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EDUCAÇÃO NO CAMPO NA AMAZÔNIA: BASES SOCIOCULTURAIS, EPISTEMOLÓGICAS E MATRIZES EDUCACIONAIS
Ivanilde Apoluceno de Oliveira - UEPA
Resumo Objetivo neste artigo analisar as bases socioculturais (antropológica, cultural e ético-política) e epistemológicas da educação do campo na Amazônia, apontando as matrizes educacionais emergentes que contribuem para nortear as práticas e as pesquisas em educação. O movimento por uma educação do campo no Brasil luta em favor de uma educação do campo e para a diversidade de seus sujeitos. O que se busca nesta educação é a garantia do direito de todos (as) à educação, tendo como referência as especificidades históricas e socioculturais da população que vive do e no campo. Por ser um movimento recente torna-se importante refletir sobre as suas bases teóricas, identificando as matrizes que subsidiam tanto as práticas quanto as pesquisas educacionais. A questão problema deste estudo é: em que se fundamenta a educação do campo na Amazônia, considerando seu contexto cultural complexo, cuja população de diferentes matrizes étnicas, ocupa uma pluralidade de espaços e em permanente interação com a biodiversidade característica da região amazônica? Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, pela qual se dialoga com alguns autores: Freire (1997), Caldart (2004), Dussel (2000), Oliveira e Mota Neto (2008), entre outros. A educação do campo, tendo por base as matrizes educacionais analisadas tem como objetivo promover a autonomia dos sujeitos do campo, valorizando as práticas produtivas e culturais realizadas, seus saberes e eticidade construída. Educação crítica, dialógica e engajada ética e politicamente com as classes populares. Algumas matrizes educacionais emergentes nesta análise teórica sobre a educação do campo, entre as quais, a autonomia, a cultura, a criticidade, a relação entre os saberes e o diálogo, indicam que a educação popular de Paulo Freire, se constitui em um dos referenciais fundantes da educação do campo no Brasil.
Palavras-Chave: Educação do campo na Amazônia. Bases socioculturais e epistemológicas. Matrizes Educacionais.
Introdução
A Conferência Nacional por uma Educação Básica do Campo de 1998 anuncia
no Brasil um movimento em favor de uma educação do campo e para a diversidade de
seus sujeitos. O que se busca nesta educação é a garantia do direito de todos (as) à
educação, tendo como referência as especificidades históricas e socioculturais da
população que vive do e no campo. “Uma educação do e no campo. No: o povo tem
direito a ser educado no lugar onde vive; Do: o povo tem direito a uma educação
pensada desde o seu lugar e com a sua participação, vinculada à sua cultura e às suas
necessidades humanas e sociais” (CALDART, 2002, p.26).
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O Movimento de Educação do Campo defende: “uma educação para superar a
oposição entre campo e cidade e a visão predominante de que o moderno e mais
avançado é sempre o urbano, e que o progresso do país se mede pela diminuição de sua
população rural” (II CNEC, 2004, p. 7). Entre os lugares desta educação, está a
Amazônia, demarcada pela diversidade de sujeitos, culturas e saberes. População de
diferentes matrizes étnicas, ocupando uma pluralidade de espaços e em permanente
interação com a biodiversidade característica da região amazônica.
Em que se fundamenta a educação do campo na Amazônia, considerando seu
contexto cultural complexo, cuja população de diferentes matrizes étnicas, ocupa uma
pluralidade de espaços e em permanente interação com a biodiversidade característica
da região amazônica? Considero que a educação do campo na Amazônia apresenta
bases epistemológicas e socioculturais, que possibilitam a identificação de algumas
matrizes educacionais, que subsidiam as práticas e as pesquisas de educação do campo.
Este estudo sobre a educação do campo consiste em uma pesquisa bibliográfica,
por meio da qual, dialogo com autores como Freire (1997), Caldart (2004), Dussel
(2000), Oliveira e Mota Neto (2008), entre outros.
Assim, apresento as bases teóricas socioculturais e epistemológicas da educação
do campo na Amazônia, apontando as matrizes educacionais emergentes: a autonomia,
o trabalho, a cultura, a eticidade, a criticidade, a relação entre os saberes e o diálogo.
