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na menção acima, diz respeito à afinidade do belo – entendido por nós como estético –

mais com os sentimentos do que com a própria Razão que tem como função interpretar

os dados sensíveis e devolvê-los em forma de sentimento de agrado, desagrado,

indiferença, ou qualquer outro tipo de afecção.

Com efeito, neste tipo de interpretação do termo estética, isto é, como sentir,

geralmente leva-se em consideração mais os nossos cinco sentidos, do que o seu

correlato mais obscuro e difícil de ser decifrado, que é o sentimento. Obscuro e

indecifrável, na medida em que, se com relação ao agradável e ao desagradável e suas

interações com nossos cinco sentidos, procuramos imediatamente nos aproximar do que

nos apraz e nos afastar do que nos fere o prazer e desagrada os sentidos, fato que não

ocorre da mesma forma com os sentimentos que, por vezes, são difusos, indecifráveis e

recalcitrantes em continuar amando o que nos desagrada e o que nos fere. Por ora, este

ainda não é o ponto. O ponto principal desta menção à confusão entre sentidos e

sentimentos, no bojo do que se chama sentir, diz respeito ao fato de que, no leque de

significados que o termo estética carrega consigo, às menções à estética como uma

sensibilidade da ordem dos sentimentos são cada vez suplantadas pelas outras

interpretações, pois que, quando se fala em estética suscita-se primeiramente uma

infinidade de outros significados, sendo o estético como sentimento o último deles a ser

lembrado.

Em relação à compreensão da palavra “sensível”, ocorre um fato

interessante de ser notado, que consiste numa aparente contradição entre a interpretação

imediata de quem já estudou um pouco da filosofia em relação a quem teve pouco ou

nenhum contato. Este fato é semelhante ao que foi narrado anteriormente acerca do

primeiro contato com o termo estética, mas se processa, agora, como termo “sensível”.

Sempre que se inicia o estudo curricular da Filosofia no primeiro ano do ensino médio é

necessário passar a vista pela filosofia antiga dos gregos. Ao passamos pelos fisiólogos,

por Sócrates, chegamos a Platão e sua teoria das formas, tendo que explicar a oposição

entre os planos Inteligível e Sensível. E aqui inicia a confusão dos iniciantes na filosofia

em relação ao termo “sensível”, envolvendo respostas das mais criativas e hilárias à

pergunta “o que Platão entende por sensível?”, respostas que envolvem “um mundo

onde todas as pessoas devem ser sensíveis e cuidar umas das outras”, o fato “Platão ser

uma pessoa sensível e daí vem a expressão ‘amor platônico’”, dentre outras respostas. O

interessante observado nesse fato não é o seu lado espirituoso, mas a percepção de que

aquele significado de sensível como relacionado aos sentimentos, ainda é forte no saber

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cotidiano, mas já um tanto apagado a quem estuda a filosofia, justamente pelo medo que

se tem em cruzar as linhas entre a doxa e a episteme. Obviamente, não estamos fazendo

a defesa do empobrecimento dos significados e das palavras, mas justamente o inverso,

pois que, se perguntarmos aos graduandos e estudantes mais assíduos de filosofia sobre

“o que se entende por sensível?”, a primeira associação que estes fazem é com os

sentidos, com a empiria, com o concreto, sendo que, talvez, a associação como os

sentimentos será a ser feita – isso quando há –, marcando assim o temor de borrar os

limites com o senso comum.

Novamente, ambos significados de estética, como sentidos e como

sensibilidade, são válidos e devem ser associados ao que se entende por “sentir”. Não

obstante, é bem evidente que não se pode suplantar o significado de um, em detrimento

do significado de outro, sobretudo nos casos em que o suplantado é o esteio de todos os

demais significados.

Schiller, em seus Fragmentos das preleções sobre Estética (1792-93),

apresenta didaticamente, por se tratar de seus apontamentos de aula, a diferença entre

sensação e sentimento explicando que o que entendemos por sensação, ou sentir, se

subdivide em duas acepções: “a sensação que é objetiva pode ser chamada de pura e

simplesmente de sensação; a que é subjetiva, porém, sentimento” (SCHILLER, 2003,

p.41), confirmando que a sensação faz parte da ordem dos sentidos mais externos, os

canais que informam ao sujeito as impressões mais brutas do mundo ao nosso redor; e

que os sentimentos, por seu turno, fazem parte das coisas da ordem do sujeito, isto é, de

uma dimensão interna do ser humano e suas impressões mais buriladas acerca do

mundo ao nosso redor. N’A educação estética do homem, Schiller vai apresentar três

impulsos fundamentais da natureza humana, um destes impulsos geratrizes de nossa

natureza é o impulso sensível, que na ordem de apresentação e de manifestação no

humano, proposta por Schiller, aprece-nos como sendo o primeiro impulso, que diz

respeito a sua natureza física e sensível, sem o qual o ser humano não pode passar para

os próximos impulsos, sem o inevitável concurso deste primeiro (SCHILLER, 2002a,

63 ss.).

O que buscamos ressaltar por meio da teoria estética de Schiller, é o

significado já suplantado de estética como sensibilidade, como sentir, não o sentir dos

empiristas, meramente sensorial, e sim o sentir emotivo, puro, ingênuo, da ordem das

coisas do coração. Suplantamos e diminuímos a capacidade de nos emocionarmos

francamente com o mundo, reduzimos o sentimentalismo a sinônimo de fraqueza ou de

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afetação: o ser sensível ou sentimental, como aquele que chora ao ver o pôr-do-sol, o

choroso e excessivamente romântico, o ser emocionalmente desequilibrado, o

afetivamente carente, dentre outras acepções erroneamente atribuídas ao termo. Ambas

expressões mencionadas, sentimental e romântico, são uma corruptela do que

originalmente se designava com o termo e, mesmo na época de Schiller e Goethe já

existia o desvio destas expressões, tal como explica Márcio Suzuki, em sua brilhante

apresentação à Poesia ingênua e Sentimental (1800) de Schiller:

O adjetivo “sentimental” parece um vocábulo já incorporado ao

patrimônio de diversas línguas, remetendo quase inevitavelmente a

uma constelação de termos afins, tais como “sonhador”,

“apaixonado”, “sensível” e, acima de tudo, “romântico”. Ao que tudo

indica, tal “lugar comum” não parece propriedade exclusiva de nossa

época, mas já vem de longa data. Goethe, por exemplo, não via

problemas em substituir o par “ingênuo-sentimental” por seu similar

“clássico-romântico” (SUZUKI, 1991, p.23 In: SCHILLER, 1991).

Portanto, quando se fala em sentimental em Schiller temos um sentido mais

profundo marcado por duas acepções, uma mais aberta ao entendimento comum e outra

mais específica em relação à sua reflexão filosófica, das quais temos que, na primeira e

mais ampla temos a referência à emoções, sentimentos elevados e pensamentos

refinados; e na segunda acepção, mais restrita o sentimental se liga a uma atividade

reflexiva ou reflexionante (SUZUKI, 1991, p.23 In: SCHILLER, 1991), onde, sob tal

perspectiva reflexionante, o poeta, bem como o artista de modo geral, exerce a

capacidade de refletir e pensar acerca da maneira com que os objetos lhe afetam,

traduzindo a reflexão dessa afecção em forma de arte e expressando e representando por

meio desta o sentimento experimentado por ele (SCHILLER, 1991, p.72-73).

Há muito, formamos os seres para a razão e suplantamos sua dimensão

estética deixando-a em segundo ou terceiro plano. Continuamos ignorando o conselho

dos sábios em preservar a pureza e ingenuidade e a espontaneidade das crianças em

nossos corações, tudo isso em função da pretensa ideia de segurança que a ciência, sob a

égide da razão, nos oferece. Numa rápida e precisa síntese, Benedito Nunes, afirma que,

numa época em que o espírito da razão dominava toda a Europa, onde pululavam

filosofias do eu e da razão como novas tábuas de lei, Rousseau

Enfatizou particularmente esse aspecto da espontaneidade dos

sentimentos, quando pregou a urgente necessidade do retorno do

homem ao estado natural. Essa volta seria, em parte, a recuperação da

afetividade, da ordem infusa à consciência, que Pascal chamara, no

século XVII, de “ordem do coração” (NUNES, 2008, p.45)

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É preciso restabelecer o lugar do sentimento e a consciência de nossa

unidade com os semelhantes e com a natureza, diria Rousseau, é mister retomar a

“unidade harmônica” entre sentir e pensar (SCHILLER, 1991, p.61), aconselha Schiller,

é necessário restabelecermos e realinharmos as pulsões apolíneas e dionisíacas

restaurando a potência de viver, exorta-nos Nietzsche. Esta exortação e concordância

com os outros dois poetas-filósofos, acima referidos, são bem claras em Nietzsche

quando, logo nas primeiras páginas de sua obra debutante, O nascimento da Tragédia

(1872), os menciona e afirma:

E aqui é preciso que se diga que essa harmonia e mesmo unidade do

homem com a natureza, vista com tanta nostalgia pelo homem

moderno, e que levou Schiller a pôr em circulação o neologismo naïf

(ingênuo), não é, em caso nenhum, um estado tão simples, que resulta

por si mesmo, como que inevitável, que tivéssemos de encontrar no

umbral de toda cultura como um paraíso da humanidade: nisto só

podia acreditar um tempo que tentava pensar o Emílio de Rousseau

também como artista e acreditava ter encontrado em Homero esse

Emílio artista educado no coração da natureza. (NIETZSCHE, 2014,

p.22-23)

Esses três pensadores, e muitos outros que, a despeito de correntes

filosóficas, épocas e idiossincrasias, sentiram ou pressentiram a mesma necessidade do

estético na formação humana, preconizaram em uníssono o restabelecimento de uma

unidade cindida, de uma sentimentalidade suprimida, de uma pureza perdida. Foi

perdido o ideal e toda aquela necessidade dos gregos antigos de relacionar a formação

de seus concidadãos com uma educação diversificada que, a despeito de suas limitações

morais, valorizava a dimensão estética na fórmula do Kalokagathia. O ideal de bem,

belo e verdade, perdeu, com o passar do tempo, uma de suas peças fundamentais e não

pode ser mera coincidência com nosso modelo atual de formação humana, o fato de

estar faltando, justamente, a mesma peça: a dimensão estética.

Apoiados na leitura atenta de Schiller, poderíamos dizer que uma das

principais forças motrizes desta pesquisa reside na hipótese de que, sendo a estética, não

apenas o fundamento da arte, é ela um dos principais esteios da educação dos seres

humanos, educação entendida aqui como o processo de formação do ser integral

(SCHILLER, 2002a, p.43-44, 47, 114; 2011, 72-73). E, por ter sido suplantada pelas

demandas do ideal da tradição racionalizante, a dimensão estética foi para segundo para

segundo plano, não podendo mais atuar e, tampouco, equilibrar a empáfia e soberba do

apolíneo; sucumbindo e arrastando consigo todos os significados de estética, múltiplos

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significados que atuavam na formação do espírito humano: arte, beleza, sensibilidade,

sentir, sentimento.

Veremos a seguir os principais elementos das propostas estéticas apontadas

por Schiller e Nietzsche, que irão servir-nos de trilha teórica para enfrentarmos, após

esta mínima preparação e ambientação, as principais ideias de tais autores no âmbito da

educação.

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II- PRINCIPAIS CONCEPÇÕES DO CAMPO ESTÉTICO E JUSTAPOSIÇÕES

NAS PERSPECTIVAS DE SCHILLER E NIETZSCHE

Aos nove anos, ele já tinha lido um pequeno livro

como leitura obrigatória no terceiro ano escolar. O

livrinho se chamava “No cabide da vovó”. Mas, por se

tratar de uma leitura “obrigatória” e por ele não fazer

ideia do que era um “cabide” (já que a capa e as figuras

do livro só lhe mostravam uma “cruzeta”), o menino

perdeu o interesse pela leitura. Levou sua vida em

frente e o problema de não saber que um cabide era

uma cruzeta nunca o atrapalhou em nada.

Alguns anos depois, já prestes a completar

quatorze outubros de idade, em uma faxina no quarto,

como que por um sortilégio do destino, ele percebe uma

caixa de livros sobre seu guarda-roupa. Neste instante

que ele começa a pensar em descartar a caixa inteira,

um desenho lhe chamou a atenção: um rapaz preso

numa caixa de vidro. Imagem que expressava muito

bem o título: “Pássaro contra a vidraça”. A faxina do

início da tarde foi interrompida ali, e só foi retomada

após a conclusão da leitura que prendeu a atenção do

menino.

Dias após a leitura do livro, o garoto, sem

pretensão alguma, usou instintivamente uma frase que

aprendera com o livro. Disse à mãe: – “Mãe, tem que

ter uma explicação Plausível!”

No mesmo instante, a mãe, olhando para o

garoto, inclinou levemente a cabeça para a direita, não

conseguindo disfarçar a surpresa de ter ouvido uma

palavra tão incomum saída do menino, sem o quê, foi

inevitável ter soltado um sarcástico: “Hum... quê isso?

Tá falado difícil agora, é?”

Mesmo sem pretensão alguma, o menino colheu

do livro aleatório e da atitude ingênua um valioso

sentimento de completude, de encontro consigo mesmo;

percebeu uma potência múltipla: a potência dos livros, a

potência das palavras e do conhecimento agregado a

elas, mas, principalmente, a potência de si, ao ler um

livro inteiro, sem nenhuma obrigação ou interferência.

(Texto autoral)

A iniciativa de recorrer aqui a Schiller e Nietzsche, pensadores que

produziram reflexões filosóficas insignes no campo da estética, não tem como intento

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contrapor seus inegáveis e inevitáveis pontos de distanciamentos. Tampouco se procura

aqui remendar forçosamente reflexões que não sejam complementares ou pontos que

não se coadunam, à guisa de um Frankenstein teórico. Em verdade, o que almejamos

aqui é buscar elementos complementares que nos auxiliem em nossas próprias reflexões

que, por conseguinte, poderiam auxiliar em nossas práticas, não apenas escolares, mas,

de modo mais geral, em nossas práticas formativas. Deste modo, pensamos, nesta

pesquisa, em um pequeno percurso na senda da filosofia da educação, percurso a ser

trilhado nas veredas que mais nos ajudassem a pensar nos principais passos para nos

aproximarmos da sensibilidade estética, há muito desvanecida.

Para tanto, o modo de aproximação será proporcionado pela justaposição

entre estes dois pensadores que, pelo retrato de suas próprias biografias, deixam claro

que tinham um pé na filosofia e outro na arte ou, porque não dizer, na cabeça o amor

pela sabedoria e no coração o amor pela arte. Na pintura, a técnica de justaposição das

camadas de cores, se mal executada, pode resultar em texturas e cores indesejadas ou

rachaduras ao secar o quadro, podendo por outro lado criar efeitos magníficos se

utilizada com cautela (GONÇALVES, 1996, p. 42). É bem verdade que uma

justaposição de concepções filosóficas caracteriza uma empreitada arriscada, no que diz

respeito à grande possibilidade de realizarmos uma má interpretação ou interpretação

errônea ou forçada, juntando dois ou mais pensadores em um disforme corpo teórico.

Aceitando tal risco, diríamos que, doravante, tentaremos perpetrar algumas singelas

aproximações entre Schiller e Nietzsche no intuito de estabelecermos afinidades com

conceitos de ambos os filósofos, que nos possam auxiliar em nossas práticas formativas.

Ao falarmos anteriormente nos percalços percorridos pelo termo estética,

lembramos fortuitamente de alguns episódios filológicos da história da filosofia que

deram origem a novos termos e neologismos, alguns deles inevitavelmente associados a

justaposição de reflexões filosóficas. A “justaposição”, em linguística, concorde o

Dicionário Houaiss de língua portuguesa, ocorre quando há a reunião de palavras para

gerar um novo significado sem, no entanto, resultar em perda fonética das palavras

formadoras. Ainda no âmbito da linguística, vemos que o trabalho de tradução de um

idioma para outro completamente diferente não se resume a uma mera decodificação

direta e exata de significados, e que tal compreensão é catalisada por meio do que se

chama de justaposição cultural, expressão também conhecida pela sociologia

(LYONS,1987, p.292).

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Claramente não temos a ambição de gerar, com esta justaposição entre

filósofos, uma síntese completamente nova e original dos conceitos relacionados à

estética, como ocorre com as palavras geradas por justaposição, no caso da linguística,

ou com as cores no exemplo da pintura. Longe disso, queremos tão somente dar relevo a

constructos e percepções acerca da dimensão estética, trazer novamente à tona reflexões

que cada vez mais estão sendo suplantadas pelo imperativo da razão. Com efeito, nesta

segunda parte de nosso estudo veremos uma tentativa de apresentar conceitos

fundamentais ligados à estética de Schiller e de Nietzsche, conceitos estes que serão

fundamentais para nossa melhor compreensão das aplicações destes conceitos de tais

filósofos no campo educacional e formativo.

II.1 Elementos da estética schilleriana

Com o romance Os bandoleiros, Schiller inicia efetivamente uma carreira

intelectual produtiva, mas tortuosa, que, por sua peculiaridade e diversidade, levaria

muito esforço de oratória para ser defendida e justificada em um memorial, tal como se

pratica ultimamente no ambiente acadêmico. Estudou direito, largou o curso e se

formou em medicina, ao mesmo tempo em que iniciava seus primeiros romances e

peças teatrais. Foi dramaturgo, historiador, filósofo, poeta e professor. Como ocorre

com todo bom filósofo, o destino tratou de conduzi-lo à docência, dando origem assim

ao seu “ateliê filosófico”, como o próprio pensador convencionou chamar (BARBOSA,

2009, p.46).

Das obras produzidas no ateliê filosófico de Schiller, infelizmente nos

restam apenas alguns textos completos em forma de ensaios e artigos, fragmentos de

suas preleções e cartas trocadas com amigos, frutos de um período de florescência

filosófica, em virtude de uma oportunidade de lecionar história e estética na

Universidade de Iena (ou Jena), oportunidade concedida pela indicação de seu amigo

Goethe (BARBOSA, 2003, p.9) e que rendeu uma homenagem póstuma ao pensador ao

ser renomeada para Universidade Friedrich Schiller de Jena (Friedrich-Schiller-

Universität Jena). Entretanto, mesmo tendo produzido em tão curto espaço de tempo e

restando tão pouco de suas reflexões filosóficas, Schiller legou-nos o suficiente para

compreendermos o que ele considerava estética e seus principais afastamentos, no que

tange a teoria estética, em relação a pensadores como Kant, Aristóteles, Fichte e,

mesmo, a concepção de estética de Baumgarten.

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Nos Fragmentos de suas preleções sobre estética (1806), conteúdo

elaborado por Schiller como roteiro de estudo, apresentado no semestre de inverno de

1792-93 e recolhido e publicado postumamente por seu aluno Christian Friedrich

Michaelis, temos algumas concepções iniciais sobre estética e seus adjacentes. Tal

elaboração leva em conta os estudos já publicados sobre o assunto, apresentando

também, de modo amalgamado aos conceitos já convencionados, suas próprias

concepções e reflexões pessoais sobre o tema.

Logo, enquadrando a estética aos moldes convencionados desde

Baumgarten, isto é, da estética como doutrina, Schiller irá defini-la como a doutrina do

ajuizamento do gosto, ponderando, ainda, que “a estética investiga a natureza da

faculdade operante no ajuizamento do belo; ela busca assinalar com exatidão e correção

os limites do gosto” (SCHILLER, 2003, p.33). Tal ponderação apresenta-se, desde já,

discordante de Kant e da própria concepção corrente de “doutrina”, já que, para Kant é

inconcebível uma doutrina do gosto, por não ser possível determiná-lo por meio de

princípios objetivos. A esse respeito Ricardo Barbosa nos dilucida mais precisamente

com uma nota aos fragmentos de Schiller e um recorte da Crítica da faculdade do Juízo,

de Kant:

Uma doutrina do gosto é, a rigor, impossível para Kant. “A divisão de uma

crítica em doutrina elementar e em doutrina do método, que precede à

ciência, não se deixa aplicar à crítica do gosto, porque não há nem pode haver

uma ciência do belo e o juízo de gosto não é determinável por princípios”

(CFJ,§60: ”Da doutrina do método do gosto”, B 261) Uma doutrina do gosto

adquire um sentido específico para Schiller, na medida em que ele admite a

possibilidade de um princípio objetivo para o belo. No entanto, tal

possibilidade não resulta de modo algum numa doutrina dogmática do gosto

e sim, como Schiller escreve ao Príncipe de Augustenburg a 9 de fevereiro de

1793, numa “nova teoria da arte”. (BARBOSA In: SCHILLER, 2003, p.40)

Estando claro, com isso, que a compreensão acerca do conceito de

“doutrina”, pensada e aplicada por Schiller, não respeita exatamente à concepção

utilizada por Kant ou, mesmo, por Baumgarten e Wolff. Ocorrendo o mesmo

movimento com sua concepção de estética.

Sua concepção de estética é apresentada de modo latente em todos os seus

escritos, mas é sintetizada em uma nota de rodapé feita por Schiller na Carta XX de sua

Educação estética do Homem, quando tem que explicar a utilização do termo “estético”,

surgido no corpo desta referida carta, em ocasião da menção de um estado estético do

ser. Esta compreensão de estética, pensada pelo filósofo é muito abrangente e vai muito

além, inclusive, do que classificamos como estética na primeira parte deste estudo, pois

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que a estética, segundo ele, não é meramente uma determinação ou um aspecto dos

fenômenos, mas é, sendo conscientemente tautológico, a determinação última que irá

determinar e reger todas as outras determinações ou aspectos:

Todas as coisas que de algum modo possam ocorrer no fenômeno são

pensáveis sob quatro relações diferentes. Uma coisa pode referir-se

imediatamente a nosso estado sensível (nossa existência e bem-estar):

esta é sua índole física. Ela pode, também, referir-se a nosso

entendimento, possibilitando-nos conhecimento: esta é sua índole

lógica. Ela pode, ainda, referir-se a nossa vontade e ser considerada

como objeto de escolha para um ser racional: esta é sua índole moral.

Ou, finalmente, ela pode referir-se ao todo de nossas diversas

faculdades sem ser objeto determinado para nenhuma isolada dentre

elas: esta é sua índole estética. (SCHILLER, 2002a p. 103)

O estado estético, portanto, consiste em uma disposição livre. Livre de todas

as determinações, mas não arbitrária, pois tem suas regras próprias diferentes das da

razão e da moral, funcionando, então, como uma disposição intermediária que permeia e

interliga todas as outras. Fato que nos autorizaria a considerar a perspectiva filosófica de

Schiller como sendo esteticista, isto é, colocando a estética em primeiro plano, tal como

vemos na abordagem de Nietzsche.

Doravante, veremos com mais detalhes alguns dos principais conceitos da

filosofia estética schilleriana, conceitos como beleza, sublime, trágico, ingênuo e

sentimental que, a um só tempo, nos fornecerão o suporte necessário para adentrarmos

com mais propriedade no pensamento pedagógico ou formativo deste poeta-filósofo,

bem como nos ajudará na aproximação com a filosofia nietzscheana.

II.1.1 Sobre a beleza

Ao pensar a problemática do belo, Schiller entreviu o fato de que nesta

ampla categoria, do que nos agrada, residia não somente o belo harmônico, perfeito ou

simétrico, mas residia também no aprazível não tão belo e no aprazível não-belo.

Partindo deste problema a questão para Schiller é a de como explicar estas nuances do

aprazível?

Revendo o pensamento grego vemos a excelente maneira com que se

traduziam em termos compreensíveis o que não se podia tão facilmente apontar

racionalmente. Veja-se que, a despeito de quaisquer interpretações que se façam,

atualmente temos mais clareza em compreender à que “formas” (eidos) Platão se

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referia; de que sensível e de que inteligível o filósofo estava tratando em sua época. No

entanto, imagine-se agora, como explicar para seus contemporâneos a complexidade de

seus raciocínios filosóficos? Tal resposta para “como explicar o inexplicável de modo

mais simples”, procurada agora por Schiller, já tinha sido encontrada pelos fisiólogos e

por Platão e, há muito, dada por Homero por meio de sua divina arte: a poética.

Constatação confirmada por Schiller no seguinte excerto de seu ensaio

intitulado Sobre Graça e dignidade (1793):

El delicado sentimiento de los griegos distinguió, ya desde temprano,

lo que todavía la razón no era capaz de precisar, y en procura de una

expresión, tomó de la fantasía imágenes, dado que el entendimento no

podía ofrecerle aún conceptos. (SCHILLER, 2000, p.5)

Colocando em prática tal percepção, Schiller inicia este seu ensaio sobre o

belo com o mito grego de Afrodite4 ou Vênus, a deusa da beleza e, suas acompanhantes

perenes, as Graças.

De acordo com Schiller, sabe-se desse mito, que a deusa possuía um cinto

que outorgava, não a beleza, mas graça e encanto a quem o usasse para procurar o amor.

Ainda segundo o mito, só a deusa da beleza poderia conceder o cinto dos encantos a

alguém, ainda que essa virtude do cinto estivesse associada às suas fiéis acompanhantes,

as três Graças. Em certa feita, Juno5, a rainha dos céus, pediu emprestado à Vênus o

cinto, com a intenção de seduzir e conquistar Júpiter6. O pedido de Juno não se deu pelo

fato da rainha dos céus, não possuir beleza, pelo contrário, pois, mesmo que não seja tão

bela quanto Vênus, sua beleza é inegável, digna de uma deusa. Do mesmo modo, o

cinto não concede a beleza em si, mas um tipo distinto de admiração chamado de

“graça”. Assim, o empréstimo foi feito para que Juno, não apenas por sua beleza como

por seu encanto, pudesse, como se diz, cair nas graças de Júpiter.

Schiller extrai considerações interessantes sobre a alegoria contada. A

primeira delas é que os gregos perceberam esta sutil distinção entre tipos de belo e, por

meio desta alegoria, conseguiram expressar o fato de que toda graça é bela, mas nem

toda beleza é graciosa. Com efeito, o belo considerado como aquilo que nos apraz pode

se manifestar de forma diferenciada das que se atribui à compreensão de beleza, como

perfeição, como simetria, como consonância, isto porque esta nova percepção do belo

4 Ao relatar partes do mito grego, Schiller menciona Vênus, como a deusa da beleza, sabendo-se aqui que

se trata de seu nome equivalente no panteão romano, sendo possível usar ambos os nomes sem prejuízo

na compreensão do mito. 5 Nome equivalente à deusa Hera no panteão grego.

6 Nome equivalente a Zeus, deus dos deuses, no panteão grego.

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como graça admite diferentes formas, tal como nos explica o filósofo poeta, recorrendo

novamente ao mito:

La diosa de la belleza puede desprenderse de su cinturón y transferir

su virtud a un ser menos bello. La gracia no es, por tanto, privilegio

exclusivo de lo bello, sino que puede también pasar, aunque siempre

únicamente de la mano de lo bello, a lo menos bello, y hasta a lo no

bello. (SCHILLER, 2000, p.4).

Deste modo, a graça mantém uma relação de aproximação e afastamento

com a beleza, posto que, ao mesmo tempo em que se encontra inalteravelmente atrelada

à beleza, ela pode também se relacionar com o menos-belo e, inclusive, com o não-belo.

Ainda extraindo considerações do mito, o pensador alemão revela que o

cinto da graça, ao ser concedido, não perde sua força magica com o pouco belo nem

com o não-belo, significando, com isso, que o pouco belo e o feio, ou não-belo, podem

desta forma mover-se belamente no mundo (SCHILLER, 2000, p.7).

Logo, se a graça é um modo de ser do belo, que tipo de beleza seria esse

vislumbrado pelos gregos? Esta alegoria mitológica, para Schiller, tem ainda muito a

nos ensinar e é digna do respeito dos filósofos que, ainda hoje, se contentam em tentar

explicar em termos racionais o que elas há muito ilustravam por meio das sensações,

prova disso é o fato de que,

Si a esa idea de los griegos se la despoja de su envoltura alegórica,

parece no contener otro sentido que el siguiente: La gracia es una

belleza en movimiento; es decir, una belleza que puede originarse

casualmente en su sujeto y cesar de la misma manera. En eso se

diferencia de la belleza fija, que está dada necessariamente con el

sujeto mismo. (SCHILLER, 2000, p.5)

Beleza em movimento é a única maneira de expressar mais

aproximadamente o que se sente ao conhecer a alegoria de Vênus, já que, se a deusa da

beleza, permite o movimento de seu cinto concedendo graça sem alterar sua beleza, ou

seja, sem que ela deixe de ser quem é, então beleza em movimento é a única forma do

belo se manifestar em algo sem alterar ou suprimir sua identidade.

Contudo, Schiller ressalta que tal beleza em movimento só pode ocorrer

com o gênero humano e as coisas produzidas livre e voluntariamente por ele, pois que,

“Sólo a los movimientos voluntarios puede, pues, corresponder gracia; pero entre ellos

también sólo a los que son expresión de sentimientos morales" (SCHILLER, 2000, p.9).

É importante que se diga que, o que Schiller reconhece por “moral” aqui, não diz

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respeito a uma interpretação moralista no sentido de bem ou mal, certo ou errado, mas

sim na expressão dos sentimentos cuja fonte é a obra e espirito humano, visto que para o

filósofo, “la gracia no es outra cosa que una bella expresión del alma en los

movimientos voluntarios” (SCHILLER, 2000, p.10), não sendo, portanto, uma beleza

dada pela natureza, mas uma beleza produzida pelo próprio sujeito.

Fica claro aqui, que Schiller pretende desenvolver neste ensaio alguns dos

tipos de beleza relacionados à peculiaridade humana. Para tanto, se já desde o início do

ensaio o pensador sugere a coexistência de uma beleza exterior ou externa e uma beleza

mais interior, evidencia-se, no avançar de suas explicações, uma bifurcação concernente

aos tipos de beleza da estrutura externa do ser humano. Isto é, Schiller irá distinguir a

chamada “beleza de construção” (ou beleza arquitetônica) da identificada por “perfeição

técnica”. A primeira diz respeito à beleza formada e já dada pela natureza segundo as

leis da necessidade, sendo, portanto, “aquella parte de la belleza humana que no sólo ha

sido ejecutada por fuerzas naturales (lo que reza para todo fenómeno), sino que también

es determinada exclusivamente por tuerzas naturales” (SCHILLER, 2000, p.11). A

segunda, por sua vez, diz respeito a um sistema de fins que se unem para dar expressão

a um único fim que está associado à beleza (SCHILLER, 2000, p.12), mas não à beleza

que se pode julgar meramente por meio dos sentidos, como é o caso da beleza

arquitetônica, posto que,

“La técnica de la figura humana es ciertamente una expresión de su

destino, y como tal puede y debe llenarnos de respeto. Pero esta

técnica se ofrece no a la sensibilidad, sino al entendimiento; sólo

puede ser pensada, no aparecer fenoménicamente” (SCHILLER,

2000., p.13)

Não obstante, o ser humano não um mero ser sensível regido tão somente

pelas leis da natureza, na mesma medida em que não é simplesmente uma máquina de

calcular, sob a rubrica do entendimento. Como já se sabe há muito, o ser humano é

composto por ambos: razão e sensibilidade, determinismo e liberdade, natureza e

cultura, dentre muitos outros pares que compõem o humano. Por isso, dentre todos os

seres conhecidos, só o ser humano é capaz de quebrar a cadeia da necessidade e fazer

surgir de sua vontade própria uma série totalmente nova de fenômenos (SCHILLER,

2000, p.39). E tudo isso graças à capacidade de transitar entre esses dois mundos e jogar

com esses pares que o formam.

