ivanilde educação do campo

12
2 EDUCAÇÃO NO CAMPO NA AMAZÔNIA: BASES SOCIOCULTURAIS, EPISTEMOLÓGICAS E MATRIZES EDUCACIONAIS Ivanilde Apoluceno de Oliveira - UEPA Resumo Objetivo neste artigo analisar as bases socioculturais (antropológica, cultural e ético- política) e epistemológicas da educação do campo na Amazônia, apontando as matrizes educacionais emergentes que contribuem para nortear as práticas e as pesquisas em educação. O movimento por uma educação do campo no Brasil luta em favor de uma educação do campo e para a diversidade de seus sujeitos. O que se busca nesta educação é a garantia do direito de todos (as) à educação, tendo como referência as especificidades históricas e socioculturais da população que vive do e no campo. Por ser um movimento recente torna-se importante refletir sobre as suas bases teóricas, identificando as matrizes que subsidiam tanto as práticas quanto as pesquisas educacionais. A questão problema deste estudo é: em que se fundamenta a educação do campo na Amazônia, considerando seu contexto cultural complexo, cuja população de diferentes matrizes étnicas, ocupa uma pluralidade de espaços e em permanente interação com a biodiversidade característica da região amazônica? Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, pela qual se dialoga com alguns autores: Freire (1997), Caldart (2004), Dussel (2000), Oliveira e Mota Neto (2008), entre outros. A educação do campo, tendo por base as matrizes educacionais analisadas tem como objetivo promover a autonomia dos sujeitos do campo, valorizando as práticas produtivas e culturais realizadas, seus saberes e eticidade construída. Educação crítica, dialógica e engajada ética e politicamente com as classes populares. Algumas matrizes educacionais emergentes nesta análise teórica sobre a educação do campo, entre as quais, a autonomia, a cultura, a criticidade, a relação entre os saberes e o diálogo, indicam que a educação popular de Paulo Freire, se constitui em um dos referenciais fundantes da educação do campo no Brasil. Palavras-Chave: Educação do campo na Amazônia. Bases socioculturais e epistemológicas. Matrizes Educacionais. Introdução A Conferência Nacional por uma Educação Básica do Campo de 1998 anuncia no Brasil um movimento em favor de uma educação do campo e para a diversidade de seus sujeitos. O que se busca nesta educação é a garantia do direito de todos (as) à educação, tendo como referência as especificidades históricas e socioculturais da população que vive do e no campo. “Uma educação do e no campo. No: o povo tem direito a ser educado no lugar onde vive; Do: o povo tem direito a uma educação pensada desde o seu lugar e com a sua participação, vinculada à sua cultura e às suas necessidades humanas e sociais” (CALDART, 2002, p.26). XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.001675

Upload: cirlene-silva

Post on 22-Oct-2015

18 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Ivanilde educação do campo

2

EDUCAÇÃO NO CAMPO NA AMAZÔNIA: BASES SOCIOCULTURAIS, EPISTEMOLÓGICAS E MATRIZES EDUCACIONAIS

Ivanilde Apoluceno de Oliveira - UEPA

Resumo Objetivo neste artigo analisar as bases socioculturais (antropológica, cultural e ético-política) e epistemológicas da educação do campo na Amazônia, apontando as matrizes educacionais emergentes que contribuem para nortear as práticas e as pesquisas em educação. O movimento por uma educação do campo no Brasil luta em favor de uma educação do campo e para a diversidade de seus sujeitos. O que se busca nesta educação é a garantia do direito de todos (as) à educação, tendo como referência as especificidades históricas e socioculturais da população que vive do e no campo. Por ser um movimento recente torna-se importante refletir sobre as suas bases teóricas, identificando as matrizes que subsidiam tanto as práticas quanto as pesquisas educacionais. A questão problema deste estudo é: em que se fundamenta a educação do campo na Amazônia, considerando seu contexto cultural complexo, cuja população de diferentes matrizes étnicas, ocupa uma pluralidade de espaços e em permanente interação com a biodiversidade característica da região amazônica? Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, pela qual se dialoga com alguns autores: Freire (1997), Caldart (2004), Dussel (2000), Oliveira e Mota Neto (2008), entre outros. A educação do campo, tendo por base as matrizes educacionais analisadas tem como objetivo promover a autonomia dos sujeitos do campo, valorizando as práticas produtivas e culturais realizadas, seus saberes e eticidade construída. Educação crítica, dialógica e engajada ética e politicamente com as classes populares. Algumas matrizes educacionais emergentes nesta análise teórica sobre a educação do campo, entre as quais, a autonomia, a cultura, a criticidade, a relação entre os saberes e o diálogo, indicam que a educação popular de Paulo Freire, se constitui em um dos referenciais fundantes da educação do campo no Brasil.