Educação do Campo na Amazônia: bases socioculturais
A base sociocultural da educação do campo apresenta-se em três dimensões:
antropológica, cultural e ético-política.
a) antropológica
A educação consiste em um processo de formação humana. Por isso, na
educação do campo o ponto de partida são os sujeitos da educação do campo.
A população do campo na Amazônia é constituída por homens e mulheres
diversos e plurais, ribeirinhos, quilombolas, camponeses, indígenas, entre outros;
situados em um contexto geográfico bio-diverso e complexo, demarcado pelo
enraizamento cultural.
Sujeitos concretos e construtores de sua história, conhecimento e cultura, como
seres: a) gnosiológicos e de práxis, na medida em que conhecem e agem sobre seu
contexto histórico, social e cultural; b) éticos e políticos, capazes de decidir, optar e
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assumir-se como sujeito de direitos e cidadão e c) não determinados, por estarem em
processo de formação contínua: existencial, ética, política, cultural e histórica.
Assim, para Freire (1997), o ser humano consciente de seus condicionamentos
sociais, mas não fatalisticamente submetido aos destinos estabelecidos, abre o caminho
à sua intervenção no mundo. Mulheres e homens como seres de relações e situados em
um contexto histórico são capazes de intervir em sua própria realidade transformando-a.
“O ser humano é, naturalmente, um ser da intervenção no mundo à razão de que faz a
História. Nela, por isso mesmo, deve deixar suas marcas de sujeito e não pegadas de
puro objeto [...] faz a história em que socialmente se faz e refaz” (FREIRE, 2000, p 119-
120).
Isso significa que o ser humano é condicionado por diversos fatores
socioculturais, mas não determinados em sua formação humana.
Nesta perspectiva, é preciso considerar-se os sujeitos do campo como seres
construtores de sua história e não alienados ao modo de viver e saberes da cidade. Como
seres pensantes do seu modo de ser e de viver em sociedade.
Para Caldart (2004) a perspectiva da educação do campo
é exatamente a de educar as pessoas que trabalham no campo, para que se encontrem, se organizem e assumam a condição de sujeitos da direção de seu destino [...] a possibilidade efetiva de os camponeses assumirem a condição de sujeitos de seu próprio projeto educativo; de aprenderem a pensar seu trabalho, seu lugar, seu país e sua educação (p. 28).
A matriz educacional emergente é a autonomia, que na visão de Freire (1997) é
construída historicamente, a partir das experiências e decisões que homens e mulheres
vão tomando ao longo de sua existência.
b) Cultural A educação do campo na Amazônia em função da diversidade de sujeitos se
realiza em diferentes espaços educativos: escolas, assentamentos, comunidades
indígenas, ribeirinhas, etc., que estão relacionadas às práticas socioculturais da
população do campo, em interação com a terra, a mata e os rios, no lugar em que vivem.
Para Oliveira-Neto e Rodrigues (2008):
A história do lugar está diretamente ligada à história dos que nele e com ele interagem, à prática social cotidiana, que é repassada de geração para geração, estando imbricada na cultura destes atores e grupos sociais [...] Desta maneira, cada lugar dessa imensa e complexa região amazônica é fruto dos modos de vida, produção e da intencionalidade dos sujeitos para esse lugar. O lugar é então transformado em um espaço único, diferenciado dos outros em sua essência, criado e recriado pela dinâmica dos povos que nela vivem e convivem (p. 31).
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Se o lugar é construído na história de vida dos sujeitos, então, há a necessidade
de se respeitar “a dinâmica de cada grupo social amazônico. Respeitar suas
especificidades e modos de vida, pois estes, em grande parte, estão diretamente ligados
à cultura e as tradições desses grupos” (OLIVEIRA-NETO; RODRIGUES, 2008, p.
31). O respeito ao local e suas tradições culturais constitui um princípio fundamental da
educação do campo.
