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abr 2008 | itaucultural.org.br 9 ITAÚ CULTURAL O rio – fluxos e contrafluxos

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.�abr 2008 | itaucultural.org.br9

ITAÚ CULTURAL

O rio – fluxos e contrafluxos

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sumário

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ITAÚ CULTURAL

No curso da cidade

A relação de quatro capitais do Brasil com seus rios

Um lugar debaixo d´águaMoradores de uma cidade submersa contam suas experiências com o Paraná

Qual o rio que passou em sua vida?Em entrevista, artistas brasileiros falam de seus rios prediletos

Fíti saci-pererêQuando o pescador vira história

Rio abaixo, rio afora, rio adentro: os riosArtigo analisa simbolismos do rio na história humana

Continuum on-lineA revista na internet e seus conteúdos exclusivos

Área LivreIlustradores retratam o significado artístico do rio

Os rios da cultura brasileira

Os rios estão presentes na formação de algumas das principais cidades do mundo. Ao propiciar o assentamento de povos às suas margens, eles também contribuem para o surgimento de diferentes culturas e expressões artísticas. Esta edição da Continuum Itaú Cultural aborda a relação cultural que as cidades mantêm com seus rios, relação de amor e de descaso, mas nunca de indiferença.

Com o título O rio – fluxos e contrafluxos, a revista mostra como a arte vem operando uma ressignificação da imagem de alguns rios, como o morto Tietê em sua passagem pela capital paulista, que adquire uma “reserva de utopia” por meio de projetos de arte contemporânea. Porto Alegre, Belém e Recife também vêm demonstrando pela arte um questionamento dos rios que as margeiam, como se vê na reportagem que abre esta edição.

Durante uma semana, outra reportagem visi-tou o interior do país, na tríplice fronteira en-tre São Paulo, Minas Gerais e Mato Grosso do Sul, banhada pelo Rio Paraná e seus afluen-tes, como o Rio Grande. Nessa expedição rio acima, os personagens e as histórias de Ru-binéia, cidade submersa devido à hidrelétrica de Ilha Solteira.

Histórias de pescador e a história de um pescador são tema de mais uma matéria, que

mostra a simplicidade da fala do povo ribeirinho. Depoimentos de sete artistas brasileiros – Moacyr

Scliar, Arthur Omar, Emanoel Araújo, Giselle Beiguelman, Antônio Araujo, Milton Hatoum e Carlos Nader – sobre os rios que passaram por suas vidas revelam, na seção Entrevista, histórias mais reais que as de pescador, e que tiveram a força de novos batismos para seus protagonistas.

Da mesma forma que é dada voz a mais de um entrevistado neste mês, a Área Livre também apresenta trabalhos de mais de um artista. Foram convidados quatro

ilustradores para expressar com seu traço o tema rio. Parte dessas obras está nas páginas da revista impressa e parte integra o conteúdo exclusivo da

revista on-line. Conheça, também no site, outras abordagens da presença do rio na cultura brasileira.

9 abr �008

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Tiragem 10 mil – distribuição gratuita Sugestões e críticas devem ser encaminhadas ao Núcleo de Comunicação e Relacionamento [email protected]. Jornalista responsável Ana de Fátima Sousa MTb 13.554

Continuum Itaú Cultural Projeto Gráfico Jader Rosa Redação André Seiti, Érica Teruel Guerra, Marco Aurélio Fiochi, Thiago Rosenberg Colaboraram nesta edição Alexandre Abiuro, Cia de Foto, Cristiano Trindade aka GOTA , Davi Calil, Helio Herbst, Luís Osório Ritter Ribeiro, Luiz Fukushiro, Mariana Lacerda, Mariana Sgarioni, Micheliny Verunschk, Patrícia Patrício, Ricardo Pennino Agradecimentos Alessandra Rodrigues, Anésio Olivo, Aparecido “Nino” Oliveira, Benedito de Souza, Fabia Fuzeti, Fiapo, Marcelo Garcia, Marcio Almeida, Maria Ribeiro, Prefeitura Municipal de Rubinéia

capa imagem: Cia de Foto

ISSN �98�-8084 Matrícula 55.08� (dezembro de �007)

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No curso da cidadeA relação de amor e descaso das capitais brasileiras com seus rios

Por Patrícia Patrício e Luiz Fukushiro

Eles nos dão o de beber, o de comer e o caminho da viagem. Fazem nascer os aglomerados de gentes e influenciam modos de vida. No entanto, com a industrialização e o inchaço urbano, foram se degradando. No contrafluxo da destruição, a sensibilidade artística busca um renascimento simbólico para eles. Quatro metrópoles, de quatro regiões brasileiras, com fortes laços históricos e culturais com as águas que as banham, são exemplos da relação por vezes amistosa, por vezes hostil, mas nunca indiferente, entre as cidades e os rios.

Em São Paulo, reserva de utopia

O Tietê, corajoso, foi para oeste em vez de correr rumo ao mar. Graças a ele, em São Paulo convergem os caminhos do Brasil. Mas as cheias abruptas fizeram dele um personagem ameaçador. “E para ir ao centro da cidade [...] o paulista dos primeiros tempos devia atravessar constantemente pontes”, escreve Maria Luiza Marcílio em A Cidade de São Paulo (Pioneira, �97�). Caminho de chegada de aliados e invasores, associava-se a lugares insalubres por causa do regime violento das águas. “Por isso a ocupação inicial em São Paulo se deu numa colina. Não é como na Europa, onde os rios são como ruas principais”, observa Abílio Guerra, professor do curso de arquitetura da Universidade Mackenzie, São Paulo. Ele continua: “A percepção do rio como inimigo é equivocada, pois as enchentes acontecem por causa da impermeabilização do solo”.

O Tietê amigo viveu pouco, quando desportistas fruíam sua travessia a nado ou a remo, de norte a sul da cidade, entre os clubes Espéria e Pinheiros. Sua morte se decretou com as marginais Pinheiros e Tietê. “Elas são a ponta do iceberg dessa situação. É necessário um aporte imenso de recursos para transformar isso”, aponta Guerra, que fala em uma “reserva de utopia” para os rios paulistanos. Para a crítica de arte Cacilda Teixeira da Costa, “após a canalização, o rio tornou-se muito mais algo que se pensa do que uma paisagem para observar. A velocidade dos carros nas marginais determina isso”. Em �005, ela idealizou o projeto Olhe o Tietê, convidando cerca de �0 artistas visuais e poetas a criar obras para a calha de concreto. “É depressivo viver numa cidade cujo rio é um esgoto. As obras recuperariam a auto-estima dos paulistanos, pena que não conseguimos financiamento.”

reportagem

Área Livre | ilustração: Davi Calil

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Outras iniciativas trabalham a arte no rio-es-goto: o grupo Teatro da Vertigem criou, em �005, BR-3, peça encenada no leito do rio [veja entrevista na página �8]; e Eduardo Srur instalou, no fim de março deste ano, garra-fas PET gigantes em suas margens. Em �5 de janeiro de �007, outro artista, o baiano Mare-pe, fez uma intervenção no Tietê: presenteou a cidade com �� mil pérolas cultivadas em rios, jogadas da Ponte das Bandeiras, e pediu a Oxum para salvá-lo. Esses esforços criativos aumentam a reserva de utopia para os cur-sos de água paulistanos.