Palavras-Chave: Educação do campo na Amazônia. Bases socioculturais e epistemológicas. Matrizes Educacionais.

Introdução

A Conferência Nacional por uma Educação Básica do Campo de 1998 anuncia

no Brasil um movimento em favor de uma educação do campo e para a diversidade de

seus sujeitos. O que se busca nesta educação é a garantia do direito de todos (as) à

educação, tendo como referência as especificidades históricas e socioculturais da

população que vive do e no campo. “Uma educação do e no campo. No: o povo tem

direito a ser educado no lugar onde vive; Do: o povo tem direito a uma educação

pensada desde o seu lugar e com a sua participação, vinculada à sua cultura e às suas

necessidades humanas e sociais” (CALDART, 2002, p.26).

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.001675

Page 2: Ivanilde educação do campo

3

O Movimento de Educação do Campo defende: “uma educação para superar a

oposição entre campo e cidade e a visão predominante de que o moderno e mais

avançado é sempre o urbano, e que o progresso do país se mede pela diminuição de sua

população rural” (II CNEC, 2004, p. 7). Entre os lugares desta educação, está a

Amazônia, demarcada pela diversidade de sujeitos, culturas e saberes. População de

diferentes matrizes étnicas, ocupando uma pluralidade de espaços e em permanente

interação com a biodiversidade característica da região amazônica.

Em que se fundamenta a educação do campo na Amazônia, considerando seu

contexto cultural complexo, cuja população de diferentes matrizes étnicas, ocupa uma

pluralidade de espaços e em permanente interação com a biodiversidade característica

da região amazônica? Considero que a educação do campo na Amazônia apresenta

bases epistemológicas e socioculturais, que possibilitam a identificação de algumas

matrizes educacionais, que subsidiam as práticas e as pesquisas de educação do campo.

Este estudo sobre a educação do campo consiste em uma pesquisa bibliográfica,

por meio da qual, dialogo com autores como Freire (1997), Caldart (2004), Dussel

(2000), Oliveira e Mota Neto (2008), entre outros.

Assim, apresento as bases teóricas socioculturais e epistemológicas da educação

do campo na Amazônia, apontando as matrizes educacionais emergentes: a autonomia,

o trabalho, a cultura, a eticidade, a criticidade, a relação entre os saberes e o diálogo.

Educação do Campo na Amazônia: bases socioculturais

A base sociocultural da educação do campo apresenta-se em três dimensões:

antropológica, cultural e ético-política.

a) antropológica

A educação consiste em um processo de formação humana. Por isso, na

educação do campo o ponto de partida são os sujeitos da educação do campo.

A população do campo na Amazônia é constituída por homens e mulheres

diversos e plurais, ribeirinhos, quilombolas, camponeses, indígenas, entre outros;

situados em um contexto geográfico bio-diverso e complexo, demarcado pelo

enraizamento cultural.

Sujeitos concretos e construtores de sua história, conhecimento e cultura, como

seres: a) gnosiológicos e de práxis, na medida em que conhecem e agem sobre seu

contexto histórico, social e cultural; b) éticos e políticos, capazes de decidir, optar e

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.001676

Page 3: Ivanilde educação do campo

4

assumir-se como sujeito de direitos e cidadão e c) não determinados, por estarem em

processo de formação contínua: existencial, ética, política, cultural e histórica.

