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 ITALO CALVINO 

COLEÇÃO DE  AREIATradução:

MAURÍCIO SANTANA DIAS

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Obras do autor publicadas pela Com-panhia das Letras

Os amores difíceis O barão nas árvores O caminho de San Giovanni O castelo dos destinos cruzados 

O cavaleiro inexistente  As cidades invisíveis  As cosmicômicas O dia de um escrutinador 

 Eremita em Paris  Fábulas italianas Um general na biblioteca Marcovaldo ou As estações na cidade 

Os nossos antepassados  Palomar  Perde quem ca zangado primeiro Por que ler os clássicos 

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Se um viajante numa noite de invernoSeis propostas para o próximo milênio— Lições americanas 

Sob o sol-jaguar Todas as cosmicômicas  A trilha dos ninhos de aranhaO visconde partido ao meio

Contos fantásticos do século XIX (org.)

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SUMÁRIO 

 Apresentação

PARTE 1. EXPOSIÇÕES. EXPLORAÇÕES

1. Coleção de areia

2. Como era novo o Novo Mundo3. O viajante no mapa

4. O museu dos monstros de cera

5. O patrimônio dos dragões6. Antes do alfabeto

7. As maravilhas da imprensa marrom

8. Um romance dentro de um quadro

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9. Digam com os nós

10. Escritores que desenham

PARTE 2. O RAIO DO OLHAR 

11. Em memória de Roland Barthes

12. As efêmeras na Fortaleza13. O porco e o arqueólogo

14. A narrativa da Coluna de Trajano

15. A cidade escrita: epígrafes e grates

16. A cidade pensada: a medida dos es-paços

17. A redenção dos objetos

18. A luz nos olhos

PARTE 3. RELATOS DO FANTÁSTICO

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19. As aventuras de três relojoeiros e detrês autômatos

20. A geograa das fadas

21. O arquipélago dos lugares imaginá-rios

22. Os selos dos estados de ânimo

23. A enciclopédia de um visionário

PARTE 4. A FORMA DO TEMPO

 Japão24. A velha senhora de quimono violeta

25. O avesso do sublime

26. O templo de Madeira

27. Os mil jardins28. A lua corre atrás da lua

29. A espada e as folhas

30. Os iperamas da solidão

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31. Eros e descontinuidade

32. A nonagésima nona árvore

 México

33. A forma da árvore

34. O tempo e os ramos

35. A oresta e os deuses

 Irã 

36. O mihrab

37. As chamas em chamas38. As esculturas e os nômades

Nota

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 APRESENTAÇÃO 

 A primeira edição de Coleção de 

areia saiu em outubro de 1984 na série Saggi blu da Editora Garzanti. Ao con-trário do que vinha ocorrendo com os li-vros até então publicados pela Einaudi — quase sempre acompanhados, quan-do apareciam, de entrevistas e autoco-mentários —, Calvino limitou-se a escre-ver na quarta capa do volume a breve 

apresentação anônima que aqui repro-duzimos.

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De Paris, Italo Calvino envia de vezem quando ao jornal em que colaboraum artigo sobre alguma exposição insó-

lita, que lhe permite contar uma histó-ria por meio de um desle de objetos:antigos mapas-múndi, manequins de ce-ra, tabuletas de argila com escritas cu-

neiformes, gravuras populares, vestígiosde culturas tribais e assim por diante. Alguns traços da sionomia do escritoremergem dessas páginas “de ocasião”:

onívora curiosidade enciclopédica e dis-creto afastamento de qualquer especia-lismo; respeito pelo jornalismo como in-formação impessoal e prazer de conar

as próprias opiniões a observações mar-ginais ou de escondê-las nas entrelinhas;meticulosidade obsessiva e contempla-ção desapaixonada da verdade do mun-

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do. Além de dez dessas crônicas de pas-seios pelas salas de galerias parisienses,Coleção de areia   reúne outras páginas

de “coisas vistas” ou que, mesmo se nas-cidas de leituras de livros, têm como ob-jeto o visível ou o próprio ato de ver (in-cluído o ver da imaginação). Completam

o volume três grupos de reexões à mar-gem de viagens a outras civilizações —Irã, México, Japão —, onde das “coisas vistas” se abrem frestas de outras dimen-

sões da mente.

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 Parte 1

 EXPOSIÇÕES. EXPLORAÇÕES 

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1. COLEÇÃO DE AREIA

Há uma pessoa que faz coleção de

areia. Viaja pelo mundo e, quando che-ga a uma praia de mar, à orla de umrio ou de um lago, a um deserto, a umacharneca, recolhe um punhado de areiae o carrega consigo. Na volta, esperam-na alinhadas em longas prateleiras cen-tenas de frasquinhos de vidro nos quaisa na areia cinzenta do Balaton, a areia

alvíssima do golfo do Sião, a vermelhaque o curso do Gâmbia deposita peloSenegal abaixo desdobram sua limitadagama de cores esfumadas, revelam uma

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uniformidade de superfície lunar, mes-mo passando por diferenças de granu-losidade e consistência, do cascalhoso

preto e branco do Cáspio, que pareceainda encharcado de água salina, aosminúsculos pedriscos de Maratea, igual-mente pretos e brancos, à sutil farinha

branca pontilhada de caracóis lilases deTurtle Bay, perto de Malindi, no Quênia.

Numa exposição de coleções estra-nhas que houve recentemente em Paris

— coleções de chocalhos de vacas, dejogos de tômbola, de tampas de garrafa,de apitos de terracota, de tíquetes fer-roviários, de piões, de invólucros de ro-

los de papel higiênico, de distintivos co-laboracionistas da ocupação, de rãs em-balsamadas —, a vitrine da coleção deareia era a menos chamativa, mas tam-

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bém a mais misteriosa, a que parecia termais coisas a dizer, mesmo através doopaco silêncio aprisionado no vidro das

ampolas. Passando em revista esse o-rilégio de areias, o olho capta primeiroapenas as amostras que mais se desta-cam, a cor ferrugem de um leito seco de

rio no Marrocos, o branco e preto carbo-nífero das ilhas de Aran ou uma misturacambiante de vermelho, branco, preto,cinza que traz na etiqueta um nome ain-

da mais policromo: ilha dos Papagaios,México. Depois as diferenças mínimasentre areia e areia obrigam a uma aten-ção cada vez mais absorta, e assim, pou-

co a pouco, entra-se numa outra dimen-são, num mundo que não tem outroshorizontes senão essas dunas em minia-tura, onde uma praia de pedrinhas cor-

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de-rosa nunca é igual a outra praia depedrinhas cor-de-rosa (misturadas comos brancos da Sardenha e das ilhas Gra-

nadinas do Caribe; misturadas com oscinzas de Solenzara, na Córsega), e umaextensão de cascalho miúdo e preto emPort Antonio na Jamaica não é igual a

uma da ilha Lanzarote nas Canárias nema outra que vem da Argélia, talvez domeio do deserto.

Tem-se a impressão de que essa

amostragem da Waste Land universal es-teja para nos revelar alguma coisa im-portante: uma descrição do mundo? Umdiário secreto do colecionador? Ou um

oráculo sobre mim, que estou a escrutarnestas ampulhetas imóveis minha horade chegada? Tudo isso junto, talvez. Domundo, a colheita de areias selecionadas

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registra um resíduo de longas erosõesque é simultaneamente a substância úl-tima e a negação de sua exuberante e

multiforme aparência: todos os cenáriosda vida do colecionador surgem mais vi- vos que numa série de slides coloridos(uma vida — dir-se-ia — de eterno tu-

rismo, como aliás parece ser a vida nosslides, e assim a reconstituiriam os pós-teros se restassem somente eles comodocumentos de nosso tempo — um

deleitar-se em praias exóticas alternadoa explorações mais arriscadas, numa in-quietude geográca que trai uma incer-teza, uma ânsia), evocados e ao mesmo

tempo cancelados pelo gesto já com-pulsivo de inclinar-se para recolher umpouco de areia e encher um saquinho(ou um recipiente de plástico? ou uma

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garrafa de coca-cola?) e depois dar meia- volta e ir embora.

É que, como toda coleção, esta tam-bém é um diário: diário de viagens, cla-ro, mas também diário de sentimentos,de estados de ânimo, de humores; aindaque não possamos estar seguros de que

realmente exista uma correspondênciaentre a fria areia cor de terra de Lenin-grado ou a níssima areia de Copaca-bana e os sentimentos que elas evocam

quando as vemos aqui, engarrafadas eetiquetadas. Ou talvez apenas diário da-quela obscura agitação que leva tanto areunir uma coleção quanto a manter um

diário, isto é, a necessidade de transfor-mar o escorrer da própria existência nu-ma série de objetos salvos da dispersão,ou numa série de linhas escritas, cristali-

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zadas fora do uxo contínuo dos pensa-mentos.

O fascínio de uma coleção está nessetanto que revela e nesse tanto que es-conde do impulso secreto que levou acriá-la. Entre as estranhas coleções damostra, uma das mais impressionantes

era com certeza aquela das máscaras an-tigas: uma vitrine de onde faces verdesou acinzentadas de pano ou de borra-cha olhavam por cegos olhos redondos

e saltados, de nariz-focinho cilíndrico ouem forma de tubo articulado. Que espí-rito terá conduzido o colecionador? Umsentimento — creio — ao mesmo tem-

po irônico e assustado diante de umahumanidade que estivera perfeitamen-te pronta a uniformizar-se com aquelessemblantes entre animalescos e mecâni-

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cos; ou talvez até uma conança nos re-cursos do antropomorsmo que inven-ta novas formas à imagem e semelhança

do rosto humano para adaptar-se a res-pirar fosgênio ou iperita, não sem umaponta de caricatural deboche. E certa-mente também uma vingança contra a

guerra, ao xar naquelas máscaras o as-pecto rapidamente obsoleto e que, por-tanto, agora parece mais ridículo queterrível; mas também o sentimento de

que naquela crueldade atônita e estúpi-da ainda se reconheça nossa verdadeiraimagem.

Certo, se a reunião de máscaras anti-

gas podia ainda transmitir um humor dealgum modo hílare e corroborante, pou-co mais à frente um efeito gélido e an-gustioso era produzido por um colecio-

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nador de Mickey Mouse. Um sujeito re-colheu, seguramente ao longo de todaa vida, bonecos, brinquedos, caixas de

produtos, bonés, máscaras, malhas, mó- veis e babadouros que reproduzem asfeições estereotipadas do ratinho da Dis-ney. Da vitrine apinhada, centenas de

orelhas pretas e redondas, de focinhosbrancos com a bolinha negra do nariz,de grandes luvas brancas e braços pretosliformes concentram sua euforia açuca-

rada numa visão de pesadelo, revelamuma xação infantil naquela única ima-gem apaziguante em meio a um mundoassombroso, de modo que a sensação

de terror termina por tingir de si aqueleúnico talismã em suas inumeráveis apa-rições em série.

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Mas onde a obsessão colecionista sedobra sobre si mesma revelando o pró-prio fundo de egotismo é num mostruá-

rio repleto de pastas simples de papelãoamarradas por tas, em que, sobre cadauma delas, uma mão feminina escreveutítulos como: “Os homens que me agra-

dam”; “Os homens que não me agra-dam”; “As mulheres que admiro”; “Meusciúmes”; “Meus gastos diários”; “Minhamoda”; “Meus desenhos infantis”; “Meus

castelos”; e até “Os papéis que envolvi-am as laranjas que comi”.

O que esses dossiês possam conter

não é um mistério, pois não se trata deuma expositora ocasional, mas de umaartista de prossão (Annette Messager,colecionadora: assim assina), que fez de

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suas séries de recortes de jornais, fo-lhetos de apontamentos e esboços vári-as mostras individuais em Paris e Milão.

Mas o que nos interessa agora é justa-mente essa extensão de capas fechadase etiquetadas e o procedimento mentalque implicam. A própria autora o deniu

claramente: “Tento possuir e apropriar-me da vida e dos acontecimentos de quetenho notícia. Durante todo o dia fo-lheio, recolho, ponho em ordem, classi-

co, peneiro e reduzo o todo à forma de vários álbuns de coleção. Essas coleçõesentão se tornam minha própria vida ilus-trada”.

Os próprios dias, minuto por minuto,pensamento por pensamento, reduzidosa coleção: a vida triturada numa poalhade grãos — a areia, ainda.

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 Volto sobre meus passos, em direçãoà vitrine da coleção de areia. O verda-deiro diário secreto a ser decifrado es-

tá aqui, entre essas amostras de praias ede desertos encapsulados no vidro. Tam-bém aqui o colecionador é uma mulher(leio no catálogo da exposição). Mas por

ora não me interessa dar-lhe um ros-to, uma gura; vejo-a como uma pessoaabstrata, um eu que até poderia ser eu,um mecanismo mental que tento imagi-

nar ao trabalho.E então está de volta de uma viagem,

acrescenta novos frasquinhos aos outrosem la e de repente se dá conta de que,

sem o índigo do mar, o brilho daque-la praia de conchas moídas se perdeu,que do calor úmido dos uádis nada res-tou na areia encapsulada, que, distante

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do México, a terra misturada à lava do vulcão Paricutín é um pó negro que pa-rece varrido da garganta de uma larei-

ra. Tenta reconduzir à memória as sensa-ções daquela praia, aquele cheiro de o-resta, aquela ardência, mas é como sacu-dir aquele pouco de areia no fundo da

garrafa etiquetada. A essa altura só restaria se render,

afastar-se da vitrine, desse cemitério depaisagens reduzidas a deserto, de deser-

tos sobre os quais não sopra mais o ven-to. No entanto, quem teve a constânciade levar adiante por anos essa coleçãosabia o que estava fazendo, sabia aonde

queria chegar: talvez justamente distan-ciar de si o barulho das sensações de-formantes e agressivas, o vento confusodo vivido, e ter anal para si a substân-

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cia arenosa de todas as coisas, tocar aestrutura siliciosa da existência. Por issoela não tira os olhos dessas areias, en-

tra com o olhar num dos frascos, escavaali dentro sua toca, concentra-se, extraias miríades de notícias adensadas nummontinho de areia. Cada cinza, uma vez

decomposto em grãos claros e escuros,luminosos e opacos, esféricos, poliédri-cos, achatados, não se vê mais comocinza ou só então começa a fazer com

que você compreenda o signicado docinza.

 Assim, decifrando o diário da melan-cólica (ou feliz?) colecionadora de areia,

cheguei a interrogar-me sobre o que estáescrito naquela areia de palavras escritasque enleirei durante minha vida, aque-la areia que agora me parece tão distan-

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te das praias e dos desertos da vida. Tal- vez xando a areia como areia, as pa-lavras como palavras, possamos chegar

perto de entender como e em que me-dida o mundo triturado e erodido aindapossa encontrar nelas fundamento e mo-delo.

[1974]

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2. COMO ERA NOVO O NOVO  MUNDO 

Descobrir o Novo Mundo era umaempresa bem difícil, como todos nós sa-bemos. Mas, uma vez descoberto o No- vo Mundo, ainda mais difícil era vê-lo,compreender que era novo, todo novo,diferente de tudo o que sempre se espe-rou encontrar como novo. E a perguntamais natural que surge é: se um Novo

Mundo fosse descoberto agora, sabería-mos vê-lo? Saberíamos descartar de nos-sa mente todas as imagens que nos ha-bituamos a associar à expectativa de um

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mundo diverso (o da cção cientíca,por exemplo) para colher a verdadeiradiversidade que se apresentaria aos nos-

sos olhos?De pronto podemos responder que,

desde os tempos de Colombo, algo mu-dou: nos últimos séculos os homens de-

senvolveram uma capacidade de obser- vação objetiva, um escrúpulo de preci-são no estabelecimento de analogias ediferenças, uma curiosidade por tudo o

que é insólito e imprevisto, todas essasqualidades que nossos predecessores da Antiguidade e da Idade Média parecemnão ter possuído. Podemos dizer que

é justamente a partir da descoberta da América que a relação com o novo mu-da na consciência humana. E, justamen-

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te por isso, costuma-se dizer que a eramoderna começou ali.

Mas será de fato assim? Tal como osprimeiros exploradores da América nãosabiam em que ponto se manifestariauma negação de suas expectativas ouuma conrmação de semelhanças notó-

rias, do mesmo modo também podería-mos passar ao lado de fenômenos nun-ca vistos sem nos dar conta disso, por-que nossos olhos e nossas mentes estão

habituados a escolher e a catalogar ape-nas aquilo que entra nas classicaçõesassentadas. Talvez um Novo Mundo seabra aos nossos olhos todos os dias e

não o vejamos.Essas reexões me vinham à mente

enquanto visitava a exposição “A Amé-rica vista pela Europa”, que reúne mais

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de 350 quadros, gravuras e objetos noGrand Palais de Paris, todos relaciona-dos à imagem que os europeus faziam

do Novo Mundo, desde as primeiras no-tícias após a viagem das caravelas até aaquisição gradual das explorações e des-crições do continente.

Estas são as orlas da Espanha de on-de o rei Fernando de Castela dá ordemde zarpar às caravelas. E este braço demar é o oceano Atlântico que Cristóvão

Colombo atravessa alcançando as fabu-losas ilhas das Índias. Colombo se de-bruça da proa de seu navio e o que vê?Um cortejo de homens e mulheres nus

que saem de suas choupanas. Havia pas-sado apenas um ano da primeira viagemde Colombo, e assim um gravurista o-rentino representa a descoberta daque-

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la que, na época, não se sabia que seriaa América. Ninguém ainda suspeitava deque se iniciava uma nova era na histó-

ria do mundo, mas a emoção suscitadapelo acontecimento se difundira em to-da a Europa. O relato de Colombo inspi-ra imediatamente um poema em oitavas

do orentino Giuliano Dati, no estilo deuma trova cavalheiresca, e essa gravuraé exatamente uma ilustração do livro.

 A característica dos habitantes das

novas terras que mais surpreende Co-lombo e todos os primeiros viajantes é anudez, e é este o primeiro dado que põeem movimento a fantasia dos ilustrado-

res. Os homens são representados aindacom barba; parece que a notícia de queos índios têm faces glabras ainda nãofoi divulgada. Com a segunda viagem de

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Colombo, e principalmente com os rela-tos mais detalhados e coloridos de Amé-rico Vespúcio, à nudez vem se juntar ou-

tra característica que enche a Europa deemoção: o canibalismo.

 Vendo um grupo de mulheres índiasna orla — conta Vespúcio —, os portu-

gueses zeram desembarcar um de seusmarinheiros, famoso pela beleza, parafalar com elas. As mulheres o circun-daram prodigalizando-lhe carícias e ex-

pressões de admiração, mas enquantoisso uma delas se escondeu às suas cos-tas e lhe deu uma porretada na cabeça,abatendo-o. O infeliz foi arrastado para

a mata, cortado em pedaços, assado edeglutido.

 A primeira questão feita pela Europasobre os habitantes das novas terras é:

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pertencem realmente ao gênero huma-no? A tradição clássica e medieval falavade remotas paragens povoadas de mons-

tros. Mas essas lendas são logo desmen-tidas: os índios não só são seres huma-nos, mas também exemplares de umabeleza clássica. Nasce o mito de uma vi-

da feliz, que não conhece a propriedadenem o cansaço, como na idade de ouroou no Paraíso terrestre.

Das grosseiras xilogravuras, a gura-

ção dos índios passa para as telas. O pri-meiro americano que vemos representa-do na história da pintura europeia é umdos reis magos num quadro português

datado de cerca de 1505, ou seja, ape-nas doze anos depois da primeira via-gem de Colombo, e ainda menos queda chegada dos portugueses ao Brasil.

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 Acredita-se então que as novas terras fa-çam parte do Extremo Oriente asiático. A tradição manda que, nos quadros da

natividade de Cristo, os reis magos se-jam representados em trajes e adornosorientais. Agora que os relatos dos vi-ajantes fornecem um testemunho direto

de como são esses lendários habitantesdas Índias, os pintores se atualizam. Orei mago índio leva na testa uma coroade penas em leque, como em certas tri-

bos brasileiras, e tem na mão uma e-cha tupinambá. Tratando-se de um qua-dro de igreja, a personagem não podeapresentar-se nua: são-lhe emprestados

uma camisa e um par de calças ociden-tais.

Em 1537, o papa Paulo III declara:“Os índios são verdadeiramente huma-

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nos […] não só capazes de compreendera fé católica, mas extremamente desejo-sos de recebê-la”.

 Adornos de penas, armas, frutas eanimais do Novo Mundo começam achegar à Europa. Estamos em 1517, eum gravurista alemão, desenhando um

cortejo de habitantes de Calcutá, misturaelementos asiáticos, como o elefante eseu cornaca, os bois engrinaldados, oscarneiros de cauda grossa, com peculi-

aridades provenientes das novas desco-bertas: as penas sobre as cabeças (e atéroupas de pena inteiramente imaginári-as), uma arara do Brasil e até duas espi-

gas de milho, cereal destinado a ter tantaimportância na agricultura e na alimen-tação da Itália setentrional e cuja origem

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americana será rapidamente esquecida,tanto que será chamado de granturco.

É por meio da obra dos grandes car-tógrafos do século XVI que vemos não sóos novos territórios tomarem uma forma,mas também a fauna, a ora e os costu-mes ganharem as primeiras imagens ver-

dadeiras. Trabalhando em estreito conta-to com os exploradores, os cartógrafosdispunham de informações de primeiramão. Os contornos das costas atlânticas

já são em grande parte conhecidos, en-quanto as novas terras ainda são consi-deradas como um apêndice da Ásia. Co-mo num mapa-múndi de prata de 1530,

em que o golfo do México é denomina-do “mar do Catai” e a América do Sul,“Terra Canibal”.

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É num mapa alemão que aparece pe-la primeira vez o nome América, isto é,Terra de Américo, porque foi principal-

mente pelos relatos de viagem de Ves-púcio que a Europa tomou consciênciada importância geográca das descober-tas. Somente depois das cartas do mer-

cador orentino a Europa se dá conta deque aquilo que está se descortinando érealmente um Novo Mundo, de enormeextensão e com características próprias.

 Até que, nos mapas, a América sedestaca da Ásia. Da América do Norte(aqui chamada “Terra de Cuba”) não seconhece mais que uma na fatia costei-

ra, e se acredita que esteja a pouca dis-tância do Japão (chamado Zipangri). Onome América designa apenas a Amé-rica do Sul, também chamada de “Ter-

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ranova” e habitada pelos famosos cani-bais. O continente adquiriu um contornoautônomo, mas ainda é visto — até em

sua forma — sobretudo como um obs-táculo, uma barreira que nos separa daChina e da Índia.

Nos planisférios de Mercator, inven-

tor de um novo método de projeçãocartográca, o nome América tambémse estende ao hemisfério setentrional eaparece ao lado da Terra dos Bacalhaus,

atribuído a Labrador. A ideia que se faz do índio perma-

nece por muito tempo dividida em doismitos contrastantes: o da felicidade natu-

ral de uma vida inocente como no Éden,e o da ferocidade impiedosa — os es-calpamentos, as torturas. Mas tambémcomeça o desprezo pela crueldade dos

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espanhóis, os extermínios e saques dosconquistadores.

Somente no nal do século XVI pode-mos realmente ver o rosto dos índios. Eisso ainda graças a um cartógrafo e dese-nhista, o inglês John White, que em 1585acompanhou a expedição de Sir Wal-

ter Raleigh, fundador da primeira colô-nia inglesa do além-Atlântico, a Virgínia. As 76 aquarelas de John White conserva-das no British Museum constituem o pri-

meiro testemunho americano direto fei-to por um pintor. White não desenhouapenas os costumes dos peles-vermelhase suas atividades, mas também os ani-

mais da América do Norte: os amingos,as iguanas, os caranguejos da terra, astartarugas, os peixes-voadores e os mais variados exemplares da fauna aquática.

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Que a América tivesse uma fauna euma ora completamente distintas dasdo Velho Mundo foi uma realidade que

demorou a ser reconhecida pelos euro-peus. Desde sua primeira viagem, Co-lombo tinha levado aos espanhóis al-guns papagaios bem maiores que os

africanos, as araras, que logo suscitaramcuriosidade e foram inseridas por Rafaelnas decorações grotescas das galerias do Vaticano.

Contudo, em geral os novos animaisda América não parecem ter despertadomuita emoção. O peru logo começa aser criado na Europa, mas erroneamente

se acredita que ele seja de origem asiá-tica, sendo confundido com a galinha-d’angola.

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O animal que mais estimula a fanta-sia é o tatu, tanto que nas representa-ções alegóricas a América é vista como

uma mulher nua, armada de arco e e-cha e cavalgando um tatu.

 A verdade é que os europeus talvezesperassem encontrar nesse imenso e

pujante continente uma fauna de masto-dontes, e acabaram cando meio decep-cionados. A América é rica em animaisestranhos, mas a maioria deles é de di-

mensões modestas. Assim se explica porque os desenhistas das tapeçarias gobe-lins sentiram a necessidade de integraruma visão exuberante da ora e da fau-

na brasileiras com animais que não têmnada de americanos. Não faltam os maiscaracterísticos representantes zoológicosdo Novo Mundo como o tamanduá, o ta-

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pir, o tucano, a jiboia, acompanhados deum elefante africano, de um pavão asiá-tico e de um cavalo como os que os eu-

ropeus exportaram para a América.Igualmente lenta, porém muito mais

rica de consequências, foi a conquistada Europa por parte das plantas ameri-

canas. A batata, o tomate, o milho e ocacau, que irão se impor na agriculturae na alimentação de todo o Ocidente,o algodão e a borracha, que dominarão

grande parte da produção industrial, e otabaco, que terá um papel tão importan-te nos hábitos comportamentais, demo-ram a ser conhecidos como plantas no-

 vas. No século XVI, o estudo da nature-za ainda era baseado em autores gregose latinos; não eram o novo e o diferen-te que atraíam os estudiosos, mas ape-

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nas aquilo que bem ou mal pudesse serclassicado com os nomes herdados dosclássicos.

Na exposição, vemos uma aquarelaamenga ou alemã datada de 1588 quetem um valor histórico extraordinário,pois é a primeira representação que se

conhece da batata, importada do Perupela Espanha poucos anos antes, e umagravura que é a primeira ilustração deum pé de tabaco, publicada em 1574 em

 Antuérpia. Uma pequena cabeça de ín-dio expelindo nuvens de fumaça atra- vés de um estranho cachimbo verticallembra o curioso costume que, a partir

de Colombo, nenhum explorador deixa-rá de notar: à planta eram atribuídas pro-priedades ora terapêuticas, ora tóxicas.

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No século   XVII   são os holandeses,depois de expulsarem os espanhóis doBrasil e antes de serem expulsos, por

sua vez, pelos portugueses, que man-dam cientistas e artistas para estudar anatureza da colônia. Albert Eckout mar-ca o encontro entre a natureza holan-

desa e a vegetação brasileira. Melancias,cajus, uma graviola, uma or de passio-ra e um abacaxi campeiam contra o céu,como uma montanha de sabores e per-

fumes. Abóboras e pepinos da Américase misturam a couves e nabos europeus,celebrando a união do mundo das hor-taliças daqui e de além-Atlântico.

Um quadro de Franz Jansz Post, con-servado no Louvre, assinala o momentoem que a pintura holandesa de paisa-gem entra em contato com a natureza

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do Brasil. E aqui é realmente um outromundo que se abre diante de nós, comum sentido de vertigem: uma forticação

militar quase perdida perante o espaçolargo e calmo do rio; em primeiro planoum cacto ramicado como uma árvore,um estranho animal (é a capivara, o mai-

or dos roedores), e tudo circundado deum calor como de ar pesado.

Pelos quadros seiscentistas de FranzPost no Brasil ainda corre o sopro ansi-

oso da descoberta, a perturbação do en-contro com algo de indenido, algo quenão entra em nossas expectativas. A pri-meira observação sugerida pela mostra

do Grand Palais é que o Velho Mundocolhe com mais força as imagens do No- vo quando ainda não sabe bem de quese trata, quando as informações são ra-

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ras e parciais, e pena-se para separar arealidade dos erros e das fantasias.

No mesmo século XVII em que algunspintores holandeses descobriram o Bra-sil, a América se torna, nos quadros deoutros pintores, uma personagem alegó-rica: é classicada como uma das quatro

partes do mundo e, como ocorre com asguras mitológicas, cabe a ela uma sériede atributos convencionais.

Por sua vez, as diferenciações inter-

nas da América são registradas numa su-mária tipologia das várias colônias. Pa-ra ensinar geograa ao menino Luís XIV ,fazem-no brincar com mapas

geográco-alegóricos desenhados porStefano della Bella.

Para outros pintores, ela oferece jáquase sem mistério um repertório de

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perspectivas de efeito à ótica paisagistaeuropeia.

Desde o século XVIII a América é, pa-ra a Europa, a encarnação de ideias emitos políticos e intelectuais: o bom sel- vagem de Rousseau, a democracia deMontesquieu, o fascínio romântico dos

peles-vermelhas, a luta contra a escravi-dão.

 A alegoria corresponde à necessida-de que a Europa tem de pensar a Améri-

ca segundo seus próprios esquemas, detornar conceitualmente denível aquiloque era e continua sendo a diferença,talvez a irredutibilidade americana, isto

é, o fato de ter sempre algo a dizer à Eu-ropa — desde o primeiro desembarquede Colombo até hoje — que a Europanão sabe.

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Essa constante alegórica é sublinha-da pela última peça da exposição, umquadro francês do nal do século   XIX 

que nos recorda que a estátua da Liber-dade foi concebida e construída em Pa-ris entre 1871 e 1886. Em sua realizaçãocolaboraram, além do escultor Bartholdi,

o restaurador de Notre-Dame, Viollet-Le-Duc, e o engenheiro Eiffel, construtor datorre. Assim como hoje contra o fundode arranha-céus, a estátua se erguia so-

bre as mansardas de Paris, antes de serdesmontada e transportada em navio pa-ra Nova York.

 A exposição termina aqui e talvez

não pudesse ir mais além, porque ostermos mudaram nos últimos cem anos.Não há mais uma Europa que possaolhar a América do alto de seu passado,

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de seu saber e de sua sensibilidade. AEuropa já traz em si tanto de América —não menos que a América leva em si a

Europa — que o interesse em observar-se — não menos forte e jamais frustrado— assemelha-se cada vez mais ao que sesente diante de um espelho: um espelho

dotado do poder de revelar-nos algumacoisa do passado ou do futuro.

[1976]

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 3. O VIAJANTE NO MAPA

 A forma mais simples de carta geo-

gráca não é aquela que hoje nos pare-ce a mais natural, ou seja, o mapa querepresenta a superfície do solo como se vista por um olho extraterrestre. A pri-meira necessidade de xar os lugares nopapel está ligada à viagem: é o memo-rando da sucessão das etapas, o traça-do de um percurso. Trata-se, pois, de

uma imagem linear, tal como só se po-de dar numa longa faixa. As cartas ro-manas eram rolos de pergaminho, e po-demos entender como eram feitas por

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uma cópia medieval que se conservouaté nossos dias: a “tábua de Peutinger”,que compreende todo o sistema de es-

tradas do Império desde a Espanha até aTurquia.

 A totalidade do mundo então conhe-cido aparece aplainada horizontalmente

à maneira de uma anamorfose. Como oque interessa são as estradas terrestres,o Mediterrâneo é reduzido a uma estrei-ta faixa horizontal ondulada que separa

duas faixas mais largas, isto é, a Europae a África, de modo que a Provença e a África do Norte são muito próximas, as-sim como a Palestina e a Anatólia. Essas

faixas continentais são percorridas porlinhas sempre horizontais e quase para-lelas, que são as estradas, entremeadaspor linhas serpentinas, que são os rios.

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Os espaços em volta são cheios de no-mes escritos e indicações de distâncias;as cidades são assinaladas por caixinhas

desenhadas de várias formas.Não se pense que esse modelo linear

 valha apenas para a Antiguidade: há ummapa de rolo inglês de 1675 com o itine-

rário de Londres a Aberystwyth, em Ga-les, que também permite orientar-se me-diante rosas dos ventos assinaladas emcada segmento de estrada.

Na fronteira entre a cartograa e apintura paisagista em perspectiva, umrolo japonês do século  XVIII com deze-nove metros representa o itinerário en-

tre Tóquio e Kyoto: uma paisagem mi-nuciosa, em que se vê a estrada superaralturas, atravessar bosques, margear vila-rejos, cavalgar rios sobre pontes arquea-

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das, adaptar-se às características do ter-reno pouco acidentado. É uma paisagemsempre agradável à vista, ausente de -

guras humanas, embora cheia de sinaisde vida concreta. (Não são representa-dos os pontos de partida e de chegada,ou seja, as duas cidades, cuja imagem

certamente contrastaria com a harmoniauniforme da paisagem.) O rolo japonêsconvida a identicar-se com o viajanteinvisível, a percorrer aquela estrada cur-

 va após curva, subindo e descendo aspequenas pontes e as colinas.

Seguir um percurso do início até om dá uma especial satisfação tanto na

 vida quanto na literatura (a viagem co-mo estrutura narrativa), e há que se per-guntar por que nas artes gurativas o te-ma do percurso não tenha tido tanta for-

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tuna e apareça apenas esporadicamente.(Lembro que um pintor italiano, MarioRossello, recentemente pintou um qua-

dro longuíssimo, também em formato derolo, que representa um quilômetro deautoestrada.)

 A necessidade de abranger numa

imagem a dimensão do tempo com a doespaço está nas origens da cartograa.Tempo como história do passado: pen-so nos mapas astecas sempre repletos de

gurações histórico-narrativas, mas tam-bém nas cartas medievais, como um per-gaminho com iluminuras para o rei daFrança feito pelo famoso cartógrafo de

Maiorca Cresques Abraham (século XIV ).E tempo no futuro: como presença deobstáculos que se encontrarão na via-gem, e aqui o tempo atmosférico se sol-

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da ao tempo cronológico; essa função épreenchida pelas cartas dos climas, co-mo aquela desenhada já no século   XII

pelo geógrafo árabe El-Edrisi.Enm, a carta geográca, ainda que

estática, pressupõe uma ideia narrativa,é concebida em função de um itinerário,

é uma odisseia. Nesse sentido, o exem-plo mais apropriado é o códice astecadas peregrinações, que narra por meiode guras humanas e traçados geométri-

cos o êxodo daquele povo — ocorridoentre 1100 e 1315 — até a terra prome-tida, que era o local que mais tarde setornaria a atual Cidade do México.

(Se existe o mapa-Odisseia, não po-de faltar o mapa-Ilíada: de fato, desde ostempos mais antigos as plantas das cida-

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des sugerem a ideia de cerco, de assé-dio.)

Essas reexões me ocorreram en-quanto visitava a exposição “Cartas e -guras da Terra”, no Centro Pompidoude Paris, e folheava o volume publicadopor ocasião da mostra.

Em um ensaio do volume, François Wahl observa como a representação doglobo terrestre só começa quando as co-ordenadas usadas para simbolizar o céu

são referidas à Terra. Os parâmetros ce-lestes (eixo polar e plano equatorial, me-ridianos e paralelos) têm seu ponto deencontro na esfera terrestre, ou seja, no

centro do universo (“erro mais fecun-do que nenhum outro”). Já Estrabão viaa geograa como aproximação da Terraao céu. A rotundidade da Terra e a qua-

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dratura das coordenadas adquirirão evi-dência como projeção do esquema docosmo sobre o nosso microcosmo. “Só

pudemos descrever a Terra porque nelaprojetamos o céu.”

 As esferas do rmamento e do globoterrestre se aproximam em muitas gu-

rações, tanto orientais quanto ocidentais.Dois gigantescos globos de doze metrosde circunferência — um mapa-múndi eum globo celeste — são o ponto forte

da exposição e ocupam todo o Fórumdo Centro Pompidou. São os maioresmapas-múndi jamais construídos, enco-mendados por Luís  XIV  ao frade menor

 veneziano Vincenzo Coronelli, cosmó-grafo da Sereníssima (autor, entre ou-tros, de um catálogo das ilhas da Lagunacom o belíssimo título de Isolário). Esses

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globos estavam desde 1915 desmonta-dos em caixas em Versalhes: tê-los trans-portado a Paris, restaurado e remontado

sobre seus monumentais pedestais e su-portes barrocos em mármore e bronzeesculpidos é um acontecimento que bas-ta para tornar esta mostra memorável.

O globo celeste representa o rma-mento como era no dia em que nasceu oRei Sol, com todas as alegorias zodiacaispintadas em tons de azul. Mas a gran-

de maravilha é o mapa-múndi em tonscastanhos e ocres, historiado de guras(por exemplo, atrocidades de selvagenscanibais) e de inscrições com as notícias

transmitidas por exploradores e missio-nários que preenchem os vazios onde aforma dos lugares ainda permanece in-certa.

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Coronelli transforma a Califórnia emilha, comentando numa explicação:“Certos loucos dizem que a Califórnia é

uma península…”. E em outra passagem:“Aqui se diz que haveria uma ilha, masisso é falso, e eu não registro”. Quantoàs nascentes do Nilo, depois de tê-las as-

sinalado num ponto e de posteriormen-te as ter deslocado, segundo um novotestemunho, Coronelli termina por inse-rir um texto sobre as cheias do rio, que

se encerra candidamente com as seguin-tes palavras: “Vi-me com um espaço aser preenchido e inseri esta inscrição”.

 A documentação geográca sobre as

novas explorações que chegava a Parisnaquela época era recolhida no Obser- vatório onde Gian Domenico Cassinimantinha um grande planisfério atuali-

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zado. Coronelli devia buscar ali suas in-formações, o que o obrigava a corrigircontinuamente seu trabalho; mas os pro-

gressos da cartograa mais embaraça- vam que ajudavam esse homem, queainda enxergava a geograa segundo omodo fantasioso dos antigos compilado-

res, e não como uma ciência moderna.É preciso ressaltar que apenas com

o avanço das explorações o inexploradoadquire direito de cidadania no papel.

 Antes, aquilo que não se via não existia. A exposição parisiense enfatiza esse as-pecto de um saber para o qual cada no- va aquisição abre a consciência de no-

 vas lacunas, como nas séries de mapasem que as costas da América do Sul,tocadas por Magellano em sua primeira viagem, são consideradas como se per-

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tencessem à ainda desconhecida Austrá-lia. A geograa se constitui como ciênciapor meio da dúvida e do erro. (Popper

deveria car contente.) A moral que emerge da história da

cartograa é sempre de redução das am-bições humanas. Se na carta romana es-

tava implícito o orgulho de identicara totalidade do mundo com o Império, vemos a Europa se tornar pequena emcomparação ao resto do mundo no ma-

pa de Fra Mauro (1459), um dos pri-meiros planisférios desenhado com basenos relatos de Marco Polo e nas circu-navegações da África, no qual a inversão

dos pontos cardeais acentua a reviravol-ta de perspectivas.

É como se representar o mundo so-bre uma superfície limitada o zesse re-

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troceder automaticamente a microcos-mo, remetendo à ideia de um mundomaior que o contém. Por isso o mapa

muitas vezes se situa na fronteira entreduas geograas, a da parte e a do todo,a da terra e a do céu, céu que podeser rmamento astronômico ou reino de

Deus. Um painel árabe feito em Cons-tantinopla no século XVI exibe um mapado mundo muito preciso, sobre o qualestá xada uma bússola (verdadeira);

um ponteiro de prata tem seu eixo emMeca, para que o el possa orientar suaspreces na direção correta, onde querque se encontre.

Por todos esses aspectos, vê-se comoo impulso subjetivo está sempre presen-te numa operação que parece baseadana mais neutra objetividade, como a da

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cartograa. O grande centro cartográ-co do Renascimento está numa cidadeem que o tema espacial dominante é a

incerteza e a variabilidade, já que os li-mites entre terra e água mudam conti-nuamente: Veneza, onde os mapas daLaguna devem sempre ser refeitos. (Em

 Veneza, no século   XVII, Vestri desenhaum mapa das correntes que só agora asprospecções por satélite, realizadas paradeterminar o grau de poluição da Lagu-

na, conrmam ponto por ponto.) No sé-culo XVII, o primado dos venezianos pas-sará aos holandeses, com suas dinastiasde grandes cartógrafos artistas como os

Blaeu, de Amsterdã — outro país ondeos conns entre terra e água são incer-tos.

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 A cartograa como conhecimento doinexplorado procede  pari passu com acartograa como conhecimento do pró-

prio habitat. Aqui as origens remontamà demarcação dos conns nos mapaspatrimoniais, de que um dos primeirosexemplos pode ser identicado num

grate pré-histórico de Val Camonica.(É interessante notar que, enquanto asfronteiras das propriedades sempre fo-ram escrupulosamente traçadas desde a

 Antiguidade mais remota, uma precisãosemelhante no estabelecimento dos con-ns entre Estados parece ser uma preo-cupação recente. Um dos primeiros tra-

tados que xam as fronteiras de modonão aproximativo foi o de Campoformio,em 1797, quando, durante o período na-poleônico, a geograa militar e política

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assume uma importância sem preceden-tes.)

Entre a cartograa que olha paraalém e a cartograa que se concentra noterritório familiar há uma relação contí-nua. No século XVII, a expansão da frotafrancesa demandava uma produção re-

gular de madeira, mas as orestas daFrança estavam escasseando e se consu-mindo. Então Colbert percebe a neces-sidade de um relevo cartográco exaus-

tivo das orestas francesas, de maneiraa ter sempre à disposição o montantedos recursos em troncos de árvores a mde planicar racionalmente o reabasteci-

mento e o transporte da madeira para osestaleiros. É nesse momento que, justa-mente para sustentar a expansão maríti-ma, o conhecimento geográco do terri-

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tório interno se torna a principal neces-sidade da França.

Então, para dirigir o observatório as-tronômico, Colbert chama a Paris GianDomenico Cassini (1625-1712), nascidoem Perinaldo, perto de San Remo, pro-fessor na Universidade de Bolonha. E

aqui reencontramos a ligação entre céue terra: é do Observatório de Paris queuma dinastia de astrônomos, os Cassini,trabalha por quatro gerações num minu-

ciosíssimo mapa da França, cujos pro-blemas teóricos de triangulação e demensuração são postos no centro do de-bate cientíco, e cuja confecção porme-

norizada durará mais de sessenta anos.Na mostra, o mapa dos Cassini (nu-

ma escala de uma “linha” para cem bra-ças, isto é, de 1 por 86400) está exposto

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numa reprodução que invade um estan-de inteiro, alastrando-se das paredes pa-ra o pavimento. Cada oresta aparece

desenhada árvore por árvore, cada igre-jinha tem seu campanário, cada vilarejoé quadriculado teto por teto, de modoque se tem a vertiginosa impressão de

ter sob os olhos todas as árvores e todosos campanários e todos os telhados doreino de França. E aí não se pode deixarde lembrar o conto de Borges sobre o

mapa do Império chinês que coincidiacom a extensão do próprio Império.

Do mapa dos Cassini desapareceramas guras humanas que Coronelli ainda

sentira a necessidade de inserir nas ex-tensões de seu mapa-múndi; mas sãojustamente essas áreas desertas, desabi-tadas, que despertam na imaginação o

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desejo de vivê-las por dentro, de enco-lher até encontrar o próprio caminho noemaranhado dos signos, de percorrê-las,

de perder-se.Se por um lado a descrição da Terra

remete à descrição do céu e do cosmo,por outro remete à própria geograa in-

terior. Entre os documentos expostos háfotograas de grates misteriosos quepoucos anos atrás apareciam nos murosda cidade nova de Fez, no Marrocos.

Descobriu-se que eram feitos por um va-gabundo analfabeto, camponês emigra-do que não se integrara na vida urbanae, para reencontrar-se, sentia a necessi-

dade de traçar itinerários num mapa se-creto, sobrepondo-o à topograa da ci-dade moderna que continuava sendo es-tranha e hostil a ele.

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Procedimento oposto e simétrico aode um padre italiano do início do século

 XIV , Opicinus de Canistris. Mudo, com

o braço direito paralisado, meio desme-moriado, frequentemente tomado por vi-sões místicas e pela angústia do pecado,Opicinus tem uma obsessão dominante:

interpretar o signicado das cartas ge-ográcas. Ele desenha continuamente omapa do Mediterrâneo, a forma das or-las de frente e do avesso, às vezes sobre-

pondo nele o desenho da própria cartaem posições diversas, e, inseridas nessestraçados geográcos, faz aparecer gu-ras humanas e animais, personagens de

sua vida e alegorias teológicas, cópulassexuais e aparições angélicas, acompa-nhadas de um denso comentário escri-

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to sobre a história de suas desventuras e vaticínios sobre o destino do mundo.

Caso extraordinário de art brut  e deloucura cartográca, Opicinus não fazsenão projetar o próprio mundo interiorno mapa das terras e dos mares. Numprocedimento inverso, a sociedade das

“preciosas” do século   XVII  buscará re-presentar a psicologia segundo o códigodas cartas geográcas: o “mapa do ter-no” idealizado por mlle. de Scudéry, em

que um lago é a Indiferença, uma rochaé a Ambição, e assim por diante. Essaideia topográca e extensiva da psicolo-gia, que indica relações de distância e

de perspectiva entre as paixões projeta-das numa extensão uniforme, dará lugar,com Freud, a uma ideia geológica e ver-

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tical da psique profunda, feita de estra-tos sobrepostos.

[1980]

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4. O MUSEU DOS MONSTROS  DE CERA

Numa vitrine de rua, uma jovemmulher jaz supina numa esvoaçante ves-te branca guarnecida de bordados, orosto de linhas delicadas adormecidonum amarelo mortuário, o seio casta-mente coberto subindo e palpitando nu-ma respiração regular. Pouco mais adi-ante um cartaz exibe, fotografados em

cores, dois irmãos siameses, ou melhor,um único menino que acima do estôma-go se desdobra em dois idênticos. Ao re-dor, uma fachada de tela pintada de ver-

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melho com frisos dourados e a escrita:“Grand Musée anatomique-ethnologiquedu dr. P. Spitzner”.