Belém oscila da terra à água

Belém está situada à margem direita do Guamá, que desemboca na Baía do Guajará. Essa relação terra-rio motivou a fundação do Forte do Presépio, berço da atual capi-tal, em �� de janeiro de ����. Antigo ponto de escoamento de mercadorias, o Guamá é palco e personagem cultural. “Respiramos �4 horas pura água e toda tarde chove. Essa influência é evidente na música. Moramos ao redor das águas e das matas, aprende-mos a ouvir esses sons”, diz o produtor Fabrí-cio Lobinho, do Trio Manari. O músico Fábio Cavalcante, que em seu disco Doristi (�00�) homenageou os rios paraenses, aponta: “Estão mais numerosas as referências a de-gradação e morte. Em Ourém [interior do estado], onde a destruição é recente e ace-lerada, os grupos de [dança do] boi tratam da temática ecológica”.

Portos, empresas de navegação e palafitas invadem as margens do Guamá. Por outro lado, a manifestação cultural retoma a im-portância do rio. Na semana do Carnaval, o Instituto Arraial do Pavulagem realiza o Ar-rastão do Peixe-Boi em duas partes. A primei-ra sai num barco, com um grupo tradicional de pau e corda. Depois de desembarcar na escada das docas, o arrastão percorre as ruas de Belém, até a praça do Carmo, na Cidade Velha. Um peixe-boi de aproximadamente � metros de comprimento representa o festejo. Para o grupo, esse “arrastão” aju-da os moradores a conhecer melhor os símbolos que fazem parte da cultura tradicional.

Capibaribe e Beberibe marcam a cultura e a arte recifense | imagem: Cia de Foto

Porto Alegre canta o Guaíba

A polê-mica se mantém na

capital gaúcha: o Guaíba é um rio? Segundo a geografia, tra-

ta-se de um estuário, onde deságua o Jacuí antes de rumar à Lagoa dos Patos.

Seja rio, lago ou estuário, dá a Porto Alegre um orgulho especial. Situados à margem esquerda do grande espelho d´água, os habitantes garantem usufruir o “pôr-do-sol mais bonito do mundo”. O escritor gaúcho Sinval Medina aponta a razão desse brio: “Diferentemente da costa brasileira, em que o sol se põe do lado do continente, no Gua-íba isso acontece na água. E por ser uma zona temperada, a duração do pôr-do-sol é muito maior”.

Esse “rio” no imaginário popular conquistou importância nas letras gaúchas desde o sé-culo XIX, especialmente em duas revistas de orientação romântica: O Guaíba, que circu-lou de � de agosto de �85� a �� de dezem-bro de �858, e Murmúrios do Guaíba, de janeiro a junho de �870. “O Guaíba surge como um ícone que marca a cidade como bom lugar para viver. Evidentemente que é aquele lu-gar distante da poluição da atualidade”, res-salta o professor Mauro Nicola Povoas, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), cujas dissertações de mestrado e doutorado analisaram essas revistas.

No contexto atual, a música pop critica a poluição, como em Ramilonga, de Vítor Ra-mil (“Do alto da torre a água do rio é lim-pa”), ou na negação, em Anoiteceu em Porto Alegre, dos Engenheiros do Hawaii (“Atrás do muro existe um rio/que na verdade nunca existiu”). Muito diferente do cenário da juventude de Medina, entre os anos de �950 e �9�0: “Ia de bicicleta até o rio, onde se tomava banho, praticavam-se esportes náuticos e as pessoas pescavam no cais do porto”. Isso, banhado pelo pôr-do-sol mais bonito do mundo.

Arte no delta de lama do Recife

Se os porto-alegrenses festejam seu crepús-culo, os recifenses se gabam: “O Capibaribe e o Beberibe deságuam no Recife e formam o Oceano Atlântico”.

Desde �00�, o SPA das Artes, espécie de “bie-nal” local, movimenta a cidade. Segundo

Márcio Almeida, gerente de artes visuais da prefeitura, “entre os destaques es-

tão as intervenções urbanas e o diálogo direto com a cidade,

recortada por rios”.

Por isso, o Capibaribe protago-

niza obras como Curso (�007), de Wolder Wallace. Garrafões de

água mineral presos por cordas pró-ximas à Ponte do Limoeiro criaram, se-

gundo o artista, um “confronto histórico de dois tempos, dois fluxos antagônicos d’água: o atual, poluído, semimorto, e o antigo, vivo, cristalino”. Outro exemplo de intervenção fluvial é Mapa do Ácaro (�004), de Lourival “Cuquinha” Batista. Onze mil fotos microscópicas do corpo humano for-mam um quebra-cabeça flutuante, visto do alto (tirolesa), de perto (barco), ou à mar-gem. Cuquinha também criou Varal (�00�).O artista acredita que “o rio é elemento ati-vo nessa obra: o fluxo passa por baixo e a memória das pessoas fica balançando na corda em cima”.

Apesar de fluir agonizante, o “Capiba” ain-da sustenta vida. Sua lama alimentou o movimento manguebeat dos anos �990, e décadas antes deu matéria às esculturas de Abelardo da Hora. O diretor de patri-mônio do Museu de Arte Moderna Aluísio Magalhães (Mamam), Wilton de Souza, re-sume a arte à beira dos rios recifenses: “O ar livre que respiramos carrega a fedentina da lama onde vivem caranguejos. Esses bi-chinhos têm sido alvos da cultura, por isso oferecem subsídios à sensibilidade”.

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Um lugar debaixo d´águaA relação dos moradores com o rio que inundou sua cidade

Por André Seiti

A ausência de vento e a calmaria da madrugada eram interrompidas apenas pelo constante bater das águas do Rio Paraná, invisível na escuridão. Silencioso, um grupo de pescadores fazia os últimos preparativos para embarcar, na esperança de que algumas centenas de peixes tivessem sido presas pelas tralhas armadas rio adentro. Ainda era escuro quando o barulho dos motores dos barcos anunciou a partida. Sob o caminho a percorrer, não estavam apenas milhões de metros cúbicos de água, mas também poetas, escritores e uma cidade alagada pelo Paraná.