Assim, para Freire (1997), o ser humano consciente de seus condicionamentos

sociais, mas não fatalisticamente submetido aos destinos estabelecidos, abre o caminho

à sua intervenção no mundo. Mulheres e homens como seres de relações e situados em

um contexto histórico são capazes de intervir em sua própria realidade transformando-a.

“O ser humano é, naturalmente, um ser da intervenção no mundo à razão de que faz a

História. Nela, por isso mesmo, deve deixar suas marcas de sujeito e não pegadas de

puro objeto [...] faz a história em que socialmente se faz e refaz” (FREIRE, 2000, p 119-

120).

Isso significa que o ser humano é condicionado por diversos fatores

socioculturais, mas não determinados em sua formação humana.

Nesta perspectiva, é preciso considerar-se os sujeitos do campo como seres

construtores de sua história e não alienados ao modo de viver e saberes da cidade. Como

seres pensantes do seu modo de ser e de viver em sociedade.

Para Caldart (2004) a perspectiva da educação do campo

é exatamente a de educar as pessoas que trabalham no campo, para que se encontrem, se organizem e assumam a condição de sujeitos da direção de seu destino [...] a possibilidade efetiva de os camponeses assumirem a condição de sujeitos de seu próprio projeto educativo; de aprenderem a pensar seu trabalho, seu lugar, seu país e sua educação (p. 28).

A matriz educacional emergente é a autonomia, que na visão de Freire (1997) é

construída historicamente, a partir das experiências e decisões que homens e mulheres

vão tomando ao longo de sua existência.

b) Cultural A educação do campo na Amazônia em função da diversidade de sujeitos se

realiza em diferentes espaços educativos: escolas, assentamentos, comunidades

indígenas, ribeirinhas, etc., que estão relacionadas às práticas socioculturais da

população do campo, em interação com a terra, a mata e os rios, no lugar em que vivem.

Para Oliveira-Neto e Rodrigues (2008):

A história do lugar está diretamente ligada à história dos que nele e com ele interagem, à prática social cotidiana, que é repassada de geração para geração, estando imbricada na cultura destes atores e grupos sociais [...] Desta maneira, cada lugar dessa imensa e complexa região amazônica é fruto dos modos de vida, produção e da intencionalidade dos sujeitos para esse lugar. O lugar é então transformado em um espaço único, diferenciado dos outros em sua essência, criado e recriado pela dinâmica dos povos que nela vivem e convivem (p. 31).

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.001677

Page 4: Ivanilde educação do campo

5

Se o lugar é construído na história de vida dos sujeitos, então, há a necessidade

de se respeitar “a dinâmica de cada grupo social amazônico. Respeitar suas

especificidades e modos de vida, pois estes, em grande parte, estão diretamente ligados

à cultura e as tradições desses grupos” (OLIVEIRA-NETO; RODRIGUES, 2008, p.

31). O respeito ao local e suas tradições culturais constitui um princípio fundamental da

educação do campo.

As formas de organização e de práticas sociais dessa população, segundo Silva

(2008), são fruto da inserção com o meio ambiente e da forma como essas comunidades

se apropriam dos recursos naturais dos diferentes ecossistemas com os quais interagem

e garantem a sua reprodução material e cultural. O trabalho, então, está relacionado às

estratégias da vida cotidiana. Consiste no “conjunto de manifestações dos seres

humanos face à natureza de atividades materiais e simbólicas” (CASTRO, 1999 apud

CORRÊA, 2008, p.46).

O movimento de Educação do Campo considera que: “o direito à educação

somente será garantido se articulado ao direito à terra, a água, à permanência no campo,

ao trabalho, às diferentes formas de produção e reprodução social da vida, à cultura, aos

valores, às identidades e às diversidades” (II CNEC, 2004, p. 7-8).

Caldart (2004) explica que a educação do campo nasceu atrelada ao trabalho e à

cultura do campo, apontando duas matrizes pedagógicas na educação do campo: o

trabalho e a cultura.

