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helena alexandra mantas DIRETORA DO SERVIÇO DE PÚBLICOS E DESENVOLVIMENTO CULTURAL, DIREÇÃO DA CULTURA DA SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA ITINERÁRIOS EM LISBOA TRÊS PASSEIOS EVOCATIVOS DA HISTÓRIA, DA MEMÓRIA E DO PATRIMÓNIO DA MISERICÓRDIA susy ferreira ricardo máximo andré martins da silva TÉCNICOS SUPERIORES DO SERVIÇO DE PÚBLICOS E DESENVOLVIMENTO CULTURAL, DIREÇÃO DA CULTURA DA SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA

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helena alexandra mantas DIRETORA DO SERVIÇO DE PÚBLICOS E DESENVOLVIMENTO CULTURAL, DIREÇÃO DA CULTURA DA SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA

ITINERÁRIOS EM LISBOA TRÊS PASSEIOS

EVOCATIVOS DA HISTÓRIA, DA MEMÓRIA E DO PATRIMÓNIO DA MISERICÓRDIA

susy ferreiraricardo máximoandré martins da silva TÉCNICOS SUPERIORES DO SERVIÇO DE PÚBLICOS E DESENVOLVIMENTO CULTURAL, DIREÇÃO DA CULTURA DA SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA

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Convidamo-lo a participar nos itinerários culturais da Misericórdia de Lisboa. Neste artigo, apresentam-se três propostas. Pode optar por conhecer os locais onde a instituição esteve sediada ao longo do tempo; saber mais sobre presença da Companhia de Jesus em Lisboa, ordem religiosa cuja história se cruza com a da Misericórdia; ou ainda descobrir a riqueza patrimonial de grande relevância histórica e artística em torno de jazigos que testemunham a ação benemérita de muitos particulares a favor da Santa Casa.

O Serviço de Públicos e Desenvolvi-mento Cultural (SPDC) é uma uni-dade da Direção da Cultura da San-ta Casa da Misericórdia de Lisboa

(SCML). Esta unidade tem o fim de planear e im-plementar um programa educativo e cultural que valorize e divulgue o património da instituição e vá ao encontro das necessidades da sociedade contemporânea no que respeita a educação, cul-tura e entretenimento.

Entende-se que este programa deve ser plural, recorrendo a diferentes meios de expressão e co-municação, desde visitas guiadas de carácter geral

e temático, a workshops, ateliês, conferências, artes performativas, música, entre outros, sempre numa lógica de participação ativa do público.

A programação promovida pelo SPDC deve, ainda, dirigir-se a diferentes segmentos de públi-co, externo e interno, incluindo púbico nacional e estrangeiro, crianças e jovens, adultos e idosos, bem como públicos com necessidades especiais. Para chegar a uma tal diversidade de públicos, é necessário definir estratégias e criar recursos di-ferenciados, que tomem em linha de conta as ca-racterísticas específicas dos destinatários e, assim, viabilizem uma comunicação eficaz.

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A existência de uma equipa pluridisciplinar que utilize a interdisciplinaridade para desenvolver o trabalho é outro elemento fundamental para ga-rantir o sucesso de um programa educativo e cul-tural, ou seja, a adesão, satisfação e fidelização dos públicos. Em relação a este aspeto, o SPDC conta com técnicos de áreas tão distintas como a his-tória da arte, a comunicação, as artes plásticas, a museologia, o património, a educação e o turismo. Parceiros externos, como associações, instituições de cariz educativo, social ou religioso, empresas do setor turístico, universidades, entre outros, são um precioso auxílio na prossecução dos fins do SPDC por fortalecerem os laços com a comunidade e o meio, abrindo novas perspetivas de ação.

A Igreja e o Museu de São Roque, o Arquivo Histórico, a Biblioteca e alguns edifícios com valor histórico e artístico da SCML, como o Convento de São Pedro de Alcântara, o Palácio Marqueses das Minas ou o Hospital Ortopédico de Sant’Ana, são os locais onde este programa educativo e cultural tem lugar. Paralelamente, o SPDC procura estender a sua ação a outros espaços que, não pertencendo atualmente à SCML, fazem parte da história e da memória da instituição.