Em vez de pedestres e carros, corvinas, tucunarés e outros peixes transitam pelas vias da antiga pequena cidade paulista de Rubinéia, que, desafiando tempo e espaço, proporciona em seus cruzamentos o encontro de Machado de Assis, Cecília Meireles, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e muitos outros, todos nomes de ruas da cidade submersa. Alagada em �970, devido à construção da usina hidrelétrica de Ilha Solteira, Rubinéia foi reconstruída com os mesmos nomes ilustres em suas ruas, e hoje a cidade velha, tomada pela água, serve de passagem para muitos pescadores que se lançam ao rio.

reportagem

O tempo e o rio

Às 5 e meia, já sob a luz da manhã do dia 5 de março, que permitia avistar o estado de Mato Grosso do Sul, um barco de � me-tros de comprimento, com dois pescadores, Milton Martins e Levi Salvino, moradores de Rubinéia, começava a recolher as redes ar-madas no dia anterior. Enquanto o primeiro puxava a tralha da água, o segundo retira-va os peixes presos. Um trabalho que exige paciência, resistência e coragem. Não são raras as vezes que Milton recolhe da água piranhas pouco amistosas, amansadas com pauladas na cabeça dadas por Levi. São � mil metros de rede divididos em seções, devida-mente distanciadas de acordo com a legis-lação pesqueira de São Paulo. No entanto, a lei não é a mesma ao longo do Rio Paraná. Nas proximidades de Mato Grosso do Sul e nos afluentes que rumam àquele es-tado, vigora outra legislação, que já apreendeu muitos barcos e redes de pescadores paulistas.

Liberto Quiozini, o Lico, pescador há mais de �� anos, chegou a ser preso em uma fiscali-zação no rio, além de ter seu barco e equipa-mentos apreendidos. Ele, que possui todas as autorizações do estado de São Paulo para pescar, estava em região mato-grossense. Apesar dos entraves jurídicos que pairam so-bre o rio, ele não titubeia: “O Paraná significa tudo para mim, porque é de lá que eu tiro o sustento da minha família. O Paraná é nossa mãe”. Lico, que constrói seus próprios barcos há cinco anos, recorda também o tempo da antiga Rubinéia, quando o rio era baixo. “A gente sente saudade daquele tempo, hoje a gente vai se adaptando.” Uma saudade semelhante toma conta de outro pescador da cidade, Juraci Tomé, o seu Jura, que, na década de �9�0, costumava fazer a travessia São Paulo-Mato Grosso do Sul a nado pelo Paraná. “O rio antes era melhor. Naquele tempo só pegava peixe grande, era caranha, pintado, curimba, piau, jaú, dourado.” Seu Jura foi um dos moradores que tiveram de abandonar sua casa por causa da inundação. “A turma da Cesp [Companhia Energética de São Paulo] chegou e a gente teve que ir em-bora.” Hoje navega diariamente por cima de sua antiga casa; ele faz parte do grupo de pescadores que vai e volta no mesmo dia, di-ferentemente daquele que passa a semana dentro do rio, em busca de grandes quanti-dades de peixe.

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Águas do Rio Paraná | imagem: Cia de Foto

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Tanto seu Jura quanto Lico dividem uma ad-miração particular pelo rio. “Gosto dele, tem que gostar, é a profissão da gente pescar”, explica seu Jura. É tanto o gosto pelo Paraná, que ele utilizava sua água para tudo: beber, cozinhar e se banhar. “Ela era limpinha, só algumas vezes que passava algum defun-to girando com a barriga inchada”, explica. “Até hoje, de vez em quando, bebo a água do rio, não tem essas frescuras.” Para Lico, a experiência de estar no Rio Paraná é única. “Lá não tem dor de cabeça, não tem proble-ma; quando você está lá, você está em outro mundo”, afirma. “O tempo parece que não passa. O relógio é o sol.” Rosimeire Quiozini, esposa de Lico e também pescadora, com-plementa: “A gente não liga o rádio, não olha nem o relógio. Lá a gente tem mais tempo de analisar as coisas bonitas, um pássaro, um animal, uma árvore”.

As mulheres pescadoras têm forte presen-ça no Rio Paraná. Rosilene dos Santos Ga-gliarde, conhecida como Binha, e o marido, Vanildo Finêncio Gagliarde, apelidado de Vando, pescam juntos há �8 anos, o mesmo período em que estão casados. “Quando a gente se casou, ele me ensinou a pescar e hoje gosto muito disso”, diz Binha. O casal, durante o período aberto à pesca, costuma permanecer cinco dias por semana no rio.

Antonio Carlos César, o Carlão, e Aparecida de Abreu, a Cida, são outro casal de pesca-dores conhecido na cidade. Em �00�, ambos viveram uma experiência delicada. Enquan-to pescavam na margem de um afluente do Paraná, foram surpreendidos por um enxa-me. Coberto de abelhas, Carlão empurrou o barco com a mulher por mais de �50 metros – uma vez que o motor teimava em falhar. Chegou a cair no rio sentindo fortes dores e falta de ar. Nesse momento, ouviu a mulher, também coberta de abelhas, chamá-lo para dentro do barco. Após conseguir ligar o mo-tor, o casal viajou por mais de 40 minutos até chegar ao desembarcadouro de Rubi-néia. Estima-se que Cida tenha sido picada por aproximadamente �00 abelhas e Carlão por cerca de 800. Apesar da experiência, ele diz ainda preferir estar em água a estar em terra. “Eu gosto muito de ficar observando aquilo que é natural, que é puro; do rio dá pra ver melhor isso”, conta. Quanto ao ata-que das abelhas, ele acredita ser uma reação do desequilíbrio ambiental causado por interferências humanas no ecossistema, como construções de hidrelétricas que mudam o curso de rios. “Aquilo que o progresso exige muitas vezes acaba prejudicando a natureza.”

Pescador Milton recolhe peixe com a rede | imagem: Cia de Foto

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A seca não seguiu

Quando saiu de Areias, interior de São Pau-lo, e chegou à fronteira com Mato Grosso do Sul há 55 anos, Gersino Alves se espantou. “Eu não conhecia rio bonito assim, quan-do cheguei na beirada do rio, deu aquele medo, parecia que era uma neblina, per-guntava: isso é água ou é fumaça?”, recorda. “Lá de onde eu venho, só tem correguinho simples.” Sem saber nadar, seu Gersino, que trabalha como ferreiro, tentou ir de barco sozinho até Aparecida do Taboado, cidade mato-grossense do outro lado do Paraná. “Fiquei girando no meio do rio sem perce-ber, até que gritaram para mim que eu não estava saindo do lugar.” Hoje, o ferreiro não se aventura mais em travessias pelo rio, ape-nas se banha em suas águas, ritual que se-gue desde que conheceu o Paraná.

Quem também se espantou no primeiro contato com o Paraná foi Expedito Martins Neto. Cinqüenta anos atrás, sentado sob uma sábia em Baturité, no Ceará, ele fez um pedido a Deus: queria um lugar longe da seca para criar os filhos. Em �9��, chegou a Rubinéia, onde comprou um terreno de dois alqueires à beira do Rio Paraná. Lá, com a mulher, Anália Martins, criou os dez filhos, com fartura de água. “Quem pediu a Deus para criar os filhos só tem mesmo que amar o rio.” Segundo ele, mais de �0 pessoas já fizeram propostas para comprar o terreno, mas nenhuma obteve sucesso. “A vida tem muita lombada, o que eu pedi a Deus eu tenho que respeitar. Aqui eu não vendo.” Atualmente, aos 80 anos, cria em seu terreno �9 cabeças de gado. Ao se aproximar do rio, localizado no quintal de sua casa, seu Expedito fica imóvel com as mãos na

cintura. “Aqui é lugar bom de viver, saiba viver.” Logo se cala e o silêncio só é

interrompido pelo constante bater das águas do Rio Paraná, visível

em sua imensidão.