A educação do campo considera o trabalho como princípio educativo, porque o

trabalho é formador do ser humano. Marx (1985) concebe o trabalho:

qualitativamente como potencial, uma "atividade vital" que expressa os poderes e capacidades do homem. O trabalho é um processo em que o ser humano com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza... Atuando, assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua própria natureza (p.202).

Pelo trabalho o ser humano transforma a natureza e ao modificá-la transforma-se

também a si próprio. O trabalho, então, constitui na atividade humana essencial. O

trabalho como “atividade vital” precisa estar relacionado à educação. Neste sentido, a

união ensino e trabalho é para Marx um princípio educativo.

Oliveira (2011a) destaca que Marx analisa a educação sob a ótica de classe

social, em relação direta com o sistema produtivo, uma educação direcionada à classe

operária, compreendida em seu processo histórico de transformação.

A educação do campo na visão de Caldart (2004):

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.001678

Page 5: Ivanilde educação do campo

6

Precisa recuperar toda uma tradição pedagógica de valorização do trabalho como princípio educativo, de compreensão do vínculo entre educação e produção e de discussão sobre as diferentes dimensões e métodos de formação do trabalhador, de educação profissional, cotejando todo este acúmulo de teorias e de práticas com a experiência específica de trabalho e de educação dos camponeses (p. 32).

Neste sentido, na educação do campo há necessidade de considerar-se o sujeito

do campo enraizado em suas práticas produtivas e sociais, nas quais são construídos os

seus saberes culturais.

Na educação do campo a cultura se constitui em uma matriz formadora.

Brandão (2002) considera que:

Viver uma cultura é conviver com e dentro de um tecido de que somos e criamos, ao mesmo tempo, os fios, o pano, as cores o desenho do bordado e o tecelão. [...] A cultura configura o mapa da própria possibilidade da vida social. Ela não é a economia e nem o poder em si mesmos, mas o cenário multifacetado e polissêmico em que uma coisa e a outra são possíveis. Ela consiste tanto de valores e imaginários que representam o patrimônio espiritual de um povo, quanto das negociações cotidianas através das quais cada um de nós e todos nós tornamos a vida social possível e significativa (p.24).

A cultura por estar enraizada na vida social material e simbólica de homens e

mulheres, é formadora humana e construtora de identidades. “Educar é ajudar a

construir e fortalecer identidades: desenhar rostos, formar sujeitos. Isso tem a ver com

valores, modo de vida, memória, cultura” (CALDART , 2004, p.42).

Freire (1980, p. 109) compreende a cultura numa perspectiva humanista e

política. A cultura é concebida como “toda criação humana”, significando que toda a

produção humana é cultural e que somos sujeitos culturais. Como sujeitos em relação

com o mundo construímos nossa identidade cultural.

Segundo Oliveira (2011b), Freire por meio da invasão cultural e da cultura do

silêncio problematiza as relações de poder e de opressão presentes nas práticas culturais

de dominação e de alienação de uma classe sobre outra. Pela invasão cultural os

dominantes no contexto cultural dos invadidos, impõem sua visão do mundo, fazendo

com que os oprimidos experienciem situações de alienação, dominação e coisificação

(cultura do silêncio). Em contraposição à invasão cultural, Freire aponta para ações de

lutas e de resistências que se dão no campo sociocultural (cultura de resistência)

destacando a importância da síntese cultural, que implica na transformação da realidade

pela incidência da ação dos atores sociais. Ação histórica capaz de superar a cultura

alienada e alienante.

Gramsci também destaca a cultura como fundamental ao processo de luta

política, envolvendo relações de poder, situações contextuais concretas e aspectos

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.001679

Page 6: Ivanilde educação do campo

7

subjetivos. Para Rodrigues et al (2007, p. 27), Gramsci “traz para debate a história, o

conflito e o poder como constituintes dos processos culturais”.

Neste sentido, a luta política pela transformação social se dá no campo cultural.