Entre as muitas atividades desenvolvidas pelo SPDC, têm merecido uma forte adesão do público os itinerários em Lisboa. Trata-se de um conjunto de quatro percursos pedestres e um percurso em bicicleta que remetem para a história, a memória e o património da instituição. Neste artigo da revista

Cidade Solidária, destacamos três destes percursos, os primeiros que foram apresentados ao público, e que nos são dados a conhecer pela mão dos téc-nicos que os conduzem. Num destes itinerários, o visitante é levado a percorrer os locais onde a Misericórdia de Lisboa esteve sediada ao longo do tempo. Ao longo de duas horas e meia, o público fica a conhecer a história de uma instituição com mais de quinhentos anos de existência. O segun-do itinerário centra-se na presença da Companhia de Jesus em Lisboa, ordem religiosa cuja história se cruza com a da Misericórdia, que é detentora, desde 1768, da Igreja e Casa Professa de São Ro-que, casa-mãe dos padres inacianos em Portugal. Finalmente, o terceiro itinerário desenvolve-se em torno dos jazigos da Misericórdia de Lisboa, no Cemitério dos Prazeres. Trata-se de um conjunto patrimonial de grande relevância histórica e artís-tica que inclui alguns exemplares notáveis da arte funerária dos séculos XIX e XX e que testemunha a ação benemérita de muitos particulares a favor da Santa Casa.

O público pode ainda conhecer os antigos Re-colhimentos da Capital num percurso de bicicleta ou acompanhar a história do azulejo num percurso pedestre. Estes dois itinerários foram criados re-centemente e vêm dar resposta à forte adesão do público a esta atividade.

A participação nestes itinerários é gratuita e re-quer marcação prévia, devendo os contactos ser feitos por telefone (213 240 869 / 213 240 889).

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As sedes da Santa CasaMemórias de uma instituição

susy ferreira

Seja muito bem-vindo à Sé de Lisboa! Entre as várias memórias históricas que este templo de-dicado a Santa Maria Maior encerra, há uma que ainda mantém um fio condutor com o presente — a memória da criação de um projeto que ganhou um alcance enorme, quer geograficamente, quer na própria organização interna e na forma como conseguiu pôr em prática uma gama variada de atividades, sempre em prol dos mais desfavoreci-dos. Esse projeto chama-se Santa Casa da Mise-

ricórdia, uma instituição que teve a primeira sede na Capela de Nossa Senhora da Piedade, situada no claustro deste templo, e que tem o nome po-pular de “capela da Terra Solta”.

Esta irmandade, criada oficialmente no dia 15 de agosto de 1498, nasceu da vontade de uma grande figura do renascimento português — a rainha D. Leonor (1458-1525), que veio docu-mentalmente a assegurar a produção das pri-meiras medidas regulamentares e legais que

FIGURA 1

Obras de Misericórdia,Pieter Brueghel, o Jovem (1601-1625). Século XVII (primeiro quartel). Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga.

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fundariam uma “confraria-modelo” para a épo-ca, em Portugal. As 14 obras de misericórdia que colmatariam, quer necessidades do foro mate-rial, quer do foro espiritual, rapidamente move-ram 100 confrades de várias proveniências so-ciais, entre os quais eram eleitos, anualmente, o provedor, nove conselheiros, um escrivão e dois mordomos.

Nas bandeiras processionais da Santa Casa, fi-guram, num dos lados, a imagem de Nossa Senho-ra da Piedade e, no outro, a imagem de Nossa Se-nhora da Misericórdia, que o nome da instituição invoca, tomando o dia da confraria por orago, o dia festivo da visitação de Nossa Senhora quando visi-tou Santa Isabel. É assim, como que a transportar bandeiras processionais, num ambiente de festa, que eu convido o meu amável visitante a conhecer a segunda sede da Santa Casa — a Igreja de Nossa Senhora da Misericórdia de Lisboa.