As formas de organização e de práticas sociais dessa população, segundo Silva
(2008), são fruto da inserção com o meio ambiente e da forma como essas comunidades
se apropriam dos recursos naturais dos diferentes ecossistemas com os quais interagem
e garantem a sua reprodução material e cultural. O trabalho, então, está relacionado às
estratégias da vida cotidiana. Consiste no “conjunto de manifestações dos seres
humanos face à natureza de atividades materiais e simbólicas” (CASTRO, 1999 apud
CORRÊA, 2008, p.46).
O movimento de Educação do Campo considera que: “o direito à educação
somente será garantido se articulado ao direito à terra, a água, à permanência no campo,
ao trabalho, às diferentes formas de produção e reprodução social da vida, à cultura, aos
valores, às identidades e às diversidades” (II CNEC, 2004, p. 7-8).
Caldart (2004) explica que a educação do campo nasceu atrelada ao trabalho e à
cultura do campo, apontando duas matrizes pedagógicas na educação do campo: o
trabalho e a cultura.
A educação do campo considera o trabalho como princípio educativo, porque o
trabalho é formador do ser humano. Marx (1985) concebe o trabalho:
qualitativamente como potencial, uma "atividade vital" que expressa os poderes e capacidades do homem. O trabalho é um processo em que o ser humano com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza... Atuando, assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua própria natureza (p.202).
Pelo trabalho o ser humano transforma a natureza e ao modificá-la transforma-se
também a si próprio. O trabalho, então, constitui na atividade humana essencial. O
trabalho como “atividade vital” precisa estar relacionado à educação. Neste sentido, a
união ensino e trabalho é para Marx um princípio educativo.
Oliveira (2011a) destaca que Marx analisa a educação sob a ótica de classe
social, em relação direta com o sistema produtivo, uma educação direcionada à classe
operária, compreendida em seu processo histórico de transformação.
A educação do campo na visão de Caldart (2004):
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Precisa recuperar toda uma tradição pedagógica de valorização do trabalho como princípio educativo, de compreensão do vínculo entre educação e produção e de discussão sobre as diferentes dimensões e métodos de formação do trabalhador, de educação profissional, cotejando todo este acúmulo de teorias e de práticas com a experiência específica de trabalho e de educação dos camponeses (p. 32).
Neste sentido, na educação do campo há necessidade de considerar-se o sujeito
do campo enraizado em suas práticas produtivas e sociais, nas quais são construídos os
seus saberes culturais.
Na educação do campo a cultura se constitui em uma matriz formadora.
Brandão (2002) considera que:
Viver uma cultura é conviver com e dentro de um tecido de que somos e criamos, ao mesmo tempo, os fios, o pano, as cores o desenho do bordado e o tecelão. [...] A cultura configura o mapa da própria possibilidade da vida social. Ela não é a economia e nem o poder em si mesmos, mas o cenário multifacetado e polissêmico em que uma coisa e a outra são possíveis. Ela consiste tanto de valores e imaginários que representam o patrimônio espiritual de um povo, quanto das negociações cotidianas através das quais cada um de nós e todos nós tornamos a vida social possível e significativa (p.24).
A cultura por estar enraizada na vida social material e simbólica de homens e
mulheres, é formadora humana e construtora de identidades. “Educar é ajudar a
construir e fortalecer identidades: desenhar rostos, formar sujeitos. Isso tem a ver com
valores, modo de vida, memória, cultura” (CALDART , 2004, p.42).
Freire (1980, p. 109) compreende a cultura numa perspectiva humanista e
política. A cultura é concebida como “toda criação humana”, significando que toda a
produção humana é cultural e que somos sujeitos culturais. Como sujeitos em relação
com o mundo construímos nossa identidade cultural.
Segundo Oliveira (2011b), Freire por meio da invasão cultural e da cultura do
silêncio problematiza as relações de poder e de opressão presentes nas práticas culturais
de dominação e de alienação de uma classe sobre outra. Pela invasão cultural os
dominantes no contexto cultural dos invadidos, impõem sua visão do mundo, fazendo
com que os oprimidos experienciem situações de alienação, dominação e coisificação
(cultura do silêncio). Em contraposição à invasão cultural, Freire aponta para ações de
lutas e de resistências que se dão no campo sociocultural (cultura de resistência)
destacando a importância da síntese cultural, que implica na transformação da realidade
pela incidência da ação dos atores sociais. Ação histórica capaz de superar a cultura
alienada e alienante.