Seu Expedito observa, de seu quintal, o Rio Paraná | imagem: Cia de Foto

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Na revista virtual, assista ao vídeo produzido durante a reportagem.

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Qual o rio que passouem sua vida?Artistas brasileiros contam quais os rios – reais ou imaginários – que lhes trouxeram novas experiências

Por Mariana Sgarioni

“O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.Quem está ao pé dele está só ao pé dele.”Alberto Caeiro

Ele pode ser estreito, tímido, meio ressecado e até um tanto turvo. Pode estar maltratado, malcheiroso. Ou ainda existir somente em nossa cabeça. Não interessa: o rio da nossa aldeia sempre será o mais belo, como bem lembra Fernando Pessoa. Até porque nós só enxergamos beleza naquilo que guarda um significado especial para nós – mesmo que esse significado, muitas vezes, não faça sentido nenhum para quem está de fora. Veja estes versos, por exemplo: “Quando vi você passar/Senti meu coração apressado/Todo o meu corpo tomado/Minha alegria a voltar/Não posso definir aquele azul/Não era do céu/Nem era do mar/Foi um rio que passou em minha vida/E meu coração se deixou levar”. Dá para imaginar que esse rio, fonte de inspiração de Paulinho da Viola, seja nada menos do que uma escola de samba? Sim, é. A Portela, no caso.

Pois são vários os rios que passam em nossa vida. Alguns deixam tantas marcas que chegam a mudar nosso curso. O artista visual Arthur Omar, por exemplo, mudou toda sua visão de mundo quando caiu sem querer nas águas do Amazonas e quase morreu afogado. Já o também artista visual Emanoel Araújo conheceu o desencanto do mundo ao ter uma experiência semelhante de quase afogamento – só que na infância, no pequeno rio que corta sua cidade, Santo Amaro da Purificação (BA).

Imponente como o Amazonas, poluído como o Tietê, bucólico como um córrego de vilarejo. Ou tão apaixonante que arrebanha devotos desenfreados, como o São Francisco, que vem rendendo tantas discussões. Não importa. Onde há água, há vida. E, onde há vida, há história para contar.

Portanto, prepare-se para conhecer algumas delas. Enquanto isso, tente lembrar qual foi o principal rio que passou em sua vida. Suas lembranças com certeza lhe trarão gratas surpresas.

entrevista

“O rio da minha vida é o Guaíba, que banha Porto Alegre. Aliás, não é bem um rio. A definição do Guaíba foi, durante muito tempo, objeto de apaixonada discussão, dessas discussões tão típicas de Porto Alegre e que às vezes atravessam décadas, perpetuadas nas mesas de bar, nas rodas de chimarrão. Na verdade, o Guaíba é parte de um verdadeiro complexo hidrográfico com numerosas ilhas, entre elas a Ilha das Flores, cenário de um pungente documentário sobre catadores de lixo, assinado pelo cineasta Jorge Furtado [em�989]. Confluem aqui cinco rios: Jacuí, Caí, Taquari, Gravataí e Sinos. Cinco rios, como os dedos de uma mão – diz-se que o município próximo a Porto Alegre, Viamão, tem esse nome exatamente por causa disso, porque de lá pode-se dizer ‘vi a mão’. Desde criança eu freqüentava as praias do Guaíba, que não são exatamente as paradisíacas praias nordestinas, mas era o que tínhamos. Ali andávamos de barco, ali pescávamos. Parte do Guaíba foi aterrada, e a esse lugar – a ‘Brizolândia’ (homenagem ao prefeito de então, Leonel Brizola), que à noite se apresentava deserta, às vezes com denso nevoeiro – a gente ia, nos velhos carros de nossos pais, namorar. Mais: o crepúsculo sobre o Guaíba é, segundo os porto-alegrenses, o mais belo do mundo. Uma vez o poeta Mario Quintana levou o escritor e jornalista carioca Marques Rebelo para ver o crepúsculo do alto do Morro Santa Teresa e descreveu-o como só um poeta pode fazê-lo. Marques Rebelo não dizia nada. Voltando ao Rio de Janeiro, escreveu em sua coluna de jornal: ‘Eles não têm nada para mostrar, então ficam falando daquele crepúsculo deles’. Disse Fernando Pessoa: ‘O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia. Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia. Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia’. Troquem ‘o rio que corre pela minha aldeia’ por Guaíba e vocês entenderão os porto-alegrenses.”

Moacyr Scliar, escritor gaúcho

Rio ou não, o Guaíba é uma das principais fontes de inspiração dos gaúchos | imagem: Luís Osório Ritter Ribeiro

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“Os rios da minha vida foram dois. Um era o menor rio do mundo. O outro, o maior de todos. No fim, os dois se uniram, um fazendo foz no outro. Na casa onde passei a infância, passava um córrego. Uma miniatura de rio. Margens desenhadas, pedras no fundo, ruído de água, uma pequena curva, e desaparecia sob o muro que dava para a outra casa. Ouvir o córrego, o murmurinho das miniondas: iniciação à música. E havia a palavra ‘córrego’, mágica, motivo de orgulho, ninguém no colégio no Rio de Janeiro conhecia, ‘no meio da viagem tinha um córrego’: iniciação à literatura. Só eu sabia o que era um ‘córrego’: um rio para sentar dentro. Muitos anos depois, fui levado ao Rio Amazonas, para uma série de fotos, que aceitei por aceitar. Nunca desejei o Amazonas. Sartreano até a medula, sempre achei a natureza uma coisa para os outros, não para mim, que a considerava o inferno, geralmente verde. Mas, de repente, cheguei ali. O Rio Amazonas estava na cheia, não se viam as margens nem coisa alguma no mundo, tudo era água, absoluta. Estar ali, um puro fluxo através do líquido, barrento, prateado, refletindo as nuvens do céu. Aquele cheiro de água doce, que cola no nariz, tão diferente do mar. Nunca desejei o Amazonas, e agora, no Rio Amazonas, parei de desejar qualquer outra coisa. Quando o nosso barco virou e caímos na água durante uma tempestade, pensei que o rio da minha vida, recém-descoberto, iria se transformar no rio da minha morte. Mas, com o desejo estoicamente amortecido, isso não tinha a menor importância. Quando fui recolhido por uma lancha providencial, uma parte de mim se recusou a sair da água, ou pelo menos pensou duas vezes. Acredito que estou lá até hoje, uma pequena parte, vivendo uma vida própria, num rio particular. O rio é meu. Eu defendo esse rio, não porque ele seja um patrimônio da humanidade, ou porque esteja ameaçado pela cobiça internacional, mas porque ele me pertence. Ele é totalmente meu porque quando estive nele aprendi a não querer ter absolutamente nada. O fluxo não sou eu. Eu é que entro no fluxo.”