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Esta dualidade e capacidade de trânsito entre estes pares que formam o ser

humano são importantes de serem mencionadas aqui, pelo fato de que a beleza, sendo

uma das capacidades geradas por este trânsito, também transita com liberdade de jogo

entre dois mundos, tal como nos esclarece Schiller neste brilhante excerto:

Hay que considerar, pues, la belleza como ciudadana de dos mundos, a uno

de los cuales pertenece por nacimiento y al otro por adopción; cobra

existencia en la naturaleza sensible y adquiere la ciudadanía en el mundo

inteligible. Así se explica también cómo el gusto, en cuanto facultad de

juzgar lo bello, viene a situarse entre el espíritu y la sensorialidad y une estas

dos naturalezas, que se desprecian mutuamente, en una feliz armonía; cómo

logra para lo material el respeto de la razón y para lo racional la inclinación

de los sentidos; cómo ennoblece las intuiciones convirtiéndolas en ideas y

hasta transfigura en cierto modo el mundo sensible en reino de la libertad.

(SCHILLER, 2000, p.19)

Então, sendo cidadã de dois mundos, a beleza consegue situar-se entre a

razão e o sensível, harmonizando estas duas naturezas que se encontram atualmente em

desavença no ser humano. Por meio da beleza conciliamos os reinos da necessidade e

contingencia, ou seja, conciliamos tudo que em nós é natureza ao que é liberdade no

fenômeno, tendo em vista, ainda, que mediante a liberdade temos o que se chama de

beleza e arte. A graça, por sua vez, é um tipo de beleza móvel que só se manifesta

efetivamente quando o ser humano consegue, em seus atos voluntários, conciliar o

sensível e o racional, inclinação e dever, sem estabelecer o triunfo de uma dimensão em

detrimento de outra (SCHILLER, 2000, p.58). Ideal que, a despeito de nunca o

atingirmos por completo, devemos procurar nos aproximar o máximo quanto possível

(SCHILLER, 2000, p.68).

Inevitavelmente as análises sobre o belo feitas por Schiller em Sobre Graça

e dignidade, convergem com sua tese de que a beleza seja a liberdade no fenômeno, tese

que lhe serviria de pedra angular para um projeto de obra que, infelizmente, não foi

concretizado. Tratava-se de um diálogo, ao estilo socrático, que buscaria escrutinar a

propriedade e objetividade das coisas que designamos como beleza, intitulado pelo

próprio pensador como Kallias ou sobre a beleza (1847), do qual só nos restaram

importantes trechos explicativos em suas epístolas trocadas com seu amigo Christian

Gottfried Körner (BARBOSA, 2002, p.9).

Deste modo, beleza como liberdade no fenômeno representa duas coisas

estritamente correlatas, segundo as explicações do próprio Schiller: a primeira delas é

que a objetividade da beleza reside nas coisas, reside no estado de apresentação destas

como algo livre, pois quanto mais presente esta características mais beleza é concedida

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a esta coisa, e o contrário na mesma proporção, quanto menos liberdade sua beleza se

aniquila gradativamente; a segunda é que a liberdade no fenômeno carrega consigo um

efeito em nossa faculdade de sentir, um efeito idêntico ao causado pela representação ao

belo (SCHILLER, 2002b, p.81).

Como já sabemos, a beleza, tal como o gosto e outros atributos e

capacidades do humano, possui dupla cidadania podendo transitar entre o plano sensível

e o plano suprassensível. Tal característica, da beleza como interseção entre os planos, é

reafirmada por Schiller em Kallias, ao apresentar em carta do dia 23 de fevereiro de

1793 uma breve explicação dos escopos da obra que, a saber, era

Demonstrar por indução e pela via psicológica que da conjugação do

conceito da liberdade e do fenômeno, da sensibilidade em harmonia

com a razão, tem de decorrer um sentimento de prazer que é igual à

complacência que costuma acompanhar a representação da beleza

(SCHILLER, 2002b, p.82)

Esta capacidade só nos é possível em função da liberdade, atributo que,

segundo Schiller não advém de coisa alguma que diga respeito ao mundo dos sentidos e

que é definida pelo filósofo como uma ideia da razão que nos compele a criar e

representar uma ideia de liberdade e associá-la às coisas. Destarte, ser livre, para

Schiller, consiste em ser determinado por si mesmo, ou seja, ser determinado a partir do

interior, a partir de si próprio (SCHILLER, 2002b, p.82). Não que liberdade seja uma

pura e simples indeterminação, pelo contrário, ela continua sendo determinação, só que,

doravante, uma determinação interna que parte do próprio sujeito e não do

constrangimento da natureza (SCHILLER, 2002b, p.83).

Sobretudo no que tange à arte, esta liberdade no fenômeno só pode ser

sensivelmente apresentada com o concurso da técnica, pois, se “a liberdade no

fenômeno é, a saber, o fundamento da beleza, (...) a técnica é a condição necessária da

nossa representação da liberdade” (SCHILLER, 2002b, p.85). Técnica para Schiller, “é

a união do múltiplo segundo fins, e é necessária à beleza, ainda que esta não se funde no

ajuizamento da técnica (SCHILLER, 2003, p.67); o que nos leva a aduzir a

compreensão de que a técnica é a aplicação de um determinado fim na coisa a ser

trabalhada, em outras palavras, é uma determinação externa que não vem da coisa

mesma e transforma esta segundo seus próprios fins, interferindo na natureza desta

coisa. Contudo, é necessário advertir que a técnica, por si só, não é capaz de produzir ou

portar a beleza, senão com o concurso de outras forças como a liberdade, entendimento,

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sentimento e a natureza em que o conceito da técnica for aplicado, tal como exemplifica

o filósofo-poeta para que melhor compreendamos:

Mais um exemplo e nos entenderemos perfeitamente. Quando um

mecânico constrói um instrumento musical, este pode ser ainda

puramente técnico, sem reclamar a beleza. É puramente técnico se

tudo nele é forma, se em toda parte apenas o conceito, e em parte

alguma a matéria ou a carência do artista, determina sua forma.

(SCHILLER, 2002b, p.89)

A técnica, portanto, mesmo contribuindo para a beleza não é produtora

única das impressões de belo e agradável, sendo a técnica uma imposição externa e

contingente, isto é, fruto da vontade de quem a produz.

Visando marcar o fato de que a técnica não pode reclamar necessariamente a

beleza, Schiller irá anexar junto ao conceito de técnica, a compreensão de “perfeito”,

assinalando suas diferenças em relação à beleza (SCHILLER, 2002b, p.93). Com

exceção do perfeito absoluto que é produto da moral, todo e qualquer perfeito é fruto da

técnica, e está sob a chancela da técnica por sua essência não ter como fim a beleza, mas

sim o conceito, a utilidade. Por conseguinte, a beleza de um instrumento de sopro não

está em suas especificações técnicas nem na forma do material que foi empregado em

sua construção, mas na qualidade do som e na capacidade de quem o manuseia. O

perfeito só pode se converter em um tipo de beleza, se sua técnica for apresentada com

liberdade e se sua perfeição não contrariar de nenhuma forma sua natureza

(SCHILLER, 2002b, p93).

Temos aqui uma interessante guinada de Schiller, em relação à concepção

de beleza ao diferenciá-la de perfeição, uma vez que, ao fazer tal distinção, contradiz o

conceito de beleza como ordem, proporção, simetria, assinalando no esclarecedor

recorte a seguir, que tais indícios não remetem necessariamente à beleza:

Conformidade a fins, ordem, proporção, perfeição – qualidades nas quais por

muito tempo acreditou-se ter encontrado a beleza – não têm rigorosamente

nada a ver com a mesma. (...) Uma grosseira violação da proporção é feia,

mas não porque a beleza é observância da proporção. De modo algum, e sim

porque é uma violação da natureza, indica pois heteronomia. Noto em geral

que todo erro dos que buscam a beleza na proporção ou na perfeição deriva

do seguinte: eles achavam que a violação das mesmas tornava o objeto feio, e

disso concluíam, contra toda a lógica, que a beleza está na exata observância

dessas qualidades. Mas todas essas qualidades perfazem apenas a matéria do

belo, que pode variar em cada objeto; elas podem pertencer à verdade, a qual

também é apenas matéria da beleza. A forma do belo é apenas uma exposição

mais livre da verdade, da conformidade a fins, da perfeição (SCHILLER,

2002b, p.94)

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Um juízo preocupado com simetrias, proporções e perfeição do conceito,

diz Schiller nos Fragmentos, é mais um juízo de conhecimento que um juízo de gosto

propriamente (SCHILLER, 2003, p.47). Destarte, a beleza não está ligada ou atada a

nenhuma matéria, mas na maneira como este material é tratado; a beleza está associada

à liberdade no trato deste material, pois o reino do gosto é o reino em que se deve

prevalecer, não o conceito ou a técnica, mas o contingente, a liberdade (SCHILLER,

2002b, p.99). Em relação à associação da beleza ao menos-belo ou ao não-belo, Schiller

já nos tinha advertido ao falar da possibilidade de apresentação da graça, que é um tipo

de beleza do ser humano, no pouco-belo e no não-belo, como já tínhamos mencionado.

Em relação à liberdade no fenômeno, Schiller esboça nos Fragmentos das

Preleções uma proporção entre os tipos de beleza em relação à sua maior ou menor

liberdade, classificando-as como “beleza livre” (Pulchritudo vaga) e “beleza aderente”

(Pulchritudo adhaerens). Beleza livre são aquelas em que não necessitamos encontrar

nenhum fim em si mesmo na coisa a ser admirada, para considerá-la bela, tal como

ilustra o filósofo: “Por exemplo: numa rosa, não estamos conscientes de nenhum fim

determinado de sua figura e constituição” (SCHILLER, 2003, p.49). Na beleza aderente

a coisa a ser admirada encontra-se sob a influência e, por vezes, coação do conceito

(técnica), constrangendo a liberdade da coisa a um ou mais fins, permitindo apenas

certas espécies e apresentações de beleza. Assim, podemos dizer que quanto mais o

critério desta beleza for a liberdade, menos estaremos atribuindo a ela um fim prático

necessário, mais livre e errante ela será; e, numa escala contrária, quanto mais ela for

associada a uma finalidade específica, menos ela se manifesta como beleza, mais ela

nos apresenta alguns tipos escassos de beleza e mais se aproxima de ser meramente uma

perfeição.

Há ainda outro tipo de beleza, talvez mais elevado que a beleza livre, apenas

mencionado por Schiller em seus Fragmentos das preleções, na ocasião em que explica

o significado das representações obscuras ou confusas. Esta beleza é a “beleza poética”,

mencionada no seguinte excerto:

A diferença entre a complacência na conformidade a fins e a

complacência no belo também estaria suprimida naquela teoria que

coloca a beleza na perfeição sensivelmente representada. Esta teoria

ajustar-se-ia a muitas belezas, mas não à beleza livre e menos ainda à

[beleza] poética (SCHILLER, 2003, p.49-grifo nosso).

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Como dissemos, nos fragmentos recolhidos por Michaelis não temos

maiores explicações sobre a beleza poética, mas temos indícios mais bem elaborados da

relação entre a arte poética e a beleza nas cartas do dia 1º de março de 1793 de Schiller

a Körner. Nela Schiller fala sobre a dificuldade do poeta em captar o universal e, por

meio de sua matéria bruta, condensar o universal no seio do particular (SCHILLER,

2002b, p.116). Esta matéria bruta são as palavras: signos gerais que possuem sistemas e

regras, que devem ser driblados e moldados pelo poeta, mirando a beleza. Por fim, nesta

carta, Schiller sintetiza algo que pode nos orientar como um indício desta beleza

poética: “Numa palavra, a beleza da apresentação poética é a livre auto-ação da natureza

nos grilhões da linguagem” (SCHILLER, 2002b, p.118). Em outras palavras, para a

apresentação poética ser bela e, portanto, livre, o poeta deve ter a capacidade de libertar

a linguagem dos sistemas e regras que lhe são peculiares, pois o que será apresentado

deve se encontrar estreme do meio em que é apresentado, dando testemunho de sua

beleza por meio de sua verdade, vivacidade e personalidade diante da imaginação de

quem o recebe (SCHILLER, 2002b, p118), tal como o duro mármore transformado em

uma pele macia, ou um tecido deslizante, ou, ainda, numa onda fluente que vemos nas

obras da escultora Camille Claudel, convertendo as características naturais do mármore

rijo e o libertando para a beleza.

II.1.2 O belo e o sublime

Como vimos, a beleza é cidadã de dois mundos, já que transita entre dois

planos da existência humana; pertencendo por natureza a um e por adoção a outro.

Deste modo, por ter nascido da natureza, a beleza tem o pé no sensível e dificilmente

pode se desligar de alguma forma de apresentação que não evoque o sensível de alguma

forma. Em outras palavras, mesmo que se apresente de forma ideal ou pura, a beleza,

para manifestar-se, irá sempre precisar de uma forma sensível de apresentação, como a

poesia, por exemplo, que precisa das palavras como medium para atingir nosso

entendimento; ou, ainda, no caso da melodia da música que precisa dos instrumentos e

das ondas mecânicas do som para derramar-se em nossa alma.

Com efeito, o homem só consegue contemplar a beleza porque também é

cidadão de dois mundos. Contudo sua tendência a estética o permite aprimorar seus

sentimentos, inclusive seus sentimentos em relação à beleza. Esta convergência de

cidadanias entre as dimensões da existência humana e as dimensões de manifestação da

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beleza não são, para Schiller, uma simples coincidência casual de fatores, mas, em

verdade, são uma co-incidência de caracteres fundamentais, uma simbiose necessária,

reunidas em uma tendência sensível-racional, na fusão que chamamos de humano, tal

como nos explica o filósofo:

Felizmente, não se encontra apenas em sua natureza uma aptidão

[Anlage] moral, possível de ser desenvolvida por meio do

entendimento, mas também já está dada em sua própria natureza

sensível-racional, ou seja, em sua natureza humana, uma tendência

estética, que pode ser despertada por certos objetos sensíveis e

cultivada por meio de uma depuração dos seus sentimentos até

alcançar essa impulsão idealista do ânimo (SCHILLER, 2011, p.57)

Neste excelente recorte, retirado da compilação de artigos publicadas no

Brasil sob o título de Do sublime ao trágico7, vemos novamente a ênfase esteticista de

Schiller, ao enfatizar a natureza estética do ser humano, bem como a necessidade de

educa-la por intermédio do aprimoramento dos sentimentos.

Por meio de uma imagem metafórica, Schiller procura mostrar que nesta

tendência estética não considera só o belo e o agradável como aprazível, pois que

também o assustador, o temível, o pavoroso e outras sensações aparentemente

desagradáveis podem provocar um sentimento estético:

São os dois gênios que a natureza nos concedeu como acompanhantes

pela vida. Um deles, sociável e encantador, encurta nossa viagem

extenuante com seu jogo animado, torna leve os grilhões da

necessidade e nos conduz, entre alegrias e brincadeiras, até os lugares

perigosos em que temos que agir como puros espíritos, deixando para

trás tudo o que é corpóreo, até o conhecimento da verdade e até o

exercício do dever. Aqui ele nos abandona, pois apenas o mundo

sensível é sua região; para além deste, suas asas terrenas não podem

carregá-lo. Mas agora entre em cena o outro, sério e calado, e com

braço forte nos transporta por sobre a profundidade vertiginosa

(SCHILLER, 2011, p. 59)

Esta imagem evocada por Schiller, como toda boa metáfora, é deveras

abrangente e retrata com perfeita clareza, nossa relação tanto com o belo, quanto com a

arte. É tão abrangente que nesta mesma metáfora podemos até entrever uma imagem

didática para explicar as antagônicas forças que compõem nossa existência na

perspectiva nietzschiana, respectivamente, o gênio dionisíaco e o apolíneo. Contudo,

não convém antecipar precipitadamente a ordem do discurso, pois que ainda tentaremos

7 Trata-se da publicação conjunta em português de dois artigos de Schiller, Do sublime: para uma

exposição ulterior de algumas ideias kantianas [Vom Erhabenen (Zur weiteren Ausführung einiger

Kantischen Ideen)] e Sobre o Sublime (Über das Erhabene).

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tratar com mais proximidade nesta mesma parte do estudo e também pelo fato de que,

para Schiller, ambos os espíritos fazem parte da mesma categoria do gosto, isto é,

ambos estão relacionados diretamente ao que nos apraz. Na ordem apresentada por

Schiller o primeiro, mais alegre e animado, seria o sentimento do belo e o segundo,

mais sério, taciturno, porém arrebatador, seria o sentimento do sublime.

Ao pensarmos inicialmente em sublime o associamos corriqueiramente a

algo grandioso, algo muito elevado, e mesmo divino. Nunca o associamos a algo

assustador, terrificante. No entanto, sabemos que na reflexão filosófica, como na poesia,

as palavras retomam sentidos e significados perdidos e esquecidos, bem como também

tomam sentidos diversos do original ou do corriqueiro. Veremos este fenômeno muitas

vezes ainda.

Em relação a isso, o professor Pedro Süssekind, grande tradutor de Schiller,

Nietzsche, Goethe entre outros filósofos e poetas alemães, aponta em seu ensaio Schiller

e a atualidade do Sublime, que o conceito de sublime, no início da idade média, foi

utilizado por um escritor romano chamado Cássio Longino, em um Tratado sobre

poética e retórica com um significado já peculiar:

O adjetivo “sublime” caracteriza, portanto, certas passagens de Homero,

Demóstenes ou Platão capazes de arrebatar, persuadir e agradar com uma força

irresistível os ouvintes, por serem grandiosas não só pela matéria para reflexão, como

também pela marca indelével que deixam na lembrança (SÜSSEKIND, 2011, p.78)

Além de ser o ponto mais alto do discurso, remetendo inevitavelmente ao

que já conhecemos comumente como sublime, esta definição já agrega em si a noção de

arrebatamento ou da forte impressão, seja ela poética ou retórica, causada no leitor ou

no espectador. Por uma transposição de sentido, já no período moderno, o conceito de

sublime foi se vinculado gradativamente ao sentimento de prazer que a admiração das

forças da natureza nos causa (SÜSSEKIND, 2011, p.76;78). E que muito tempo depois,

somente com Burke e Kant, esta definição recebe um deslocamento, se referindo não

apenas aos fenômenos da natureza, como também às impressões que as manifestações

artísticas (SÜSSEKIND, 2011, p.76).

O artigo de Schiller Do sublime (para uma exposição ulterior de algumas

ideias kantianas) é uma tentativa do pensador de explicar pela via Kantiana o conceito

de sublime e a subdivisão instaurada por Kant no mesmo. Para Kant, o sublime divide-

se em “sublime matemático” e “sublime dinâmico” (SCHILLER, 2011, p.23) e tem

como uma de suas características um prazer negativo, um prazer gerado justamente pelo

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desconforto e desprazer que causa em nós (SCHILLER, 2011, p.21). O sublime

matemático diz respeito a representações ou fenômenos intangíveis à imaginação

humana por sua associação a ideia de infinitude e nossa pequenez diante deles

(SÜSSEKIND, 2011, p.84), tal como um precipício sem fundo, a imensidão do mar, as

profundezas abissais do oceano, as entranhas de uma floresta colossal. Já o sublime

dinâmico está ligado está relacionado a representações ou fenômenos que nos

impressionam pela força, poder ou violência com que se nos apresentam (SÜSSEKIND,

2011, p.85-86), tal como uma tempestade, os trovões, a pororoca ou cataratas como as

de Foz do Iguaçu.

Baseado nos estudos de Kant, Schiller vai desenvolver sua própria noção de

sublime e belo indo além em sua transposição do termo, avaliando novas perspectivas

de utilização da terminologia no campo estético-artístico, intensificando o efeito do

sublime na arte e tratando-o não apenas relacionado à natureza, “possibilidades que,

embora indicadas na Analítica, não tinham sido previstas por Kant” (SÜSSEKIND,

2011, p.87).

Fica claro, ao início do artigo Do Sublime, que Schiller não vai apenas

apresentar as ideias kantianas, mas dialogar com elas marcando suas diferenças, caso

contrário, nosso autor não teria necessidade de dar uma nova classificação aos termos

empregados por Kant, chamando-os não mais por sublime matemático e dinâmico, mas

agora por “sublime teórico” e “sublime prático”

Utilizando os mesmos exemplos de Kant e Burke, Schiller irá tomar o

oceano como imagem, explicando que o mesmo fenômeno apresenta a manifestação do

sublime teórico e do sublime prático. Assim, o oceano em calmaria, por sua intangível

massa de água se apresenta como sublime teórico por impressionar nossa capacidade de

representação intelectual; já o oceano em tormenta se transforma em sublime prático por

ameaçar nosso senso de autoconservação, infligindo a nós certo desconforto, em ambos

os casos (SCHILLER, 2011, p.25). Em ambos os casos o sublime mantém relações

semelhantes com a razão, no entanto, no que tange à sensibilidade esta relação é

completamente diversificada, tanto pelo interesse que desperta em nós, quanto pela

intensidade com que nos afeta. No sublime prático tanto o interesse quanto a

intensidade com que nos afeta são mais amplificadas que no sublime teórico, justamente

porque “o impulso de autoconservação eleva uma voz bem mais alta do que o impulso

de representação” (SCHILLER, 2011, p.27).

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Do mesmo modo que em Kant, o desprazer gerado por essas impressões

causadas pelos dois tipos de sublime, pode gerar um prazer. Entretanto, – e aqui se

inicia um ponto de afastamento com Kant– esse sentimento estético de prazer só pode

advir da máxima já aplicada por Schiller em outras obras, a saber: da liberdade no

fenômeno. O temor e a dor são estados de violência contra a razão e a sensibilidade, e

só podem tornar algo sublime e admirável esteticamente como representação ou quando

não nos encontramos efetivamente em perigo ou efetivamente violentados, porquanto

“A liberdade interna do ânimo é absolutamente necessária para que se considere

sublime o temível, e para que se tenha agrado com ele; pois ele só pode ser sublime

porque nos faz sentir nossa independência, nossa liberdade do ânimo” (SCHILLER,

2011, p.32)

Destarte, uma apreciação estética dos sublimes só receberia esta liberdade,

se o risco apresentado não fosse efetivado em nós, como se conseguíssemos assistir o

perigo sem estar presente, tal como um espectador que, ainda que temendo o

representado ou apreciado, tenha ciência de sua segurança psíquica e, sobretudo, física.

Isto seria, por exemplo, comparável à experiência de admirar, de um dos seus vários

mirantes, as cataratas do rio Iguaçu e a experiência real de ter sua embarcação tragada

pelas correntezas em direção às colossais quedas d’água deste rio.

Ainda no artigo Do sublime, após conceituar o sublime prático, Schiller irá

inserir uma subdivisão nesta forma de sublime, distinguindo entre “sublime

contemplativo” e “sublime patético”. O primeiro, sublime contemplativo, diz respeito

aos fenômenos ou objetos que se mostram como ameaça não apenas ao estado físico,

mas também ao estado interno do indivíduo, alternando essa ameaça por meio da

decisão imaginativa do indivíduo, isto é, se aflição ou desprazer gerado será físico

(externo) ou psicológico (interno) (SCHILLER, 2011, p.41). Exemplo deste Sublime é o

medo que temos da escuridão, pois além do temor externo de se machucar, caindo ou

esbarrando em algo perigoso, há o temor interno do desconhecido, do inesperado, do

indeterminado que povoa nosso imaginário (SCHILLER, 2011, p.43), fazendo o ser

humano cair no que Schiller chama de “jogo arbitrário da fantasia” (SCHILLER, 2011,

p.46)

Já o sublime patético, responde aos objetos ou fenômenos que se

apresentam a nós não apenas como um poder muito maior que o indivíduo, mas como

um poder muito maior e irreversivelmente pernicioso ao indivíduo, tal como a morte, as

doenças, o envelhecimento, o destino.

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Mas que qualquer outra forma já apresentada, o sublime patético depende

do jogo da fantasia e da ilusão para ser efetivado como sublime, pois, explica Schiller,

“o sofrimento só pode se tornar estético e despertar o sentimento do sublime quando é

mera ilusão ou criação poética, ou (...) quando é representado não de modo imediato

para os sentidos, mas antes para a faculdade de imaginação (SCHILLER, 2011, 48). O

adjetivo patético refere-se ao termo grego pathos e caracteriza este sublime como sendo

um sofrimento gerado pelo afecto ou afecção, gerados pela absorção moderada do

sofrimento alheio; um compadecimento que, se resguardado em seus limites estéticos,

pode nos tornar melhores ao lidar com nossos próprios infortúnios e destinações.

O segundo texto apresentado na compilação usada aqui, intitulado Sobre o

Sublime, parece ser uma reformulação que leva em consideração os conceitos kantianos

apresentados em Do sublime, mas com a diferença de que, agora, a preocupação de

Schiller não é a de determinar e explicar conceitos, mas a de ensaiar mais livremente a

relação do homem com as experiências estéticas, entrevendo já o conflito entre racional

e sensível, desenvolvido com mais propriedade na Educação estética do Homem.

Em Sobre o sublime, Schiller irá retomar mais efusivamente a relação entre

belo e sublime e relacioná-los à arte, afirmando a importâncias da conjugação destes

elementos para a formação do ser humano integral, fato ressaltado por Vladmir Vieira

no prefácio à compilação dos artigos,

Sob tal perspectiva, belo e sublime são compreendidos como dois

elementos complementares e indispensáveis para o processo de

educação estética que levaria o homem a realizar de modo pleno sua

destinação superando a cisão entre as suas duas naturezas – sensível e

racional – de que os comportamentos bárbaros e selvagens do século

XVIII davam testemunho (VIEIRA, 2011, p.15)

Fazendo parte dos domínios do gosto, fica claro que belo e sublime são

parte inegável da estrutura humana e que, por serem capacidades já dadas no ser

humano, devem ser bem cultivadas. Contudo, com o advento da razão como estandarte

da formação e cultivo do ser humano, terminamos por desvalorizar o papel e a

importância da educação do gosto, desequilibrando a harmonia das instâncias humanas

e deixando a formação estética em último plano, a despeito de ser uma das primeiras

faculdades a florescer no ser humano. Enquanto o gosto não amadurece, Schiller indica

que “nesse meio tempo, ganha-se prazo suficiente para o cultivo de uma riqueza de

conceitos na cabeça e de um tesouro de princípios no peito, e em especial para que se

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desenvolva a partir da razão a capacidade de sentir voltada para o grande sublime”

(SCHILLER, 2011, p.65).

Dando ensejo a classificar não apenas o belo, mas o sublime como um

elemento de fundamental importância para a educação dos sentimentos, elemento que

pode nos ajudar a compreender melhor nossa relação com a natureza e como o outro e,

principalmente, pode auxiliar na intricada tarefa de harmonizar nossas instâncias

cindidas no soterramento do sensível e do estético pelo sobrepujo da razão.

II.1.3 A tragédia

Ao final do artigo Do sublime, Schiller irá expor em suas últimas linhas as

condições fundamentais para que se apresente a arte pelo viés do sublime patético, que,

a saber, se resumem em duas condições: primeiramente, que apresente uma

representação vivaz do sofrimento, despertando o afeto compassivo, com a dose de

intensidade apropriada; e, em seguida, que ofereça uma resistência contra o sofrimento,

por meio de liberdade interna do ânimo. Assim, apenas com a primeira condição o

objeto se torna patético (pathos), e somente por meio da segunda ele se torna sublime

(SCHILLER, 2011, p.51).

Note-se agora que exatamente no último parágrafo do artigo, o filósofo irá

entrelaçar inexoravelmente o sublime, mais especificamente o sublime patético, à arte

trágica, ao fundamentar em caráter mais abrangente as duas condições acima descritas,

asseverando que “Deste princípio seguem as leis fundamentais de toda arte trágica.

Estas são, em primeiro lugar, a apresentação da natureza que sofre; em segundo lugar, a

apresentação da autonomia moral do sofrimento” (SCHILLER, 2011, p.51-grifo nosso).

Note-se que no recorte Schiller dá um passo mais extenso do que se poderia supor, em

direção à compreensão atual de trágico, pois que o pensador não está falando aqui da

tragédia como poesia, ou como gênero literário, mas fala de um movimento geral da arte

ao mencionar que se tratam de “leis fundamentais de toda arte trágica”. Com este sutil,

mas gigantesco passo, Schiller parece expandir não só a concepção de sublime, mas a

compreensão de trágico; há um só tempo, ampliando a atuação do sublime para a arte e

não mais apenas aos domínios da natureza, e elevando o patamar de atuação da tragédia,

de uma mera modalidade da arte (gênero literário), para um movimento geral que se

pode encontrar nas várias modalidades de arte. Marcando com isso um franco

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afastamento da tradição aristotélica que baseia sua compreensão de tragédia como um

gênero literário.

Em seu ensaio Sobre o patético (1801), publicado primeiramente como a

segunda parte do Sobre o sublime, Schiller analisa mais uma vez as características e

finalidades do sublime patético, utilizando, em várias passagens, exemplos de aplicação

do sublime não apenas em peças teatrais e poesias, mas também na escultura citando o

grupo de mármore de Laocoonte com seus filhos e A morte da filha de Níobe, onde a

expressão de agonia e nudez das personagens apresentam a natureza humana, nua,

desprovida de adereços e roupas, desprotegida e aflita, apresentando aí o primeiro dos

preceitos da arte trágica: a apresentação da natureza que sofre. Neste ensaio

encontramos um trecho sobre as leis da arte trágica em geral, fragmento perfeitamente

análogo ao que citamos há pouco, onde explica que, “a primeira lei da arte trágica era a

representação da natureza padecente. A segunda é a resistência moral ao sofrimento”

(SCHILLER, 1964, p.107).

Neste ensaio Schiller vai ressaltar mais ainda o patamar da arte trágica. Para

ele, a finalidade suprema da arte não é tão somente a imitação do sensível, ou em termos

platônicos, a imitação da natureza; mais que isso, “o fim ultimo da arte é a

representação do supra-sensível” (SCHILLER, 1964, p.103). A primazia da arte trágica

reside em sua capacidade intrínseca de representar e expressar com maior profusão este

supra-sensível ao corporificar a independência moral de leis naturais no estado patético

(pathos) (SCHILLER, 1964, p.103), em outras palavras a arte trágica, quando atingido o

patamar de verdadeiramente trágica, não pode fazer outra coisa senão apresentar-nos de

modo vivaz o sofrimento e redimir esta sensação por meio da liberdade moral em

relação ao apresentado.