Aqui, no sítio da atual Igreja de Nossa Senhora da Conceição “a Velha”, foi construída a Igreja da Misericórdia, para onde foi transferida, em solene e magnífica procissão, a sede da Santa Casa, em 1534. Este complexo incluía a igreja, a mais sump-tuosa da cidade, a seguir à Igreja de Santa Maria de Belém; um hospital dedicado a Santa Ana, com 32 camas para mulheres da classe nobre que so-fressem de doenças incuráveis; dois recolhimentos para órfãs; a secretaria; o cartório, entre outras de-pendências. O terramoto de 1755, a que se seguiu um maremoto, incêndios e pilhagens, acabaram por afetar gravemente todo o complexo.

A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, com a sua igreja paroquial, cresce na assistência e na ca-ridade, encarando, ainda no século XVI, um novo desafio — a administração do Hospital Real de Todos-os-Santos, e é para lá que nos vamos dirigir. Mas, antes, devemos fazer um curto intervalo, para saborear uma iguaria luso-japonesa.

Aqui, na Praça do Rossio, na parte norte e orien-tal, situava-se o Paço dos Estaus; o Chafariz de Neptuno; um pouco mais recuado, o Convento de São Domingos; e o Hospital Real de Todos-os-San-tos, inaugurado no reinado de D. Manuel. A Mesa da Misericórdia, que viu a sua responsabilidade au-mentada, passa a usar o seguinte título: Provedor e mais Irmãos da Mesa da Santa Casa da Misericór-dia de Lisboa, Hospital Real de Todos-os-Santos e Real Casa dos Expostos.

O terramoto de 1755 danifica gravemente este complexo, conquanto o hospital consegue manter a sua atividade, mas em condições muito precárias, até que, em 1775, os seus serviços são transferidos para o novo hospital real — o Hospital de São José. No reinado de D. Maria I, este hospital é separa-do do acervo comum da Santa Casa, a pedido da Mesa, e colocado sob a administração indepen-dente do novo enfermeiro-mor. Para finalizar este agradável passeio, vamos conhecer o complexo

FIGURA 2 Bandeira mostrando a Nossa Senhora da Misericórdia. Bernardo Pereira Pegado. Portugal, 1784.Óleo sobre tela.

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de São Roque, para onde é transferida, de novo, a sede da Santa Casa.

Depois do terramoto de 1755, a sede da Mise-ricórdia de Lisboa dispersa-se por vários edifí-cios alugados ou cedidos, até que, em 1768, o rei D. José I faz doação completa, perpétua e irrevogá-vel da Casa Professa de São Roque, que pertenceu aos jesuítas até à expulsão da ordem de Portugal, em 1759. Atualmente, no Largo Trindade Coelho, temos uma fachada pública, que esconde cinco núcleos arquitetónicos, nomeadamente a Casa Professa dos jesuítas, construída depois de 1553;

as casas de arrendamento da Calçada da Glória (1783-1795); o Asilo do Amparo (1854-1857); uma lavandaria (1911-1915); e o Hospital Infantil de São Roque (1927-1935), edifícios que têm sido reconvertidos a outras funcionalidades.

Na antiga Casa Professa da Companhia de Jesus encontra-se o Museu de São Roque, inaugurado em 1905, onde, para finalizar, gostaria de presen- tear o visitante com uma visita ao núcleo do museu dedicado à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, onde podemos conhecer a Excelentíssima Rainha D. Leonor!

FIGURA 3 O Hospital Real de Todos- -os-Santos, vista lateral e sua integração na cidade. Sem autor e sem data. Primeira metade do século XVIII (?). Propriedade AR-PAB/A. Roquette/P. Aguiar Branco. Fotografia de Onshot/ Rui Carvalho.