Por mais de oitenta anos, a partir de1856, o museu de ceras anatômicas dodr. Spitzner foi atração em feiras, especi-almente nas cidades da Bélgica. A prin-

cípio fora instalado em Paris, numa se-de estável, com todos os sacramentosda instituição cientíca (oitenta de suaspeças provinham da famosa coleção de

modelos patológicos do dr. Dupuytren); várias vicissitudes zeram dele um mu-seu errante, que encontrou o lugar maisapropriado entre barracões de feira, car-

rosséis, tiros ao alvo e picadeiros. Masele continuou proclamando sempre su-as intenções educativas e moralizadoras:o folheto do programa se iniciava com

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uma espécie de decálogo de propagan-da da saúde, primeira alegria e primei-ro dever dos bons cidadãos; as visões

horripilantes que o museu apresentava(tumores, úlceras e bulbos, ou fígadoscirróticos e estômagos brosos) deviaminculcar nos jovens o terror das doen-

ças venéreas e do alcoolismo. Mas as se-ções dedicadas a essas doenças “culpá- veis” eram apenas uma parte, ainda queimportante, da exposição, cujo conjunto

parecia convidar a xar os olhos naquiloque habitualmente tendemos a evitar: asalterações possíveis de nossa carne, a -sionomia oculta de nossas vísceras, o di-

laceramento que sentimos em nós mes-mos se assistimos a uma operação cirúr-gica.

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 A essa pedagogia do abjeto unia-seestranhamente uma documentação etno-lógica: uma leira de estátuas de cera re-

presentando os selvagens boxímanes ouaustralianos ou índios da América, emtamanho natural, uma visão que naque-les tempos pré-cinematográcos devia

causar muito mais “efeito” do que ho-je podemos imaginar. Observando bem,nessa seção etnológica também predo-minava o tema comum a todo o museu:

a nudez “diferente”, íntima como todanudez, mas distanciada pela doença, pe-la deformidade ou pelo estranhamentode civilização ou de raça, com o acrés-

cimo do mal-estar que a cera provocaquando imita a palidez da pele humana.

No entanto, não está muito claroquem era esse dr. Spitzner. Suspeita-se

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que não fosse nem mesmo médico. Nasfotograas, tanto ele quanto a mulhermais parecem empresários de feira que

apóstolos da ciência; mas nunca se sabe.Certo, o sadismo, componente chave domundo visual que ele nos propõe, erade estampo diverso daquele mais lírico

do orentino Clemente Susini, ou da-quele mais feiticeiro do napolitano Rai-mondo di Sangro, ou do puramente es-petacular da inglesa de adoção Marie

Tussaud. Mas estes três nomes pertenci-am ao século  XVIII, com a complexida-de de atitudes intelectuais e psicológicasque aquela época implica; já a data de

fundação do Museu Spitzner nos conduzao pleno período do positivismo, do ci-enticismo e da pedagogia divulgativa;seja como for, data não menos gloriosa

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quando se pensa que é a mesma da pu-blicação das  Flores do mal , de  Madame  Bovary  e dos relativos processos contra

o que então era execrado ou exaltadocomo “exploração do verdadeiro”.

 Assim como aqueles casos sublimes,a não bem denida empresa do dr.

Spitzner também teve de lutar contra ahostilidade dos bem-pensantes, as cen-suras da autoridade, os protestos dospais de família; e as mesmas batalhas se

repetiram em nosso século, quando a se-nhora Spitzner, já viúva, reativou o mu-seu itinerante nos anos 1920. O fato éque nas memórias de vários escritores

e artistas belgas a primeira entrada tre-pidante no pavilhão do Museu Spitznerocupa um lugar sugestivo: basta dizerque Paul Delvaux declarou que, para a

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formação de seu mundo visionário, es-ta foi a experiência fundamental, antesmesmo da descoberta de De Chirico.

Perdido durante a guerra (que des-truiu num bombardeio seus cartazes co-loridos, com certeza um elemento re-levante de seu fascínio), reencontrado

num depósito, o museu do dr. Spitznerfoi agora reconstruído e exposto tempo-rariamente em Paris no centro culturalbelga, na praça de Beaubourg. A primei-

ra coisa que impressiona é constatar co-mo a el imitação da natureza, em vezde parecer intemporal, surge carregadados tons da época. É o olhar com que

esses modelos foram concebidos que éoitocentista: simultaneamente de atraçãoe de distanciamento, de celebração do“verdadeiro” e de reprovação.

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Na reconstrução do ambientebuscou-se preservar a atmosfera entre ocientíco e o espúrio, mistura de labora-

tório hospitalar, necrotério e barraca deparque de diversões, que devia ser seuantigo aspecto, inclusive a penumbra daqual se destacam a nudez cadavérica e

a musiqueta abafada de banda do inte-rior. Falta apenas a voz dos apregoado-res e dos cicerones que — segundo ascrônicas — ilustravam a “Vênus anatô-

mica” desmontável em quarenta peças,passando da fragrância sedutora da epi-derme ao escuro emaranhado dos vasossanguíneos e dos gânglios, ao intricado

dos nervos, à brancura do esqueleto.Estão expostos não só modelos de

cera, mas também objetos naturais, co-mo uma pele humana completa, inteira-

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mente montada, de um homem de 35anos (peça única, adverte o catálogo,que nenhum museu do mundo possui):

este tapete humano, esmagado comouma or nas páginas de um livro,pareceu-me, ali onde estava, a imagemmais fraterna e repousante. Devo admitir

que jamais senti atração por vísceras (as-sim como nunca me senti fortemente in-clinado a explorar a interioridade psico-lógica); daí talvez minha preferência por

esse homem todo em extensão, desdo-brado em toda a sua superfície, avessoa qualquer espessura e a qualquer inten-ção recôndita.

Em suma, para além das conhecidasatmosferas, a exposição do dr. Spitznernão pode ter em mim um bom cronista:meu olhar tendia instintivamente a esca-

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par de qualquer imagem em que o in-terior se expande para fora. Sobretudono pavilhão das doenças venéreas, onde

preferi não me deter, confortado pelanotícia consoladora de que alguns as-pectos clínicos nele representados hojedesapareceram por causa dos progres-

sos terapêuticos. (Isso está dito no ca-tálogo que enaltece o interesse históricoda exposição até para o médico especi-alista, já que hoje certas lesões silíticas

“abandonaram a cena patológica”.)Prero reclinar-me em recolhimento

sobre a redoma de vidro que cobre umareprodução da cabeça guilhotinada do

anarquista Caserio, modelada em ceralogo depois de o original ter caído nocesto (1894), com o talho do pescoçotão fresco quanto se estivesse num açou-

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gue, a expressão xada para sempre nosolhos esbugalhados e tortos, nas narinasdilatadas, nas mandíbulas tesas: um re-

sultado não muito diferente de um a-grante fotográco com ash, mas aqui aobjetivação é absoluta e sem resíduos.

O exemplo de fantasia sádico-surre-

alista mais inacreditável se encontra en-tre as representações das fases do partoe das operações ginecológicas. Um ma-nequim completo de paciente com cor-

te cesariano aparece de olhos abertos, orosto contraído de dor, o penteado im-pecável, os tornozelos amarrados, meti-da num camisolão com recamos que se

abre somente na parte rasgada pelo bis-turi, onde desponta o feto. Quatro mãosde homem estão pousadas sobre o cor-po (duas que operam e duas que lhe

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apertam a cintura): mãos longas e cére-as, de unhas bem cuidadas, mãos fantas-magóricas porque não sustentadas por

braços, mas apenas guarnecidas de cân-didos punhos e de barras das mangas deum paletó preto, como se toda a cerimô-nia se passasse entre pessoas em trajes

noturnos.Entre os atrativos que faziam (e fa-

zem) o público acorrer está certamentea que gura no catálogo como “coleção

dos monstros”. Há uma reprodução emcera do púbis de um tal John Chiffort,“nascido no condado de Lancashire, fei-ta a partir do modelo real aos vinte anos

de idade; ele possui três pernas e doispênis, ambos aptos à procriação”. Se nãofosse pela perna central, atroada e fran-camente desagradável à vista, os dois

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pênis, simétricos e paralelos, têm umatamanha naturalidade e urbanidade quepoderiam muito bem ser a dotação nor-

mal de qualquer homem.Caso oposto é o dos irmãos Tocci,

nascidos na Sardenha em 1887, que ti-nham cada um sua cabeça e seu par

de braços e ombros perfeitamente nor-mais, mas da altura do estômago parabaixo eram uma única pessoa, com umúnico ventre e um único par de pernas.

Seu manequim de cera (também repro-duzido nos cartazes da exposição) os re-presenta numa idade aparente de noveou dez anos, e a emoção que suscita é

acentuada pelo fato de que seus rostossão os de dois lindos meninos de ar es-perto. “Atualmente gozam de excelentesaúde e zeram uma turnê nas princi-

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pais capitais da Europa. Eles são incon-testavelmente o fenômeno mais curiosoque já se pôde ver.” Esse texto tirado do

 velho catálogo é acompanhado de umanota de atualização que diz: “Em 1897,depois de terem feito fortuna, os irmãosTocci se casaram com duas irmãs e se

retiraram para uma propriedade nos ar-redores de Veneza, onde teriam morridoem 1940 com a idade de 63 anos”.

O problema é que essas notícias

apresentadas pelo catálogo são em gran-de parte falsas. Posso armar isso por-que justamente nestes dias caiu-me nasmãos o recente volume de Leslie Fiedler,

 Freaks , que, além de capítulos sobreanões, gigantes, mulheres barbadas ehermafroditas, contém cerca de trintapáginas sobre os irmãos siameses cheias

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de informações essenciais. Segundo o li- vro, Giovanni Battista e Giacomo Tocci,batizados como duas pessoas diferentes

embora fossem uma só da sétima costelapara baixo, deviam suportar outra gravedeciência: seu único par de pernas nãoera capaz de sustentá-los nem de fazê-

los caminhar. (De fato, no modelo dodr. Spitzner os vemos apoiados num cor-rimão.) Essa imobilidade limitava muitoas possibilidades da dupla nas exibições

de “fenômenos vivos”, de modo que, de-pois de uma turnê internacional muitobreve, mas extenuante, os irmãos tive-ram de renunciar à carreira circense e

se retiraram para a Itália, onde se apa-garam tristemente (não encontro a data,mas provavelmente em jovem idade).

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 A notícia do matrimônio com duas ir-mãs talvez derive da contaminação comoutra história verdadeira (a única do gê-

nero que de algum modo pode ser con-siderada de “nal feliz”): a de dois ir-mãos siameses epônimos (isto é, aquelescuja fama está na origem do uso da pa-

lavra “siameses” para designar todos osirmãos que nascem ligados por uma par-te do corpo), Chang e Eng, nascidos em1811 no Sião, lhos de uma pobre famí-

lia chinesa, e mortos nos Estados Uni-dos em 1874. Rapidamente feitos refénsde empresários inescrupulosos, que ostransportaram para a América achando

que podiam dispor deles como se fos-sem objetos, Chang e Eng foram capazesde conquistar independência e de admi-nistrar a própria fortuna sem se deixar

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explorar nem mesmo pelo ávido Bar-num, em cujo circo se exibiram até 1839.

 A história de Chang e Eng é o triunfoda previdência chinesa misturada com acrença americana na superação das ad- versidades e dos preconceitos: de fatoeles conseguiram retirar-se para o cam-

po, na Carolina do Norte, e conquistaro respeito do mundo fechado dos agri-cultores brancos, tanto que se casaramcom duas irmãs, lhas de um abastado

proprietário, além de pastor da Igreja ba-tista. De suas esposas tiveram respecti- vamente doze e dez lhos, todos nor-mais, de modo que hoje seus descen-

dentes chegam a mil cidadãos america-nos.

 A imagem dos irmãos Tocci nos car-tazes pregados nos muros estimulou a

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imaginação de Mark Twain, que esbo-çou um conto inspirado no caso deles,assim como a história de Chang e Eng já

lhe havia dado matéria para outro con-to. (O tema do “duplo” é recorrente emsua obra.) O livro de Fiedler, cujo sub-título é  Myths and images of the secret 

 self , registra e combina notícias históri-cas com invenções literárias e cinemato-grácas e com a evocação dos arquéti-pos míticos. As páginas mais interessan-

tes do livro continuam sendo as histórias verídicas: a vida dos “fenômenos vivos”no mundo do circo, quase sempre histó-rias muito tristes.

Mas o ponto de partida do volumede Fiedler é uma reexão sobre a sortemutável do termo freaks , antes conotadopor um fascinado horror, mas que agora

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foi apropriado “como um título hono-ríco por jovens siologicamente nor-mais mas dissidentes, também conheci-

dos por hippies ou cabeludos”. Fiedlerparte daí para pesquisar o valor que asformas de “diversidade” física assumiramnas várias culturas, como interrogação

sobre os limites e os papéis que de-nem a existência humana. Nesse quadro,o museu de cera do dr. Spitzner podedar impulso a algumas reexões com-

plementares.

[1980]

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 5. O PATRIMÔNIO DOS  DRAGÕES 

Como tantas outras coisas, o estudodos dialetos na França começa na eranapoleônica. Em 1807, a direção de es-tatística do Ministério do Interior ordenauma pesquisa em todas as prefeituras:trata-se de reunir uma coleção de ver-sões da parábola do lho pródigo nosdiversos patoás e idiomas falados na

França. Chega-se à escolha desse textobase depois de outras tentativas (por ex-emplo, uma compilação de sermões do-minicais) e por m se concentra naque-

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le episódio que, tal como é narrado nos versículos de São Lucas, apresenta os re-quisitos da simplicidade e da universali-

dade, além de um representativo léxicodo cotidiano. Com a Restauração, o de-partamento de estatística é fechado, masa pesquisa é levada adiante pela Société

Royale des Antiquaires até a reunião detrezentas versões.

Essas notícias já bastam para dar umaideia de como as questões do estudo da

cultura popular na França são vistas demaneira diferente da nossa. Na França amultiplicidade das culturas locais jaz co-mo escondida sob a maciça hegemonia

da unidade linguística e cultural da na-ção (ao passo que na Itália as propor-ções são invertidas), e o impulso para oconhecimento desse mundo oculto nas-

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ce com a consciência de que ele estariaprestes a extinguir-se. (Na França e naItália, os tempos de sobrevivência histó-

rica é que são diversos: para nós, até on-tem parecia que os usos e as mentali-dades tradicionais fossem inextirpáveis,mas depois eles começaram a desapare-

cer de repente; na França, tornam-se ra-pidamente marginais, mas por isso mes-mo têm uma sobrevivência longuíssima.)

 A exposição montada no Grand Pa-

lais, intitulada “Hier pour demain: Arts,Traditions et Patrimoine”, percorre asorigens da descoberta “etnográca” daFrança na época das Luzes, quando a

Enciclopédia valoriza e cataloga os ins-trumentos e as operações das “artes me-cânicas”. Às  planches  dedicadas aos ofí-cios artesanais a exposição acrescenta

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um verdadeiro tear de meias da época,com lindas meias de seda bordadas deprodução setecentista. “O tear para fazer

meias é uma das máquinas mais compli-cadas e mais coerentes que temos”, diz ocomentário losóco de Diderot. “Pode-se considerá-la como um único raciocí-

nio do qual a fabricação do produto é aconclusão.”

 Ao mesmo tempo, um passo decisivoé dado pela Société Royale d’Agriculture,

quando o pastor, gura edulcorada daconvenção bucólica nas artes e nas le-tras, se torna um sujeito de conhecimen-to técnico com manuais como o Tratado

dos animais de lã ou método de criaçãoe governo dos rebanhos  (1770) ou as Ins-truções para os pastores e os proprietári-os de armentos  (1782). Também aqui a

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exposição do Grand Palais põe lado a la-do os documentos escritos e artísticos eos objetos e instrumentos da vida práti-

ca: nesse caso, coleiras de cachorro comesporões de ferro ou bastões com a pon-ta em colher, para lançar torrões contracarneiros desobedientes.

Etnógrafos à revelia foram os médi-cos da Société Royale de Médecine queexploraram as zonas rurais para inves-tigar a origem e a difusão das doenças

epidérmicas e prossionais. Suas “topo-graas médicas” contêm descrições decenas de vida das famílias camponesas ede trabalhos artesanais como o da ren-

deira ou do soprador de vidros. Ao mesmo tempo em que empurra

o povo para a ribalta da história, a Re- volução Francesa não faz muito para

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conhecê-lo concretamente, apesar dosesforços de um curioso tipo de estudi-oso, o Abbé Grégoire, que quis utilizar

a rede das “sociedades patrióticas” locaispara distribuir um questionário sobre osdialetos e as usanças dos camponeses.De fato, a Revolução é obrigada a cons-

tatar a disparidade cultural que separa asplebes urbanas (os  sans-culottes  arma-dos de chuços) das rurais (os chouans armados de foices), relegando a “França

selvagem” entre os vestígios do passadoa ser destruído sem piedade. Em suma,dos dois aspectos da cultura das Luzes— o de um progresso unilinear e uni-

cante e o do conhecimento detalhadodas diversidades e de seus motivos —, aRevolução, na lógica do centralismo ja-cobino, só assimila o primeiro.

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 A retomada só acontecerá no climada reação romântica às Luzes, quando a Academia Céltica se propõe a reconstruir

a imagem de uma civilização autóctoneda Gália druídica, contraposta à civiliza-ção greco-romana exaltada pelos revo-lucionários. Mas esses contrastes ideoló-

gicos estão mais em nossa ótica esque-mática que nos fatos, pois os estudiososda Academia Céltica eram pessoas aindaformadas na cultura das Luzes, e suas in-

 vestigações e seus métodos de pesquisaeram modelos de modernidade cientí-ca.

Uma das primeiras iniciativas da Aca-

demia Céltica foi fazer um recenseamen-to dos dragões: há cerca de vinte cida-des francesas em que, uma vez ao ano,se levava (ou se leva) um dragão de pa-

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pel machê em procissão. A lenda a que afesta se refere é quase igual em toda par-te: a oferenda de meninas ao monstro,

a libertação por parte de um santo oude uma santa. O dragão tem dois aspec-tos: inimigo terricante na lenda, torna-se na procissão uma presença carnava-

lesca e pachorrenta, com a qual a cida-de se identica e busca proteção. Os lei-tores de Tartarin, que lembram como acidade de Tarascon se orgulhava de sua

Tarasque, podem encontrar nesta expo-sição um grande quadro naïf dos taras-conenses carregando a dragoa pelas ru-as.

Reproduzido nos cartazes, esse qua-dro promete ao visitante uma exposiçãomais viva e alegre do que é na realidade.Como podemos facilmente imaginar,

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não há nada mais tedioso que paredescheias de ilustrações sobre a vida docamponês no século XIX . E as fotograas

de lavadeiras em trajes bretões não pare-cem muito mais excitantes. O fato é que,na literatura e nas artes oitocentistas, aimagem da vida rural repousava sobre

uma ideologia reconfortante: o campoera o mundo saudável e das virtudesperdidas, em contraposição à cidade. Deuma ideia tão falsa e tediosa só podiam

emergir representações falsas e tediosas,como a exposição demonstra abundan-temente.

Mas o que nos interessa são as exce-

ções a esse quadro. Maurice Sand, porexemplo, lho de George Sand (que ho-je volta a ser reeditada e lida, tanto emchave feminista quanto, justamente, em

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chave “etnográca”), ilustrou as “lendasrústicas” da mãe com desenhos român-ticos à Doré de um visionarismo aluci-

nado, que já consegue ser muito inquie-tante. E há sobretudo o desenhista etnó-grafo Gaston Vuillier (1845-1915), que,atraído pelas práticas de bruxaria e pelo

ocultismo camponês, tinha ao mesmotempo escrúpulo de delidade docu-mentária e sentido do efeito insólito.(Consta que ele também teria visitado a

Sicília e a Sardenha, fazendo desenhossobre as práticas mágicas; valeria a penarecuperá-los.)

Claro, para além dos quadros, das fo-

tograas e dos conhecidos e previsíveistrajes regionais, falam mais alto os obje-tos. Grande parte desses materiais pro- vém do Museu das Artes e Tradições Po-

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pulares que há doze anos mantém umasede no Bois de Boulogne e que é ummodelo de apresentação museográca.

 Ao passo que no museu o material éapresentado segundo uma classicaçãosistemática, aqui na mostra (dirigida pe-lo próprio curador do museu, Jean Cui-

senier) o ordenamento é histórico: é ahistória do interesse etnográco da Fran-ça por si mesma. Para quem percorre aexposição, é um pouco como folhear a

Storia del folklore in Europa  do nossoGiuseppe Cocchiara, um livro publicadocerca de trinta anos atrás e que continuasendo a síntese mais útil para enquadrar

historicamente os vários tipos de abor-dagem da cultura erudita aos territóriosmais distantes dela.

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Nos últimos tempos, a pesquisa his-tórica tem tentado estender essa rede derelações para trás, isto é, redenir opo-

sições e interações entre cultura eruditae cultura popular desde o Renascimento,se não da Idade Média; nesse sentido seorienta o mais recente livro sobre o as-

sunto saído na Itália, obra de um histo-riador inglês: Cultura popular na Idade  Moderna, de Peter Burke.

Naturalmente também nessa ótica, o

núcleo século   XVIII-século   XIX  continuasendo decisivo. “A descoberta da culturapopular”, diz Peter Burke, “teve lugar so-bretudo naquilo que se podia chamar de

periferia cultural da Europa e, simulta-neamente, na periferia de cada uma dasnações. A Itália, a França e a Inglaterrajá tinham literaturas nacionais e uma lín-

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gua literária havia tempo; os intelectuaisdesses países estavam cada vez mais dis-tantes dos cantos e das narrativas popu-

lares, à diferença dos russos, por exem-plo, ou dos suecos. Não surpreende quena Grã-Bretanha tenham sido os escoce-ses, e não os ingleses, a redescobrir a

cultura popular, e que na França a vogado canto popular tenha chegado tarde esido guiada por um bretão, Villemarqué,cuja compilação Bazzaz Braiz  foi publi-

cada em 1839. Seu equivalente italiano,Tommaseo, era originário da Dalmácia;em seguida, as contribuições mais im-portantes vieram da Sicília. Na Alemanha

a iniciativa também partiu da periferia:Herder e Von Arnim nasceram a leste doElba.”

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 A tese do historiador inglês encontraconrmação nas datas dos documentosda mostra parisiense: pode-se armar

que a França foi a última nação europeiaa estudar as próprias tradições popularese rurais, tanto é que o monumento des-ses estudos, o Manuale del folklore fran-

cese  de Arnold van Gennep, sai (em no- ve volumes, incompleto) entre 1937 e1958. Mas para mim o ponto mais im-portante é outro: é sempre a consciên-

cia de algo que está para se perder queimpele à pietas  por esses humildes vestí-gios. O “centro” chega mais tarde a essaconsciência, quando sua ação de homo-

geneização cultural já pode ser conside-rada completa e pouco resta a salvar; asperiferias a percebem antes, como ame-aça que vem da pressão centralizadora.

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Este ano é o “ano do patrimônio”,e a mostra foi organizada como um deseus eventos, dedicando especial aten-

ção ao papel que primeiramente tiveramas coleções particulares e o mercado an-tiquário na valorização de cerâmicas rús-ticas e de madeiras entalhadas, em se-

guida os museus regionais, e agora os“parques regionais”, que se propõem umprograma de salvaguarda ambiental maisamplo. A palavra “patrimônio”, querida

ao velho coração da França balzaquianae poupadora, cria a impressão de algosólido, substancioso e capitalizável (aopasso que nós, italianos, dizemos “bens

culturais”, expressão carente de qual-quer conotação de posse e de concretu-de); talvez somente o reexo do interes-se material possa contrabalançar o im-

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pulso a cumprir o gesto instintivo do ho-mem contemporâneo: o de jogar fora.

[1980]

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6. ANTES DO ALFABETO 

 A escrita nasce na Baixa Mesopotâ-

mia, no país dos sumérios, capital Uruk,por volta de 3300 a.C. Estamos no paísda argila; documentos administrativos,contratos de venda, textos religiosos oude gloricação dos reis são incisos coma ponta triangular de um caniço ou cála-mo em tabuletas que depois são secadasao sol ou cozidas. O suporte e o instru-

mento fazem com que a pictograa pri-mitiva sofra em breve tempo uma simpli-cação e estilização levadas ao extremo:dos signos pictográcos (um peixe, um

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pássaro, uma cabeça de cavalo) desapa-recem as curvas que, na argila, não so-bressaíam bem; assim a semelhança en-

tre signo e coisa representada tende adesaparecer; impõem-se os signos quepossam ser traçados com uma série detoques instantâneos do cálamo.

Em geral esses sinais se apresentamcom um ápice triangular que se prolon-ga numa linha formando uma espéciede prego ou então se divide em duas li-

nhas como uma cunha: é a escrita cunei-forme, que transmite uma impressão derapidez, movimento, elegância e regula-ridade compositiva. Ao passo que nas

inscrições na pedra a sucessão predomi-nante dos sinais era em sentido vertical,a escrita na argila tende naturalmente adistender-se em linhas horizontais para-

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lelas. O gesto gráco linear, nervoso eagudo que reconhecemos nos documen-tos cuneiformes continuará sendo, ainda

em nossos dias, o mesmo que é execu-tado por quem quer que empunhe umacaneta-tinteiro ou esferográca.

Desde aquele momento, escrever

signicará escrever depressa. A verda-deira história da escrita é a do cursivo;ou pelo menos é a essa utilização cur-siva que o cuneiforme deve sua fortuna

precoce. Economia de tempo, mas tam-bém de espaço: fazer caber o máximopossível de escrita numa determinadasuperfície é um tour de force rapida-

mente enfrentado. Conservou-se umfragmento de tabuleta de dois centíme-tros por dois com trinta linhas de lamen-

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tações litúrgicas num cuneiforme mi-croscópico.

Os sumérios tinham uma língua aglu-tinante: monossílabos acompanhados deprexos e suxos; os sinais, destacando-se da pictograa e da ideograa de suasorigens, passaram a identicar-se com os

sons silábicos. Mas a escrita cuneiformecontinuou conservando vestígios das vá-rias fases de sua evolução. Num mes-mo texto, numa mesma linha, sucedem-

se sinais ideogramáticos (o rei, o deus,adjetivos como “esplendente”, “possan-te”), sinais silábico-fonéticos (sobretudopara os nomes próprios: o sacerdote Du-

du se escreve com o desenho de doispés, porque Du quer dizer “pé”), signosdeterminativo-gramaticais (para o femi-

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nino há um sinal triangular que origina-riamente era um púbis de mulher).

O Louvre conserva uma grandequantidade de documentos deste tipo —tabuletas de argila, pedras entalhadas ouplacas de metal, lápides esculpidas —,mas fazê-los falar era privilégio dos es-

pecialistas. Agora a exposição inaugura-da no Grand Palais e dedicada ao “Nas-cimento da escrita” (cuneiforme e hi-eroglíca) apresenta mais de trezentas

peças (quase todas do Louvre, algumastambém do British), permitindo-nosapreciá-las por meio de uma extensae inteligente disposição didática. Uma

mostra para ser lida por inteiro: nos pai-néis explicativos, indispensáveis, e — namedida do possível — nos textos dosdocumentos originais em pedra, argila

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ou papiro. Talvez haja coisas demais,tanto em matéria de objetos quanto deinformações; mas o visitante que não

canse muito a vista e que supere o me-do de confundir as ideias (fase inevitá- vel num primeiro momento) poderá, aonal, dizer que compreendeu como se

chegou à escrita alfabética. A linearidade da escrita tem uma his-

tória nada linear, mas que se passa in-teiramente numa região geográca bem

delimitada, ao longo de dois milênios emeio: tudo acontece entre o golfo Pérsi-co, a costa mediterrânea oriental e o Ni-lo (o Egito constitui em si um longo ca-

pítulo dessa história). Se é verdade que aescrita hindu e provavelmente até a chi-nesa derivam desse mesmo cepo, pode-mos concluir que, no que se refere à es-

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crita (à diferença do que ocorre com alinguagem), é possível falar de uma mo-nogênese. (E a América pré-colombiana?

 A exposição não aborda o problema.)O certo é que a escrita é um fato

de cultura, e não de natureza (como sepode armar que seja o caso da lingua-

gem), e que na origem ela diz respei-to a um número limitado de civilizações. Jean Bottéro nos fala disso no catálo-go da mostra (e dele conhecemos o bri-

lhante ensaio sobre as técnicas divinató-rias da Mesopotâmia, no volume organi-zado por Vernant intitulado Divinazione e razionalità, editado na Itália pela Ei-

naudi), observando que a enorme mai-oria das línguas faladas nunca foi escri-ta, embora em nossos dias muitas delas

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tenham acabado passando por uma alfa-betização “alógena”.

Por que justamente a Baixa Meso-potâmia? Cinco mil anos atrás se formanaquelas terras áridas um novo sistemapolítico-econômico que tem como cen-

tro a cidade e a monarquia sacerdotal;os trabalhos de irrigação tornam possívelum grande desenvolvimento agrícola ese assiste a uma explosão demográca:

surge a necessidade de uma complicadacontabilidade para controlar os tributos,as trocas e os inventários de um grandenúmero de pessoas em vastos territórios.

 Antes mesmo da escrita, a argila, auxílioessencial para a memória, já servia paraxar mensagens exclusivamente numéri-cas; até que, ao lado das incisões que

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correspondem a cifras, começa-se a tra-çar guras que representam mercadorias(animais, vegetais, objetos) ou nomes de

pessoas.Então o que abriu os ilimitados rei-

nos espirituais da cultura escrita teria si-do uma necessidade prática, mercantil

ou mesmo tributária? As coisas são maiscomplexas. As formas primordiais desimbolismo gráco são adotadas nospró-memórias do dar e do receber por-

que já tinham sido elaboradas em âmbi-to artístico, especialmente nos vasos decerâmica pintada. Fazia tempo que emobjetos funerários e de culto, assim co-

mo em objetos de uso, o “nome” dosindivíduos e dos deuses era representa-do em forma de guras que eram simul-taneamente expressão de admiração ou

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de medo ou de amor ou de domínio:estados de ânimo, atitudes em relaçãoao mundo. A expressão que já podemos

denir de poética e o registro econômi-co são, portanto, as duas necessidadesque presidem o nascimento da escrita;não podemos fazer sua história sem le-

 var em conta ambos os elementos.Por volta da metade do terceiro mi-

lênio antes de Cristo, a escrita cuneifor-me passa dos sumérios aos acádios (ca-

pital Acádia ou Akkad), que a difundemem seu império até a Mesopotâmia doNorte. Os acádios têm uma língua semí-tica (com raiz triconsonantal), completa-

mente distinta da suméria. Os mesmossinais são usados para designar a mes-ma coisa, embora correspondam a su-cessões de sons diferentes (ou seja, de

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fonéticos que eram passam a ser ideo-grácos), ou se identicam com o novosom perdendo a memória do antigo sig-

nicado (ou seja, de ideográcos se tor-nam fonéticos).

Tudo também ca mais complicadodevido à multiplicação dos sinais (algu-

mas centenas); no entanto, foi por meiodos acádios que a escrita cuneiforme sedifundiu em todo o Oriente Médio (nósa reencontramos na biblioteca de Ebla,

descoberta recentemente), passando aosassírio-babilônios e aos sírios, aos elami-tas da Pérsia do Sul, aos cananeus da Pa-lestina e aos arameus, cuja língua se di-

fundiu da Índia ao Egito no primeiro mi-lênio antes de Cristo.

Se os documentos mais antigos nosapresentam palavras isoladas, sobretudo

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nomes, que não se encadeiam em frases— como se os homens tivessem apren-dido a escrever antes de saber o que es-

crever —, no tempo de Nínive e da Ba-bilônia essas marcas em forma de pé degalinha, apinhadas, nos narram a epo-peia de Gilgamesh ou nos fornecem um

 vocabulário, um catálogo de biblioteca,um tratado sobre as dimensões da torrede Babel (que parece ter sido um zigura-te de sete andares, com noventa metros

de altura). Ao passo que, na Mesopotâmia, é

possível seguir a evolução de uma pré-escrita (ou pré-numeração) à graa cu-

neiforme, no Egito os hieróglifos seapresentam de repente, é claro que umtanto balbuciantes e desordenados noinício, mas sem antecedentes conheci-

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dos. Isso quer dizer que a escrita foiimportada pelo Egito da Mesopotâmia? A cronologia (dois séculos de diferença

entre as primeiras pictograas de Uruke os primeiros hieróglifos) daria susten-tação a essa tese; mas o sistema egípcioé totalmente diverso. Trata-se, pois, de

uma invenção independente? Talvez a verdade esteja no meio: os egípcios es-treitaram relações comerciais com a Me-sopotâmia e não tardaram a perceber

que os sumérios “escrevem”; essa notíciaabriu novos horizontes à sua criativida-de, e de fato eles não demoraram mui-to a elaborar um método de escrita ori-

ginal, que permanecerá só deles. Já por volta de 3800 a.C., cerca de setenta lá-pides funerárias nos atestam que os hie-róglifos compreendiam 21 sinais alfabé-

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ticos (todas as nossas consoantes já exis-tiam), além de outros sinais que desig-navam grupos de letras, palavras-chara-

da e sinais que serviam para determinaro sentido de como deviam ser entendi-dos outros sinais.

 A hesitação entre guração e escrita

acompanha a atividade gráca por pelomenos 2 mil anos, e é essa ambiguidadeque torna a exposição do Grand Palaisbonita de se ver, além de nutriente para

a leitura e o estudo. Uma lápide egípciade grande beleza representa em baixo-relevo um falcão, uma serpente, as mu-ralhas de uma cidade; tudo poderia ser

dito dessa gurativa composição harmô-nica, menos que faça pensar em algo es-crito; no entanto, o perímetro da mura-lha é o sinal que designa um rei; o pás-

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saro pensativo é o deus Hórus, de quemo rei é a forma terrestre; e o ágil rép-til é o nome do rei. Entretanto, outros

baixos-relevos de pássaros não passamde modelos grácos das letras U e Aexecutados por um renadíssimo desig-ner da era ptolomaica.

Mesmo quando os hieróglifos já setornaram um sistema de escrita bem co-dicado, o escriba egípcio prefere, em vez de seguir uma disposição linear,

compor agrupamentos que visam à bele-za do conjunto, ainda que ela contrastecom a ordem lógica e as proporções en-tre as dimensões dos sinais.

 A disposição em colunas verticais,dominante antes que a ordem horizontal(da direita para a esquerda) se impuses-se (durante o Médio Império), deixa a li-

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berdade de ler os hieróglifos em suces-são vertical ou horizontal, a partir da di-reita ou da esquerda: aí começam os sa-

pientes jogos dos escribas que combi-nam uma direção de leitura com outra einventam as palavras cruzadas!

 Ao mesmo tempo, há estátuas-hieró-

glifo ou autênticos quebra-cabeças: umacompacta escultura da XVIII dinastia con-densa num único bloco uma serpente,dois braços erguidos, uma cesta e uma

mulher ajoelhada: o que quererá dizer? A explicação criptográca (que nem ten-to resumir) chega a um signicado nãopor meio de uma lógica das imagens,

mas por uma sucessão de sons.Nos baixos-relevos e nas pinturas tu-

mulares do antigo Egito, personagens -guradas são ladeadas por colunas de es-

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crita que são suas palavras, como nosquadrinhos de hoje. Mas o mais bonitoé que as guras humanas, estilizadas e

todas de perl, parecem participar damesma natureza dos sinais grácos, en-quanto as palavras hieroglícas continu-am pertencendo ao mundo das guras.

 A analogia entre os quadrinhos e essesprocedimentos egípcios é enfatizada pe-la exposição do Grand Palais, que en-comendou a desenhistas de quadrinhos

equivalentes modernos dessas cenas, emque faraós e sacerdotes trocam frases hi-eráticas, guerreiros gritam ameaças e im-propérios, marinheiros e pescadores se

tratam com frases debochadas.O universo das imagens é innito:

e assim era possível acrescentar à galá-xia dos hieróglifos sempre novos sinais;

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a escrita ptolomaica chegou a abrangermais de 5 mil. Em sua demasiada elas-ticidade está o inconveniente prático da

escrita hieroglíca, mas também sua ri-queza poética: num papiro funerário, onome do deus Amon é escrito de cin-co maneiras diferentes, correspondendo

a cada uma delas um diverso conteúdolosóco e religioso. Mas essa impos-sibilidade de se tornar um sistema fe-chado impediu a escrita hieroglíca de

expandir-se para fora do Egito, enquan-to a cuneiforme conquistava todo o Ori-ente Médio.

Entretanto, no primeiro milênio antes

de Cristo, os escribas egípcios elabora-ram um cursivo próprio, ainda mais rá-pido e gestual que o cuneiforme, e quedurará até os primeiros séculos de nossa

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era. A coruja, ou seja, a letra M se tornaprimeiramente um rabisco, depois umaespécie de Z, depois uma espécie de 3:

mas sempre conservando algo do hie-róglifo inicial. Também aqui (como noscuneiformes) são decisivos o meio e osuporte da escrita: nesse caso, a tinta e

o papiro. Os jogos estão feitos: não hámais nada a acrescentar à arte da escrita.Exceto uma coisa essencial: o alfabeto.

O alfabeto, isto é, a série de sinais

que correspondem cada um a um som eque agrupados diversamente podem re-presentar todos os fonemas de uma lín-gua, nasce com 22 sinais na costa da Fe-

nícia (o atual Líbano) por volta de 1100a.C. Do “consonântico linear fenício” de-rivam diretamente o moabita, o aramai-co, o hebraico e, mais tarde, o grego.

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Uma história especíca — mas sempreassociada a essa — têm os alfabetos ará-bicos e o copta, que deriva do cursivo

egípcio. Atenção: vejo que agora os especia-

listas escrevem “fenícios” entre aspas, oudizem “os povos que sob o nome de fe-

nícios”… Não sei o que há aí; e lhesconfesso que não tenho pressa de saber.Uma das poucas certezas que me resta- vam eram os fenícios. Agora, enquanto

parecia acertado que eles tinham inven-tado o alfabeto, surge a suspeita de quenunca tenham existido. Vivemos numaépoca em que não se salva mais nada

nem ninguém.

[1982]

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7. AS MARAVILHAS DA IMPRENSA MARROM 

Um urso branco despedaçando umajovem se destaca nos cartazes de umaexposição dedicada a fatos escabrosos(“Le fait divers”, Paris, Museu das Artes eTradições Populares). Os casos excepci-onais que suscitam a emoção das massassão apresentados não do ponto de vistada história do jornalismo, mas como for-

ma moderna de folclore.O urso branco provém de uma ilus-

tração do  Petit Journal   de 1893 queapresenta o “Suicídio de Frankfurt am

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Main”; suicídio fora do comum, descritoconcisamente pela crônica, mas com de-talhes sádicos de efeito garantido: uma

jovem doméstica desesperada de amor vai ao zoológico, tira a roupa e entracantando no fosso da fera, que se lançasobre ela.

Uma parte considerável do materialexposto provém de um suplemento ilus-trado do Petit Journal , que com suas pá-ginas em cores será o modelo da  Do-

menica del Corriere  (com mais de trintaanos de antecipação: o Petit Journal  co-meça em 1863, a  Domenica, em 1899).Nele vemos tigres e elefantes em fuga

de circos, tragédias dantescas nos sub-mundos de Paris, um assassinato passio-nal num açougue, um suicídio dentro deum túmulo, outro suicídio levado a cabo

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com uma guilhotina caseira, um homemnu de cartola e suíças que entra numlocal elegante, enquanto as senhoras ta-

pam os olhos. Pioneirismo na visualiza-ção da notícia (ainda que reconstruídapela imaginação de um ilustrador), queantecipa lmes de atualidade e a televi-

são, mas também pioneirismo linguísticoe principalmente conceitual, se é verda-de que o termo  fait divers  aparece pelaprimeira vez no Petit Journal .

No entanto, o período abraçado pelamostra remonta a bem antes, desde asfolhas impressas com toscas gravuras etextos rudimentares que eram vendidas

nos mercados do século  XVIII, com his-tórias e imagens de bandidos e de cri-mes, e que continuam por grande partedo século  XIX  sob o nome de canard .

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O termo canard , ou seja, “pato”, paraindicar “história inverossímil e provavel-mente falsa”, está presente há séculos no

francês popular e não se sabe ao certosua origem; há quem diga que os ven-dedores de canards  se anunciavam nasfeiras com um som de corneta que lem-

brava o grito do pato, mas a etimologianão está comprovada. Folhas semelhan-tes aos canards  dos séculos  XVIII e  XIX 

continuam até nosso século, com meios

grácos não muito mais evoluídos, e di-fundem as estrofes de canções sobre fa-tos da atualidade. Por exemplo, o terre-moto de Messina em 1909, gurado por

ruínas de templos romanos esmagandoa população.

 A personagem que domina essa do-cumentação é naturalmente o transgres-

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sor da lei: bandoleiros rurais e, a partirdo século  XIX , a marginalidade da me-trópole, mas também os assassinos iso-

lados, por dinheiro, por paixão ou porloucura. Ficamos sabendo que a palavrachauffeur , que nos evoca as imagens di-nâmicas e elegantes do automobilismo

de início do século, tem entre os séculos XVIII e  XIX  um signicado aterrorizante:chamavam-se chauffeurs  os bandoleirosque assaltavam as casas de campo e

queimavam os pés das vítimas paraobrigá-las a revelar onde escondiam odinheiro.

O fascínio que os fora da lei e os

criminosos exerciam na imaginação (nu-ma época em que o crime ainda não ti-nha se tornado uma indústria como ou-tra qualquer) está comprovado inclusi-

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 ve pelos cartões ilustrados que reprodu-zem bandidos e assassinos famosos: océlebre caso de sangue entre “apaches”

pelos belos olhos da loura Casque d’Or(que inspirará um belo lme deste pós-guerra) é representado como uma foto-novela numa série de gurinhas de 1907.

Do mesmo modo, em 1913, as efígies da Bande à Bonnot  passam para os cartões-postais.

Não é apenas a crueldade do crime

que excita a curiosidade, mas também,e desde sempre, seu contrapasso, a cru-eldade da punição. A guilhotina é umgrande tema da iconograa popular (e

das canções); uma série de cartões ilus-trados com a objetividade de tristes foto-graas em preto e branco nos transmiteuma panorâmica da prisão, uma vista de

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conjunto do instrumento, detalhes da lâ-mina e do cesto e até um enquadramen-to da garagem onde o aparelho era guar-

dado nos períodos de repouso: o espí-rito burocrático-tecnológico do início doséculo  XX  é aqui documentado em suaface mais deprimente.

O costume dos antigos carrascos de vender a corda dos enforcados comoamuleto se estende a um culto macabrodas relíquias dos guilhotinamentos. Aqui

está exposta, emoldurada e posta atrásde um vidro uma assemblage que con-tém as golas da malha e da camisa corta-das para a toalete preparativa da execu-

ção de Caserio, o anarquista que come-teu o atentado mortal ao presidente Car-not (1899). (Sobre os detalhes dessa toa-lete durante a Revolução Francesa se de-

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tém o lme  Danton, de Wajda, em car-taz nestes dias em Paris.)

O assassínio, assim como a santida-de, produz relíquias: o mobiliário da ca-sa de Landru foi a leilão em 1923, eobviamente o objeto que atingiu cifrasmais altas foi o famoso fogão a lenha

em que Landru se livrava dos restos desuas “namoradas”. Ficamos sabendo quefoi arrematado por “40 mil liras, por umitaliano”. (Estará na Itália? Devemos

considerá-lo um bem cultural a ser tute-lado?)

O julgamento é o instante em que aevocação do fato violento e o da pena

estão presentes juntos, e é justamente apartir do julgamento que a crônica susci-ta emoções populares. Não é por acasoque muito dessa documentação gira em

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torno dos “julgamentos célebres”, quedesde 1825, com o início da Gazette des Tribunaux , podem contar com um jor-

nalismo especializado, que por sua vezinspirará tanto grandes escritores — deStendhal a Balzac a Sue — quanto ro-mancistas de folhetim.

O humour noir  em torno dos delitose das execuções circula não só entre osespíritos blasés, mas também na impren-sa popular: em 1884 é lançado um  Diá-

rio dos Assassinos , “órgão ocial dos Es-faqueadores Associados” (“Assinaturas: àmeia-noite, nas esquinas das ruas”), quenão sei se passou do primeiro número.

 As “estalagens sangrentas”, nas quaisos estalajadeiros matam os clientes du-rante o sono e queimam seus corpos naestufa, são outro tópos que, da crônica

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policial da profunda província francesaoitocentista, passa à literatura e ao tea-tro (versão mais recente: O mal-entendi-

do, de Camus). A mais famosa foi a es-talagem de Peirebeille, onde os cônjugesMartin e o criado Rochette, o Mulato, de-ram sumiço em um número de pessoas

que nunca foi estabelecido com preci-são, para depois serem guilhotinados em1883, no mesmo local de seus crimes.Não era preciso mais nada para que

em seguida a estalagem se transformassenuma atração turística, com cartões-pos-tais e suvenires.

Essas histórias sangrentas fornecem a

matéria-prima mítica que depois é apro-priada pela literatura popular (seguindode perto os acontecimentos com fascí-culos a dez centavos sobre famosos cri-

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mes romanceados), pelas peças apresen-tadas num teatro especializado, que re-cebe sua macabra sugestão do nome do

Boulevard du Crime, onde se localizava(e que foi imortalizado no lme O bou-levard do crime , de Marcel Carné), pelosmanequins de cera do Museu Grévin e

por m pelo cinema: é toda uma dimen-são do imaginário que, da França, pas-sa para a mitologia universal do mundomoderno.

(Na Itália, matéria-prima não faltava,basta recordar a antologia de ErnestoFerrero intitulada  La mala Italia, quesaiu anos atrás pela Rizzoli; apenas não

tivemos uma cultura literária — ou sim-plesmente um pendor da fantasia — quesoubesse transgurar tudo isso.)