Gramsci também destaca a cultura como fundamental ao processo de luta
política, envolvendo relações de poder, situações contextuais concretas e aspectos
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subjetivos. Para Rodrigues et al (2007, p. 27), Gramsci “traz para debate a história, o
conflito e o poder como constituintes dos processos culturais”.
Neste sentido, a luta política pela transformação social se dá no campo cultural.
Por isso, considera Caldart (2004) que:
A cultura também forma o ser humano e dá as referências para o modo de educá-lo; são os processos culturais que ao mesmo tempo expressam e garantem a própria ação educativa do trabalho, das relações sociais, das lutas sociais. A educação do campo precisa recuperar a tradição pedagógica que nos ajuda a pensar a cultura como matriz formadora, que nos ensina que a educação é uma dimensão da cultura, que a cultura é uma dimensão do processo histórico, e que processos pedagógicos são constituídos desde uma cultura e participam de sua reprodução e transformação simultaneamente (p. 33).
Luta política demarcada pela afirmação dos sujeitos do campo e de sua
identidade cultural.
c) ético-política. A educação do campo se apresenta engajada politicamente com as classes
populares e com os movimentos sociais, bem como comprometida com a formação ética
e cidadã dos indivíduos.
Para Caldart (2004) a educação do campo:
Além de se preocupar com o cultivo da identidade cultural camponesa, precisa recuperar os veios da educação dos grandes valores humanos e sociais: emancipação, justiça, igualdade, liberdade, respeito à diversidade, bem como reconstruir nas novas gerações o valor da utopia e do engajamento pessoal a causas coletivas, humanas (p. 34).
Neste sentido, o campo é considerado espaço de construção de uma educação
pautada em novos valores e relações solidárias e de respeito às especificidades sociais,
étnicas, culturais e ambientais de seus sujeitos.
As matrizes educacionais que se configuram neste contexto são a eticidade e a
criticidade.
A eticidade pressupõe a ética em sua dimensão cultural. Para Dussel (2000) cada
cultura possui um sistema de eticidade, um ethos cultural, ou seja, dos costumes dos
povos, de suas práticas morais é elaborada uma história da eticidade que se dimensiona
em uma história mundial. Nesta perspectiva, o conteúdo de toda a norma, ato humano,
instituição ou sistema de eticidade deve possibilitar o desenvolvimento da vida humana
em sociedade. O princípio ético fundamental em Dussel (1988, p.06) é a “produção,
reprodução ou desenvolvimento da vida humana em comunidade”. A sua ética da
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libertação tem como ponto de partida o excluído, cuja consciência ética parte de um
ethos cultural excludente diante do qual se situa criticamente (DUSSEL, 2000).
A crítica se apresenta em Dussel como critério ético. O ponto de partida da ética
é a tomada de consciência da negação da corporalidade expressa no sofrimento das
vítimas, dos dominados (operário, índio, escravo africano ou explorado asiático do
mundo colonial) e discriminados (mulheres, velhos, incapacitados, crianças de ruas
abandonadas, imigrantes, etc.), tendo-se como referência o reconhecimento da
dignidade da vítima como Outro, que o sistema nega.
Assim, o princípio ético material crítico consiste em que: “deve ser criticado
todo sistema institucional (ou ato, etc.) que não permite viver suas vítimas, potenciais
membros negados, excluídos do sistema que tem a pretensão de reproduzir a vida”
(DUSSEL, 1997, p. 26).
As pessoas excluídas da comunidade da vida e da comunicação hegemônica, ao
tomarem consciência de sua situação de vítimas, seja interpelando-se mutuamente ou
com a participação de “intelectuais orgânicos”, constituem na visão de Dussel, uma
comunidade crítica e tanto estabelecem um juízo negativo do sistema como elaboram
uma alternativa utópica, real e histórica de superação de sua vitimação. Através da razão
estratégico-crítica estuda-se a factibilidade de realizar-se concretamente a desconstrução
do negativo e as possíveis transformações.