Roberto Machado em seu O nascimento do trágico, dedica um capítulo à

compreensão do passo dado por Schiller em direção à construção da compreensão de

“trágico” como um aspecto da existência humana. Em sua análise inicial Machado se

pergunta acerca do que seria o supra-sensível na linguagem empregada por Schiller,

levantando a hipótese de que o supra-sensível para o pensador alemão não diz respeito à

um construto metafísico, num sentido de um além-mundo, nem de um plano ideal,

tampouco de um absoluto, como queria Hegel, mas, na verdade, parece dizer respeito à

subjetividade humana, isto é, no ser humano não como corpo mas como uma vontade

livre, como uma liberdade moral (MACHADO, 2006, p.54). Este supra-sensível, de

acordo com fragmentos apresentados por Machado, seria

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O que Schiller, em “Sobre o sublime” chama, de “grandioso absoluto”

e localiza no interior do homem: uma “faculdade transcendente”, que

possibilita a resistência moral à paixão, ao afeto, ao sofrimento; uma

força ou um princípio racional, moral, capaz do opor um limite aos

efeitos da natureza. Posição que aproxima Schiller mais de Kant do

que do idealismo absoluto (MACHADO, 2006, p.55)

O interessante de se notar a inegável influência de Kant sob Schiller, é que,

como Kant aplica várias definições para moral em sua arquitetônica filosófica, torna-se

mister ressaltarmos aqui a que aspecto da moral Schiller está se referindo ao mencionar

a “liberdade moral” do homem. Em uma nota de pé de página, Machado esclarece, por

meio de vários fragmentos das obras de Kant, que a liberdade moral ou liberdade em

sentido prático, figura como “a independência do arbítrio frente à coação dos impulsos

da sensibilidade, (...). O arbítrio humano (...) é um arbitrium liberum porque a

sensibilidade não torna necessária sua ação, e o homem possui a capacidade se

determinar por si” (KANT Apud MACHADO, 2006, p.55).

Esta definição acerca de que moral Schiller se refere ao mencionar

“liberdade moral”, ou “independência moral”, é fundamental não só para a compreensão

da proposta estética schilleriana, como também para os rumos de nossa pesquisa, ao nos

aproximarmos de Nietzsche, já que, na perspectiva nietzschiana, a questão moral é um

problema bem contundente. Com efeito, há mais um sentido de “moral” que deve ser

analisado neste ensejo aplicado por Schiller na arte: o de moral como decoro.

Ao falar das esculturas gregas Schiller reflete sobre o fazer profundo dos

escultores que, removendo as roupas e adereços desnecessários, apresentava o ser

humano mais perto quanto possível de sua natureza e de sua essência, pois que, neste

caso, os pudores traduzidos por meio de vestimentas e acessórios, seriam um fardo

inútil para a expressão mais legítima da arte e sua finalidade de nos tocar. Do mesmo

modo que os escultores, os poetas libertavam suas personagens das leis da conveniência

e “de tôdas as frígidas leis do decôro” (SCHILLER, 1964, p.105), que segundo o

filósofo-poeta, “só artificializam o homem e lhe acobertam a natureza” (SCHILLER,

1964, 105). Na mesma medida em que o decoro, as leis da conveniência, e o pudor,

demovem a liberdade da arte, o julgamento moral é um empecilho para a apreciação

estética da arte, sobretudo no que tange a arte trágica, já que, segundo Schiller, tais

juízos imprimem na alma humana direções diametralmente opostas; e a lei moral

imposta pela razão arrasa a licença moral exigida pela imaginação no âmbito estético,

sendo fundamental, para o desenvolvimento franco de uma arte, uma licença moral

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(SCHILLER, 1964, p.127), “por isso”, arremata o pensador dramaturgo, “quanto mais

um objeto se qualificar para o uso moral, tanto menos se prestará ao uso estético”

(SCHILLER, 1964, p.128). Nesse sentido, nosso filósofo está se referindo aqui aos

juízos morais, que respondem ao correto, ao bom, ao decoro, e não à liberdade moral ou

atitude moral, que responde à liberdade, ao arbítrio humano, à vontade livre. Só a essa

última concepção de moral se liga a liberdade da alma que deve atuar no fenômeno

estético, afirmação contida explicitamente no último excerto que encerra o ensaio Sobre

o patético:

Nos julgamentos estéticos, pois, não nos interessamos pela moralidade em si

mesma, mas apenas pela liberdade, e aquela só pode agradar a nossa

imaginação na medida em que torna patente a última. Por isso, é evidente que

se baralham os limites ao exigir-se finalidade moral em coisas estéticas e ao

querer-se desalojar a imaginação do seu legítimo domínio a fim de ampliar o

domínio da razão. Ou se terá de subjugar totalmente a imaginação e isto será

a morte de todo efeito estético, ou ela irá partilhar a sua soberania com a

razão, com o que não se terá ganho muito para a moralidade. Ao perseguir-se

dois fins diversos, correr-se-á o risco de não alcançar nenhum. Assim, se

manietará a liberdade da fantasia através da rigorosa regra moral e se

destruirá a necessidade da razão através da arbitrariedade da razão

(SCHILLER, 1964, p.132)

Esses breves adendos sobre os empregos do termo moral na estética

schilleriana, são necessários de serem mencionados aqui, por serem mais bem

explorados nos textos que tratam sobre a arte trágica e, consequentemente, por estarem

relacionados com a arte trágica já que esta expressão da arte é a que, com mais

profusão, apresenta sensivelmente o supra-sensível por meio do sofrimento, do

desprazer, do terror, da violência das emoções, nos impelindo a considerar as

inadequações para, em seguida, ajustar o prazer pela resistência oferecida pela liberdade

ante o sofrimento.

Essa relativa liberdade moral da arte, afirmada por Schiller no excerto

supramencionado, é o que permite que a arte nos encante com representação tanto do

belo quanto do feio, ou nos encante com a representação do correto e do incorreto, do

moralmente aceito e do “imoral”, pois nas representações que a arte nos concede, “a

vida de um criminoso não nos deleita menos pelo cunho trágico que o sofrimento de um

homem virtuoso;(...) para a arte, todavia, são ambos objetos deveras gratos e neles nos

demoramos com elevada satisfação” (SCHILLER, 1964, p.23). Na verdade, a

fascinação que o prazer gerado pelo desagradável causa em nós é um tipo de atração,

um magnetismos mágico que nos arrasta em direção ao horror, ao desconhecido, ao

suspense e à expectativa gerada pelo inesperado:

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A experiência ensina que é a emoção desagradável a que maior

atração exerce sobre nós e que, pois, o prazer no afeto está em

relação justamente oposta ao seu conteúdo. É fenômeno comum

em nossa natureza que o que infunde tristeza, temor e mesmo

horror, nos atraia a si com irresistível magia e que, com igual

força, nos sintamos repelidos e atraídos ante cenas de desespero

e horror (SCHILLER, 1964, p.77)

Esta inexplicável mixórdia entre atração e repulsão nos ajuda a

compreender, pelo menos, o motivo de termos tantos livros e filmes de terror e suspense

e por gostarmos tanto de jogos de azar, jogos eletrônicos de terror e suspense, nutrirmos

atração por fictícios bandidos e anti-heróis, dentre outros exemplos deste prazer gerado

pela inquietação que nos causam.

Para que o sofrimento gerado por essas representações se converta em

prazer é necessário que essa representação siga a máxima da liberdade no fenômeno,

isto é, eu não nos prenda no jugo do factual e “permita o livre jogo de nossa

imaginação” (SCHILLER, 1964, p.90), pois o fim supremo da arte, para Schiller não é

tão somente, imitar a natureza e apresentar o real por meio de artifícios; tampouco servir

como simples entretenimento. Tais características são sim funções da arte, mas não são

a finalidade suprema, pois que a função mais elevada da arte é proporcionar prazer ao

espectador, utilizando, para isso, os mais variados meios. Logo, diz o próprio Schiller,

“aquilo que em todo sistema dos fins, não passa de um elo subalterno, pode a arte isolar

dessa vinculação e perseguir como fim primacial. O prazer pode representar para a

natureza apenas um fim imediato, para arte é um fim supremo” (SCHILLER, 1964,

p.83), levando-nos a crer que uma tal arte que tenha a mera finalidade de divertir é

vazia, do mesmo que uma representação é pobre caso vise tão somente copiar a

natureza, sem intencionar nessa representação capturar alguma aura, sentimento,

sensação. Por outro lado, quanto mais se aproxime do fim primacial de proporcionar

prazer estético na apreciação, mais plenamente pode ser considerada uma expressão

estética plena.

Nesse sentido, o tipo de arte que pode proporcionar o prazer mais elevado é

aquele que nos consiga produzir o mais íntimo prazer por meio do afeto, isto é, do

sofrimento, das emoções entristecedoras, do sublime, pois que impressionam com mais

força nosso senso estético. Este tipo de arte, só pode ser definido, de acordo com

Schiller, por arte trágica: “Aquela arte, porém, que se propõe como finalidade suprema

o prazer na compaixão, leva, no sentido mais lato, o nome de arte trágica” (SCHILLER,

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1964, p.83). Lembrando que o pensador chama aqui de “compaixão” diz respeito ao

pathos, ao afeto, no sentido semelhante ao empregado por Espinoza, de ser afetado por

algo, e não no sentido de mera piedade.

Poderíamos, diante dessas definições dadas por Schiller, considerar trágicas

obras como O iluminado, de Stephen King, O médico e o monstro, de Robert Louis

Stevenson, ou, mesmo, O cavaleiro das trevas com sua violência e desenhos toscos de

Frank Miller? Tomando por base o que foi explicado, isso irá depender da liberdade que

a obra conceda ao livre jogo da imaginação e, sobretudo, à capacidade que tem de

proporcionar prazer, fim último da arte. Nessa perspectiva, parece ser menos relevante

os meios para se atingir o aprazível, o que, em outras palavras, nos autoriza a dizer que,

mesmo que tais obras apresentem o feio, o repugnante, o tosco, estes devem ser apenas

meios para ase atingir um fim. Logo, uma vez atingido o fim de proporcionar prazer,

pouco irá importar as aparentes classificações entre belo e feio, perfeito e imperfeito,

tosco ou polido.

Ressalta-se, novamente, que ao falar “arte trágica”, Schiller está

demarcando uma característica própria de um tipo de arte, uma espécie de arte mais

elevada que atinge nossos canais estéticos com mais força e profundidade. Schiller,

portanto, foi o primeiro a perceber uma diferença entre a tragédia como estilo dramático

e o trágico como um aspecto da arte e da existência humana, elaborando por primeiro

uma teoria do trágico:

Se, como vemos, Schiller retoma a seu modo a concepção kantiana do

sublime, sua principal originalidade a esse respeito foi ter compreendido

antes de qualquer filósofo ou artista, que seria possível interpretar a teoria da

tragédia – em sua época determinada pela leitura de Poética de Aristóteles –

a partir da teoria kantiana do sublime. Deslocando a teoria do sublime, em

Kant centrada no privilégio da natureza, para o domínio da arte vendo na

tragédia uma arte que apresenta uma ideia da razão por intermédio da

manifestação sensível (...), Schiller foi o primeiro a elaborar uma teoria do

trágico. (MACHADO, 2006, p.72)

Deste modo, pode-se dizer que o deslocamento da concepção de sublime

para o âmbito da arte, juntamente com a sutil percepção de uma caraterística peculiar do

trágico na existência humana, foi um dos grandes Insights do pensamento de Schiller,

uma filosofia que durou pouco mais de dez anos, mas que surpreendeu pela sua

acuidade de espírito em captar tais sutilezas que, até então, nenhum filósofo por

profissão tivera percebido e que abriram caminho para a reflexão de pensadores

ulteriores.

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II.1.4 Ingênuo-Sentimental

Para que possamos progredir nesse tópico de estudo, a primeira exigência é

que não nos apeguemos aos sentidos corriqueiros com que tomamos Ingênuo e

Sentimental. Esqueçamo-nos do sentimental apaixonado e sofrente de Altemar Dutra e

Rodrigo Amarantes ou do Ingênuo tolo de Pixinguinha. Sigamos o conselho de

Schlegel, aplicando-o aos dois casos:

Esqueçam por um momento o corriqueiro e mal-afamado sentido do

sentimental, nome sob o qual se entende quase tudo aquilo que é

trivialmente comovente e lacrimoso, e na consciência do qual homens

sem caráter, cheios de familiares sentimentos magnânimos, sentem-se

indizivelmente felizes e grandes (SCHLEGEL Apud SUZUKI 1991,

p.23)

Como já dissemos no último tópico da primeira parte deste interlúdio, o

termo sentimental, assim como o romântico, foi associado ao apaixonado suspirante,

comovido com quaisquer pormenores. Este alerta é fundamental, pois que a escolha do

termo utilizado por Schiller foi feita justamente para diferenciá-los destes outros

sentidos e localizar o debate sobre o fazer artístico-poético dos antigos e dos atuais ou,

nos termos de Goethe, o debate entre o clássico e o romântico. Então, equiparando-se

aos termos usados por Goethe, Schiller tomou o clássico como o ingênuo e o romântico

como o sentimental. Sua classificação, no entanto, não se restringia a analisar pontos

cronológicos e características da época do fazer artístico, mas características próprias

dos artistas, refletindo profundamente sobre os fundamentos do modus operandi de cada

um dos tipos de artista.

Procurando o distanciamento com o movimento cultural ainda predominante

em sua época chamado de Empfindsamkeit, algo como “sentimentalismo”, bem como

dos romances ingleses de forte apelo emocional chamados de Sentimental (cognato

grafado em inglês), Schiller aplica o termo sentimentalisch, correlato no uso cotidiano

aos dois termos anteriores, sobretudo ao termo inglês, apresentando mesmo o mesmo

radical, inclusive (SUZUKI, 1991, p.24). No entanto, demarcando sua utilização e

elevando seus atributos, o pensador irá dotar o termo sentimental (sentimentalisch) de

um sentido mais filosófico associando o sentimento da pejorativa conotação emocional

e relacionando-o às faculdades reflexivas do ser humano. O mesmo se pode dizer do

ingênuo (naive) que, a partir do empréstimo de aspectos do termo em francês naïf, que

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designava um estilo estético bastante em voga no século XVIII8, foi estendido ao fazer

poético e analisado de modo mais profundo por Schiller, descrevendo com mais

detalhes características e processos de criação que, até então, tinham sido mencionadas

por artistas e filósofos. Feitas estas distinções iniciais, passemos agora à descrição de

alguns desses aspectos descritos por Schiller sobre o fazer ingênuo e sentimental,

respectivamente.

Como dissemos acima, alguns filósofos e artistas já compunham reflexões

sobre o sentido de ingênuo, sem, no entanto, dedicar a mesma atenção e energia que

Schiller despendeu na compreensão do processo criativo. É bem claro que sua

concepção toma emprestado elementos do pensamento de autores como Lessing, de

Fichte, Goethe e, sobretudo Kant. Contudo, tais empréstimos são, por vezes, mesclados

com suas próprias concepções e justapostos entre si, formando uma explicação, há um

só tempo, rica, criativa e sistemática.

Com efeito, para Schiller a primeira marca do ingênuo é sua unidade com a

natureza. Por ser uno com a natureza, o ingênuo tem a capacidade de apreendê-la e

expressá-la com a mesma naturalidade com que vive nela. A simplicidade no trato com

as coisas é uma característica marcante do ingênuo, pois se o indivíduo se utiliza de

muitos artifícios e atavios, ignorando ou suplantando a natureza estará ele se afastando

da harmonia com o natural (SCHILLER, 1991, p.49).

É ingênuo todo aquele que se manifesta por intenção infantil e que, muitas

vezes, se manifestam com pureza e qualidade de seres ainda não corrompidos tal como

as crianças, porquanto,

O ingênuo na maneira de pensar jamais pode, por isso, ser uma

qualidade de homens corrompidos, mas concerne apenas a crianças e

homens de intenção infantil. Muitas vezes esses últimos agem e

pensam ingenuamente em meio às relações artificializadas do grande

mundo; esquecem-se, por própria e bela humanidade, que tem que

lidar com um mundo corrompido (SCHILLER, 1991, p.49- grifos

nossos)

Todavia, ao mencionar esse ser de “intenção infantil”, entenda-se esse

“infantil” não no sentido de pueril, bobo, ou imaturo, mas no sentido de pureza e boa

vontade de atitudes. A dificuldade para Schiller, e para todos nós ainda hoje, é

conseguir distinguir entre o que seria a inocência realmente imatura (pueril) e o que

8 Vide verbete “Ingenuidade”, citando Kant e Schiller no Dicionário de filosofia de Nicola Abbagnano

(ABBAGNANO, 1998, p565)

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seria a inocência infantil, diferença que o pensador marca, respectivamente, como

“ingênuo da surpresa” e “ingênuo da intenção”, afirmando que “no primeiro caso, ele é

o ingênuo da surpresa, e diverte; no segundo é o ingênuo da intenção e comove”

(SCHILLER, 1991, p.47). Do mesmo modo, há também a dificuldade de discernir entre

o que seria esta intenção pura, verdadeira, e o que seria uma intenção artificializada ou

forjada para que pareça uma intenção bela e pura.

Como o ingênuo consegue captar o todo da natureza, estando em estado de

unicidade com ela, sua produção intelectual e artística será algo fluente e natural, quase

que instintiva. Por isso, de maneira simples e sem atavios ou artificialidades ele será

intuitivamente capaz de resolver de modo natural os problemas mais complexos, ou

expressar algo complexo por meio de algo simples, como se o efeito ou a obra

produzida fosse tão espontânea que se parecesse com uma obra da própria natureza. Tal

fluência no processo de criação só é possível por sua afinidade com o “gênio”, que é

mais uma característica fundamental do ingênuo. O “gênio” é a capacidade criativa

natural e fluente em resolver com simplicidade o complexo, em expressar o

inexprimível, em exprimir o universal por meio particular ou, o inverso, atingir o

particular por meio do universal, um poder e uma visão das formas sutis que não podem

ser ensinados nem explicados a outrem, pois, comenta Suzuki,

Passado, no entanto, o momento da criação, o poeta ou artista, apesar

de toda a maestria, não será absolutamente capaz de mostrar nem

como reuniu as ideias em sua mente, nem como chegou a uma obra

tão coerente e orgânica que parece ter sido feita segundo uma intenção

premeditada embora não sirva a nenhuma finalidade específica. O

próprio gênio, afirma Kant, “não pode descrever ou mostrar

cientificamente como executa seus produtos” (SUZUKI, 1991, p.17-

18)

Assim, na mesma medida em que todo ingênuo possui em si o germe do

gênio, todo gênio, para conseguir fluir com clareza, sua unidade com a natureza deve,

necessariamente, permitir vazão à sua ingenuidade. Com a visão clara do todo, o gênio

pode transcender ou transgredir as normas e limitações impostas, transpondo seus

obstáculos, tendo como guia ou “anjo da guarda” a natureza e o seu instinto numa

conjugação entre intelecto, sensibilidade e imaginação e criatividade para driblar as

dificuldades que se lhe apresentam, por isso, “apenas ao gênio é dado estar sempre em

casa fora do que é conhecido e ampliar a natureza e ir além dela” (SCHILLER, 1991,

p.51), retratando com isso a atual expressão popular do “pensar fora da caixa”. O gênio

do ingênuo se manifesta quando um Arquimedes encontra numa tina uma resposta, ou

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quando um Newton encontraria numa maçã uma lei universal, ou, ainda, por uma ideia

simples, mas imprevista como possível solução, tal como o ovo de Colombo, como

sugeriu Schiller (SCHILLER, 1991, p.51). Mais que isso, o gênio no ingênuo se

manifesta também quando, do soletrar silabas, sai o som da palavra reconhecida pela

primeira vez pela criança, ou, mesmo, quando da leitura de um livro o indivíduo, por

suas próprias forças e capacidade de apreensão do todo, consegue deduzir o significado

de uma palavra e usá-la daí por diante, dentre outras miríades de exemplos.

Para o poeta-filósofo, os gregos por sua ligação com a natureza e

conservação da unidade entre o sensível e o racional, preservaram por muito tempo uma

cultura e formação ingênuas. Uma formação, que baseada em um arcabouço mitológico,

conseguia retratar com a harmonia as facetas do ser humano, não por meio de uma razão

adoecida e meditabunda, mas através do que o filósofo classificou como “imaginação

jovial” (SCHILLER, 1991, p.56).

Então, afirma Schiller, “nosso sentimento pela natureza assemelha-se à

sensação do doente em relação a saúde” (SCHILLER, 1991, p.56). O sentimento de

perda deste período doirado, assim como a nostalgia que se tem de uma infância

idealizada como a melhor das épocas de um indivíduo, se aproxima agora do sentimento

vivido pelo artista ou poeta sentimental.

O artista sentimental é aquele que, sentindo-se como um exilado de sua terra

natal tenta reproduzir, com os artifícios que lhe são possíveis, os sentimentos e a

unidade perdida, o todo ainda não cindido:

Enquanto ainda é natureza pura, quer dizer, não é natureza rude, o

homem atua como indivisa unidade sensível e como todo

harmonizante. Sentidos e razão, faculdade perceptiva e espontânea

ainda não se cindiram e muito menos estão em desacordo. Suas

sensações não são o jogo informe do acaso, nem seus pensamentos o

jogo sem conteúdo da faculdade de representação; aquelas provêm da

necessidade; estes, da realidade. Se o homem entrou em estado de

cultura e a arte nele pousou a mão, suprime-se a harmonia sensível, e

ele ainda pode se manifestar apenas como unidade moral, ou seja,

empenhando-se pela unidade (SCHILLER, 1991, p. 60-61)

Assim, esse sentimento de totalidade, sentimento de harmonia que outrora

ocorria de modo efetivo, agora só existe de modo ideal, como um ideal a ser perseguido

e efetivado agora mediante o pensamento. O objetivo do sentimental é, doravante, tentar

se aproximar idealmente da unidade harmônica, construindo por meio de seus artifícios

uma imitação mais aproximada quanto possível da natureza espontânea e una.

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Neste ponto do debate entre poetas modernos e antigos, Schiller vai além de

seus precursores e estabelece que a diferenciação ali apresentada, entre ingênuos e

sentimentais, não define primazia ou superioridade alguma entre uma forma e outra de

se manifestar, “Por isso”, diz o filósofo, “ou não se deveria de modo algum comparar

poetas antigos e modernos – ingênuos e sentimentais –, ou só se deveria compará-los

sob um conceito mais alto comum aos dois (um tal conceito realmente existe)”

(SCHILLER, 1991, p.62).Tal procedimento, que compara, seja antigos e modernos, seja

ingênuo e sentimentais, como se existisse uma relação de qualidade entre eles , além de

injusto com um e com outro, não nos ajuda a visualizá-las e compreendê-los como

complementares. Com efeito, podemos dizer que Schiller transcendeu o debate e não

está mais aqui falando tão somente de duas maneiras de fazer arte ou poesia, mas em

duas maneiras de compreender o próprio ser humano ou de compreender, como ele

mesmo afirma, “duas formas de humanidade” (SCHILLER, 1991, p.61). Tal

consideração é fundamental para as bases de nossa pesquisa, pois revela que tal

procedimento se aplica também a todas as maneiras de expressão do espírito humano,

incluindo-se a filosofia e a educação.

A questão da diferença entre ingênuo e sentimental, parece remeter ou

retomar a mesma questão afirmada em Educação estética do homem, que, a saber, diz

respeito à necessidade de buscarmos pelo equilíbrio entre forças, uma nova forma de

nos conectarmos ao nosso “eu” suplantado; um encontro conosco mesmos, que há muito

não víamos. Para tanto, não é suficiente somente uma reposição ou o preenchimento de

uma carência de modo unilateral, pois isso ainda deixaria desestabilizada a relação, mas

sim rever o humano como um todo. Para Schiller, não seria correto nem vantajoso

abolir o cultivo da razão em nossa educação, uma vez que nossos problemas de

afastamento do natural, do sensível, não advêm do cultivo do entendimento

(SCHILLER, 1991, p.84), mas da supervalorização e do desequilíbrio que se instaurou

nesse âmbito. Em função disso, a tarefa suprema do sentimental é tentar retomar esta

unidade harmônica: “Ao sentimental, emprestou o poder ou, antes dotou-o de um vivo

impulso para restabelecer por si mesmo aquela unidade por si mesmo aquela unidade

nele suprimida por abstração, a fim de tomar a humanidade completa em si mesmo”

(SCHILLER, 1991, p.88). Este procedimento do sentimental, explica Schiller em uma

nota, é a tentativa de coadunar estes contrários (sensibilidade ingênua e entendimento

reflexionante), confirmando assim que “a disposição sentimental é o resultado do

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emprenho em restabelecer a sensibilidade ingênua segundo o conteúdo, mesmo sob as

condições da reflexão” (SCHILLER, 1991, p.88).

Por fim, Schiller afirma que a função primordial do poeta, seja ingênuo ou

sentimental, é a de dar integralidade à natureza e expressão humana: “Dar expressão

plena à natureza humana é, no entanto, a tarefa comum a ambos e, sem isso, de forma

alguma poderia se chamar poetas” (SCHILLER, 1991, p.88). Por conseguinte, seguindo

as próprias pistas e indicações de Schiller, diríamos que esta frase poderia ser, sem

prejuízo algum para a proposta schilleriana, reinterpretá-la da seguinte forma: “dar

expressão plena à natureza humana é, no entanto, a tarefa comum das duas formas de

humanidade (ingênua e sentimental) e, sem isso, de forma alguma poderia se chamar de

plenos”.

II.2 ALGUNS ASPECTOS DA ESTÉTICA NIETZSCHIANA

Para quem já leu algo sobre o filósofo Nietzsche, não é preciso ressaltar

demoradamente o papel axial e inextrincável que a estética e a arte assumem em sua

filosofia. Já mencionamos, inclusive, que, contrariando quaisquer classificações

tradicionais da filosofia ou do academicismo, Nietzsche inicia todo o corpo de suas

reflexões, nas mais variadas áreas de análise, pelas vias livres da estética, subordinando

todos os outros valores aos estéticos, numa perspectiva que Benedito Nunes chama de

“esteticismo”, tal como já mencionamos na primeira parte de nosso estudo. Mesmo com

esta classificação de esteticista, este “ismo” que a palavra carrega não consegue reduzir

a filosofia nietzschiana a um sistema, ou ser caracteriza como uma doutrina e, menos

ainda, se exibir como “filosofia técnica”, tal como mencionou Heidegger em sua carta

Sobre o humanismo a Jean Beueufret (HEIDEGGER, 1979, p.153).

Numa concisa dificuldade em classificar o pensamento nietzschiano, é que

James Garvey, em seu livro de introdução esquemática a grandes nomes da filosofia,

admite a intricada tarefa de esquadrinhar seu pensamento e de explicá-la sem considerar

a interconexão entre as várias interpretações e considerações do filósofo-poeta:

Se desenharmos um diagrama de Venn dos filósofos, Nietzsche

ocupará uma estranha posição na interseção das áreas: a dos filósofos

que são alemães, não convencionais, influentes, ultrajantes, difíceis e

incrivelmente legíveis. Ele é todas essas coisas, mas é o fato de ser um

excelente estilista que explica grande parte da constante atração por

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seus escritos. Ninguém mudaria uma palavra sequer em sua obra,

porém, sua linguagem pode entorpecer a Filosofia, por mais legível

que seja. (GARVEY, 2009, p.101)

Visando tal dificuldade tentaremos circundar, nessa parte do interlúdio,

algumas das principais compreensões estéticas de Nietzsche que auxiliarão no retrato,

mesmo que impressionista, de suas interposições em relação ao pensamento e à estética

de Schiller.

Neste sentido, separamos para analisar aqui alguns elementos da estética

nietzschiana, a saber: apolíneo-dionisíaco; a arte, o belo e o feio; o trágico, a fisiologia

da arte, que, a despeito de suas inegáveis diferenças com as concepções schillerianas,

parecem em muitos pontos coincidir e nos auxiliar a pensar em caminhos para a

formação plena do ser humano, por serem estas ideias, mais que meras co-incidências,

concepções complementares. Com isso, cumpre dizer que ao adentrarmos na filosofia

de Nietzsche, mesmo que estacionemos e a olhemos do umbral de seu pensamento, não

estaremos entrando em num edifício de conceitos, mas num sedutor crochê

hermenêutico de concepções, fato que nos permite, por conseguinte, trabalhar em

sinergia hermenêutica com pensamentos e concepções análogas.

O prodigioso pensamento de Nietzsche, além de não se deixar ser

esquematizado tão simplesmente, não se permite elaborar um histórico catalogal de suas

fases de produção intelectual, por serem muito diversas. Entretanto, muitos estudiosos

do filósofo convencionaram reconhecer algumas fases marcantes de sua produção

intelectual. Neste sentido, é necessário que se diga que esta tímida abordagem em

relação a aspectos pontuais da estética nietzschiana, terá como setor principal de

movimentação, os escritos de juventude do filósofo, recorrendo, vez ou outra, a alguma

referência à arte encontradas em obras de sua fase intermediária – fase marcada por

rupturas internas em seu próprio, mas ainda uma fase afirmativa – tal como sua obra

Humano, demasiado humano II, bem como, mencionaremos, raramente, passagens de

obras de seu último período de escritos, chamados por alguns autores de “escritos

negadores”, que compreendem os textos produzidos a partir de 1886 (BACKES, 2015,

p.7).

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II.2.1 Apolíneo-Dionisíaco

Utilizando o brilhante recurso da metáfora, Nietzsche explora os

significados filosóficos a partir da mitologia do panteão grego. Apolo e Dioniso eram

filhos de Zeus. Apolo, representante do sol que a tudo iluminava, era a personificação

divina do esclarecimento, da perfeição e bela aparência, do sonho, da razão, da

sobriedade e comedimento. Dioniso, deus do vinho, tinha relação com a fauna,

representava o êxtase, a embriaguez, a dança e a desmesura dos sentidos. Inicialmente, a

análise de Nietzsche se concentra na interpretação da influência e poderes artísticos de

Apolo e Dioniso, considerando estes como “impulsos artísticos da natureza”

(NIETZSCHE, 1992, p.32-NT§2). Contudo, a análise de Nietzsche se aprofunda e

desvenda inúmeros sentidos para o apolíneo e o dionisíaco, agora compreendidos de

modo mais amplo, ressoando em nós como instâncias psicológicas e, mesmo,

cosmológicas:

Num registro psicológico, Apolo simboliza o mundo figurativo, regido

pelo principium individuationis. No múltiplo infinito da realidade

empírica – gerada a partir do cruzamento entre espaço, tempo e

causalidade – a unidade e ordenação seriam instituídas pelo princípio

da razão suficiente, que teria o fio de Ariadne a nos guiar pelos

desconcertantes labirintos da multiplicidade inesgotável da

experiência possível (GIACÓIA JÚNIOR, 2002, p.12)

É neste sentido que o apolíneo representaria a tendência de um princípio de

individuação, um princípio baseado em imperativos prescritivos da ação, onde toda a

estrutura da lei está fundamentada em um único ponto: o indivíduo. Isto é, o individual,

ou o individualismo deve prevalecer como regra procedimental em todas as aplicações

do apolíneo. Deve-se reconhecer neste registro psicológico também a observação do

imperativo délfico do “conhece-te a ti mesmo”, a conservação dos limites, a proibição

da hybris, a observação das fronteiras do indivíduo pela medida e nada em demasia

(NIESTZCHE 1992, p. 40-NT§4). Sendo, portanto o deus da clareza, do brilho, Apolo é

a alegoria que remete aos sonhos, aos nossos processos oníricos, nos quais podemos nos

aprazer com a beleza, cabendo à capacidade de ordenação do apolíneo ordenar a lógica

de nossos impulsos e desejos íntimos. Também os conteúdos do que deve ser

considerado belo, harmonioso, ou perfeito, é definido e convencionado pela capacidade

ordenadora da cultura apolínea.