Por isso, considera Caldart (2004) que:

A cultura também forma o ser humano e dá as referências para o modo de educá-lo; são os processos culturais que ao mesmo tempo expressam e garantem a própria ação educativa do trabalho, das relações sociais, das lutas sociais. A educação do campo precisa recuperar a tradição pedagógica que nos ajuda a pensar a cultura como matriz formadora, que nos ensina que a educação é uma dimensão da cultura, que a cultura é uma dimensão do processo histórico, e que processos pedagógicos são constituídos desde uma cultura e participam de sua reprodução e transformação simultaneamente (p. 33).

Luta política demarcada pela afirmação dos sujeitos do campo e de sua

identidade cultural.

c) ético-política. A educação do campo se apresenta engajada politicamente com as classes

populares e com os movimentos sociais, bem como comprometida com a formação ética

e cidadã dos indivíduos.

Para Caldart (2004) a educação do campo:

Além de se preocupar com o cultivo da identidade cultural camponesa, precisa recuperar os veios da educação dos grandes valores humanos e sociais: emancipação, justiça, igualdade, liberdade, respeito à diversidade, bem como reconstruir nas novas gerações o valor da utopia e do engajamento pessoal a causas coletivas, humanas (p. 34).

Neste sentido, o campo é considerado espaço de construção de uma educação

pautada em novos valores e relações solidárias e de respeito às especificidades sociais,

étnicas, culturais e ambientais de seus sujeitos.

As matrizes educacionais que se configuram neste contexto são a eticidade e a

criticidade.

A eticidade pressupõe a ética em sua dimensão cultural. Para Dussel (2000) cada

cultura possui um sistema de eticidade, um ethos cultural, ou seja, dos costumes dos

povos, de suas práticas morais é elaborada uma história da eticidade que se dimensiona

em uma história mundial. Nesta perspectiva, o conteúdo de toda a norma, ato humano,

instituição ou sistema de eticidade deve possibilitar o desenvolvimento da vida humana

em sociedade. O princípio ético fundamental em Dussel (1988, p.06) é a “produção,

reprodução ou desenvolvimento da vida humana em comunidade”. A sua ética da

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.001680

Page 7: Ivanilde educação do campo

8

libertação tem como ponto de partida o excluído, cuja consciência ética parte de um

ethos cultural excludente diante do qual se situa criticamente (DUSSEL, 2000).

A crítica se apresenta em Dussel como critério ético. O ponto de partida da ética

é a tomada de consciência da negação da corporalidade expressa no sofrimento das

vítimas, dos dominados (operário, índio, escravo africano ou explorado asiático do

mundo colonial) e discriminados (mulheres, velhos, incapacitados, crianças de ruas

abandonadas, imigrantes, etc.), tendo-se como referência o reconhecimento da

dignidade da vítima como Outro, que o sistema nega.

Assim, o princípio ético material crítico consiste em que: “deve ser criticado

todo sistema institucional (ou ato, etc.) que não permite viver suas vítimas, potenciais

membros negados, excluídos do sistema que tem a pretensão de reproduzir a vida”

(DUSSEL, 1997, p. 26).

As pessoas excluídas da comunidade da vida e da comunicação hegemônica, ao

tomarem consciência de sua situação de vítimas, seja interpelando-se mutuamente ou

com a participação de “intelectuais orgânicos”, constituem na visão de Dussel, uma

comunidade crítica e tanto estabelecem um juízo negativo do sistema como elaboram

uma alternativa utópica, real e histórica de superação de sua vitimação. Através da razão

estratégico-crítica estuda-se a factibilidade de realizar-se concretamente a desconstrução

do negativo e as possíveis transformações.

Desta forma, a comunidade intersubjetiva crítica “ao organizar as vítimas

simetricamente em uma comunidade de vida e comunicação devem criticar ao sistema

que as nega (negatividade) e projetar uma alternativa futura que o transforme ou

substitua” (DUSSEL, 1997, p. 27).