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AD MAJOREM DEI GLORIAMPelos caminhos da Companhia de Jesus em Lisboa

ricardo máximo

No Bairro Alto de São Roque, outrora da peste, encontra-se a Igreja de São Roque, pertencente à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, ponto de partida para uma viagem à descoberta de uma das instituições que mais marcaram a modernidade global, e que tinha em Lisboa um dos seus princi-pais alicerces: a Companhia de Jesus.

No dia 15 de agosto de 1534, em Paris, sete companheiros, pensionistas do colégio de Santa Bárbara, Inácio de Loyola, Francisco Xavier, Afonso Salmeirão, Nicolau Bobadilha, Pedro Fabro, Diogo lainez e Simão Rodrigues de Azevedo, fundam a Societas Iesu, S. I., Companhia de Jesus.

Deve-se ao basco Inácio de Loyola, não só a mentoria da sociedade, como a responsabilidade pela escritura constituinte da ordem, a qual se ba-seava na vida disciplinada de ex-soldado, ferido no cerco de Pamplona, em 1521. A recuperação desses ferimentos revelar-se-iam decisivos para o modus operandi da Companhia de Jesus, marcado pelos exercícios espirituais, momentos em que Inácio se retirava para meditação, oração e estudo de obras religiosas, de modo a atingir o verdadeiro discer-nimento. Ao espírito de disciplina militar, Inácio juntará o espírito de fé, superação e sacrifício, de defesa e obediência às hierarquias católicas sob os lemas perinde ac cadaver, que significa “disciplinado como um cadáver”, e ad maiorem Dei gloriam, “para a maior glória de Deus”.

Em 1540, o Papa Paulo III aprovou a Companhia de Jesus e, por diligências tomadas pelo embaixa-dor do rei D. João III, Pedro de Mascarenhas, orde-nou a vinda para Lisboa dos companheiros Rodri-gues e Bobadilha, que adoece e não viajará, sendo substituído por Francisco Xavier.

Desde logo, os primeiros membros da assistên-cia de Lisboa encontram na colina dos pestilentos um lugar ideal para divulgar os seus ideais refor-

madores. Porém, será só em 1553 que a Compa-nhia se instala no local da Ermida de São Roque, graças não só ao apoio régio, como também à be-nemerência de benfeitores.

O célere crescimento da Companhia na segun-da metade do século XVI justifica a fundação de edificado separado dos espaços já existentes na cidade. Devotos da Companhia e influenciados pelo apostolado de Francisco Xavier, o antigo go-vernador da Índia Fernão Teles de Menezes e a sua esposa, Dona Maria de Noronha, cedem os terre-nos e financiam parte da empreitada que nasce no Monte do Olivete, o Noviciado da Cotovia.

Apesar da notoriedade e fama que o ensino da companhia alcançou, não era esse o seu propósito

FIGURA 1 Túmulo de Fernão Telles de Menezes e Maria de Noronha, atribuído ao arquiteto Pedro Nunes Tinoco, c. 1616. Inv. MUHNAC-UL-10000

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inicial, que se baseava na pregação, na caridade e na educação básica das crianças, dos gentios e dos rudes, e em dar a conhecer os princípios ba-silares e elementares da doutrina católica. A ver-tente formativa surge como resposta à dificuldade em encontrar professores disponíveis para a difícil missão de evangelização, pelo que rapidamente se opta pela criação de espaços de aprendizagem abertos a jovens, os colégios e os noviciados.

Imponente, o edifício-alvo que alberga hoje o Museu de História Natural e das Ciências apresen-ta as muitas cicatrizes que o tempo, os infortúnios e os diversos proprietários lhe provocaram, e, ao entrar, hoje resta da antiga Igreja da Nossa Senho-ra da Assunção no antigo Noviciado da Cotovia apenas a sua memória e o túmulo dos fundadores de seis metros de altura de mármore rosa sobre a proteção de dois elefantes.