Arthur Omar, artista visual autor do livro O Esplendor dos Contrários (CosacNaify, �00�), com fotos do Rio Amazonas

“Não te-nho como não pensar imediatamente no Rio Subaé, o rio que corta minha cidade, Santo Amaro da Purificação, na Bahia. Nosso rio já foi muito cantado por Caetano e Bethânia, na linda canção Purificar o Subaé. Isso porque foram poluindo nosso rio com o passar dos anos – ele foi se transformando em algo perigoso para todos que tanto o amavam. Fui me afastando pouco a pouco dele. Construíram uma fábrica de chumbo ao lado do Subaé, imagine. Justo ao lado do rio da minha infância. Era nele que eu brin-cava, era com ele que eu me fascinava. Foi ele que me deu também o primeiro susto, que me chamou para a realidade, que me mostrou o desencanto do mundo: certa vez, saltei dentro dele e minha cabeça ficou presa em um de seus bancos de areia. Tive dificuldades para me soltar. Era como se ele estivesse me chamando a atenção, não sei. Como todas as minhas referências de in-fância, acho que o Subaé aparece, sim, nas minhas obras. Essas referências ficam num espaço de memória que a gente resgata na criação. As curvas, os ângulos: estão todos ali, representados em tudo o que faço.”

Emanoel Araújo, artista plástico baiano

“Meus rios não são exatamente rios. São mares. Um dos que mais me atraíram e me fizeram repensar boa parte do meu trabalho foi o de Ushuaia, na Patagônia [Argentina]. Ele mostra uma experiência de fim de mundo. Você sabe que a partir dele não tem mais terra, tudo o que existe no mundo está submerso, debaixo d’água. A força da paisagem ali é impressionante, tudo está condicionado pela natureza. Tem também uma situação geográfica bastan-te louca – tudo é muito perto e ao mes-mo tempo superdistante. E há um silêncio ruidoso, um paradoxo insólito de ver toda aquela imensidão e saber que logo ela vai deixar de existir, pois é gelo. As cores são as minhas favoritas, numa paleta que eu nun-ca tinha visto: branco, azul, tons de laranja e verde, tudo numa luz muito particular. Depois disso, uma travessia entre Aracaju (SE) e Mangue Seco (BA) também me trou-xe as mesmas cores, só que muito mais for-tes. As águas eram mais férteis. A partir daí, comecei a desenvolver trabalhos de vídeo e foto, criando lugares que não existem – mas poderiam existir. São lugares possí-veis. Mixei, por exemplo, a Patagônia com Aracaju. Virou Patacaju.”

Giselle Beiguelman, artista multimídia, autora do curta Rios de Paulo (�008), sobre os rios de São Paulo

Série Patacaju [Projeto Naturezas Mornas], de Giselle Beiguelman: rios que são mares | imagem: arquivo da artista

Às margens do Amazonas, vida e quase-morte | imagem: Cia de Foto

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“Meu rio é o Tietê. Apesar de morar em São Paulo, o paulistano não conhece o Tietê de verdade. Pois foi esse meu trabalho, mos-trar o lugar ao construir um espetáculo que pegava 4,5 quilômetros de extensão do rio. Para isso, eu tinha que estar perto dele. Foram meses e meses de uma construção de relação. Havia imprevistos, como o cheiro forte, a sujeira, que nos obrigavam a tomar cuidados, vacinas. Até a hora em que perce-bi o rio como um organismo vivo, que esta-va, ao mesmo tempo, aberto à nossa obra, mas também nos recusando, dificultando nosso trabalho. Sem dúvida, foi uma expe-riência que marcou minha vida. Imagine es-tar num lugar que é um não-lugar. É um rio que não é um rio, que ninguém enxerga – é como se ele não existisse para quem mora em São Paulo. Mas, ao estar dentro dele, é possível perceber que, sim, ele é um rio. Que corre devagar, tem um tempo oposto ao das marginais que estão ao lado, com uma vida expressa. O Tietê é diferente, é lento. E está doente, cheio de lixo, garrafas plásticas. Ele representa uma veia doente que transpassa a cidade. E essa doença foi causada por nin-guém menos do que nós mesmos.”

Antônio Araujo, diretor teatral que criou o espetáculo BR-3 (�005), encenado no Rio Tietê

“O rio da minha infância,

que alimenta meu imaginário e que me alimenta, é o Rio Negro.

Mesmo morando distante dele, me vem à mente o tempo todo, chego a

sonhar com ele. Nasci em Manaus, a �00 metros do Rio Negro. Como é de imaginar, toda a cidade tem uma relação muito forte com ele, a vida gira em torno do rio. Euclides da Cunha dizia que o rio é a estrada para toda a vida, e eu concordo. No caso do Rio Negro, ele carrega a memória da Amazônia, de Manaus, a história indígena e de toda a região. É por isso que ele está presente em toda a minha literatura, de cabo a rabo. No meu último romance [Órfãos do Eldorado, Cia das Letras, �008], ele é o personagem principal. Sempre que vou a Manaus, a pri-meira coisa que faço é pegar uma voadei-ra e sair para navegar. Contemplar, pensar. Sabe, destruíram muito a minha cidade, mas deixaram o rio. Deve ser porque ele é pode-roso, assim como todos os rios da Amazônia – conheço gente que vem de longe, muito longe, para conhecer essa força. Quem já viu sabe o que é.”

Milton Hatoum, escritor amazonense

“Se for falar em um rio idealizado, meu rio é o Rio de Janeiro. Já se for o real, é o Rio Pinheiros. O Rio de Janeiro é o lugar em que eu gostaria de viver – mas, na realidade, vivo às margens do Pinheiros, esse esgoto a céu aberto, feio, que cheira mal, poluído. Infelizmente. O Rio me ensinou que a alegria pode, sim, ter uma dimensão profunda. Explico: fui educado em uma escola francesa, que nos mostrava, por meio de escritores densos, como Sartre, por exemplo, que a alegria é algo raso, superficial. O Rio está aí para mostrar justamente o contrário. A bossa nova, o samba, o Asdrúbal Trouxe o Trombone. Isso é alegria e está longe de ser superficial. É lógico que tem também o outro lado, o lado excludente, como se ninguém tivesse o direito de ser triste, pelo menos de vez em quando. O Rio Negro também me impressionou bastante. Ele parece um chá-mate, é forte, não tem nem mosquito por perto. Para filmar [o documentário São Gabriel da Cachoeira-San Felipe, �998], ficamos em uma cabana, no meio do nada, só com o rio ao nosso redor, um volume incrível de água. Tive a sensação de um meio-termo de uma viagem interplanetária.”

Carlos Nader, videoartista, dirigiu o documentário São Gabriel da Cachoeira-San Felipe, filmado na região amazônica

Na revista virtual, veja conteúdo audiovisual com os entrevistados.