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No que tange ao registro psicológico de seu contrário, Dioniso, sua essência

é trazida a nós por meio da analogia da embriaguez:

Ainda no registro psicológico, Dioniso representaria a desmesura, a

exuberância e o êxtase, o Uno primordial, tal como o caracteriza O

Nascimento da tragédia. Dioniso é aqui uma parábola das forças

telúricas do corpo e do inconsciente, a dissolução de toda a

individualidade, o apagamento das fronteiras e das linhas limítrofes

entre o homem e a natureza, a destruição de todas as barreias

artificiais criadas pela convenção e pela tradição (GIACOIA JÚNIOR,

2002, p.13).

A imagem inicial que descrita de Dioniso é de um cortejo, onde “o carro de

Dioniso está coberto de flores e grinaldas: sob o seu jugo avançam o tigre e a pantera”

(NIETZSCHE, 1992, p.31-NT, §1). Nesta parada dionisíaca, os homens se achegam uns

com os outros e, também, com as feras; extinguem-se as individualidades e a chamada

“natureza alheada” volta a fazer parte do homem e ele volta a encontrar com seu eu

perdido. Ao encontrar com o dionisíaco “O homem não é mais artista, tornou-se obra de

arte: a força artística de toda a natureza, para a deliciosa satisfação do Uno-primordial”

(NIETZSCHE, 1992, p.31-NT, §1).

O impulso apolíneo, por muito tempo, se tornou predominante no âmbito

humano, segregando os seres por meio do principium individuationis, tendo como

principal consequência o próprio enfraquecimento da vontade e da vida humana como

parte vivente de um organismo. Os instintos e o próprio sentir foi subjugado e

convencionado. A partir de Sócrates, o mistagogo da ciência (NIETZSCHE, 1992,

p.95-NT§15), o saber e o conhecimento, foram esporeados e chicoteados pelo método e

pelo conceito cristalizante, a fim de ser ordenado e docilizado por Apolo. Como o

excesso e a intensificação do impulso apolíneo suplantaram várias características da

existência humana fragmentando-as, ao se deparar com o dionisíaco o indivíduo sente

novamente a sua relação com o todo, com o uno, ou, na expressão emprestada de

Schopenhauer, com o uno-primordial (Ur-einen):

Agora, graças ao evangelho da harmonia universal, cada qual se sente

não só unificado, conciliado, fundido com o seu próximo, mas um só,

como se o véu de Maia tivesse sido rasgado e, reduzido a tiras,

esvoaçasse diante do misterioso Uno-primordial (NIETZSCHE, 1992,

p.31-NT§1)

Neste ponto, o debate sobre o dionisíaco e o apolíneo em Nietzsche,

transcende as relações com o fazer técnico e formal artístico e, ao mencionar o uno-

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primordial, se direciona a compreender a dualidade entre as duas forças como sendo

uma característica mais ampla da existência humana, a arte criadora da própria natureza

e da plasmadora da existência, pois “O homem não é mais artista, tornou-se obra de

arte: a força artística de toda a natureza, para a deliciosa satisfação do Uno-primordial”

(NIETZSCHE, 1991, p.31-NT§1). O Uno-primordial, este “esterno padecente e pleno de

contradição” (NIETZSCHE, 1992, p.39-NT§1), necessita, segundo Nietzsche, para sua própria

redenção, não apenas da visão desperta da “realidade” proporcionada por Apolo, mas outrossim

da visão extasiante e da aparência prazerosa (NIETZSCHE, 1992, p.39-NT§1).

Com o contato com o dionisíaco o indivíduo rompe a crisálida do mero

individual imposta pela exacerbação do apolíneo e retoma o sentimento de identificação

como o todo. Só nesta sinergia entre individual e total, homem e natureza, contemplar e

sentir, Apolo e Dioniso, se é possível chegar ao Uno-primordial. Sem essa harmonia

será, mediante a primazia de qualquer um dos extremos da corda, será a ditadura de um

em detrimento de outro, significando, assim, que

O desequilíbrio entre dois impulsos, ou seja, a predominância de um

deles em relação ao outro tem como consequência a debilitação do

processo de vida total. Na verdade, a intensificação desmedida de

qualquer dos dois impulsos se revela como movimento, não de

afirmação do Uno-primordial, mas de negação do mesmo. Isto é

facilmente compreensível no caso do movimento dionisíaco, em

decorrência do qual são continuamente suprimidas todas as formas

particulares nas quais a vida se manifesta. Mas o próprio movimento

de individuação deve ser compreendido também como um processo

no qual o Uno-primordial tende a negar a si mesmo enquanto unidade

diferenciada. (BENCHIMOL, 2002, p.57-58)

A questão fundamental desta relação sempre contraditória e a da equilibrada

tensão entre o princípio de individuação, entendido aqui como apolíneo, que é a máxima

parte, e a unidade, aqui entendida como dionisíaco, que é o máximo todo. Assim, a

manifestação do uno só pode ser possível por meio da integração dos múltiplos, do

mesmo modo que um livro é constituído de várias páginas ou uma foto em offset precisa

das reticulas para combinar as cores e formar as imagens. Esta relação entre a parte e o

todo suscita em Nietzsche a relação mais delicada e complexa entre o Ser e o devir,

relação intricada, apontada desde Heráclito, a maldição do vir-a-ser descrita em A

filosofia na época trágica dos gregos9. O perene jogo do velamento-desvelamento, da

passagem de um contrário ao outro, que leva à ilusão de conhecer conceitualmente as

coisas, “o povo pensa, por certo, conhecer algo rígido, pronto, permanente; na verdade,

9 Doravante referenciado como FTG.

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há a cada instante luz e escuro, amargo e doce lado a lado e presos um ao outro, como

dois contendores, dos quais ora um, ora outro, tem a supremacia” (NIETZSCHE, 2014,

p.53- FT§5). Na visão extemporânea de Heráclito, visão irrepreensível segundo

Nietzsche, tudo que ocorre no círculo da existência, ocorre mediante esse conflito

(Ibidem). No mundo só existe, portanto, injustiça, contradição e sofrimento na

concepção do eterno devir? Perguntamos ao Heráclito de Nietzsche:

Sim, exclama Heráclito, mas somente para o homem limitado, que vê

em separado e não em conjunto, não para o deus contuitivo; para este,

todo conflitante conflui um uma harmonia, invisível decerto ao olho

humano habitual, mas inteligível àquele que, como Heráclito, é

semelhante ao deus contemplativo (NIETZSCHE, 2014, p.56-FT§7)

E essa é a beleza da existência. A grandeza do ser humano, como diz o

profeta Zaratustra, reside em ser esta passagem, este ocaso, este nascer do sol e este

crepúsculo que não se percebe a olho nu, mas que se sente ocorrer a transformação do

dia em noite, ou, ao inverso, de trevas em luz. Se o homem é uma corda estendida entre

o animal e o além-homem, só atravessarão o abismo aqueles que se emprenharem em

conciliar e harmonizar sua dupla essência, tal como explica o jovem Nietzsche citando

um trecho de Fausto de Goethe:

E assim a dupla essência do Prometeu esquiliano, sua natureza a um

só tempo dionisíaca e apolínea, poderia ser do seguinte modo expressa

em uma formulação conceitual: "Tudo o que existe é justo e injusto e

em ambos os casos é igualmente justificado”. Isso é o teu mundo! Isso

se chama um mundo! (NIETZSCHE, 1992, p. 69- NT§9)

Se numa apressada leitura considerarmos que a proposta nietzschiana tende

a supervalorizar o dionisíaco em detrimento do apolíneo, estaríamos incorrendo em

grave erro já que, uma das propostas principais da primeira obra do filósofo é,

justamente a de devolver, pela retomada do dionisíaco, aquele traço trágico da cultura

percebida na unidade do povo grego desde a invenção do coro ditirâmbico. Conciliação

perfeita de Apolo e Dioniso, percebida, sobretudo, na tragédia de Ésquilo e Sófocles

(NIETZSCHE, 2014, p.78-NT§11-12).

Por fim, esta harmonização entre apolíneo e dionisíaco apresentada no jogo

vivo do devir, único caminho por onde a plenitude pode ser atingida, deve ser entendida

não mais como um movimento desigual, ou um movimento de duas existências opostas

e independentes um do outro, mas, sim, como um movimento único e reciproco de duas

instâncias do mesmo motor, tal como os pedais de uma bicicleta, ou como o ingênuo e o

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sentimental de Schiller, ou, ainda, como o bater de asas de um pássaro que precisam ser

harmônicos para que o ser alado possa com graça se por em seu movimento natural.

Explicações sobre o apolíneo e o dionisíaco que, aqui arrazoadas com argumentos

demonstrações e citações, são, no entanto, são captadas e apresentadas de modo

arrebatador por Ferreira Gullar em seu poema Traduzir-se10

, que evocamos aqui em

nosso auxílio:

Uma parte de mim

é todo mundo:

outra parte é ninguém:

fundo sem fundo.

Uma parte de mim

é multidão:

outra parte estranheza

e solidão.

Uma parte de mim

pesa, pondera:

outra parte

delira.

Uma parte de mim

almoça e janta:

outra parte

se espanta.

Uma parte de mim

é permanente:

outra parte

se sabe de repente.

Uma parte de mim

é só vertigem:

outra parte,

linguagem.

Traduzir uma parte

na outra parte

— que é uma questão

de vida ou morte —

será arte? Como todo brilhante poeta, Ferreira Gullar conseguiu sintetizar de modo

universal o sentimento de dualidade que espreita desde sempre a compreensão humana

de si. Conseguiu mostrar que traduzir a si próprio é sempre necessitar juntar as partes e

10

Extraído de Na vertigem do dia (1975-1980)

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recorrer a uma essência circular que se apresenta não numa fragmentação das partes do

eu, tal como a cartesiana, mas numa harmonia cíclica das partes.

Explicar o significado de uma poesia pode ser, como se diz, uma lâmina de

duplo fio, pois que, ao mesmo tempo em que podemos estar equivocados ou muito

distantes de uma interpretação plausível da composição, corremos ainda o risco de

anular ou prejudicar sua potência poética impondo esta interpretação como única

possível. Deste modo, tentando nos resguardar deste risco duplo, pensemos aqui esta

singela interpretação pessoal que encerra esse subtópico, não como a mais fiável ou a

mais correta, mas como uma dentre as miríades de interpretações possíveis, e que a

usamos para ilustrar as explicações teóricas acerca da relação apolíneo-dionisíaco.

Como já o dissemos, esta poesia, como um todo, retrata, segundo esta nossa

interpretação específica, uma dualidade de partes complementares e opostas, que só se

convertem em Uno quando se coadunam em harmonia. Mesmo nas duas primeiras

estrofes do poema, é possível vislumbrar respectivamente a relação entre o Uno-

primordial e o principium individuationis, quando vemos nestes trechos a sentença de

que “Uma parte de mim é todo mundo: outra parte é ninguém: fundo sem fundo”. O

principium individuationis, aparece ainda como um sentimento de incompletude do ser

que, por não estar ligado ao uno, ao todo, à multidão, sente a estranheza do ser por meio

da solidão, no trecho que diz: “uma parte de mim é multidão: outra parte estranheza e

solidão”.

No excerto que afirma que “Uma parte de mim pesa, pondera: outra parte

delira” vemos claramente as características apolíneas como a parte de nós que pesa,

calcula, pondera e a parte dionisíaca como sendo aquela que se deixa embriagar e

delirar aprazivelmente.

Somos fisiologia, organismo, corpo, como também somos indagação e

reflexão ao termos o thauma que abala nossa fisiologia. Dualidade que vemos no recorte

que afirma que “Uma parte de mim almoça e janta: outra parte se espanta”.

O velho jogo entre velamento e desvelamento entre contrários, jogo descrito

desde Heráclito, e admitido como irrepreensível por Nietzsche, aparece na estrofe que

considera “Uma parte de mim é permanente: outra parte se sabe de repente”, mostrando

assim que somos constância e mudança perpétua em uma única sede.

O trecho que pondera que “Uma parte de mim é só vertigem: outra parte

linguagem” evoca muitas imagens: a da vertigem enquanto embriaguez dionisíaca, a da

vertigem como um “pensamento abissal” de Zaratustra, bem como o encantamento que

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a altura vertiginosa nos lança ao nos depararmos com ela face a face, agitando nossos

sentidos; ou, ainda, como a corda que se estende no abismo instalado entre o animal e o

super-homem (Übermensch).

Por fim, a composição final do poema “traduzir-se uma parte na outra parte,

– que é uma questão de vida ou morte – será arte?” lança questões que tem relação não

apenas com este subtópico de estudo proposto aqui, mas também com grande parte do

mote desta pesquisa, pois poderíamos nos perguntar, assim como Gullar, se

compreendermo-nos enquanto duplicidade de potências é uma questão filosófica, uma

questão fisiológica, ou, mais além, uma questão estética?

II.2.2 Sobre a arte, o belo e o feio

Sabe-se que no século XVIII, ponto alto da ânsia de Esclarecimento, vários

pensadores e filósofos começaram a tentar compilar sistematicamente todos os

conjuntos de conhecimentos humanos, juntando em livros e organizando os

conhecimentos em verbetes, sendo chamados de enciclopedistas. Dentre os

enciclopedistas mais famosos estava o polêmico Voltaire, que escreveu algumas seções

para o projeto principal. Paralelo ao projeto principal, Voltaire, compilava

modestamente alguns textos para produzir seu próprio dicionário filosófico. Alguns

verbetes possuem descrições detalhadas sobre termos filosóficos, outros, várias seções

subdividindo o assunto do verbete, e, alguns mais, que tomam inúmeras páginas de

explicações. Entretanto, ao procurarmos o verbete “Belo, Beleza”, não encontramos

nenhuma sistematização de concepções filosóficas e três pequeníssimas anedotas que se

interligam. Eis o motivo explicado pela própria anedota:

Perguntem a um sapo o que é a beleza, o supremo belo,o to kalón.

Responderá que é sua fêmea com dois grandes olhos redondos quase saltando

de sua pequena cabeça, uma goela larga e chata, um ventre amarelo, um

dorso pardo (...). Interroguem o diabo, dirá que o belo é um par de chifres,

quatro garras e uma cauda. Consultem, finalmente, os filósofos responderão

com discursos confusos; falta-lhes algo de conforme ao arquétipo do belo em

essência, o to kalón. Um dia eu assistia a apresentação de uma tragédia em

companhia de um filósofo: “como é belo! Dizia ele. – Que viu de belo nisso?

Lhe perguntei – É que o autor atingiu seu objetivo”. No dia seguinte ele

tomou um purgante que lhe fez efeito: “Atingiu seu objetivo, – disse-lhe eu –

aí está um belo purgante!”. (...). Fizemos uma viajem pela Inglaterra. Lá se

apresentava a mesma peça, impecavelmente traduzida; ela fez todos os

espectadores bocejar. “Oh! Oh! – exclamou o filósofo – o to kalón não é o

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mesmo para ingleses e para os franceses”. Depois de muitas reflexões,

concluiu que o belo é muito relativo. (VOLTAIRE, 2008, p.112-113)

Onde reside, portanto, o belo? Na beleza ou na feiura, na ordem ou no caos?

Já vimos com Schiller e Nietzsche que, o cerne a se considerar em relação a este

problema reside na questão do prazer estético proporcionado por algo, fim supremo de

toda arte. E, justamente essa, é a pergunta que Nietzsche nos lança já nas ultimas seções

de O nascimento da tragédia: “Como é que o feio e o desarmônico, isto é, o conteúdo do

mito trágico, podem suscitar um prazer estético?” (NIETZSCHE, p.141-NT§24).

Como vimos, Nietzsche colocou às avessas todas as crenças de filósofos,

filólogos e artistas, sobre a natureza da cultura helênica, revertendo a concepção de que

tal cultura estivesse baseada, em todas as suas épocas, numa estética apolínea que

prezava tão somente a harmonia, a beleza perfeita, a razão ordenadora. Com a aceitação

da participação de Dioniso no processo estético, Nietzsche demove a ideia de que a

beleza e a harmonia da civilização grega estavam em conseguir neutralizar o horrendo,

o desarmônico, as formas híbridas, pois, ao embarcar no cortejo de Dioniso, a arte grega

se tornou uno com todas as formas hibridas que lá estava, aceitando abertamente o

diferente, o sofrível, com sua real serenojovialidade11

(Heiterkeit). Portanto a grande

capacidade estética grega não estava em proteger a harmonia como o centro da estética

e, mais amplamente, existência, mas sim de reconhecer na fealdade e no sofrimento a

capacidade de produzir o verdadeiro prazer, sem negar ou fugir da sua própria natureza.

Por que negar nossa própria natureza e negar que somos atraídos pelo

pavoroso, pelo sublime, pelo feio? Até mesmo nas imagens de nosso inconsciente

proporcionadas pelo mundo onírico, nos deparamos com aquela feiura, com aquele

terror que sempre tentamos negar e nos proteger com os artifícios racionais da

consciência. Segundo Nietzsche, mesmo Apolo sendo a potência responsável também

pelos sonhos, não consegue ele cercear a atuação e atração desta pulsão ao feio, ao

terrível, ao sublime, pois

As imagens agradáveis e amistosas não são as únicas que o sujeito

experimenta dentro de si com aquela onicompreensão, mas outrossim as

sérias, sombrias, tristes, escuras, as súbitas inibições, as zombarias do acaso,

as inquietas expectativas, em suma, toda a "Divina comédia" da vida, com o

seu Inferno, desfila à sua frente, não só como um jogo de sombras – pois a

11

O tradutor desta edição explica que o termo Heiterkeit, muito utilizado por Nietzsche, sugere uma

quantidade muito maior de significados agregados, que expressam bem sua ênfase em cada contexto

utilizado pelo filósofo. Sua opção de juntar duas palavras em uma, foi no intuito de mostrar essa

multiplicidade de sentidos, ficando, ainda assim, aquém do termo original (Vide nota 2 desta edição,

p.145)

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pessoa vive e sofre com tais cenas – mas tampouco sem aquela fugaz

sensação da aparência; e talvez alguns, como eu, se lembrem de que, em

meio aos perigos e sobressaltos dos sonhos, por vezes tomaram-se de

coragem e conseguiram exclamar: “É um sonho! Quero continuar a sonhá-

lo!" (NIETZSCHE, 1992, p.29-NT§1)

A exclamação “É um sonho!”, demonstra que, ante a consciência de se estar

sonhando, o terrível, feio ou assustador, tornam-se toleráveis e, quiçá, aprazíveis, já que,

sabendo-se seguro do perigo ilusório, o ser humano sente-se mais confiante em

confrontá-los face a face quando afirma “Quero continuar a sonhá-lo!”.

Este processo é bastante semelhante ao processo infligido em nós pelo

sublime, que vimos no estudo das concepções estéticas de Schiller. Tal semelhança nos

leva ainda outra: a da liberdade no fenômeno, pois, entendido de modo semelhante, ao

encarar frente a frente aspectos aparentemente (ou apolínicamente) desprezíveis da

condição humana os gregos do período trágico, conseguiram converter o sofrimento,

que tais características produziam, em prazer. Então, se o homem consegue romper com

este princípio de individuação racionalizador do apolíneo, princípio que mascara e

cerceia sua percepção do mundo, o ser humano poderá ter a liberdade no fenômeno e

gozar do prazer estético que o êxtase dionisíaco pode lhe oferecer. Mencionando uma

passagem de O mundo como vontade e representação (1819), Nietzsche explica as

consequências acerca desta ruptura com o principium individuationis, que acima

mencionamos:

Na mesma passagem Schopenhauer nos descreveu o imenso terror que

se apodera do ser humano quando, de repente, é transviado pelas

formas cognitivas da aparência fenomenal, na medida em que o

princípio da razão, em algumas de suas configurações, parece sofrer

uma exceção. Se a esse terror acrescentarmos o delicioso êxtase que, à

ruptura do principium individuationis, ascende do fundo mais íntimo

do homem, sim, da natureza, ser-nos-á dado lançar um olhar à

essência do dionisíaco, que é trazido a nós, o mais de perto possível,

pela analogia da embriaguez. (NIETZSCHE, 1992, p.30-NT§1)

Esse nosso anseio pelo assustador, pelo feio advém justamente da vontade

de romper com a tirania do belo, do perfeito, como padrão. Uma ruptura que pode nos

levar a perceber outras formas de se aprazer com a arte e com o mundo. Este foi o

grande salto estético dos gregos, a grandeza de, ao invés de fugir do feio, e escondê-lo,

procurá-lo, anseia-lo e aceita-lo como parte inegável de nossa natureza. Em relação a

isso, pergunta-se o filósofo em sua autocrítica, “De onde haveria de provir o anseio ao

feio, dos helenos?”.

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De onde haveria de provir (...) o anseio do feio, a boa e severa vontade

dos antigos helenos para o pessimismo, para o mito trágico, para a

imagem de tudo quanto há de terrível, maligno, enigmático,

aniquilador e fatídico no fundo da existência - de onde deveria então

originar-se a tragédia? Porventura do prazer, da força, da saúde

transbordante, de uma plenitude demasiado grande? E que significado

tem então, fisiologicamente falando, aquela loucura de onde brotou a

arte trágica assim como a cômica, a loucura dionisíaca?

(NIETZSCHE, 1992, p.17-NT§4)

Perguntas que, na verdade, afirmam categoricamente que a ânsia do feio,

vem da impressão e do prazer muito mais potente que o feio pode causar no espírito

humano, na liberdade e na potência de assunção da vida que concedem ao ser humano.

A harmonia dos gregos não estava na potência isolada de Apolo, cerceando os limites

do saber, do belo e da vida; tampouco estava na negação do papel do apolíneo nas

engrenagens da existência. A harmonia dos gregos estava na capacidade de ver estes

contrários como partes de um único movimento, convivendo, assim, tanto com o belo

quanto com o feio, convivendo com os horrores e sofrimentos da existência, mas

extraindo prazer deles.

Por fim, este travado com Nietzsche acerca do belo e do feio, nos leva a

perceber que nossas concepções de beleza são puramente guiadas por padrões,

procedimentos, modos e modas impostos externamente. Os limites impostos pela

parcialidade e intensificação do apolíneo cerceiam nossa liberdade no fenômeno,

definindo esses padrões de harmonia, de belo, de agradável, sendo que o fator

primordial na decisão do que é belo não deve ser um padrão, pois que todos os padrões

são imposições, mas sim um imperativo do prazer que nos causam. Por isso, afirma o

filósofo no tópico Belo e feio de Incursões de um extemporâneo no Crepúsculo dos

ídolos “Nada é mais condicionado, digamos mais limitado do que o nosso sentimento

do belo. Quem quisesse pensá-lo separado do prazer que o ser humano sente consigo

próprio, perderia de imediato o solo debaixo dos pés” (NIETZSCHE, 2015, p.91,

CI§19). Fato que nos leva a percepção de que, para sermos plenos do ponto de vista da

formação estética humana, devemos nos libertar dos condicionamentos que o apolíneo

impõe, bem como dos próprios conceitos pré-concebidos gerados por ele. Numa

linguagem nietzschiana, o ser estético pleno, é aquele que consegue conduzir o jogo

apolíneo-dionisíaco em todas as instâncias de sua existência, dando valor real ao

movimento de afirmação da vida, admitindo que seja belo tudo aquilo que lhe traz

prazer e feio aquilo que lhe irremediavelmente lhe entristeça, ou que lhe traga um

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sofrimento que não possa ser convertido em prazer de nenhuma forma. Quebrando estes

pré-conceitos de belo e feio, Nietzsche assevera que

Nada é belo, apenas o homem é belo: sobre essa ingenuidade repousa

toda a estética, ela é sua primeira verdade. Acrescentemos de imediato

a segunda: nada é feio, a não ser o homem que degenera – com isso

estão demarcadas as fronteiras do reino do juízo estético. – de uma

perspectiva fisiológica, tudo o que é feio enfraquece e entristece o

homem”. Lembra-lhe o declínio perigo, impotência; ele realmente

perde força na sua presença. O efeito do feio pode ser medido com o

dinamômetro” (NIETZSCHE, 2015, p.92-CI§20).

Portanto, nada externo ou pré-definido pode ser belo: nós, seres humanos, é que

somos a medida própria da beleza. A real feiura para Nietzsche é quando o homem

abandona a si mesmo e deixa algo que o desanima, algo que o degenera o vigor e a

vontade de viver. Que retira irremediavelmente sua vontade de potência e nos envenena

sem a nos deixar a possibilidade de converter a droga em remédio, como faz a arte com

o sublime e o feio.

II.2.3 O trágico

Se em Schiller o trágico, ou a arte trágica tem como princípios primordiais a

apresentação da natureza que sofre, bem como a autonomia moral do sofrimento, em

Nietzsche o grande salto está em conceber o trágico não apenas como uma

peculiaridade da arte, mas como um traço declarado da própria existência, expresso na

união harmônica dos impulsos apolíneo-dionisíaco. Tal marcante traço é patente na

cultura grega, mormente no período que antecede o advento do pensamento socrático,

onde as forças concorrentes que formam o espírito humano co-operavam em equilíbrio,

refletindo tal coexistência nas obras poéticas trágicas que eram arcabouço e reflexo da

formação e cultura helênica:

El placer de la embriaguez, el placer de la astucia, de la venganza, la envidia,

el insulto, la obscenidad – todo esto fue reconocido por los griegos como algo

humano, y por ello debidamente incorporado al edificio de la sociedad y las

costumbres. La sabiduría de sus instituciones reside en la ausencia de

separación entre bueno y malo, blanco y negro. La naturaleza, tal como ésta

se muestra, no fue negada, sino sólo debidamente incorporada, circunscrita a

determinados cultos y días. Esta es la raíz de toda la libertad de espíritu de la

Antigüedad; para las fuerzas naturales se buscaba una descarga mesurada, en

lugar de una aniquilación y negación de las mismas (NIETZSCHE, 2008a,

p.90-FP II, 5[146])

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Como vimos no tópico Sobre a arte, o belo e o feio, os gregos, com o

concurso da arte, conseguiram por meio da arte trágica converter o feio, o desprezível

ou assustador em aprazível. Nesta seção veremos a concepção de trágico como redenção

do “feio” por meio do sublime, e como retorno à totalidade harmônica perdida.

Remetendo novamente a Schiller, vimos que a elaboração de “trágico”

pensada por ele relaciona-se intimamente com a ideia de sublime patético, transposta

com algumas reformas da teoria kantiana. Deste modo, o trágico ocorre em Schiller por

intermédio do jogo estético entre o sublime patético, que é a afecção provocada com

intensidade apropriada, e a liberdade no fenômeno, que é a resistência contra o

sofrimento. Dinâmica semelhante a essa, vemos na representação do movimento

estético-existencial apresentada por Nietzsche, já em O nascimento da tragédia, como

um perene antagonismo entre as forças estéticas da natureza, uma batalha inconclusiva

entre a pulsão apolínea e a dionisíaca. Contudo, mesmo que pensemos tais pulsões

sempre como um antagonismo, a separação entre as potências não é o veredito final

para o movimento gerador pensado por Nietzsche, pois que, já nas primeiras pautas de

sua obra debutante, o problema de um antagonismo é indicado como sendo superado ao

afirmar que o emparelhamento das potências contrárias gerou o primeiro fruto do

pensamento trágico sob a forma de arte:

Ambos os impulsos, tão diversos, caminham lado a lado, na maioria

das vezes em discórdia aberta e incitando-se mutuamente a produções

sempre novas, para perpetuar nelas a luta daquela contraposição sobre

a qual a palavra comum "arte" lançava apenas aparentemente a ponte;

até que, por fim, através de um miraculoso ato metafísico da "vontade"

helênica, apareceram emparelhados um com o outro, e nesse

emparelhamento tanto a obra de arte dionisíaca quanto a apolínea

geraram a tragédia ática (NIETZSCHE, 1992, p.27 - NT§1)

Disto, poderíamos aduzir que na indicação nietzschiana ambos impulsos são

contrários, mas não precisam ser tomados como antagônicos no mesmo sentido que se

aplica à concepção de “antagonismo”, por exemplo, na Biologia, que sugere que uma

relação entre dois organismos incompatíveis em que um impeça a presença e

desenvolvimento do outro. Também não deve ser tomado tal qual a concepção de

antagonismo na Farmacologia que compreende o antagônico como sendo a relação entre

duas ou mais substâncias com efeitos e atuações distintas no mesmo processo, na qual

as substâncias ou compostos inibem-se reciprocamente. Assim, a palavra-chave para a

compreensão do movimento de tais potências criadoras não é o antagonismo, mas sim a

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reconciliação, a trégua, o pacto de paz, mesmo que transitório. Para Nietzsche esse

reatamento é fundamental não só para a compreensão da distinção entre apolíneo e

dionisíaco, mas da importância deste binômio na composição do trágico como um modo

de ser, pois que esse reatamento significa um momento no qual “são visíveis as

revoluções causadas por este acontecimento” (NIETZSCHE, 1992, p.34 - NT§2),

revoluções evidentes tais como as que observamos no período de florescência grega.

Este constante movimento de conflito-reconciliação pode nos causar a

estranha impressão de se tratar aqui de um movimento dialético com nuances

hegelianos, fato, inclusive, mencionado por Roberto Machado em seu O nascimento do

trágico, o qual dedica um tópico à compreensão desta possível dialética nietzschiana.