Freire como Dussel propõe uma ética universal do ser humano comprometida

com os excluídos, os oprimidos, «os condenados da Terra», fundamentada no respeito

às diferenças. Ética que condena a exploração, a discriminação de homens e mulheres e

o desrespeito à vida humana. Para ele constitui uma das tarefas da pedagogia crítica

libertadora «trabalhar a legitimidade do sonho ético-político da superação da realidade

injusta» (FREIRE, 2000, p. 43).

A educação na visão de Freire (1983) é formadora de consciência crítica, o que

possibilita a denúncia da opressão social e o anúncio da libertação. Isto significa que:

A luta pela libertação dos excluídos, dos oprimidos do sistema social e educacional pressupõe uma responsabilidade ética, histórico-política, em relação ao Outro, que implica em criticidade, opção e decisão, e que não pode

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.001681

Page 8: Ivanilde educação do campo

9

deixar de estar presente tanto na formação quanto na prática pedagógica de educadores/as (OLIVEIRA, 2003, p. 48).

A educação do campo nesta perspectiva consiste em uma educação

problematizadora, crítica e libertadora e que fomente a convivência ética de respeito à

diferença e à diversidade cultural.

Educação do Campo na Amazônia: base epistemológica A educação do campo se situa no espaço entre fronteiras de conhecimentos e na

luta política contra a invasão cultural, ou seja, da imposição da cultura dominante da

cidade (urbanocêntrica) e da resistência e valorização da cultura do campo.

Magalhães (2010) considera educação do campo a

Educação que tenha, nos princípios curriculares e pedagógicos, a garantia de refletir e incluir nas relações sociais, raciais e culturais dos sujeitos do campo o direito de ter acesso a conhecimentos selecionados pela cultura hegemônica, entretanto, que não se silencie diante de outros conhecimentos que determinam o modo de sobrevivência e resistência da população do meio rural (MAGALHÃES, 2010, p.85).

Neste sentido, há um reconhecimento do campo como espaço cultural, cujos

sujeitos possuem uma diversidade de saberes e de práticas que historicamente vem

sendo silenciadas.

As matrizes educacionais neste contexto são a relação entre os saberes e o

diálogo.

A educação do campo é a que valoriza os saberes das populações do campo,

saberes culturais e experienciais. Saberes produzidos nas práticas sociais, nos processos

culturais, relações sociais, culturais e interpessoais. Saberes da terra, da mata, das águas.

Oliveira e Mota Neto (2008) referem-se aos saberes experienciais de

alfabetizandos de comunidades ribeirinhas do Município de São Domingos do Capim

como os provenientes de sua relação de trabalho com a terra, com a mata e com as

águas, e a sua relação com as comunidades, populações e culturas locais.

Saberes experienciais adquiridos no fazer cotidiano de homens e mulheres, que

como seres de práxis, tornam-se atores sociais e, “sujeitos de “práticas cotidianas de

resistências,” construtores de seus projetos de vida e tecedores de representações sobre o

mundo vivenciado. Sujeitos construtores de uma lógica de pensar a realidade social

oriunda do processo de relação dialética com o mundo” (OLIVEIRA, 2002 apud

OLIVEIRA; MOTA NETO, 2008, p. 64).

Esses saberes experienciais adquiridos na “cultura de conversa” por homens e

mulheres do campo não são levados em conta nas práticas educacionais escolares, cujo

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.001682

Page 9: Ivanilde educação do campo

10

modelo urbanocêntrico valoriza o saber científico e a cultura de uma elite dominante.

Superar essa situação de saber negado, sendo valorizado o saber das experiências de

vida da população local é uma das tarefas da educação do campo.

Considera-se cultura de conversa o “saber experiencial apreendido no cotidiano

social, através da oralidade” (OLIVEIRA, MOTA-NETO, 2008, p.73).

A educação do campo para Caldart (2004) se faz no diálogo entre seus diferentes

sujeitos o que implica na relação dialógica entre os diversos saberes.

Educação, portanto, que viabilize a interrelação entre os saberes provenientes

das práticas sociais com os saberes escolares.

A questão epistemológica fundamental que se apresenta na educação do campo é

viabilizar a relação entre o saber científico e os saberes das práticas cotidianas das

comunidades rurais.