O Negro encontra o Solimões: estradas para toda a vida | imagem: Cia de Foto

A dimensão profunda da alegria carioca | imagem: Helio Herbst

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Fíti saci-pererêA história do pescador da qual ninguém duvida

Por Mariana Lacerda

Era noite quando seu Gilinho resolveu, com um compadre, sair de canoa para pescar com rede. Nada sério, só diversão, pegar uns peixes que, pressentiam, corriam por ali. Estavam mais ou menos nas águas em frente da casa de seu sítio, na Prainha, no Mar de Dentro de Cananéia, litoral norte de São Paulo, quando ouviram o barulho de um chute em uma bola. Claro, vinha dali, do campinho próximo, pensaram. “Tão jogando futebol a esta hora? Vamos ver.” Chegaram lá, olharam e não viram nada nem ninguém. Nenhum barulho. Mas um canto baixo, fino, surgiu, dizendo aguda e pausadamente: “Fíti saci-pererê”. Seu Gilinho não se assustou. Só pensou: “é o saci”. Cessaram a pescaria e voltaram a casa. O dia seguinte amanheceu e seu Gilinho foi despescar.

Nascido Egílio Francisco Xavier, mesmo nome de seu avô, daí por que é chamado sempre no diminutivo, seu Gilinho não foge à regra: é filho de pescador. Cresceu próximo a Cananéia, num sítio na colônia de Santa Maria, “bem grandinho”, diz ele. Seu pai casou, “e a gente caiu no mundo”, navegando pelos braços da região que os cientistas chamam de Complexo Estuarino Lagunar de Iguape, Cananéia e Paranaguá: um conjunto de ilhas e lagoas formado pela influência das águas do Rio Ribeira de Iguape, que, após terem descido as escarpas da Serra do Mar e percorrido aproximadamente 470 quilômetros, encontram o oceano, fertilizando a maré, formando prainhas, fazendo nascer peixes, camarões e ostras e fortalecendo a pescaria e a cultura caiçara.

Foi nesse lugar que seu Gilinho, então com �� anos, saiu para despescar pela primeira vez. Despescar porque em Cananéia se montam no mar cercos de taquara – uma madeira da Mata Atlântica que serve para ser mergulhada na água salobra do estuário. Fincada na terra, dá o sustento à armadilha para o peixe. Quando a maré enche, “o bicho entra e não consegue sair”, diz o pescador. Na maré baixa, então, se despesca com a ajuda de uma rede. Desde menino, ouvia as histórias de seu pai e de todos os pescadores sobre o saci. Também ouvia, sempre à noite, o saci. Mas nunca deu de cara com ele. Nem teve medo. “Medo eu tenho é de cobra.” Acostumou-se a ouvir de tempos em tempos o tal “fíti saci-pererê”. Quando ele chega, dizem, é só não mexer e continuar a fazer o que se está fazendo.

reportagemQuando casou com dona Martinha de Mo-raes Xavier, há 5� anos, após economizar as sobras da venda do peixe, foi morar no sítio da Prainha. “Eu casei com ela e ela casou co-migo”, sempre diz. A casa do sítio foi ergui-da por seu avô que, para compor as pare-des largas e fortes, usou a mistura comum na época para construção: óleo de baleia e pó de ostra. Tempos depois, seu pai, João Simões Xavier, comprou a casa, que aca-bou ficando com seu Gilinho. Ali ele teve com dona Martinha dez filhos. Quatro de-les morreram. Estão no mundo Joãozinho e Gilmar, e as meninas Zecreide, Zeneide, Zeli e Zilda. “Zecreide foi ele quem escolheu”, diz dona Martinha.

Quando moravam no sítio, além de despes-carem no cerco em frente da casa, seu Gili-nho e dona Martinha colheram arroz e man-dioca – que transformaram em farinha –, mo-eram o café ali colhido e criaram galinhas. Tinham tudo de que precisavam e, quando faltava algo, trocavam com o sitiante ao lado. Também vendiam o peixe, sendo a época mais farta a do inverno, quando as tainhas subiam da Lagoa dos Patos, no Rio Grande do Sul, rumo ao cerco de seu Gilinho, que, ao despescá-las, deixava tudo na cidade de Cananéia, entreposto de pesca.

Na vida no sítio, dona Martinha e seu Gili-nho nunca encontraram nenhum pote de ouro. Muito embora todo mundo conte em Cananéia que um certo gaúcho de nome Antônio Peres tirou, uns tempos atrás, um tacho cheio do metal da Ilha do Canudal, a qual, diziam, era assombrada. “Os antigos sempre falavam que era possível encontrar ouro”, diz dona Martinha. Ora, ora, claro que era, pois durante os séculos XVI e XVII a pla-nície litorânea foi esquadrinhada, especial-mente por onde corre o médio e o alto Ri-beira, por indomáveis rastreadores de ouro, na época em que Minas Gerais crescia. Po-tes e potes enterrados em pés de árvores, sonhos e sonhos com familiares mortos

que, numa rápida aparição noturna, indi-cavam os caminhos e as cruzadas da

riqueza. “E ainda dizem que pesca-dor é que conta história”, diz

seu Gilinho.

O ritual de despescar | imagem: Cia de Foto

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Mas e o saci? Bom, foram �5 anos montan-do o cerco de taquara, esperando a maré encher e despescando. Muitas vezes, à noite, enquanto em silêncio fazia o serviço, sentia a presença dele. Mas, ver mesmo, seu Gilinho nunca viu. Só ouviu. “Mas, se existe, é porque alguém já viu.” O saci anda com sua única perna pela Mata Atlântica, isola-da e protegida pelo Mar de Dentro de Ca-nanéia. Usa ainda o gorrinho vermelho, tal qual aquele saci das histórias de Monteiro Lobato. “É só não mexer com ele que nada acontece.” Não se tem notícia de alguém que tenha se perdido ou se machucado por causa dele. Já por cobra venenosa... São duas espécies na região que deixam esca-par veneno: a jararacuçu e a urutu-cruzeiro. “Medo, medo mesmo, só de cobra”, diz seu Gilinho. Logo ele que ao se barbear sempre deixa escapar sangue: “Se não tiver sangue, não valeu”. Medo, sim, mas nada que pudesse impedir seu Gilinho de fazer na vida o que quis fazer: colher, cuidar do sítio, das galinhas, da fari-nha de mandioca, serviço, serviço, serviço. O que o aquietou mesmo foi o avançar da idade e, com ela, dois derrames. Por isso, o pescador, hoje com 8� anos, e sua mulher

passam boa parte do tempo em sua casa na cidade de Cananéia, e sentem sau-

dade da casinha do sítio, em cujo quintal não há mais galinhas

nem cachorros.

Uma partida de futebol

Quando o verão abriu um sol forte, o filho Joãozinho levou seu Gilinho e dona Marti-nha até a Prainha, distante �0 minutos de Cananéia, percurso feito em voadeira. Foram na sexta-feira, dia �9 de fevereiro, à tarde. Quem procurou seu Gilinho no dia seguin-te não o achou. Perguntando aqui e ali pela beira do pequeno porto da cidade foi fácil saber que o casal não estava. Pois a cena do pescador e sua mulher subindo na voadeira parece ter ficado bem guardada na cabeça de quem estava no cais.