Essa impressão de uma voz estranha às cantatas filosóficas de Nietzsche, foi denunciada

por ele mesmo em sua Tentativa de autocrítica ao revisitar O nascimento da tragédia,

afirmando de modo cáustico sobre si que “Aqui falava em todo caso (...) uma voz

estranha, o discípulo de um "deus desconhecido" ainda, que por enquanto se escondia

sob o capucho do douto, sob a pesadez e a rabugice dialética do alemão” (NIETZSCHE,

1992, p.16 - NT, Autocrítica §3), reafirmando tal percepção em Ecce Homo, ao comentar

este seu primeiro livro:

Ele é politicamente indiferente (...), cheira chocantemente

a hegelianismo e somente em algumas fórmulas está impregnado do

fúnebre perfume de Schopenhauer. Uma “ideia” – a oposição entre

dionisíaco e apolíneo – traduzida para o metafísico; a própria história

com o desenvolvimento dessa “ideia”; na tragédia, a oposição

relevada em unidade; sob essa ótica, coisas que nunca antes se

olharam de frente colocadas subitamente face a face, iluminadas uma

pela outra e concebidas (NIETZSCHE, 2014, p.40 - EH§1)

Ao explicar o movimento de desenvolvimento do trágico sob a perspectiva

de uma conciliação entre contrários, Nietzsche parece aludir inevitavelmente à uma

dialética de cunho hegeliano. Contudo, mesmo que o excerto seja claro em mencionar

suas características dialéticas, sabemos que em suas várias obras Nietzsche emprega os

inúmeros significados que o termo dialética possui. Mesmo em O nascimento da

tragédia o filósofo utiliza de inúmeras formas o termo “dialética”, donde se pode notar

distintamente pelo menos quatro aplicações do termo, contendo significados

obviamente correlatos, mas contextos e aplicações diferenciadas. Dentre estas

aplicações temos a da Tentativa de autocrítica, já mencionada há pouco, “rabugice

dialética do alemão” (NIETZSCHE, 1992, p.16-NT, Autocrítica §3), a dialética da

trama poética com o “desatamento dialético” dos nós, laço por laço, em obras como

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Édipo em Colono, por exemplo (NIETZSCHE, 1992, p.64-NT§9), a afiada “dialética

sofística” (NIETZSCHE, 1992, p.72 -NT§10), a dialética do drama euripidiano

(NIETZSCHE, 1992, p.81-NT§12) e, finalmente, dialética de Sócrates o herói e

demônio dialético (NIETZSCHE, 1992, p.89-118 - NT§14-19) e a dialética platônica

(NIETZSCHE, 1992, p.88-89 -NT§14). Com efeito, mesmo que Nietzsche tenha usado as

terminologias que remetem ao pensamento dialético e, ainda, desconfiado de si próprio

se acusando de ser um discípulo de Dioniso disfarçado de hegeliano, a fluidez de seu

pensamento não se permite apanhar por sistemas como o hegelianismo, observação

confirmada por Roberto Machado em seu texto há pouco mencionado:

Isso, no entanto, não é suficiente para caracterizar um hegelianismo

de Nietzsche. Pois, como temos visto outros pensadores da mesma época, ou

até mesmo imediatamente anteriores a Hegel, como Schelling e o primeiro

Hölderlin, pensaram de forma mais ou menos semelhante o dualismo trágico

como uma unidade dos contrários produzida pela inversão de um dos termos

no outro. Quer dizer, mesmo que O nascimento da tragédia seja um livro

dialético, talvez não faça do Nietzsche dessa época necessariamente um

hegeliano, pois pensar a tragédia dialeticamente -- questão que nos diz menos

respeito à contradição ou à oposição propriamente do que ao tipo de relação

existente entre princípios antagônicos -- não foi uma singularidade de Hegel,

na Alemanha do final do século XIX. (MACHADO, 2006, p. 219-220)

Logo, pensamos esse movimento conciliatório não propriamente como um

sistema dialético hegeliano ou como um mero embate semiconservativo de forças

antagônicas, mas como uma constante tensão entre partes contrárias que se

complementam. Deste modo, apresentando as considerações feitas pela filósofa francesa

Sarah Kofman, Machado (2006, p.220) aponta para o fato de que a concepção trágica de

Nietzsche não deve ser tomada em termos dialéticos, mormente no que diz respeito à

dialética cunhada a partir de Hegel. É preferível pensar este movimento mediante o

modelo heraclítico, onde, no perene embate entre forças conflitantes, há sempre a

variação de vitoriosos, em que, ora um, ora outro, tem um triunfo e uma trégua

provisória, sendo permanente apenas a luta e a diferença entre os contrários, já que essa

trégua “Era a reconciliação de dois adversários, com a rigorosa determinação de

respeitar doravante as respectivas linhas fronteiriças e com o periódico envio mútuo de

presentes honoríficos: no fundo, o abismo não fora transposto por ponte nenhuma”

(NIETZSCHE, 1992, p.34-NT§2). Seguindo a pista heraclítica, estabelece-se que a

plenitude da existência só pode ser atingida pelo concurso harmônico dos contrários,

quando consideradas como partes de um ser único, isto porque “Em Heráclito essa luta

se torna pura e simplesmente o ‘pai de todas as coisas’” (JAEGER, 2010, p.227).

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Conforme a explicação de Werner Jaeger em seu insigne tratado Paidéia

(JAEGER, 2010, p.228), Heráclito queria expressar esse movimento em que, numa

ponta estava uma força, e noutra ponta sua contrária, donde a energia gerada entre elas

era o ponto de profusão da harmonia do todo. O que Heráclito queria expressar era a

ideia de “tensão” que, segundo Jaeger, “Ao vocabulário filosófico faltava ainda o

conceito genérico de tensão” (JAEGER, 2010, p.228). Entretanto, mesmo que o termo

ainda não tivesse sido empregado no inventário filosófico, isto não impediu Heráclito de

expressar brilhantemente a ideia, do conceito e, como diria Benedito Nunes, sair dos

trilhos do conceito, escapulindo pelo telhado dos becos sem saída do pensamento

(NUNES, 1999, p.15), utilizando uma bela metáfora como escada. Para Heráclito, os

símbolos dessa harmonia desses contrários complementares são o arco e a lira

(JAEGER, 2010, p.228). Imagine-se a corda do arco: a precisão e a força necessárias

para operá-lo com plenitude só serão possíveis se a tensão entre as duas extremidades

estiver ajustada. Do mesmo modo, o cordame da lira só poderá emitir sons aprazíveis se

houver uma tensão harmônica entre as duas hastes que o prende. Uma vez que se

imprima força maior em uma haste em detrimento de outra, pode-se facilmente

desafinar a harmonia ou, pior ainda, romper com a corda. Como Heráclito, Nietzsche

compreendeu a necessidade de unidade entre as forças que compõe a existência e,

também como o pensador grego, só foi compreendido muitas gerações mais tarde.

A ideia do fogo como princípio ordenador da existência é outra grande

metáfora de Heráclito que nos ajuda a compreender o movimento trágico que se opera

entre apolíneo e dionisíaco, pois que, assim como o fogo, a simbiose Dioniso-Apolo não

pode ser compreendida senão como devir, acontecer, como movimento. Se para

Heráclito o vir-a-ser expresso na passagem dos contrários é o pai de todas as coisas,

para Nietzsche a tensão e troca incessante entre Dioniso e Apolo que compõem a noção

de trágico é a verdadeira mãe primordial da existência, eternamente criadora

(NIETZSCHE, 1992, p.102-NT§16).

A necessidade do apelo a imagens como a da lira, do arco, do fogo, ou,

mesmo, do rio de Heráclito advém da necessidade em explicar ou representar algo não

palpável. De modo geral, o mito também teve essa função de exprimir o inexprimível,

explicar o inexplicável. Vimos no estudo de Schiller que o belo possuía uma categoria

que nos causava prazer justamente por sua intangibilidade; um prazer sublime causado

seja pela apresentação de uma grandeza imponderável, ou pela apresentação de uma

força e poder incalculável. O sublime, desde Burke e Kant, é sempre uma tentativa de

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representar ou expressar um sentimento de prazer controverso, apresentar algo latente,

mas ainda não palpável, que escapa a classificações simplórias.

Em seu estudo acerca do trágico, há pouco mencionado, Machado levanta a

hipótese que Nietzsche, assim como Kant e Schiller, está inserido na tradição de pensar

o sublime mediante uma dualidade de princípios (MACHADO, 2006, p.222). No caso

de Nietzsche, a representação deste “irrepresentável” ocorre no fenômeno trágico

gerado por intermédio da “misteriosa união conjugal” (NIETZSCHE, 1992, p.42-NT§4)

entre o impulso dionisíaco e o apolíneo, uma representação/compreensão que não pode

ser senão intuitiva, tal como ocorre com a compreensão do sublime. O acordo

discordante presente nas várias interpretações filosóficas do sublime se apresenta em

Nietzsche por meio do trágico, visto que, se para os prensadores anteriores o sublime é a

união entre o terrificante e a beleza, para Nietzsche a ideia de sublime contida no

pensamento trágico seria um modo de expressar o terrificante, o não-figurativo, por

meio do auxilio do belo, do figurativo. Destarte, o trágico é também sublime, porquanto

tem a capacidade de conciliar contrários, gerando assim contrários que não são

contraditórios, mas complementares que, no envio mútuo de presentes proporcionado

pelo pacto de harmonia entre os contrários (NIETZSCHE, 1992, p.34-NT§2), nos

possibilitam não apenas uma compreensão mais plena e menos cindida do mundo, mas

uma compreensão rediviva da existência, como haviam feito os helenos do período

trágico. Essa relação entre o horrível e a beleza que possibilita uma vida mais plena, é

mencionada brevemente nos Fragmentos póstumos I de Nietzsche, nos escritos do

período entre o inverno de 1869-1870 a primavera de 1870, no qual esboça um ensaio

sobre Sócrates e a tragédia grega. Em um dos fragmentos o filósofo assevera que “El

helenismo es la única forma en la que se puede vivir: lo horrible bajo la máscara de lo

bello” (NIETZSCHE, 2010, p.113, FPI 3[74]), logo, esse horrível sob à máscara do

belo, seria a realidade visceral do dionisíaco, delineado por traços eufemísticos do

apolíneo; processo pelo qual se pode suscitar prazer e plenitude por meio do feio e do

desarmônico (NIETZSCHE, 1992, p.141-NT§24), constatação apontada por Roberto

Machado, ao considerar que,

A tragédia é a utilização de um dos elementos, a máscara, como forma

artística que permite o acesso, pelo distanciamento apolíneo da visão,

ao informe da natureza. A impossibilidade de uma apresentação direta

de Dioniso exige a intervenção de Apolo, que estende o véu da

aparência como um modo de tornar suportável a presença do deus ao

homem (MACHADO, 2006, p.224).

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Assim, esse sublime trágico, pensado por Nietzsche sob a forma de

(con)trato entre concorrentes, nos possibilitaria uma visão mais global da existência e

nos serviria como uma espécie de estimulante para encararmos com mais leveza os

horrores da vida. O trágico em Nietzsche desenha-se à guisa de um oxímoro da

existência que só adquire significado pleno na co-presença equilibrada dos impulsos

plasmadores do mundo e do ser humano (NIETZSCHE, 1992, p.142-NT§24), impulsos

que por serem plasmadores são, antes de mais nada, estéticos.

Em O nascimento da tragédia Nietzsche menciona abundantemente o

“trágico” relacionando abertamente à arte, delineando já em alguns aspectos o

pensamento trágico ou uma filosofia trágica, sobretudo quando menciona a inversão no

pensamento trágico operada pela filosofia socrático-platônica, cristalizando-a na

tendência apolínea, extirpando a tendência estética do processo, por considerá-la uma

tendência “pouco filosófica” (NIETZSCHE, 1992, p.87-NT§14). Ao mencionar uma

“sabedoria dionisíaca” (NIETZSCHE, 1992, p.119-NT§19), Nietzsche, já em sua

primeira obra, sugere o retorno imprescindível da tendência estética ao pensar filosófico

mais pleno, visando a totalidade cooperante das forças, tal como ocorria com os

antecessores de Sócrates desde Tales de Mileto, que filosofavam mesmo em forma de

poesia, de aforismos, tomando como ponto de compreensão intuitiva, mais que

limitados conceitos, princípios que transpõem os labirintos da razão calculante:

precisamente de Tales puede aprenderse la manera en que procede la

filosofía en todas las épocas cuando, impulsada por sus mágicos

propósitos, quiere rebasar los intrincados dédalos de la experiencia.

Las bases desde las que inicia el salto son muy frágiles, pero la

esperanza y el presentimiento dotan de alas a sus pies (NIETZSCHE,

2003, p.45-FTG§3)

Estes pensadores, animados na compreensão da totalidade, apreendiam o

mundo e a existência não somente por intermédio da razão, mas também com o

concurso da sensibilidade, com o auxilio da dimensão estética, portanto. Aqui se

apresenta com todo vigor novos elementos como o pressentimento e a intuição que, por

sua capacidade de ver o uno, dotam o conhecimento de asas, ao invés de pesadas

fundamentações. Ao que parece, estes elementos advindos da sensibilidade,

pressentimento e intuição, assaz subestimados em nossa formação atual, são para

Nietzsche componentes vitais não apenas da arte trágica, mas do pensamento trágico.

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Esta mesma percepção, da sensibilidade como componente vital do trágico,

encontramos no estudo de Márcio Benchimol, intitulado Apolo e Dioniso: arte, filosofia

e crítica da cultura, corroborando a compreensão de que um dos nexos centrais entre a

arte trágica e o pensamento ou filosofia trágica reside na sensibilidade, aqui entendida

como uma das aplicações do termo estética. Assim sendo, na última parte do estudo

supramencionado, Benchimol (2002, p.136), ao analisar o Sentido psicológico do

conceito de filosofia trágica, inicia sua consideração entendendo que no imo do

indivíduo as forças concorrentes expressas pelo binômio dionisíaco-apolíneo

manifestam-se pro intermédio de duas modalidades imprescindíveis da sensibilidade

humana, a saber, a contemplação e o sentir. Tais modalidades eram perceptíveis nos

primeiros pensadores, perderam sua força e foram soterradas pela tendência científica

que considera como aceitável para suas pesadas e intricadas fundamentações, tão

somente o racional e dissecável “lógico-conceitual”, frutos do entendimento:

Com a sua ideia do elemento artístico da filosofia, Nietzsche parece

indicar que o entendimento não é a única fonte de onde se origina o

pensamento trágico. Ora, parece-nos evidente que a segunda fonte a

qual se deve a gênese do elemento artístico da filosofia, teria de ser

identificada com aquela faculdade do espírito humano que, mais

antiga e mais profunda que a razão e a consciência, é a origem de toda

a arte, a saber, a sensibilidade (BENCHIMOL, 2002, p.137)

A sensibilidade do pensamento trágico é justamente aquela que, mesmo

antes da intervenção calculante da razão, consegue perceber e apreender algo de modo

intuitivo ou, mesmo, instintivo, rápido e brilhante como o clarão de um “relâmpago

divino” (NIETZSCHE, 2003, p. 56-FTG§5). Surge agora, com um papel fundamental

no pensar trágico, a “intuição”, sendo resgatada por Nietzsche como uma das

capacidades soterradas na virada apolínea, e que deveria ser considerada uma faculdade

inerente ao pensamento filosófico, faculdade que distinguiria o pensar filosófico do

pensamento científico, libertando a filosofia do jugo empobrecedor do cientificismo

vigente em nossa época.

Em uma das várias pistas deixadas por Nietzsche acerca do que compreende

por intuição ou representação intuitiva vemos, já em O Nascimento da tragédia,

menções a essa “casca externa das coisas” que é a representação intuitiva, apontando

desde já a diferença entre o conceitual e o intuitivo. Neste ensejo, se o intuitivo é a

casca mais externa das coisas, o conceitual não é o núcleo da coisa, como se poderia

pensar; o acesso ao núcleo mais íntimo, ao coração da coisa é proporcionado pela

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música, leia-se arte num plano mais lato. Para Nietzsche ambas, intuição e música

(Arte), são irmãs por suas similitudes no modo de captar e representar o universal com

desembaraço: Todavia, que seja possível em geral uma relação entre uma composição

musical e uma representação intuitiva, isto se baseia, como foi dito, no fato de ambas

serem expressões, só que totalmente diversas, da mesma essência interna do mundo

(NIETZSCHE, 1992, p. 100-NT§17). Já em A filosofia na época trágica dos gregos,

Nietzsche afirma que a representação intuitiva era uma característica marcante na

filosofia anterior a Sócrates e Platão, evidenciada com maior ênfase no pensamento de

Heráclito, isto porque, segundo Nietzsche, este filósofo possuía uma força de

representação intuitiva extraordinária, mostrando-se indiferente aos demais tipos de

representação que operassem através de conceitos ou verdades lógicas, portando-se com

indiferença e intrepidez diante dos labirintos e imperativos da razão calculante

(NIETZSCHE, 2003, p.58-FTG§5). Neste texto a intuição, importante componente do

pensamento trágico, é concebida pelo filósofo como sendo correlata à sensibilidade, tal

como vemos no seguinte recorte:

La representación intuitiva, en cambio, comprende las dos cosas:

primero, lo omnipresente en todas nuestras experiencias, el mundo

que constantemente se nos impone con todo su colorido y su

multiplicidad; luego, las condiciones únicas que hacen posible

cualquier experiencia en dicho mundo, el espacio y el tiempo. Pues

estas, aun careciendo de un contenido determinado, pueden percibirse

en sí mismas con independencia de toda experiencia, y de forma

puramente intuitiva, es decir, pueden ser aprehendidas en sí

(NIETZSCHE, 2003, p.58-FTG§5)

Ao mencionar o espaço e o tempo deve-se entender que Nietzsche esteja se

referindo principalmente à sensibilidade como percepções captadas pelos sentidos,

ressaltando com isso a revalorização do papel das percepções sensoriais na formação do

conhecimento, participação outrora negada pela filosofia, mormente na filosofia

platônica, sem, no entanto, negar o papel das percepções puras que podem ser

apreendidas em si por meio da intuição.

Em seu opúsculo Sobre verdade e mentira no sentido extramoral (1873)

Nietzsche irá opor a capacidade de elaborar conceitos à “metáfora intuitiva”

(NIETZSCHE, 2014, p.66-VME§1), contrapondo, assim, o homem intuitivo – artístico,

trágico, criador de metáforas – ao homem racional – calculante, conceituador, liquefator

de metáforas intuitivas – ao afirmar que “há épocas em que o homem racional e o

homem intuitivo ficam lado a lado, um com medo da intuição, o outro escarnecendo da

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abstração; este último é tão irracional quanto o primeiro é inartístico” (NIETZSCHE,

2014, p.69-VME§2). Esta oposição, lembrando a oposição geradora dionisíaco-

apolíneo, nos leva a crer que, mais que possível, seja necessária uma conciliação entre

os dois tipos de seres humanos descrito por Nietzsche. Só por intermédio de uma

harmonização da tensão entre o ser racionador (que a um só tempo raciocina conceitos e

raciona sua vida) e o ser intuitivo (o herói eufórico sedento de vida), poderemos chegar

ao homem em sua plenitude: o ser trágico.

II.2.4 Fisiologia da arte

Como vimos no texto anterior, a exacerbação de qualquer um dos

componentes de nossa fisiologia recai num estado de desarranjo, desarmonia e doença,

segundo a perspectiva nietzschiana. Por outro lado, o equilíbrio entre esses

componentes, apresentados sob a imagem de Apolo e Dioniso, tem a potência de

transformar uma droga letal em remédio (NIETZSCHE, 1992, p.34-NT§2). Desde seu

texto debutante e ao longo de toda a sua obra, Nietzsche utiliza termos relacionados à

fisiologia e biologia, termos como saúde, doença, tônico remédio. Este traço fisiológico

de sua filosofia se entrelaça ao binômio apolíneo-dionisíaco e, inevitavelmente, à

necessidade do trágico como equilíbrio fisiológico fundamental da existência. Assim, o

equilíbrio trágico é a já um traço de robustez e de saúde deste organismo apolíneo-

dionisíaco, e o inverso, como não poderia ser diferente, representa fome, inanição e

doença. Esta característica fisiológica do trágico, resultado da interação orgânica entre

Apolo e Dioniso, foi mencionada com bastante clareza por Roberto Machado:

Ao afirmar que Apolo ensina a medida a Dionísio, Nietzsche assinalando

que, na tragédia, imagem apolínea impõe a beleza ao instinto dionisíaco,

transfigurando, idealizando, espiritualizando a orgia musical; transformando

veneno em remédio. Mesmo que os motivos que o levam a essa afirmação

tenham variado, a tragédia sempre será pensada por Nietzsche como tendo o

efeito terapêutico de um tônico. A especificidade desse momento de sua

produção filosófica, em que pensa o trágico a partir de dois princípios

antagônicos – o apolíneo e o dionisíaco –, é ver na imagem apolínea a

condição que torna o fundo dionisíaco possível de ser vivido, transformando

o veneno em remédio (MACHADO, 2006, p.233)

Este equilíbrio orgânico é vital para mantermos a sanidade fisiológica, não

sendo aceitável pelo filósofo nem a hegemonia do elemento apolíneo, tampouco no

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elemento dionisíaco, estando este último também passível de ser remediado. Quanto a

essa necessidade de remediar o dionisíaco, encontramos explicações de Nietzsche nos

Fragmentos póstumos I, anotações do período de 1869 a 1874, “la tragedia es el

remedio natural contra lo dionisíaco. Hay que vivir: por lo tanto es imposible el puro

dionisismo. Pues el pessimismo es ilógico em teoría y en la práctica. Porque la lógica es

solamente la μηχανή de la voluntad” (NIETZSCHE, 2010, p105-FP I, 3[32]). O

interessante a se notar neste fragmento é o fato de que, mesmo num trecho com

evidentes influências schopenhauerianas, a perspectiva da fisiologia se revela ao falar de

remédio e, sobretudo, ao mencionar o termo mekane (μηχανή), que segundo a

explicação de Schopenhauer, é um recurso instintual de preservação, um “meio de ajuda

para a conservação do individuo e propagação da espécie” (SCHOPENHAUER, 2005,

p.215-§27, I179), considerando ambos, lógica/razão e instinto/intuição, mecanismos da

Vontade:

O conhecimento em geral, quer simplesmente intuitivo ou racional,

provém portanto originalmente da Vontade e pertence à essência dos

graus mais elevados de sua objetivação, como mera μηχανή, um meio

para conservação do indivíduo e da espécie como qualquer outro

órgão do corpo (SCHOPENHAUER, 2005, p.217-§27, I181)

Os traços fisiológicos perceptíveis já na interpretação schopenhaueriana,

aparecem como força latente na filosofia de Nietzsche desde os seus primeiros escritos e

se intensificam em seus escritos de transição e maturidade, tecendo por meio da

fisiologia da arte uma complexa teia e interligada teia de referências ao fisiológico

como a tensão entre criação e destruição da natureza. Segundo Dias (2005, p.134-135),

na filosofia nietzschiana, a latência do fisiológico, aparece não apenas quando pensa a

existência como um movimento de criação/destruição, mas também quando emprega

“palavras que exprimem sensações ou estados relacionados ao corpo: saúde, doença,

impotência, fome, fraqueza, força”. Quando critica a música do compositor alemão

Richard Wagner, o filósofo do martelo o faz em termos fisiológicos, tal como vemos

neste excerto de A gaia ciência (1982):

Minhas objeções contra a música de Wagner são objeções fisiológicas: para

que dissimulá-las ainda sob fórmulas estéticas? É um “fato”: respiro com

dificuldade quando essa música começa a agir sobre mim; logo meu pé se

aborrece e se revolta contra ele – meu pé sente a necessidade de cadência, de

dança e de marcha, reclama da música em primeiro lugar.(...) – Mas meu

estômago, não protesta também? E meu coração? A circulação do meu

sangue? E minhas entranhas não se entristecem? O que é que não me

enrouquece insensivelmente? Acredito que pede um alívio (NIETZSCHE,

2006, p.242-243-GC, V,§368)

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Já em Genealogia da moral, o filósofo, em uma nota de rodapé ao final da

primeira dissertação, aponta a necessidade não apenas filosófica e filológico-

etimológica, mas fisiológica, na investigação das origens dos preceitos morais,

asseverando que a tarefa fisiológica deve ser a primeira executarmos numa genealogia

da moral:

É igualmente necessário, por outro lado, fazer com que fisiólogos e médicos

se interessem por este problema (o do valor das valorações até agora

existentes): no que pode ser deixado aos filósofos de ofício representarem os

porta-vozes e mediadores também neste caso particular, após terem

conseguido transformar a relação entre filosofia, fisiologia e medicina,

originalmente tão seca e desconfiada, num intercâmbio dos mais amistosos e

frutíferos. De fato, toda tábua de valor, todo "tu deves" conhecido na história

ou na pesquisa etnológica, necessita primeiro uma clarificação e interpretação

fisiológica, ainda mais que psicológica (NIETZSCHE, 1998, p.45-46-GM, I,

§17)

Afirmando a necessidade de uma interação maior entre a fisiologia e a

filosofia, relacionamento que, com o passar do tempo degradou-se e tornou-se seco e

desconfiado, separando a filosofia da “teoria da vida” – como reconhece a “fisiologia”

na segunda dissertação (NIETZSCHE, 1998, p.67-GM, II§12). A perspectiva fisiológica

se mostra com bastante vigor em Genealogia da moral não apenas quando menciona

uma “fisiologia estética” suscitada pela compreensão equivocada do estado estético

pensado por Schopenhauer, compreensão que precisa ser analisada com mais detalhes

por conta sua intocada e inexplorada complexidade (NIETZSCHE, 1998, p.101-

GM,III§8). Mas se mostra principalmente pela utilização de termos relacionados a

“saúde”, “cura”, “doença”, “morbidez”, ou quando menciona os “fisiologicamente

deformados e desgraçados” (NIETZSCHE, 1998, p.87-GM,III§1), os “dispépticos”

(NIETZSCHE, 1998, p.48-GM,II§1), “exaustão fisiológica”, “condição doentia”,

“nojo”, “náusea” e fastio de si mesmo (NIETZSCHE, 1998, p.109-111-GM,III§13), ou,

ainda, quando se refere à religião como um “sentimento de obstrução psicológica”

(NIETZSCHE, 1998, p.120-GM,III§17).

Assim, Nietzsche põe em prática a consideração feita na nota do final da

primeira dissertação de Genealogia da moral, há pouco mencionada, mostrando que é

possível aproximar a teoria filosófica, não só da arte, mas da teoria da vida, por meio de

uma fisiologia da arte que tem como fio condutor o corpo. O corpo passa a ser o

receptáculo da filosofia nietzschiana, na qual se expressam todos os processos vitais-

existenciais, sobretudo aqueles relacionados à falta e à abundância de vida, pois, explica

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Dias, “Nietzsche sente e entende a arte a partir do corpo, pensado como multiplicidade

hierarquizada de forças cuja organização é indício de saúde ou doença, de negação ou

afirmação da vida” (DIAS, 2005, p.136). Uma perspectiva que, como já o dissemos, se

integra com as demais reflexões do pensador, desde as suas primeiras obras e escritos, e

agrega reflexões como a importância orgânica da arte para a existência, o apolíneo-

dionisíaco, o trágico e vontade de potência como afirmação da vida, dentre outras

reflexões que interagem entre si pela perspectiva fisiológica, tomada como ponto de

fuga para onde todas essas linhas convergem.

Essa aproximação entre filosofia e fisiologia conduz Nietzsche a mencionar

termos relacionados à medicina, como, por exemplo, a condição do ressentido,

considerado “dispéptico”, ou o religioso como “obstruído fisiologicamente”. Todavia,

mesmo que ora ou outra Nietzsche empregue em suas reflexões filosóficas termos e

compreensões oriundos da Biologia, não podemos nos equivocar e imaginar que

pensador alemão utilize esse viés fisiológico pautando suas reflexões em atavios

cientificistas ou num sentido estritamente biologizante. A esse respeito – de não nos

equivocarmos com o que Nietzsche entendia por biológico –, são insignes as

observações de Heidegger apresentadas no primeiro volume de suas preleções acerca do

filósofo do martelo, intitulada no Brasil como Nietzsche. Nesse diálogo ímpar entre

pensadores, que definiram caminhos para uma filosofia que rompesse com a

esmagadora tendência de sedimentação e cristalização da linguagem e do conhecimento,

teremos um excelente guia que nos auxiliará a compreender o sentido dilatado de

fisiologia no pensamento nietzschiano.

O primeiro cuidado que Heidegger tem ao tratar da fisiologia é o de atentar

para termos que podem levar a uma interpretação literal, biologizante, de seus

enunciados ao falar, por exemplo, sobre o sentimento do belo nos Fragmentos póstumos

do outono de 1887 considerando-o como uma categoria biológica:

En ese sentido, lo bello está dentro de la categoría general de los

valores biológicos de lo útil, lo benéfico, lo que acrecienta la vida:

pero de manera tal que una cantidad de estímulos que de muy lejos

recuerdan y se ligan con cosas y estados útiles nos dan el sentimento

de belleza, es decir de aumento del sentimiento de poder (— no sólo

cosas, por lo tanto, sino también sensaciones que acompañan esas

cosas o sus símbolos). (NIETZSCHE, 2008b, p.353- FP IV,10[167])

Categorizando o belo como um valor biológico, Nietzsche acrescenta que a

beleza aumenta o sentimento de poder e a “força” do indivíduo e sua espécie, que os

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protege e preserva sua vida, algo bem similar ao termo que mekane (μηχανή) que há

pouco mencionamos, pois, diz Nietzsche, “Si y dónde se coloca el juicio «bello», es una

cuestión de fuerza (de un individuo o de un pueblo). El sentimiento de plenitud, de

fuerza acumulada” (NIETZSCHE, 2008b, p.354- FP IV,10[168]). Logo, se interpretarmos

literalmente, ou biologicamente, esta “força” de que fala Nietzsche, incorreremos em

grave desvio no pensamento do filósofo, por associá-la à força física, tal como elucida

Heidegger, em sua análise a este último fragmento:

Mas essa força não é a mera força corpórea como reservatório da

“brutalidade braquial”. O que Nietzsche designa aqui por força é a

capacidade da existência (ser-aí) histórica de agarrar e levar a termo a sua

determinação é essencial mas elevada. Essa essência da “força” certamente

não vem à luz de e maneira pura decidida. A beleza é tomada como “valor

biológico” (...). O fato de Nietzsche conceber o belo biologicamente é

incontestável; a questão é apenas o que significa aqui “biológico”, “βίος”,

“vida”; apesar de toda a aparência literal, esse termo não designa o que a

biologia entende por ele. (HEIDEGGER, 2010, p.104)

Logo, entende-se que a visão biológica latente na filosofia de Nietzsche,

bem como as funções fisiológicas presentes na estética nietzschiana não podem ser

reduzidas a processos meramente físico-químicos. O orgânico é entendido aqui não

puramente pelo viés biologizante ou cientificista, mas pela compreensão do carácter

criativo da arte e sua influência junto ao ser humano, sendo, ambos, partes constituintes

do mesmo corpo. Com efeito, a condição imprescindível para o funcionamento pleno

deste organismo simbionte humano-estético é, segundo Nietzsche, a embriaguez, pois,

“para que exista arte, para que exista algum fazer e contemplar estético, é

imprescindível uma condição fisiológica: a embriaguez. A embriaguez precisa

inicialmente ter intensificado a excitabilidade da máquina inteira” (NIETZSCHE, 2015,

p.82-CI, Incursões§8). Diríamos, ainda, que esta “máquina inteira” a que refere o

filósofo, não é tão somente a máquina ou o corpo humano, mas todo o complexo

organismo que entrelaça a vida, do qual a célula humana é mais uma parte.

Com esta interpretação fisiológica da arte como organismo existencial em

funcionamento, Nietzsche parece operar uma interessante inversão na gênese do que se

considera arte. Isto é, se para grande parte dos filósofos, e isto inclui Schiller, a arte tem

origem nos rincões do espírito e manifesta-se por meio deste, para Nietzsche, a arte

passa a ser eminentemente corporal e fisiológica, manifestando-se, mormente, pelo

corpo mediante as sensações e sentimentos que causa neste. Esta inversão aparece nos

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esclarecimentos de Heidegger, quando explica o aparente contrassenso da fisiologia da

arte nietzschiana:

Visto de fora seria algo fácil caracterizar a posição de Nietzsche em

relação à arte como contra-sensual e sem sentido, e, com isso, como

niilista; pois se a arte é agora senão coisa da fisiologia, então a

essência e a realidade da arte se dissolvem em estados nervosos e em

processos nas células nervosas (HEIDEGGER, 2010, p.85)

Logo, tal inversão da arte como parte eminentemente fisiológica e não mais

eminentemente psicológica do ser, parece, numa análise apressada, a entrega de uma

faculdade espiritual e psicológica ao âmbito fisiológico cego e reflexo que responde a

determinados estímulos ou, ainda, a caracterização da arte não como atividade criativa e

criadora do gênio humano, mas como atividade de um sistema meramente

parassimpático ou simpático do um corpo, tal como o fechar e abrir das pupilas.