Desta forma, a comunidade intersubjetiva crítica “ao organizar as vítimas
simetricamente em uma comunidade de vida e comunicação devem criticar ao sistema
que as nega (negatividade) e projetar uma alternativa futura que o transforme ou
substitua” (DUSSEL, 1997, p. 27).
Freire como Dussel propõe uma ética universal do ser humano comprometida
com os excluídos, os oprimidos, «os condenados da Terra», fundamentada no respeito
às diferenças. Ética que condena a exploração, a discriminação de homens e mulheres e
o desrespeito à vida humana. Para ele constitui uma das tarefas da pedagogia crítica
libertadora «trabalhar a legitimidade do sonho ético-político da superação da realidade
injusta» (FREIRE, 2000, p. 43).
A educação na visão de Freire (1983) é formadora de consciência crítica, o que
possibilita a denúncia da opressão social e o anúncio da libertação. Isto significa que:
A luta pela libertação dos excluídos, dos oprimidos do sistema social e educacional pressupõe uma responsabilidade ética, histórico-política, em relação ao Outro, que implica em criticidade, opção e decisão, e que não pode
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deixar de estar presente tanto na formação quanto na prática pedagógica de educadores/as (OLIVEIRA, 2003, p. 48).
A educação do campo nesta perspectiva consiste em uma educação
problematizadora, crítica e libertadora e que fomente a convivência ética de respeito à
diferença e à diversidade cultural.
Educação do Campo na Amazônia: base epistemológica A educação do campo se situa no espaço entre fronteiras de conhecimentos e na
luta política contra a invasão cultural, ou seja, da imposição da cultura dominante da
cidade (urbanocêntrica) e da resistência e valorização da cultura do campo.
Magalhães (2010) considera educação do campo a
Educação que tenha, nos princípios curriculares e pedagógicos, a garantia de refletir e incluir nas relações sociais, raciais e culturais dos sujeitos do campo o direito de ter acesso a conhecimentos selecionados pela cultura hegemônica, entretanto, que não se silencie diante de outros conhecimentos que determinam o modo de sobrevivência e resistência da população do meio rural (MAGALHÃES, 2010, p.85).
Neste sentido, há um reconhecimento do campo como espaço cultural, cujos
sujeitos possuem uma diversidade de saberes e de práticas que historicamente vem
sendo silenciadas.
As matrizes educacionais neste contexto são a relação entre os saberes e o
diálogo.
A educação do campo é a que valoriza os saberes das populações do campo,
saberes culturais e experienciais. Saberes produzidos nas práticas sociais, nos processos
culturais, relações sociais, culturais e interpessoais. Saberes da terra, da mata, das águas.
Oliveira e Mota Neto (2008) referem-se aos saberes experienciais de
alfabetizandos de comunidades ribeirinhas do Município de São Domingos do Capim
como os provenientes de sua relação de trabalho com a terra, com a mata e com as
águas, e a sua relação com as comunidades, populações e culturas locais.
Saberes experienciais adquiridos no fazer cotidiano de homens e mulheres, que
como seres de práxis, tornam-se atores sociais e, “sujeitos de “práticas cotidianas de
resistências,” construtores de seus projetos de vida e tecedores de representações sobre o
mundo vivenciado. Sujeitos construtores de uma lógica de pensar a realidade social
oriunda do processo de relação dialética com o mundo” (OLIVEIRA, 2002 apud
OLIVEIRA; MOTA NETO, 2008, p. 64).
Esses saberes experienciais adquiridos na “cultura de conversa” por homens e
mulheres do campo não são levados em conta nas práticas educacionais escolares, cujo
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modelo urbanocêntrico valoriza o saber científico e a cultura de uma elite dominante.
Superar essa situação de saber negado, sendo valorizado o saber das experiências de
vida da população local é uma das tarefas da educação do campo.