Este percurso pelos vários espaços patrimoniais da Companhia de Jesus leva os visitantes à Igre-ja da Nossa Senhora do Socorro, nome pela qual é conhecida atualmente a antiga igreja do Colégio de Santo Antão-o-Velho. Se, aquando da sua fun-dação, em 1542, por Simão Rodrigues, os valores primitivos da educação ainda eram os vigentes, na década de 50, e já como resposta à ideia crescen-te de que o ensino seria a principal ferramenta de difusão dos ideais do Concílio de Trento, os colé-gios ganham preponderância social, e as famílias

nobres veem na qualidade dos mestres da Compa-nhia perfeitos educadores dos seus descendentes.

A rápida procura de alunos e o crescente prota-gonismo social e religioso da Companhia faz com que o colégio da Mouraria se torne insuficiente, pelo que, em 1574, com o beneplácito do cardeal D. Henrique já se assistia a um plano de mudança para um espaço mais amplo, com capacidade para albergar e ensinar mais noviços.

Uma vez em Santo Antão-o-Novo, hoje hospital de São José, a Companhia cria um dos mais impor-tantes espaços de conhecimento não universitário da Europa, com cerca de 2000 alunos por ano. Sendo comummente conhecidos como os mestres da retórica, este espaço volta-se também para os astros e para o ensino das ciências matemáticas. Na célebre “Aula da Esfera”, passam nomes maio-res da cosmografia como Cristóforo Borri ou Pao-lo Lembo, a caminho de todos os outros sítios, do Brasil ao Celeste Império Chinês.

O itinerário da Companhia de Jesus por Lisboa mostra o quanto ambas estão interligadas e como o destino de uma parece prever o destino da ou-tra, desde os primeiros dias de Xavier e Rodrigues à acusação no envolvimento do atentado régio de D. José, a 3 de setembro de 1758. A força desta ligação mostra-se hoje não só no edificado visita-do, mas acima de tudo no espírito universalista que lhes são inatos.

FIGURA 2 A Alavanca de Arquimedes e os descobrimentos portugueses…Aula da Esfera – Colégio de Santo Antão-o-Novo, atual Sala Nobre do Hospital de São José.Azulejo, escola portuguesa,1.º quartel do século XVIII

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| ITINERÁRIOS |

FIGURA 1 Jazigo da Família Pinto Leitão.Ricardo de Araújo Lobo, 1917. Cemitério dos Prazeres, Lisboa. © Cintra e Castro Caldas/SCML.

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Uma manhã na cidade dos mortosO itinerário dos jazigos da Santa Casa

andré martins da silva

Ao contrário dos restantes itinerários organiza-dos pelo Serviço de Públicos e Desenvolvimento Cultural, que compreendem passagens por vários conjuntos patrimoniais, o itinerário dos jazigos desenvolve-se no interior de um único complexo: o Cemitério dos Prazeres.

Verdadeiro museu ao ar livre — museu da morte, com efeito — detentor de inúmeros exemplares de tumulária de grande qualidade (muitos dos quais confiados à guarda da SCML), local de preserva-ção da memória de como a morte é pensada e en-carada desde o século XIX, de repouso de numero-sas eminentes personagens da cultura portuguesa, repertório histórico, artístico e iconográfico, o Ce-mitério dos Prazeres encontra a sua origem numa época de fortes transformações sociais, políticas e de mentalidades, da qual é herdeiro o entendi-mento da morte que praticamente todos nós hoje temos.

Pesem embora alguns antecedentes importan-tes, o que entendemos atualmente como cemi-tério só foi adotado pela maioria das povoações portuguesas muito lenta e paulatinamente ao longo do século XIX. Até então, como é de co-nhecimento geral, era nas igrejas que se enterra-vam os mortos, maioritariamente nos adros das igrejas paroquiais, verdadeiros epicentros de toda a vida social de então.