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Mas o  fait divers  abordado pela ex-posição parisiense não inclui somente acrônica negra. (Essa distinção entre crô-

nica “negra” e “branca” é, se não me en-gano, exclusiva da Itália.) Também fa-zem parte os atos de heroísmo, de ab-negação, de coragem, especialmente os

salvamentos. Uma coleção de livrinhosde 1787, às vésperas da Revolução, eradedicada às “virtudes do povo”: episó-dios em que personagens humildes se

distinguiam em lances de humanidade,conrmando as ideias de Rousseau so-bre a bondade natural dos seres huma-nos.

Não só os extremos da alma humana,no bem ou no mal, mas qualquer fatoque saia da norma serve para virar no-tícia,  fait divers : a chegada da primeira

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girafa a Paris, em 1827, é um aconteci-mento que durante anos continua sendohistoriado em xilogravuras e litograas,

em almanaques e pratos de cerâmica epanelas de cobre.

Enm os fenômenos vivos, que des-de a Antiguidade carregam a aura do

prodígio, do sinal dos deuses. A mostranão é muito rica sobre monstros, sereias,anões, gigantes ou irmãos siameses, mashá uma parte que certamente não se vê

todos os dias: um “busto naturalizado”de mulher barbada (de um século atrás),isto é, não uma reprodução, mas a ca-beça verdadeira da mulher, embalsama-

da depois da morte com o objetivo dedocumentação cientíca, e cujo embal-samador, num escrúpulo ao mesmo tem-po “artístico” e cavalheiresco, cingiu-lhe

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o colo com um coletinho de tecido bor-dado.

Obviamente também fazem parte dacrônica incidentes e acidentes de todo ti-po, tão mais apreciados quanto mais ra-ros ou novos. Aí estão os primeiros aci-dentes de carro: um automóvel que se

choca contra um trem expresso (nos Es-tados Unidos: o fundo é de montanhasrochosas, com vegetação exótica).

Muitas das capas do  Petit Journal 

mostram guras humanas enquanto es-tão caindo, suspensas no ar, em meio ao voo: cai um espectador da galeria sobrea plateia do teatro, cai um aeronauta do

balão, voa uma mulher de saias longasatravés de uma janela (“drama da loucu-ra”), voa de outra janela um “novo Íca-ro” coberto de plumas.

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E as cenas de violência e de crimesão sempre representadas por braços er-guidos que brandem punhais e facas. O

acontecimento que transtorna a ordemnatural das coisas se situa num momen-to que parece estar fora do tempo, ummovimento fulminante que se xa para

sempre.

[1983]

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8. UM ROMANCE DENTRO DE UM QUADRO 

 As mostras “dossiê” que o Museu doLouvre organiza periodicamente, pondoao redor de um quadro famoso ou deum grupo de quadros todos os docu-mentos (desenhos, esboços, outrasobras) necessários para iluminar sua gê-nese, são sempre interessantes, e semprehá muito a aprender. Neste inverno a ex-

posição “dossiê” permite estudar gurapor gura uma das mais famosas telasdo século XIX : A Liberdade guiando o po-

vo, de Delacroix. Um quadro com tantas

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personagens é um pouco como um ro-mance em que se cruzam várias vidas;razão por que me sinto autorizado a fa-

lar dele, sem invadir o campo dos histo-riadores da arte e dos críticos, mas sim-plesmente contando o que é explicadona mostra e tentando ler o quadro como

se lê um livro. Em julho de 1830, três di-as de revolta popular em Paris (os “TrêsGloriosos”) tinham posto m ao reino deCarlos  X  e à restauração dos Bourbon;

poucos dias depois se instaurava a mo-narquia constitucional de Luís Felipe deOrléans; nos últimos meses do mesmoano, Delacroix pintou sua grande tela

para celebrar a revolução de julho. Ain-da hoje, quando se precisa de uma ima-gem que celebre, com a ênfase que otema requer, a força libertadora de uma

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luta popular, recorre-se em todo o mun-do a esse quadro. A exposição tambémilustra essa fama com uma sala que mos-

tra como o quadro continua sendo cita-do, reproduzido, caricaturado, cozinha-do em todos os temperos: uma fortunadevida ao seu tema, claro, mas sobretu-

do a seus valores pictóricos, sem igualem gurações do gênero. Essa obra foirevolucionária antes de tudo na históriada pintura porque, embora hoje nos pa-

reça sobretudo um quadro alegórico, na-quela época foi vista como a primeiraexpressão de um realismo inaudito e es-candaloso.

Ora, é preciso primeiramente dizerque o quadro não nasce de nenhumamilitância política de Delacroix: sob oreinado de Carlos  X , o pintor já estava

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na crista da onda, com apoios na cortee encomendas por parte do Estado. Oescândalo de 1827 pela  Morte de Sarda-

napalo, quadro julgado imoral, resolveu-se numa consolidação de sua fama. Aomesmo tempo ele também gozava doapoio do duque de Orléans, o futuro

Luís Felipe, então líder da oposição libe-ral e apaixonado pela nova pintura, quecomprava os quadros de Delacroix.

Quando em julho de 1830 estoura a

insurreição, Delacroix não vai para asbarricadas, mas se alista, como muitosoutros artistas, nos serviços de guardado Louvre que protegem as coleções

do museu de eventuais saques da mul-tidão desenfreada. Ficaram alguns teste-munhos desses turnos de guarda diur-nos e noturnos, em que entre os artistas

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enviados para o serviço de ronda sedesencadeavam brigas furiosas, as quaiscostumavam terminar em socos, mas

não por causa de política, e sim pelasrespectivas tendências artísticas ou pelomodo de avaliar Rafael. A visão que essabreve anedota suscita nos restitui a at-

mosfera de tensão revolucionária comuma verdade extraordinária: as salas doLouvre à noite, no coração da cidadeem revolta, os civis armados e encapo-

tados que passam entre sarcófagos egíp-cios discutindo sobre as razões ideaisde seu ofício com uma tenacidade semprecedentes, enquanto ecos distantes de

disparos e gritos chegam das bandas doHôtel de Ville, para lá do Sena…

Naqueles anos Delacroix tinha inter-rompido seu diário, e para conhecer sua

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posição quanto à revolução só nos res-taram algumas cartas, de onde emergemapenas as preocupações de um homem

tranquilo numa época de desordens. Umtestemunho de Alexandre Dumas (que,porém, sempre transgurava suas recor-dações) nos mostra um Delacroix visi-

 velmente assustado ao ver os popularesem armas, depois entusiasmado diantedo tricolor que tornara a esvoaçar comonos tempos de Napoleão, e nalmente

conquistado pela causa do povo.Nos dias seguintes à revolução, é re-

constituída a Guarda Nacional que Car-los X  havia suprimido, e Delacroix logo

se alista nela como voluntário, ainda queresmungando em suas cartas da durezado serviço. Todo o seu modo de agir émuito linear: suas reações são aquelas

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normais de quem segue com empenho aconvergência do movimento popular nainstauração de uma monarquia liberal, e

ele naturalmente termina por se ver fa-zendo parte do novo establishment orle-anista.

Mas 1830 não tinha assinalado ape-

nas a passagem de uma dinastia a outrae de uma aristocracia com vocação bur-guesa a uma burguesia com vocaçãoaristocrática: pela primeira vez as massas

proletárias tinham descido às ruas como protagonistas  (ao passo que, na revolu-ção de 1789, a iniciativa ainda couberaaos líderes ideológicos) e sido o elemen-

to decisivo para a mudança de regime.Será essa novidade , que então domina- va todos os discursos, o tema exclusivodo quadro em que Delacroix trabalhará

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nos meses que se seguiram aos aconte-cimentos (quando a desilusão e o ran-cor já serpeavam entre os republicanos

e democratas mais radicais). “Dei inícioa um tema moderno, uma barricada”, es-creve em outubro ao irmão, “e, se nãolutei pela pátria, pelo menos pintarei pa-

ra ela. Isso me trouxe de volta um ótimohumor.”

O quadro, que representa aos olhosde quem o vê o ímpeto, o movimento e

o entusiasmo, parece ter sido pintado deum jato. No entanto, sua história mos-tra uma composição laboriosa, cheia dehesitações e de revisões, calculada deta-

lhe a detalhe, numa justaposição de ele-mentos heterogêneos e em parte pree-xistentes. Como obra alegórica, dir-se-iaque ela é animada apenas por um ide-

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al sentido passionalmente: porém a es-colha de cada detalhe de vestuário, decada arma empunhada tem um signica-

do e uma história. Como obra realista,dir-se-ia que ela foi inspirada por umacena real, por emoções colhidas no ter-reno da luta: porém se trata de um re-

pertório de citações museográcas, umcompêndio de cultura gurativa.

Primeiramente a exposição demons-tra, de modo que me pareceu convin-

cente, que a mulher no centro da tela,a mais famosa representação da Liberda-de na história da pintura, não nasce na-quele momento na imaginação de De-

lacroix: ela já existia cerca de dez anosantes num grande número de desenhos.Era “a Grécia insurgida contra os turcos”,à qual Delacroix queria dedicar um qua-

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dro desde os tempos dos primeiros mo- vimentos pela independência helênica,em 1820. A solidariedade lo-helênica

era um tema muito sensível ao romantis-mo europeu, e Delacroix começa a de-senhar em 1821 com vistas a um qua-dro alegórico; no ano seguinte, com a

notícia da sangrenta repressão ocorridana ilha de Quios, desenvolve outra ideia,que o levará à famosa tela de 1824, O massacre de Quios ; em seguida, retoma

os estudos para a gura de mulher quese tornará  A Grécia sobre as ruínas de  Missolonghi  (Museu de Bordeaux, 1827).No entanto, mais que neste quadro, é

nos desenhos (que por meio de outrosdetalhes são identicáveis como estudospreparatórios para a Grécia) que reco-nhecemos o movimento dos braços e do

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torso tal como ele os retomará na  Li-berdade ; assim como nos mesmos dese-nhos observamos que a gura traz na

cabeça, inicialmente, uma coroa torrea-da, e depois um barrete frígio.

Não só. A radiograa por raios in-fravermelhos intervém para investigar se

por acaso Delacroix não teria usado umatela já pintada para a  Liberdade , corri-gindo um esboço feito anos antes paraa Grécia. Os resultados da pesquisa, co-

mo frequentemente acontece, são muitoincertos e servem mais para abrir novasquestões que fornecer respostas. O quese sabe é que a saia da Liberdade era

num primeiro momento mais ampla,menos apropriada ao salto sobre a bar-ricada; o rosto era visto de frente, comonos desenhos; a ideia de pô-lo de perl,

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que lhe dá aquela incisividade inesque-cível, parece ter surgido enquanto pin-tava a tela, e é certamente uma ideia li-

gada ao tema de 1830, e não ao prece-dente: a Liberdade vira o rosto para opovo a m de exortá-lo à luta. Depoishá a estranha manga do operário à es-

querda, um dos raros pontos em que apintura é um pouco improvisada: pode-ria ser uma correção para cobrir uma in-dumentária grega ou turca. Por m há o

madeiramento torto da barricada que, nasintaxe do quadro, serve para distanciara paisagem de Paris ao fundo e elevarcomo num palco as guras gloricadas,

mas também poderia servir para escon-der uma paisagem pintada anteriormen-te, a praia de Missolonghi, o mar…

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Não há nada de certo além dessassuposições. A conclusão é que  A Liber-dade guiando o povo é um quadro autô-

nomo, pensado e pintado em 1830; o fa-to de ter utilizado estudos precedentesnão demonstra uma contradição ou umaindiferença ao tema, que continua sendo

o da liberdade dos povos, mas sim umenriquecimento na passagem da alegoriaideal à experiência vivida, que se tornafato visual e corpóreo. O ordenamento

formal do quadro deriva inteiro da im-postação de 1830: é a bandeira que ser- ve de cume à composição, determinan-do suas estruturas triangulares e as três

cores que se contrapõem no resto doquadro.

Os curadores da mostra citam comoequivalente o caso de Picasso, que ao

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receber a notícia do bombardeio de Gu-ernica retoma os estudos de suas tauro-maquias de anos anteriores (que já con-

tinham o presságio da iminente tragédiaespanhola) para compor o famoso qua-dro.

De acordo com o tema a que se

propôs, Delacroix situa à esquerda daLiberdade três guras de operários: por“povo” se entendiam os trabalhadoresmanuais. (Não há um só burguês re-

conhecível no quadro, caso se excetueuma gura de bicorne ao fundo, que po-deria ser um dos estudantes da ÉcolePolytechnique que participaram da re-

 volta.) Com evidente intenção sociológi-ca, Delacroix caracteriza três tipos diver-sos de trabalhadores manuais: o de car-tola pode ser um artesão, um compag-

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non de uma corporação de artes e ofíci-os (sim, a cartola naquela época era umchapéu universal, sem conotações soci-

ais; mas as calças largas e o cinto deanela vermelha são característicos dosoperários); a gura com a espada é umoperário da manufatura, com o avental

de trabalho; o que está ferido, de quatro,com lenço na cabeça e a blusa arregaça-da na cintura, é um trabalhador da cons-trução civil, mão de obra sazonal vinda

do campo para a cidade. À direita da Liberdade está o famoso

garoto com barrete negro e armado deduas pistolas, que hoje todos chamam

de Gavroche (mas em 1830 Os miserá-veis  ainda estava por ser escrito; o ro-mance de Hugo só será publicado em1862). Aqui ele é confrontado com uma

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estátua de Mercúrio feita por Giambo-logna, que por seu ímpeto já havia inspi-rado outros pintores da época, mas sem-

pre de perl, ao passo que aqui a guraestá de frente.

Há outro garoto armado de baionetaà esquerda do quadro, agachado entre

os  pavés  amontoados, com um barreteda Guarda Nacional. Todos os detalhesdos uniformes são identicáveis comprecisão, assim como as armas, desde

a bandoleira das guardas reais de quese apossou o garoto (ao passo que asduas pistolas eram de uso da cavalaria)até o sabre das companhias especiais de

infantaria, empunhado pelo operário deavental, com a respectiva bainha. É pos-sível traçar uma história de todas as ar-mas representadas no quadro, como as

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dos paladinos dos poemas cavalheires-cos; mas aqui, como sempre ocorre nasautênticas revoluções, o armamento é

improvisado e heterogêneo, porque pro- vém de aportes casuais e do butim ar-rancado aos inimigos. A única arma nãomilitar é aquela empunhada pelo operá-

rio de cartola, que leva uma espingardade caça de cano duplo.

Essa minuciosa pesquisa iconológicatrouxe surpresas ideológicas que dizem

respeito justamente ao operário mais tí-pico, o de avental: ele tem um cocarbranco com uma borla vermelha sobre obarrete; cocar branco quer dizer monar-

quista, e ainda por cima carrega a pistolana cintura com um  foulard  de cores da Vendeia; contudo, ele se converteu ao li-beralismo (borla vermelha), portanto se

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trataria de um popular el ao trono quese rebela contra a opressão do absolutis-mo… Mas é inútil que nos adentremos

nessas hipóteses, terreno em que os eru-ditos podem nos contar o que quiseremsem temer que possamos desmenti-los.

Mais disponíveis à nossa leitura, os

três mortos em primeiro plano. Um de-les pertence à alegoria, ao mito, em suaclássica gura idealizada; de fato ele estánu, ou mais precisamente sem calças,

mas nenhum crítico pensou emescandalizar-se por isso (ao passo queo seio nu da Liberdade, mesmo sendoum atributo tradicional das Vitórias ala-

das, suscitou protestos), pois correspon-de a um modelo acadêmico muito difun-dido no repertório clássico. Assim era re-presentado o corpo de Heitor atado pe-

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las pernas ao carro de Aquiles. Os ou-tros mortos são dois soldados do mo-narca derrotado, misturados aos caídos

na revolução por um sentimento de pi-edade universal: um deles veste a divisado regimento suíço da Guarda Real (queLuís Felipe suprimirá) com o chapéu (o

 sciaccò) rolado em seu anco; o outro éum francês, um couraceiro. Essas gurasde caídos (inclusive o operário ferido)têm precedentes na pintura celebrante

de David e de Gros: o quadro de Dela-croix é um lugar de encontro de motivos velhos e novos da história da pintura, as-sim como a revolução de julho o foi pa-

ra a história da França. A paisagem parisiense ao fundo abre

outros problemas. Nela sobressai a es-trutura de Notre-Dame, mas a catedral

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naquela perspectiva só podia ser vista damargem esquerda do Sena, e nesse casonão se explicam as altas casas que estão

à sua direita, pois daquele lado já passao rio. Ou seja, trata-se de uma paisagemimaginária, simbólica. Por que Notre-Da-me? A catedral não entrava na simbolo-

gia orleanista (Luís Felipe se apresentavacomo laico e seguidor do Iluminismo),mas sim nas teorias sociais da época,com o cristianismo democrático de La-

mennais; e também naqueles anos VictorHugo começa a escrever seu  Notre-Da-me , fazendo da catedral um símbolo deliberdade.

Por tudo isso o quadro, exposto noSalon de 1831, desconcertou o públicoe a crítica; suscitaram protestos o rea-lismo dos proletários insurgentes, de-

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nidos pelos críticos de “caras de cortemarcial”, “canalha”, “dejetos da socieda-de”, e a audácia da Liberdade, sobretudo

porque mostrava uma axila peluda (anudez clássica devia ser glabra). Apesardisso a tela foi comprada pelo ministrodo Interior, mas já em 1832, quando

o novo regime começava a enfrentar-secom novas agitações populares, desapa-recera de circulação. O quadro voltoua ser exposto depois da revolução de

1848, mas por pouco tempo; em 1849o tema volta a ser explosivo, e a tela vai parar num depósito. Seu autor tentaexumá-lo para a Exposição Universal de

1855. Mas o barrete frígio na cabeça deMarianne ainda era uma imagem muitosubversiva para aqueles tempos, embo-ra Delacroix não tenha feito mais que

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seguir modelos clássicos, sem nenhumaintenção militante. Agora vemos no qua-dro que o barrete frígio não é vermelho

como o dos  sans-culottes , mas de umcastanho-escuro. E as sondagens radio-grácas descobriram que debaixo des-se tom apagado há um estrato escarlate.

Daí a inferir que Delacroix tenha atenu-ado aquela cor excessivamente provoca-tória para agradar aos censores do Se-gundo Império basta um passo. Seja co-

mo for, a pedido de Napoleão   III, a Li-berdade terminou por ser admitida naexposição. Depois de outras vicissitudes,com a Terceira República entra no Lou-

 vre, e daí para a glória universal.

[1983]

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 9. DIGAM COM OS NÓS 

 As mensagens de guerra e de paz,

na Nova Caledônia, consistiam numa ru-dimentar corda de casca de banian ( Fi-cus bengalensis ) pontuada de diversosnós. Um pedaço de corda com um nóem anel numa extremidade era uma pro-posta de aliança militar; se aceitasse aaliança, o destinatário só precisaria fazerum nó semelhante na outra ponta e de-

 volver a mensagem ao remetente; assimum pacto indissolúvel era concluído. Aocontrário, um nó que amarre uma pe-quena tocha — apagada, mas com tra-

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ços de queima — será uma declaraçãode guerra; quererá dizer: “Iremos quei-mar suas choupanas”. A mensagem que

oferece a paz aos vencidos é mais com-plicada; trata-se de convencê-los a voltarao vilarejo destruído e reconstruí-lo (osconquistadores evitam ao máximo

estabelecer-se num vilarejo que pertençaa outros e ao espírito de seus mortos);por isso o nó da mensagem amarraránum só feixe pedacinhos de bambu, ar-

bustos e folhas que sirvam à construçãodas choupanas.

Essas bras entrelaçadas estão ex-postas numa insólita mostra: “Nós e

amarrações”, na Fundação Nacional de Artes Grácas e Plásticas da rue Berryer,que nos convida a reetir sobre a lingua-

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gem dos nós como uma forma primordi-al de escrita.

Elas nos evocam as cordinhas dosmaoris (estamos sempre nas ilhas doPacíco) citadas por Victor Segalen noromance Os imemoriais : os narradoresou aedos polinésios recitavam seus po-

emas de memória, recorrendo a cordi-nhas trançadas cujos nós eram repassa-dos entre os dedos seguindo os episódi-os da narração. No entanto, não está cla-

ro que correspondências eles estabeleci-am entre as sucessões de nomes e gestasde heróis e antepassados e os nós de di- versas formas e tamanhos dispostos em

intervalos variados: mas com certeza ofeixe de cordinhas era um instrumentoindispensável para a memória oral, ummodo de xar o texto antes de qualquer

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ideia de escrita. “Essas tranças”, escreveSegalen, “eram chamadas de Origem-do- Verbo, porque as palavras pareciam nas-

cer delas.” O advento da escrita, ou seja,o simples fato de saber que os homensbrancos conam sua memória a sinaisnegros em folhas brancas, põe em crise

os procedimentos da memória oral: osaedos esquecem seus poemas, as cordi-nhas cam mudas em suas mãos. A tra-dição oral — escreve Giorgio Agamben

comentando Segalen — mantém conta-to com a origem mítica da palavra, istoé, com o que a escrita perdeu e quecontinuamente persegue; a literatura é a

tentativa incessante de recuperar aquelasorigens esquecidas.

Na exposição da rue Berryer tambémhá um quipu dos incas peruanos; trata-

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se de uma franja de os de algodão de várias cores, que os altos funcionáriosdo Império inca utilizavam para a con-

tabilidade do Estado, os recenseamentosda população, a avaliação dos produtosagrícolas, enm: o computador daquelasociedade baseada na exatidão dos cál-

culos e das repartições.Há um objeto japonês feito de lâmi-

nas de madeira entrelaçadas num com-plicado desenho quase barroco que sim-

boliza o deus da montanha, o qual se re-fugia nos picos durante o inverno paradepois descer à planície na primaveracomo deus do arroz e velar pelas jovens

plantas. Na tradição do xintoísmo nipô-nico há deuses denominados “amarrado-res” porque atam o céu à terra, o espíri-to à matéria, a vida ao corpo. Nos tem-

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plos, uma corda de palha amarrada indi-ca o espaço puricado, fechado ao mun-do profano, em que os deuses podem

demorar. Nos rituais budistas mais sos-ticados, o poder do nó subsiste mesmosem seu suporte material: basta que osacerdote mova os dedos como se amar-

rasse para que o espaço da cerimônia sefeche a inuências nocivas.

Os objetos etnográcos expostos nãosão muitos; vieram do Musée de

l’Homme, do Museu de Artes Africanase Oceânicas, de coleções particulares esobretudo do Museu das Artes e Tradi-ções Populares. Na realidade a exposi-

ção é dedicada especialmente aos nósnas obras de artistas contemporâneos,os quais, nos entrelaçamentos e amarra-ções e emaranhados dos materiais mais

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diversos, se inspiram na força primitivados objetos estudados pelos antropólo-gos, mas também nas sugestões inventi-

 vas dos inumeráveis usos práticos do nóna vida cotidiana.

Sem querer invadir o campo dos crí-ticos de arte, sublinharei uma linda as-

semblage de Etienne-Martin (cordas,correias, jaezes de cavalos, telas), umabarreira de paus, cordas e cortinas enro-ladas de Titus-Carmel, uma paliçada er-

guida por rolos de cânhamo de Jackie Windsor, restos de cordas carbonizadaspostas sobre um parterre de pedriscosde Christian Jaccard, muitos objetos

bruxômanos e coloridos de Jean Clare-boudt e arcos ornamentados de LouisChacallis, amarrações de tubos de chum-bo de Claude Faivre, raízes feitas de

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grossas cordas de Danièle Perrone e ou-tros exemplos de materiais nodiformesin natura (uma raiz, um esqueleto de

pássaro de Louis Pons, bras vegetaisemaranhadas de Marinette Cucco).

 Através de uma vitrine da mostra —a dos livros aprisionados —, experimen-

tei uma peculiar emoção “prossional”,como o pesadelo de uma condenação: volumes atados, amordaçados, acorren-tados, enforcados de todos os modos,

um livro envolto num rolo de cânhamoe laqueado de vermelho lagosta (BartonLidice Benès), ou, visão mais suave, umlivro com páginas de gaze como teias

bordadas (Milvia Maglione). A exposição, organizada por Gilbert

Lascault, traz ainda no catálogo umensaio-conto de um matemático, Pierre

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Rosenstiehl. Porque os nós, como con-gurações lineares de três dimensões, sãoobjeto de uma teoria matemática. Entre

os problemas que ela descortina há odo “nó borromeu” (três anéis enlaçados,dos quais apenas o terceiro anel ata osoutros dois). O “nó borromeu” também

foi muito importante para Jacques La-can: veja-se, no Seminário XX , o capítulo“Anéis de corda”.

Eu jamais ousaria tentar denir com

palavras minhas a relação do nó borro-meu com o inconsciente segundo Lacan;mas gostaria de ao menos formular aideia geométrico-espacial que pude de-

duzir disso: o espaço tridimensional temna realidade seis dimensões, porque tu-do muda conforme uma dimensão passe

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acima ou abaixo de outra, à esquerda ouà direita de outra, como em um nó.

Isso porque, nos nós, a interseção deduas curvas não é nunca um ponto abs-trato, mas é o ponto em que corre ou gi-ra ou se amarra uma ponta de cabo outrança ou corda ou o ou linha ou cor-

dão, sobre ou sob ou em torno de si oude outro elemento congênere, como re-sultado dos gestos muito precisos de umgrande número de ofícios, do marinhei-

ro ao cirurgião, do sapateiro ao acroba-ta, do alpinista à costureira, do pescadorao embalador, do açougueiro ao cestei-ro, do fabricante de tapetes ao cordoeiro

de pianos, do campista ao empalhadorde cadeiras, do lenhador à rendeira, doencadernador de livros ao fabricante deraquetes, do carrasco ao artesão de co-

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lares… A arte de dar nós, ápice ao mes-mo tempo da abstração mental e da ma-nualidade, poderia ser vista como a ca-

racterística humana por excelência, tan-to quanto ou mais ainda que a lingua-gem…

[1983]

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10. ESCRITORES QUE  DESENHAM 

Com o romantismo na França, osescritores começaram a desenhar. A pe-na corre sobre a folha, detém-se, hesita,deposita à margem distraída ou nervosa-mente um perl, um boneco, um rabis-co, ou então se aplica em elaborar umfriso, um sombreado, um labirinto ge-ométrico. O ímpeto da energia gráca

pouco a pouco se aproxima de uma en-cruzilhada: continuar evocando os pró-prios fantasmas através do uniforme esti-licídio alfabético ou persegui-los no ime-

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diatismo visual de um rápido esboço?Parece que essa tentação nem sempreesteve presente: sempre houve pintores

que escrevem, mas raramente escritoresque desenham. Mas de repente, entre onal do século XVIII e o início do XIX , aeducação do jovem que se tornará ho-

mem de letras deixa de ser consideradacompleta se não incluir um aprendizadode desenho ou de pintura; as biograasde poetas e escritores se abrem a uma

prática e a uma ambição que em algunscasos teriam podido levar a um compro-misso prossional no campo da arte, ca-so a outra vocação não tivesse sido mais

forte. Ao mesmo tempo, os manuscritosdos que não dispõem de nenhuma edu-cação artística também começam a serilustrados com gurinhas ou rabiscos. É

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a sionomia cultural do escritor que setransforma a partir da aspiração a uma“obra de arte total”, que ganha forma na

 Alemanha romântica, um sonho acalen-tado por Novalis (inventor da fórmula)e que se tornará o programa de Wag-ner. Hoffmann (traduzido na França em

1829) logo se torna um modelo para anova literatura francesa, não só porquecriou um gênero novo, os Contes fantas-tiques  (os franceses estão sempre pron-

tos a etiquetar as novidades culturais, ainventar uma denição para elas, quenão tinham um equivalente em alemão),mas também porque é apresentado co-

mo alguém que é ao mesmo tempo es-critor, desenhista e músico: o novo tipode talento poliédrico que o romantismodesperta.

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Estas considerações partem de umaexposição montada na Maison de Balzace dedicada aos “Desenhos de escritores

franceses do século  XIX ”. Ela apresenta250 documentos (do simples rabisco aesboços, caricaturas, aquarelas e autên-ticas pinturas) de 45 poetas e escritores

ilustres ou menores ou esquecidos, mastodos signicativos pela relação entregrasmo pictórico e escritura. No entan-to — diga-se de antemão —, este dis-

curso só vale enquanto permanecer numplano geral, porque a pretensão de es-tabelecer um nexo entre o estilo de umdeterminado escritor e o de seus dese-

nhos deve no mais das vezes render-seao fato de que, para os desenhos, é aausência de estilo que salta aos olhos,seja devido a uma mão pouco adestrada

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ou a uma habilidade demasiado impes-soal. Por isso, acredito ser impossível es-tabelecer por que muitos escritores de-

senham ao passo que tantos outros, em-bora cheios de sugestões visuais em suaspáginas, não desenham nada. (A listados não desenhistas também é expressi-

 va, já que inclui Chateaubriand, Madamede Staël, Flaubert, Zola.)

 Já sabíamos que o pintor diletantemais genial dentre os escritores do sé-

culo XIX  foi Victor Hugo, e a mostra sóconrma isso, transportando da Maison Victor Hugo (a outra — e mais interes-sante — casa de escritor transformada

em museu em Paris) alguns dos suges-tivos nanquins de cidades fantasmagóri-cas e de paisagens espectrais nos quaiso poeta, em seus anos mais inquietos,

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deu vazão à veia mais noturna de seuromantismo, com uma feliz inventivida-de na experimentação matérica.

Quanto ao outro gigante — inclusivequantitativo — da produção escrita, Bal-zac, pode-se constatar que ele de fatonão era dotado para o desenho,

limitando-se a garatujar desenhinhosmeio infantis (sobretudo rostos) nos es-paços brancos de seus manuscritos, emmeio às cifras dos eternos cálculos de

seus negócios malsucedidos. Assim, ape-sar de estarmos em sua casa, Balzac é re-presentado na exposição por apenas du-as páginas — e não originais, mas re-

produções. Outra lacuna é Stendhal; po-rém, conhecendo os esboços rudimen-tares que acompanham a Vie de Henry  Brulard , podemos quase o incluir entre

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os escritores não desenhistas. TampoucoMichelet era muito hábil com o lápis, ajulgar por um esboço muito sumário de

uma proposta que fez de monumentoaos mortos da Revolução Francesa.

Depois há os escritores que sabemdesenhar bem até demais, e que por isso

mesmo são menos interessantes. Méri-mée, Alfred de Vigny e Théophile Gauti-er zeram cursos regulares de artes plás-ticas, e de seus muitos trabalhos aqui ex-

postos — ilustrações de tema histórico,aquarelas de paisagens, caricaturas, de-senhos arquitetônicos — ca uma im-pressão um tanto anódina. Os desenhos

com que Mérimée constelava o papeltimbrado do ministério durante as reu-niões das muitas comissões ociais deque ele era um integrante respeitável

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também são comportadamente acadêmi-cos; mais interessantes são os esboçosde seus cadernos de viagem, pela preci-

sa observação de países e de costumesque reencontramos com uma força bemdiversa em suas narrativas. Entre as coi-sas de Gautier despontam, como teste-

munho de gosto grotesco-maldito, doisdesenhos em tinta vermelha: a cozinhade uma bruxa e uma tentação de santo Antão erótico-sádica.

Muito competente era também Geor-ge Sand, paisagista a lápis e a aquarela,que em pelo menos um grupo de vistasde montanha verde-cinza e marrom-cla-

ro consegue transmitir algo de insólito:uma desolação híspida, estagnada, mi-neral. São quadrinhos executados comuma técnica de aquarela inventada por

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ela; chamava-as de “dendritos”, do nomedaquelas pedras que apresentam um -no desenho de ramicações e veios de

 várias cores. A descoberta mais inesperada da ex-

posição é Alfred de Musset, precursordas comic stripes . O “lho do século” ro-

mântico elaborava para sua diversão ede seus familiares histórias em quadri-nhos com caricaturas de guras famosas;aqui estão expostas duas séries comple-

tas. Uma delas narra uma viagem à Sicí-lia feita pelo irmão do poeta, que culmi-na numa aventura com uma messinen-se de poucas virtudes. A outra é a crô-

nica de uma fofoca parisiense: de co-mo a cantora Pauline Garcia (irmã daMalibran) foi pedida em casamento porum senhor narigudo e de como, durante

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os sucessivos rompimentos e reatamen-tos do noivado, o conspícuo nariz do fu-turo esposo mudou de forma e dimen-

são. O melhor da história é que o ou-tro pretendente da cantora era justamen-te ele, Alfred de Musset, que retrata a simesmo connado ao leito por sua doen-

ça pulmonar nas recaídas e nas melhorasprovocadas pela sorte vacilante do rival.Mesmo em caricatura, Pauline não deixade ter certa graça abobalhada, mas a al-

ma negra da intriga é George Sand, re-presentada com um charuto ou um lon-go cachimbo e brandindo uma espada.

Esses quadrinhos avant la lettre  são

de uma surpreendente modernidade,pela concepção narrativa e a elegânciagráca, entre Toppfer e Edward Lear, aponto de alcançar uma agilidade de esti-

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lização quase novecentista, à Sergio To-fano. Com Musset também começa o há-bito de ilustrar com desenhinhos as car-

tas a uma amiga (fofocas do ambienteteatral, em que sempre aparecem asmesmas personagens). Musset é um dosexemplos em que se pode falar de “de-

senho de escritor” como algo distintodo desenho de um artista, na medidaem que é funcional a uma invenção ea uma estilização narrativas e a um tipo

de ironia e autoironia: todos estes proce-dimentos literários, ainda que se desta-quem notavelmente dos procedimentosusados pelo autor nas obras escritas.

O outro tipo de “desenho de escri-tor” que a mostra revela é o da escritaque se torna desenho, e aqui o exemplosurpreendente é Barbey d’Aurevilly, que

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mantinha um diário ou miscelânea histo-riado a nanquins de várias cores, em queas frases escritas são entremeadas de e-

chas, corações, sóis, cálices, frisos geo-métricos, tudo bastante rudimentar e de-sordenado, mas com uma grande vitali-dade e alegria gráca que alcança efei-

tos de art brut . O grande dândi pos-suía um arsenal de tintas coloridas, pe-nas de ganso variamente apontadas epincéis. Por exemplo, refazia a guache

sua assinatura já desenhada à pena atétransformá-la num caligrama denso e be-tuminoso, ou compunha hieróglifos abs-tratos semelhantes a insetos monstruo-

sos ou móbiles aéreos.Baudelaire sabia não só desenhar,

mas também instilar sua inteligência nolápis (ou no carvão, ou no nanquim),

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e suas autocaricaturas têm uma agudezapungente. A época que se abre em seurastro, ou seja, a segunda metade do sé-

culo, vê poetas e escritores mais desen- voltos, menos escolásticos ao traçar gu-ras no papel. (Exceto quem já era pri-meiramente pintor, como Fromentin, ou

quem praticava a água-forte segundo to-das as regras, como Jules de Goncourt,ou quem ilustrava suas viagens exóticascom acurada devoção, como Pierre Lo-

ti.)Mais que os romancistas (Dumas -

lho era um bom caricaturista, Maupas-sant fazia bonequinhos espirituosos,

 Anatole France era um desenhista deelegante perícia), são os poetas que cha-mam a atenção. Sobretudo Verlaine, quenunca estudou desenho e era um dese-

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nhista cômico cheio de espírito e criati- vidade, de um traço moderníssimo. Sãomuitos os autorretratos que caricaturam

o prognatismo de seu rosto sob o na-riz minúsculo, acentuando-lhe o aspec-to de mandarim chinês: assim ele apare-ce num folheto em que suas feições são

simplicadas numa sobreposição de tri-ângulos e depois numa verdadeira de-composição de planos pré-cubista. Maso mais emocionante é um retrato que ele

fez de Rimbaud apoiado de viés numamesa de café, diante de uma garrafa deabsinto, com o rosto de menino embur-rado. (Rimbaud que, por sua vez, não

era um desenhista interessante, pelo me-nos a julgar pelos dois exemplos expos-tos.)

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Um poeta que dedicava um cuidadoespecial à caligraa de suas correspon-dências era François Coppée, que pagi-

nava cada uma de suas cartas com extre-ma nitidez e as ilustrava com ideogramasou quebra-cabeças. Em suas cartas deamor a Méry Laurent (uma demi-mon-

daine  mantida por um dentista america-no), ele chamava a amiga de “pássaro” ea si mesmo de “gata”; mas esses nomes,que aos nossos ouvidos soam como uma

troca de sexo, são sempre substituídospelo desenho de uma vaporosa pombae de um bichano maroto, impondo-secomo ideogramas feminino e masculino

pelo poder evocativo do traço.Méry Laurent era na mesma época

frequentada por Mallarmé, que tambémlhe escrevia cartas com desenhinhos. Ele

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a representava, do mesmo modo, sobaparências ornitológicas, mas com maiordispêndio de tinta: para Mallarmé, ela

era o “pavão”. Contudo, Mallarmé nãoera minimamente dotado para o dese-nho nem havia elaborado nenhuma téc-nica, mas punha em suas gurinhas algo

do grande divertimento que animava seuinigualável dom verbal. Um bilhete paramarcar um encontro com o “pavão”, quedevia chegar de trem, se torna uma pre-

ciosa “história em quadrinhos” mallar-maica, alegremente rabiscada.

 A busca de um horizonte de expres-são diverso daquele das palavras é o im-

pulso que inspira muitos desses picto-gramas traçados à margem de páginasrepletas de texto. Como não sentir dian-te disso a eterna e insuprimível inveja do

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escritor pelo pintor? “Que feliz ofício odo pintor, se comparado ao do homemde letras!”, lê-se no  Diário  dos irmãos

Goncourt em 1º de maio de 1869. “À fe-liz atividade da mão e do olho no pri-meiro corresponde o suplício do cérebrono segundo; e o trabalho que para um é

um prazer, para o outro é um sofrimen-to…”

[1984]

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 Parte 2 

O RAIO DO OLHAR 

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11. EM MEMÓRIA DE  ROLAND BARTHES 

Um dos primeiros detalhes que sesoube do atropelamento de 25 de feve-reiro no cruzamento entre a rue des Éco-les e a rue Saint-Jaques foi que RolandBarthes cou desgurado, tanto que nin-guém dos que estavam ali, a dois passosdo Collège de France, foi capaz dereconhecê-lo, e a ambulância que o re-

colheu conduziu-o ao hospital da Salpê-trière como um ferido sem nome (nãolevava documentos consigo), e assim ele

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permaneceu por horas no ambulatório,sem ser identicado.

Em seu último livro, que eu tinha li-do poucas semanas antes ( La chambre claire ,  Note sur la photographie , Cahiersdu Cinéma-Gallimard-Seuil), quei toca-do sobretudo pelas belíssimas páginas

sobre a experiência de ser fotografado,sobre o incômodo de ver o próprio rostotransformado em objeto, sobre a relaçãoentre a imagem e o eu; assim, entre os

primeiros pensamentos que me toma-ram na apreensão por sua sorte se in-sinuava a lembrança daquela leitura re-cente, o liame frágil e angustiante com a

própria imagem que fora lacerada de re-pente como se rasga uma fotograa.

 Já em 28 de março, no caixão, seurosto não estava absolutamente desgu-

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rado: era ele, como tantas vezes o en-contrei por aquelas ruas do Quartier,com o cigarro pendendo do canto da

boca, no modo de quem foi jovem antesda guerra (a historicidade da imagem,um dos tantos temas de A câmara clara,se estende à imagem que cada um de

nós faz de si na vida), mas estava ali, -xado para sempre, e as mesmas páginasdaquele capítulo 5 do livro que fui relerlogo em seguida agora só falavam dis-

so, somente disso, de como a xidez daimagem é a morte, e daí a resistência in-terna a deixar-se fotografar, e também aresignação. “É como se, terricado, o Fo-

tógrafo tivesse de lutar imensamente pa-ra que a Fotograa não seja a Morte. Maseu, já objeto, eu não luto.” Uma atitu-de que agora parecia reverberar naquilo

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que se pudera saber dele durante o mêsque passou na Salpêtrière já sem poderfalar.

(O perigo mortal se revelara imedia-tamente não nas fraturas cranianas, masnas costelas. E então a angústia dos ami-gos era logo confrontada com outra ci-

tação: a da costela extirpada na juventu-de pelo pneumotórax e conservada nu-ma gaveta, até quando decidiu desfazer-se dela, em Barthes par lui-même.)

Essas remissões da memória não sãoum acaso: é que toda a obra dele, agorapercebo, consiste em constringir a im-pessoalidade do mecanismo linguístico e

cognitivo a levar em conta a sicidadedo sujeito vivente e mortal. A discussãocrítica sobre ele — já iniciada — se daráentre os defensores da superioridade de

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um ou de outro Barthes: o que subor-dinava tudo ao rigor de um método eo que tinha como único critério segu-

ro o prazer (prazer da inteligência e in-teligência do prazer). A verdade é queaqueles dois Barthes são apenas um: ena coexistência contínua e variamente

dosada dos dois aspectos está o segredodo fascínio que sua mente exerceu emmuitos de nós.

Naquela manhã cinzenta eu vagava

pelas ruas desoladas atrás do hospitalem busca do anteatro, onde soube quede forma reservadíssima o corpo deBarthes partiria para o cemitério de pro-

 víncia para juntar-se ao túmulo de suamãe. E encontrei Greimas, que tambémchegara antecipadamente e que me con-tou de quando o conhecera em 1948,

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em Alexandria, no Egito, e o zera lerSaussure e reescrever o  Michelet . ParaGreimas, inexível mestre de rigor meto-

dológico, não havia dúvida: o verdadei-ro Barthes era o das análises semióticasconduzidas com disciplina e precisão,como no Sistema da moda; mas o ver-

dadeiro ponto que o fazia discordar dosnecrológios dos jornais era a insistênciaem tentar denir em categorias prossi-onais como lósofo ou escritor um ho-

mem que escapava a todas as classica-ções, pois tudo o que tinha feito na vidao zera por amor.

Um dia antes, ao me informar pelo

telefone a hora e o local daquela cerimô-nia quase secreta, François Wahl me fa-lara do cercle amoureux  de rapazes emoças que se formara em torno da mor-

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te de Barthes, um círculo quase ciumen-to e possessivo de uma dor que não to-lerava outra manifestação que não o si-

lêncio. O grupo atônico ao qual me jun-tei era formado em grande parte por jo- vens (no meio deles, poucas guras fa-mosas; reconheci o crânio calvo de Fou-

cault). A placa do pavilhão não traziaa denominação universitária de “antea-tro”, mas a de “Salle des reconnaissan-ces” , e entendi que devia ser o necroté-

rio. Por trás de cortinas brancas que cir-cundavam toda a sala, de vez em quan-do saía um caixão carregado nos ombrosde agentes funerários até o furgão e se-

guido por uma pequena família de gen-te miúda, mulheres baixinhas e idosas,cada família idêntica à do funeral pre-cedente, como a ilustração pleonástica

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do poder uniformizador da morte. Pa-ra nós que estávamos ali por causa deBarthes, esperando imóveis e mudos no

pátio, como seguindo a senha implícitade reduzir ao mínimo os sinais do ceri-monial funerário, tudo o que se apresen-tava naquele pátio agigantava sua fun-

ção de signo; eu sentia xar-se, em cadadetalhe daquele pobre quadro, a acuida-de do olhar que se exercitara em desco-brir frestas reveladoras nas fotograas de

 A câmara clara. Assim, agora que o releio, esse livro

me parece todo retesado no sentido da-quela viagem, daquele pátio, daquela

manhã cinzenta. Porque foi justamentede um reconhecimento entre as fotogra-as da mãe, morta havia pouco, que ameditação de Barthes partira (como é

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amplamente relatado na segunda partedo livro): uma perseguição impossívelda presença da mãe, reencontrada ao -

nal numa foto dela menina, uma ima-gem “perdida, distante, que não se pare-ce com ela; a fotograa de uma meninaque não conheci” e que não é reprodu-

zida no livro, porque nunca poderíamoscompreender o valor que assumira paraele.

Livro sobre a morte, pois, assim co-

mo o anterior (os Fragmentos de um dis-curso amoroso) tinha sido sobre o amor?Sim, mas este também é um livro sobreo amor, como prova esta passagem so-

bre a diculdade de evitar o “peso” daprópria imagem, o “signicado” a ser da-do ao próprio rosto: “Não é a indiferen-ça que tolhe o peso da imagem — não

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há nada que mais possa fazer de vocêum indivíduo penal, vigiado pela polí-cia, que uma foto ‘objetiva’ tipo ‘ Photo-

maton’  —, mas é o amor, o amor extre-mo”.

Não era a primeira vez que Barthesfalava sobre ser fotografado: no livro so-

bre o Japão (O império dos signos ), umade suas obras menos conhecidas porémmais ricas de níssimas anotações, háa descoberta extraordinária, observan-

do suas fotograas publicadas nos jor-nais japoneses, de um ar indenivelmen-te nipônico no próprio aspecto: o quese explica pela maneira de retocar as

fotograas usada habitualmente naquelepaís, que torna a pupila mais redonda enegra. Esse raciocínio sobre a intencio-nalidade que se sobrepõe à nossa imagi-

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nação — historicidade, pertencimento auma cultura, como dizia antes, mas so-bretudo intencionalidade de um sujeito

que não somos nós e que usa nossa ima-gem como instrumento — volta em  Acâmara clara numa passagem sobre opoder dos truquages subtils  da reprodu-

ção: ele reencontrou uma foto em queacreditara reconhecer sua dor por um lu-to recente na capa de um livro satíricocontra ele, transformada num rosto de-

sinteriorizado e sinistro. A leitura do livro e a morte do autor

ocorreram muito próximas uma da outrapara que eu consiga separá-las. Mas é

preciso que eu possa fazer isso para sercapaz de dar uma ideia do que o livro é:a aproximação progressiva a uma deni-ção daquele tipo especíco de conheci-

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mento aberto pela fotograa, “objeto an-tropologicamente novo”.