Considera-se cultura de conversa o “saber experiencial apreendido no cotidiano
social, através da oralidade” (OLIVEIRA, MOTA-NETO, 2008, p.73).
A educação do campo para Caldart (2004) se faz no diálogo entre seus diferentes
sujeitos o que implica na relação dialógica entre os diversos saberes.
Educação, portanto, que viabilize a interrelação entre os saberes provenientes
das práticas sociais com os saberes escolares.
A questão epistemológica fundamental que se apresenta na educação do campo é
viabilizar a relação entre o saber científico e os saberes das práticas cotidianas das
comunidades rurais.
Santos (2002) a partir do reencontro da ciência com o senso comum, Morin
(2005) pela religação dos saberes e Freire e Faundez (1985 ) por meio da relação
dialética entre os saberes subsidiam a possibilidade epistemológica da relação entre os
saberes na prática educacional.
Freire ressalta a necessidade da interação entre os saberes na luta política da
educação popular. Para ele, um dos temas fundamentais e atuais da etnociência é o de:
como evitar a dicotomia entre esses saberes, o popular e o erudito ou o de como compreender e experimentar a dialética entre o que Snyders chama 'cultura primeira' e 'cultura elaborada'" e que, "o respeito a esses saberes se insere no horizonte maior em que eles se geram - o horizonte do contexto cultural, que não pode ser entendido fora do seu corte de classe [...] O respeito, então, ao saber popular implica necessariamente o respeito ao contexto cultural (FREIRE, 1993, p. 86).
A relação entre os saberes implica no respeito do educador aos saberes dos
educandos, que significa respeitar a sua forma de expressar, a sua linguagem, os saberes
culturais apreendidos em suas práticas sociais, o respeito a sua cultura. E o respeito às
culturas pressupõe a relação dialógica entre as mesmas.
O diálogo torna-se uma base epistemológica fundamental na educação de
Freire, pelo fato de considerar que os seres humanos conhecem e transformam o mundo,
como sujeitos, fazendo comunicados e dialogando. O diálogo viabiliza ações de
colaboração e de participação política, ao possibilitar aos silenciados o direito de
dizerem sua palavra, bem como possibilita aos sujeitos aprenderem e a crescerem na
diferença e a humanizarem-se.
Neste sentido, para Jesus (2004) a educação do campo:
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Pode se fortalecer se complementando às lutas e formas de organização e de produção do conhecimento com os que vivem na cidade. Ambos são territórios de lutas sociais, de produção de saberes, de poderes e sonhos. É importante ver a relação campo-cidade como condições democráticas e solidárias de pensar diverso, de dialogar com o outro, de partilhar sonhos e utopias que comportam o direito de todos e todas as brasileiras (p. 118).
Na educação do campo na Amazônia as relações entre os sujeitos, entre os
saberes e as práticas sociais e culturais precisam ser construídas alicerçadas na
dialogicidade, no compartilhamento de sonhos e utopias de uma sociedade democrática
e na luta política pela garantia de direitos a toda a população do campo.
Considerações Finais
As bases socioculturais da educação de campo apontam como matrizes
educacionais: a autonomia, o trabalho, a cultura, a eticidade e a criticidade. E a base
epistemológica da educação do campo apresenta como matrizes educacionais as
relações entre os saberes e o diálogo como estratégia metodológica
A educação do campo, nesta perspectiva, tem como objetivo promover a
autonomia dos sujeitos do campo, valorizando as práticas produtivas e culturais
realizadas, seus saberes e eticidade construída. Educação crítica, capaz de denunciar as
situações de alienação, exclusão e dominação social e viabilizar a inclusão social.
Educação engajada ética e politicamente com as classes populares, cujas práticas
pedagógicas pautadas em novos valores e relações dialógicas possibilitem a interação
entre os saberes e entre as culturas, superando a cultura do silêncio.
Algumas matrizes educacionais emergentes nesta análise teórica sobre a
educação do campo, entre as quais, a autonomia, a cultura, a criticidade, a relação entre
os saberes e o diálogo, indicam que a educação popular de Paulo Freire, se constitui em
um dos referenciais fundantes da educação do campo no Brasil.
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