No século XVIII, na Europa do Iluminismo, esta prática começa a ser contestada por razões de saúde pública. Em Portugal, conhece o seu fim com o Liberalismo, numa situação de urgência agrava-da pela epidemia de cólera de 1833 — o mesmo

ano em que o Cemitério dos Prazeres foi aberto. Dois anos depois, foi decretada a criação de cemi-térios civis para todas as localidades do reino e, em 1844, a proibição dos enterros nas igrejas. Por esta altura, a cidade de Lisboa contava com aproxima-damente 130 pequenas necrópoles1, e pelo menos uma delas estava à guarda da Santa Casa, o Ce-mitério de Santana, perto da Igreja da Pena, usado para pobres e condenados à morte. Se nas cidades houve uma boa aceitação da nova prática sepulcral — motivada pelas insalubres condições dos respe-tivos enterramentos — no mundo rural foi muito mal recebida, contribuindo para a revolta da Maria da Fonte, entre outros levantamentos populares. No início do século XX, algumas localidades ainda se recusavam a aceitar a proibição.

A extinção das ordens religiosas masculinas, em 1834, levou ao desaparecimento de quem durante séculos tinha assegurado a manutenção das cape-las sepulcrais nas igrejas e nos claustros. Em Lis-boa, a partir do último quartel do século XIX, foi a SCML que passou a assegurar a preservação das últimas moradas dos beneméritos que desde en-tão têm contribuído para a missão social da Ins-tituição2.

Com efeito, o difícil contexto social, económico e político da transição de finais do século XIX para inícios do XX levou a um aumento das doações, por parte de beneméritos que pretendiam assim evitar um eventual destino catastrófico dos seus bens, ditado por alguma decisão política justificada pela gravidade da conjuntura. Neste período, corres-pondente sensivelmente ao mandato do Provedor

1. ANDRÉ P. — Modos de pensar e construir os Cemitérios Públicos Oitocentistas em Lisboa: o caso do Cemitério dos Prazeres, p. 68.2. Para informações mais detalhadas sobre os jazigos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, consulte SILVA A. M. —

O património cemiterial da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. In Cadernos Culturais – Telheiras/Lumiar/Olivais. 2.ª série, n.º 9, novembro 2016, pp. 206-222.

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| ITINERÁRIOS |

Pereira de Miranda, muitos beneméritos reconhe-ceram aqui uma oportunidade para assegurar a manutenção dos seus sepulcros, solicitando-a à Santa Casa como contrapartida pelas doações ou

legados testamentários. Curiosamente, o próprio Provedor Pereira de Miranda legou dois jazigos à Santa Casa, situados no Alto de S. João, certamen-te confiante nos bons cuidados da Instituição que tinha dirigido. A Misericórdia de Lisboa, pela sua antiguidade e credibilidade, garantia esta incum-bência ad aeternum. Diz uma deliberação de mesa de 1920, que aceitou a doação de um jazigo, que a Santa Casa deveria “provêr à conservação e repa-ração do seu jazigo (…), mantendo-o em irrepreen-sível estado de aceio”3.

Ao longo das décadas que se seguiram, a cole-ção de jazigos ao cuidado da Santa Casa foi cres-cendo, totalizando atualmente 1285 exemplares, concentrados sobretudo no Cemitério dos Praze-res e no Cemitério do Alto de São João.

Devido à quantidade de sepulcros, o Itinerá-rio dos Jazigos passa por alguns selecionados pelo seu interesse histórico, artístico, iconográfi-co ou biográfico. Apenas para mencionar alguns, salientem-se os jazigos da Família de José Pinto Leitão, de Ernesto de Seixas, da Família Mante-ro e de Marcellino de Souza Pereira de Britto. No que toca a grandes vultos da cultura portuguesa, são de destacar os jazigos de Columbano Bordalo Pinheiro e do Dr. Leite de Vasconcelos.