 As reproduções contidas no livro sãoescolhidas em função desse raciocínioque deniríamos “fenomenológico”: nointeresse que uma foto suscita em nós,Barthes distingue um nível que é o do

 studium ou participação cultural na in-formação ou na emoção que a imagemenvolve, e o nível do  punctum, ou seja,o elemento surpreendente, involuntário

e pungente que certas imagens comu-nicam. Certas imagens, ou melhor, cer-tos detalhes de imagens: a leitura queBarthes faz das obras de fotógrafos fa-

mosos ou anônimos é sempre inespera-da; são frequentemente detalhes físicos(mãos, unhas) ou das vestimentas cujasingularidade ele realça.

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Contra as teorizações recentes da fo-tograa como convenção cultural, artifí-cio, não realidade, Barthes privilegia o

fundamento “químico” da operação: ser vestígio de raios luminosos emanadosde algo que existe, que está ali. (E essaé a fundamental diferença entre a foto-

graa e a linguagem, que pode falar da-quilo que não há.) Alguma coisa, na fotoque estamos vendo, existiu e não existemais: é isso que Barthes chama de tem-

po écrasé  da fotograa.Livro típico de Barthes, com seus

momentos mais especulativos, nos quaisparece que à força de multiplicar as ma-

lhas de sua rede terminológica ele nãoconsegue mais desvencilhar-se dela, esuas inesperadas iluminações como lam-pejos de evidência que chegam feito dá-

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divas surpreendentes e denitivas, A câ-mara clara contém desde as primeiraspáginas uma declaração de seu método

e de seu programa de sempre, quando,renunciando a denir um “universal fo-tográco”, ele decide levar em conside-ração apenas as fotos “que eu estava se-

guro de que existiam para mim”.“Nesse debate no m das contas con-

 vencional entre a subjetividade e a ciên-cia, eu chegava a esta ideia bizarra: por

que não poderia haver, de algum modo,uma nova ciência para cada objeto, uma Mathesis singularis  (e não mais univer- salis )?”

Essa ciência da unicidade de cadaobjeto que Roland Barthes continuamen-te margeou com os instrumentos da ge-neralização cientíca e ao mesmo tempo

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com a sensibilidade poética aplicada nadenição do singular e do irrepetível(essa gnosiologia estética ou eudemonis-

mo do entender) é a grande coisa queele — não digo nos ensinou, porquenão se pode ensinar nem aprender —nos demonstrou que é possível: ou pelo

menos que é possível buscá-la.

[1980]

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12. AS EFÊMERAS NA FORTALEZA

Um enxame de efêmeras se chocou voando contra uma fortaleza, depoispousou nos bastiões, tomou de assalto atorre mor, invadiu o caminho da ronda eos torreões. As nervuras das asas trans-parentes mantinham-se suspensas entreas muralhas de pedra.

“É inútil tentarem equilibrar-se em

suas membranas liformes”, disse a for-taleza. “Só quem foi feito para durar po-de aspirar a ser. Eu duro, logo existo; vo-cês não.”

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“Nós habitamos o espaço do ar, es-candimos o tempo com o bater das asas.O que mais quer dizer: ser?”, responde-

ram as frágeis criaturas. “Já você é so-mente uma forma posta aí, para assina-lar os limites do espaço e do tempo emque existimos.”

“O tempo escorre sobre mim: eu per-maneço”, insistia a fortaleza. “Vocês ape-nas aoram a superfície do devir comoa pele da água dos riachos.”

E as efêmeras: “Nós saltamos no va-zio assim como a escrita sobre a folhabranca e as notas da auta no silêncio.Sem nós, não resta senão o vazio onipo-

tente e onipresente, tão pesado que es-maga o mundo, vazio cujo poder aniqui-lador se reveste de fortalezas compactas,

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o vazio-cheio que só pode ser dissolvidopor aquilo que é leve e rápido e sutil”.

Imaginem que este diálogo ocorra noForte do Belvedere, em Florença, queabriga as esculturas aéreas de FaustoMelotti, uma das quais se intitula preci-samente Os efêmeros : uma partitura de

ideogramas sem peso, como insetosaquáticos que parecem voltear sobreuma rampa de latão protegida por umltro de gaze.

Também é possível imaginar que,contra o fundo do diálogo, se desenvol- vam as discussões ocorridas este ano naItália sobre a estética do efêmero. Mas

se pode perfeitamente prescindir disso,porque a conversa de Fausto Melotti éoutra: seu uso de materiais pobres e pe-recíveis — hastes de latão soldadas, ga-

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ze, correntinhas, papel-alumínio, pape-lão, cordão, arame, gesso, trapos — é omeio mais rápido de alcançar um reino

 visionário de esplendores e maravilhas,como bem sabem as crianças e os atoresshakespearianos.

Mas não se pode deixar de lembrar

que infelizmente a exposição já se en-cerra no dia 8 de junho, como por umainterpretação equivocada e literal do va-lor do efêmero por parte dos organiza-

dores orentinos. De modo que todasessas obras, das quais muitas realizadasespecicamente para os espaços do Bel- vedere (sejam novas criações ou am-

pliações de obras precedentes), carãoexpostas apenas por dois meses. Maisum paradoxo, essa consagração contraí-da no tempo, na história de um artista

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que só em idade tardia foi reconhecidocomo um dos maiores.

Nos bastiões verdes do Belvedere,uma paliçada de formas geométricas emaço escuro, hirta de lanças em pontaou cravadas no chão, pode evocar umaguerra de bárbaros ou extraterrestres;

mas logo nos damos conta de que elaestá posta para defender um espaço emque a força que vence é a interior, a obs-tinação é feita de linhas nas, o desao

é sustentado pela ironia.Eu diria que é nas dimensões por

 volta de um metro de altura que os rit-mos da imaginação de Melotti e a colo-

cação no forte se encontram com maisfelicidade. E felicidade aqui quer dizerum máximo de alegria e de melancoliajuntas, como a do Viandante   com a

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echarpe de linha que passa rente a umaparede de painéis geométricos e metáli-cos sob um céu de tecido.

Ou como La nave di Ulisse , descarna-do como a carena de um pássaro, comuma cabecinha de gesso ncada nummastro. (É preciso notar que Melotti, um

dos “pais fundadores” do abstracionis-mo, põe quase sempre em suas obrasum elemento gurativo ainda que mí-nimo, como para sublinhar que o rigor

nunca está onde mais se espera que es-teja.) Ou como o Canal grande , feito detijolos perfurados e pousados sobre umespelho.

“Há o amor e há o respeito pela ma-téria”, escreve Melotti em seu livrinhode aforismos ( Linee , “Piccola Biblioteca Adelphi”). “O amor é uma paixão, e po-

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de virar ódio: um drama vivicante pa-ra um artista artesão. O respeito é co-mo uma separação legal: a matéria exi-

ge seus direitos, e tudo acaba numa rela-ção gélida. O verdadeiro artista não amanem respeita a matéria: ela está sempre‘em teste’, e tudo pode ir para o brejo

(Leonardo, Michelangelo e seus mármo-res).”

[1981]

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13. O PORCO E O  ARQUEÓLOGO 

 A  grande novidade deste ano nasescavações da vila romana de Sette-nestre, perto de Orbetello, é a pocilga.Trata-se de um pátio que tem nos quatrolados vários compartimentos separadospor muretas e com buracos no chão pa-ra o comedouro: a área era coberta porum pórtico, do qual restam as bases dos

pilares. Assim que essa estrutura veio àluz, a primeira ideia é que cada compar-timento abrigasse um porco para a en-gorda; e, indagado sobre o assunto, um

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criador de porcos reconheceu ali umainstalação não muito diversa daquelasusadas atualmente. Mas a leitura das fon-

tes clássicas logo mandou a hipótese pe-los ares.

O tratado de agricultura de Columel-la, que é da mesma época da vila (sé-

culo   I  a.C.), tem um capítulo sobre acriação de porcos que não fala de ani-mais na engorda: enumeram-se os ali-mentos mais adequados para os suínos,

mas sempre em relação ao pasto nosbosques. O ambiente da pocilga, por sua vez, era dedicado à gravidez das porcas,ao parto e ao aleitamento.

“Os porcos não podem ser guarda-dos juntos como os outros rebanhos”,escreve Columella (cito a tradução deRosa Calzecchi Onesti, Einaudi), “mas é

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preciso fazer pocilgas separadas ao lon-go de um muro, onde sejam isoladas asporcas recém-paridas e também as pre-

nhas. De fato as porcas, especialmentequando são guardadas em grupos e semordem, se deitam umas sobre as outrase assim abortam os fetos. Eis por que é

preciso construir pocilgas apoiadas nosmuros, e que tenham quatro pés de al-tura (1,20 metro), a m de que a porcanão possa pular para fora. Mas as pocil-

gas não devem ser fechadas no alto, pa-ra que o guardador possa vericar o nú-mero dos leitõezinhos e retirá-los de bai-xo da mãe caso ela se deite sobre algum

deles.” Assim, a escavação de Settenestre

trouxe à luz uma pocilga que correspon-de exatamente à descrição de Columella,

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ou seja, uma grande maternidade paraa produção dos porquinhos, cada porcanum boxe separado (em latim, harae ).

De fato, uma diferença fundamental dis-tingue a criação moderna, voltada paraporcos gordos, e a romana, que se base-ava no número de animais e em sua ca-

pacidade de locomoção. Porque os por-cos não eram abatidos na vila: deviamchegar à cidade com as próprias pernas,em grandes rebanhos (assim como os

bovinos do Far West eram acompanha-dos pelos caubóis até os abatedouros deChicago, antes de inventarem os vagõesfrigorícos). Assim, enquanto os porcos

machos viviam e se nutriam sempre acéu aberto, os recintos das harae  eramreservados às porcas durante os quatromeses de gestação e as três semanas de

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aleitamento. Na pocilga de Settenestreas harae  são 27: contando 27 porcas quepodem ter oito lhotes a cada parto, pa-

rindo duas vezes ao ano, pode-se calcu-lar uma produção de cerca de quatro-centas cabeças por ano.

O aleitamento reservava alguns pro-

blemas, não só para os criadores roma-nos, mas também para os arqueólogosde hoje. Columella recomenda que asporcas só amamentem as próprias crias,

já que, quando os porquinhos se mis-turam, começam a mamar nas tetas deuma porca qualquer e, como as mãesnão fazem distinção entre seus lhotes

e os das outras, haveria porcas exauri-das, porquinhos vorazes hipernutridos eoutros que morrem de fome. Portanto,o dom mais precioso do guardador de

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porcos, segundo Columella, é a memó-ria: saber reconhecer os lhos de cadaporca e evitar a confusão. Tarefa muito

difícil: é possível ajudar pondo um sinalde piche nos lhotes da mesma ninhada,mas “a coisa mais cômoda a fazer é fa-bricar as pocilgas (estamos falando sem-

pre das harae , ou seja, de cada um dosboxes) de modo que sua soleira seja ele- vada, permitindo que a nutriz possa sair,mas não os lhotes”.

 Aqui Columella já divergia das esca- vações de Settenestre, que tinham des-coberto soleiras baixas; e não concorda- va nem mesmo com Varrão (cujo trata-

do De re rustica não é menos detalhadoe preciso que o do outro), o qual diziaque as soleiras devem ser baixas, se nãoas porcas prenhas bateriam o ventre ne-

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las e abortariam. (Mas Varrão não con-cordava nem com ele mesmo, porque,poucas linhas abaixo, falava igualmente

de uma soleira alta, para impedir que osporquinhos saiam.)

Para resolver todas essas contradi-ções só há um procedimento: escavar

buscando trazer à luz os mínimos deta-lhes. Com efeito, as soleiras das harae são atravessadas por um sulco que nãose encontra na pedra de nenhuma outra

soleira. Para que podia servir esse sulcose não para o encaixe de uma barreirade tábuas verticais, uma portinhola decorrer que o guardador podia levantar

para deixar a porca passar e baixar paraimpedir a fuga dos lhotes? É por issoque as soleiras eram baixas e altas se-gundo as exigências. É por isso que, ma-

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nejando a pá com respeito por cada ves-tígio do vivido, a vericação arqueológi-ca demonstra que os fatos não estão em

contradição com os clássicos; não só is-so, mas também que os clássicos não es-tão em contradição com eles mesmos.

Debaixo da terra não se perde nada,

ou pelo menos se conserva o máximode informação; mas é no ato da escava-ção que, se a técnica não for adequa-da, se arrisca a destruir o que os sé-

culos haviam conservado. A arqueolo-gia italiana sempre foi tendencialmentearquitetônico-monumental: comove-seapenas com arcos do triunfo, colunas,

teatros, termas, considerando todo o res-to fragmentos sem importância. Em paí-ses mais pobres de vestígios monumen-tais desenvolveu-se uma escola diferen-

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te, hoje difusa em todo o mundo, e quetem entre nós um apóstolo apaixonado, Andrea Carandini: a arqueologia como

pesquisa em cada estrato do terreno nosmínimos sinais e indícios a partir dosquais se possa reconstruir a vida práti-ca e cotidiana, os comércios, a agricul-

tura, as fases da história da sociedade.É um trabalho todo feito de hipóteses ede comprovações, que avança à forca detentativa e erro, de enigmas, deduções e

induções, como no caso da pocilga.Há cinco anos, em Settenestre, to-

dos os verões cerca de cinquenta jovensitalianos e ingleses levam adiante as es-

cavações sob a direção de Andrea Ca-randini. São alunas e alunos de arqueo-logia ou de restauro que fazem um está-gio como voluntários; e é possível vê-los

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todas as manhãs martelando, cavando e varrendo fragmentos debaixo do sol, du-rante oito horas (o horário do canteiro

 vai das seis e meia às duas e meia), comum ânimo diante do cansaço que só se vê nas atividades que dão uma gratica-ção imediata. Para ser exato, devo dizer

que a primeira coisa que salta aos olhossão as moças dando golpes de picareta,empunhando a pá e empurrando pesa-das carriolas, enquanto os rapazes pare-

cem preferir trabalhos mais calmos e le- ves. Seja como for, ao vê-los todos jun-tos se tem uma imagem da juventude dehoje bem diferente daquela proposta pe-

las habituais reportagens, mas que talvezrepresente melhor tantas coisas que hojesão tendência: esforço coletivo e realiza-

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ção individual, concentração e desenvol-tura, alacridade e relaxamento.

 A arma secreta ou emblema simbó-lico da nova arqueologia é uma colherde pedreiro muito menor que a utilizadapelos operários italianos, mas usada cor-rentemente pelos operários ingleses. A

técnica dos arqueólogos ingleses paracavar sem cometer desastres talvez nasçado fato de que eles tivessem nas mãosesse simples utensílio. Na falta de um

 verbo italiano tão ágil quanto o instru-mento, em Settenestre foi cunhado o verbo “traulare” , do inglês trowel , co-lher de pedreiro.

Os cacos dos desmoronamentosocorridos ao longo dos séculos são trazi-dos à luz estrato por estrato, desenhadose fotografados como foram encontrados,

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descritos em minuciosas chas, depoisextraídos e depositados em bandejas deplástico na posição em que foram recu-

perados. Podem ser pedaços de telha deuma cobertura que desabou, fragmentosde reboco das paredes ou do teto pin-tados em afresco, cacos de objetos, des-

cendo até os mosaicos dos pavimentos.Depois, em laboratório (da Universidadede Siena), são classicados e numeradose aí se começa a recompor o quebra-ca-

beça. A vila Settenestre tem muito que di-

zer sobre a sociedade e a economia ro-manas da época republicana e imperial,

e nem todas as peças estavam soterra-das. O que permaneceu visível por 21séculos devia ser o que primeiramentese avistava por quem na época percorria

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a via romana ao fundo do vale: uma cin-ta de muro torreada (falsas torres, paradar a ilusão cênica de muralhas de uma

cidade a distância). O muro circundavaum jardim em cujos fundos se elevavauma fachada monumental, com pórticoe, acima dele, uma galeria panorâmica

(a galeria ruíra, e as colunas foram sa-queadas, mas as arcadas do pórtico per-maneceram visíveis: por isso a estruturaganhou o nome de Settenestre  [Sete ja-

nelas]).O aspecto monumental da vila, nu-

ma posição dominante sobre aquelasplagas que eram e continuariam sendo

umas das mais desoladas da Maremma,devia reforçar a importância da famíliaque tinha investido capitais e escravosnuma grande empresa de produção e

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exportação de vinho e azeite de oliva.Estamos nas proximidades de Cosa (a ci-dade romana que mais tarde foi identi-

cada com uma hipotética Ansedônia),em cujo porto foi encontrada grandequantidade de ânforas de vinho com amarca dos Sesti: a mesma marca se vê

nas ânforas achadas em restos de navi-os romanos em costas francesas ou es-panholas, bem como em escavações ar-queológicas nos vales do Ródano e do

Loire. Como as mesmas iniciais se en-contram em peças de Settenestre, pare-ce comprovado o pertencimento da vi-la à família senatorial romana dos Ses-

ti. Correligionários de Silas, os Sesti sebeneciaram dos conscos de terras de-pois da guerra civil entre Mario e Silas,estabelecendo-se na zona de Cosa, onde

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uma primeira fase de agricultura colonial(a centuriação das terras distribuídas aossoldados) entrara em crise havia tempos

e denhava. A grande revolução tecno-lógica da agricultura intensiva tornou-sepossível pela disponibilidade de escra- vos prisioneiros de guerra em mãos de

poucas famílias prósperas, que permitiuo adestramento de mão de obra especi-alizada.

Sobre a vida dos escravos pouco sa-

bemos pelas fontes escritas, e um dosmotivos do interesse de Settenestre estánas informações que podemos obter pormeio da parte da vila destinada aos ser-

 vos, uma ala autônoma, mas articuladaao corpo do edifício e dividida em celas:disposição não muito diversa daquelaque foi encontrada em alojamentos de

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soldados nos locais onde restaram ves-tígios de campos militares romanos.Calcula-se que cada cela pudesse alojar

quatro escravos e, a julgar pela parte es-cavada até agora, é possível dizer quea vila dispunha de uns quarenta escra- vos, cifra que concorda com os teste-

munhos dos autores da época. Se leva- vam uma vida de prisioneiros aquarte-lados e sem mulheres, ou se cada umadessas celas abrigava uma família com

mulher e lhos (constituindo uma espé-cie de criação de escravos, consideran-do a grande conveniência de multiplicaressa fonte fundamental de energia), ain-

da não se pode saber ao certo. As es-cavações nos alojamentos servis “falam”menos que aquelas realizadas nos apo-sentos senhoris, porque as paredes não

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dispõem de afrescos nem ornamentos,e poucos são os fragmentos de objetos.Uma taça de cerâmica com o nome inci-

so de Encolpius  é uma das poucas men-sagens que as escavações nos transmiti-ram.

Portanto, o edifício concentrava num

mesmo corpo uma luxuosa residênciasenhoril, uma caserna de escravos e umainstalação agrícola (as cantinas, as pren-sas da uva e das olivas foram escavadas

inteiras e permitiram compreender astécnicas usadas). A “vila” romana erauma unidade produtiva; de cada vila de-pendiam cerca de quinhentas jeiras de

terreno arável (algo em torno de 125hectares). Os Sesti seguramente pos-suíam muitas vilas na zona, mas pareceque esta teria tido uma especial função

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de residência e representação. O coman-do das propriedades tornava necessáriaa presença dos patrões por pelo menos

parte do ano; por isso os ambientes resi-denciais deviam proporcionar a seus do-nos uma vida prazerosa, que não os -zesse lamentar os confortos da cidade.

E aí está a galeria panorâmica quecomunicava com um jardim interno, emcolunas, através de uma sala chamada“êxedra”; um átrio com implúvio pavi-

mentado em mosaico; três ou quatro tri-clínios ou salas de jantar ornadas porafrescos, cada uma reservada para umaestação do ano; seis salas, entre as quais

um raro exemplar de “sala coríntia”, qua-tro quartos de dormir com duas alcovascada um e base para os armários. Do jar-dim podemos saber a forma e a dispo-

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sição dos canteiros, já que eram escava-dos num fundo rochoso e depois enchi-dos de húmus.

Num dos lados da colina, uma super-fície de aproximadamente um hectare écercada por um alto muro de pedra; éprovável que se trate de um leporarium,

ou seja, uma reserva de animais silves-tres: lebres, javalis e cervos guardadospor escravos caçadores. Segundo Varrão,essas criações eram um sinal do luxo da-

queles tempos. Também serviam de lo-cal de espetáculos: Varrão conta a histó-ria de um proprietário que aí se exibia vestido de Orfeu, circundado por veados

e corças.O período em que a vila esteve em

atividade durou, de acordo com AndreaCarandini, pouco mais de dois séculos,

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isto é, da primeira metade do século   I

a.C. ao início do século II d.C.; mas a fa-se de pleno esplendor seguramente foimais breve. Pode-se dizer que a deca-dência econômica — e não só econômi-ca — da Itália começa com o apogeu doImpério romano, quando são as provín-

cias imperiais mais distantes, e não maisa península, que criam as riquezas ab-sorvidas por Roma. Os indícios arqueo-lógicos provam que em Settenestre, já

no século I d.C., as instalações agrícolasse estendem a partes da vila que haviamsido residenciais, sinal de que os propri-etários não moravam mais ali. A produ-

ção de vinho e de azeite se orienta parao consumo local, e não mais para as ex-portações. No século I d.C., o latifúndioimperial incorpora as vilas da aristocra-

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cia: o cultivo de cereais e as pastagens,que demandam mão de obra menos nu-merosa e menos especializada, substitu-

em os vinhedos e os olivais.Pouco a pouco os tetos abobadados

e as paredes de afresco desmoronam, asprensas de uva são desmanteladas, as

cantinas se tornam depósitos de grãos. A vila é abandonada e saqueada; famíli-as de pastores se refugiam nela. Dois es-queletos da alta Idade Média, enterrados

sob o pórtico, testemunham uma huma-nidade de ossos macilentos e malforma-dos, uma existência nos limites da sobre- vivência. O subdesenvolvimento tem em

nós uma história mais longa que as fa-ses de “milagre econômico”, embora dei-xe menos marcas no subsolo. A pá e acolher de pedreiro do arqueólogo bus-

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cam reconstruir a continuidade da his-tória através de longos intervalos obscu-ros.

[1980]

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14. A NARRATIVA DA COLUNA DE TRAJANO 

 As estruturas metálicas e os andai-mes de tábuas que há algum tempo en- volvem vários monumentos romanosoferecem à Coluna de Trajano umaoportunidade mais do que rara, única,uma ocasião que quiçá se apresente pelaprimeira vez nos dezenove séculos des-de que ela foi erguida: os baixos-relevos

podem ser vistos de perto. Vistos talvez in extremis , porque o

mármore da superfície esculpida está vi-rando gesso, solúvel em água, e a chuva

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estava acabando com ele. A Superinten-dência para as Antiguidades está justa-mente tentando proteger, com os andai-

mes, essa película que se tornou friável,à espera de que se encontre um métodopara xá-la — método que ainda não sesabe se existe. Será culpa da poluição,

será culpa das vibrações, ou será a mo-enda do tempo que milênio após milê-nio consegue reduzir tudo a pó; o fato éque a suposta eternidade das ruínas ro-

manas talvez tenha chegado ao crepús-culo, e caberá a nós sermos as testemu-nhas de seu m.

Sabendo disso, apressei-me a subir

pelos andaimes da Coluna de Trajano,certamente o mais extraordinário monu-mento que a Antiguidade romana nosdeixou, e também o menos conhecido,

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apesar de ter estado sempre ali, diantedos olhos. Porque o que faz a excep-cionalidade da coluna não são apenas

seus quarenta metros de altura, mas sua“narratividade” gurativa (toda feita deminuciosos detalhes de grande beleza),que requer uma “leitura” seguida de to-

da a espiral de baixos-relevos com du-zentos metros de comprimento, queconta a história das duas guerras de Tra-jano na Dácia (101-2 e 105 d.C.). Fui

acompanhado por Salvatore Settis, pro-fessor de arqueologia clássica na Univer-sidade de Pisa.

 A história começa representando a

situação imediatamente anterior ao iní-cio da campanha, quando os conns doimpério ainda se detinham no Danúbio. A faixa narrativa se abre (inicialmente

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muito baixa, depois crescendo aos pou-cos) com a paisagem de uma cidade ro-mana forticada acima do rio, com su-

as muralhas, a torre de guarda e os dis-positivos para sinalização ótica em casode incursão dos dácios: pilhas de madei-ra para o fogo, montes de feno para as

colunas de fumaça. Todos os elementospara criar um efeito de alarme, de es-pera, de perigo, como num faroeste de John Ford.

 Assim são expostas as premissas paraa cena seguinte: os romanos que atra- vessam o Danúbio sobre o convés debarcos para tomar a outra margem;

quem pode duvidar da necessidade dereforçar aquela fronteira, tão exposta aosataques dos bárbaros, estabelecendopostos avançados em seus territórios? As

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leiras de soldados se encaminham so-bre os tombadilhos, levando à frente asinsígnias das legiões; as guras evocam

o pisotear estridente da tropa em mar-cha, com os elmos pendentes dos om-bros, marmitas e panelas penduradas em varas.

O protagonista da narrativa é obvia-mente o imperador Trajano em pessoa,representado sessenta vezes nessesbaixos-relevos; pode-se dizer que cada

episódio é assinalado pela reaparição desua imagem. Mas como o imperador sedistingue das outras personagens? Nemo aspecto físico nem a vestimenta apre-

sentam traços distintivos; é a posição emrelação aos outros que o denota semsombra de dúvida. Se há três guras to-gadas, Trajano é a do meio; de fato, os

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dois ao lado olham para o imperador,e é ele quem comanda e gesticula; sehá uma la de pessoas, Trajano é o pri-

meiro, seja para exortar a multidão, se-ja para aceitar a rendição dos vencidos;ele se encontra sempre no ponto paraonde converge o olhar das outras per-

sonagens, e suas mãos se erguem emgestos signicativos. Aqui, por exemplo,ele é visto ordenando uma forticação,enquanto aponta o legionário que surge

de uma fossa (ou das correntes do rio?)com um cesto de terra nos ombros, reti-rada das escavaduras da fundação. Maisadiante Trajano é retratado contra o fun-

do do acampamento romano (no meioestá a tenda imperial), enquanto os le-gionários arrastam diante dele um prisi-oneiro puxado pelos cabelos (os dácios

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se distinguem por cabelos longos e bar-bas) e, com uma joelhada (quase umarasteira), obrigam-no a ajoelhar-se a seus

pés.Tudo é muito preciso: os legionários

são identicados pela lorica segmentada(uma couraça em listras horizontais), e,

como também eram responsáveis porobras de construção, os vemos erguermuros de pedra ou abater árvores ves-tindo a lorica, detalhe pouco verossímil,

mas que serve para entendermos quemsão; ao passo que é um gibão de couroque distingue os auxilia, de armaduramais leve, frequentemente gurados a

cavalo. Depois há os mercenários per-tencentes a populações subjugadas, detorso nu, armados de clava, com feiçõesque indicam sua origem exótica, inclusi-

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 ve mouros da Mauritânia. Todos os sol-dados esculpidos nos baixos-relevos, mi-lhares e milhares, foram catalogados

com precisão porque a Coluna de Traja-no até hoje foi estudada sobretudo comodocumento de história militar.

Mais incerta é a classicação das ár-

 vores, representadas de forma simplica-da e quase ideogramática, mas agrupá- veis em um número restrito de espéciesbem distintas: há um tipo de árvore com

folhas ovais e outro com copas arredon-dadas; depois carvalhos, de folha incon-fundível; creio ainda reconhecer uma -gueira que desponta de um muro. As ár-

 vores são o elemento mais recorrente dapaisagem; e muitas vezes as vemos cairsob os machados dos lenhadores roma-nos, para servir de vigas às forticações,

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mas também para dar lugar às estradas:a vanguarda romana abre caminho naoresta primitiva assim como a narrati-

 va esculpida abre caminho no bloco demármore.

Também as batalhas são cada umadiferente da outra, como nos grandes

poemas épicos. O escultor as xa sinte-ticamente no momento em que se de-cide seu desfecho, paginando-as segun-do uma sintaxe visual de nítida evidên-

cia, grande elegância e nobreza formal:os caídos em baixo, como um friso decorpos supinos na borda da faixa, o mo- vimento das leiras que se cruzam, com

os vencedores em posição dominante,mais no alto ainda o imperador e, nocéu, uma aparição divina. E, tal comonos poemas épicos, jamais falta um de-

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talhe macabro ou truculento: aí está umromano que carrega nos dentes a cabeçacortada de um inimigo dácio, pendura-

do pelos longos cabelos; e outras cabe-ças decepadas são exibidas a Trajano.

É também possível dizer que cadabatalha é distinguida por um motivo de

estilização geométrica sempre diversa:por exemplo, aqui vemos todos os ro-manos com o antebraço direito erguidoem ângulo reto na mesma direção, como

se arremessassem dardos; e logo acimaestá Júpiter, voando na vela de seu man-to, que levanta a direita num gesto idên-tico, brandindo certamente um raio dou-

rado hoje desaparecido (deveríamosimaginar os baixos-relevos coloridos, co-mo eram em origem), sinal indubitável

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de que o favor dos deuses está do ladodos romanos.

 A queda dos dácios não é desonrosa,eles mantêm mesmo na agonia uma dig-nidade dolente; fora da aglomeração,dois soldados dácios estão transportan-do um companheiro ferido ou morto; é

um dos pontos mais belos da Coluna deTrajano e talvez de toda a escultura ro-mana; um detalhe que com certeza foi afonte de muitas deposições cristãs. Pou-

co mais acima, entre as árvores de umbosque, o rei Decébalo contempla comtristeza a derrota dos seus.

Na cena seguinte, um romano ateia

fogo com uma tocha numa cidade dosdácios. É Trajano em pessoa que lhe dáa ordem, em pé atrás do soldado. Das ja-nelas saem línguas de fogo (imaginemo-

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las pintadas de vermelho), enquanto osdácios batem em retirada. Já estamosprestes a julgar impiedosa a conduta de

guerra romana quando, observando me-lhor, vemos despontar dos muros da ci-dadela dos dácios estacas com cabeçasespetadas na ponta. Agora estamos

prontos a condenar os dácios cruéis e ajusticar a vingança de Roma: o diretordos baixos-relevos sabia administrarcom perícia os efeitos emotivos das ima-

gens tendo em vista sua estratégia de ce-lebração.

Depois Trajano recebe uma embaixa-da dos inimigos. Mas agora já aprende-

mos a distinguir, entre os dácios, aquelescom o pilleus  (barrete redondo), que sãoos nobres, e os que trazem descobertasas longas cabeleiras, ou seja, a gente co-

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mum. Pois bem, a embaixada é compos-ta de cabeças cheias de cabelo; por issoTrajano não a aceita (o gesto com três

dedos é um sinal de recusa); seguramen-te ele exige contatos de mais alto nível(que não tardarão a ocorrer depois deoutras derrotas dos dácios).

 Aparição insólita nessa história todamasculina como tantos lmes de guerra,eis que surge uma jovem de ar desoladosobre um navio que se afasta de um por-

to. Uma multidão a saúda do cais, e umamulher estende uma criança para a queparte, decerto um lho do qual a mãeé forçada a separar-se. Há ainda o inde-

fectível Trajano que assiste a essa des-pedida. As fontes históricas esclarecemo signicado da cena: ela é a irmã dorei Decébalo, mandada para Roma co-

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mo butim de guerra. O imperador er-gue uma mão para saudar a bela prisi-oneira e, com a outra, indica o menino:

para recordar-lhe que o pequeno é seurefém? Ou como uma promessa de queo educará romanamente, a m de fazerdele um rei submisso ao Império? Seja

como for, a cena tem um páthos misteri-oso, acentuado pelo fato de que na mes-ma sequência, não se sabe por que, tí-nhamos acabado de assistir a um massa-

cre de animais, com guras de cordeirosabatidos.

(Figuras femininas também apare-cem numa das cenas mais cruéis da co-

luna: mulheres como tomadas de fúriaestão torturando homens nus; romanos,ao que parece, já que têm cabelos cur-

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tos; mas o sentido da cena permaneceobscuro.)

O corte entre as sequências é mar-cado por um elemento vertical: uma ár- vore, por exemplo. Mas às vezes tam-bém há um motivo que continua paraalém daquele limite, de um episódio a

outro, como as utuações do mar sobreo qual parte a princesa prisioneira, quese tornam a correnteza do rio que, nacena seguinte, arrasta os dácios depois

de um ataque malsucedido a uma praça-forte romana.

Em conjunto com a continuidade ho-rizontal (ou melhor, oblíqua, já que se

trata de uma espiral que envolve o fustede mármore), notam-se motivos que searticulam em sentido vertical, de umacena a outra, em toda a altura da coluna.

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Por exemplo: ao lado dos dácios com-batem os roxolanos, cavaleiros de corpointeiramente recoberto por uma armadu-

ra de escamas de bronze, sobre cavalostambém cheios de escamas; sua vistosapresença, como um prenúncio da ima- gerie  medieval, domina uma cena de ba-

talha uvial; mas na imagem de outrabatalha que ocorre imediatamente acimadaquela vemos jazer sem vida um dessesseres escamosos, alongado como uma

espécie de homem-peixe ou de homem-réptil. Mais adiante, o movimento deuma batalha é dado por um alinhamentode escudos ovais que fazem frente numa

linha diagonal; na porção de coluna so-brejacente vemos repetir-se uma série deescudos do mesmo tipo, mas desta vezdispostos em faixa horizontal, lançados

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ao chão pelos inimigos que se renderamnuma outra batalha.

 A espiral gira e acompanha o desen-rolar da história no tempo e o itineráriono espaço, de modo que a narrativa ja-mais retrocede aos mesmos lugares: aquiTrajano zarpa de um porto, lá atraca e

se põe em marcha atrás do inimigo, eisuma fortaleza tomada de assalto por “en-couraçados”, e mais além a entrada emcena das artilharias de campo: carroba-

listae , ou seja, catapultas montadas so-bre carros. Em toda parte se recordamos mortos e os feridos, de ambos os la-dos, assim como os cuidados médicos,

que zeram a fama do exército de Traja-no. É evidente a atenção em não subes-timar as contribuições de nenhum corpodo exército romano: quando se apresen-

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ta um legionário ferido, posta-se a seulado outro ferido, pertencente aos auxi-lia.

 Após a batalha nal da primeira cam-panha na Dácia, vê-se Trajano receben-do a súplica dos vencidos, um dos quaislhe abraça os joelhos. O rei Decébalo

também está entre os suplicantes, porémmais recuado e digno. Uma Vitória aladasepara o nal da narrativa da primeiracampanha do início da segunda, com

Trajano que embarca do porto de Anco-na. Mas por ora os andaimes terminamaqui, e por isso não pude ver como acoisa acaba. Contarei o resto da histó-

ria assim que for possível acompanhá-lapessoalmente.

Resta falar do grande mistério dessemonumento: uma coluna tão alta, toda

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recoberta de cenas minuciosamente es-culpidas, que não podem ser vistas daterra. Tudo bem que no século I se er-

guiam ao redor altos edifícios, hoje de-saparecidos, cujos terraços davam paraa coluna; mas a distância de onde essesobservadores podiam contemplá-la não

lhes permitia fazer uma “leitura” de to-dos os detalhes, e de qualquer modoera impossível seguir a continuidade danarrativa ao longo da espiral. (Por an-

daimes talvez não muito diversos deste,subiram para registrar seus desenhos e volumes arqueólogos enviados por mui-tos soberanos da Europa: Francisco I,

Luís  XIV , Napoleão   III, a rainha Vitória.Mais aventurosamente, Ranuccio BianchiBandinelli se fez içar por uma escadade bombeiros. Por meio do resultado de

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explorações conduzidas de um século aoutro, ainda que incompletas e descon-tínuas, é que a Coluna de Trajano foi co-

nhecida até agora.)Não é apenas o destinatário dessa

elaborada mensagem que permanecemisterioso. Nada se sabe sobre o sistema

que foi usado para içar, uns sobre os ou-tros, os dezoito blocos (ou monólitos ci-líndricos de mármore guarnecidos de ca-bos internos, com uma escada em ca-

racol no centro) que compõem o fuste.Não se sabe nem mesmo se os blocosforam esculpidos no chão, um por um,ou somente após terem sido montados.

 Além disso, há outros mistérios: co-mo as cinzas de Trajano e da mulher fo-ram muradas na base da coluna, se umalei inderrogável dos romanos proibia o

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sepultamento dos mortos no perímetrodo  pomerium? (Não eram suas as cin-zas recolhidas numa urna de ouro, mas

era como se fossem: morto em Selinun-te e lá incinerado, Trajano foi substituídoem seu triunfo em Roma por um mane-quim de cera, que depois foi queimado

com as honrarias devidas a um impera-dor destinado a ascender aos céus.)

No entanto, os grandes interessesque envolviam as conquistas romanas

no mar Negro (entre outras coisas, aDácia era rica em minas de ouro) ex-plicam abundantemente a grandiosidadedo culto a Trajano (as festas das celebra-

ções duraram 180 dias; o donativo quecoube a cada cidadão foi o mais altode que se tem notícia) e o complexode monumentos gigantescos ao redor da

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tumba e do templo do imperador. Pa-ra nós, restou até hoje esta epopeia depedra, uma das mais amplas e perfeitas

narrações guradas que conhecemos.

[1981]

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15. A CIDADE ESCRITA: EPÍGRAFES E GRAFITES 

Quando pensamos numa cidade ro-

mana dos tempos do Império, imagi-namos colunatas de templos, arcos dotriunfo, termas, circos, teatros, monu-mentos equestres, bustos e hermas,

baixos-relevos. Não nos ocorre que, nes-sa muda cenograa de pedra, falta o ele-mento que era o mais característico, in-clusive visualmente, da cultura latina: a

escrita. A cidade romana era antes detudo uma cidade escrita, recoberta porum estrato de texto que se estendia so-bre seus frontões, suas lápides, suas in-

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sígnias. “Escritas presentes em toda par-te, pintadas, gravadas, incisas, suspensasem tabuletas de madeira ou traçadas so-

bre enquadramentos brancos […] orapublicitárias, ora políticas, ora funerári-as, ora comemorativas, ora públicas, oramais que privadas, de anotação ou de

insulto ou de jocosa lembrança […] ex-postas onipresentemente, com certa pre-ferência — é verdade — por alguns lu-gares especícos, praças, foros, edifícios

públicos, necrópoles, mas apenas paraas mais solenes; não para as outras, indi-ferentemente espalhadas onde quer quehouvesse a entrada de uma loja, um cru-

zamento, um pedaço de parede livre e àaltura de um homem.”

Entretanto, na cidade medieval a es-crita havia desaparecido: seja porque o

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alfabeto tinha deixado de ser um meiode comunicação de acesso comum, sejaporque não havia mais espaços que pu-

dessem acolher escritas ou atraíssem osolhares para elas; as ruas eram estreitase tortuosas, os muros, todos feitos desaliências e cantarias e arcadas; o lugar

onde se transmitiam e custodiavam ossignicados de qualquer discurso sobreo mundo era a igreja, cujas mensagenseram orais ou gurais, mais que escritas.

Essas duas visões contrapostas nossão oferecidas por Armando Petrucci naabertura de seu ensaio intitulado “Lascrittura fra ideologia e rappresentazio-

ne”, que (em 144 páginas e 122 ilustra-ções) representa o primeiro esboço his-tórico já realizado da epigraa italianadesde a Idade Média até hoje; e não só

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da epigraa, mas também de qualquermanifestação da visualidade da escrita e,portanto, daquilo que hoje chamamos

de gráca. Graca e immagine  é, a pro-pósito, o título do novo volume da Sto-ria dell’arte italiana editada pela Einau-di (terceira parte, segundo volume, tomo

I), que justamente traz este ensaio de Pe-trucci.

Na cidade medieval, os restos das lá-pides romanas tinham continuado a fa-

lar com a mesma voz solene que agorapoucos entendiam. E no entanto a tra-dição de traçar letras com grande artese perpetuava no interior das celas dos

monges escribas, nas páginas dos códi-ces, segundo técnicas e modalidades in-teiramente diversas. De modo que quan-do, depois do ano 1000, os muros das

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catedrais e dos palácios sentirem a ne-cessidade de proferir palavras, os mo-delos aos quais recorrerão para escandir

seu trôpego latim serão dois, alternadosou diversamente combinados: as letrascapitais, com a ordem horizontal e cen-trada das vetustas epígrafes, e o alfabeto

dos livros, goticamente espinhoso e re-torcido, que preenchia densamente asparedes como se fossem páginas.

Nada parece mais estático e codi-

cado que as maiúsculas latinas. Contu-do é justamente no século XV , quando omodelo romano volta a ser dominante,que as aventuras de cada letra podem

ser acompanhadas nos caprichos conti-dos de sua cauta indisciplina. O Q é aletra que se permite mais bizarrias, jáque o elemento que a caracteriza é a

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faculdade de abanar o rabo à vontade:letra-gato que felinamente se encolhee move a cauda, ora alongando-a sob

a letra seguinte, ora retorcendo-a paratrás, ora vibrando-a em chicotadas fulmi-nantes, ora arrastando-a preguiçosamen-te e arqueando-a em ondulações cônca-

 vas ou convexas. Mas também o A po-de permitir-se suas liberdades, apoian-do, por exemplo, todo o seu peso naperna esquerda ou então (em variantes

mais heterodoxas) dobrando sua barrainterna, ao passo que o M pode escolherentre uma posição de repouso, abrin-do um pouco as pernas, ou de tensão,

enrijecendo-as na vertical e em parale-lo. O G pode terminar num caracol arre-dondado ou num dente cortante ou numgancho achatado, ou então se fechar so-

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bre si mesmo como um alambique. O X pode escapar à sua vocação aritmé-tica e algébrica variando os ângulos do

cruzamento ou deixando que um bra-ço se espreguice em movimentos ondu-lados. Quanto ao Y, não se deixará fu-gir a ocasião de acentuar seu exotismo

compondo-se numa palmeira de folhascurvas. Às vezes as fórmulas de abrevi-ação epigráca sugerem a invenção denovos signos, como um NT condensado

num único ideograma, letra-ponte quenão por acaso comparece na placa quecelebra a construção de uma ponte dedi-cada a um pontíce (Ponte Sisto, 1475).

Inicialmente determinada pelo ato degravar com o escalpelo ou de vazar coma pena, a forma dos caracteres alfabéti-cos logo passou a responder às exigên-

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cias da nova arte tipográca, que hege-monizou todo tipo de escrita. E os fron-tispícios impressos ensinaram um novo

sentido das proporções, das relações en-tre espaços brancos e caracteres, que lo-go se fez notar nas lápides. A composi-ção impressa não tardou a ser produzi-

da em paginações bizarras e espetacula-res, como na Hypnerotomachia de Fran-cesco Colonna, livro editado em Venezamas concebido em Roma.

Nessa história da visualidade gráca,quase tudo acontece em Roma, diantedos vestígios latinos e em diálogo comeles. Depois de Michelangelo, que tem

um lugar de destaque, a meio caminhoentre renovação da ordem clássica e ino- vação, começa a desencadear-se a revo-lução barroca. O prazer da cção leva a

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melhor, e não é mais tanto a escrita queconta, mas o suporte que a deforma eàs vezes a oculta entre drapejamentos e

avessos: lápides de bronze ou mármorenegro ou vermelho em forma de cártulaou de cortina ou de sudário ou de pe-le de animal selvagem, superfícies movi-

mentadas ou amassadas ou rasgadas nasbordas, onde letras metálicas ou doura-das ondulam ou desaparecem entre asdobras. Assim como a pedra nge ser

papel, nos frontispícios dos livros a pá-gina nge ser lápide. Chegamos a Pira-nesi, ao século  XVIII visionário e ecléti-co que ombreia e contrabalança o sécu-

lo XVIII neoclássico e purista de Bodonie de Canova.

 Ao chegar à época moderna, Petruccise distancia da linha dominante do gosto

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gráco, que vai perdendo interesse ar-tístico, e tenta catalogar as “rupturas danorma”. Nessa perspectiva, ele retoma

sua história desde o início explorandocártulas dos primitivos sienenses, gra- vuras astrológicas, insígnias de corpora-ções, ex-votos. A fantasia da gráca po-

pular é uma vegetação espontânea queserá colhida e cultivada pelas vanguar-das, a começar por William Morris, queproclama a revolução antibodoniana.

Num rápido esboço se passa à Itáliados anos 1930, em que a modernidadedo caractere mais simples e austero, o“bastão”, é assumida como letra ocial

do regime fascista, que traduz em chavede peremptoriedade classicista a lição defuncionalidade da Bauhaus. A esse qua-dro se contrapõe, no que diz respeito a

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anos mais recentes, não tanto uma grá-ca de esquerda (em cujo âmbito Petruc-ci dá relevo à “parte perdedora” e tra-

ça um belo perl de Albe Steiner), masa explosão selvagem das escritas mu-rais contestatárias (impropriamente cha-madas de “grates”).

Portanto, é justo que o ensaio se en-cerre com essa invasão de escrita vinda“de baixo”, caracterizada por uma von-tade “antiestética”, que é o aspecto mais

 vistoso da tomada da palavra por par-te dos jovens e dos excluídos há maisde doze anos, partindo naturalmente dasfamosas inscrições do maio parisiense e

do fenômeno das “assinaturas” no me-trô de Nova York (que tem característi-cas especícas e mais próximas de umaintencionalidade artística).