Considerar a estética como mais fisiológica que psicológica ou espiritual, “parece o

mesmo que rebaixar a arte ao plano do funcionamento do estômago” (HEIDEGGER,

2010, p.85), acrescenta Heidegger.

No último recorte de Nietzsche citado há pouco, vimos que o filósofo

retratava a embriaguez como condição fisiológica fundamental para o artista. O fato

importante sobre isso a ser mencionado agora, diz respeito ao título que encabeça o

trecho por nós recortado, “Da psicologia do artista” (NIETZSCHE, 2015, p.82-CI,

Incursões§8), que nos leva a dedução de que mesmo uma psicologia, fruto do trabalho

da psique ou do espírito, já é em si inseparável da fisiologia. Este fato é corroborado na

análise heideggeriana ao afirmar expressamente que “quando Nietzsche diz fisiologia

ele tem em vista, com efeito, de maneira acentuada, o estado corporal. Todavia, estado

corporal já é em si algo psíquico; portanto, também coisa da ‘psicologia’”

(HEIDEGGER, 2010, p.88).

Deste modo, a principal condição nesta fisiologia estética que abrange as

várias dimensões humanas é a embriaguez. A embriaguez que possibilita o processo

perene de criação-recriação, já anunciada desde O nascimento da tragédia:

O homem não é mais artista, tornou-se obra de arte: a força artística de

toda a natureza, para a deliciosa satisfação do Uno-primordial, revela-

se aqui sob o frêmito da embriaguez. A argila mais nobre, a mais

preciosa pedra de mármore é aqui amassada e moldada e, aos golpes

de cinzel do artista dionisíaco dos mundos, ressoa o chamado dos

mistérios eleusinos: "Vós vos prosternais, milhões de seres?

Pressentes tu o Criador, ó mundo?" (NIETZSCHE, 1992, p.31-NT§1)

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Há de se notar que esta embriaguez a que se refere Nietzsche é a embriaguez

não diz respeito àquela intoxicação por meio de álcool ou psicotrópicos. Tal diferença é

válida, pois tal termo, sobretudo no uso corriqueiro, está cunhado de estigmas que

apontam para o embriagado como o porre, que perdeu os sentidos, o bom senso e a

sanidade. Portanto, é fundamental separar os casos de embriaguez, para que não

tomemos equivocadamente o sentido a que se refere Nietzsche. Isto é, devemos

discernir a embriaguez gerada por substâncias químicas, da embriaguez estética gerada

por êxtase e superabundância de vida. A embriaguez de alguém que se encontra

completamente bêbado ou, na expressão vulgar, daquele que “está mamado”12

, é algo

que, segundo a interpretação de Heidegger, subtrai toda e qualquer possibilidade da

manifestação de um legítimo estado de embriaguez. Em relação à ação deletéria do

excesso de álcool no organismo, vemos algumas menções na obra de Nietzsche,

sobretudo no que tange ao gosto exagerado do alemão por cerveja, considerando na

Tentativa de autocrítica de O nascimento da tragédia, que o povo alemão é um povo

“que gosta de bebida e honra a obscuridade como uma virtude, isto é, em sua dupla

propriedade de narcótico inebriante e ao mesmo tempo obnubilante” (NIETZSCHE,

1992, p.21-NT autocrítica§6), crítica que retorna com mais impacto e evidência em

Crepúsculo dos ídolos na seção O que falta aos alemães, ao afirmar que o povo alemão

abusou de modo vicioso, mais que qualquer outra nação europeia, dos dois principais

narcóticos europeus: o álcool e o cristianismo. Ainda no mesmo parágrafo, desfere uma

dura crítica ao excesso de álcool da jovem intelectualidade alemã:

Quanta cerveja há na intelectualidade alemã! Como é possível que jovens

que consagram sua existência aos fins mais espirituais não percebam em si o

primeiro instinto da espiritualidade, o instinto de auto-conservação do

espírito – e bebam cerveja? O alcoolismo da juventude erudita talvez não

chegue a ser um ponto de interrogação quanto a sua erudição – é possível ser

um grande erudito mesmo sem espírito –, mas sob qualquer outro aspecto,

continua sendo um problema (NIETZSCHE, 2015, p.67-CI, que falta aos

alemães§2)

A embriaguez, portanto, deve ser o transbordamento da alegria e da vontade

de vida e não o transbordamento do copo e do excesso de álcool que causa o torpor na

consciência, ressaltando-se, mais uma vez, que o problema do álcool está no abuso, no

excesso. Logo, a verdadeira embriaguez, e não a bebedeira, é o elemento fundamental

12

Estranha e inusitadamente, a expressão vulgar da embriaguez por substâncias traduzida por Marco

Antônio Casanova é “estar mamado”. Infelizmente não tivemos acesso à obra original para compararmos

traduções. Numa versão espanhola traduzida por Juan L. Vermal (Barcelona:EdicionesDestino, 2000),

temos a expressão “borrachera”, que poderíamos interpretar como bebedeira.

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para a fisiologia estética criadora-recriadora. E, por ser também estética, essa condição

imprescindível da fisiologia está inevitavelmente ligada aos sentimentos (relação

atestada desde o nosso primeiro Interlúdio).

Heidegger adverte-nos para o fato de que, com a inversão estética operada

por Nietzsche em sua fisiologia, não há uma hierarquia entre os sentimentos e o corpo e

que, por conseguinte, “não podemos cindir as coisas de tal modo como se estivesse

alocado em um pavimento inferior o estado corporal, e, em um outro superior, o

sentimento (HEIDEGGER, 2010, p.91), posto que ambos fazem parte do mesmo núcleo

que compõem a fisiologia estética, ao mesmo tempo que se co-pertencem e se co-

habitam:

O sentimento como um sentir-se é, precisamente, a maneira como

somos corporais; ser corporal não significa que um apêndice chamado

corpo é simultaneamente ligado à alma, mas no sentir-se o corpo está

desde o princípio co-inserido em nosso si próprio, e, com efeito, de

um modo tal que ele permeia a nós mesmos em seu estar em tal ou tal

estado (HEIDEGGER, 2010, p.91)

Não há nesta fisiologia, portanto, elementos apartados e estranhos a ela que

não fação parte do sentido orgânico de co-pertencimento; uma separação sistemática

como há, por exemplo, na filosofia cartesiana entre res cogitans e res extensa, que

provoca fragmentações no modo de compreensão do organismo como um todo que não

se pode fragmentar sem quaisquer prejuízos, para o todo, tal como o vidro que, uma vez

cindido não se deixa remendar sem consequências para sua unidade. Por isso, continua

Heidegger, “A embriaguez é um sentimento tanto mais autêntico quanto mais

essencialmente domina a unidade do ser-afinado que se corporifica” (HEIDEGGER,

2010, p.92). A embriaguez, por conseguinte, é completude, é o que nos leva ao

sentimento de plenitude e mantêm no nível correto e nos mantém abertos ao novo, aos

sofrimentos, aos dissabores, mas às alegrias, à vontade de viver; é aquele sentimento

que permite aos indivíduos sentir “que nada lhe é estranho e nada lhe é demasiado, que

ele está de chofre aberto para tudo e pronto para tudo: a maior audácia e o supremo

risco” (HEIDEGGER, 2010, p.93), uma perspectiva que vai muito além da perspectiva

schilleriana complementando-a e implementando um panorama de abertura assaz

interessante e necessária também para a perspectiva educacional: o sentimento de estar

aberto ao novo.

O estado de embriaguez da fisiologia estética de Nietzsche é o estado de

harmonização do binômio Apolo-Dioniso; a tensão necessária que, ao ser afinada em

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seus pontos de tensões naturais, proporciona um estado de plenitude estético-existencial

do ser; aquele estado trágico que, por estar aberto tanto às alegrias quanto aos

sofrimentos, tanto ao belo quanto ao feio, permite um sentimento de totalidade e de

preparo ante a tudo o mais que nos possa ocorre, já que estamos fisiologicamente

afinados para seguir qualquer ritmo que nos seja imposto, porquanto,

A embriaguez é um sentimento, um estar afinado que se corporifica, a

corporificação envolvida na afinação, a afinação entretecida na

corporificação. O estar afinado abre, porém, o ser-aí como um ente

que se eleva, e o desdobra na plenitude de suas capacidades que se

excitam mutuamente a sua elevação (HEIDEGGER, 2010, p.97)

Esta afinação é aquela mesma que se percebe na metáfora heraclítica da

tensão necessária entre os concorrentes que compõe a existência, a imagem do arco e da

lira que precisam ter a tensão mais afinada quanto possível para que se encontrem

harmônicos e, consequentemente, que desemprenhem suas funções de modo pleno. Essa

afinação que o estado e o sentimento de embriaguez proporcionam ao binômio

apolíneo-dionisíaco ao movimento do trágico é capaz de restaurar nossa fisiologia,

deixando-a preparada para enfrentar os dissabores da vida. Aqui reside a necessidade de

apresentamos a perspectiva fisiológica de Nietzsche neste estudo. Não apenas pelo fato

de a perspectiva fisiológica ser o laço que enreda toda a filosofia nietzschiana, mas

também por nos oferecer o nexo necessário para compreendermos como utilizar tais

teorias no âmbito educacional. A fisiologia, por meio da embriaguez, nos possibilita,

dentro de outras coisas já mencionadas, equilibrar a tensão entre o apolíneo e o

dionisíaco em nós; equilibrando tal relação de tensão, poderíamos lidar melhor com o

diferente, com o feio, com o assustador, retomando nisso o senso de totalidade e a

vontade de vida. Entretanto, nada disso seria profícuo se não se considerasse a condição

subjacente de qualquer fisiologia: a corporificação. Isto é, a condição primeira e

objetivo desta fisiologia é realmente e irreversivelmente assimilar, consubstanciar,

incorporar essas atitudes em nosso cotidiano, fazer desse estado de embriaguez – que

engloba tudo o que há pouco mencionamos – uma parte de nosso corpo, um órgão

indispensável para o funcionamento dele. Sem a incorporação profunda desses estados

estéticos, o estudo de teorias e concepções terá sido meramente um estudo jornalístico.

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101

III- ASPECTOS DA EDUCAÇÃO ESTÉTICA EM SCHILLER E NIETZSCHE:

CONTRIBUIÇÕES À PRÁTICA EDUCATIVA

O fim da graduação se aproximava e empurrava

cada vez mais os estudantes contra temido trabalho de

conclusão. Na premência de se formarem, os jovens

estudantes, e mesmo os não tão jovens, precisavam começar

a tentar identificar problemas a serem pesquisados, ou

inventá-los, se fosse necessário. Inicia-se uma busca por

livros, textos e temas que possas servir à tarefa. Irrompe

então uma luta maiêutica por dar à luz compulsoriamente a

um projeto de investigação e, em seguida, a uma produção a

partir deste.

Envoltos nesse natural processo, dois jovens amigos

pressentem que é necessário definir algo a respeito desse

parto, um deles, trocando inúmeras vezes de temas e de

autores, acaba por ser levado a definir seu tema, pela

admiração e impressão que o professor lhe causou nas

disciplinas ministradas sobre a temática. Respondendo a

essa admiração profunda que o professor lhe causou, o

jovem discípulo decide entrar no grupo de estudo do

professor e toma gosto pela leitura do autor e do assunto

trabalhado pelo professor, passando a se sentir a vontade no

tema estudado.

Ocorre que, certa feita, já em ritmo de alta produção

do TCC, o jovem discípulo, vencendo seus pudores, tomou

coragem em pedir emprestado um livro ao professor

venerado. Este último pediu que passasse pela manhã na

coordenação do curso e apanhasse o livro. No dia e hora

marcada o discípulo estava se encaminhando para a

coordenação do curso e, ao encontrar seu amigo, convida-o

para apanhar o livro.

Ao chegarem na coordenação os Jovens são

recebidos pelo professor que, prontamente, entrega o livro

ao discípulo extático que tenta ensaiar uma conversa

inteligente com seu mestre. Nesse meio tempo, o amigo do

discípulo, que também foi aluno deste professor, começa a

folhear o livro, abismado com a série incompreensível de

rabiscos e grifos feitos à caneta vermelha na obra. E objeta o

mestre iniciando um diálogo despretensioso:

– Professor, que desrespeito com o livro! Por que o senhor risca os livros com caneta e, ainda mais, vermelha?

Neste ínfimo instante o discípulo tenta dissimular

uma atitude de normalidade, mas sua musculatura o traiu e

ele imediatamente virou o pescoço e fitou o amigo

subversivo. A despeito de tentar não transparecer o

estarrecimento, seu olhar gritava um misto de reprovação,

espanto, por tamanha audácia de perguntar algo tão altivo ao

seu mestre. Ao que o professor respondeu, com sua voz

fanha, e esboçando um leve sorrisinho:

– Eu desrespeito os livros, porque eles me desrespeitam às vezes também.

E com essa resposta assaz espirituosa o professor

renovou mais ainda a admiração, não apenas de seu

discípulo, como também de seu amigo.

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102

Os neófitos na filosofia ou recém-chegados às sendas filosóficas encontram

nos filósofos uma figura cuja imagem é contemplada ao longe, como um ser genial,

pronto e acabado, pairando sobre eles uma espécie de aura, semelhante àquela descrita

por Walter Benjamin em relação à arte, tornando-o ícones venerados. Geniais, sem

dúvida, mas acabados é um ponto a se refletir. O interessante é que só nos damos conta

que muitos desses filósofos foram indivíduos como nós, quando conhecemos pessoas de

gênio que, depois de muito empenho, se tornam reconhecidas por sua contribuição e

com isso nos damos conta que, a despeito de suas altas potencialidades, as vicissitudes

da vida as afetas com a mesma intensidade com que afetam a nós, pois pudemos

acompanhar uma parte de sua trajetória. À medida que o tempo avança passamos a

perceber com maior clareza e definição fatos que outrora passavam despercebidos por

nós. Esse é um movimento natural. Com efeito, ter vivido algo nos autoriza a falar deste

algo. Justamente por isso me é possível falar destes neófitos da filosofia, pois um deles

reside em mim.

Evocando a imagem do neófito, do calouro, do estudante, é possível

notarmos que, influenciados pela genialidade e pela serenidade com que as obras dos

grandes autores são feitas, somos levados a imaginar que o percurso dos grandes gênios,

dos quais só conhecemos a obra, foi um percurso sereno e retilíneo. Imaginamos que os

filósofos foram somente filósofos, que os físicos foram somente físicos, que os

matemáticos precisavam apenas se preocupar com números e assim sucessivamente em

nas mais variadas categorias e áreas do conhecimento. Despois de certo tempo vamos

naturalmente percebendo que, apesar de sua obra e contribuições transcenderem sua

época se estendendo às gerações futuras, estes gênios eram seres humanos e tinham

todas as atribuições comuns que cabem a muitos de nós: ficavam doentes, tinham que

pagar contas, se machucavam, faziam sesta, liam notícias, tinham preferências por cores

e infinitas outras coisas corriqueiras que poderíamos mencionar aqui. Em relação essa

admiração que nos faz venerar o outro por sua obra, conta-se o encontro de Goethe com

Napoleão Bonaparte, a pedido do próprio imperador, para conhecer o grande poeta:

O próprio Goethe gostava de narrar seu encontro com Napoleão.

Um gordo camareiro polaco fê-lo entrar. Napoleão estava sentado a

uma grande mesa, e almoçava, Talleyrand13

ficara de pé à sua direita.

13

Diplomata francês que nesta ocasião era Ministro dos negócios estrangeiros de Napoleão.

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O imperador fez sinal a Goethe, que hesitava, para se aproximar.

Depois, olhou-o com atenção e disse-lhe:

– Sois um homem, então! (LACERDA, 19??, p.146)

Tamanha admiração que temos pela obra que a transferimos, com toda

justiça que se deve, ao seu autor, elevando-o de tal modo que se passa a considerá-lo

mais que um humano, daí e exclamação admirada de Napoleão Bonaparte que

expressava algo como “então, mesmo compondo genial e divinamente, continuas a ser

um ser humano, como todos nós”.

Retomando a imagem inicial, o mesmo ocorre com o neófito, não só da

filosofia como de qualquer área de conhecimento, porquanto, ao reconhecer em um

pensador sua sabedoria e genialidade, costuma o calouro venerá-lo de modo a

considera-lo em um patamar inalcançável. Se numa ocasião o neófito se vê diante de um

desses seres inalcançáveis, ele congela, ficando sem reação, expressando uma

pasmaceira evidente, ou, ainda, quando consegue esboçar uma reação, faz ou diz uma

bobagem sem tamanho, insensatez que nunca faria em condições naturais.

Toda esta imagem que foi descrita tem como objetivo inicial nos fazer

perceber que a maioria massiva dos pensadores, desde a Hélade arcaica com Tales de

mileto, eram naturalmente professores, educadores que buscavam construir e formar em

seus discípulos e leitores o espelho de suas meditações. Amiúde tomamos os grandes

pensadores por sua obra e esquecemos que, antes de compor suas magna opera, eles

precisaram estudar com algum mestre que lhes daria orientações básicas, estando aptos,

depois de intenso processo de aprendizado, a ensinar algo para seus discípulos.

Esquecemos que aqueles seres inatingíveis eram humanos e precisavam trabalhar para

sobreviver. Deste modo, se repararmos nesse fato, poderemos perceber que a ocupação

que mais se coaduna com a atividade de um pensador é a de educador. Quase todos os

grandes pensadores foram, antes de tudo, educadores e, mesmo aqueles que foram

exceções e não tiveram discípulos ou educandos diretos, o foram pela obra que nos

legaram e pelos discípulos que fizeram posteriormente. Com efeito, o que queremos

aludir é que, de modo direto, os filósofos que aqui estudamos, Schiller e Nietzsche,

foram também educadores e tiveram que enfrentar os problemas e dificuldades de sala

de aula e que, por terem vivido a realidade da educação, reforça em nós a ideia de que

não podemos separar as obras desses, e dos demais grandes pensadores, do intuito

educacional, pois a grande maioria deles eram sensíveis às questões educacionais,

mesmo que isso não se apresente explicitamente em suas obras.

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No caso destes dois pensadores que aqui tomamos como bússolas para essa

pesquisa, podemos dizer que ambos foram diretamente afetados pelas questões

educacionais e ambos dedicaram escritos que se preocupavam diretamente com a

formação humana.

Quer parecer-nos que em ambos os casos, de Schiller e de Nietzsche, a

concatenação dos fatos ocorridos em suas trajetórias biográficas lhes conduziu de modo

natural à Filosofia e, consequentemente, à Educação e, mais especificamente, à

docência propriamente dita. No caso de Schiller, que inicialmente graduou-se em

medicina, serviu nas forças armadas por ocasião de sua formação em medicina, desistiu

de tudo isso pela sua paixão pela literatura, passando doravante a se dedicar à

dramaturgia. Contudo, passado algum tempo após a escolha de seguir o caminho das

letras, o poeta se viu diante de um doloroso dilema, ainda vigente em nossa época:

“permaneceria dividido entre o desejo de viver para a literatura e a dura necessidade de

sobreviver dela. Obrigado a trabalhar para livreiros e editores, organizando antologias,

calendários e revistas” (BARBOSA, 2009, p.10), levando o pensador a se desdobrar

entre várias funções e atribuições diferentes para se manter, funções como poeta,

dramaturgo, revisor e até mesmo historiador. Desta última atribuição, nascida de

pesquisas feitas para peças como Dom Carlos (1787), que tem como pano de fundo a

Guerra dos Oitenta Anos entre Holanda e Espanha, e seu compêndio de História da

insurreição da Holanda contra o governo espanhol (1788), lhe adveio uma proposta

inusitada e fortuita que lhe poderia da situação de mera sobrevivência:

com a repercussão do primeiro volume de sua História da insurreição

da Holanda contra o governo espanhol, Schiller foi surpreendido por

um convite para lecionar história e filosofia nada menos que na

universidade de Jena. Este convite resultara da influência de Goethe,

de que Schiller ainda não era amigo (BARBOSA, 2009, p.10)

Atribuição que inicialmente não era recompensada, mas que pouco tempo

depois passou a ser modestamente remunerada e lhe rendeu o título honorífico que lhe

concedeu acrescentar o “von” antes do seu sobrenome de Família (BARBOSA, 2009,

p.11). Prova do compromisso com a responsabilidade docente, é que na ocasião de um

de seus cursos de estética o professor Schiller teve uma crise pulmonar em decorrência

de tuberculose que lhe acompanha há tempos, no entanto isso não foi suficiente para

derrubar seu ânimo docente, transferindo as aulas do curso para sua própria casa. A

carreira de professor em conjunto com a ajuda de amigos que presavam pela frágil e já

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debilitada saúde de Schiller, foram preponderantes para a produção de estudos que

tiveram como frutos suas brilhantes preleções preparadas para os cursos ministrados

pelo pensador na Universidade de Jena e de suas correspondências com amigos que o

assistiam.

Nietzsche, por seu turno, também atuou nas forças armadas, ironicamente,

também como socorrista, na época da Guerra Franco-prussiana de 1870-71 no mesmo

período em que iniciava a redação de sua primeira obra O nascimento da tragédia, fato

que narra em um “pós-préfácio” desta mesma obra, chamado pelo filósofo de Tentativa

de Autocrítica. Em seguida foi dispensado para convalescer em sua casa por efeito “de

uma enfermidade contraída em campanha” (NIETZSCHE, 1992, p.13-NT,

Autocrítica§1). Tudo isso ocorreu aos 26 anos do promissor professor Nietzsche que,

dois anos antes, ainda aos 24 anos, foi um dos mais jovens professores universitários de

sua época, recebendo a proposta de lecionar filologia clássica na Universidade da

Basileia.

Retomando suas funções docentes, o jovem Professor Nietzsche, de filólogo

passou a se dedicar cada vez mais à filosofia aliando-a à sua formação clássica em

filologia, tendência já patente em O nascimento da tragédia. Como educador, Nietzsche

não pôde deixar de notar as tendências educacionais de sua época retratando-as em

escritos como Sobre o futuro das instituições de ensino e a sua III consideração

intempestiva Schopenhauer educador, em inúmeros fragmentos e aforismo compilados

postumamente que lançam sentenças sobre a educação, bem como ao longo de suas

várias obras mencionando o processo de formação humana e dedicando vários

parágrafos ao assunto. Mesmo Nietzsche sentiu os efeitos da perda da principal

ferramenta de propagação do professor, instrumento sem a qual o processo educacional

fica inegavelmente prejudicado. Em 1879 O professor Nietzsche foi afastado pela

rouquidão que lhe acometeu e que tornava a sua voz quase inaudível, dificultando sua

compreensão por parte de seus alunos, afastando o público discente e diminuindo

drasticamente a procura por seus cursos.

Destarte, apesar de tomarmos os filósofos, os físicos, os matemáticos e

muitas outras classes de grandes gênios da humanidade como sendo uma espécie de

seres iluminados em estado de ataraxia, avaliando-os pelo impacto e contribuição que

suas obras tiveram na humanidade, todos foram, antes de tudo, humanos, tal como

sentenciou Bonaparte, com todas as limitações, dificuldades e vicissitudes que nos são

peculiares. Pitágoras, Einstein, Stephen Hawking, Leibniz, Newton, Heidegger, dentre

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uma miríade de nomes que poderíamos citar, foram antes de ícones do intelecto

humano, discípulos e, subsequentemente, professores; mestres que, para chegar ao

patamar que se encontram, precisaram de alguém que lhes indicasse o caminho ou,

mesmo que não conhecesse pessoalmente, precisaram de alguém que fornecesse o

fermento e o alimento que possibilitaria nutrir o pensamento, tal como ocorreu entre

Nietzsche e Schopenhauer, a qual o primeiro tomou este último por mestre e educador,

pelo menos durante um bom período de sua filosofia.

Com efeito, perceber que os grandes gênios tiveram que lidar com a

inconstância do cotidiano – que tiveram que lutar pela subsistência, pelo pão, e tiveram

que lidar com problemas banais que incomodam, como uma pia entupida ou falta de

dinheiro para consertá-la– nos aproxima deles e nos infunde a esperança de que,

mesmo ainda sendo somente humanos, somos capazes de deixar uma obra proporcional

à nossas forças, se não por obras materiais como um livro ou um quadro, então pela

obra educacional que nos possibilita também suscitar esperança e perspectivas

projetivas àqueles que nos miram como modelos, isto é nossos educandos.

Invertendo a ótica do neófito e tentando observar agora da perspectiva do

professor, do mestre, podemos dizer que muitas vezes não nos damos conta que para

nossos discentes nós somos essa figura inatingível, essa figura ataráxica que parece não

ter problemas banais e se preocupa tão somente com as grandes obras teóricas do

espírito humano. Muitas vezes nossos jovens educandos creem que nossa posição seja

uma utopia justamente porque não confiar ou acreditar em sua própria potência.

Imagino Que diante de tudo isso, a parcela de sensibilidade que nos cabe é a de

mostrarmos para eles aquele neófito que reside em nós, apresentar o calouro que, não

poucas vezes, teve atitudes bisonhas diante de seus mestres. Tal exercício, de tentar nos

colocar em empatia como o discípulo para tentar aprender sobre a natureza deste outro,

se assemelha grandemente ao que nos pergunta Schiller em uma nota na carta XIII de

sua Educação Estética do Homem:

Para que sejamos homens participantes, prestimosos e ativos, é necessário

que o sentimento e caráter se conjuguem, assim como para a experiência é

necessário e colaborem os sentidos abertos e a energia do entendimento. Por

louváveis que sejam as nossas máximas, como poderemos ser razoáveis,

bondosos e humanos se falta a faculdade de aprender fiel e verdadeiramente a

natureza do outro, se falta a força de nos apropriarmos de situações estranhas,

de tornarmos nosso o sentimento alheio? Esta faculdade, porém, será

sufocada tanto na educação que recebemos quanto naquela que nos damos na

medida mesma em que procuramos quebrar o poder dos desejos e fortificar o

caráter pelos princípios (SCHILLER, 2002a, p.70)

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Nessa perspectiva, sentir o educando começa por tentar se colocar em seu

lugar, isto é, tentar reativar os canais de abertura para sentir o outro, mirando o

educando e tentando perceber nele o educando que fomos no passado, um interlocutor e

co-partícipe na construção de conhecimentos e visões de mundo.

Instigado pela busca de uma educação estética capaz de renovar as relações

mestre-discípulo, educador-educando, esta última parte de nosso estudo será dedicada à

tentativa de apresentar de modo integrado as perspectivas educacionais de Schiller e

Nietzsche, retomando termos e concepções aplicados nos primeiros interlúdios e

tomando, ora ou outra, como referencial suas principais obras voltadas aos misteres

educacionais, mencionando, quando possível, as demais obras dos pensadores que

tratem do assunto.

III.1 Estética como formação humana

Durante nosso percurso, vimos amiúde que a arte está presente inegável e

inevitavelmente na formação humana, sendo um importante vetor estético para o

processo educacional. Vimos que o belo se articula de diversas formas com a arte,

apresentando não apenas o perfeito e simétrico como também o terrificante, assustador

ou assimétrico por intermédio do sublime. Para Schiller a arte, como rubrica da beleza

deve nos possibilitar-nos uma serenidade e a liberdade no fenômeno, disposições

indispensáveis que nos deve legar a verdadeira arte. Desta forma, como não podemos

experimentar os fenômenos puros a arte é uma das formas de aproximação do ideal

estético de beleza, nos apresentando mediatamente este ideal. Se uma obra de arte ao ser

produzida e apresentada por seu criador não causa nenhum tipo de entusiasmos ou causa

indiferença, apatia no espectador ou, ainda nos deixa exaustos, então esta obra, segundo

Schiller, não atingiu seu legítimo efeito estético, porquanto,

Esta alta serenidade e liberdade de espírito, combinada à força e a energia, é a

disposição em que deve deixar-nos a autêntica obra de arte, e não há pedra de

toque mais segura da verdadeira qualidade estética. Se após uma fruição

desta espécie achamo-nos dispostos de preferência a alguma maneira de

sentir ou de agir, mas inaptos ou enfastiados para outras, isso serve como

prova inconteste de que não experimentamos um efeito puramente estético

(SCHILLER, 2002a, p.110)

A arte, portanto, nos estimula tanto sensivelmente quanto racionalmente,

tendo de ser capaz de nos deixar abertos concomitantemente ao estímulo dos sentidos e

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do entendimento. Por ser liberdade no fenômeno, a arte deve permitir a espontânea

abertura dos principais canais estéticos do ser humano, nos assenhorando de modo

harmônico “de nossas forças passivas e ativas, e com igual facilidade nos voltarmos

para a seriedade e para o jogo, para o repouso e para o movimento, para a brandura e

para a resistência” (SCHILLER, 2002a, p.110), tamanho o alcance e importância deste

recurso para a nossa existência.

A advertência ácida e contundente a respeito da preservação da arte na obra

nietzschiana, nos preconiza justamente para o risco de perdermos tudo, se perdermos a

arte. Quão terrível e grave seria o conflito da existência sem a possibilidade de jogar

com a seriedade, sem a possiblidade de contar com um tônico que renovasse nosso

ânimo, ou com um bálsamo que nos amenizasse as feridas. Imagine-se um mundo um

mundo sem arte, sem cores, sem poesia. Certamente seria um mundo reto, com pouca

ou nenhuma distração dos juízos, pois neste caso teríamos tão somente juízos de

realidade; seria também um mundo com “precisão de linguagem” sem a admissão de

quaisquer figuras de linguagem ou linguagem conotativa, tal como no panorama

apresentado por Lois Lowry em seu romance O doador de memórias. Tentar converter

o mundo e a existência em algo controlável e estável é assumidamente bastante sedutor

e, ao mesmo tempo impossível para nós. Justamente por ser impossível um mundo

perfeito, é que devemos aprender com a arte a como lidar com a existência que temos.

Daí a proposição de Nietzsche em Gaia Ciência de “O que é necessário aprender dos

artistas”, que intitula o aforismo 299 do livro IV e que se complementa com a questão

subsequente proposta pelo pensador no inicio do mesmo aforismo “que meios temos de

tornar as coisas para nós belas, atraentes e desejáveis quando não o são?”, isto é, como

converter as coisas da existência em algo atraente, quando na verdade essas coisas

nunca o são atraente por si mesmas? E escapando imediatamente da “precisão da

linguagem” o pensador recorre logo a uma metáfora explicando o artista por meio da

imagem do médico, ao apontar que

Aqui os médicos podem nos ensinar alguma coisa quando, por exemplo,

atenua a amargura ou acrescenta açúcar e vinho as suas misturas; mais ainda

os artistas e se aplicam em suma continuamente a fazer semelhantes

invenções. Afastar-se dos objetos até fazer desaparecer o número de seus

pormenores e obrigar o olhar a acrescentar-lhe outros para que se possa ainda

vê-los; contemplá-los de um ângulo de maneira a descobrir apenas uma parte;

olhá-los através de vidros coloridos ou à luz do poente; dar-lhes uma

superfície, uma pele, que não seja completamente transparente; tudo isso nos

é necessário aprender dos artistas e, quanto ao resto, ser mais sábios do que

eles. (NIETZSCHE, 2006, p.175-176 GC, IV§299)

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Devemos aprender com eles, mas, no entanto, ir além deles ultrapassando o

limite onde acaba a arte e começa a vida, misturando-as de modo simbiótico e nos

tornando os artistas de nossa própria vida, transmutando em arte mesmo todos os

pormenores do cotidiano. Aprender que a arte atravessa a um só tempo o sublime e o

trágico, o belo e o feio, o harmonioso e o desarmonioso, a alegria e o sofrimento, o

equilíbrio e a embriaguez, que ela congrega e conflita as forças contrárias que existem

em nós e que habitam o mundo. O que deveríamos aprender dos artistas e o que

deveríamos aprender da arte? De que modos podemos espreitar o fenômeno estético?