No fim de semana na Prainha, seu Gilinho fez peixe ensopado, sua especialidade, para co-mer com farinha. Ficou quieto vendo as coi-sas do sítio. O cerco de taquara já não existe, e os meninos do lugar é que trouxeram o peixe fresco. Os dois só voltaram no entar-decer do domingo, dia � de março: o Corin-thians ia jogar com o Palmeiras e no sítio não há energia elétrica. Às �7 horas, seu Gilinho já estava no sofá de sua casa em Cananéia. Findo o jogo, televisão desligada, netos e bisnetos passando e pedindo a bênção ao avô que mal acabara de chegar da Prainha. Pernas cruzadas, boné preto do Timão sobre os joelhos e nenhum comentário sobre o úl-timo resultado do Campeonato Paulista.

“A esta altura, Gilinho deve estar triste”, ou-viu-se no Carijó, do outro lado da cidade, lu-gar onde ficam os estaleiros e se juntam os pescadores para jogar conversa fora quando o sol começa a baixar. No segundo tempo do clássico, o Palmeiras bateu o Corinthians. Foi o único grito de gol que se ouviu na cida-de naquele domingo.

“Mas a vida tem altos e baixos, como diz o ditado da televisão”, comenta seu Gilinho. Já se esqueceu do jogo e fala é do conhecimen-to que foi “pegando com a vida”. Lembra-se que, quando menino, pescando, puxando a rede com o avô paterno, o mesmo que lhe emprestou o nome, o viu tropeçar e tombar sobre a água rasa. “Fiquei rindo, coisa de me-nino.” Agora, findo o jogo na TV, pernas cru-zadas, seu Gilinho lembra-se dessa passagem. “A gente aprende por conta da gente”, diz. “E a vida é um espelho.” Com a idade, ele acha que vai tropeçar a qualquer momento e cair.

Conversa com dona Martinha, à sua frente, e re-pete: “Eu me casei com ela e ela se casou comigo”. Os dois reclamam da saudade do sítio e do fato de não po-derem mais, quando bem entenderem, ir sozinhos até lá. “Não dá mais”, diz a mulher. “Fiquei dependente, quem diria...”, diz seu Gilinho. Já foram tantos anos colocando peixe na mesa de tanta gente que pode se permitir o direito ao descanso, não? “Sim, acho que sim.” Mas falemos do saci: viu saci no fim de semana? “Não. Mas lembrei de quando ouvimos o barulho que vinha do lado do campinho. E, quando chegamos lá, não havia jogo nenhum. Era ele. Só ouvimos o ‘fíti saci-pererê’ .”

Seu Gilinho: “A gente aprende por conta da gente” | imagem: Cia de Foto

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Rio abaixo, rio afora, rio adentro: os riosOs cursos d´água na construção simbólica do ser humano

Por Micheliny Verunschk

Quando no filme Diários de Motocicleta (�005) o personagem Ernesto Guevara se lança ao Rio Amazonas em direção ao leprosário de San Pablo, o diretor Walter Salles dialoga com um dos simbolismos mais caros à humanidade: as águas do rio como elemento transformador do indivíduo, atuando na passagem entre dois estágios da vida – um que representa o passado, o qual se deixou para trás, e outro que entre o agora e o amanhã se apresenta como devir.

Mais que um espaço geográfico, o rio existe como um complexo de imagens mobilizadoras nos planos histórico, cultural, espiritual e, como não poderia deixar de ser, psicológico. Por sua natureza móvel, por seu curso inexorável, pelo motor que trabalha entre a água e a terra que se deposita no leito, o rio se configura como espelho da humanidade, oscilando entre a devoção sagrada, o aproveitamento utilitário e a representação artística.

De modo que o rio é, talvez, uma das mais antigas simbologias que existem. Um simbolismo não nasce do nada. Ele surge porque está ligado ao uso prático da vida, às necessidades de subsistência. Os rios servem ao homem utilitariamente e este os transforma simbolicamente ao juntar o que nos cursos d´água há de fecundante e de fluidez e ao construir para si imagens de vida e de morte.

História em comum

Na Antiguidade muitos rios foram objeto de culto, fossem eles reais ou míticos. Sua importân-cia era tamanha que até nomeou nações, como é o caso da Mesopotâmia, que significa, literal-mente, entre dois rios. Localizada entre o Tibre e o Eufrates, a Mesopotâmia existiu econômica e socialmente em função do ciclo dos rios, assim como o Egito entrou para a história pela frase célebre do historiador grego Heródoto, que o qualificou como “uma dádiva do Nilo”.

Na Grécia não se atravessava um rio sem antes executar um ritual de louvor e purificação, talvez por temor e respeito a Caronte, o barqueiro que se encarregava da travessia das almas após a morte. Depois de chegar ao Inferno, o passageiro era julgado por seus atos. Caso fosse condenado teria de enfrentar um dos quatros rios das regiões infernais: Aqueronte, cujo flage-lo era a dor; Cocito, as lamentações; Flegetonte, cujas águas provocavam queimaduras; e, por fim, o mais conhecido deles, Lete, o rio do esquecimento. De caráter ambíguo, este mesmo rio também preparava para a vida as almas que iriam renascer. Se na cultura grega as imagens dos rios do Inferno são tão fortes, são tão ou mais vigorosas as imagens dos rios do Paraíso, que vertem leite e mel, na cultura judaico-cristã.

artigo

Área Livre | ilustração: Ricardo Pennino

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Aliás, é de morte e re-nascimento que tratam os episó-

dios de Jesus e seu batismo por João Batista no Rio Jordão; e de Osíris, o deus

assassinado dos egípcios, que vaga pelo Nilo numa barca funerária. Nos dois casos o rio exerce aquele mesmo poder de transforma-ção de que se falava anteriormente e opera na vida e na morte com a mesma intensida-de, de forma que uma e outra se confundam ou, antes, misturem suas águas, partilhando uma da natureza da outra. Assim, o batismo não deixa de ser uma morte para um mundo anterior, e a morte uma preparação para uma nova existência. De certo modo, convergem para a mesma experiência o Guevara de Wal-ter Salles, Jesus e Osíris.

Damas das águas, iaras e santas

A morte no rio tem um apelo estético ime-diato, certeiro. A imagem de alguém que se joga nas águas profundas já foi explorada ao extremo nas artes. O personagem Ofé-lia, de Shakespeare, é um exemplo clássico dessa entrega desmedida às águas. Para o filósofo Gaston Bachelard, no livro A Água e os Sonhos (Martins Fontes, �00�), Ofélia é a representação do devaneio no meio aquáti-co e ela mesma se torna um ser do rio, uma dama das águas – ou o rio é que se transfor-ma, fluido, na cabeleira derramada da moça. Esse caráter de languidez faz do rio de Ofé-lia um rio de águas quase paradas, misto de encantamento e passividade, um rio morto como o personagem, despido do caráter erótico e pulsante que, em geral, se associa às águas correntes.

Uma contrapartida de Ofélia pode ser encontrada na mitologia mexicana. Uma das len-das mais populares do país é La Llorona (A chorona), uma mulher que após ser abandonada pelo marido lança seus dois filhos pequenos e a si mesma na correnteza de um rio. Sua alma sobe aos céus mas é impedida de entrar sem que antes resgate as almas dos filhos. Ela retorna e vaga, até hoje, nessa busca pelas margens solitárias do cair da tarde. Por isso, crianças nunca devem estar desacompanhadas à beira dos rios, pois La Llorona pode confundi-las com os filhos perdidos e arrastá-las para o fundo das águas.