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Os “palimpsestos” que essas escritas“selvagens” formam, sobrepondo-se aprecedentes inscrições “ociais” de todo

tipo — tomadas como simples superfíciede suporte — ou enroscando-se entre sipor sucessivas intervenções de militantesde grupos opostos, aqui se tornam pre-

cocemente objeto de estudo com méto-do quase paleográco. Mas a objetivida-de técnica do estudioso não vela a atitu-de empática que Petrucci demonstra por

essa selva gráca em que ele reconhe-ce uma “vontade de armação da escri-ta como elemento signicante e comoproduto criativo no espaço urbano”. O

que não o impede de também registrara degradação dessas iniciativas, testemu-nhada por inscrições carentes de qual-quer espírito, ou expressão de uma in-

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forme e gasta arrogância que hoje ocu-pa com tanta frequência as superfíciesmurais das cidades italianas. O percurso

histórico conclui signicativamente so-bre a visão desolada do Foro Itálico, on-de as escritas da retórica epigráca fas-cista se misturam ao violento alarido grá-

co dos fanáticos torcedores de futebol.Chegado a este ponto, agora que

cumpri minha tarefa informativa resu-mindo o conteúdo do ensaio em toda

a sua riqueza e sutileza, é hora que eumanifeste a objeção que mantive entala-da na garganta desde o início. Desde aprimeira página, em que evoca a cida-

de romana toda recoberta de inscriçõestanto ociais quanto privadas, até as úl-timas, nas quais celebra a guerrilha ses-sentoitista dos grates, Petrucci persegue

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um ideal de “cidade escrita”, de lugar sa-turado de imagens articuladas em sinaisalfabéticos, que vive e se comunica por

meio do sedimento de palavras expos-tas aos olhares. Ora, é justamente des-se ideal que eu não compartilho. A pa-lavra nos muros é uma palavra impos-

ta pela vontade de alguém, situe-se eleno alto ou embaixo, imposta ao olhar detodos os outros que não podem deixarde vê-la ou receptá-la. A cidade é sem-

pre transmissão de mensagens, é semprediscurso, mas uma coisa é você poderinterpretá-lo, traduzi-lo em pensamentose em palavras, e outra é se essas pala-

 vras lhe são impostas sem possibilidadede escape. Seja ela epígrafe de celebra-ção da autoridade ou insulto dessacrali-zante, sempre se trata de palavras que

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tombam em sua cabeça sem que vocêtenha escolhido: e isso é agressão, é ar-bítrio, é violência.

(O mesmo certamente vale para a es-crita publicitária, mas ali a mensagem émenos intimidativa e condicionante —nunca acreditei muito nos “persuasores

ocultos” —, temos mais defesas, e dequalquer modo é neutralizada pelas milmensagens concorrentes e equivalen-tes.)

 A palavra escrita não é imposiçãoquando lhe chega por um livro ou jor-nal, porque para ser recebida pressupõeum ato prévio de disponibilidade sua,

um consenso à escuta expresso na aqui-sição ou no simples ato de abrir aquelelivro ou jornal. Mas, se ela lhe chega vin-da de um muro, sem que haja a possibi-

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lidade de evitá-la, trata-se em todo casode uma prepotência.

É previsível que quem hoje sente anecessidade de armar suas inculcadasrazões escrevendo-as nos muros com ja-tos de spray, no dia em que tiver podercontinuará tendo a necessidade dos mu-

ros para justicar-se, seja em epígrafesde mármore ou bronze ou — segundoos usos do momento — em faixas enor-mes de propaganda ou outros instru-

mentos de embotamento dos crânios.Este meu raciocínio não vale para

as escritas de protesto sob regimes deopressão, porque ali é a ausência da pa-

lavra livre o elemento dominante, inclu-sive no aspecto visual da cidade, e opichador clandestino preenche esse si-lêncio arriscando-se por inteiro, e até o

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ato de lê-lo implica certo risco e impõeuma escolha moral. E do mesmo modoeu abriria exceções à minha questão de

princípio nos casos em que a escrita éespirituosa, como frequentemente pude-mos ler nestes anos, em Paris ou na Itá-lia, ou quando ela suscita uma reexão

iluminadora ou uma sugestão poética ourepresenta algo de original como for-ma gráca: porque captar seu valor, se-ja ele reexivo ou humorístico ou poé-

tico ou estético-visual, implica uma ope-ração não passiva, uma interpretação oudecifração, enm, uma colaboração doreceptor que se apropria dela por meio

de algum trabalho mental, mesmo queinstantâneo. Entretanto, onde a escrita éuma armação nua e crua ou uma nega-ção que demanda do leitor apenas um

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ato de consenso ou de recusa, o impactoda coerção a ler é mais forte que as po-tencialidades postas em movimento pe-

la operação com que cada vez consegui-mos restabelecer nossa liberdade interiordiante da agressão verbal. Tudo se per-de no estrondo do bombardeio neuroi-

deológico a que estão submetidos dia enoite nossos cérebros.

Por isso não me agrada tomar comomodelo as cidades do Império romano,

onde todas as mensagens epigrácas earquitetônicas ociais eram de imposi-ção da autoridade imperial e da religiãode Estado. Se hoje a epigraa romana

nos atrai é porque suas mensagens de-mandam de nossa parte uma decifraçãoque em alguma medida é um diálogo,uma participação livre: sua força intimi-

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dadora se extinguiu. Do mesmo modo,parece-nos cheia de fascínio a funçãoda escrita árabe na arquitetura e em to-

do o mundo visual do Islã: percebemosa presença da palavra escrita envolven-do os ambientes numa atmosfera de cal-ma pensativa, mas nos salvamos do po-

der de injunção da palavra porque nãoa lemos ou, se sabemos lê-la, porque elanos parece distante, encerrada em suasfórmulas. (O mesmo se diga dos caligra-

mas do Extremo Oriente.) É a presençada escrita, as potencialidades de seu uso variado e contínuo, que a cidade devetransmitir, e não a prevaricação de suas

manifestações efetivas; este talvez seja oponto em que a tese de Petrucci e meusargumentos se tocam: a cidade ideal éaquela sobre a qual paira um pulvísculo

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de escrita que não se sedimenta nem secalcica.

Mas os pobres muros das cidadesitalianas já não se tornaram igualmenteuma estraticação de arabescos, ideo-gramas e hieróglifos sobrepostos, a pon-to de não transmitirem outra mensagem

além da insatisfação de cada palavra eo lamento pelas energias desperdiçadas?Contudo, mesmo sobre eles quem sabea escrita reencontre o lugar que é in-

substituivelmente seu, quando renunciaa fazer-se instrumento de arrogância ede prepotência: um rumor ao qual é pre-ciso apurar o ouvido com atenção e pa-

ciência, até poder distinguir o som raroe sussurrado de uma palavra que ao me-nos por um momento é verdadeira.

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[1980]

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16. A CIDADE PENSADA: A MEDIDA DOS ESPAÇOS 

Em torno do ano 1000 a Europa co-nhece um desenvolvimento urbano co-mo não o experimentara desde a Anti-guidade. A cidade medieval que ganhouforma nos quatro séculos precedentesapresenta profundas diferenças em rela-ção à antiga, da qual muitas vezes her-dou o local, o nome e até as pedras: de-

sapareceram as estruturas ligadas à vi-da social do passado (templos, foro, ter-mas, teatros, circo, estádio); a ordem ge-ométrica baseada nos dois grandes eixos

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perpendiculares não é mais reconhecí- vel, submersa em dédalos de ruas es-treitas e tortuosas; as igrejas, principais

pontos de referência da cidade cristã,são distribuídas irregularmente, em lo-cais que remetem à vida dos santos, amilagres, martírios, relíquias.

É a rede de igrejas, com a hierarquiaque se estabelece entre elas, que dá for-ma à cidade, e não o contrário: a cate-dral, a sede episcopal, será simultanea-

mente o centro religioso e social; mas acidade terá tantos centros quantas foremas paróquias, e mais os conventos das várias ordens; os percursos das procis-

sões determinarão a importância das di- versas artérias.

 A cidade medieval é dos vivos e dosmortos: os cadáveres já não são conside-

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rados impuros e expulsos para fora doperímetro das muralhas; a familiaridadecom os mortos e a comunhão com a ne-

crópole são uma das grandes transfor-mações da civilização urbana.

 As linhas retas que o plano horizon-tal perdeu são recuperadas pela nova di-

mensão vertical: delineia-se a cidade doscampanários (a partir do século VII), emque o repicar dos sinos nas alturas es-cande as horas e conrma à Igreja “o do-

mínio sobre o tempo e sobre o espaço”,e depois a cidade das torres que surgemao lado do palácio municipal e das resi-dências senhoris, tão logo se arma (do

século XIII em diante) um poder civil pa-ralelo ao religioso.

É a função da cidade que mudou:não mais militar e administrativa como

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nos tempos do Império romano, mas deprodução, troca e consumo. O merca-do se torna o novo centro propulsor, e

o poder urbano passa cada vez mais àsmãos da classe típica citadina: os bur-gueses.

Entre as cidades europeias da época,

as italianas se caracterizam por uma pre-sença mais maciça das antiguidades ro-manas; pelos sinais do predomínio dosimperadores germânicos ou da resistên-

cia às suas incursões (cidadelas, fortale-zas); pela presença de uma aristocraciaurbana não mais enclausurada em seuscastelos; pela gravitação em torno de ca-

da cidade de um condado a ela sujeito;pela autonomia das cidades-Estado.

Estou resumindo um ensaio de Jac-ques Le Goff sobre “L’immaginario urba-

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no nell’Italia medievale (sec. V-XV )”, quetraça — respaldado sobretudo em tex-tos de um gênero típico daqueles sécu-

los, as laudes civitatum (a mais famosaé a milanesa de Bonvesin de la Riva) —os modelos reais ou fantasiosos a partirdos quais as cidades italianas eram vis-

tas e pensadas por seus habitantes emcomparação, por exemplo, com Jerusa-lém — terrestre ou celestial — ou comRoma. (O ensaio abre o quinto volume

dos Annali  da Storia d’Italia da Einaudi,intitulado  Il paesaggio e organizado porCesare De Seta.)

Uma passagem de Leopardi poderia

ser tomada como emblema da relaçãoentre lugares reais e o modo de pensá-los e senti-los. (O trecho é citado porSergio Romagnoli num outro belo ensaio

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do volume, dedicado à paisagem na li-teratura italiana de Parini a Gadda.) Nosprimeiros dias de sua temporada em Ro-

ma (dezembro de 1822), Leopardi escre- ve à irmã Paolina dizendo que o quemais o impressionara havia sido a des-proporção entre a medida do homem

e as dimensões dos espaços e edifícios,que seriam apropriadas “se os homensdaqui medissem cinco braças de altura eduas de largura”. O que o angustia não

é apenas a praça de São Pedro, que todaa população de Roma não bastaria pa-ra lotar, ou o tamanho da cúpula, quesó de vê-la ao longe parece tão gran-

de quanto os picos dos Apeninos: é ofato de que “toda a grandeza de Romanão serve senão para multiplicar as dis-tâncias e o número de degraus que é

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preciso subir para encontrar alguém […].Mas não quero dizer que Roma me pa-reça desabitada, digo apenas que, se os

homens tivessem necessidade de habitartão folgadamente — como se habita nes-tes palácios e se caminha por estas ruas,praças, igrejas —, o globo não bastaria

para conter o gênero humano”.Uma sensação que difere nitidamen-

te não só de nossa experiência de umaépoca de superpopulação, mas também

daquela que Fielding e Restif de la Bre-tonne — e dali a pouco Balzac, Dickense Baudelaire — tiveram das capitais eu-ropeias apinhadas e tumultuosas. A vi-

são agorafóbica de Leopardi nos inserenuma dimensão de paisagens urbanasdominadas pelo vazio que bem se podedizer uma constante mental italiana e

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que articula as “cidades ideais” do Re-nascimento àquelas metafísicas de DeChirico.

Para evocar essa sensação, Leopardiconvida Paolina a pensar num tabuleirodo tamanho da praça de Recanati sobreo qual se movessem peças de xadrez de

dimensão natural. Da primeira evocaçãode uma cidade de gigantes à de uma ci-dade de anões: a imaginação leopardia-na oscila entre Brobdignag e Lilliput, ob-

serva Sergio Romagnoli.Poucos dias depois, escrevendo ao

irmão Carlo, Giacomo xa seu critérioda “esfera de relações” entre os homens

e entre homens e coisas, as quais podemconcretizar-se em ambientes pequenos,nas pequenas cidades, ao passo que seperdem nas grandes. Tocamos aqui um

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núcleo decisivo da poesia de Leopardi: arelação entre um espaço restrito e con-ável e um exterior desmesurado e de-

sumano. De um lado a casa, a janela, osconhecidos rumores noturnos de Reca-nati, as ruas douradas e os hortos; dooutro, a Natureza imensa e indiferente,

tal como aparece ao islandês; de umaparte a sebe, de outra, o innito. Con-traposição em que repulsa e fascínio po-dem alternar-se reciprocamente: o vila-

rejo natal, modelo de medida humana, étambém insuportável; e o naufragar nomar do vazio ilimitado pode ser doce.No que diz respeito ao tema da paisa-

gem italiana, Sergio Romagnoli contra-põe aos temas leopardianos a idealiza-ção da pequena cidade no romantismoalemão.

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Em busca de uma “Itália real” iden-ticada na Itália menor partira não mui-tos anos antes um excêntrico alemão,

 Johann Gottfried Seume, que, desde-nhando diligências, carroças e itineráriosmonumentais, se deslocava somente apé (fazia trinta quilômetros por dia).

Com Seume, que rompe com todas asregras, encerra-se a tradição aristocráticae humanística do Grand Tour  pela Itália,diz Cesare De Seta, que dedica um am-

plo capítulo a essa experiência tão im-portante na história da cultura europeia.

O itinerário entre cidades italianasque o culto e rico estrangeiro (francês,

inglês, alemão) devia fazer variou muitas vezes entre o nal do século   XVI  e onal do século XVIII: há etapas que apa-recem e desaparecem, outras que mu-

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dam de importância. Com base em diári-os de viagem, De Seta confronta e inter-preta essas variações de perspectiva. Até

que, depois das guerras napoleônicas, aépoca do Grand Tour  termina e começaa fase do turismo, numa Europa em queas distâncias entre as nações se estreitam

cada vez mais.Entre os ensaios do volume, que ilus-

tra a ideia da Itália como imagem, outrosdois são sobre temas propícios a suscitar

nossa ironia. Um é sobre os guias, Ba-edeker e Touring (Leonardo Di Mauro);o outro, sobre os estereótipos das váriascidades, lugares-comuns gurativos, vis-

tas canônicas dos cartões-postais (Maria Antonietta Fusco). Mas vejo com alívioque os guias do Touring — que são umadas minhas paixões secretas e que con-

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sidero das coisas mais bem feitas que aItália unida soube fazer — são tratadoscom o respeito e a pietas  que merecem,

mesmo em seus pontos fracos, lacunas e poncifs .

Quanto aos estereótipos, como o pi-nheiro em primeiro plano e o Vesúvio

ao fundo, nossos sarcasmos são inevitá- veis. Mas talvez não se deva ver nissoapenas um produto da “cultura de mas-sa”: um país começa a ser presente na

memória quando a cada nome se asso-cia uma imagem, que como tal não querdizer nada mais que aquele nome, comum tanto de arbitrário e outro tanto de

motivado ou motivável que todo nomecarrega consigo. As Torres Pendentes eas Moles Antonellianas são apenas siglasicônicas sintéticas, brasões ou alegorias.

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O importante é que sirvam para distin-guir e não para confundir e achatar, co-mo o gondoleiro que canta “O sole mio”

num lme de Lubitsch. Embora aqueleenxerto incongruente de dois estereóti-pos tenha sem dúvida uma pertinênciasemântica na signicação de uma Itália

turística, correspondendo de resto à rea-lidade do consumo turístico-canoro-gon-doleiro tal como é praticado cotidiana-mente ainda hoje.

[1982]

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17. A REDENÇÃO DOS OBJETOS 

Um dos os condutores da  Antolo- gia personale  que Mario Praz construiureunindo ensaios e capítulos de sua obraao longo de mais de cinquenta anos (Vo-ce dietro la scena, Adelphi) é a autobio-graa deste estudioso de inesgotável vo-racidade em conhecer e comparar, des-te catalogador universal das obras má-

ximas, menores e mínimas nas quais amão humana expressou a cor eviden-te da época e as pulsões ocultas da al-ma, deste explorador das fontes mais re-

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motas das quais as correntes do gos-to se ramicam irrigando toda a exten-são da cultura do Ocidente. Assim como

em seu trabalho de historiador do gostoPraz não procede segundo um desenholinear, mas por justaposições de materi-ais em que cada elemento remete a ou-

tras séries de elementos, do mesmo mo-do a autobiograa não poderá ser paraele uma narrativa ordenada numa suces-são cronológica de acontecimentos, mas

um acúmulo de motivos, ocasiões e so-licitações, ou melhor, o catálogo das ra-zões que deram suporte e forma à sua vida.

Portanto aí está a vocação do an-glicista, colhida aqui em suas origens,na frequentação de excêntricos inglesesque antigamente passavam temporadas

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na Itália e especialmente na Toscana(como Vernon Lee, escritora e discípulade Ruskin, e William Morris, curiosa -

gura em que se uniam o estetismo préra-faelita e o humanitarismo de Tolstói), naperlustração de Londres em busca doslocais descritos por Charles Lamb, cujos

ensaios ele havia traduzido justamentenaquela época (foi Papini quem lhe en-comendou esse primeiro trabalho paraa famosa coleção “Cultura da alma”, em

1924), nos anos em que ensinou em Li- verpool, com a impaciência de espremerda dullness  da moderna cidade industri-al alguma gota do fascínio da civilização

antiga, a única que o atrai. Assim vemos a percepção das ori-

gens do decadentismo (ou melhor, donó romantismo-decadentismo), que será

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o tema de seu primeiro e mais famosolivro,  A carne, a morte e o diabo na li-teratura romântica   (1930), ganhar im-

pulso a partir de pesquisas anteriorese das fontes de D’Annunzio, mas tam-bém de uma viagem à Espanha e dereexões sobre a tourada na literatura.

 Ao passo que a atenção ao maneirismo,que faz fronteira com essa área, tem ori-gem em sua predileção por Tasso (Tassoque, num dos ensaios, vemos inespera-

damente posto ao lado de Diderot: umdos prazeres que a leitura de Praz sem-pre reserva está nas aproximações im-previstas, nos curtos-circuitos das analo-

gias temáticas e estilísticas). Depois aspaixões do colecionador: o mobiliárioImpério, cujas primeiras aquisições fo-ram feitas com as magras economias de

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quando ainda era estudante; os quadrosde interior que, mesmo não sendo ex-celente pintura, têm tanto a dizer como

história do costume e como romance; eas ceras, em que a sugestão do vivo eda aparição espectral se dá em máximograu.

Essa relação com os objetos é um ou-tro núcleo — o mais essencial, creio —da  Antologia personale  de Praz (assimcomo de outros livros dele entre os mais

típicos, do Gusto neoclassico à Casa del-la vita). Aliás, é nessa relação que seaguça aquilo que podemos chamar dea losoa de Praz. Dois ensaios desse

 volume a ilustram especialmente, “Dellostile Impero” e “Un interno”. Ambos sãoescritos para defender o mobiliário estiloImpério da acusação de ser lúgubre e

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sinistro; acusação documentada por umgrande número de testemunhas literáriasas quais Praz, não suportando, persegue

e em parte se compraz em acentuar osefeitos que possam dar razão a eles, seusadversários, em parte adianta suas pró-prias razões, mas como quem já sabe

que não serão compreendidas, que per-manecerão um segredo difícil de ser co-municado: o segredo de quem conse-guiu encontrar no “puro repetir-se de

certos motivos decorativos […] uma at-mosfera quase mágica […] que se con-gura como solene calma”. “Esnges, qui-meras e outras criaturas fabulosas não

encontram sua razão de ser numa quin-tessência da natureza, numa natureza re- vivida na imaginação humana e recom-

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binada segundo uma lógica de so-nho…?”

Em “Un interno” se narra uma visitade Emilio Cecchi, quando Praz aindamorava em via Giulia, no espaçoso masescuro apartamento do Palazzo Ricci.“Entre divertido e cheio de dedos”, Cec-

chi pergunta a Praz como ele consegue viver entre móveis tão perturbadores. EPraz por sua vez se diverte em descrevera casa cômodo por cômodo,

carregando-a de penumbras fantasmáti-cas e tétricas; para depois revisitá-la emplena luz e exaltá-la em todas as suascores, demonstrando que “a alma do ne-

oclassicismo é nobre, serena e — digamo que quiserem os detratores — profun-damente alegre”.

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Mas o ponto que eu queria ressaltaré outro: Praz se dá conta de que nãoé tanto ao gosto, mas principalmente à

posse do mobiliário, que se dirige a ob-jeção de Cecchi, “a quem a beleza dis-pendiosa repugna […], que aprecia, nadecoração da própria casa, objetos em

que um máximo de expressão se une aum mínimo de valor intrínseco […]. Coi-sas cuja posse não cause nenhuma vai-dade, que propiciem a devoção e nada

mais, mas a devoção — e neste pontoele seria enfático — deve ser toda espi-ritual, desinteressada, não contaminadapelo cru amor da posse …”.

 Aqui está o ponto controverso que vê frente a frente, como num opúsculomoral ou diálogo losóco, o asceta e ocolecionador. De um lado: “A questão da

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posse era a heresia: pela boca de Cec-chi, eu ouviria repetir-se a condenaçãode Tagore contra o foolish pride in furni-

ture” ; de outro: “Este ascetismo, como jádisse, me é alheio. Não hesitaria em rea-rmar diante do amigo minha deslavadaconssão de materialismo, para quem a

presença sensível das coisas tem grandeimportância”.

 A disputa já havia eclodido várias ve-zes nos ensaios precedentes da  Antolo-

 gia, tanto que quase se poderia apontá-la como seu leitmotiv; e o papel de de-fensor do ascetismo fora sustentado su-cessivamente por Vernon Lee, apósto-

la do ascetismo e da renúncia à posse,ou por Rabindranath Tagore (no ensaio“Dello stile Impero”). O poeta indiano,numa palestra em Florença, “apontava

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entre os deploráveis vícios ocidentais the  foolish pride in furniture , a vanglóriados proprietários de bela mobília. De fa-

to, parece absurdo que alguém possa os-tentar orgulho por uma graciosa mesi-nha, por uma cadeira de estilo ou porum par de candelabros: de que serve

mobiliar uma house beautiful  quando oespírito, ao dizer dos lósofos e dos po-etas, pode vagar soberano até entre po-bres paredes? A barrica de Diógenes de-

 veria bastar para proteger com sua cas-ca esses vermes humanos nascidos paraformar a borboleta angélica”.

E eis que Praz se apressa a engatar

a marcha do raciocínio contrário: “Maslogo me surge uma dúvida. Por que anatureza dessas queridas coisas terrenasentre as quais vivemos é tal que uma

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não possa ser negada sem que se ne-guem também todas as outras? Que euponha a alma numa mesinha ou numa

cadeira que conquista meu olhar é peca-do pouco mais grave que colocá-la nu-ma paisagem…”. No entanto, a contem-plação das paisagens naturais passa por

ser o que há de mais espiritual: por queentão a dos móveis não, já que “obe-decem a uma lei de economia que é amesma da paisagem”? São páginas dos

anos 1930, e não é por acaso que umeco das teorizações da Bauhaus seja re-conhecível inclusive num autor tão dis-tante, todo voltado para as formas do

passado: os móveis “são formas artici-ais, mas não arbitrárias; têm uma regrade necessidade que é a mesma que go- verna montes e planícies; e sua beleza

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é proporcional à conformidade daquelaregra”.

Com o tom pacato de quem querexaminar a questão de todos os ângulos,mas sempre com uma veia de sarcasmosob a qual transparece a tenacidade dapaixão, Praz arma o que ele chama de

seu “materialismo”, isto é, a recusa dequalquer espiritualismo ascético (“a ver-dade é que tenho um fraco pelos belosmóveis e nenhum fraco por Rabindra-

nath Tagore”), mas também recusa dequalquer redução do humano à nature-za nua de ente biológico ou vitalista ouexistencial ou psicológico ou quantitati-

 vamente econômico.O humano é o vestígio que o homem

deixa nas coisas, é a obra, seja ela obra-prima ilustre ou produto anônimo de

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uma época. É a disseminação contínuade obras, objetos e signos que faz a civi-lização, o habitat de nossa espécie, sua

segunda natureza. Se essa esfera de sig-nos que nos circunda com seu densopulvísculo é negada, o homem não so-brevive. E mais: todo homem é homem-

mais-coisas, é homem na medida emque se reconhece em um número decoisas, reconhece o humano investidoem coisas, o si mesmo que tomou forma

de coisas. Aqui a losoa que tentei deduzir

desliza do universal para o particular, oumelhor, para o privado, pois dispara a

lógica do colecionismo que devolve uni-dade e sentido de conjunto homogêneoà dispersão das coisas. E dispara o me-canismo da posse (ou pelo menos do

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desejo de posse), sempre latente na re-lação homem-objeto, relação que porémnão se exaure em si porque seu m é

a identicação, o reconhecer-se no obje-to. E para alcançar esse m a posse evi-dentemente ajuda, porque permite a ob-servação prolongada, a contemplação, a

convivência, a simbiose. (Mas Praz, quedos objetos amados persegue os vestígi-os também nos livros, na incorporeidadedos textos escritos, e se torna coleciona-

dor de citações, de alusões, de referênci-as, é a prova de quanto de imaterial nu-tre a concretude de sua paixão.)

 A identicação homem-objeto opera

nos dois sentidos, porque o objeto nãotem aí um papel passivo. O coleciona-dor, “à força de prática, consegue olharuma loja de antiguidades do outro lado

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da rua e notar as peças autênticas, queo chamam em voz alta em meio à quin-quilharia e às imitações. Que satisfação

redimir um bom objeto em toda a suapureza da contaminação de uma compa-nhia baixa e degradante! Frequentemen-te escutei que, se aqueles móveis pudes-

sem falar, seria possível ouvi-los despe-jando sua gratidão em nossos ouvidos. A estante escancararia suas portas envi-draçadas na impaciência de acolher os

dignos volumes nas prateleiras, a poltro-na os estreitaria em seu abraço, a escri- vaninha se estenderia para oferecer umafresca inspiração às suas penas. Estou

convencido, fantasias à parte, de que osmóveis se sentem melhor sicamente, eestava a ponto de dizer espiritualmen-

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te, quando são postos no ambiente pró-prio”.

Passagem esta (citada do ensaio“Vecchi collezionisti”) que pertence dedireito à antologia ideal do Praz escritor,aliás, narrador. Acrescentaria ainda duaspáginas a estas, duas aparições seme-

lhantes no páthos: Carlos V  velho e do-ente no convento da Estremadura, quepasseia entre o tique-taque dos relógiosde sua coleção, e Mazarino deposto e

exilado, que circula de noite entre osquadros de sua pinacoteca, dizendoadeus a eles. A relação amorosa com ascoisas tem esse fundo de melancolia: só

para dar a última palavra aos defensoresda ascese.

[1981]

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18. A LUZ NOS OLHOS 

De vez em quando me ponho a fa-

zer uma lista dos últimos livros que lie dos que me reprometo ler (minha vi-da funciona à base de listas: balançosde coisas deixadas em suspenso, proje-tos não realizados). Nos livros dos últi-mos meses noto, por uma estranha coin-cidência, que há um tema recorrente: ascores. Li um poema persa da Idade Mé-

dia,  As sete princesas , de Nezamì, tra-duzido agora em italiano, em que assete cores correspondem cada uma a umcampo alegórico e moral autônomo; de-

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pois o  Em louvor da sombra, do japo-nês Tanizaki, no qual se fala das “inni-tas gradações do escuro”; li naturalmen-

te as Observações sobre as cores  (tradu-zidas há pouco), de Wittgenstein, paraquem as cores só podem ser denidasno plano da linguagem; e este livro me

levou a reler a Teoria das cores , de Go-ethe, recentemente reimpressa.

Porém, antes de todos esses livros eutinha lido um outro que logo deu von-

tade de comentar, mas que mantive atéagora em espera, como acontece comos livros em que as coisas interessantessão muitas, demasiadas para serem pos-

tas num artigo. Mas eis que as outras lei-turas vêm juntar-se a esse livro que con-ta, por exemplo, que Newton, descobri-dor da refração do espectro, estabeleceu

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que as cores fundamentais são sete, nãoporque realmente visse sete, mas porqueo sete era o número-chave da harmonia

do cosmo (as sete notas musicais etc.), ealém disso se ava num assistente dota-do de um olho tão seletivo que conse-guia distinguir uma cor isolada entre o

azul e o violeta: o índigo, nome belíssi-mo, mas de uma cor que nunca existiu.

Enm, não posso continuar adiando;é preciso que lhes fale deste livro de

Ruggero Pierantoni:  L’occhio e l’idea: Fi- siologia e storia della visione  (Boringhie-ri). Trata-se de uma história das teoriasque buscaram entender como os olhos

funcionam, o que é de fato a visão,qual é a natureza da luz, a começar pe-los gregos, os árabes e, sucessivamente,até chegar à Idade Moderna, baseando-

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se tanto nos aspectos siológicos quantonos pressupostos losócos de todo tipode teoria, com as consequências que de-

rivam para as artes, em especial a pin-tura. O autor — leio na contracapa —“especializou-se nos aspectos biofísicosda comunicação nos animais, trabalhan-

do assiduamente no Max Planck Insti-tut de Tübingen e no California Institutof Technology, e hoje é pesquisador noInstituto de Cibernética do  CNR  em Ca-

mogli”.Há um território de fronteira entre a

teoria da visão e a problemática das ar-tes gurativas, zona em que se situam

os livros mais conhecidos de Gombrich;o livro de Pierantoni, especialmente nosúltimos capítulos, segue um curso pa-ralelo ao de Gombrich e em discussão

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com ele. No entanto, aqui me limitareiaos três primeiros capítulos, intitulados:“I mitti della visione”; “Lo spazio, dentro

e fuori”; “La luce, dentro e fuori”.Pitágoras e Euclides acreditavam que

o olho emitisse um feixe de raios que sechocava com os objetos; assim como o

cego avança estendendo seu bastão, domesmo modo o olho que vê se dá con-ta da realidade tocando-a com seus rai-os, que depois retornam ao interior do

olho e o informam. Demócrito acredita- va que imagens imateriais se destacas-sem das coisas e entrassem na pupila; jápara Lucrécio eram minúsculos fragmen-

tos de matéria, que ele chamava de áto-mos (e nós, de fótons). Para Platão haviaraios que partiam do olho e raios quepartiam do sol; encontravam-se ao se re-

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etirem nos objetos e voltavam para oolho. Para Galeno, havia um espírito vi-sual que tinha origem no cérebro, escoa-

 va por dentro do olho, capturava na len-te a luz e as imagens transportadas porela e as fazia voltar ao cérebro.

Herdeiros da ciência grega, os árabes

partiam de Galeno, aceitavam a medi-ação do espírito visual, mas rejeitavamclaramente a ideia dos raios projetadosdos olhos para o exterior: a visão agora

 vem de fora, não de dentro.Na Idade Média cristã, a crença de

que o olho emitisse luz também entraem crise. É na lente (situada contra toda

experiência no centro do olho, assim co-mo a Terra no centro do cosmo) queocorre a fusão entre o Mundo e o Eu:esta era a convicção de Dante. Os di-

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agramas da anatomia do olho perdemqualquer conotação biológica, tornam-seuma geometria de círculos concêntricos

como — diz Pierantoni — “um mundoptolomaico de esferas armilares”.

Na época de Leon Battista Alberti,os raios que partiam do olho se trans-

formaram em linhas geométricas, abstra-ções euclidianas: a pirâmide perspectiva.Mas logo Leonardo desmonta essa cons-trução abstrata: a “virtude visual” não é

puntiforme, como seria se agisse no vér-tice da pirâmide de linhas, mas é umapropriedade do olho inteiro.

 As meditações de Leonardo sobre a

ótica são ora inspiradas em seu modogenial de aderir à realidade por fora dequalquer esquema, ora no esforço parafazer colimar a experiência com a tradi-

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ção aprendida nos livros. É ele o primei-ro a entender que o nervo óptico nãopode ser um canal oco, tal como pen-

savam a Antiguidade e a Idade Médiaárabe e cristã, mas algo múltiplo e com-plexo, do contrário as imagens acaba-riam se sobrepondo e se confundindo.

Em seus quadros, no entanto, é a natu-reza siológica e não conceitual da visãoque ele tenta colher.

“Para Leonardo a luz nunca foi um

raio abstrato movendo-se na mente e noolho do homem, mas um mar radiante que de algum modo interage incessan-temente com a matéria. E a matéria, os

objetos, os homens, os lugares, não sãorepresentáveis mediante as linhas contí-nuas e exatas de seus contornos, mas

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apenas evocados pela evanescência con-tínua das superfícies.”

Enquanto isso, no campo da ciênciaocial, Vesálio publicava suas tabelas emque a anatomia se torna uma ciência ex-perimental baseada na dissecação de ca-dáveres. Mas não para o olho, que con-

tinua sendo desenhado de acordo comos tradicionais esquemas greco-árabes. As hipóteses geniais de Leonardo ca-ram sepultadas em seus arquivos parti-

culares.Nos pintores italianos da Renascen-

ça, “a luz é tão onipresente que pareceausente, e não dá a impressão de provir

de nenhum ponto do universo”: é ummar em que as guras são imersas. Jáno Norte a ideia da luz é completamentediversa: “Os amengos e os holandeses

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aprenderam a amar aquelas matérias emque a luz se entretém, aprisionando-senuma rede de reexos, e de onde ree-

merge transformada em arco-íris. Esmal-tes, cristais, aços, corais, quartzos. Dissoresulta toda uma ciência que persegue esurpreende a luz nos momentos críticos

de sua viagem através da matéria e nointerior secreto do olho humano”. Issoapesar das muitas diferenças de pintor apintor: “Van Eyck pinta as coisas como

sabe que devem ser, e Vermeer, comoas percebe. Em Vermeer a luz é um fatosubjetivo, privado… Nas mãos miraculo-sas de Van Eyck, ela é a revelação ab-

soluta de um mundo espiritual destinadaapenas ao olho da alma e emitida peloolho de Deus”.

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Desde a Antiguidade e a Idade Médiaas metáforas que servem de modelo pa-ra o funcionamento do olho mudaram

 várias vezes: o bastão, a echa, a lente,a pirâmide, depois (na época de Leo-nardo) a câmara escura, em seguida o“espelho do mundo”, a “janela da alma”.

Quando em 1619 Scheiner seciona a es-clera, observa dentro do olho, vê “comode uma janela” a imagem na retina “re-etida como num espelho”, essas duas

metáforas se tornam decisivas. Os artis-tas passam a pintar uma janela reetidana pupila dos rostos retratados; até a le-bre de Dürer, escondida no mato, tem

uma janela na pupila atenta.Quanto ao espelho, Claude Lorraine

pintava de costas para a paisagem, que via reetida num espelhinho convexo,

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obtendo efeitos de remota vagueza. Nas-ce o páthos da distância, componentefundamental de nossa cultura.

 A imagem chega invertida à retina.Como se endireita? Leonardo tinha aven-tado a hipótese de uma lente supletivana câmara escura do olho, segundo um

sistema oticamente perfeito, mas carentede fundamentos anatômicos. Foi Keplerquem contornou o obstáculo ao enten-der que o ajuste da imagem é uma ope-

ração intelectual, e não siológica. Estãomaduros os tempos para que o ego co-gitante e imaterial de Descartes entre emcampo. Mas Descartes ainda tem neces-

sidade de um suporte anatômico, e porisso escolhe a glândula pineal, enterra-da no fundo do cérebro, uma fortalezabem defendida (a imagem é de Pieran-

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toni), que garante a unidade da visão edo sujeito.

Mas então por que deveríamos terdois olhos, se a visão é una (e uno é omundo)? A descoberta do quiasma (pon-to de encontro dos dois nervos óticos) e,paulatinamente, de sua função e funcio-

namento absorve a losoa.Uma pergunta atravessa toda a his-

tória que acabamos de percorrer: ondese forma a visão? No olho ou no cére-

bro? E, se for no cérebro, em qual desuas zonas? Quando nos fazemos essasperguntas, é natural imaginarmos que ohomem leve oculto dentro da própria

cabeça um homúnculo que perscruta aimagem que chega, primeiro postando-se atrás da lente, depois contemplando aretina e nalmente se instalando no cé-

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rebro. É preciso fazer um grande esforçopara imaginar como o homem funcionaevitando o antropomorsmo.

 A questão é em que momento doprocesso a luz se torna imagem. Diz Ber-keley: “O que mais contribui a incorrerem erro é que aquilo em que pensa-

mos é a imagem que se forma no fundodo olho. Então imaginamos que estamosolhando o fundo do olho de outro ho-mem. Ou que um outro homem esteja

olhando para a imagem que se formouno fundo do nosso olho”.

 A alternativa olho-cérebro continuaaté o microscópio demonstrar que a reti-

na e o córtex visual têm a mesma cons-tituição: abre-se assim o caminho quepossibilitará entender que a retina é umaporção periférica do córtex cerebral. Ou

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seja, o cérebro começa no olho. (Esta úl-tima frase é minha, e esperamos que es-teja correta.)

O capítulo culminante do livro de Pi-erantoni é aquele dedicado à descobertade Camillo Golgi: eu não o resumo paranão reduzir seus efeitos — tanto poéti-

cos quanto dramáticos —, que são real-mente notáveis.

Finalmente se chega à retina tal co-mo a conhecemos hoje (a descrição é

muito clara, mas não teria sido supéruoacrescentar uma ilustração que nos per-mitisse acompanhar gracamente todasas relações “horizontais” e “verticais”), e

o quadro geral da visão que daí emer-ge faz saltar pelos ares todos os modelossucessivos que se zeram dele.

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Em cada modelo Pierantoni discernecertas constantes “míticas”, e o o con-dutor de seu livro é justamente o des-

 velamento desses “mitos” que alimentamnossa consciência e impedem que secompreenda a realidade dos processosnaturais, mesmo quando já se dispõe de

todos os dados necessários. O últimodesses modelos míticos, segundo Pieran-toni, é o calculador eletrônico.

Tal abordagem “mitológica” da histó-

ria da ciência e da cultura me parece amais acertada e necessária: minha únicareserva se refere à atitude de “polêmi-ca contra os mitos” implícita no livro. O

conhecimento sempre avança por meiode modelos, analogias, imagens simbó-licas que até certo ponto servem paracompreender e depois são postos de la-

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do para que se possa recorrer a outrosmodelos, outras imagens, outros mitos.Há sempre um momento em que um mi-

to que funciona verdadeiramente exerceuma plena força cognoscitiva.

 A coisa extraordinária é ver comoà distância de séculos uma concepção

descartada como mítica se reapresentacomo fecunda num novo nível do co-nhecimento, assumindo um novo signi-cado num novo contexto. Não seria o

caso de concluir que a mente humana— na ciência como na poesia, na loso-a como na política e no direito — sófunciona à base de mitos, e a única alter-

nativa está em adotar um código míticoem vez de outro? Um conhecimento forade qualquer código não existe: só é pre-ciso estarmos atentos em distinguir os

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mitos que se degradam e se tornam obs-táculos ao conhecimento, ou, pior ainda,perigos para a convivência humana.

Usando “miticamente” a imagem daestrutura biofísica da retina, a mente hu-mana me parece como um tecido de“mito-receptores” que transmitem reci-

procamente suas inibições e excitações,à semelhança dos fotorreceptores quecondicionam nossa visão e fazem que,olhando as estrelas, as vejamos radiadas

quando, “na realidade”, deveriam pare-cer puntiformes…

[1982]

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 Parte 3

 RELATOS DO FANTÁSTICO 

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19. AS AVENTURAS DE TRÊS  RELOJOEIROS E DE TRÊS 

 AUTÔMATOS 

Muitas vezes a dedicação que oshomens investem em atividades que pa-recem absolutamente gratuitas, sem ou-tro m que não o divertimento ou a sa-tisfação de resolver um problema difícil,se revela essencial num âmbito que nin-guém tinha previsto, com consequências

que levam longe. Isso é verdade em po-esia e arte, assim como é verdade paraa ciência e a tecnologia. O jogo semprefoi o grande motor da cultura.

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 A construção de autômatos no século XVIII   antecede a Revolução Industrial,que usufruirá de soluções mecânicas in-

 ventadas por aqueles complicados brin-quedos. Mas é preciso dizer que a cons-trução de autômatos não foi simples-mente uma brincadeira, embora se apre-

sentasse como tal: era uma obsessão, umsonho demiúrgico, um desao losó-co na equiparação do homem à máqui-na. A fortuna do autômato como tema

literário, de Puchkin a Poe a Villiers del’Isle-Adam, conrma a força dessa fasci-nação, seus componentes tanto hiper-ra-cionais quanto inconscientes.

Todas essas reexões foram inspira-das por um insólito volume iconográcopublicado por F. M. Ricci sobre os “An-droides” de Neuchâtel ( Androidi , le me-

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raviglie meccaniche dei celebri Jaquet- Droz , com textos de Roland Carrera eDominique Loiseau, Franco Maria Ricci

Editor). No século XVIII, Neuchâtel era acapital da relojoaria, não só como arte-sanato, mas também como ciência (bas-ta ver os seis volumes dos  Essais sur 

l’horlogerie , de Ferdinand Berthoud).Recentemente o museu de Neuchâtel fezum minucioso trabalho de restauraçãomecânica e deu nova vida a três famosos

autômatos, o “escrivão”, o “desenhista”e a “musicista”, construídos há mais deduzentos anos por mestres daquela tra-dição, os Jaquet-Droz, pai e lho, e J.-F.

Leschot.O volume de Ricci documenta deta-

lhadamente em suas ilustrações colori-das o aspecto exterior e o mecanismo

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interno dos três “Androides”; as ilustra-ções em preto e branco mostram seustrabalhos grácos e as partituras das mú-

sicas executadas no cravo, ao passo queos textos narram a história dos constru-tores e de suas criaturas, as característi-cas técnicas e as últimas obras de res-

tauro. (Além disso, o estojo também trazum disco com o repertório da “musicis-ta”, antes e depois da restauração.)

Mas como é que um livro tão técnico

e factual é capaz de transmitir tanto es-tranhamento? O fato é que os três “An-droides” nada fazem para atenuar seuaspecto de bonecos ou para ocultar sua

substância maquinal. Talvez seja precisoreler as páginas de Baudelaire sobre osbrinquedos e as de Kleist sobre as mari-onetes para compreender as razões des-

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se fascínio duradouro. De resto, o século XVIII gracioso e galante das rendas nospulsos e nos coletes e o século   XVIII

frio e analítico das tabelas da Enciclopé-dia aqui estão simultaneamente presen-tes e enfatizados ao extremo; e a palavra“androide” funde essas inuências numa

aura de cção cientíca avant la lettre ,como numa espécie vivente intermediá-ria entre o homem e a máquina, ou umpovo de possíveis invasores, nos quais

terminaríamos por reconhecer nossosduplos.

O “escrivão” ou “escritor” é o quetem o rosto menos inteligente, mas o

mecanismo mais complicado: o pulso semove em três direções, a pena de gansotraça as letras com os cheios e os vaziosda regra caligráca, mergulha no tintei-

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ro, muda de linha como uma máquinade escrever, e um dispositivo a bloqueiaquando chega ao ponto nal. Um siste-

ma de jogos de engrenagens lhe permitetraçar as letras maiúsculas e minúsculasdo alfabeto e compor frases xadas noprograma.

 As performances do “desenhista”aparentemente causam mais efeito, maso mecanismo é muito menos complica-do que o do “escritor”. Seu repertório é

de quatro desenhos, todos estabelecidosna época da construção, e inclui um ca-chorrinho e o perl do rei Luís XV . Diz alenda que, durante uma exibição diante

de Luís XVI e Maria Antonieta, o opera-dor, comovido, após ter anunciado o re-trato do rei que morrera havia pouco, er-rou ao programar os movimentos: sob o

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lápis do autômato surgiu o cachorrinho,“o que provocou um certo mal-estar”.

 Ao passo que os rostos dos dois vir-tuoses da gráca se assemelham a doisbonecos infantis, a tocadora de cravo éuma boneca-mulher com uma expres-são de mistério capaz de inspirar deva-

neios perversos como aqueles narradospor Tommaso Landol ou por FelisbertoHernandez. O autor do comentário ex-plica que ela é “a única boneca no mun-

do que respira, participando assim danossa vida e aparentemente haurindo afonte da própria existência do mesmo arde que depende a nossa” e se pergunta

se ela não deveria “oferecer-se por meiode sua música tênue a um apaixonadoperdido em delícias irreais, ou até rea- vivar em Pierre Jaquet-Droz a recorda-

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ção imortal da jovem esposa perdida pa-ra sempre…”.

 A história de Pierre Jaquet-Droz(1722-90) é uma bela vida setecentista,com todos os ingredientes. Para dedicar-se à relojoaria, abandona os estudos deteologia. Sua arte se aperfeiçoa nas fre-

quentes temporadas em Paris (onde,desde a geração anterior, alguns mestresde Neuchâtel já se haviam estabelecidocomo relojoeiros da corte) e adquire

fundamento na Universidade de Basileia,pelo convívio com Johann Bernoulli eoutros membros daquela célebre famíliade matemáticos.

Das montanhas do Jura a fama de Jaquet-Droz se espalha rapidamente pe-la Europa. Naquela época, mesmo ade-rindo à confederação suíça, Neuchâtel

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era um principado submetido ao rei daPrússia, e as relações com as cortes es-trangeiras eram mais estreitas que em

outros locais. Com uma carroça carrega-da de pêndulos, Jaquet-Droz logo chegaa Madri e alcança na corte espanhola aconsagração de sua mestria.