Assim, o Itinerário dos Jazigos é um percurso pela história, história da arte, sociedade, religiosi-dade e mentalidades dos séculos XIX e XX, bem como pela própria história da Misericórdia de Lis-boa, através daquela que é, provavelmente, a me-nos conhecida das suas áreas de intervenção. Foi criado para dar a conhecer o património funerário que a Instituição tem à sua guarda, numa altura em que os cemitérios têm uma importância turístico--cultural cada vez maior, como é o caso paradig-mático do cemitério parisiense do Père-Lachaise. Pretende, ainda, sensibilizar para a importância da preservação da arte cemiterial e propor um enten-dimento alternativo à imagem lúgubre e soturna ainda muito atribuída aos cemitérios.

3. AHSCML — Livro das Deliberações da Mesa da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, n.º 22, 1918-1923, fól. 91.

FIGURA 2 Jazigo da Família Mantero.Nicola Bigaglia, 1905. Cemitério dos Prazeres, Lisboa. © Cintra e Castro Caldas/SCML.

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SAIBA MAIS

ITINERÁRIO DAS SEDES DA MISERICÓRDIA DE LISBOA

AAVV — Guia de Portugal: Lisboa e Arredores. 4.ª reimp. Coimbra: Gráfica de Coimbra, Lda., 2006. ISBN 972 31 0544 6. Vol. 1.

ARAÚJO, N. — Peregrinações em Lisboa. 2.ª ed. Lisboa: Veja, 1993. ISBN 972 699 344 X. Vol. XII.GUEDES, M. N. C. (coord.) — 500 Anos das Misericórdias Portuguesas: Solidariedade de Geração

em Geração. Lisboa: Comissão para as Comemorações dos 500 Anos das Misericórdias, 2000. ISBN 972 95109 8 9.

MANTAS, H. A. (coord.) — Património Arquitectónico — Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, Lisboa: Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, 2010. ISBN 978-972-8761-63-9. Tomo II.

OLIVEIRA, F. N. — Livro das Grandezas de Lisboa. Lisboa: Vega, 1991. ISBN 972-699-290-7.PARDAL, M. J. M. — O Terramoto de 1755: A Urbanização da Nova Lisboa. Lisboa: Produções

Editoriais, Lda., 2005. ISBN 989-602-072-8.SOUSA, I. C. — V Centenário das Misericórdias Portuguesas. CTT Correios de Portugal, 1998.

ISBN 972-9127-47-6.

ITINERÁRIO DA COMPANHIA DE JESUS, EM LISBOA

ALFERES PINTO, C.; OLIVEIRA E COSTA, J. P. — O Mundo de São Francisco Xavier. EPAL–CEPCEP, Lisboa, 2006. ISBN 972-9045-21-6.

LEVENSON, J. A. et al. — Portugal e o Mundo nos Séculos XVI e XVII. MNAA, Lisboa, 2009. ISBN 978-972-776-383-2.

FERNANDEZ, J. I. et al. — La Arquitectura Jesuita. Coleccion Actas. Zaragoza, 2012. ISBN 978-84-9911-158-2.

MARTINS, F. S. —  Arte, Culto e Vida Quotidiana — Jesuítas de Portugal: 1542-1759. Edição de Autor. Porto, 2015. ISBN 978-989-20-5171-0.

Raggi — spiritualità ignaziana in comunione — Autobiografia. Roma: SBIDM.[consult. 03 set. 2016], Disponível em www:<URL:http://www.raggionline.com/saggi/scritti/pt/autobiografia.pdf.

ITINERÁRIO DOS JAZIGOS DA MISERICÓRDIA DE LISBOA NO CEMITÉRIO DOS PRAZERES

ANDRÉ, P.– Modos de pensar e construir os Cemitérios Públicos Oitocentistas em Lisboa: o caso do Cemitério dos Prazeres. In Revista de História da Arte. IHA-FCSH-UNL. n.º 2, 2006, pp.67-105.

FIGUEIREDO, F. A. — A Morte na Região de Lisboa nos princípios do século XX. Lisboa: Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa, Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade, Edições Arrábida, 2006.

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SERRÃO, J. V. — A Misericórdia de Lisboa — Quinhentos Anos de História. Lisboa: SCML e Livros Horizonte, 1998.

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