A presença do feminino nas águas é constan-te na mitologia de vários países, especialmen-te nas culturas celta e gaulesa. Não por acaso, grande parte dos rios europeus possui nomes derivados de substantivos femininos, como é o caso do Sena, que corta Paris. Sena, la Seine em francês, vem de Sequana, deusa gaulesa protetora desse rio e para quem eram trazidas oferendas, desde frutas e pães até dinheiro. Ex-votos de membros, cabeças e até de corpos completos eram oferecidos a essa divindade de grande poder curativo e regenerativo. Não raras vezes os rios receberam também sua cota de sacrifícios humanos.

A natureza feminina dos rios é corroborada pela psicanalista junguiana Clarissa Pinkola Estés. Autora do livro Mulheres que Correm com os Lobos (Rocco, �994), ela afirma que nas regiões hispânicas do sudoeste nor-te-americano o rio é a Grande Dama que, no intercurso sexual com o solo, acaba por fecundar e fecundar-se. Na acepção des-sas culturas, o rio nunca poderia ser uma

imagem masculina posto que é uma das representações da Grande Deusa, de

seios fartos e ancas largas, venerada desde tempos pré-históricos.

Para a estudiosa e psicoterapeuta Lucy Coe-lho Penna, autora de Pauaxipuna (no prelo) e Dance e Recrie o Mundo (Summus, �99�), o ar-quétipo da Senhora das Águas é marcante na nossa cultura mestiça. Ele articula três grandes manifestações que, juntas, compõem uma imagem de devoção do brasileiro ao culto das águas: Nossa Senhora de Aparecida, padro-eira do Brasil; Nossa Senhora de Nazaré, pa-droeira do Pará; e Iemanjá, deusa iorubá que é sincretizada tanto com a Maria cristã como com a Yara, deusa indígena que governa as águas doces (que também se corresponde com Oxum, outra senhora iorubá a governar o meio líquido).

Para a autora, a força simbólica dessas enti-dades está na base da identidade nacional e, de certo modo, se alinha com os grupos ét-nicos formadores da, por assim dizer, cara do nosso povo. De outro modo, como explicar a sede e o amor do brasileiro pela Senhora das Águas? Afeto que, infelizmente, não se traduz em preservação ambiental dos mananciais hídricos, conforme ressalta a autora.

O rio corrente da literatura

Praticamente todos os autores escreveram sobre o rio. Basta lembrar de O Barco Bêbado, de Arthur Rimbaud; Finnegans Wake, de Ja-mes Joyce; A Terceira Margem do Rio, de João Guimarães Rosa, para citar alguns exemplos. Sem falar na aproximação de duas culturas, a espanhola e a brasileira, que João Cabral de Melo Neto faz por meio dos rios Guadalquivir e Capibaribe, no poema A Entrevistada Disse, na Entrevista. Ele mesmo, João Cabral, foi um autor de rios por excelência. Num de seus muitos poemas nessa temática, constrói uma das imagens mais belas e pertur-badoras da poesia: “Aquele rio/era como um cão sem plumas”.

Finnegans Wake, a obra-prima,

indecifrável para alguns, do es-critor irlandês James Joyce, principia

com uma evocação ao rio, riverum, que o poeta Augusto de Campos traduz como

riocorrente. No capítulo oitavo uma enchen-te caudalosa de cerca de 700 nomes de rios invade as páginas e sob essa força criadora espantosa o autor apresenta uma infinidade de novas palavras. Capitaneado pelo Rio Li-ffey, de Dublin, essa passagem da literatura universal é uma experiência profunda de transcendência, genialidade e técnica.

O caráter de portal para outra realidade que o rio carrega simbolicamente está muito bem orquestrado em A Terceira Margem do Rio, de Guimarães Rosa. No conto, um pai constrói para si uma canoa e abandona a família para viver navegando rio abaixo, rio acima. A fa-mília, perplexa com a atitude do patriarca, entre idas-e-vindas, raiva e decepção, acaba por tomar um rumo, com exceção do filho, que contempla essa escolha e com ela dialo-ga por anos a fio, navegando, ele mesmo, na presença/ausência do pai, numa reconstitui-ção da história pessoal de ambos, que passa pelos afluentes da memória.

O rio de Rosa, como todos os rios, confluem para o rio corrente que trazemos sob a pele. O rio, como o sangue, circula em nós, nos é vital. Talvez por se configurar como uma imagem especular de nós mesmos e de nossa busca pelo absoluto, ele exerça tanto fascínio e reverência, ou como bem traduz a poeta americana Emily Dickinson: “Meu rio corre até ti:/Mar azul, aceitas-me?/Meu rio espera resposta./Ó mar, vê se me gostas. Eu te trarei regatos/de escondidos regaços–/Dize, mar, vais-me levar?”.

Micheliny Verunschk é historiadora e es-critora. Autora de Geografia Íntima do Deserto (Landy, �00�).

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“Jaguaribe: o bicho que deu nome ao rio, o rio que deu nome ao bairro, o bairro que deu nome ao grupo.” A frase do cantor e compositor Chico César resume o percurso do coletivo Jaguaribe Carne, surgido em �974, às margens do Rio Jaguaribe, na capital paraibana, João Pessoa. Criado pelos irmãos Pedro Osmar e Paulo Ró, o grupo mobilizou a cena local com sua proposta multimeios muito antes de a arte contemporânea impor como tendência a mistura de linguagens na produção de obras artísticas.

No site Itaú Cultural a revista traz, como conteúdo exclusivo, resenha sobre o legado do grupo, que agregou a geração de artistas nordestinos formada, entre outros, por Bráulio Tavares, Chico César, Elba Ramalho, Elomar, Escurinho, Lenine, Lula Queiroga, Vital Farias e Xangai. Trailer do documentário Jaguaribe Carne – Alimento da Guerrilha Cultural (Fabia Fuzeti e Marcelo Garcia, �007) também pode ser acessado.

A versão on-line da revista traz ainda o conto inédito A Peleja, da escritora Micheliny Verunschk, e galeria com ilustrações realizadas para a Área Livre desta edição da Continuum Itaú Cultural. Somam-se às matérias aqui publicadas ensaios fotográficos e acesso ao conteúdo audiovisual.

A revista também está presente na Rádio Itaú Cultural, outra área do site do instituto: ouça, no programa Estéreo Saci, no ar a partir de � de abril, músicas ligadas ao universo dos rios.

Atualizações serão feitas durante o mês – entre elas, estão matérias enviadas pelos leitores. Acesse www.itaucultural.org.br/revista e participe!

on-line

Frame do documentário Jaguaribe Carne – Alimento da Guerrilha Cultural

Área Livre | ilustração: Alexandre Abiuro

ON-LINE

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Área Livre | ilustração: Cristiano Trindade aka GOTA

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