Santos (2002) a partir do reencontro da ciência com o senso comum, Morin

(2005) pela religação dos saberes e Freire e Faundez (1985 ) por meio da relação

dialética entre os saberes subsidiam a possibilidade epistemológica da relação entre os

saberes na prática educacional.

Freire ressalta a necessidade da interação entre os saberes na luta política da

educação popular. Para ele, um dos temas fundamentais e atuais da etnociência é o de:

como evitar a dicotomia entre esses saberes, o popular e o erudito ou o de como compreender e experimentar a dialética entre o que Snyders chama 'cultura primeira' e 'cultura elaborada'" e que, "o respeito a esses saberes se insere no horizonte maior em que eles se geram - o horizonte do contexto cultural, que não pode ser entendido fora do seu corte de classe [...] O respeito, então, ao saber popular implica necessariamente o respeito ao contexto cultural (FREIRE, 1993, p. 86).

A relação entre os saberes implica no respeito do educador aos saberes dos

educandos, que significa respeitar a sua forma de expressar, a sua linguagem, os saberes

culturais apreendidos em suas práticas sociais, o respeito a sua cultura. E o respeito às

culturas pressupõe a relação dialógica entre as mesmas.

O diálogo torna-se uma base epistemológica fundamental na educação de

Freire, pelo fato de considerar que os seres humanos conhecem e transformam o mundo,

como sujeitos, fazendo comunicados e dialogando. O diálogo viabiliza ações de

colaboração e de participação política, ao possibilitar aos silenciados o direito de

dizerem sua palavra, bem como possibilita aos sujeitos aprenderem e a crescerem na

diferença e a humanizarem-se.

Neste sentido, para Jesus (2004) a educação do campo:

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.001683

Page 10: Ivanilde educação do campo

11

Pode se fortalecer se complementando às lutas e formas de organização e de produção do conhecimento com os que vivem na cidade. Ambos são territórios de lutas sociais, de produção de saberes, de poderes e sonhos. É importante ver a relação campo-cidade como condições democráticas e solidárias de pensar diverso, de dialogar com o outro, de partilhar sonhos e utopias que comportam o direito de todos e todas as brasileiras (p. 118).

Na educação do campo na Amazônia as relações entre os sujeitos, entre os

saberes e as práticas sociais e culturais precisam ser construídas alicerçadas na

dialogicidade, no compartilhamento de sonhos e utopias de uma sociedade democrática

e na luta política pela garantia de direitos a toda a população do campo.

Considerações Finais

As bases socioculturais da educação de campo apontam como matrizes

educacionais: a autonomia, o trabalho, a cultura, a eticidade e a criticidade. E a base

epistemológica da educação do campo apresenta como matrizes educacionais as

relações entre os saberes e o diálogo como estratégia metodológica

A educação do campo, nesta perspectiva, tem como objetivo promover a

autonomia dos sujeitos do campo, valorizando as práticas produtivas e culturais

realizadas, seus saberes e eticidade construída. Educação crítica, capaz de denunciar as

situações de alienação, exclusão e dominação social e viabilizar a inclusão social.

Educação engajada ética e politicamente com as classes populares, cujas práticas

pedagógicas pautadas em novos valores e relações dialógicas possibilitem a interação

entre os saberes e entre as culturas, superando a cultura do silêncio.

Algumas matrizes educacionais emergentes nesta análise teórica sobre a

educação do campo, entre as quais, a autonomia, a cultura, a criticidade, a relação entre

os saberes e o diálogo, indicam que a educação popular de Paulo Freire, se constitui em

um dos referenciais fundantes da educação do campo no Brasil.

Referências

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A educação como cultura. Campinas-SP: Mercado das Letras, 2002.

CALDART, Roseli Salete. Elementos para construção do projeto político e pedagógico da educação do campo. In: MOLINA, Mônica; JESUS, Sonia Meire (Orgs.). Por uma educação do campo: contribuições para construção de um Projeto de Educação do Campo. Brasília-DF: Articulação Nacional, 2004.