Depois de voltar a seu país, fundacom o lho Henri-Louis (1752-91) e olho adotivo Jean-Frédéric Leschot(1746-1824) um laboratório em La-

Chaux-des-Fonds. Ele agora é o chefede uma empresa consolidada, e é aí, noápice de sua fortuna, que decide cons-truir os “Androides”. De quem terá sido

o impulso decisivo? Dos Bernoulli? Deum doutor do lugar, que as crônicas des-crevem como meio inventor, meio natu-ralista, meio mago? De Leschot, cujo re-

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trato revela uma face de gnomo sapiente(ao passo que os de Jaquet-Droz, pai elho, são bastante inexpressivos)?

Seja como for, depois de 1773-4, datada construção dos autômatos, a vida dostrês relojoeiros muda; eles passam a vi- ver principalmente em função de suas

criaturas, exibindo-as a visitantes ilustrese levando-as em turnês pelas capitaiseuropeias. Enquanto isso a empresa sealarga; eles fundam uma lial em Lon-

dres para exportar para a China e a Índiarelógios preciosos, carrilhões, pássaroscanoros e outras maravilhas mecânicas.

Entretanto, começam a surgir algu-

mas confusões: quando se fala de “osDroz”, trata-se dos três relojoeiros oudos três autômatos? A essa altura, os“três Droz” são estes últimos: assim os

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 vemos referidos numa gravura da época;os três bonecos mecânicos assumiramnomes e sobrenomes de membros da fa-

mília. Não sei a data exata da gravura:estamos antes ou depois da queda daBastilha? Seria possível dizer que osautômatos, rebelando-se, reivindicaram

a própria autonomia e usurparam aidentidade de seus inventores.

Foi por isso que a grande empresa Jaquet-Droz entrou em crise e abriu fa-

lência rapidamente? Sem dúvida a Revo-lução Francesa deu um duro golpe nomercado dos artigos de luxo e as guerrasnapoleônicas atormentaram as exporta-

ções; mas parece que a crise foi anterior,uma crise que atingiu toda a relojoariasuíça.

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O fato é que em 1789 os “Androides”já não guram nos inventários da soci-edade. Passam de mão em mão, sem-

pre exibidos ao público como atraçãoespetacular. (Ou foram eles que, depoisde terem proclamado os “direitos univer-sais do autômato”, se deslocaram livre-

mente pela Europa?) Em suas turnês, ter-minaram numa Saragoza assediada pelastropas napoleônicas, onde foram captu-rados e em seguida conduzidos para a

França no butim de guerra. Mais tarderetomaram as peregrinações e exibiçõesinternacionais, que duraram todo o sé-culo passado.

Prova singular de delidade: duranteo século inteiro, os cidadãos de Neuchâ-tel jamais se esqueceram da existênciade seus três lhos perdidos pelo mun-

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do; de vez em quando saíam em diárioslocais apelos para reencontrá-los erecuperá-los. Coisa que aconteceu em

1905, mediante um grande abaixo-assi-nado. (Ou foram eles, os autômatos, quequiseram regressar à pátria? Tinham em-preendido suas peregrinações nas pe-

gadas dos grandes aventureiros daqueleséculo, otimistas imperturbáveis comoCagliostro, Casanova, Cândido. Mas naalvorada do século   XX   perceberam a

tempo que o mundo estava prestes a setornar impraticável para quem era mo- vido por mecanismos vitais tão simplese transparentes. Convinha recordar que

eram cidadãos suíços, antes que fossetarde demais.) No programa do “escri- vão” foi inserida a seguinte frase, que ele

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ainda traça com sua graa setecentista:“Nunca mais deixaremos nosso país”.

[1980]

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20. A GEOGRAFIA DAS FADAS 

O primeiro atributo é a leveza. De

baixa estatura, com corpos “de naturezaanáloga à de uma nuvem condensada”ou “de um ar coagulado”, enm, de umamatéria tão na e tênue que, para se nu-trirem, basta um líquido qualquer quepenetre por seus poros como nas espon-jas ou migalhas de grãos que eles dis-putam com gralhas e ratos. Vivem de-

baixo da terra, em montinhos perpassa-dos por minúsculos túneis e fendas, masàs vezes são atraídos para o alto, voan-do a meia altura. A aparência deles, e

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talvez sua própria presença, é descontí-nua: somente quem é dotado de uma se-gunda visão pode percebê-los, e sempre

por breves instantes, porque aparecem edesaparecem. Suas moradas subterrâne-as são iluminadas por lâmpadas perpé-tuas, que brilham sem nenhum combus-

tível; há quem arme que de suas gu-ras emanaria uma luz esverdeada. Têm vidas muito mais longas que as huma-nas, mas também são mortais: num cer-

to momento, sem que adoeçam ou pas-sem por sofrimentos, se rarefazem e so-mem…

O trabalho não lhes é estranho, se

for verdade que nas vizinhanças de suasmoradas se ouve o bater de martelos ese sente “o pão cozinhando”. Suas mu-lheres tecem e costuram, uns dizem “tei-

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as estranhas”, outros, “arcos-íris impalpá- veis”, outros, roupas semelhantes às nos-sas. Mas também em nossas cozinhas,

às vezes, enquanto dormimos, são elesque arrumam solícitos nossos pratos epõem tudo em ordem. As relações comos seres humanos consistem nesses pe-

quenos serviços, mas também em pirra-ças e pequenos furtos ou em arremessode pedras, e até das grandes, que porémnão fazem mal. Mais grave é o rapto de

crianças ou de amas de leite (são gulo-sos por leite), que cam um certo tem-po com eles debaixo da terra, enquan-to aqui em cima são substituídas por um

duplo ou uma aparição espectral.Têm também relações sexuais com

os humanos, especialmente suas fêmeas,porém mais no plano de um jogo lascivo

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e lábil, como nos sonhos, sem paixãonem drama. Não são imunes a guerrase crueldades, mas tudo ca entre eles e

pouco se sabe sobre isso. Falam as lín-guas humanas dos lugares onde vivem,mas “como num assovio sutil”. “Dir-se-ia que têm muitos livros de fábulas, di-

 vertidas, mas o efeito de tais leituras semanifesta apenas por acessos de alegriabizarra.” Têm momentos de euforia ede inquietude, mas seu humor mais fre-

quente é a melancolia, talvez devida àsua natureza suspensa.

Este é o “pequeno povo” dos Siths,ao qual é dedicado um livro saído pela

 Adelphi (Robert Kirk, Il regno segreto, or-ganizado por Mario M. Rossi, cujo en-saio “Il cappellano delle fate” completao volume). Siths  é o nome que se dava

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na Escócia àqueles que na Inglaterra sãochamados de fairies  (o termo correspon-dente em italiano não existe, porque en-

tre nós “as fadas” são exclusivamente fe-mininas, ao passo que  fairy  é tanto fe-minino quanto masculino) e no mundogermânico de elfos  ou, com algumas di-

ferenças especícas, kobold  ou  gobelins ,e todas as variedades de anões e de gno-mos (muitas vezes associados a minas ea tesouros ocultos), inclusive os hobbits 

de Tolkien.O mundo sobrenatural dos povos

celtas é fervilhante, intrincado, multifor-me, difícil de ser ordenado. Ou quem sa-

be somos nós que percebemos mais or-denado o mundo mediterrâneo de fau-nos, ninfas, dríades e hamadríades sóporque as exuberantes mitologias locais

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foram peneiradas pela sistematicidadehierárquica e sancionadora das culturasgrega e latina. O poder de transguração

poética do imaginário nos deu Titânia eOberon e Puck, assim como o poema deSpenser. Mas por meio da palavra dospoetas o reino das fadas também trans-

mite a força virgem de um mundo ir-redutivelmente “outro”, que a literaturanão consegue domar até o fundo.

Na França céltica (sobretudo Breta-

nha e Normandia) o “pequeno povo”também tem antigas raízes; e na literatu-ra deixou rastros nos contos fantásticosde Nodier e num romance de Barbey 

d’Aurevilly,  A enfeitiçada, onde o emer-gir de aparições mágico-telúricas nomundo moderno se dá de modo extre-mamente inquietante. Mas foi nos ver-

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des prados da Irlanda e nas planícies daEscócia que essa estirpe impalpável al-cançou a máxima densidade populacio-

nal. Se não um recenseamento, ao me-nos uma classicação por espécies e fa-mílias foi tentada por Walter Scott emrelação à Escócia (em  Demonology and 

witchcraft ) e por W. B. Yeats na Irlanda(em  Irish folktales ): dois engenhos quetratavam o culto das tradições com men-talidade sistemática.

Diferente é o caso de Robert Kirk,que, no nal do século  XVII, se via nacondição de pároco de uma igreja pres-biteriana no vilarejo de Aberfoyle, nos

conns das Highlands, numa Escócia re-centemente submetida à coroa inglesa,devastadas pelas guerras civis e religio-sas, em meio a uma situação de turba-

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mento existencial daquelas populaçõesmisérrimas, de crise de identidade cul-tural e religiosa. Estamos em lugares e

tempos em que a sobrevivência das an-tigas crenças era fortíssima, a própria to-pograa estava embebida da presençadas fadas, a “segunda visão” era uma

experiência comum; mas também luga-res e tempos em que o anglicanismo eo presbiterianismo combatiam suas ba-talhas com implicações tanto teológicas

quanto políticas.O século   XVII   é a época dos pro-

cessos contra as bruxas e dos inquisi-dores (quer católicos, quer protestantes),

que não veem nas formas de sobrevi- vência do sobrenatural pré-cristão nadaalém da presença uniforme de Satanás,a ser extirpada com a fogueira. O reve-

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rendo Kirk tem a força de uma profun-da inocência interior, que lhe dá a cer-teza de saber reconhecer a inocência do

próximo. Sabe que os paroquianos queacreditam nas fadas e que as veem nãosão bruxas ou bruxos; tem afeto pelospobres interioranos escoceses, conhece

suas alucinações e a precariedade de su-as existências; é afeiçoado às fadas, quetambém são um pobre povo, talvez aponto de dissolver-se, sem um ubi con-

 sistam físico ou metafísico; e decerto elemesmo acredita nas fadas, e provavel-mente as veja, embora se limite a regis-trar testemunhos alheios.

Com a coragem da inocência, ele es-creve um breve tratado sobre o reinodos  fairies , The secret commonwealth,para dizer tudo o que sabe sobre o as-

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sunto, o que não é muito, mas sobre-tudo para afastar qualquer suspeita depacto diabólico entre as pequenas fadas

subterrâneas e quem as vê. (Aqui, aoproblema da existência das fadas se so-brepõe o da segunda visão, da telepatia,das premonições, fenômenos não neces-

sariamente — aliás, raramente — asso-ciados à mediação de seres sobrenatu-rais.) As citações das Sagradas Escriturasàs quais Kirk recorre para legitimar seu

raciocínio são aproximativas e nunca detodo pertinentes, mas sua intenção é cla-ra. Ele pretende sustentar que o “peque-no povo” não tem nada a ver nem com

o cristianismo nem com o diabo: seuestatuto jurídico seria o de Adão antesda queda, ou seja, nem eleito nem con-denado; um limbo neutral e não passí-

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 vel de julgamento envolve seus pecados,sempre leves e quase infantis, bem co-mo sua melancolia.

O volume agora publicado pela Adelphi contém o breve tratado de Kirk,descoberto, traduzido e acompanhadode um longo ensaio de Mario Manlio

Rossi, que com erudição e paixão o situana cultura de seu tempo e explica exaus-tivamente como Kirk de fato acreditavana existência das fadas e como não ha-

 via nada de estranho nisso. Portanto, osmotivos de interesse pelo livro são três:as fadas em si, a personalidade do “ca-pelão das fadas” e a personalidade de

seu descobridor e exegeta.Mario Manlio Rossi (1895-1971), an-

glicista italiano que viveu por muitosanos em Edimburgo, é um tipo de estu-

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dioso reservado e sempre a contrapelo.Pouco sei a respeito dele, mas lhe sougrato pois foi por meio de um livro seu

que compreendi, ainda jovem, a grande-za de Swift. Aqui Rossi arma convin-centemente que os processos por bru-xaria não eram absolutamente um resí-

duo medieval, mas um típico produto dacultura moderna. Seu ensaio é fascinan-te pela riqueza do quadro de história dacultura que ele evoca e documenta, mas

também se deixa ler pelos humores emaus humores polêmicos que emergema cada página, prova de um tempera-mento intratável em que se combinam o

escrúpulo erudito e os partis pris . Os al- vos de sua polêmica são vários: a intole-rância tanto presbiteriana quanto angli-cana, a caça às bruxas e as opiniões de

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todos os historiadores que trataram doassunto, as fábulas infantis que censu-ram o elemento sexual sempre presente

nas narrações populares, e ainda o em-pirismo, o idealismo, o ocultismo, o fol-clore e principalmente a ciência, que ésua besta-fera. Salva (e aqui não tenho

dúvidas em concordar com ele) a poe-sia, em que “o homem em carne e ossoe a fada têm uma única e idêntica posi-ção gnosiológica, a mesma realidade”.

Enquanto eu lia, o nome do vilarejode Kirk continuava zumbindo em minhacabeça: Aberfoyle. Por que me soa fami-liar? Claro, é ali que se passa meu ro-

mance preferido de Júlio Verne: As Índi-as negras , uma história toda subterrânea,numa velha mina de carvão abandona-da, onde se escondem seres que pare-

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cem saídos das páginas do reverendoKirk: uma menina-fada que nunca viu aluz do sol, um ancião que parece um

espectro, um pássaro dos abismos… Aí está o mundo visionário céltico que seinltra na apologia da ciência do positi- vista Verne, demonstrando, em polêmica

com Mario Manlio Rossi, que a mesmalinfa mitológica escorre e se mistura noinextricável emaranhado das ideologiasaparentemente contrapostas… Como se

demonstrasse que as fadas conhecem,debaixo da terra ou no céu, mais cami-nhos do que supõe qualquer de nossas vãs losoas…

[1980]

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21. O ARQUIPÉLAGO DOS  LUGARES IMAGINÁRIOS 

Em Frívola, ilha do Pacíco, a vidaé fácil e frustrante: as árvores são elásti-cas como se fossem de goma e seus ga-lhos se inclinam para oferecer frutas quederretem na boca como espuma; os ha-bitantes criam cavalos frágeis e inúteis,que se dobram sob o peso mais leve;para arar os campos, basta que as mu-

lheres assoprem para que se abram sul-cos na terra na e, para semear, os ho-mens se limitam a espargir as sementesao vento; nas orestas as feras têm pre-

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sas e garras macias, e seu rugido é co-mo um roçar de seda; a moeda local éa agatina, de baixa cotação no mercado

cambial. As ilhas dos Diamantes têm a pro-

priedade de engolir os viajantes imprevi-dentes, capturados pelos diamantes car-

nívoros. Para apossar-se das gemas, as-tutos mercadores espalham sobre elaspedaços sangrentos de carne suína, queos diamantes começam a sorver imedia-

tamente; à noite os abutres descem, pe-gam a carne com as garras e a trans-portam para seus ninhos, com as pedrasgrudadas nela. Os mercadores sobem

até os ninhos, espantam os abutres, se-param os diamantes da carne e depoisos vendem a joalheiros ingênuos. E as-

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sim ocorre que um anel devore um de-do, ou um colar, um pescoço.

Capilária, região submarina, é habi-tada exclusivamente por mulheres autor-reprodutivas, chamadas de Ohias, belase majestosas, com dois metros de altu-ra, traços angélicos, corpos macios, lon-

gas cabeleiras louras e cheias como nu- vens. A pele das Ohias é sedosa, trans-lúcida como o alabastro: em transparên-cia, deixa entrever os ossos do esquele-

to, os pulmões azuis, o coração rosa, ocalmo pulsar das veias. Os homens sãodesconhecidos, ou melhor, sobrevivemcomo parasitas externos, chamados de

Bullpops, formados por um corpo cilín-drico de uns quinze centímetros, cabeçacalva e protuberante, rosto humano, bra-ços e mãos liformes, mas pernas dota-

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das de grandes dedões, barbatanas e atéasas. Os inermes Bullpops nadam ver-ticalmente como cavalos-marinhos, e as

Ohias os devoram, pois são gulosas desua medula, à qual chegam a atribuir do-tes que de algum modo estimulariam areprodução.

Na ilha de Odes as ruas são seres vi- vos e se movem livremente por vontadeprópria. Para viajar pela ilha os visitan-tes só precisam saber de antemão aon-

de elas estão indo, arranjar um lugar naestrada e deixar-se transportar. As maisfamosas estradas do mundo vêm a Odesem férias turísticas.

London-on-Thames, que não se deveconfundir com a mais famosa homôni-ma, é uma cidade escavada no topo deuma rocha, habitada por uma tribo de

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gorilas, cujo chefe se acha a reencarna-ção de Henrique VIII e tem cinco mulhe-res chamadas Catarina de Aragão, Ana

Bolena e assim por diante. A sexta espo-sa é uma mulher branca, capturada pe-los gorilas, que permanece no posto atéser substituída por outra.

Na ilha de Dioniso cresce um vinhe-do cujas parreiras são mulheres da cintu-ra para cima; de seus dedos pendem fo-lhas e cachos, e seus cabelos são parras;

ai do viajante que se deixe abraçar poressas criaturas: imediatamente se embri-aga, esquece pátria, família, honra, lançaraízes e também se torna videira.

Malacóvia é uma cidade fortaleza to-da em ferro, construída na foz do Da-núbio: tem forma de ovo e é toda cheiade tártaros ciclistas que, pedalando, fa-

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zem descer e subir o ovo de ferro,escondendo-o nos pântanos; a cidade vi- ve à espera do momento em que as hor-

das de tártaros ciclistas se lançarão parainvadir o império dos czares.

 As fontes dessas informações geo-grácas são, na ordem: Abbé François

Coyer, The Frivolous island , London,1750;  As mil e uma noites ; Frigyes Ka-rinthy, Capillaria, Budapeste, 1921; Ra-belais, O quinto livro; Edgar Rice Bur-

roughs, Tarzan e o homem leão, Nova York, 1934; Luciano de Samósata, Umahistória verdadeira; Amedeo Tosetti, Pe-dali sul mar Nero, Milão, 1884.

Pelo menos é assim que estão indi-cadas (declino de qualquer responsabili-dade a respeito) no livro do qual as re-tirei:  Dicionário de lugares imaginários ,

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de Alberto Manguel e Gianni Guadalu-pi. É um volumão que se apresenta co-mo um dicionário geográco, com ver-

betes em ordem alfabética (de Abaton,cidade de posição variável, a Zuy, centrocomercial dos elfos), incluindo mapas egravuras que imitam os de uma velha

enciclopédia.Um livro publicado no Canadá e fru-

to da colaboração de um argentino eum italiano tem todos os predicados pa-

ra representar o não pertencimento geo-gráco. Na Biblioteca do Supéruo, queeu gostaria de ver sempre ocupando umlugar em nossas prateleiras, parece-me

que um “Dicionário de lugares imaginá-rios” é obra de consulta indispensável.

 A cada cidade ou ilha ou região é de-dicado um verbete como numa enciclo-

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pédia, e cada verbete se inicia com da-dos sobre a posição geográca, a popu-lação e se possível os recursos econô-

micos, o clima, a fauna e a ora. Aregra que fundamenta o dicionário é ade apresentar cada localidade como serealmente existisse. Os dados são extraí-

dos das fontes, citadas ao nal de cada verbete: assim, para a Atlântida, são lis-tados o Crítias  e o Timeu de Platão, oromance de Pierre Benoît e também um

Conan Doyle menos conhecido.Outra regra é a exclusão dos nomes

imaginários usados por romancistas pararepresentar lugares reais ou de algum

modo verossímeis: portanto não cons-tam a Balbec de Proust nem a Yoknapa-tawpha de Faulkner. E, posto que a geo-graa implica o presente com seu passa-

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do, mas não o futuro, toda a cção cien-tíca futurista — seja extraterrestre, polí-tica ou sociológica — ca de fora.

Não é um livro que cative imediata-mente o leitor, ao contrário, a primeiraimpressão ao folheá-lo é que a geogra-a imaginária seja bem menos atraente

que a real: um cinzento metódico se es-tende sobre as cidades utópicas, da Ben-salém de Francis Bacon à Icária de Ca-bet, assim como sobre inumeráveis via-

gens satírico-losócas do século  XVIII,para não falar das edicantes etapasalegórico-religiosas de O peregrino   deBunyan. E um sentimento de saturação,

se não de falta de ar, emana das exces-sivas topograas de O mágico de Oz , deTolkien ou de C. S. Lewis.

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Mas enveredando por verbetes es-pecícos não demoramos a topar commundos regidos por uma lógica fantásti-

ca e sugestiva, dos quais tentei expor al-guns exemplos; contudo não citei (por-que já é bem conhecida nossa devido aMasolino d’Amico e a Manganelli) a in-

 venção que continua sendo a mais ele-gante e engenhosa: a geométrica Plano-lândia de Abbott.

É principalmente a narrativa menor

que revela recursos mitopoéticos semm: atlas inteiros de paragens visionáriassaem da pena de hábeis prossionaisda literatura de entretenimento. O autor

mais citado no dicionário é Edgar RiceBurroughs, não só pelo ciclo de Tarzan,mas também por uma grande quantida-de de livros que descrevem países da

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fantasia. Dos romances que foram con-siderados de consumo e cujos autoresnão são lembrados nas histórias literári-

as, tornaram-se mitos cinematográcos aShangri-La de Horizonte perdido, a Ruri-tânia de O prisioneiro de Zenda e a ilhado Conde Zaroff, com suas trágicas ca-

çadas. O dicionário também recolhe paí-ses que nasceram diretamente nas telas,como a Freedonia dos irmãos Marx em Diabo a quatro e a Pepperland dos Be-

atles em Submarino amarelo; mas nãoencontro as cidades dos lmes de sátirapolítica de René Clair.

 A literatura italiana é bem represen-

tada, da Albraca de Boiardo à Zavattiniade Totò Il buono, embora não seja dasmais ricas nesse campo; não faltam afortaleza Bastiani de Buzzati, o Mara-

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dragal de Gadda nem o País dos Brin-quedos de Collodi. Entre as curiosidadesdignas de nota, gostaria de assinalar dois

túneis: um que leva da Grécia a Nápoles,para uso exclusivo dos amantes infeli-zes, explorado na  Arcádia de Sannaza-ro; o outro, que liga o Adriático (através

do vale do Brenta) ao Tirreno (desembo-cando no golfo de La Spezia), construídono século  XIV  pelos genoveses para in- vadir a república de Veneza, foi encon-

trado e explorado no romance de Sal-gari chamado  I naviganti della Meloria(1903), onde se descobre uma fauna fos-forescente de medusas e moluscos gi-

gantescos.

[1981]

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22. OS SELOS DOS ESTADOS  DE ÂNIMO 

Durante toda a vida Donald Evansfabricou selos. Selos imaginários de paí-ses imaginários, desenhados a lápis outintas coloridas e pintados com aquarela,mas escrupulosamente éis a tudo o quese espera de um selo, a ponto de, à pri-meira vista, parecerem verdadeiros. In- ventava o nome de um país, o nome

de uma moeda, um repertório de ima-gens características, e começava a pre-encher minuciosamente pequenos qua-drados ou retângulos (às vezes até triân-

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gulos) emoldurados numa borda brancae serrilhada, em séries completas, cadasérie com seu ano de emissão e o es-

tilo da época, cada valor com sua cor-zinha tênue, escolhida entre a gama depigmentos típica das franquias postais.

Nada de cção cientíca nem de gê-

nero utópico ou extravagante: os Esta-dos de seu atlas imaginário se parecemcom os Estados que existem na realida-de, só que se tornaram mais familiares

e controláveis, identicando-se inteira-mente com um número limitado de em-blemas reconfortantes. Inventava tam-bém o nome da capital e fazia um timbre

circular para anular os selos, de modoque o efeito de verdade se tornava cada vez mais persuasivo. Às vezes a compo-sição incluía até o envelope todo carim-

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bado e repleto de selos, com o endereçoescrito à mão numa graa inventada, no-mes de pessoas e de lugares inventados,

mas quase sempre verossímeis.O fascínio dos selos nasce sempre na

infância: ele é movido simultaneamen-te pelo amor ao exótico e pelo gosto

da sistematicidade das séries. Foi desdea infância que Donald Evans, americanode Nova Jersey, começou a colecionarselos e depois a inventá-los, o que quer

dizer inventar uma geograa e uma his-tória paralelas às do mundo reconheci-do pelos outros. Ao crescer, Evans nun-ca abandonou de todo sua paixão in-

fantil, ainda que, praticando a pintura àmargem de seus estudos de arquitetura,a escondesse quase com vergonha. Es-tamos em Nova York, no nal dos anos

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1950, época do domínio absoluto do ex-pressionismo abstrato. Mas logo em se-guida o advento da arte pop convence

Evans de que suas primeiras predileçõesgurativas correspondem aos rumos ar-tísticos mais recentes. Abre-se a ele a es-trada que pode torná-lo pintor de suces-

so; mas a única coisa que lhe interes-sa é viver tranquilamente, fazendo o quemais lhe agrada. Nos anos 1970 continuapintando exclusivamente selos, cerca de

4 mil, distribuídos por 42 países imagi-nários, com uma exposição a cada ano,mas permanecendo em Nova York o me-nor tempo possível. Vive quase sempre

na Europa, sobretudo na Holanda, até oincêndio em que perde a vida, em Ams-terdã, com apenas 31 anos de idade. Olivro que me fez conhecê-lo é prova de

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que um círculo de amigos e de especi-alistas tributa à sua gura e à sua obraum culto semelhante à memória de um

santo (The world of Donald Evans , textode Willy Eisenhart, Nova York).

 A vida breve de Donald Evans(1945-77) é reconstruída minuciosamen-

te e sua obra é detalhadamente comen-tada por Willy Eisenhart na introduçãoàs 85 ilustrações em cores, dispostas emordem alfabética como um álbum de co-

leção dos países imaginários. A coleçãode selos é ao mesmo tempo coleção degalinhas, de moinhos de vento, de diri-gíveis, de cadeiras, de palmeiras, borbo-

letas e todo tipo de exemplar da faunae da ora (aliás, “Fauna and Flora” é onome de um reino federado que guranão se sabe onde na geograa evansi-

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ana, certamente em paragens nórdicas).De fato Evans adora as classicações, asnomenclaturas, os catálogos, as amostra-

gens, e qual forma melhor que as sérieslatélicas para exprimir sua paixão seri-al? Catálogo do mundo é o título que elepretendia dar a toda a sua obra.

 Algumas páginas apresentam umafolha de selos todos iguais, ainda nãoseparados pelas linhas picotadas. Outrasapresentam ainda as coleções que ten-

tam reconstituir essa folha originária ali-nhando selos todos idênticos, mas di-ferençados pela sombra escura do tim-bre e pelas irregularidades do contorno.

(Evans tinha um especial cuidado aoimitar o serrilhado ou a ausência de ser-rilhado nas séries que parecem ser maisantigas, anteriores à invenção da má-

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quina picotadora.) Não faltam as com-binações mais abstratas, como as peçasde dominó nos elegantíssimos selos do

“Etat Domino” ou os tartan  escocesesde “Antiqua”, pintados em homenagem auma amiga cuja família era originária daEscócia.

É na introversão do caráter de Evansque Eisenhart vê a origem dessa xaçãolatelista. Eu diria que a necessidadeque o move é a de manter um diário de

estados de ânimo, sentimentos, experi-ências positivas, valores sintetizados emobjetos emblemáticos; mas a visão nos-tálgica do álbum de selos permite culti-

 var uma interioridade subjetivada, domi-nada pela consciência. Prevalecem a or-dem da sistematização serial, a ironia dainvenção e atribuição dos nomes, a su-

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til melancolia das paisagens esfumadas erepetidas em todas as cores.

Para Donald Evans, criar selos é so-bretudo um modo de apropriar-se dospaíses visitados, dos lugares onde se vi- ve: sua terra de adoção, a Holanda, lheinspira os selos de “Achterdijk” (Atrás

do dique, de seu primeiro endereço ho-landês) e de “Nadorp” (Depois do vi-larejo, do endereço de um amigo), nosquais ele exprime seu amor pelas pai-

sagens planas, pelos moinhos de ventode vários formatos, e também pela lín-gua holandesa. De cores mais vivas sãoos selos de “Barcentrum”, do nome do

bar que Evans frequentava em Amsterdã:uma bela série que é também uma listadas bebidas por ordem de preço, todasem taças diferentes. Percebemos pouco

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a pouco que muitos desses nomes deEstados não são absolutamente inventa-dos, mas designam lugares modestos ou

mínimos por onde Evans passou e aosquais ele atribui as prerrogativas que ca-bem aos Estados soberanos. Assim, de-pois de um verão na Costa Brava, ele de-

senha os selos de Cadaqués, com umasérie alegre de hortaliças.

Outros nomes pertencem a uma geo-graa dos sentimentos: “Lichaam” e “Ge-

est” (corpo e alma, em holandês) sãodois reinos gêmeos do extremo Norteque têm em comum a moeda (o “ijs”, is-to é, gelo) e os selos (com focas e nar-

 vais). Duas ilhas africanas se chamam“Amis et Amants” e formam um dos Esta-dos saídos da descolonização de um an-tigo protetorado francês, o “Royaume de

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Caluda”. Num primeiro momento os no- vos Estados independentes ainda usamos tristes selos da velha colônia corrigi-

dos por emendas; depois as “Postes desIles Amis et Amants” emitem uma novasérie com paisagens de localidades quese chamam “Coup de Foudre”, “Premiè-

res Amours”, “La Passade”.Mas é principalmente por meio da

comida que Evans estabelece sua rela-ção com os países, colhendo durante su-

as viagens os sabores e cheiros mais ca-racterísticos. Depois de uma viagem àItália, inventa um novo país, “Mangiare”,cuja moeda se calcula em gramas e cu-

jos sosticadíssimos selos são um mu-seu de hortaliças, frutas e ervas: da ervi-lha, da alcaparra, dos pinhões e da azei-tona (imagens puntiformes que ressal-

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tam emolduradas com elegância) à orde abobrinha, ao alecrim, ao aipo, aosbrócolis. O “Estado de Mangiare” dedi-

ca uma série especial à receita do pes-to genovês, com os ingredientes fun-damentais (manjericão, pinhões, queijopecorino, alho). Outra série (datada de

1927) exalta o pepino sob forma de diri-gível. Durante a Segunda Guerra Mundi-al o Estado de Mangiare é invadido peloexército de Antepasto: uma inscrição de-

signa os selos da zona ocupada. No pós-guerra, uma região de Mangiare chama-da Pasta se torna autônoma; e as “Pos-te Pasta” emitem uma série que é um

esplêndido mostruário de variedades demassa.

 A saudade do país experimentadapelo americano na Europa também se

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concentra em visões comestíveis: a fruta. As sugestivas ilustrações dedicadas a umpaís chamado “My Bonnie” (“My Bonnie

lies over the ocean”, diz a canção) sãopontilhadas de cerejas todas aparente-mente iguais, mas cada uma com umagradação diversa de vermelho e um no-

me, tirado de catálogos de estabeleci-mentos agrícolas.

Enm, esse pretenso introvertido eraum homem nada voltado para si mesmo,

mas projetado para fora, para as coisasdo mundo, escolhidas e reconhecidas enomeadas uma a uma com delicadezae precisão amorosa. Talvez o que mais

o interessava nos selos fosse justamentea função comemorativa: queria contra-por às celebrações ociais, programadase burocráticas dos ministérios de todo

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o mundo um ritual de celebrações pri- vadas, comemorações de encontros mí-nimos, consagrações das coisas únicas

e insubstituíveis: um manjericão, umaborboleta, uma oliva. Sem a ilusão dearrancá-las ao uxo do tempo que rapi-damente transforma as séries dos selos

em vestígios do passado.

[1981]

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23. A ENCICLOPÉDIA DE UM VISIONÁRIO 

No princípio foi a linguagem. Nouniverso que Luigi Serani habita e es-creve, creio que a palavra escrita tenhaprecedido as imagens: essa graa cursi- va, minuciosa, ágil e (devemos admitir)claríssima, que sempre nos sentimosprestes a poder ler e que no entanto nosescapa em cada palavra e cada letra. A

angústia que esse Outro Universo nostransmite não vem tanto de sua diver-sidade quanto ao nosso, mas sobretudopela semelhança; tal como a escrita, que

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poderia ter sido elaborada verossimil-mente numa área linguística estranha ànossa, mas não impraticável.

Reetindo, ocorre-nos que a peculi-aridade da língua de Serani não deveser apenas alfabética, mas também sin-tática: as coisas do universo que essa

linguagem evoca, assim como as vemosilustradas nas páginas de sua enciclopé-dia (Codex Seraphinianus , Franco Ma-ria Ricci), são quase sempre reconhecí-

 veis, mas é a conexão entre elas quenos parece transgurada, com aproxi-mações e relações surpreendentes. (Seeu disse “quase   sempre” é porque há

também algumas formas irreconhecíveis,que têm uma função muito importante,como tentarei explicar mais adiante.) Oponto decisivo é o seguinte: se a escrita

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seraniana tem o poder de evocar ummundo em que a sintaxe das coisas seembaralha, por outro lado deve conter,

oculto sob o mistério de sua superfícieindecifrável, um mistério ainda mais pro-fundo, que diz respeito à lógica da lin-guagem e do pensamento. As imagens

do existente contorcem e acavalam seusnexos, o transtorno dos atributos visuaisproduz monstros, o universo de Seranié teratológico. Mas até na teratologia há

uma lógica, cujos lineamentos temos aimpressão de ver aorar aqui e ali, assimcomo os signicados daquelas palavrasdiligentemente traçadas à ponta de pe-

na.Tal como o Ovídio das Metamorfoses ,

Serani acredita na contiguidade e napermeabilidade de todo o território do

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existente. O anatômico e o mecânicopermutam suas morfologias: braços hu-manos não terminam em mãos, mas

num martelo ou em tenazes; pernas sesustentam não sobre pés, mas em rodas.O humano e o vegetal se completam; veja-se a ilustração do cultivo do corpo

humano: um bosque sobre a cabeça, tre-padeiras subindo pelas pernas, descam-pados na palma da mão, cravos que o-rescem para fora dos ouvidos. O vegetal

se casa com o mercadológico (há plan-tas de caule-pirulito, de espigas-lápis, defolhas-tesouras, de frutos-fósforos), o zo-ológico com o mineral (cães e cavalos

metade petricados), assim como o ci-menteiro com o geológico, o heráldicocom o tecnológico, o selvagem com ometropolitano, o escrito com o vivente.

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Do mesmo modo que certos animais as-sumem a forma de outras espécies que vivem no mesmo habitat, assim os seres

 vivos são contagiados pelas formas dosobjetos que os circundam.

 A passagem de uma forma a outra éseguida fase por fase na dupla humana

em amplexo que gradativamente setransforma num crocodilo. Trata-se deuma das melhores invenções visuais deSerani, à qual eu acrescentaria, numa

escolha ideal, os peixes que ao emergi-rem da água parecem os grandes olhosde uma diva do cinema; e as plantas quecrescem em forma de cadeira, bastando

cortá-las e desbastá-las para que se obte-nha uma cadeira completa e forrada depalha; e adicionaria ainda todas as gu-ras em que aparece o tema do arco-íris.

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Diria que as imagens que mais propi-ciam o transe visionário de Serani sãotrês: o esqueleto, o ovo e o arco-íris.

Pode-se dizer que o esqueleto é o úni-co núcleo de realidade que resiste tal co-mo é nesse mundo de formas intercam-biáveis: vemos esqueletos que esperam

envergar os invólucros de pele e carne(que, frouxos como vestes vazias, pen-dem de ganchos) e, terminada a ope-ração de vestição, se olham perplexos

no espelho. Uma outra ilustração evocauma cidade de esqueletos, com as an-tenas de televisão feitas de ossos e umesqueleto garçom que está servindo um

osso num prato.O ovo é o elemento originário que

comparece em todas as suas formas,com ou sem casca. Ovos sem casca ca-

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em de um tubo num prato sobre o qualimediatamente rastejam, como organis-mos dotados de perfeita autonomia lo-

comotora, para depois subirem numa ár- vore e se deixar cair de novo, assumindoos contornos característicos do ovo es-trelado.

Quanto ao arco-íris, ele tem uma im-portância central na cosmologia serani-ana. Ponte sólida, é capaz de sustentaruma cidade inteira; mas é preciso dizer

que essa cidade muda de cor e de con-sistência conforme seu suporte. É doarco-íris, por entre furos circulares no tu-bo iridescente, que saem certos bichi-

nhos bidimensionais e coloridos, de for-matos irregulares nunca vistos, que po-deriam ser o verdadeiro princípio vitaldesse universo, corpúsculos geradores

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da irrefreável metamorfose geral. Em ou-tras ilustrações vemos que os arco-írissão estendidos no céu por uma espécie

de helicóptero, o qual pode desenhá-losna forma clássica de um semicírculo ouainda em nó, em zigue-zague, em espi-ral, em estilicídio. Da fuselagem em for-

ma de nuvem desse aparelho pendem,suspensos por os, vários desses corpús-culos policromos. Um equivalente mecâ-nico do pulvísculo iridescente que paira

no ar? Ou coloridos anzóis de pesca?São essas as únicas formas indení-

 veis no cosmorama seraniano, como eudizia antes. Seres de formas ans sur-

gem como corpúsculos luminosos (fó-tons?) num enxame que voa fora de umfarol, ou como microrganismos atenta-mente catalogados na abertura da seção

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botânica e da zoológica dessa enciclopé-dia. Talvez tenham a mesma consistênciados sinais grácos: constituem outro al-

fabeto ainda, mais misterioso e mais ar-caico. (De fato, formas semelhantes apa-recem esculpidas numa espécie de Pe-dra de Roseta, ladeadas pela “tradução”.)

Talvez tudo o que Serani nos mostraseja escritura: somente o código varia.

No universo-escrita de Serani, raízesquase iguais são catalogadas com nomes

diversos, porque cada barba de raiz éum traço diferencial. As plantas retorcemseus tênues fustes como as linhas traça-das pela pena, penetram na terra de on-

de mal despontam, para depois aorarde novo ou fazer germinar ores subter-râneas.

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 As formas vegetais prolongam a clas-sicação das plantas imaginárias iniciadapela graciosa  Nonsense Botany   de

Edward Lear e continuada pela sideral Botanica Parallela de Leo Lionni. No vi- veiro de Serani há folhas-nuvem queborrifam as ores, folhas-teia que captu-

ram os insetos. Árvores se desenraizamsozinhas e marcham para a orla do marde onde zarpam girando as raízes comohélices de lancha.

 A zoologia de Serani é sempre in-quietante, teratomórca, de pesadelo.Uma zoologia cujas leis evolutivas sãoa metáfora (uma serpente-linguiça, uma

 víbora-cadarço de amarrar tênis), a me-tonímia (um pássaro que é apenas umapena culminando numa cabeça de pás-

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saro), a condensação de imagens (umpombo que é também um ovo).

 Aos monstros zoológicos sucedem osmonstros antropomorfos, talvez tentati- vas falidas no caminho da hominização.Que o homem tenha se tornado homema começar dos pés foi explicado por

um grande antropólogo como Leroi-Gourhan. Nas ilustrações de Serani ve-mos uma série de pernas humanas quetentam encontrar um acabamento não

num torso, mas num objeto como umnovelo ou uma sombrinha, ou numasimples luminosidade de estrela que seacende e se apaga. É uma multidão de

seres desta última espécie que vemosem pé sobre barcos à deriva, que des-cem um rio passando sob as arcadas de

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uma ponte, numa das guras mais mis-teriosas do livro.

 A física, a química e a mineralogiainspiram a Serani as páginas mais ame-nas, porque mais abstratas. Mas o pe-sadelo retorna com a mecânica e a tec-nologia, em que o teratomorsmo das

máquinas resulta não menos inquietanteque o dos homens. (Aqui as compara-ções remetem a Bruno Munari e a todauma genealogia de inventores de máqui-

nas extravagantes.)Quando passamos às ciências huma-

nas (que incluem etnograa, história,gastronomia, jogos, esporte, vestuário,

linguística, urbanismo), devemos levarem conta que é difícil separar o sujeitohomem dos objetos, agora soldados aele numa continuidade anatômica. Há

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até uma máquina perfeita, que satisfaztodas as necessidades do homem e, nasua morte, se transforma em caixão. A

etnograa não é menos horripilante queoutras disciplinas: entre os vários tiposde selvagens, catalogados com suas ves-timentas características, seus instrumen-

tos e suas habitações, há o homem dolixo e o homem da desratização, mas omais dramático é o homem da rua ouhomem-rua, com a roupa de asfalto or-

nado de faixas brancas da sinalização.Há uma angústia na imaginação de

Serani que talvez atinja seu ápice nagastronomia. No entanto, mesmo aqui

se revela sua peculiar alegria, expressasobretudo pelas invenções tecnológicas:um prato munido de dentes que mastigaos alimentos, de forma que possam ser

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absorvidos por um canudo; uma estru-tura para o escoamento de peixes comose fossem água corrente, através de tu-

bulações e torneiras, de modo a que setenha peixe fresco em domicílio.

Parece-me que, para Serani, a ver-dadeira “gaia ciência” é a linguística. (Es-

pecialmente no que concerne à palavraescrita; alguma angústia também derivada palavra falada, que vemos escorrerdos lábios como uma baba escura ou

ser extraída da boca escancarada por va-ras de pescar.) A palavra escrita tambémé viva (basta espetá-la com uma agulhapara vê-la sangrar), mas goza de autono-

mia e corporeidade, podendo tornar-setridimensional, policroma, erguer-se dafolha agarrada a balõezinhos ou pousarnela de paraquedas. Há palavras que,

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para mantê-las presas à página, é preci-so costurá-las, passando a linha por en-tre as fendas das letras aneladas. E, ca-

so se observe a escrita com uma lente, ono o de tinta se revelará atravessadopor uma densa corrente de signicado:como uma autoestrada, como uma mul-

tidão fervilhante, como um rio abarrota-do de peixes.

 Ao nal (é a última ilustração do Co-dex ), o destino de toda escrita é ruir em

pó, e até da mão que escreve não restamais que o esqueleto. Linhas e palavrasse destacam da página, esfarinham-se, edos montinhos de pó eis que despontam

os serezinhos cor de arco-íris e come-çam a pular. O princípio vital de todasas metamorfoses e de todos os alfabetosretoma seu ciclo.

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 Parte 4 

 A FORMA DO TEMPO 

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 JAPÃO 

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24. A VELHA SENHORA DE QUIMONO VIOLETA

Estou esperando o trem de Tóquiopara Kyoto. Na plataforma da estação deTóquio está assinalado o ponto exato emque as portas de cada vagão devem seabrir assim que o comboio parar. Os lu-gares são todos reservados, e antes mes-mo que haja um trem os viajantes já es-tão em seus lugares, alinhados entre as

faixas brancas que delimitam várias pe-quenas las perpendiculares ao trilho.

 A agitação, a confusão, o nervosismoparecem ausentes das estações japone-

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sas. Os que partem se distribuem comonum tabuleiro onde todos os movimen-tos estão preestabelecidos. E os que che-

gam são arregimentados em jorros demultidão compacta, sólida e contínua,que escorre pelas escadas rolantes semespaço para a desordem: milhões de

pessoas se deslocam todos os dias detrem entre a casa e o trabalho na áreainterminável de Tóquio.

Entre os que partem em la, noto

uma senhora idosa num belo e pálidoquimono violeta, circundada de familia-res jovens, homens e mulheres, em ati-tude respeitosa e solícita. As despedidas

das famílias na estação parecem uma ce-na de outros tempos, sobretudo numaera como a nossa, que vive num vai- vém perpétuo, de modo que os desloca-

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mentos pendulares se tornaram um há-bito. Nos aeroportos o ritual das des-pedidas e dos reencontros, que dene

a viagem como circunstância excepcio-nal, ainda pode fornecer matéria a umeventual estudo do comportamento afe-tivo nos vários países do mundo; mas as

estações ferroviárias se transformam ca-da vez mais no reino das multidões so-litárias, onde ninguém acompanha nin-guém. Muito menos no caso de um trem

como esse, que só vai até Kyoto, em trêshoras de viagem.

Novo no país, ainda estou na fase emque tudo o que vejo tem um valor pró-

prio, pois não sei que valor atribuir àscoisas. Bastaria que eu casse um tem-po no Japão e certamente também pa-ra mim se tornaria um fato normal que

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as pessoas se cumprimentem com mesu-ras repetidas e profundas; que muitas se-nhoras, sobretudo anciãs, vistam o qui-

mono com uma vistosa borla sobre ascostas, que forma uma suave corcundasob o casaco, e sigam em frente comos pequenos passos saltitantes de pés

branco-calçados. Quando tudo tiver en-contrado uma ordem e um lugar em mi-nha mente, começarei a não achar maisnada digno de nota, a não ver  mais o

que estou vendo. Porque ver quer di-zer perceber diferenças, e, tão logo asdiferenças se uniformizam no cotidianoprevisível, o olhar passa a escorrer nu-

ma superfície lisa e sem ranhuras. Via-jar não serve muito para entender (issoeu sei faz tempo; não precisei chegar aoExtremo Oriente para me convencer dis-

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so), mas serve para reativar momentane-amente o uso dos olhos, a leitura visualdo mundo.

 A senhora tomou assento no vagãoacompanhada de uma jovem de uns vin-te anos, e agora ambas trocam grandesreverências com os que caram na pla-

taforma da estação. A jovem é graciosa,sorridente, leva sobre o quimono umaespécie de túnica clara, de tecido leve,que poderia ser um penhoar de casa, um

avental. Seja como for, a jovem inspirauma impressão caseira, talvez simples-mente pelo modo com que ajeita ao re-dor da senhora um cantinho acolhedor,

retirando da bagagem vários cestinhos,garrafa térmica, livros, revistas, balas, tu-do o que pode tornar a viagem confor-tável. Não há nada de ocidental na ga-

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rota, que parece uma aparição de outrostempos (quem sabe quais), no penteado,na expressão sorridente, fresca e suave.