No livro Educação pela arte, composto de uma série de depoimentos de

artistas variados e inúmeros profissionais da educação e áreas afins, temos os relatos

diretos de quem trabalha com a educação pela via da arte, a chamada arte-educação. Em

algum destes relatos insignes vemos uma indistinção entre a abrangência da educação

estética e a educação pela arte, indistinção advinda, sobretudo, pela extensão semântica

do termo estética, bem como por distorções históricas pela qual a educação por meio da

arte passou, isto já no século XX. Em um desses vários relatos apresentados no livro

temos depoimento do poeta, crítico de arte e dramaturgo Ferreira Gullar, do qual já

recorremos aqui utilizando uma de suas composições poéticas para apresentar a imagem

do apolíneo-dionisíaco. Neste depoimento Ferreira Gullar fala de sua experiência

estética na educação básica do primário:

As professoras nos obrigavam a ter álbum de desenho, não havia um

curso específico de arte no primário, ou na escola secundária, mas

tínhamos um álbum de desenho e a professora punha lá umas imagens,

os cartazes na sala de aula e pedir para cada um desenhar aquilo; ou

que, em casa, cada um escolhesse um tema para desenhar alguma

coisa. Era uma coisa rudimentar, mas já no sentido de aliar a

experiência estética e artística ao ensino (MIRANDA, 2011, p.105)

Aqui vemos o aspecto rudimentar da utilização da arte e dos aspectos

estéticos que ela, a arte, pode suscitar na educação escolar, do mesmo modo que vemos

que a experiência artística é tomada como a experiência estética em si, confusão que

talvez seja intuitivamente desfeita no avançar do relato do poeta ao afirmar que o fim

último de uma educação deva ser a apresentação de ambas experiências, explicando que

“a finalidade é, na verdade, oferecer a todas as crianças a experiência estética e a

experiência da arte, que é enriquecedora” (MIRANDA, 2011, p.105). Na experiência

vivida e descrita por Ferreira Gullar, vemos que o ensino de artes percorria caminhos

tortuosos na educação, isso na infância do poeta, nos idos da década de 1930 para 1940.

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Esta mesma percepção da introdução insólita da arte no currículo escolar é

narrada por Ziraldo em seu depoimento ao livro:

Lembro-me dos anos 40, ainda em Minas, quando a escola sofreu uma

profunda modificação. Meus pais ficaram assustadíssimos quando os

professores passaram a ensinar aos meninos e às meninas não somente

a cartilha da infância, a aritmética, a história, mas quando passaram a

ensiná-los a declamar, a pintar, a fazer horta no quintal do grupo

escolar (MIRANDA, 2011, p.199)

Este relato revela o despreparo não só da escola em relação a como

trabalhar a arte, como também o despreparo dos pais na recepção da disciplina,

justamente por nunca terem tido contato com ela em seu período de formação escolar.

Mas, mais que isso, o grande cartunista Ziraldo aponta que se na década de 1940 o

ensino de arte chegava claudicante no sistema escolar, ainda hoje, passado o primeiro

decênio do século XXI, a compreensão da educação pela arte ainda não atingiu a

maturidade esperada e necessária para compreender e se fazer compreendida no espaço

escolar, sobretudo no Brasil:

Tenho agora andando pelo Brasil inteiro e sigo pensando que a coisa mais

importante para a criança e seu futuro é o domínio total da leitura e da escrita.

Não adianta querer ensinar o menino a ser pintor, ator, ou a dançar balé, se

ele não domina a leitura e a escrita. Ele vai ser sempre do segundo time. Será

sempre superado pelo que tem a palavra gravada na memória. Ainda que

minha vida seja andar pelo Brasil falando isso, não deixo de acreditar que a

arte é fundamental para a consolidação do aprendizado. Não dá para

prescindir dela (MIRANDA, 2011, p.200)

Essa incompreensão dos limites e alcances da arte na educação, percebidos

no relato de Ziraldo, bem como da mistura entre a concepção de educação estética,

educação pela arte, educação artística dentre outras variantes da mixórdia entre arte e

estética, advém não só da extensão do termo estética, como já mencionamos, mas do

percurso da arte na educação.

Entender estes descaminhos remonta à cisão que houve entre a educação

estética, a educação pela arte, a educação artística e a educação para a arte, cisão

operada desde a Idade Média. Em um excelente apanhado intitulado Estética y

pedagogía, a eminente pesquisadora polonesa e catedrática da disciplina de Educação

Estética da Universidade de Varsóvia, Irena Wojnar, explica como o percurso da arte na

educação foi transformado em um conhecimento cada vez mais especializado e mais

apartado da formação básica. Se na antiguidade grega a educação e formação do

cidadão contavam indispensavelmente com a dimensão artística e com a formação

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conjunta dos sentidos e sentimentos, na idade média o trato com a arte e com os

clássicos tiveram inúmeras variações e, de aceitos como algo necessário e espontâneo,

foi restrito a pequenos grupos e considerado, por vezes, um risco moral à educação

humana estando disponível apenas aos privilegiados e àqueles que teriam condições de

lidar com esses riscos (WOJNAR, 1967, p.103). O retorno efetivo da arte e suas várias

formas aos currículos escolares só passou a ser feito na transição do século XVIII para o

século XIX.

Wojnar descreve o impacto das transformações na concepção de educação

pela arte nas escolas, universidades e nos encontros que discutiam o assunto. Em sua

análise ela dá destaque ao Congresso internacional de ensino de desenho que em sua

primeira edição, ocorrido em Paris no início do século XX, em 1900, já pressente a

necessidade do retorno da arte para as escolas (WOJNAR, 1967, p.119). Durante vários

anos o debate neste congresso, assim como em vários outros encontros e setores do

conhecimento, se desenvolveu na direção de uma formação que levasse em conta a

esfera artística como esfera componente da educação. Já na sua décima edição, sediada

na Basiléia no ano de 1958, a despeito do nome ter se mantido, não se discutia mais o

ensino de desenho de uma forma específica, mas do ensino de artes de um modo mais

amplo, tendo como tema principal “A educação artística: parte integrante da formação

integral do homem” (WOJNAR, 1967, p.125) e, diferente dos outros congressos

anteriores, nesse encontro, segundo Wojnar, houve a participação massiva igualmente

de artistas, arquitetos desenhistas técnicos e educadores interessados pelo tema patente e

inegável,

ya no se habla de la enseñanza del dibujo, sino da enseñanza artística,

lo qual sigiere también um interés por otros géneros de arte. Al propio

tempo apunta como objeto del interés la formación general del

hombre.(...) El hombre que vive en una civilización técnica há de

conservar sus facultades creadoras, y esto puede hacerse gracias a la

influencia del arte que sirve para realizar y expandir las fuerzas sin las

que el hombre no puede vivir (WOJNAR, 1967, p.125)

E com o debate entre estes vários segmentos preocupados com a difusão da

arte na sociedade por meio da educação, a discussão sobre o papel do formador da arte

foi aprofundado e com bastante força conduzido para as universidades e escolas. Destes

debates produzidos no encontro da Basiléia, ainda que bastante vinculados à estética

como tão somente arte, vemos as sutis percepções de que a arte seja mais que técnica e

que a potencia criativa, estimulada pela arte deva ser reabilitada. Dentre as várias

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contribuições nesse sentido, Wojnar destaca as contribuições de Viktor Lowenfeld, que

assinala a necessidade do desenvolvimento da capacidade criadora e

Estabelece relaciones entre la educación artística y la formación de las

facultades creadoras del hombre. Empieza con una crítica del sistema actual

de la enseñanza, basado de modo exagerado en la acumulación de

conocimientos. Y lo que importa em primer lugar, piensa Lowenfeld, es el

desenvolvimiento de la sensibilidade, de las cualidades espirituales y

culturales y, ante todo, de las facultades creadoras. Hay que formar a los

seres como creadores, ya que son éstos solamente los que podrán servise de

sus conocimientos acumulados. De este modo, la enseñanza artística adquiere

funcione más vastas y que trascienden el domínio puramente artístico

(WOJNAR, 1967, p.127)

Percebe-se já uma retomada das potencialidades que foram suplantadas com

o advento da sociedade da técnica e da ciência, retomada dos ideais afirmados

veementemente por Schiller e Nietzsche. Contudo, mesmo que alguns desses

pensadores já venham tratando do assunto da necessidade do estético desde o século

XVIII, época de Schiller, o tema acabou sendo mesclado à necessidade da arte na

formação humana. Não que a necessidade da arte também não seja um tema patente,

mas porque o âmbito estético compreende o fazer artístico e, de alguma sorte, o

antecede. No entanto, o que foi assimilado no debate é a necessidade de transpor e

implantar a educação artística e não a educação estética para as escolas. Novamente,

não que a educação artística seja algo desinteressante ou desimportante para a formação

humana, mas que a educação estética, que abrange desde a educação dos sentidos e dos

sentimentos, passando inevitavelmente pela educação pela arte e educação para arte, foi

deixada como um setor secundário ou, mesmo, esquecida e suplantada na formação. A

ênfase do debate estético se voltou totalmente para a educação artística como uma

disciplina curricular, frustrando o enfoque criativo e conduzindo a criação da disciplina

aos ditames da utilidade e da prática, isto é, no sentido mesmo utilitarista.

Deste modo, convém ser claro que não é propriamente deste tipo de

aplicação da educação estética que estamos falando nas extensões desta breve pesquisa.

não falamos aqui da educação estética como uma matéria ou disciplina que precisa ser

implantada ou estudada nos quadros escolares, mas como um fazer interno, uma

transformação interna no modo como formamos nossas futuras gerações. Transformar

uma educação estética e uma educação artística em conteúdos de quadros escolares,

voltando-os a uma utilidade metodológica deformaria o objetivo desta formação, e isto

foi apontado por Nietzsche ao denunciar que a utilização da arte não deve ser restrita à

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mera educação, pois seu objetivo é muito mais profundo e importante que justifica a

própria existência:

Pois, acima de tudo, para a nossa degradação e exaltação, uma coisa nos deve

ficar clara, a de que toda a comédia da arte não é absolutamente

representada por nossa causa, para a nossa melhoria e educação,

tampouco que somos os efetivos criadores desse mundo da arte: mas

devemos sim, por nós mesmos, aceitar que nós já somos, para o verdadeiro

criador desse mundo, imagens e projeções artísticas, e que a nossa suprema

dignidade temo-la no nosso significado de obras de arte - pois só como

fenômeno estético podem a existência e o mundo justificar-se eternamente

(NIETZSCHE, 1992, p.47-NT§5-grifos nossos)

Logo, submeter a arte e, de modo mais amplo, a estética a utilidades

específicas, aprisionando-as a grades acadêmico-escolares é matar a raiz viva destes

organismos. Tampouco deve-se estabelecer uma educação para a arte, isto é, uma

educação para esquadrinhar e conhecer enciclopedicamente os objetos artísticos, uma

educação filisteica à guisa de uma formação de críticos de arte. Essa educação para a

arte, se conduzida ao filisteísmo, cerceia não apenas a sensibilidade humana em receber

legítima e livremente a arte, como também cerceia a própria produção artística que,

preocupada com a recepção do público “crítico”, se furta de produzir algo que seja fruto

da expressão sincera de seu sentir, visando agradar o erudito em artes:

O artista desempenhante já não sabia de fato por onde começar com um

ouvinte assim, que se dava ares de crítico, e por isso espreitava inquieto,

junto com o dramaturgo e o compositor de ópera, seus inspiradores, os

últimos restos de vida desse ser pretensiosamente árido e incapaz de gozar.

Mas é dessa espécie de "críticos" que se compunha até agora o público; o

estudante, o escolar e até a mais inofensiva criatura feminina estavam já, sem

o saber, preparados pela educação e pelos jornais para uma igual percepção

de uma obra de arte (NIETZSCHE, 1992, p.133-NT§22)

Não que a apresentação informativa das obras de arte seja algo abominável

e pecaminoso, mas que, em verdade, o problema em tal prática está em fazer isso antes

do espectador receber o real impacto da obra, em outras palavras, o problema desta

cultura jornalística da arte está em não respeitar o sentimento único que uma obra de

arte cause num ser que também é único, informando-o a respeito de qual sentimento ele

deva sentir ao se deparar com a obra, antes mesmo que ele se depare com ela,

estragando o sentimento ou a emoção que deveria ser suscitada. Em nossa época temos

um análogo deste “estragar” a recepção da obra, que é o chamado “spoiler”.

É importante ressaltar novamente que, mesmo que seja fundamental sempre

se referir à arte por sua íntima relação com a estética, nosso objetivo não é fundar nem

estabelecer uma pedagogia da arte e menos ainda programar métodos para uma

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educação estética ou para a utilização correta da arte em sala de aula, ou, ainda, instruir

o professor de matemática, português, ou qualquer outra disciplina, a como introduzir

por força a arte em seu conteúdo programático e em sua metodologia de aula. Destarte,

a educação estética não pode remeter tão meramente a uma metodologia didática, mas

deverá caracterizar um modo de ser humano. Transformar a educação estética numa

metodologia é converter todo o seu caráter espontâneo num fardo a ser carregado; é

retirá-la da condição de verdadeira cultura e transformá-la em uma “escrava da

utilidade” tal como sucedeu com a disciplina de educação artística. É justamente a esse

respeito que Nietzsche lança, em sua Quarta conferencia de Sobre o futuro dos nossos

estabelecimentos de ensino, um dardo que atinge o centro deste problema de

transformar uma atividade-fim da educação numa atividade-meio,

Portanto, meus amigos, não confundam essa cultura, esta deusa etérea,

delicada e de pés ligeiros, com esta útil escrava que se costuma

chamar às vezes também de “cultura”, mas que é somente a criada e a

conselheira intelectual das carências da vida, do ganho, da miséria

(NIETZSCHE, 2011, p.122).

Neste sentido, criar um método para algo que deve ser sentido,

experimentado, como a arte e sua esfera mais, a estética, seria o mesmo que corromper

o que de naïf essas potências possuem, rompendo a relação ingênua do ser com a arte e

com a estética (NIETZSCHE, 2011, p.122-123). Então, educação estética não diz

respeito á formação de um pintor, escultor ou músico, não concerne à formação do

conhecedor e crítico de arte, sob a forma do filisteu, ou a criação de uma disciplina

metodológica do tema.

Em seu livro Fundamentos estéticos da educação, Duarte Jr. parece

compreender bem a relação de interdependência entre a estética e a arte, explicando já

na introdução do livro que a arte está ligada à experiência estética, mas que a

experiência estética vai muito mais além de ser apenas a arte, ou um sinônimo para a

arte (DUARTE JÚNIOR, 2008, p.16), complementando, em seguida, que

Através da arte temos acesso a essa dimensão da vida cultural não

explicitamente formulada nas demais construções “racionais” (ciência,

filosofia). Por outro lado, quando se pensa na dimensão estética da

educação, esta expressão envolve um sentido para além dos domínios

da própria arte. Porque o termo estética supõe uma certa harmonia, um

certo equilíbrio de elementos (DUARTE JÚNIOR, 2011, p.18)

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Numa emblemática imagem apresentada por Duarte Júnior, vemos o motivo

pela qual se justifica chamarmos aqui de uma reabilitação do senso estético, pois que,

para este autor, é possível considerar nas sociedades e culturas ditas por nós

“primitivas” a experiência estética a vivida com mais força, na medida em que os

indivíduos desta sociedade fazem parte de um universo de valores e significados que

por estarem unidos possibilita a estes ter uma compreensão global, permitindo a

apreensão do todo, justamente pela união entre o sentir, o pensar e o agir (DUARTE

JÚNIOR, 2011, p.18). Enquanto que em nossa sociedade dita “civilizada”, perdeu-se

para as demandas fragmentárias da ciência o sentido de união entre sentir pensar e agir,

desabilitando a experiência estética na produção do conhecimento e na formação do ser.

É necessário que se diga claramente que, pensar uma educação estética

como meio de formação do ser humano não é negar as funções cognitivas e/ou

pedagógicas da arte. Pelo contrário, pois que a arte sendo inseparável da experiência

estética, pode ser considerada, na verdade, o coração da experiência estética.

Inseparável, pois a estética é esfera onde ela, a arte, é possível. Do mesmo modo, é

inseparável das funções cognitivas, pois que a primeira função lúdica da arte é jogar

livremente com os sentidos, sentimentos e significados, tendo, segundo Duarte Jr.,

como função privilegiada,

Apresentar-nos eventos pertinentes à esfera dos sentimentos, que não

são acessíveis ao pensamento discursivo. Através da arte somos

levados a conhecer nossas experiências vividas, que escapam à

linearidade da linguagem. Quando, na experiência estética meus

sentimentos entram em consonância (ou são despertados) por aqueles

concretizados na obra, minha atenção se focaliza naquilo que sinto. A

lógica da linguagem é suspensa e eu vivo meus sentimentos, sem

tentar “traduzi-los” em palavras (DUARTE JÚNIOR, 2011, p. 103)

É bem evidente que a arte é uma ferramenta potente para a educação e que

arte eleva a condição humana permitindo-a desempenhar por meio dela suas mais altas

faculdades, mas não se trata de considerar a arte de modo isolado, como recurso

pedagógico ou como um meio para atingir um fim. Trata-se aqui de recuar um pouco

mais. Recuar aos condicionantes e possibilitados da experiência que a arte fornece, indo

em direção aos elementos subutilizados em nossa formação atual. Trata-se, portanto, da

necessidade de primitiva e primordial do estético em nossa vida; isto é, de cultivar em

nós desde o sentir o sentir a si, os outros e o mundo, até o sentir a arte e a beleza.

Conhecer obras de arte, produzir obras de arte não é o suficiente para um ser

esteticamente cultivado. Este cultivo não diz respeito a um adestramento da forma, mas

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de uma cultura legítima que uma disciplina escolar, pautada em quadros de conteúdos a

serem vencidos, não dá conta de produzir por si só.

A inclusão da disciplina de educação artística nos currículos escolares não

tem como sanar sozinha o problema da educação estética. Removê-la dos programas

escolares piora ainda mais o panorama, pois, mesmo que pensada como atividades-meio

pelas Instituições educacionais, alguns professores, com atitudes corajosas e isoladas,

conseguem convertê-la em atividades-fim, operando verdadeiros prodígios estéticos em

escolas básicas públicas. A esse respeito Duarte Jr., citando Ana Mae Barbosa, explica-

nos que

Há escolas que, incluindo a Arte no currículo, pensam que estão

resolvendo o problema do desenvolvimento criativo do aluno,

descarregando sobre a Arte toda a responsabilidade da educação

criativa, que deveria ser uma decorrência da função globalizadora da

escola e, portanto, responsabilidade de todas as disciplinas e de todos

os professores, e mesmo de toda a administração escolar (BARBOSA

Apud DUARTE JÚNIOR, 2011, p.117).

Não é nosso objetivo criticar a disciplina de Educação artística, pois, como

dissemos, existem prodígios isolados que conseguem promover minimamente atitudes

de libertação estética por intermédio da arte. A menção breve desta disciplina neste

ensejo deu-se pela necessidade de tentarmos traçar diferenças entre a educação artística

e a formação e experiência estética que a antecedem. A disciplina de educação artística

apresenta problemas que exigem análises muito extensas quanto à formação do

professor e atividades adequadas aos educandos que se estendem para além das forças e

objetivos desta pesquisa e que, portanto, não convém adentrar aqui. Todavia,

reafirmamos que antes uma disciplina escolar de arte, do que nenhuma, tal como

querem as atuais propostas dos sistemas educacionais do Brasil com sua polêmica Base

Nacional Comum que pretende gradativamente eterizar transversalmente no Ensino

Básico disciplinas como Filosofia, Sociologia, Educação física e Artes, diluindo-as

gradativamente no currículo escolar.

Por fim, retomando a temática da estética como formação humana,

poderíamos dizer que o objetivo deste tópico de estudo, além de tentar mostrar que a

arte, o belo, a criatividade, os sentimento e emoções, a sensibilidade e os sentidos são

componentes da estética. Pretendeu também mostrar que a formação estética não pode

ser confundida ou tomada simplesmente por educação artística, arte-educação ou

educação para a arte, pois que a experiência estética é a condição que possibilita todas

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as anteriores precedendo-as. Tratou-se aqui, portanto, da necessidade do estético em nós

que nos leva imediatamente à necessidade da reabilitação da estética, não como uma

busca por conhecer detalhes sobre a obra de arte ou como uma busca por aprimorar

dotes artísticos, mas como a construção de uma disposição interna que agora depende

muito mais de nosso empenho pessoal em nos tornamos estéticos do que de um

adestramento externo.

É mister considerar a formação estética como o primeiro passo da formação

humana, pois que, como em qualquer aprendizado, as compreensões se tornam mais

rijas na medida em que mais tarde nos dispomos a assimilar algo. Veja-se, por exemplo,

no aprendizado de um idioma, quanto mais cedo se aprende, mais fácil pensar e transitar

livremente na língua que se aprende; porém, quanto mais tarde se engaja na tarefa, mais

difícil é romper com os velhos hábitos e vícios linguísticos que o compelem a pensar

sob as formas da língua materna. O mesmo ocorre com a formação estética, pois que

quanto mais o ser esteja formado, formatado ou conformado em uma cultura apolínea-

racionalista, mais duro será libertá-lo e converter este ser racional em ser estético ou, em

termos nietzschianos, em um ser trágico:

Pela disposição estética do espírito, portanto, a espontaneidade da razão é

iniciada já no campo da sensibilidade, o poder da sensação é quebrado dentro

já de seus próprios domínios, o homem físico enobrecido de tal maneira que

o espiritual, de ora em diante, só precisa desenvolver-se dele segundo as leis

da liberdade. O passo do estado estético para o lógico e moral (da beleza para

a verdade e o dever) é, pois, Infinitamente mais fácil que o do estado físico

para o estético (da vida meramente cega para a forma). Aquele passo o

homem pode dar por sua mera liberdade, já que precisa apenas tomar, e não

emprestar, apenas isolar sua natureza, e não ampliar; o homem disposto

esteticamente emitirá juízos universais e agirá universalmente tão logo o

queira (SCHILLER, 2002a, p.114)

Parece absurdo ou insustentável pensar que em Schiller o esteio central da

formação humana para a plenitude dependa primeiramente da disposição estética, mas

adentrando detidamente na leitura do pensador, torna-se inevitável fugir da concepção

da urgência de uma reformulação da educação com vistas a uma formação mais estética

ou, como diria Nietzsche, mais trágica.

Com efeito, fica patente que a formação estética deve, quando possível, vir

cedo e anteceder todas as outras disposições, pois é muito mais fácil dar mobilidade à

matéria que ainda está naturalmente tenra, que enternecer a matéria cristalizada e

recalcitrante. Por isso, explica Schiller “para conduzir o homem estético ao

conhecimento e às grandes intenções, basta dar-lhe boas oportunidades; para obter o

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mesmo do homem sensível é preciso modificar-lhe a própria natureza” (SCHILLER,

2002a, p.114-115). Aqui a ação do estado estético do ser funciona como uma espécie de

mediação na perene tensão entre razão e sensibilidade, sendo perfeitamente análoga à

função do trágico vista em Nietzsche, ao conciliá-las e restaurar o sentido orgânico do

todo. Este estado estético torna-se, por conseguinte, uma disposição fundamental para o

alcance da plenitude das potencialidades humanas, pois consegue ativar o sentido de

unidade intermediando a dicotomia e permitindo a disposição livre ao ser humano que,

não estando constrangido fisicamente nem moralmente, pode determinar-se com

liberdade trágica e reconhecer-se como totalidade em relação a si mesmo e ao mundo.

III.2 Apolo e Dioniso em sala de aula: o que pode um professor trágico?

Dos estudos anteriores relacionados às teorias estéticas de Schiller e

Nietzsche, depreende-se que o ser humano é inevitavelmente um ser duplo, composto de

grandezas concorrentes que devem naturalmente estar em um estado de tensão

harmônica para desenvolvermos em mais larga medida quanto possível nossos

potenciais, nossa plenitude. Como explicou o poeta Ferreira Gullar, num lance de pura

intuição poética, uma parte de nós é Apolo, que “pesa, pondera”, outra parte é Dioniso

que “delira”. Na parte de nós que “almoça e janta” temos a natureza, já na que “se

espanta” temos a razão que permitiu o thauma filosófico.

Se, como se aconselha geralmente, realmente devemos viver e testar o que

aprendemos com as teorias que estudamos, colocando-as para funcionar em nós mesmo,

como seria, por conseguinte, o binômio apolíneo-dionisíaco em meu ofício? Quais

seriam os conselhos dados por estes pensadores para mais nos aproximarmos destas

suas teorias em nossas práticas docentes?

Neste pequeno tópico de estudo não pretendemos prescrever o que deve

fazer ou não o educador, como deve ou não deve fazer tal ou tais coisas, mas sim

apresentar brevemente as indicações e conselhos deixados por Schiller e Nietzsche

sobre questões referentes a docência, indicações de sábios que também conheceram os

percalços da educação por também terem sido como nós, educadores.

Nos dois principais escritos nietzschianos específicos sobre a educação, que

são as suas conferências Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino e sua III

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consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador, vemos que a figura do professor,

do mestre, é uma figura fundamental mesmo para o filósofo errante. O mestre é aquele

que vai mostrar as portas para que as atrevêssemos, aquele que aponte de longe os

caminhos para que os trilhemos. É aquele que, mesmo que discordemos dele no meio da

trilha apontada por ele e mudemos de direção, foi o primeiro a nos mostrar que há

caminhos e portas. Em sua Quinta Conferência do Futuro dos estabelecimentos de

ensino, Nietzsche apresenta com sua inigualável perspicácia uma imagem precisa e

acurada do estudante sem um mestre que o guie. Inicialmente, sem um mestre, o jovem

imagina-se num estado de liberdade em que tem pra si a autonomia de autodeterminar-

se. Todavia, essa falsa liberdade começa a se revelar uma verdadeira ilusão e ele

começa por pagar o preço de uma “liberdade” com essa e, diante desse panorama,

“percebe que não pode dar para si mesmo uma direção, nem prestar socorro a si mesmo:

então, sem qualquer esperança, ele mergulha no mundo do dia a dia e do trabalho

cotidiano: a atividade mais trivial o cerca, seus membros caem esgotados”

(NIETZSCHE, 2011, p.152).

Se de alguma sorte o desorientado estudante encontra alguma pequena força

para tentar continuar, ou se seu orgulho ainda não o deixou desistir, ele decide

prosseguir e enfrentar o pior, se depara agora com outros empecilhos gerado pelo

mergulho no turbilhão irresistível do cotidiano:

Ele se assusta com a ideia de se afogar em pouco tempo numa

especialização tão estreita quanto mesquinha; e busca então apoios e

proteções para não ser levado por este caminho. Em vão! Estes apoios

cedem; pois ele foi enganado, agarrou-se a um suporte fraco. Num

estado de vazio inconsolável, ele vê seus planos desaparecerem na

fumaça: sua situação é insuportável e indigna; oscila entre uma

atividade frenética e uma lassidão melancólica (NIETZSCHE, 2011,

p.152)

Ele se vê agora mais exausto ainda, pois gasta energia por não saber por

onde ir, deixando a vida seguir e só consegue acumular frustrações, agindo cada vez

mais como um autômato, executando as tarefas sem ver mais um sentido e por

repetição, fato que lhe deixará cada vez mais assustado com o trabalho e,

consequentemente, mais preguiço e acomodado por estar já preso àquela especialização.

E ao olhar para si próprio e não consegue ver nada, senão um vazio e insatisfação do

caminho tomado, vendo pouco ou nenhum valor às suas lutas internas e se entregando

de vez ao utilitarismo e suas vis consequências. Esse, portanto, é o panorama

nietzschiano do jovem sem um guia que lhe aponte os caminhos e lhe ajude em seu

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processo perene de cultura e formação, se depara com as dificuldades de navegar sem

uma bússola ou sem alguém que lhe indique como ler uma carta celeste:

Sua perplexidade e a ausência de um guia para a cultura o levam de uma

maneira de ser a outra: dúvidas, ímpetos, carências da vida, esperanças, desesperos,

tudo isso leva de um lado para o outro, o que significa dizer que acima dele todas as

estrelas estão apagadas, estrelas com as quais ele poderia, no entanto, regular o curso de

seu navio (NIETZSCHE, 2011, p.152-153).

Em relação a este trecho é importante notar que Nietzsche se refere ao

problema de conceder aos estudantes, ainda no ginasial, uma autonomia que não se

ajustava tão bem ao período da vida do estudante em que o jovem ainda necessita

irremediavelmente do amparo dos grandes mestres. Contudo, seu brilhantismo e sua

escrita universal e atemporal parece narrar não apenas o trajeto de um jovem estudante,

mas também o trajeto de um professor que, sem orientação necessária, mergulha na

desafiadora realidade da docência. Observe que, se relermos novamente os trechos

destacados, porém agora pensando não no jovem estudante, mas no professor que

ingressa nas fileiras da docência, vemos o mesmo percurso muito recorrente no

depoimento dos professores, de absorção pela rotina frenética, desesperança, frustações,

de automatismos e lassidão, que o levam a considerar a educação uma mera utilidade,

isto é, um meio de subsistência, e não mais como um fim.

O mestre, por conseguinte, é a figura fundamental para continuar o processo

de retroalimentação da formação humana; figura fundamental não apenas para os

alunos, mas também para os próprios mestres. De outro modo, queremos dizer que,

mesmo quando nos tornamos estes mestres e guias para uns, é sempre atitude salutar

ainda termos mestres em quem nos inspirar, pois o mestre do educador é não apenas

aquele que inspira seu progresso pessoal, mas aquele que desafia (o que também não

deixa de ser uma das formas de inspirar), que provoca a pareá-lo ou alcançá-lo.

Retomando mais uma vez os assuntos estudados, nos perguntamos o que

seria um professor trágico? Poderíamos dizer inicialmente que o professor trágico não é

aquele que sofre por ter que corrigir uma pilha de provas, ou que sabe que terá que dar

conta dos assuntos burocráticos da educação como, cadernetas, frequência, notas,

ementas dentre inúmeros outros e por isso sofre com o fato. Em Nietzsche, esse

professor trágico seria aquele que, do mesmo modo que o poeta, artista ou filósofo

trágico, teria consciência dos dissabores da docência e, justamente por essa consciência,

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sua atitude seria mais nobre e plena diante dos desafios de educar, exercendo aquela

autonomia moral de que fala Schiller.