_____. Por uma educação do campo: traços de uma identidade em construção. In. Por uma educação do campo: identidade e políticas públicas. (Org.) Caldart, R. Salete et al. 2ª Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.

CORRÊA, Sérgio. Comunidades rurais-ribeirinhas: processos de trabalhos e múltiplos saberes. OLIVEIRA, Ivanilde Apoluceno (Org.). Cartografia ribeirinhas: saberes e

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.001684

Page 11: Ivanilde educação do campo

12

representações sobre práticas sociais cotidianas de alfabetizandos Amazônidas. 2e. Belém-PA: EDUEPA, 2008.

DUSSEL, Enrique. Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão. Petrópolis - RJ: Vozes. 2000

_____ Principios, mediaciones y el “bien” como sintesis (de la “Ética del discurso” a la “Ética de la liberacion”). México-DF (mimeo).1997.

_____ Arquitectonica de la etica de la liberacion en la edad de la globalizacion y la exclusion. México-DF (mimeo).1988.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: UNESP, 2000.

____ Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 6e. São Paulo:

Paz e Terra, 1997.

____ Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do oprimido. 2e. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.

_____; FAUNDEZ, Antonio. Por uma Pedagogia da Pergunta. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.

____Educação como prática da liberdade. 11e. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

JESUS, Sonia Meire S. Azevedo de. Questões paradigmáticas da construção de um projeto político da Educação do Campo. MOLINA, Mônica; JESUS, Sonia Meire (Org.) Por uma educação do campo: contribuições para a construção de um Projeto de Educação do Campo. Brasília-DF: Articulação Nacional, 2004.

MAGALHÃES, Leila de Lima. A Lei nº 10.639/03 na Educação do campo: garantindo direito à educação do campo. In. ANTUNES-ROCHA, Maria Isabel; HAGE, Salomão Mufarrej (Orgs.) Escola de direito: reinventando a escola multisseriada. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

MARX, Karl. O Capital. Vol. 1. Cap. v. São Paulo: Difel, 1985.

MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 9 ed., 2005.

OLIVEIRA, Ivanilde Apoluceno de. Filosofia da Educação: reflexões e debates. 2e. Rio de Janeiro-RJ: VOZES, 2011a.

_____ Paulo Freire e a educação intercultural. CANDAU, Vera Maria. Diferenças culturais e educação: construindo caminhos. Rio de Janeiro-RJ: 7 Letras, 2011b.

OLIVEIRA, Ivanilde Apoluceno; MOTA NETO, João Colares. Saberes da terra, da mata e das águas, saberes culturais e educação. OLIVEIRA, Ivanilde Apoluceno (Org.). Cartografia ribeirinhas: saberes e representações sobre práticas sociais cotidianas de alfabetizandos Amazônidas. 2e. Belém-PA: EDUEPA, 2008.

_____ Leituras Freireanas sobre educação. São Paulo: UNESP, 2003.

OLIVEIRA NETO, Adolfo da Costa; RODRIGUES, Denise Souza Simões. O lugar de estar sendo dos sujeitos amazônidas rurais-ribeirinhos. OLIVEIRA, Ivanilde Apoluceno (Org.). Cartografia ribeirinhas: saberes e representações sobre práticas sociais cotidianas de alfabetizandos Amazônidas. 2e. Belém-PA: EDUEPA, 2008.

RODRIGUES; Denise et al. Cultura, cultura popular amazônica e a construção imaginária da realidade. OLIVEIRA, Ivanilde Apoluceno de; SANTOS, Tânia R.

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.001685

Page 12: Ivanilde educação do campo

13

Lobato dos. Cartografia de Saberes: representações sobre a cultura amazônica em práticas de educação popular. Belém-Pará: EDUEPA, 2007.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2002.

SILVA, Maria da Graça. Meio ambiente: múltiplos saberes e usos. OLIVEIRA, Ivanilde Apoluceno (Org.). Cartografia ribeirinhas: saberes e representações sobre práticas sociais cotidianas de alfabetizandos Amazônidas. 2e. Belém-PA: EDUEPA, 2008.

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.001686