 Já na velha senhora, aqueles poucos ele-mentos ocidentais, ou melhor, america-nos — os óculos de armação prateada, opermanente azulado recém-saído do ca-

beleireiro — que se somam à vestimentatradicional dão a sensação exata do Ja-pão de hoje.

O vagão tem muitos lugares livres,

mas a jovem, em vez de car ao lado dasenhora, senta-se na la da frente e, vi-rada para o encosto da poltrona, agoralhe serve uma merenda: um sanduíche

num cestinho de palha. (Desta vez, co-mida ocidental numa confecção tradicio-nal: o contrário do que geralmente se vênos frequentes lanches rápidos dos japo-

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neses que, por exemplo, durante os lon-guíssimos espetáculos de teatro kabuki,abrem crepitantes saquinhos de celofane

e extraem com pauzinhos bocados dearroz branco e de peixe cru.)

O que a jovem é da senhora? Umaneta, uma empregada, uma acompa-

nhante? Está sempre ocupada, vai, vem,tagarela com toda naturalidade e agora volta do vagão-restaurante trazendo umabebida fresca. E a senhora? Parece que

tudo lhe é devido, está sempre com onariz empinado. É em momentos comoestes que se sente o que é a distânciaentre duas civilizações: não saber denir

aquilo que se vê, os gestos e o compor-tamento, não saber o que há neles deusual ou de peculiar, o que é normal eo que é insólito. Ainda que amanhã eu

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tentasse perguntar a um japonês que meescutasse: “Encontrei duas pessoas assime assado. Quem poderiam ser? Que rela-

ção social ou de parentesco haveria en-tre elas?”, seria difícil fazer entender mi-nha curiosidade e obter respostas ade-quadas; e mesmo assim qualquer deni-

ção de um papel demandaria a explica-ção do contexto em que aquele papel seinsere, abrindo novas questões, e por aí  vai.

Fora da janela continua passandouma interminável periferia. Corro osolhos nos títulos do  Japan Times , diáriode Tóquio em língua inglesa. Hoje se co-

memoram os cinquenta anos do reina-do do imperador, e o governo anunci-ou uma cerimônia solene. Houve muitaspolêmicas sobre a oportunidade dessa

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celebração; as esquerdas são contra; es-tão sendo organizadas manifestações deprotesto; temem-se atentados. Já faz al-

guns dias que a polícia em Tóquio vigiaqualquer aglomeração; as caminhonetesdas associações nacionalistas atravessama cidade embandeirada difundindo hi-

nos marciais.Naquela manhã, no trajeto de táxi do

hotel à estação, Tóquio estava apinhadade policiais enleirados, com escudos e

longos cassetetes. Num terreno baldio,uma centena de jovens estava sentadano chão entre bandeiras vermelhas, sobo estrondo de um alto-falante: certamen-

te um dos comícios de protesto organi-zados nos vários bairros.

(Impressões rápidas dos primeirosdias em Tóquio: é uma cidade toda de

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pistas elevadas, viadutos, trens, entron-camentos, faixas de tráfego que escoamlentas em diversos níveis, passagens

subterrâneas, galerias para pedestres;uma metrópole onde tudo pode aconte-cer ao mesmo tempo, como em dimen-sões não comunicantes entre si e indi-

ferentes; cada acontecimento é circuns-crito, constitui uma ordem em si, que aordem circunstante delimita e engloba.No ar chuvoso da tarde passa um agru-

pamento de grevistas alinhado numa dasfaixas, que para num semáforo e retomaa caminhada com o sinal verde, ritman-do as passadas ao som de apitos, com

bandeiras vermelhas todas iguais, pre-cedido e sucedido por negros pelotõesde policiais, como entre parênteses, en-quanto o trânsito prossegue nas outras

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faixas. Todos olham para a frente, jamaispara o lado.)

O  Japan Times  entrevistou cerca de vinte japoneses conhecidos (sobretudoartistas e esportistas) para saber o queeles sentem em relação ao imperador e arespeito das comemorações. Quanto aos

festejos, muitos estão indiferentes ou du- vidosos; sobre a pessoa e a instituição,as opiniões vão da reverência incondi-cional (especialmente entre os mais ve-

lhos) à perplexidade diante de uma per-manência tão longa num trono pura-mente simbólico, passando pela lem-brança ainda carregada de emoção de

quando se ouviu pela primeira vez a vozdesse ser até então invisível e inabordá- vel (ao anunciar na rádio, um mês de-pois dos bombardeios atômicos, a ca-

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pitulação do país). (O imperador é umpouco mais e um pouco menos queum monarca constitucional: segundo a

Constituição, é o “símbolo do Estado eda unidade do povo”, mas não tem ne-nhum poder ou função.) “Quase metadedesses cinquenta anos de reinado foi de

guerras e de invasões”, lembra um velhoescritor, que se declara contrário à cele-bração mesmo reiterando seu respeito àpessoa e à instituição.

(Na televisão, naquela mesma noite,se veriam as imagens do dia em Tóquio,muito claras até para quem não entendeo comentário do locutor: em rápidos en-

quadramentos se desenrola a “serpente”dos manifestantes que ondeiam de cabe-ça baixa; a polícia avança com os escu-dos e os cassetetes erguidos; os golpes,

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a pancadaria, uma saraivada de chutesem alguém encolhido no chão; depoissequências mais longas de bairros em

festa, crianças com ores, bandeirolas,lanternas. Numa grande sala o impera-dor, muito baixinho dentro de um fra-que, lê seu discurso percorrendo as li-

nhas de cima para baixo com os olhosatrás de grossas lentes; sentada perto de-le, a imperatriz de chapéu e roupas cla-ras. Em seu discurso — diz a manchete

do jornal no dia seguinte — o imperadorse diz pesaroso pelas vítimas da Segun-da Guerra Mundial.)

Nos primeiros dias num país novo

nos esforçamos para estabelecer rela-ções entre todas as coisas que ocorremsob nossos olhos. No trem, minha aten-ção cou dividida entre ler os comentá-

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rios sobre o imperador e observar a ve-lha senhora impassível, servida e reve-renciada em meio àquele trem de ho-

mens de negócios que folheiam sobre osjoelhos dossiês de balanços nanceiros,orçamentos, projetos de maquinários econstruções.

No Japão, as distâncias invisíveis sãomais fortes que as visíveis. Em Tóquio,uma avenida central margeia o canal quecontorna a zona verde dos palácios im-

periais. A congestão ininterrupta do trá-fego aora uma linha além da qual tudoé silêncio. Os portões dos jardins seabrem à multidão apenas duas vezes ao

ano, mas durante o ano todo comitivasde peregrinos descem dos ônibus e se-guem a pé atrás da bandeirinha de umaguia ao lado das muralhas até os portões

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da praça das Duas Pontes, onde se fa-zem fotografar em grupo. É esse o últi-mo limite ao qual podem chegar os co-

muns mortais em dias normais; mais adi-ante começa a residência dos soberanos,dimensão quase ultraterrena. Eu tambémfui até ali como um turista diligente, mas

não se via nada: um corpo de guarda,uma ponte com duas arcadas sobre o ca-nal entre os salgueiros pendentes.

 A jovem agora está sentada ao lado

da senhora, falando e rindo. A senhorapermanece calada, severa, sem respon-der, sem se virar, olhando xamente pa-ra a frente. A jovem continua a discorrer,

hílare, leve, como pulando de um assun-to a outro, improvisando temas de narra-tivas e brincadeiras, exercitando uma ar-te da conversação segura e discreta, uma

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regra de comportamento inata e solta,quase como se executasse variações mu-sicais num teclado. E a velha? Calada, sé-

ria, dura. Não é que não escute: mas écomo se estivesse ao pé do rádio, rece-bendo uma comunicação que não impli-ca nenhuma resposta de sua parte.

Enm, essa velha é uma tremendaantipática! É uma egoísta presunçosa!Um monstro! Até alguém como eu, quetenta tanto quanto possível abster-se de

formular juízos sobre o que não está se-guro de compreender, pode estar sujeitoa repentinos acessos de ira. Assim, nestemomento me enfureço intimamente con-

tra a velha dama que parece encarnar al-go de terrivelmente injusto. Mas quemela acha que é? Mas como pode ousarpretender tantas atenções? Minha indig-

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nação diante da altivez da senhora cres-ce com a admiração pela graça, a ale-gria e a civilidade da jovem — qualida-

des para mim igualmente misteriosas —,que me dão a sensação de um desperdí-cio imperdoável.

Observando bem, o que me conso-

me neste momento é um estado de es-pírito complexo e misturado. Há certa-mente um impulso de rebelião movidopela solidariedade aos jovens contra a

autoridade esmagadora dos velhos, ouaos subalternos contra o privilégio dossenhores. Há tudo isso, claro. Mas talveztambém haja algo mais, um fundo de in-

 veja, uma raiva que vem do fato de eume identicar de algum modo com o pa-pel da velha senhora, a vontade de lhedizer entredentes: “Mas você não sabe,

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sua tonta, que nós do Ocidente nuncamais poderemos ser servidos como a se-nhora é servida? Não sabe que no Oci-

dente nenhum velho será mais tratadocom tanta devoção por uma jovem?”.

 Aí compreendo que apenas repre-sentando o conito como algo que ocor-

re dentro de mim mesmo eu posso pre-tender entrar em seu segredo, decifrá-lo.Mas será assim mesmo? O que eu sei da vida deste país? Nunca entrei numa casa

japonesa, e esta é a primeira vez na via-gem (e também a última) que me acon-tece de apurar os olhos sobre uma espé-cie de cena de vida doméstica.

 A tradicional casa japonesa pareceabrir-se com suas nas portas de corrercomo sipários de um palco sem segre-dos. Por outro lado, este é um mundo

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em que o dentro e o fora estão separa-dos por uma barreira psicológica difícilde ultrapassar. Prova disso é sua repre-

sentação pictórica. Foi no Ocidente queos pintores do século XIV  resolveram deuma vez por todas o problema da repre-sentação dos interiores de um modo que

hoje nos parece óbvio, ou seja, abolin-do uma parede e mostrando a sala aber-ta como uma cena teatral. Mas antes dis-so os pintores japoneses do século   XII

já haviam encontrado outro sistema —menos direto, porém mais completo —de explorar visualmente o espaço inter-no também respeitando sua separação

do exterior: aboliram o teto.Nos rolos pintados que ilustram os

manuscritos da renada literatura decorte do período Heian, o estilo cha-

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mado  fukinukiyatai  (que signica justa-mente “casa sem teto”) enquadra as per-sonagens estilizadas e sem espessura nu-

ma oblíqua perspectiva geométrica dedivisórias, molduras de portas, paredesda altura de biombos, permitindo que se veja o que ocorre simultaneamente nos

 vários cômodos. A cada olhar que dirijo para além do

encosto que me separa das duas mulhe-res, a cena muda: agora é a velha que

está falando, comedida, com paciência.E eis que parece haver um entendimen-to perfeito entre as duas.

Poucos dias antes eu parara para ob-

servar no Museu de Tóquio alguns doselegantíssimos rolos que ilustram o diá-rio e o romance da preciosa Murasaki. Agora a presença da jovem que ergue al-

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to seu sorriso e desenha linhas suavese compostas com o colo, os ombros, osbraços, tal como uma personagem de

Murasaki em meio a um mundo de dure-za, me transgura aquele interior de va-gão de trem elétrico numa das casas semteto que desvelam e ao mesmo tempo

escondem lances de vida secreta numrolo pintado.

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25. O AVESSO DO SUBLIME 

 As folhas dos bordos se tornam em

novembro de um vermelho escarlate,que é a nota dominante da paisagemoutonal japonesa, despontando sobre ofundo verde-escuro das coníferas e con-tra as várias tonalidades de fulvo, fer-rugem e amarelo das outras folhagens.Mas não é com um ato de franca pre-potência cromática que os bordos se im-

põem ao olhar: se o olho é imantadopor eles, como perseguindo o motivo deuma música, é pela leveza de suas fo-lhas estreladas, como suspensa ao redor

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dos ramos nos, todas horizontais, semespessura, propensas a expandir-se, massem saturar a transparência do ar.

 Amarelas de um amarelo mais pun-gente e luminoso são, por sua vez, asfolhas do ginkgo, que se precipitam emchuva dos altíssimos galhos como péta-

las de ores: innitas folhinhas em for-ma de leque, uma chuva contínua e su-ave que pigmenta de dourado a superfí-cie do lago.

O guia está explicando em japonêsa um grupo de visitantes a história dopalácio Sento, construído no século XVII

para acolher os ex-imperadores numa

época em que as abdicações, voluntáriasou forçadas, eram frequentes, pois todoo poder estava nas mãos dos generais. As vilas imperiais de Kyoto só podem ser

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 visitadas com uma permissão especial,que deve ser solicitada por escrito. A es-pera pela permissão pode ser de poucos

dias para os estrangeiros de passagem,mas para os japoneses dura pelo menosseis meses, e ter visitado esses locais fa-mosos de sua história é uma sorte que

não é dada a todos. O aspirante à visitaé convocado para uma determinada da-ta e inserido num grupo que um cice-rone guiará pelo itinerário prescrito, pa-

rando nos pontos estabelecidos para asexplicações em japonês ou em inglês, adepender da composição do grupo. Seimuito pouco da história dinástica do Ja-

pão para poder aproveitar a fala do cice-rone; espero tirar mais proveito dos mo-mentos de espera, de pequenos desvios

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no percurso do grupo, de personagens edetalhes em que esbarro por acaso.

Passa uma velha vestida de violeta,bem miúda, com a cabeça raspada, comcerteza uma monja; está contraída e qua-se dobrada em duas. Muitas velhas no Japão têm esse aspecto corcunda e con-

torcido, como num parentesco com asárvores anãs cultivadas em vasos segun-do a antiga tradição do bonsai.

 Até a forma das árvores é resultado

de uma podadura sapiente. Aí estão doisjardineiros que podam os pinheiros su-bindo por escadinhas em forma de triân-gulo, com as pernas de bambu. Parecem

desplumar com os dedos cada topo degalho, deixando apenas um tunho ho-rizontal, de modo que a copa se expan-da como uma sombrinha.

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 A maioria dos jardineiros é de mu-lheres: pela trilha avança uma equipe, vestidas com o que deve ser a farda tra-

dicional de trabalho: calças azuis, blusacinza, lenço na cabeça. Baixas de esta-tura sob grandes sacos de folhas secas ecestos de galhos, armadas de ancinhos e

de podões, não se entende se velhas oujovens, mas já nodosas e contorcidas co-mo por uma adaptação ambiental.

Há uma coisa que tenho a impressão

de começar a entender aqui em Kyoto:mais através dos jardins que por meiodos templos e palácios. A construçãode uma natureza controlável pela mente,

para que por sua vez a mente possa re-ceber ritmo e proporção da natureza: as-sim poderia ser denida a intenção quelevou a compor esses jardins. Tudo aqui

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deve parecer espontâneo, e por isso tu-do é calculado: as relações entre as co-res das folhas nas várias estações, entre

as massas de vegetação segundo seu va-riável tempo de crescimento, as irregu-laridades harmoniosas, as trilhas que so-bem e descem, os espelhos d’água, as

pontes.Os laguinhos são um elemento do

jardim não menos importante que a ve-getação. Geralmente há dois, um de

água corrente e outro estagnado, quedeterminam duas paisagens diversas, a-nadas a diferentes estados de ânimo. Ojardim Sento também tem duas cascatas:

uma macho e uma fêmea (Odaki e Me-daki), a primeira que tomba de dentrodas pedras e a segunda que murmura

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saltitando entre degraus de seixo numareentrância do campo.

Os campos não são de grama, masde musgo. Há um musgo que crescecomo verdadeiras plantinhas de algunscentímetros; é chamado em japonês demusgo cedro, porque as plantinhas pare-

cem minúsculas coníferas. (Há um tem-plo em Kyoto cujo jardim é inteiramenterecoberto de musgo: ali existem cem es-pécies diferentes de musgo — ou pelo

menos trinta, segundo classicaçõesmais rigorosas. Mas por esse templo demusgo se entra num mundo distinto: co-mo num parque nórdico embebido de

chuva. De fato, qualquer caracterizaçãomuito extremada nos afasta do verdadei-ro espírito do jardim japonês, onde um

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elemento jamais prepondera sobre ou-tro.)

Cada detalhe do jardim é concebidopara provocar admiração, mas com osmeios mais simples: todas as plantas sãofamiliares, sem nenhuma busca de efei-tos sensacionais. Quase ausentes as o-

res; alguma camélia branca e vermelha;é outono, e as cores vêm todas das fo-lhas; mas também estão ausentes asplantas orais; na primavera, são as ár-

 vores frutíferas que orescem. Vistas montuosas, rochas e declives

multiplicam as paisagens. Grupos deplantas são dispostos segundo suas pro-

porções recíprocas de modo a criar ilu-sões de perspectiva: árvores que pare-cem distantes ao fundo estão, ao contrá-rio, a dois passos; perspectivas em subi-

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da ou em descida sugerem espaços quenão existem. A paixão japonesa pelo pe-queno que dá a ilusão do grande tam-

bém se expressa na composição da pai-sagem.

* * *

Na visita a Kyoto me acompanha umestudante japonês apaixonado por po-esia, e poeta, que lê muito bem o ita-

liano e também fala um pouco da lín-gua. Mas a conversa é difícil, porque am-bos queríamos dizer coisas muito preci-sas ou então vagas demais, e no entantosó conseguimos trocar frases demasiadogenéricas ou peremptórias.

O jovem explica que estes lugareseram frequentados menos pelos impera-dores do que por famosos poetas, ago-

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ra lembrados por lápides e pequenostemplos entre as árvores. Seguindo o ode minhas reexões, ocorreu-me pen-

sar que aqui poesias e jardins nascemuns dos outros reciprocamente: os jar-dins eram compostos como ilustraçõespara as poesias, e as poesias eram com-

postas como comentário aos jardins. Maspensei nisso mais por amor à simetrianos raciocínios que por uma real con- vicção, isto é, acho bem plausível que

se possa fazer com a disposição das ár- vores o equivalente de uma poesia, massuspeito que, para escrever uma poesiasobre árvores, as árvores verdadeiras sir-

 vam pouco ou nada. Agora, por cima das árvores verme-

lhas, ferruginosas e amarelas para lá dolago, sobressaem os galhos nus de uma

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única árvore que perdeu as folhas. Entreesse amejar de cores, aqueles galhosnegros e secos fazem um contraste fú-

nebre. Passa um bando de pássaros que,dentre todas as árvores em volta, rumamdireto para a árvore despida, descem so-bre seus ramos e pousam um a um ali,

negros contra o céu, para gozar o sol denovembro.

Penso: aí está, a paisagem me ditouo tema de uma poesia; se soubesse o ja-

ponês, bastaria descrever esta cena emtrês versos de dezessete sílabas ao todo,e eu teria feito um haiku. Tento comuni-car a ideia ao jovem poeta. Não parece

convencido disso. Sinal de que os haikuse compõem de outro modo. Ou de quenão faz sentido esperar que a paisagemlhe dite poesias, pois uma poesia é feita

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de ideias e palavras e sílabas, ao passoque uma paisagem é feita de folhas e co-res e luz.

* * *

 As salas do palácio imperial, muitas

 vezes destruídas e reconstruídas duranteos dez séculos em que a corte residiuaqui em Kyoto, são vistas do lado de fo-ra, através das portas de correr abertas,

como um cenário de teatro. Um tapetemais elevado que os outros assinala nopavimento o local que era reservado aoimperador. A casa japonesa, assim comoo palácio real, é uma sequência de sa-las vazias e corredores, com tapetes em vez de móveis, sem cadeiras nem me-sas nem camas, onde nunca se está depé ou sentado, mas apenas reclinado ou

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ajoelhado, com poucos objetos pousa-dos no chão ou em bancos baixos ouem nichos: um vaso com poucos ramos,

uma chaleira, um biombo pintado.Desse modelo de casa parece distan-

ciado qualquer vestígio de vida, o gravepeso das existências que se materializa

em nossas mobílias e impregna todo am-biente ocidental. Visitando os paláciosda corte de Kyoto ou dos grandes feu-datários a gente se pergunta se esse ide-

al estético e moral do despojado e semadorno não seria realizável apenas no vértice da autoridade e da riqueza, pres-supondo outras casas lotadas de pes-

soas, instrumentos, utensílios e tralhas,com cheiro de fritura, de suor, de sono,cheias de mau humor, de imprecaçõese de pressa, onde se debulhavam as

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ervilhas, fatiavam-se os peixes,remendavam-se as meias, lavavam-se oslençóis, esvaziavam-se os vasos notur-

nos.

Esses palácios de Kyoto, quer te-nham sido habitados por soberanos rei-

nantes ou em retiro, passam a ideia deque seria possível viver num mundoapartado daquilo que é o mundo, aoabrigo da história catastróca e incon-

gruente, um lugar que reita a paisagemda mente do sábio, libertada de qual-quer paixão e de qualquer neurose.

Passando pela Ponte das Seis Placas,

feita de seis lápides de pedra arqueadas,e enveredando por uma trilha entre asfolhas variegadas dos bambus anões,tento identicar-me com um dos ex-im-

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peradores de um reino à mercê dos ar-bítrios e das devastações de feudatáriossem lei, talvez resignado de bom grado

a concentrar-se na única operação possí- vel que lhe resta: contemplar e custodiara imagem de como deveria ser o mun-do.

Seguindo esses pensamentos, afastei-me do grupo de visitantes quando, deuma sebe, desponta um vigilante com walkie-talkie e me põe de novo nos tri-

lhos. Não é permitido circular sozinhono jardim. Confuso em meio ao enxamede turistas, que escancaram as objetivasdas máquinas fotográcas sobre qual-

quer vista panorâmica, não consigo maiscriar a distância necessária à contempla-ção. O jardim se torna um caligrama in-decifrável.

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“O senhor aprecia tudo isto?”,pergunta-me o estudante. “Não possodeixar de pensar que esta perfeição e

harmonia custaram tanta miséria a mi-lhões de pessoas, durante séculos.”

“Mas o custo da cultura não é sempreeste?”, objeto. Criar um espaço e um

tempo para reetir, imaginar e estudarpressupõe uma acumulação de riqueza,e por trás de toda acumulação de rique-za há vidas obscuras submetidas a can-

saços, sacrifícios e opressões sem espe-rança. Todo projeto ou imagem que per-mita tender a outro modo de ser para fo-ra da injustiça que nos circunda leva a

marca da injustiça, sem a qual não teriasido concebido.

“Cabe a nós enxergar este jardim co-mo o ‘espaço de uma outra história’, nas-

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cido do desejo de que a história corres-ponda a outras regras”, digo, lembrando-me de ter lido recentemente uma intro-

dução de Andrea Zanzotto em que essaideia é aplicada ao Cancioneiro de Pe-trarca, “como a proposta de um espaço ede um tempo diversos, a demonstração

de que o domínio total da turbulência edo furor pode ser posto em crise…”

O grupo chegou a um leito de pe-dras gastas e arredondadas, cinza-claras

e cinza-escuras, que continuam sob aágua verde do laguinho, como gozandode sua transparência.

“Estas pedras”, explica o cicerone,

“foram trazidas aqui três séculos atrás detodas as regiões do Japão. O impera-dor recompensava com um saco de ar-roz quem lhe trazia um saco de pedras.”

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O estudante balança a cabeça e en-gole seco. Evocada por aquelas palavras,parece visível a la de camponeses cur-

 vos sob os sacos de pedras a serpentearpor pontes e alamedas. Depõem as car-gas transportadas de áreas longínquasdiante do imperador que observa pedra

por pedra, depositando uma sob a água,outra no alto da orla, e descartando amaioria. Enquanto isso, os encarregadosse desdobram ao redor das balanças:

num prato, as pedras, no outro, o ar-roz…

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26. O TEMPLO DE MADEIRA

No Japão, o que é produto da arte

não esconde nem corrige o aspecto na-tural dos elementos de que é formado. Aí está uma constante do espírito nipô-nico que os jardins ajudam a compreen-der. Nos edifícios e nos objetos tradicio-nais sempre são reconhecíveis os materi-ais de que são feitos, assim como na cu-linária. A cozinha japonesa é uma com-

posição de elementos naturais que visasobretudo a realizar uma forma visual,e esses elementos chegam à mesa con-servando em grande parte seu aspecto

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de origem, sem ter sofrido as metamor-foses da cozinha ocidental, para a qualum prato é tanto mais uma obra de arte

quanto mais seus ingredientes forem ir-reconhecíveis.

No jardim, os vários elementos sãopostos juntos segundo critérios de har-

monia e critérios de signicado, como aspalavras num poema. Com a diferençade que essas palavras vegetais mudamde cor e de forma ao longo do ano, e

mais ainda com o passar dos anos: mu-tações calculadas em todo ou em parteao se projetar o poema-jardim. Depoisas plantas morrem e são substituídas por

outras semelhantes, dispostas nos mes-mos lugares: com o passar dos séculos,o jardim é continuamente refeito, maspermanece sempre o mesmo.

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E esta é outra constante posta emevidência pelos jardins: no Japão a an-tiguidade não tem sua substância ideal

na pedra, como no Ocidente, onde umobjeto ou um edifício só é consideradoantigo caso se conserve materialmente. Aqui estamos no universo da madeira:

o antigo é aquilo que perpetua seu de-senho através do contínuo destruir-se erenovar-se dos elementos perecíveis. Is-so vale tanto para os jardins quanto para

os templos, os palácios, as vilas e os pa- vilhões, todos em madeira, todos mui-tas vezes devorados pelas chamas dosincêndios, muitas vezes mofados e apo-

drecidos ou feitos em pó pelos cupins,mas a cada vez recompostos parte porparte: os tetos de estratos de casca de ci-preste prensada, que são refeitos a cada

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sessenta anos, os troncos das pilastras edo vigamento, as paredes de tábuas, ostelhados de bambu, os pavimentos re-

cobertos de tapetes (os indefectíveis ta-tames, unidade de medida da superfíciedos interiores).

Na visita aos edifícios plurisseculares

de Kyoto, o cicerone assinala a cadaquantos anos é substituída essa ou aque-la estrutura da construção: a caducidadedas partes ressalta a antiguidade do con-

junto. Surgem e caem as dinastias, as vi-das humanas, as bras dos troncos; oque perdura é a forma ideal do edifício,e não importa se cada porção de seu su-

porte material foi retirada e trocada inú-meras vezes, e se as mais recentes ain-da cheiram a madeira recém-aplainada. Assim, o jardim continua sendo o jardim

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desenhado cinquenta anos atrás por umarquiteto-poeta, ainda que cada plantasiga o curso das estações, das chuvas,

do gelo, do vento; assim os versos deuma poesia são transmitidos no tempo,enquanto o papel das páginas nas quaisserão vez a vez transcritos se desfaz em

pó.O templo de madeira marca o cru-

zamento de duas dimensões do tempo;mas para chegar a entendê-lo devemos

afastar do pensamento palavras como “oser e o devir”, porque se tudo se reduz àlinguagem da losoa do mundo de on-de partimos não valeria a pena ter feito

tanta estrada. O que o templo de madei-ra nos pode ensinar é isto: para entrarna dimensão do tempo contínuo, únicoe innito, o único caminho é passar atra-

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 vés de seu contrário, a perpetuidade do vegetal, o tempo fragmentado e múltiplodo que se alterna, se dissemina, brota,

resseca ou apodrece.Mais que os templos cheios de es-

tátuas, de alta estrutura em pagode,atraem-me as construções baixas e os

interiores guarnecidos apenas de tape-tes, que geralmente correspondem a edi-fícios profanos, vilas ou pavilhões, mastambém em alguns casos a templos ou

santuários que convidam a uma medi-tação abstrata, ou a uma concentraçãoincorpórea. Assim é o templo chamadoPavilhão de Prata, ágil construção de

madeira em dois andares à margem deum pequeno lago, com uma única está-tua (a Kannon, encarnação feminina deBuda) num ambiente para a meditação

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zen chamado Sala do Esvaziamento da Alma. Assim é o templo Manju-in, queum incompetente como eu julgaria que

é zen, mas não é: um templo que pare-ce uma mansão de muitas salas baixas,quase vazias, com os tatames, os vasosde ikebana (que nesta estação apresen-

tam ramos de pinho e camélias, estre-lítzias e camélias, e outras combinaçõesde outono), poucas e discretas estátuase muitos jardinzinhos ao redor.

O templo de madeira atinge sua per-feição quanto mais despojado e semadornos é o espaço que o acolhe, poisbastam a matéria de que é construído e

a facilidade com que se pode desfazê-loe refazê-lo igual a antes para demonstrarque todas as partes do universo podem

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cair uma a uma, mas que há algo queresta.

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27. OS MIL JARDINS 

Uma trilha de placas de pedra irre-gulares se desenrola por toda a extensãoda vila imperial de Katsura. À diferençade outros jardins de Kyoto feitos para acontemplação imóvel, aqui a harmonia

interior se alcança seguindo a senda pas-so a passo e passando em revista as ima-gens que se apresentam aos olhos. Seem outros lugares a trilha é só um meio,

e são os lugares a que ela conduz queseduzem nosso pensamento, aqui a ra-zão essencial do jardim é o percurso, o

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o de seu discurso, a frase que conferesignicado a cada palavra sua.

Mas quais signicados? A trilhaaquém da cancela é feita de placas lisase, além, de pedras ásperas: seria o con-traste entre civilização e natureza? Lá, atrilha se bifurca num braço reto e nou-

tro torto; o primeiro se interrompe numponto morto, o segundo segue adian-te: seria uma lição sobre o modo demover-se no mundo? Qualquer interpre-

tação nos deixa insatisfeitos; se há umamensagem, é a que se colhe nas sensa-ções e nas coisas, sem as traduzir em pa-lavras.

 As pedras que emergem em meio aomusgo são planas, destacadas umas dasoutras, dispostas na distância certa pa-ra que quem caminhe ali sempre pos-

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sa ter uma sob os pés a cada passo; eé justamente por obedecerem à medi-da dos passos que as pedras comandam

os movimentos do homem em marcha,obrigando-o a um andamento calmo euniforme, guiando seu caminho e suasparadas.

Cada pedra corresponde a um passo,e a cada passo corresponde uma passa-gem estudada em todos os detalhes, co-mo um quadro; o jardim foi predispos-

to de modo que, de passo em passo,o olhar encontre perspectivas diferentes,uma harmonia diversa nas distâncias queseparam o arbusto, a lanterna, o bordo,

a ponte curva, o riacho. Ao longo dopercurso o cenário muda completamen-te várias vezes, da folhagem densa àclareira esparsa de rochas, do laguinho

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com cascata ao laguinho de águas mor-tas; e cada cenário, por sua vez, se de-compõe nas tangentes que ganham for-

ma ao mínimo deslocamento: o jardimse multiplica em jardins inumeráveis.

 A mente humana possui um misteri-oso dispositivo, capaz de nos convencer

de que aquela pedra é sempre a mes-ma pedra, embora sua imagem — porpouco que desloquemos nosso olhar —mude de forma, de dimensão, de cor, de

contornos. Cada fragmento isolado e li-mitado do universo se espedaça numamultiplicidade innita: basta girar ao re-dor desta baixa lâmpada de pedra e ela

se transforma numa innidade de lâm-padas de pedra; o poliedro perfuradoe manchado de líquenes se desdobra,quadruplica e sextuplica, torna-se um

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objeto completamente diverso segundoo lado que se encontra sob seu olhar, se-gundo sua proximidade ou distância.

 As metamorfoses que o espaço pro-duz se juntam àquelas geradas pelo tem-po: o jardim — cada um dos innitos jar-dins — muda com o passar das horas,

das estações, das nuvens no céu. Osimperadores que idearam Katsura insta-laram plataformas de hastes de bambupara assistirem em abril ao desabrochar

das ores de pessegueiro, ou aoavermelhar-se das folhas de bordo emnovembro, e construíram quatro pavi-lhões para o chá, um para cada estação,

cada um voltado para uma paisagemideal num momento do ano; cada paisa-gem ideal de uma estação tem uma horado dia ou da noite que é seu momento

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ideal. Mas as estações são quatro, e ashoras rodam entre meio-dia e meia-noi-te. O tempo com seus regressos afasta

a ideia do innito: é um calendário demomentos exemplares, que se repetemciclicamente e que o jardim tenta xarnum certo número de lugares.

E o espaço, então? Se há uma cor-respondência entre os pontos de vista eas passadas, se toda vez que se avançao pé direito ou esquerdo sobre a pedra

sucessiva se abre uma perspectiva es-tabelecida por quem projetou o jardim,então a innidade dos pontos de vistase restringe a um número nito de vis-

tas, cada uma destacada daquela que aantecede e a sucede, caracterizada porelementos que a distinguem das outras,uma série de modelos precisos que res-

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pondem cada qual a uma necessidade ea uma intenção. E a trilha é isto mesmo:um dispositivo para multiplicar o jardim,

sem dúvida, mas também para subtraí-lo à vertigem do innito. As pedras lisasque compõem a trilha da vila de Katsuraperfazem um número de 1716 — esta ci-

fra, que descobri num livro, me parece verossímil, considerando-se duas pedraspor meio metro numa extensão total demeia milha —, portanto o jardim é per-

corrido em 1716 passos e é contempladode 1716 pontos de vista. Não há razãopara nos deixarmos tomar pela angústia:pode-se ver aquela touceira de bambu

por um certo número de perspectivas di- versas, nem mais nem menos, variandoo claro-escuro entre os fustes ora maisespaçados, ora mais densos, experimen-

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tando sensações e sentimentos distintosa cada passo, uma multiplicidade queagora tenho a impressão de poder con-

trolar sem ser submerso por ela.O caminhar pressupõe que a cada

passo o mundo mude em algum aspectoe que algo também mude em nós. Por

isso os antigos mestres de cerimônia dochá decidiram que, para alcançar o pa- vilhão onde ele será servido, o convida-do percorra uma trilha, detenha-se num

banco, olhe as árvores, atravesse umacancela, lave as mãos numa bacia esca- vada na rocha, siga o caminho traçadopelas pedras lisas até a simples cabana

que é o pavilhão do chá, até sua portamuito baixa, onde todos devem inclinar-se para entrar. Na sala, somente tapetespelo chão, uma mesinha com xícaras e

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chaleira de níssima fatura, um vão naparede — o tokonoma — onde é expos-to um objeto precioso, ou um vaso com

dois ramos em or, ou uma pintura, ouuma folha repleta de caligramas. É limi-tando o número de coisas em nosso en-torno que somos preparados para aco-

lher a ideia de um mundo innitamentemais amplo. O universo é um equilíbriode cheios e de vazios. Palavras e gestosao servir o chá espumante devem ter es-

paço e silêncio ao redor, mas também osenso de recolhimento, de limite.

 A arte do mais importante mestrede cerimônia do chá, Sen-no Rikyu

(1521-91), sempre inspirada na máximasimplicidade, expressou-se também noprojeto de jardins em volta das casas dechá e dos templos. Os acontecimentos

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interiores se apresentam à consciênciapor meio de movimentos físicos, gestos,percursos, sensações inesperadas.

Um templo próximo a Osaka tinhauma vista maravilhosa sobre o mar.Rikyu fez plantar duas sebes que escon-diam completamente a paisagem e, per-

to delas, fez pôr um pequeno bebedou-ro de pedra. Somente quando um visi-tante se inclinava sobre o bebedouro pa-ra pegar um pouco de água com a con-

cha das mãos, seu olhar deparava a fres-ta oblíqua entre as duas sebes, abrindo-se a ele a visão do mar sem m.

 A ideia de Rikyu provavelmente era

esta: inclinando-se sobre o bebedouro e vendo a própria imagem reduzida na-quele limitado espelho d’água, o homemconsiderava a própria pequenez; depois,

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assim que erguia o rosto para beber damão, o clarão da imensidade marinha ocolhia e ele adquiria a consciência de ser

parte do universo innito. Mas são coi-sas que, se quisermos explicar demais,empalidecem: a quem o interrogava so-bre o porquê da sebe, Rikyu se limitava

a citar os versos do poeta Sogi:

 Aqui o pouco d’água.

 Lá embaixo, longe , entre as árvores ,

O mar que não acaba.

(“Umi sukoschi/ Niwa ni izumi no/Ko no ma ka na”).

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28. A LUA CORRE ATRÁS DA LUA

Há nos jardins zen de Kyoto umaareia branca de grãos grossos, quase umpedrisco, que tem o dom de reetir osraios da lua. No templo Ryoanji essaareia, alisada pelos monges em sulcosretos e paralelos ou em círculos concên-tricos, forma um pequeno jardim ao re-dor de cinco grupos irregulares de ro-

chas baixas. Já no templo do Pavilhãode Prata a areia é disposta num monti-nho arredondado, isolado, com um cor-po cônico que se alarga numa planície

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penteada em ondas regulares. Mais alémse estende um movimentado jardim dearbustos e árvores, ao redor de um la-

guinho de aspecto selvagem. Nas noitesde plenilúnio todo o jardim se iluminacom o brilho prateado da areia. Visiteio Pavilhão de Prata apenas de dia, e

debaixo de chuva; mas aquele pedriscobranco encharcado de água parecia res-tituir a luz lunar armazenada; uma espé-cie de semelhança especular com a nas-

cente daquela luz parecia custodiada poraquelas formas emergentes do branco,por aquele vulcão ensopado como umaesponja, sob as trajetórias das gotas que

desciam retas que nem raios de lua so-bre os traços alinhados do ancinho queum monge redesenha toda manhã.

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O amor pela lua muitas vezes se des-dobra em amor pelo seu reexo, comosublinhando naquela luz reetida a vo-

cação para os jogos de espelho. Dasquatro casas de chá da vila Katsura deKyoto, do século XVI, uma para cada es-tação, diversamente expostas e caracteri-

zadas por diferentes paisagens, a do ou-tono está situada de modo a ver a luano momento em que ela surge e usufruirseu reexo sobre o pequeno lago.

Esse fascínio pela duplicação, preci-samente da imagem lunar, talvez estejana origem do poema de um curioso po-eta da primeira vanguarda novecenten-

tista do Japão, Tarufo Inagachi. Até nu-ma tradução palavra por palavra essepoema nos parece deixar intuir (comonum reexo, de fato) algo de seu impul-

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so fantástico. Seu título é “A lua no bol-so”.

“Numa noite, a lua caminha pela es-trada levando a si mesma dentro do bol-so. Na ladeira, solta-se um laço do seusapato. A lua se inclina para amarrar osapato e lhe escapa do bolso a lua, que

se põe a rolar veloz pela via asfaltadae molhada pela chuva repentina. A luacorre atrás da lua, mas a distância crescedevido à aceleração da gravidade da lua

que rola. E a lua perde a si mesma nanévoa azulada, no fundo da ladeira.”

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29. A ESPADA E AS FOLHAS 

No Museu Nacional de Tóquio há

uma exposição de armas e armadurasdo antigo Japão. A primeira impressão éque os elmos, as couraças, os escudos eas espadas tivessem por primeiro objeti- vo não o de defender ou golpear, masmeter medo, impor uma imagem aterro-rizante aos adversários.

 As máscaras de guerra se contorcem

em caretas cruéis e ameaçadoras sob oselmos encimados por chifres, nadadeirase asas de grifo sobre couraças suntuosas,

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que incham o tórax repleto de adornose de pontas.

Quem, como eu, sente o alegre dis-tanciamento épico de um leitor de poe-mas cavalheirescos ao frequentar as sa-las de armas renascentistas do Ocidente(a grande cavalgada da sala das arma-

duras do Metropolitan Museum de Nova York é para mim uma das maravilhas domundo), aqui, pela primeira vez, pen-sa nesses objetos não como fantasiosos

brinquedos, mas tendo em vista a men-sagem que eles queriam transmitir em si-tuação, isto é, como hoje se olharia umtanque de guerra num campo de bata-

lha. Minha reação é imediata: começo afugir.

Percorro salas e salas de vitrines emque estão expostas lâminas nuas de es-

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padas ou variados sabres recurvos, deferros temperados e reluzentes, aadís-simos, sem empunhadura, todos pousa-

dos sobre uma toalha branca. Lâminas elâminas e lâminas que me parecem to-das iguais, mas que trazem cada uma eti-quetas com longas explicações. Grupos

de visitantes param diante de cada vitri-ne e observam espada por espada, comolhos atentos e admirados.

 A maioria é composta de homens;

mas é domingo, o museu está lotado defamílias; e os que contemplam as espa-das são também mulheres e crianças. Oque veem nesses facões desembainha-

dos? O que os fascina? Minha visita à ex-posição avança quase em ritmo de cor-rida; o brilho do aço transmite uma sen-sação mais auditiva que visual, como rá-

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pidos sibilos cortantes no ar. Os drape-ados brancos me inspiram uma repulsacirúrgica.

No entanto, sei perfeitamente que aarte da espada no Japão é uma antigadisciplina espiritual; li os livros sobrezen-budismo do dr. Suzuki; lembro que

o perfeito samurai nunca deve xar suaatenção na espada do adversário, nemna própria, nem no golpe, nem na de-fesa, mas deve apenas anular o próprio

eu; que não é com a espada, mas coma não espada que se vence; que os mes-tres forjadores de espadas atingem a ex-celência de sua arte por meio da ascese

religiosa. Sei bem tudo isso; mas umacoisa é ler nos livros, e outra é compre-ender na vida.

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Poucos dias depois, aqui estou emKyoto: passeio pelos jardins que forampercorridos por poetas renados, por

imperadores lósofos, por monges ere-mitas. Entre as pontes arqueadas sobreriachos, os salgueiros chorões que se es-pelham nos charcos, os campos de mus-

go, os bordos de folhas rubras em formade estrela, eis que me voltam à menteas máscaras guerreiras de caretas assus-tadoras, o pesa daqueles guerreiros gi-

gantescos, o o cortante daquelas lâmi-nas.

Olhando as folhas amarelas que ca-em na água, lembro-me de um apólogo

zen que só agora tenho a impressão deentender.

O discípulo de um grande forjadorde espadas acreditava ter superado o

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mestre. Para provar quanto suas lâminaseram aadas, imergiu uma espada numriacho. As folhas mortas levadas pela

correnteza, passando no o da espada,eram cortadas em duas no ato. O mestreimergiu no riacho uma espada feita porele. As folhas fugiam, evitando a lâmina.

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 30. OS FLIPERAMAS DASOLIDÃO 

 A inscrição  pachinko em caractereslatinos indica em Tóquio e em qualquercidade japonesa as casas de jogos eletrô-nicos ou iperamas, que se distinguemdos americanos e europeus porque são verticais, dispostos em la, um coladono outro, e se joga sentado.

 A julgar pelo número de locais e pela

frequência de público em todos os ho-rários, dir-se-ia que o  pachinko é hojea grande paixão japonesa. As salas sãodecoradas com cores do arco-íris, den-

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tro e fora, iluminadas por tubos de neone lampadazinhas coloridas que acendeme apagam. As musiquetas difundidas pe-

los alto-falantes se harmonizam com es-se excesso visual. Mas, se não fosse pelaagressividade cromática e acústica, nemperceberíamos que se trata de um local

de diversão, com todas essas las depessoas sentadas em bancos, cada qualdiante de sua vitrinezinha vertical comonuma baia de trabalho, os olhos xos

nos estalos da máquina luminosa, mano-brando os botões com gestos de autô-mato. A impressão que se tem é a de umpavilhão de fábrica, ou de um escritório

todo feito de dispositivos eletrônicos, nopico de seu horário produtivo.

Entre nós os iperamas, seja nos ba-res ou nas casas de jogos, estão quase

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sempre circundados por grupos de jo- vens, num campo de desaos, apostase gozações recíprocas. Aqui a impressão

que ca é a de uma apinhada solidão,ninguém parece conhecer ninguém, ca-da um está absorvido em seu jogo, olhosxos em seu labirinto de setas, ignoran-

do o vizinho da direita e da esquerda,cada um como se estivesse murado nu-ma cela invisível, isolado na própria ob-sessão ou pena.

Os  pachinkos  estão quase em todosos lugares, nos diversos centros da po-licêntrica Tóquio assim como nas váriasperiferias, mas especialmente nos bair-

ros da vida noturna. Em meio aos night-clubs, às pizzarias de cores italianas, aosstripteases, aos bares, aos  poruno-shop(a palavra pornô é adaptada à pronúncia

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japonesa), ao cheiro de enguia crua oufrita no óleo de soja, no coração destemundo barulhento os  pachinkos   se

abrem como jardins metálicos de umaabsorta concentração de indivíduos.

Os frequentadores são na maioriahomens, de todas as idades; mas de ma-

nhã, quando os letreiros dos bairros no-turnos estão apagados, apenas os arcos-íris dos  pachinkos   continuam ilumina-dos, e um novo público se apossa dos

iperamas: as boas donas de casa coma sacola de compras. Mulheres de meia-idade e sobretudo velhotas, vestindoquimonos de cores cambiantes com

grandes borlas nas costas, tamancos so-bre meias brancas, que se sentam diantedas maquininhas, apoiam ao lado as sa-colas de onde despontam aipos e batatas

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doces, e com muita rapidez, como semanobrassem uma máquina de costuraou um tear elétrico, dedicam aos saltos

das esferas uma atenção calma e com-prazida.

 A vida noturna de Tóquio se expan-de por diversos bairros: Ginza, Shibuya,

Shinjuku, do mais elegante ao mais po-pular. Quase se diria que meia metrópo-le não tem outro objetivo senão divertira outra metade.

Os restaurantes onde se come o ca-ranguejo são destacados por letreirosque poderiam ser vistos como extraordi-nárias obras de arte pop: um caranguejo

gigantesco ocupa toda a fachada da ca-sa, movendo as pernas e as pinças emtodas as articulações e erguendo ritmica-mente os olhos proeminentes. Mas as fa-

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chadas mais exuberantes são as dos ca-fés, considerados o máximo do ociden-talismo. E o que há de mais ocidental

que um castelo inglês? É por isso que oscafés — geralmente de dois andares oumais — têm fachadas de um maneirismomedieval e trazem nomes que, para cri-

ar uma atmosfera inglesa, produzem re-dundâncias como “The Mansion House”.