Cumpre mencionar agora, que algumas características são fundamentais

para nos aproximarmos deste educador trágico. Em sua Consideração Schopenhauer

Educador, Nietzsche apresenta inúmeras características de um mestre exemplar. Essa

figura modelar se corporifica na figura de Schopenhauer, vulto que suscitou em

Nietzsche uma impressão indelével e um impacto, segundo ele, “fisiológico”

(NIETZSCHE, 2011, p.175). Destacamos estas três principais características

mencionadas por Nietzsche a respeito de Schopenhauer, características que podemos

tomar emprestadas para o professor trágico: a honestidade, a serenidade e a constância,

“Ele é honesto porque fala e escreve por si mesmo e para si mesmo; sereno porque

venceu pelo pensamento o que há de mais difícil; constante por que assim deve ser; sua

força cresce reta e ligeira como uma chama no ar tranquilo” (NIETZSCHE, 2011,

p.175).

A primeira destas características, a honestidade aqui pode ser compreendida

como a sinceridade não sobre as coisas que nos cercam, mas, fundamentalmente, sobre

si próprio. A dissimulação, segundo Nietzsche, impede o ser humano de ser um bom

guia, pois que esta atitude turva a confiança que ela nos outros e em si mesmo

(NIETZSCHE, 2011, p.171). O indivíduo dissimulado torna-se um ser intricado e cheio

de cismas sobre si mesmo, em função das tramas internas de sua própria dissimulação,

perdendo a simplicidade e sua leveza, tal como descreve Nietzsche, acerca de seu

encontro com as obras de seu educador por excelência:

Era então tomar os meus desejos por realidades, quando imaginava poder

encontrar como educador um verdadeiro filósofo, capaz de elevar alguém

acima da insuficiência da atualidade e de ensinar novamente a ser simples e

honesto no pensamento e na vida, e, portanto intempestivo, no sentido mais

profundo da palavra; pois os homens se tornaram agora tão complexos e tão

complicados, que era preciso que se tornassem desonestos, já que falam, já

que colocam afirmações e querem por conseguinte agir (NIETZSCHE, 2011,

p.171)

A honestidade está intimamente relacionada à serenidade, pois, no sentido

aplicado por Nietzsche a “serenidade” tem uma dupla acepção. Em ambas acepções a

honestidade se aplica diretamente por demandar a segurança e a simplicidade

características da honestidade, necessárias para manter o ser numa mesma firmeza e

constância, estando falando seriamente ou brincando:

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Há de fato dois tipos muito diferentes de serenidade. O Verdadeiro

pensador se alegra e fica sereno sempre, quer ele fale seriamente ou

graceje, quer ele exprima sua perspicácia humana ou sua divina

indulgência; isto sem gestos aflitos, sem mão trêmulas, sem olhares

sufocados, mas com segurança e simplicidade, com coragem e vigor,

talvez com algo de cavalheiresco e duro, mas sempre como vencedor

(NIETZSCHE, 2011, p.174)

Ao educador compete manter esta serenidade de ao instruir conseguir

manter a com serenidade linha tênue entre o “sim” e o “não”, isto é, manter a serenidade

em ambos momentos, na dureza gentil de ter que dizer um não e na indulgência firme e

contida ao dizer um sim. Do mesmo modo que a honestidade e a serenidade, a

constância esta intimamente relacionada com as anteriores, e deve ser como uma força

que leva o educador a manter-se reto, sem inquietudes e inseguranças, como a chama da

vela que se abala, mas retorna.

Uma outra característica importante para o professor trágico, apontada por

Nietzsche a respeito da conduta de Schopenhauer, está nos exemplos dados. Nietzsche

assevera que Schopenhauer “foi o homem que primeiro deu a si próprio este caminho e

o percorreu, eis aí sua grandeza” (NIETZSCHE, 2011, p.182) e que, em função disso,

um bom educador não deve simplesmente dar exemplos do que ou como fazer, mas sim

ser o próprio exemplo disso, sem o que o ensinamento não terá a força suficiente para

marcar verdadeiramente o educando. Por este motivo, arremata Nietzsche,

Estimo tanto mais um filósofo quanto mais ele está em condições de

servir de exemplo. Ninguém duvida, por exemplo, de que ele pudesse

arrastar no seu cortejo povos inteiros; a história da Índia que é quase a

história da filosofia hindu, comprova isso. Mas o exemplo deve ser

dado pela vida real e não unicamente pelos livros; deve, portanto, ser

dado, como ensinavam os filósofos da Grécia, pela expressão do rosto,

pela vestimenta, pelo regime alimentar, pelos costumes, mais ainda do

que pelas palavras, e sobretudo mais do que pela escrita

(NIETZSCHE, 2011, p.176)

Para libertarmos voluntariamente o outro das cadeias que lhes prendem é

necessário, antes de tudo, que sejamos também livres não apenas no discurso, no falar,

mas em todo o conjunto que nos compõe, pois este conjunto que nos compõe são os

frutos diretos de nosso real pensamento. E é justo por esse motivo que, se o educando

percebe essa discrepância entre o que é dito e o que é feito pelo mestre, algumas lições

não tem o poder de penetrar o imo dos estudantes, tendo um efeito superficial e

efêmero. Uma das formas de beleza descritas por Schiller apresenta uma certa afinidade

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com esta característica notável que deve ser cultivada pelo educador, de ser ele mesmo

o exemplo e de mostrar nele mesmo os efeitos de suas ideias.

Nas várias formas de beleza descritas por Schiller, uma delas diz respeito à

beleza nas relações entre nós, seres humanos, esse tipo de beleza é uma característica

que se aplica perfeitamente aos nossos misteres de compilar conselhos para o professor.

Trata-se aqui da “Beleza do trato” descrita em sua obra chamada Kallias ou sobre a

beleza (1793), que pode ser chamada comumente de beleza do bom-tom ou do bom

senso nas atitudes e se relaciona também com a liberdade, ponto forte da estética

schilleriana. Segundo Schiller, a primeira indicação do bom-tom que devemos seguir é

“tratar com cuidado a liberdade alheia” (SCHILLER, 2002b, p.100), isto é, dos nossos

educandos somo responsáveis pela condução de seu aprendizado em prol de sua

liberdade, contudo, só conseguiremos causar-lhes impressões indeléveis neste processo,

se cultivarmos primeiramente em nós essa liberdade, ao que aconselha Schiller, “mostra

tu mesmo a liberdade” (SCHILLER, 2002b, p.100). O poeta-filósofo adverte, ainda, que

é muito difícil para nós atendermos a satisfação perfeita de ambas as formas acima

citadas, mas que é um desafio necessário tentar cumpri-las. Ser responsável pela

liberdade de outrem significa também zelar pelo respeito e pela preservação do espaço e

a liberdade de outrem, movimento que tem relação com a serenidade em manter o bom-

tom no “sim” e no “não” e se parece com uma dança valseada, em que todos os casais

dançantes bailam aleatoriamente, eu mas sem esbarrar ou pisar uns nos outros. Imagem

evocada pelo filósofo da seguinte forma:

Não conheço nenhuma imagem mais adequada para o ideal de belo trato do

que uma dança inglesa bem dançada e composta por muitas voltas

complicadas. Um espectador vê da galeria incontáveis movimentos que se

entrecruzam da maneira mais variada, alteram viva e propositalmente sua

direção e, no entanto, nunca se chocam. Tudo é ordenado de modo que um já

deixou espaço quando o outro chega; tudo se conforma tão habilmente e, no

entanto, de novo tão sem artifício, que cada um parece seguir apenas sua

própria cabeça sem, no entanto, nunca se colocar no caminho do outro. É a

mais acertada imagem sensível da própria liberdade afirmada e da bem

tratada liberdade do outro. (SCHILLER, 2002b, p.100)

Nesse sentido, é necessária ao educador trágico essa harmonia em

equilíbrio, em respeitar a liberdade do educando ao mesmo tempo em que exerce sua

própria, não sendo nem tão permissivo nem tão duro com seus educandos. É necessária

uma sensibilidade no trato com os estudantes para não converter admiração e respeito

em temor e medo, pois, como vimos em Schiller, o medo sem o concurso do sublime,

não pode libertar, e uma tal atitude de autoritarismo e brutalidade só podem infundir um

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medo e constrangimento que é contrário à liberdade. Na sugestão dada por Schiller aos

educadores, a rigidez bruta com os neófitos, causa grandes entraves ao aprendizado e

não ajuda a cultivar de modo pleno sua liberdade, já que,

Tudo que se chama habitualmente de rigidez, não é outra coisa senão o

oposto do livre. Essa rigidez é o que frequentemente tira à grandeza do

entendimento, frequentemente mesmo à grandeza moral, seu valor estético. O

bom-tom não perdoa essa brutalidade nem mesmo ao mérito mais brilhante,

e a própria virtude só se torna digna de amor através da beleza. Mas não são

belos um caráter ou uma ação se mostram a sensibilidade do homem, ao qual

pertencem, sob a coerção da lei, ou se coagem a sensibilidade do espectador.

Nesse caso infundirão apenas respeito, mas não favor, nem inclinação; mero

respeito humilha quem o sente (SCHILLER, 2002b, p.100)

Deste modo, se refletirmos acerca do trecho citado acima e relacionarmos

com nossas experiências escolares mais remotas, lembraremos de vários professores que

passaram por nossa trajetória escolar e, de algum modo, causaram certa impressão em

nós, sejam estas pela via do medo ou da admiração. No entanto, é mais corrente e

factível lembrarmos com mais riqueza de detalhes aqueles professores que nos

inspiraram pela via da admiração, bem como é mais provável tomarmos seus gestos

como modelos.

O próximo aspecto se relaciona diretamente com a dimensão apolínea de

nossos mestres. De acordo com Nietzsche há em nossas tendências apolíneas o fetiche

natural em tentar capturar para nós a verdade, utilizando como ferramenta para tal

captura da verdade, a ciência. Há, segundo o filósofo, uma tendência que deve ser

desaprendida pelos filósofos e por nós, educadores, de se pretender ser “ciência pura”,

sendo esse mais um dos ensinamentos dados por Schopenhauer, onde ele mesmo foi o

exemplo de como desaprender ou desprender-se da tentação de querer ser “ciência pura”

(NIETZSCHE, 2011, p177). Tal atitude petrifica a possibilidade de se aventurar em

novas e diversificadas formas de conhecimento, tornando a escola um fardo pesado e

um muro intransponível para o educando que só recebe conhecimentos concretos que

lhe cimentam os pés no solo rijo do conhecimento ou da ciência. Tal atitude também foi

reconhecida por Schiller, ao falar da recepção do ingênuo (naïf) na escola e o que o

conhecimento escolar guiado pela pretensão de ciência proporciona imediatamente ao

seu sentimento de unidade:

Enquanto sempre receoso do erro o entendimento escolar prega suas

palavras na cruz da gramática e da lógica; é duro e inflexível para não

ser impreciso; é prolixo para não dizer demais, e de preferência

diminui a força e agudeza de seu pensamento para não ferir o

desavisado (SCHILLER, 1991, p.52)

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Sofre grandemente o educando no primeiro ingresso à escola, por se sentir

cerceado em suas potências criativas e sentindo o peso do aprisionamento de sua

dimensão dionisíaca no solo cimentado da “ciência pura”. Ante isso, torna-se

fundamental agora para nós, professores trágicos, mantermos a vigilância no

desequilíbrio do binômio Apolo-Dioniso, pois, para podermos estimular a formação dos

educandos como totalidade harmônica, é forçoso que primeiro tenhamos que

harmonizar em nós a tensão entre o conflito entre Apolo e Dioniso e procurar

restabelecer o sentimento de totalidade que a estética pode nos conceder. Em função

disso, cabe ao educador tentar potencializar a força criativa dos educandos, cultivando

as suas duas dimensões para estabelecer uma relação harmoniosa e localizar seus pontos

fortes, incentivando a aprimorar esta virtude em conjunto com as demais, mas, mais que

isso,

Este educador filósofo com quem eu sonhava poderia, não se deve

duvidar, não somente descobrir a força central, mas também impedir

que ela agisse de maneira destrutiva com relação às outras forças; eu

imaginada que sua tarefa educativa consistiria principalmente em

transformar todo homem num sistema solar e planetário que me

revelasse a vida, e em descobrir a lei de sua mecânica superior.

(NIETZSCHE, 2011, p168)

Encontrando o ponto forte, o educador poderia fundar ali o centro de

gravidade em que harmonizaria este sistema complexo de movimentos e equilibraria o

binômio apolíneo-dionisíaco, controlando a força destrutiva de um em detrimento de

outro. Encontrar o ponto forte do educando e não deixar que esta força destrua as outras,

significa reconhecer, por exemplo, que aquele aluno que é forte em matemática deve ser

assistido com mais ênfase, nas disciplinas que ele não goste. A tarefa aqui é que ele não

seja seduzido pelos ditames da fragmentação e especialização do conhecimento e acabe

por cair na formação unilateral de suas forças,

Ainda que o mundo como um todo grande, portanto, com a formação

separada das forças humanas, é inegável que os indivíduos atingidos

por essa formação unilateral sofrem sob a maldição desse fim

universal. Ainda que o exercício ginástico forme corpos atléticos,

somente o jogo livre e regular dos membros desenvolve a beleza.

(SCHILLER, 2002a p.40)

A queda nesta formação unilateral, não permitindo o jogo livre entre as

várias forças que compõem o ser humano, imprime em nossa natureza uma mutilação

das belas disposições. De modo ilustrativo, essa formação unilateral seria como o

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halterofilista que só exercitasse alguns membros de seu corpo, ou como aqueles

pretensos fisiculturistas que, se preocupando em aprimorar as formas apenas de seu

tórax, esquecem-se de trabalhar suas pernas, assumindo formas desproporcionais e

bizarras. Só o jogo livre das forças, a harmonia da musculatura em conjunto expressa

melhor a beleza da unidade.

Destarte, além de todas as indicações já citadas, uma das pertinências mais

importantes do professor trágico está em tentar equilibrar a tensão entre as várias

dimensões concorrentes que compõem o educando, auxiliando que elas se articulem

pelas várias vias da disposição estética e impedindo que elas se mutilem e tornem-se

desproporcionais entre si, impedindo o impulso lúdico de jogar livremente com razão,

sentimentos e beleza, processo explicado por Schiller neste significativo excerto:

Como é de nossa destinação, mesmo com todas as limitações

sensíveis, que nos orientemos pelo guia dos espíritos puros, o sublime

tem de ser acrescentado ao belo para fazer da educação estética um

todo perfeito, ampliando a capacidade de sentir do coração humano

segundo a amplitude completa de nossa destinação, e para além do

mundo sensível. Sem o belo, existiria uma luta ininterrupta entre a

nossa destinação natural e a nossa destinação racional. (SCHILLER,

2011, p.73)

Por fim, fica claro que, muito além do que uma educação artística, a

educação estética é uma conjugação de todos os elementos ligados a sensibilidade,

elementos que, perpassamos de modo breve, tanto no primeiro interlúdio de estudo,

quanto no segundo com as teorias estéticas de Schiller e Nietzsche. Nessa conjugação a

arte tem um papel de destaque por permitir, com mais potência que qualquer outra, a

irradiação necessária que nos possibilite atingir com mais desenvoltura o imo de nosso

ser, justo por estar a arte desde sempre amalgamada à nossa existência. Tal potência não

deve ser ignorada e deve ser respeitada por nós, educadores, caso queiramos formar

seres para a liberdade, sempre vigilantes em nosso próprio equilíbrio interno da tensão

Apolo-Dioniso.

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POSLÚDIO

Uma imagem nos ajuda a iniciar estes parágrafos finais deste percurso em

construção que aqui nos propomos: a polêmica entre o ensaísta e crítico literário

Fernando Pessoa e o camponês e pastor Alberto Caeiro. A polêmica entre essas duas

partes do mesmo é a querela entre razão e sensação/sentimento, entre ingênuo e

sentimental, entre Apolo e Dioniso. De um lado Fernando Pessoa afirma em dura prosa,

“De todas as nossas faculdades, a razão é a mais alta, por­que é a única que a si é

suficiente (self-sufficient)” (PESSOA, 1993b, p.195) e, tomado por um espírito

cartesiano, afirma que a razão pode escavar certezas e o pensamento pode pensar tudo

como ser, ou melhor, quase tudo: “A única coisa que o pensamento não pode pensar

como não ser é ele próprio. É esta a base do dictum basilar de Descartes” (PESSOA,

1993b, p.46). No outro extremo temos Alberto Caeiro que, homem simples e ingênuo,

nega quaisquer filosofias e racionalismos, prefere apenas sentir o mundo negando as

complexidades da razão:

Sou um guardador de rebanhos.

O rebanho é os meus pensamentos

E os meus pensamentos são todos sensações.

Penso com os olhos e com os ouvidos

E com as mãos e os pés

E com o nariz e a boca. (PESSOA, 1993b, p.39)

Para Alberto Caeiro a existência é mais simples e o mundo é menos

complexo, pois tudo esta simplesmente definido pelos sentidos que o integram à

natureza. Assumindo postura extremista no combate ao pensamento, Caeiro assevera

que pensar é fechar os olhos, é cerrar as cortinas da janela, levando-o a negar toda

filosofia que se lhe apresente:

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...

Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,

Mas porque a amo, e amo-a por isso,

Porque quem ama nunca sabe o que ama

Nem sabe por que ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,

E a única inocência não pensar... (PESSOA, 1993b, p.39)

Eis num só homem o grande conflito entre um ser que se julga mais razão e

outro que se admite puro sentir. Uma dicotomia que sabemos agora, após ter perpassado

Schiller e Nietzsche, ser insolúvel por meio da simples fragmentação ou separação

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absolutas de ambas. Com efeito, se imaginássemos que realmente se tratava de duas

pessoas discutindo e refutando-se contrariamente, talvez nos fosse mais natural aceitar

esta contradição, pois estamos há muito cultivados a aceitar concepções contrárias

vindas de fontes diferentes. No entanto, aceitar que estas concepções diametralmente

opostas tenham vindo de um mesmo e único ser, não se coaduna com nossa formação

pautada no princípio de identidade que não admite contradições num mesmo círculo.

Justamente por esse motivo, Pessoa/Caeiros é a imagem escolhida para mostrarmos uma

das possíveis manifestações de um ser estético pleno que, harmonizando os contrários

em si mesmo, sente a liberdade de jogar livremente entre razão e o sentir, engendrando

a partir desta mesma contradição que o forma uma percepção mais plena da existência.

Esta imagem era necessária para pensarmos que, assim como Fernando

Pessoa encontrou uma forma de vencer a fragmentação do contexto que lhe cercava, nós

também podemos encontrar uma forma para “driblar” os ditames da educação pautada

na verdade apolínica, cedendo espaço às demais partes suplantadas. É importante que se

diga que esta forma de “driblar” ou contornar essa formação mutilada, não carece ser

exatamente idêntica à solução encontrada por Fernando Pessoa, ou pela forma

encontrada por Schiller, ou pela encontrada Schopenhauer, Nietzsche, Salvador Dali,

Jane Austen, Rodrigo amarantes, ou qualquer outro que tenha percebido a necessidade

de unificação desses contrários. Cada um pode encontrar uma maneira própria, com os

materiais e recursos que lhe forem peculiares, para tentar desenvolver esta tarefa de

unificação. O que nos foi oferecido por Schiller e Nietzsche foi a compreensão da

profundidade do problema e indicações conspícuas de por onde deveríamos atacar o

problema, e não de como exatamente fazê-lo. O como fazê-lo, como já dissemos, cabe a

cada um de nós. Tendo sempre a franca ciência de que é difícil, senão improvável, uma

ruptura radical da ambiguidade de ter que criticar o racional tomando como ponto de

partida os próprios materiais que a própria racionalidade nos concedeu. Aparentemente,

pode parecer que este texto escorrega nessa ambiguidade de uma estética que visa

romper com o estritamente racional, utilizando para isso elementos de uma análise

racional. Contudo, voltamos a repetir que proposta não é a da “ruptura”, mas, em

verdade, a da reconciliação, pois entendemos que ruptura seria uma postura diversa da

proposta do afloramento desta natureza estética suplantada.

Com efeito, uma das principais apostas desta pesquisa, que se propôs a

construir um interlúdio entre dois pensadores e poetas distintos e interlocutores do

pensamento filosófico ocidental, está na tentativa de darmos relevo à dimensão estética

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há muito relegada a segundo plano em nossa formação. No percurso que trilhamos

nossa primeira meta foi tentar espraiar o sentido e a compreensão do termo estética,

destacando alguns conceitos que estão intimamente ligados a ela, tal como arte, beleza,

sensibilidade, sentir. Esta primeira aproximação com o termo estética nos possibilitou

compreender que o belo estético, não se refere apenas ao simétrico, perfeito, mais ao

assimétrico, ao feio; compreendemos, também, que a esfera das sensações e do sentir

são parte importante na formação, justamente por serem os primeiros canais acessáveis

do ser humano. Estas compreensões foram cabais para construirmos o entendimento a

estética não pode ser tomada por mero sinônimo dos conceitos que se ligam a ela,

sobretudo, no que diz respeito à arte, porquanto, a compreensão da relação entre arte e

estética nos levou a perceber que o recurso à arte não é a única forma possível de

perpetrar uma educação estética.

Afastando-nos de uma consideração de estética como mero acessório,

ferramenta auxiliar e propedêutica, em verdade, seguindo as veredas do encontro do

pensamento estético-filosófico schilleriano e nietzscheano, vemos na dimensão estética

não um simples auxílio à formação humana por meio da arte, mas uma das condições

sem a qual não se pode pensar uma formação humana plena que conjugue pensar e

sentir e vice-versa. Trata-se, portanto, de uma dimensão que possibilita, além de

embelezar o mundo por meio da arte, nos permite sentir o mundo e seus constituintes

com plenitude. Isto implica coexistir com as diferentes nuances estéticas que nos

constituem, o belo e o harmonioso, o feio e o desarmonioso, sentindo as semelhanças e

as diferenças nas coisas e pessoas que nos cercam.

E aqui insere-se, talvez, umas das principais tarefas para nós, educadores.

Nas variadas áreas e formações docentes, os formandos são convidados a pensar o

mundo sob os mais variados prismas das ciências e áreas de conhecimento, pensar o

mundo pela matemática e nossas relações com os números e cálculos, pela física e a

observação de fenômenos, a observação estática de uma língua cheia de normas, a

fisiologia da vida e das coisas pela biologia, os percursos e fatos do passado como uma

ciência, dentre vários conhecimentos cristalizados apresentados. O objetivo aqui não é

ignorar a importância do conhecimento, mas sim, ressaltar o fato de que não somos

convidados neste percurso formativo a sentir o mundo, ou a sentir aqueles a quem

estamos compartilhando tais conhecimentos, nossos alunos. Vemos que, quase sempre,

deixamos de concatenar o conhecimento com o mundo vivido, e que nossa formação é

eminentemente burocrática neste aspecto, pois que, ao lançarmo-nos na docência, como

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também reconheceu Nietzsche, por vezes somos tragados pela pesada e enorme

quantidade de demandas da sala de aula, fato que nos leva a considerar os alunos como

pequenas gavetas de depósitos de verdades e modos já convencionados de explicar o

mundo.

Quando Schiller afirma que os gregos tinham em suas atitudes um senso de

unidade estética e que, de alguma forma, compreenderam intuitivamente os mecanismos

da inter-relação plena dos vários saberes, atesta também que perdemos esta

característica, mas, mais que isso, preconiza também que devemos retomá-la. E a

recomendação feita por Schiller parece ser endereçada a nós, educadores, pois que, em

nossa formação é inevitável o ideal de separação e fragmentação imposto pelos ditames

científicos. E isto se observa com bastante força no Ensino Básico, onde as disciplinas,

muito bem definidas, com muita relutância cortejam umas às outras. Isso fica mais

visível e constrangedor quando, por exemplo, temos uma atividade interdisciplinar ou,

então, uma atividade transdisciplinar, onde cada professor apresenta sua parte, numa

divisão bem similar àquela utilizada por nossos alunos em suas apresentações de

trabalhos em grupo, onde cada um estuda e apresenta “sua parte” e sempre tem aquele

que por não ter estudado ou não ter se interessado, apenas segura o cartaz enquanto os

outros tentam explicar.

É bem claro que nossa proposta de pensar uma educação estética pautada

nas considerações de Schiller e Nietzsche não é a da formação “enciclopédica”

configurada nos “filisteus” do conhecimento, mas a de uma perspectiva estética

educativa firmada no reencontro entre arte-ciência, sentir-pensar, conjugando as

potências criadoras do ordenamento dos saberes à embriaguez artística, o apolíneo e o

dionisíaco, sem hierarquias e sem divisões necessárias, uma perspectiva de conciliação

entre arte-conhecimento, onde o educador-aprendiz que procura saber um pouco mais

não seja considerado um intruso, imiscuído ou presunçoso, mas sim, um amante do

saber, um “amante da filosofia”, como os antigos gregos o foram. Tampouco a de

sugerir uma metodologia da educação estética, com preceitos e procedimentos

específicos de como nos transmutarmos em seres plenos.

Do estudo da relação das concepções filosóficas com as teorias educacionais

de ambos os pensadores, pudemos depreender que a dimensão estética, entendida

sempre como formação, não pode ser tomada como produto cosmético de mentes

eruditas, mas deve ser estimulada a funcionar como asas para os alunos, como liberdade

no fenômeno, um componente de mentes libertas. Nesta perspectiva, ficou claro que o

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significado de educação estética vai muito além do que apenas conhecer as belas-artes,

ter gosto refinado, ser polido e distinto. Pois, por ir muito além de simplesmente

conhecer, a educação estética é também sentir. É sentir a arte, perceber a arte e assimilá-

la como parte de si, agregando-a a nossa própria fisiologia. Contudo, este “sentir” e

“perceber” não diz respeito apenas à arte, mas também, e principalmente, ao mundo e

seus componentes.

Assim, de modo amplo, pudemos ver, sobretudo em Schiller, que o

desenvolvimento estético do ser pleno, deve levar em conta também a capacidade de

sentir o mundo e escutar a voz do coração. Ter essa capacidade auditiva se relaciona

com a beleza no trato, o bom-tom, que se expressa na capacidade de ter aquele bom

senso que não faz parte necessariamente do moral nem do legal, mas que nos faz

perceber o que é conveniente e o que é inconveniente em nossas relações com os outros

e como mundo, aquilo que Nietzsche menciona como “nos tornemos suportáveis e, se

possível, agradáveis uns aos outros” (NIETZSCHE, 2014:150-HDH, §174). Aquele

elemento que equilibra a balança entre sentimento e razão, natureza e cultura. Quanto a

isso, Schiller, num apanhado peculiar, ao falar do poeta, acaba por descrever de modo

universal aspectos da condição humana e o ideal de harmonização com a natureza,

suscitado com ênfase já desde as considerações de Rousseau, onde afirma o filósofo-

dramaturgo alemão que,

Enquanto ainda é natureza pura, quer dizer, não é natureza rude, o homem

atua como indivisa unidade sensível e como todo harmonizante. Sentidos e

razão, faculdade receptiva e espontânea ainda não se cindiram e muito menos

estão em desacordo. Suas sensações não são o jogo informe do acaso, nem

seus pensamentos o jogo sem conteúdo da faculdade de representação (...). Se

o homem entrou no estado de cultura e a arte nele pousou a mão, suprime-se

a harmonia sensível, e ele ainda pode manifestar apenas como unidade moral,

ou seja, emprenhando-se pela unidade. A harmonia entre seu sentir e pensar,

que no primeiro estado ocorria realmente, agora existe apenas idealmente

(SCHILLER, 1991, p.60-61).

Essa completude perdida é o que nos ministra com mais plenitude a

capacidade de ver o outro, não como mera aparência, como uma mera gaveta, mas como

um coração que bate, que sente, percebendo que o outro tem sentidos e razões. Isto

também faz parte do exercício de sentir o educando. Quando mencionamos “sentidos” e

“razões” estamos pensando figurativamente em “explicações” e “motivos”. Como

exemplo, imagine-se a seguinte situação hipotética: o professor todos dias trata cordial e

respeitosamente seus alunos e, diariamente, por eles é retribuído, até que um dia,

exclusivamente neste dia, um desses alunos que retribuíam com graça a cordialidade

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dispensada pelo professor, tratando com inexplicável grosseria. Imagine-se agora, uma

bifurcação nas atitudes tomadas por esse professor: numa primeira medida ele age

negativamente ante a atitude do aluno, resultando em toda sorte de represálias, em nome

de sua autoridade. Numa segunda atitude, o professor após passado o fato, pergunta ao

aluno ocorreu, e este lhe explica que foi desproporcional em suas atitudes pois tinha

suas “razões” pessoais de estar chateado naquele dia, mas que reconhecia ter se

expressado da forma errada com a pessoa errada.

Este pequeno adendo, serve para explicar que uma das tarefas que também

urgem na educação estética é a cultivar nossa sensibilidade e nossos sentimentos.

Contudo, o difícil deste exercício é saber como retomar essa sensibilidade, há muito

suplantada pelo ideal de razão instrumental e pelas demandas da docência. Nossa

aposta, com Schiller e Nietzsche, é de que seja possível retomar esta relação de

simbiose entre razão e sensibilidade com o auxílio da arte, seja qual for esta arte,

catalisador que não pode ser ignorado neste processo.

Vimos neste estudo, que a educação estética não pode ser confundida ou

tomada como educação artística ou educação para a arte. Contudo, é inevitável que

consideremos a arte como um dos principais pilares da formação estética, pois que, por

sua intrínseca relação com o ser humano, a arte é capaz de se relacionar com todas as

formas de compreensão da estética e expressá-las de modo formidável. Vimos que uma

das grandes dificuldades geradas pela confusão na compreensão de educação estética,

levou a alguns equívocos em disciplinas de arte adotadas em escolas de Educação

básica.

Um desses equívocos que quisemos evitar aqui era o de considerar a

educação estética, sobretudo para os professores de outras áreas, como de filosofia, por

exemplo, como a necessidade do professor de ter um amplo conhecimento

enciclopédico das obras de arte produzidas pelo gênio humano ou armazenadas nos

museus, relacionando esse “conhecimento estético” com sua própria disciplina de

estudo. Tampouco corresponde à utilização forçosa de obras de arte em nossas aulas. E

com isso, não estamos negando que tais práticas “artísticas” não sejam, de certo modo,

viáveis na prática educativa, mas sim, sugerindo que só isso não seja suficiente, já que a

via da arte precisa ser um caminho vivo, provocador do sentir, pensar, criar, não se trata

de uma mera obrigação curricular a ser cumprida. Destarte, a sugestão que aqui

deixamos é a de acionar uma atitude estética pedagógica de nos aproximarmos com

maior sensibilidade de variadas formas de arte e que, do amor ao belo e harmonioso,

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mas também ao feio e grotesco, possamos sobretudo amar a arte sob todas as suas

formas e potências criadoras, de modo a incorporá-la em nossos modos de pensar-sentir,

em que a docência seja uma dessas atitudes a receber a jovialidade de sua graça.

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