O milagre comentado por todos emTóquio, e com o qual seus habitantes

não param de espantar-se, é que estametrópole superpovoada tenha um índi-ce mínimo de delinquência, que a vio-lência seja rara e que as mulheres pos-

sam sair sozinhas a qualquer hora, mes-mo nesses bairros noturnos, sem seremmolestadas (exceto por algum bêbado).

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É verdade que a vida noturna acabacedo; à meia-noite todos os locais fe-cham, pois assim está previsto na lei

deste país que sempre praticou a auste-ridade. (Ficam abertos apenas os locaisclassicados como “clubes privados”, ouseja, muito caros.) O problema dos

transportes se incumbe do resto. Já àsdez da noite os locais se esvaziam,nightclubs e pizzarias, cinemas e  pa-chinkos , porque grande parte do público

mora em subúrbios afastados e tem duashoras de viagem pela frente, não podeperder o último metrô ou o último treme precisa dormir cedo para enfrentar no

dia seguinte, ao amanhecer, mais duashoras de trem para ir ao trabalho.

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 31. EROS E  DESCONTINUIDADE 

 Algumas reexões sobre as gravuraseróticas japonesas. Nelas a gura huma-na aparece formada por três elementosbem distintos:

1. os rostos concentrados, absortosnuma espécie de olhar interior;

2. os corpos de contornos traçadoscom linhas soltas e nítidas e superfíciessem cor evocam uma pele clara e umacarne macia, sem músculos — sem dife-rença entre homem e mulher;

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3. os órgãos sexuais representadoscom uma técnica muito mais minuciosa,um efeito tridimensional (desenhados

com muitas linhas e cores escuras) queconsegue mostrar tudo: pelos, grandeslábios, às vezes até o interior do sexo fe-minino, e o membro viril como uma vís-

cera túrgida; um distanciamento estilísti-co do conjunto do desenho que revelanos órgãos sexuais uma natureza com-pletamente diversa, independente do

resto da pessoa, e uma ferocidade selva-gem.

 A descontinuidade desses aspectos ésublinhada pelo fato de que os corpos

são parcialmente drapejados com indu-mentos ou mantas, escondendo detalhesdo emaranhado de membros que se en-laçam e se sobrepõem, de modo que a

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primeira operação de nossa “leitura” na-da instantânea é reconhecer a que pes-soa pertence esse ou aquele elemento.

Tal ecletismo estilístico parece feitojustamente para dar conta da coexistên-cia, no amor físico, de fatores estético-emotivos muito diversos que agem si-

multaneamente.

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 32. A NONAGÉSIMA NONA ÁRVORE 

 As histórias de qualquer templo ede qualquer palácio se entrecruzam comas vicissitudes dinásticas e com os códi-gos das seitas budistas. Dados um tantorasos e dicilmente memorizáveis che-gam aos meus ouvidos pela voz de guiase cicerones. Entretanto, antes que o es-tudante que me acompanha como intér-

prete as condensasse numa frase inteligí- vel, mas pobre de apelo emotivo, aque-las histórias já tinham sido relatadas nu-ma narrativa fascinante, calorosa e excla-

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mativa pelo motorista do táxi, que infe-lizmente só falava japonês.

O táxi que foi posto à disposição dohóspede durante sua permanência emKyoto é guiado por um homenzinho re-dondo, dinâmico e risonho, o sr. Fuji,que tira do câmbio a mão enluvada de

branco (os taxistas japoneses sempreusam luvas brancas) para indicar pontosdas localidades atravessadas que reme-tem a episódios famosos, enfatizando-os

com gestos entusiásticos. É ele quem sa-be tudo da história desta antiga capital,das cortes que aqui e na vizinha Narase sucederam por doze séculos; é ele a

enciclopédia da erudição local, mas tam-bém o aedo, o rapsodo de um mundodesaparecido, sepultado sob o espessoinvólucro do presente.

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O táxi atravessa uma ininterrupta pe-riferia de estacionamentos, supermerca-dos, magazines, postos de gasolina cujas

conhecidas siglas surgem entre carac-teres indecifráveis, galpões de fábricas,campos de beisebol, las de lojas, mer-cados de carros usados, casas de ipe-

rama. Só os bordos que despontam comsuas folhas vermelhas onde menos se es-pera, só alguns telhados com suas tradi-cionais asas côncavas fazem lembrar que

o Japão é um país “diferente”.De repente o sr. Fuji se entusiasma,

indica um ponto invisível entre as ante-nas de tevê e diz que lá, mil anos atrás,

se avistava um palácio real, ou que umpoeta passeava na beira de um lago. Oabismo que se escancara entre as cenasevocadas e aquilo que se vê agora não

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parece perturbá-lo: o nome articula o es-paço com o tempo, aquele ponto no ma-pa desarranjado continua depositário do

mito. A história que ele conta agora trata

de um imperador apaixonado por umadama belíssima e altiva, que habitava ali

(atrás daquele posto de serviços?). Pa-ra pô-lo à prova, a dama disse que eledeveria vir cem vezes para declarar seuamor, e somente na centésima vez ela o

aceitaria. O imperador voltava para elatodos os dias, deslocando-se de seu dis-tante palácio (para lá daquele gasôme-tro?), e todo dia plantava uma árvore di-

ante da casa da bela arrogante. Assimchegou a plantar noventa e nove árvo-res. Mais uma visita, e a bela seria sua…

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Naquele ponto, demonstrada a cons-tância de seus sentimentos, já seguro da vitória ao alcance da mão, o imperador

decidiu retirar-se, renunciar, e não apa-receu mais ali. As árvores cresceram e viraram um bosque, o Bosque das No- venta e Nove Árvores, como é chamado

ainda hoje.O olhar vagueia sobre um horizonte

de cimento e asfalto. Mas o táxi enve-redou por uma estradinha entre pátios

cheios de caixas. Lá está uma árvoreenorme, verde, altíssima, uma árvore deespécie desconhecida, de folha múltiplae miúda. Uma velha tabuleta informa

que se trata da última remanescente doBosque das Noventa e Nove, talvez jus-tamente a nonagésima nona, demons-trando que a geograa do passado su-

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blime, cara ao sr. Fuji, tem de fato umarelação com a do presente prosaico, e asraízes plantadas num terreno de inves-

timentos a fundo perdido ainda alimen-tam os ramos que contemplam um mun-do de balanços todos em ativo, de ope-rações que não podem fechar no verme-

lho.

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 MÉXICO 

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 33. A FORMA DA ÁRVORE 

No México, perto de Oaxaca, há

uma árvore que dizem ter 2 mil anos deidade. É conhecida como “a árvore deTule”. Aproximando-me depois de des-cer do ônibus de turismo, antes mes-mo que o olho divise, sou tomado poruma sensação de ameaça: como se da-quela nuvem ou montanha vegetal quese desenha em meu campo visivo viesse

a percepção de que aqui a natureza, apassos lentos e misteriosos, aplicou-se alevar a cabo um plano que não tem na-

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da a ver com as proporções e dimensõeshumanas.

 Já estou para soltar uma exclamaçãode maravilha, confrontando minha visãocom o conceito de árvore que até entãome servira para unicar todas as árvoresempíricas que encontrei, quando me

dou conta de que aquilo que estou ven-do não é a árvore famosa, mas uma ou-tra da mesma estirpe, crescida não dis-tante, com certeza um pouco mais jovem

e um pouco menos mastodôntica, já quea guia nem fala dela. Viro-me: a árvo-re de Tule propriamente dita surge dian-te de mim, de repente, como se tivesse

despontado naquele momento. E é umaimpressão bem diversa daquela para aqual me preparara. A extensão quase es-férica da copa que domina a desmesura-

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da amplitude do tronco faz a árvore pa-recer quase atarracada. Antes que a altu-ra, é a massa que se impõe ao olho.

“A árvore de Tule” mede quarentametros de altura, diz a guia, e 42 metrosde perímetro. Seu nome botânico é Ta- xodium distichum; o nome mexicano,

 sabino.Pertence à família dos ciprestes, mas

não se parece nem um pouco com umcipreste; é mais como uma sequoia, se

isso pode servir para dar uma ideia. Aárvore supera uma igreja do período co-lonial, Santa María del Tule, branca comfrisos geométricos vermelhos e azuis, co-

mo num desenho infantil. Os fundamen-tos da igreja correm o risco de ser des-truídos pelas raízes da árvore.

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 Ao visitar o México, todo dia nos ve-mos indagando ruínas, estátuas e baixos-relevos pré-hispânicos, testemunhos de

um inimaginável “antes”, de um mundoirredutivelmente “outro” em relação aonosso. E eis que aqui está uma testemu-nha que ainda vive e que já vivia antes

da Conquista, aliás, antes ainda que sesucedessem nos altiplanos os olmecas,zapotecas, mixteques e astecas.

No Jardin des Plantes de Paris sem-

pre observei com maravilha o corte deum tronco de sequoia quase da mesmaidade, exposto como um compêndio dahistória universal: os grandes fatos histó-

ricos de 2 mil anos atrás até hoje estãoassinalados em pequenas placas de co-bre pregadas nos círculos concêntricosda madeira, datados segundo as épocas

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correspondentes. Porém, enquanto aqui-lo é um resquício de uma planta morta,isto, a árvore de Tule, é um ser vivo, que

mal dá sinais de fadiga ao drenar a linfapara as folhas. (Para compensar a aridezda terra, alimentam-na com injeções deágua nas raízes.) Com certeza é o mais

antigo ser vivo que me aconteceu de en-contrar.

Desvio-me dos turistas japonesesque, caminhando de costas ou se aga-

chando, tentam enquadrar o colosso emsuas objetivas, me aproximo do tronco egiro ao redor dele para descobrir o se-gredo de uma forma viva que resiste ao

tempo. E minha primeira sensação é ade uma ausência de forma: é um mons-tro que cresce — dir-se-ia — sem ne-nhum plano, o tronco é uno e múlti-

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plo, como enfeixado por colunas de ou-tros troncos menores que sobressaem domastodôntico fuste central ou se desta-

cam dele, quase como se quisessem pa-recer raízes aéreas descidas dos galhospara reencontrar mais uma vez a terra,quando na verdade são proliferações das

raízes terrestres crescidas para o alto. Otronco parece unicar em seu períme-tro atual uma longa história de incerte-zas, geminações, desvios. Como barcas

que não conseguem ir ao largo, brotamdo tronco travejamentos horizontais de-cepados há mil anos, quando estavamdando vida a uma bifurcação da plan-

ta e depois perderam toda memória da-quela sua primeira intenção para se tor-narem curtas protuberâncias gibosas. Decotovelos e joelhos de galhos sobrevivi-

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dos à queda em épocas remotas conti-nuam se destacando ramos secundários,anquilosados numa incômoda gesticula-

ção. Nós e feridas continuaram a dilatar-se, os primeiros proliferando em incha-ços e concreções, as segundas expan-dindo suas bordas laceradas e impondo

sua singularidade como o sol em tornodo qual se irradiam as gerações das cé-lulas. E acima de tudo isso, espessada,calejada, crescida sobre si mesma, a con-

tinuidade da casca que revela todo o seucansaço de pele decrépita e ainda a eter-nidade daquilo que alcançou uma con-dição tão pouco vivente que já não pode

morrer.Quer dizer que o segredo da duração

é a redundância? Certamente é repetindoinumeráveis vezes as próprias mensa-

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gens que a árvore se garante contra acontínua sucessão de acidentes mortaisque atingem cada uma de suas partes,

conseguindo desse modo impor e per-petuar sua estrutura essencial, a inter-dependência de raízes, tronco e fronde.Mas aqui estamos além da redundância;

o que me preocupa enquanto giro ao re-dor da árvore de Tule é a disponibilida-de da morfologia em mudar os própriospapéis, é a perturbação da sintaxe vege-

tal: raízes que rumam para o alto, seg-mentos de galhos que se tornam tron-cos, segmentos de troncos nascidos dagema de um galho. No entanto, o resul-

tado — visto a distância — continua sen-do uma árvore, uma superárvore comraízes, tronco e copa postos nos lugarescertos — super-raízes, supertronco, su-

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percopa —, como se a sintaxe transtor-nada se restabelecesse num nível superi-or.

É por meio de um caótico desperdí-cio de matéria e de formas que a árvoreconsegue dar a si mesma uma forma econservá-la? Quer dizer que a transmis-

são de um sentido se assegura na imo-deração do manifestar-se, na profusãodo exprimir a si mesmo, do pôr para fo-ra, seja lá como for? Por temperamento e

formação, sempre considerei que só im-porta e resiste aquilo que está concen-trado para um m. Ora, a árvore de Tu-le me desmente, quer convencer-me do

contrário. A entrevista com a árvore deveria co-

meçar agora, mas os turistas japoneses játiraram seus inúteis fotogramas e para-

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ram de formigar em volta do gigante. Eeu também devo retomar meu lugar noônibus que parte para as ruínas mixte-

ques de Mitla.

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 34. O TEMPO E OS RAMOS 

Sempre em Oaxaca, outra extraordi-

nária árvore mexicana, mas esta de estu-que pintado, numa igreja dominicana doséculo  XVII. Trata-se de uma decoraçãoem relevo da abóbada da igreja de SãoDomingos, sobre o tema da árvore gene-alógica de Cristo, a árvore de Jessé ( Jes-sé, pai de Davi, de cuja estirpe, segundoos profetas, devia nascer o Messias), um

motivo que na história da arte frequente-mente se identica com o da Árvore da Vida (que parte de Adão e liga a Queda

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e a Redenção por meio da continuidadeda madeira da Árvore e da Cruz).

Um tronco sutil e retorcido nasce docorpo de uma personagem que jaz supi-na e se ramica recobrindo circularmen-te a abóbada com um harmônico entre-lace de volutas vegetais, de onde se des-

tacam personagens em relevo como ca-chos de um ramo (a planta também traz verdadeiros cachos e pâmpanos, o quenos autoriza a reconhecê-la como uma

 videira). As personagens despontam co-loridas do reboco branco: reis com coro-as de ouro, bispos com a mitra, guerrei-ros com armaduras e elmos empenacha-

dos como fantoches sicilianos, cavalhei-ros com amplos coletes seiscentistas. Deguras femininas parece que só há umpar, sendo uma delas freira. O cume da

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árvore, para onde toda a copa converge,sustenta — contornada por cabeças deanjos — Nossa Senhora com o Menino.

Identicar as personagens não é fá-cil: se isso quer ser realmente uma “ár- vore de Jessé”, então talvez o ancestraldeitado seja Davi, e um dos reis deve

ser Salomão. Mas as guras são estere-otipadas e atemporais em sua vestimen-ta entre medieval e barroca, e também aordem talvez seja arbitrária: nos Evange-

lhos, a genealogia de Cristo vai de pai alho segundo uma linha única, ao pas-so que aqui o tronco retorcido articuladiretamente a gura da raiz à do cume,

e todas as outras personagens despon-tam em variadas alturas nos ramos la-terais, como gerações de irmãos. Desdeque o andamento ascensional da videira

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não leve a ler a sucessão de um modomais livre, seguindo um traçado sinuoso.

 Já de acordo com alguns guias, a -gura na raiz seria são Domingos, e aque-las nos galhos seriam glórias da ordemdominicana (mas então todos não deve-riam vestir roupas eclesiásticas?), cuja fé

converge para a graça divina. Seja qualfor a interpretação iconológica exata, osentido do desenho arbóreo é claro ede uma ecácia visual imediata: trata-se

de articular um ponto de partida a umponto de chegada, ambos sagrados e ne-cessários, por meio de uma exuberân-cia de formas de vida que de algum mo-

do também correspondem a um desíg-nio harmônico, segundo a intenção daprovidência divina ou da arte humanaque quer representá-la.

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 A profusão barroca das frondes éuma redundância aparente, porque amensagem transmitida está justamente

nessa profusão, e não se pode omitir ouacrescentar uma folha nem uma guranem um cacho. Ou seja, quem são e co-mo se chamam as personagens do rele-

 vo de estuque importa até certo ponto:o que conta é o que se cumpre por meiodelas.

 A árvore de Tule, produto natural do

tempo, e a árvore de Jessé, produto danecessidade humana de conferir uma -nalidade ao tempo, são apenas aparen-temente redutíveis a um esquema co-

mum. Encontrando-as na mesma jornadade meu itinerário turístico, sintoestender-se entre elas a distância entre oacaso e o desígnio, a probabilidade e a

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determinação, a entropia e o sentido dahistória.

Mais que à árvore de Jessé, uma ár- vore genealógica que quisesse realmenterepresentar aquele processo de procria-ções e de mortes que é a sobrevivênciahumana deveria assemelhar-se a uma ár-

 vore verdadeira, com suas ramicaçõescontorcidas e desarmônicas, seus cotos,sua secura e seu verde, as podadurasdo acaso e da história, seu desperdício

de matéria viva. Ou melhor, deveriaassemelhar-se precisamente à árvore deTule, onde não está claro o que é raiz, oque é tronco, o que é ramo.

Mas as árvores genealógicas são sem-pre simplicações a posteriori, feitas se-gundo uma linha privilegiada, geralmen-te a sucessão de um título ou de um

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nome. Em certos castelos franceses, nabanca dos cartões-postais vendem-se ár- vores genealógicas dos reis de França

para que os turistas possam orientar-se nas complicadas peripécias de queaqueles lugares foram testemunha. Docepo comum dos Capeto se bifurcam os

ramos dos Valois, de uma parte, e dosBourbon, de outra, com os vários An-goulême e Orléans como ramicaçõessecundárias, num esquema arbóreo bas-

tante assimétrico e forçado.Uma autêntica árvore genealógica

deveria alargar as próprias ramicaçõestanto para o presente quanto para o pas-

sado, porque a cada matrimônio deve-ria gurar a fusão de duas plantas, daqual resultaria um emaranhado intrica-díssimo que se expandiria para todos os

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lados, para interromper-se na franja irre-gular das extinções. Um arbusto cujas ra-micações ora se expandem, ora se con-

traem, porque numa determinada áreageográca as famílias voltam a misturar-se a cada casamento, sempre as mesmas. A forma da árvore seria reconstituída re-

montando às raízes do gênero humano,como para Adão e Eva na iconologiacristã? Para a antropologia contemporâ-nea essas raízes devem ser buscadas ca-

da vez mais longe, a uma distância demilhões de anos, e espalhadas peloscontinentes. (Aquilo que pareceaproximar-se é o m, o corte de todos

os ramos um a um ou todos juntos, aiminência da catástrofe demográca, ali-mentar, tecnológica…)

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 35. A FLORESTA E OS DEUSES 

Em Palenque, os altíssimos templos

escalonados se destacam do fundo daselva que os supera com árvores com-pactas e ainda mais altas, fícus de tron-cos múltiplos como raízes, aguacates  defolhas reluzentes, avalanches de trepa-deiras, plantas pêndulas, lianas. A ores-ta parece prestes a engolir aqueles ves-tígios colossais da civilização maia; aliás,

já os tinha engolido havia séculos, eeles ainda estariam sepultados sob uma verde montanha viva e proliferante nãofossem as aadas lâminas dos homens

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que, desde quando esses templos foramdescobertos, combatem dia a dia o as-salto da vegetação, permitindo que as

construções de pedra possam emergirdo sufocante emaranhado de ramos e de vergônteas.

Os baixos-relevos que os antigos

maias esculpiram na pedra representampor guras de deuses, de astros e demonstros o ciclo da vegetação do milho.Pelo menos é isso que os livros expli-

cam; o que podemos constatar à primei-ra vista são associações de sinais folha-dos, oridos ou frutiformes, uma vegeta-ção de ornamentos que viceja ao redor

de cada vulto vagamente antropomorfoou zoomorfo, transformando-o num no- velo emaranhado. Portanto, seja lá o quesigniquem, são sempre formas vegetais

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que os maias xam na pedra: no fundode toda fala há o escorrer da linfa nasplantas; uma relação quase especular se

estabeleceu entre a pedra esculpida e aoresta. O emaranhado vegetal tambémse adensa em minha cabeça atordoadapelo sol e pelas vertigens ao subir e des-

cer aqueles degraus íngremes, e entre asramicações de argumentos tenho a im-pressão de entrever de vez em quandouma razão decisiva, que um instante de-

pois desaparece.Os baixos-relevos e a oresta se de-

nem e se comentam reciprocamente;a linguagem de pedra narra e reete o

processo vital que a circunda e determi-na. Mas qual o sentido de dizer a pa-lavra “oresta” quando a oresta estáali, presente, ameaçadora? Se é “ores-

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ta” a palavra que está escrita nas gu-ras dos deuses-monstros esculpidos, en-tão os templos na oresta não são se-

não uma gigantesca tautologia que a na-tureza tenta justamente cancelar comosupérua. Eis que as coisas se rebelamcontra o destino de ser signicadas pelas

palavras, recusam aquele papel passivoque o sistema dos signos gostaria delhes impor, retomam o lugar usurpado;eis que submergem os templos e os

baixos-relevos, voltam a engolir a lin-guagem que tentara armar a própriaautonomia e erigir-se sobre os própriosfundamentos como uma segunda natu-

reza. Os baixos-relevos adornados deserpentes e plumas e folhas desapare-cem invadidos por ninhos de serpentes,de pássaros e de intricadas lianas; em

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 vão a linguagem sonhara constituir-seem sistema e em cosmo: a última palavracabe à natureza muda.

Isso já poderia ser uma bela con-clusão, mas o próprio curso dos pensa-mentos também poderia levar a um pon-to de chegada oposto. A oresta pode

encarniçar-se contra os templos quantoquiser; a pedra não se deixa corroer pe-lo apodrecimento da mucilagem vegetal,as guras em que se leem os nomes dos

deuses não se deixam eliminar pelos lí-quenes e fungos. Desde que a lingua-gem existe, a natureza não pode aboli-la: apesar de tudo ela continua agindo

em seu âmbito apartado, que o ímpetoconvulsivo das coisas não desgasta. Osnomes dos deuses e os deuses sem no-

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me se confrontam numa guerra que nãopode ter vencedores nem vencidos.

Mas, se atribuo à oresta uma inten-ção agressiva, se vejo as raízes e as li-anas agindo, atacando, cercando o ini-migo, não faço senão projetar a mito-logia dos baixos-relevos sobre a vegeta-

ção de linfa. A linguagem (toda lingua-gem) constrói uma mitologia, e esse mo-do de ser mitológico também envolveo que se pensava existir independente-

mente da linguagem. Desde que a lin-guagem surgiu no universo, o universoassumiu o modo de ser da linguagem, enão pode manifestar-se senão seguindo

suas regras. Desde aquele momento asraízes e as lianas fazem parte do discur-so dos deuses, do qual se difunde qual-quer discurso. As gestas feitas de no-

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mes e verbos e consequências e analo-gias enredaram os elementos e as subs-tâncias primeiras. Os templos que cus-

todiam as origens da linguagem no altodas escadarias de pedra ou no fundo decriptas subterrâneas impuseram seu do-mínio sobre a oresta.

Mas hoje temos certeza de que osdeuses ainda falam, de seus templos emruína, a linguagem da oresta? Talvez osdeuses que comandam o discurso não

sejam mais aqueles que repetiam a nar-rativa terrível, mas nunca desesperada,do suceder-se de destruição e renasci-mento num ciclo sem m. Outros deu-

ses falam por meio de nós, conscientesde que tudo o que termina não regressa.

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 IRà

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 36. O MIHRAB 

Uma moldura em relevo, arremata-

da por uma arquitrave com um friso per-furado como uma renda; na parte inter-na, um friso encavado que corre sobreos batentes, com arabescos em baixo-re-levo acima dos quais, sobre o lado ho-rizontal no alto, se destaca uma linhade escritura uente, como suspensa. Tu-do é da mesma cor clara; a matéria é

estuque. Abaixo, vem à frente um tím-pano em sexto agudo, emoldurado poruma arquivolta canelada, sustentada pornas colunas, repleta de caracteres es-

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culpidos. Nas margens, cada retalho desuperfície é denso de ornamentos, mar-chetado de cheios e de vazios, poroso

como uma esponja. As colunas e a ogivaem positivo do tímpano emolduram, so-bre um fundo encavado e minuciosa-mente esculpido, a ogiva em negativo

de um arco em sexto agudo, arrematadopor uma alta arquitrave, igualmente per-furada; e aqui seria preciso tornar a usartodas as palavras de antes para descre-

 ver detalhes semelhantes em escala re-duzida e com diversos efeitos de ema-ranhamento e saturação. E dentro dessearco no interior de todos os arcos, o que

se vê? Nada: a parede nua.Estou tentando descrever um mihrab

do século XIV  na Mesquita da Sexta-Fei-ra, em Ispahan. O mihrab é o nicho que,

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nas mesquitas, indica a direção de Me-ca. Toda vez que visito uma mesquita,paro diante do mihrab e não me canso

de observá-lo. O que me atrai é a ideiade uma porta que faz de tudo para exi-bir sua função de porta, mas que nãose abre sobre nada; a ideia de uma mol-

dura luxuosa como se encerrasse algoextremamente precioso, mas que dentronão traz nada.

Na Mesquita do Xeique Lotfollah, nu-

ma parede toda recoberta de maiólicaíndigo e turquesa, sob um vão ogivalcom, ao centro, uma falsa janela ogivalde ladrilhos claros atravessados por uma

oração geométrica de linhas em espiral,o mihrab (do século XVII) é uma cavida-de — sempre ogival — que se abre naespessura do muro, resplandecente de

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maiólicas azuis e ouro, ornada em todaa sua superfície por desenhos de arcos— estes, hexagonais — e com uma abó-

bada composta de muitos alvéolos emcolmeia, pequenas celas sem pavimentoque se sobrepõem em estratos. É comose o mihrab, subdividindo o próprio es-

paço limitado e recolhido numa multipli-cidade de mihrabes cada vez menores,abrisse a única via possível para alcançaro ilimitado.

Em volta, a escrita escorre branca so-bre os ladrilhos azuis, enfaixando o es-paço com seus caligramas escandidospor barras paralelas, curvas vibradas co-

mo açoites, incisões de traços oblíquosou puntiformes, lançando os versículosdo Corão para o alto e para baixo, defrente e do avesso, para a frente e para

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trás, ao longo de todas as dimensões vi-síveis e invisíveis.

Depois de ter cado um bom tempocontemplando o mihrab, sinto-me nodever de chegar a alguma conclusão.Que poderia ser esta: a ideia de per-feição que a arte persegue, a sabedoria

acumulada na escritura, o sonho de con-tentamento do todo desejo que se expri-me no esplendor dos ornatos, tudo re-mete a um só signicado, celebra um só

princípio e fundamento, implica um ob-jeto único e último. Um objeto que nãoexiste. E sua exclusiva qualidade é nãoexistir. Não se pode nem mesmo lhe dar

um nome. Vazio, nada, ausência, silêncio são

todos nomes carregados de signicadosexcessivamente pesados para algo que

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não quer ser nenhuma dessas coisas.Não se pode deni-lo com palavras: oúnico símbolo que o representa é o mih-

rab. Aliás, para sermos mais precisos: éaquele algo que se revela não existenteno fundo do mihrab.

* * *

Foi isto o que acreditei compreendernaquela minha distante viagem a Is-

pahan: que a coisa mais importante domundo são os espaços vazios. As abóba-das em colmeia das cúpulas da Mesquitado Xá Abbas; a cúpula castanha da Mes-quita da Sexta-Feira, que se sustenta nu-ma sucessão de arcos de medida decres-cente, calculados segundo uma sostica-da aritmética para soldar a base quadra-da ao círculo que suporta a calota; os

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iwan, os grandes portais quadrangularesda abóbada arqueada: tudo aqui conr-ma que a verdadeira substância do mun-

do é dada pela forma cava.O vazio tem suas fantasias, seus ca-

prichos: a “sala de música” do palácio Ali Qapu tem as paredes e a abóbada re-

 vestidas por um invólucro de gesso ren-dado de cor ocre, no qual silhuetas deampolas e de alaúdes são entalhadas emnegativo, como uma coleção de objetos

reduzidos à própria sombra ou à própriaideia sem corpo.

Certas formas do tempo são feitaspara entrar em acordo com certas formas

do espaço: a hora do ocaso na primave-ra com a medersa chamada de “a Mãedo Xá”; o fechado jardim setecentista,branco de maiólica e verde de plantas e

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piscinas, sobre o qual se debruçam gran-des vãos realçados, vazios, ornamentosde faixas de pastilhas em que a agilidade

da graa se compõe na impassibilidadedos esmaltes. Visitando a medersa, ven-do a tranquila familiaridade com que oshabitantes de Ispahan vivem este lugar e

esta hora, penso que eu também gosta-ria de ocupar o mezanino de um daque-les nichos espaçosos, como o homem alisentado, de pernas cruzadas, lendo, ou

como aquele que se deitou e dorme, ouum que come pão em lâminas nas e sa-lada: invejo o grupo que está ouvindoum mulá, como se fossem discípulos de

Sócrates, todos agachados ao redor deum tapete, ou os meninos que, saídosdo colégio, abrem sobre outro tapete oslivros e cadernos para as tarefas.

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Talvez uma cidade que foi feita se-guindo uma feliz disposição dos cheiose dos vazios se preste a ser vivida com

feliz disposição de espírito, mesmo emtempos de despotismo megalomaníaco:esse era o pensamento que me vinha aopassear na animação da noite pela famo-

sa praça de Ispahan, olhando as mesqui-tas de cúpulas azuis e cor de cobre, ascasas da mesma altura com terraços co-municantes, as amplas abóbadas do pa-

lácio de Abbas, o Grande, e do bazar. Alguns anos se passaram. O que ago-

ra me chega do Irã são imagens bem di-ferentes: sem espaços vazios, apinhadas

de multidões, de gritos e de gestos rit-mados, escurecidas pelo preto dos man-tos que se estendem em cada canto, car-regadas de uma tensão fanática sem tré-

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gua nem respiro. Não vi nada disso aoperscrutar o mihrab.

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 37. AS CHAMAS EM CHAMAS 

O fogo se conserva no sacrário do

templo zoroastriano, fechado a chave. Apenas o mobet  tem a chave e pode en-trar; durante o rito, a chama é visívelatravés da grade.

O templo é uma construção moder-na, num modesto jardim de Yazd, cidadeàs margens do deserto, no centro do Irã.O mobet  é um jovem hindu parse de

Bombaim (há mais de mil anos os par-ses da Índia mantêm viva a antiquíssimareligião de seus antepassados fugidos daPérsia depois da conquista islâmica); bo-

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nito, altivo, com um ar de certa supe-rioridade; a túnica branca que veste, opequeno barrete branco que traz na ca-

beça, o véu branco que cobre sua bocapara evitar que o fogo sagrado seja con-taminado pelo hálito humano, tudo issolhe dá o aspecto de um cirurgião. Com

uma pá ele reaviva a chama; acrescen-ta alguns pedaços de madeira de sânda-lo ao braseiro. Recita as preces a Ahu-ra Mazda com uma dicção salmodiante,

que começa num sussurro e sobe aospoucos até as notas mais agudas; inter-rompe, cala-se, dá um golpe num sinoque ressoa em altas vibrações. À sua voz

se alternam as litanias das mulheres re-colhidas no templo com a cabeça cober-ta por mantos coloridos e curtos, aten-tas na leitura de seus livrinhos: preces

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em língua moderna ou de qualquer mo-do compreensíveis hoje, enquanto o mo-bet  reza na língua do Avesta, em que se

conservam as estraticações mais arcai-cas do cepo indo-europeu.

Foi para recolher um eco das origensmíticas da palavra que vim até aqui, en-

tre os últimos depositários de uma fa-la transmitida idêntica na letra e na pro-núncia por milhares de anos? Ou para ver se algo distingue de todos os outros

fogos os fogos que supostamente quei-mam desde os tempos de Ciro, de Da-rio, de Artaxerxes, reatiçados por umaininterrupta sucessão de brasas que nun-

ca deixaram apagar, custodiados furtiva-mente durante os mil e trezentos anosde domínio do Islã, alimentados commadeira de sândalo seco e talhado sem-

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pre de acordo com as mesmas regras,de modo a produzir uma chama límpida,sem sombra de fumaça?

Minha viagem ao Irã transcorre du-rante o último período de reinado doxá, homem que persegue muitos gruposde indivíduos, mas não a minoria dos

éis da religião mazdiana (aqueles quechamamos de zoroastrianos ou zaratus-trianos ou, de modo mais aproximado,“adoradores do fogo”). Enfrentando o

predomínio do clero muçulmano-xiita, adinastia Pahlevi (já desde a ascensão aotrono do pai deste xá) declarou-se laicae tolerante quanto a religiões minoritári-

as; assim, a lógica caprichosa dos equi-líbrios políticos deu de novo liberdadeao culto de Ahura Mazda, que não só noexílio hindu, mas também nestas regiões

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remotas da Pérsia, continuara por sécu-los a ser praticado em segredo, ao redorde fogos mantidos sempre acesos sobre

as montanhas e nas casas.Com a cautela de quem vive entre

os inéis, os mazdianos continuam con-servando o fogo sob sete chaves, visível

apenas atrás de uma grade. Mas sempre,mesmo quando os altares amejavam al-tos sobre as escadarias monumentais daPersépolis de Dario, o verdadeiro sacrá-

rio do fogo era uma sala sem janelas, ventilada apenas por frestas, inacessívelaos raios de sol. Lá, as chamas nutridasde troncos de sândalo ressecados até

perderem qualquer resíduo dos sucosterrestres, mil vezes se extinguindo e mil vezes renascendo das próprias cinzas, sepuricavam das escórias do mal que po-

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luem todos os elementos e os astros eas plantas e os bichos e sobretudo o ho-mem. O fogo sagrado resplandece no

escuro: não deve misturar sua luz com aluz do dia exposta a todo tipo de con-taminação. E talvez para profaná-lo bas-tem os olhares humanos, caso pousem

sobre o fogo com indiferença, como sefosse uma coisa que seguisse qualqueroutra coisa: como meus olhares, de ho-mem que em vão se esforça por recupe-

rar um signicado para os antigos sím-bolos num mundo que consome tudo oque vê e ouve. O verdadeiro fogo é ofogo oculto: foi para aprender isso que

 vim até aqui?Em busca dos zoroastrianos de Yazd,

ontem à tarde percorremos de cima abaixo um interminável bairro semideser-

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to, entre muros cegos de barro e palhaou de tijolos de argila crua, terraços so-bre os baixos tetos planos de onde es-

pia alguma menina, grupinhos de velhassentadas em volta de uma soleira estrei-ta ou sob um nicho rudimentar onde ar-de uma vela. A religião das mulheres é

reconhecida pelo xale com que cobrema cabeça; neste bairro, os coloridos sãomais numerosos que os negros. Atravésde uma porta, um adro, uma sequên-

cia de pátios comunicantes, chegamos auma sala baixa onde muitas velas quei-mam diante de fotograas de mortos:uma espécie de capela, um local de cul-

to privado; o fogo, o famoso fogo, éanunciado apenas por essas chamas fra-cas. O passante gentil que, interpeladona rua, nos conduziu até aqui dá expli-

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cações que se perdem por falta de umalíngua em comum; no entanto, dispõe-se a nos acompanhar até o templo prin-

cipal, mas para nos mostrar que está fe-chado e que ele só pode indicá-lo atra- vés do portão: um moderno pavilhãoanônimo. Perguntando aqui e ali, ca-

mos sabendo que para amanhã são es-perados cinegrastas de uma televisãoestrangeira, que pretendem lmar a ce-lebração de um rito.

No escritório local da televisão doEstado, para onde nos dirigimos, umfuncionário com cinco retratos do xápendurados na parede ou emoldurados

sobre a escrivaninha (o xá no trono, acavalo, com a mulher, com os lhos, emcores, em preto e branco) nos fornece

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os contatos para podermos assistir à l-magem.

Então aqui estou, admitido no tem-plo, depois de também ter posto um pe-queno barrete branco e tirado os sapatos(os cabelos e as solas são os veículos decontaminação que mais merecem cuida-

do), mas tudo o que vejo ainda me pa-rece muito distante. Distante de quê? Oque vim buscar entre os éis de AhuraMazda, primeiro deus que se revelou aos

indo-europeus como supremo princípiotranscendente? O que pode signicar pa-ra mim aquele vulto barbudo e ladeadopor duas grandes asas que se repete em

toda parte, dos baixos-relevos do palá-cio de Dario em Persépolis ao modestomobiliário moderno desta saleta? É umaesquemática gura humana de perl, de

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longa barba cacheada e cabelos iguais àbarba, arrematados por um chapéu cilín-drico: traz na mão um círculo e é por

sua vez circundado por um círculo mai-or, do qual se abrem duas grandes asas,talvez de águia, uns élitros ou antenasque talvez sejam raios; apenas o busto

da gura é visível, até a cintura, emoldu-rado pelo círculo alado como um avia-dor dentro da carlinga de um primordialaparelho voador. Seria natural acreditar

que se trata de Ahura Mazda em pessoa,mas é óbvio que não cairei num erro tãogrosseiro, porque sei que não pode ha- ver imagens de um deus invisível e oni-

presente (assim como Ahura Mazda é sóum modo de dizer, não um nome): seráno máximo uma emanação divina, quedesce do céu sobre a cabeça dos impe-

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radores, ou então um arquétipo celes-te de sua majestade, que poderíamos noentanto entender como suspenso acima

de nós, bênção a ser invocada ou mode-lo a ser alcançado.

Enm, Ahura Mazda permanece dis-tante, mesmo neste templo com luz ne-

on, cadeiras de metal pintadas de bran-co, o sacerdote vestido de branco e mui-to contente por ociar diante das câme-ras de TV . Poucos os ornamentos pendu-

rados nas paredes: um quadro que re-presenta Zaratustra no estilo das oleo-graas populares orientais, um espelho,um calendário em que o emblema do

barbudo com asas se destaca sobre o tri-color iraniano.

 A única imagem possível de AhuraMazda é o fogo: sem forma, sem limites,

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que aquece e devora e se propaga naagilidade de suas línguas ofuscantes,que mudam de cor a cada instante: o fo-

go que arrefece na lenta agonia das bra-sas, que se oculta sob as cinzas pálidas ede repente renasce, ergue suas asas a-ladas, retoma o ímpeto, se lança numa

labareda violenta. Não me resta mais na-da a não ser observar o brilho da chamaque se ergue do braseiro oculto, olharos homens e as mulheres que rezam ao

fogo e tentar imaginar-me como eles o veem. Com atração e com temor, assimcomo eu o vejo? Certamente: como for-ça amiga, condição necessária de nossa

existência; mas a atração que a vista daschamas exerce é mais instantânea quequalquer raciocínio, é instintiva como oassombro que ela incute na condição de

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força inimiga, de destruição, de morte. Emais além ainda eles veem no fogo umelemento incompatível com tudo o que

é obrigado a submeter-se à vicissitudeda vida e da morte, um modo de ser ab-soluto, tanto que o associam à ideia dapureza ideal. Talvez porque o homem

pode acreditar que o controla, mas nãopode tocá-lo? Porque nele nenhum ser vivente pode viver? É puro o que é into-cável pelo homem? É puro o que exclui

de si a vida? O que vive se despindo detodo corpo ou invólucro ou suporte? Ese a pureza está no fogo, como se podepuricar o fogo? Queimando-o? É um fo-

go posto ao fogo aquele a quem os maz-dianos recitam suas preces? Uma chamadada às chamas?

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 As estrelas continuam queimando erequeimando seu combustível pelos sé-culos dos séculos. O rmamento é feito

de braseiros que se atiçam e se apagam,supernovas incandescentes, gigantes vermelhos que se atenuam pouco a pou-co, resíduos carbonizados de anãs bran-

cas. Também a Terra é uma bola de fogoque dilata a crosta dos continentes e dosfundos oceânicos. O universo é um in-cêndio. O que acontecerá quando toda

a lenha de sândalo dos átomos tiver se volatilizado no crisol das estrelas? Quan-do as cinzas das cinzas se consumaremnuma labareda de calor impalpável? Qu-

ando as fogueiras das galáxias se reduzi-rem a opacos vórtices de fuligem? Comoconceber um fogo que se mantém aceso

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desde o início dos tempos e que nuncase apagará?

O mundo que eu habito é governadopela ciência, e essa ciência tem um fun-damento trágico: o processo irreversívelque conduz o universo a decompor-senuma nuvem de calor. Dos mundos vi-

 víveis e visíveis restará apenas um pul- vísculo de partículas que nunca mais re-encontrarão uma forma, em que nada sedistinguirá de nada, o perto e o longe,

o antes e o depois. Aqui entre os éisde Ahura Mazda, no fogo custodiado noescuro que o mobet  desperta e embalaao som de sua voz salmodiante, mostra-

se a mim a substância do universo quese manifesta apenas na combustão quea devora sem trégua, a forma do espaçoque se expande e se contrai, o estrondo

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e o crepitar do tempo. O tempo é co-mo o fogo: ora deslancha em labaredasimpetuosas, ora se retrai sepulto no len-

to carbonizar das eras, ora serpenteia ese espalha em zigue-zagues fulminantese imprevisíveis, mas sempre aponta pa-ra seu único m: consumar cada coisa e

consumar-se. Quando o último fogo seapagar, também o tempo terá terminado;é por isso que os zoroastrianos perpetu-am seus fogos? O que tenho a impres-

são de estar prestes a entender é o se-guinte: lamentar-se de que a echa dotempo corra para o nada não faz senti-do, porque por tudo o que há no uni-

 verso e que gostaríamos de salvar, o fatode existirmos quer dizer justamente estequeimar e nada mais; não há outro mo-do de ser que não o da chama.

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Quem sabe se no Avesta eu poderiaencontrar uma fórmula que exprimisseesses pensamentos? Por ora, recorrendo

à minha memória ocidental, basta-me atirada de um poeta. A quem lhe pergun-tou: “Se um incêndio estivesse destruin-do sua casa, que coisa você se apressaria

em pôr a salvo?”, Jean Cocteau respon-deu: “O fogo”.

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 38. AS ESCULTURAS E OS  NÔMADES 

Em Persépolis, vejo-me subindo aescada monumental junto a duas colu-nas de pessoas perladas: a dos turistasem comitiva e a dos dignitários de bar-bas e cabelos cacheados, com cilíndricosadornos feitos de penas na cabeça, ma-ciços colares em meia-lua nos pescoços,sandálias nos pés sob as togas plissadas

e às vezes uma or na mão. A primeiramultidão é feita de carne, osso e suor; asegunda, de pedra esculpida. Deixandoque a primeira se afaste sob o sol ofus-

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cante, alinho-me à outra, ajusto a seucalmo passo o meu, confundo-me na-quele andar ininterrupto de guras alti-

 vas sobre a superfície cinzenta das pla-cas de pedra, naquela procissão majes-tosa que se desdobra por onde quer queo olhar se xe nas grandes escadarias da

cidade, pelas bases de todas as fachadas,escoando para as portas margeadas porleões alados e a sala das cem colunas. Apopulação de pedra tem a mesma esta-

tura da de carne e osso, mas se distin-gue pela compostura e por uma rígidauniformidade de linhas e de vestuário,como se a própria gura de perl con-

tinuasse passando e repassando. De vezem quando uma face voltada para trás, virada para o vizinho que segue na -la, e um posar recíproco das mãos sobre

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o peito ou nos ombros como numa tro-ca de manifestações de amizade introdu-zem na xidez cerimonial uma nota de

animação, tão mais calorosa quanto maisparece estereotipado o aspecto hieráticodo resto do cortejo.

O palácio dos aquemênidas em Per-

sépolis é um receptáculo que reproduzem suas paredes o próprio conteúdo dedois mil e quinhentos anos atrás, umaarquitetura feita para acolher uma ce-

rimônia faustosa, cerimônia que podiaapenas repetir aquela que já estava des-de sempre ali presente, em cada agrupa-mento e em cada gesto, na disposição e

na sucessão de cada embaixada e de ca-da tropa, na exibição dos trajes, das ri-quezas e das armas: a guarda do impe-rador com suas lanças, seus arcos e alja-

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 vas, os portadores de oferendas de vári-as nações com vasos preciosos e saqui-nhos de ouro em pó.

No baixo-relevo da grande porta, asnações sustentam o trono imperial, masesse trono é tão leve que elas podemcarregá-lo com as pontas dos dedos. Ou

melhor: sobre o grande trono que osembaixadores das nações erguemaorando-o sob o estrado há um tronomenor, em cima do qual se senta um pe-

queno imperador ladeado de um escra- vo com um enxota-moscas e coberto porum baldaquino, sobre o qual ainda seequilibra o emblema de Ahura Mazda ou

de sua bênção. Agora se começa a en-tender para onde vão todos aqueles cor-tejos que convergem para portas, ves-tíbulos e corredores de acesso: quanto

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mais nos aproximamos do centro do po-der, mais se passa do mastodôntico aominúsculo, ao sutil, à abstração, ao va-

zio. Talvez este palácio seja a utopia doImpério perfeito: uma grande caixa va-zia para acolher as sombras do mundo,um desle de guras de perl, planas,

sem espessura, em volta de um trono va-zio e sem peso.

Outras cenas superpovoadas surgem

a poucos quilômetros dali, numa íngre-me parede rochosa na garganta deNaqsh-i-Rustam, mas aqui são batalhascom cavalos que pisoteiam inimigos

apeados, armaduras ameaçadoras deguerreiros alinhados no campo, prisio-neiros feitos escravos carregando pesos,triunfos e divisão do butim. Foram os

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reis sassânidas que mandaram esculpirestas rochas para celebrar as próprias vi-tórias, mais de quinhentos anos depois

da destruição de Persépolis, imediata-mente abaixo das tumbas de seus an-tigos antepassados aquemênidas: Dario, Xerxes, Artaxerxes, Dario II, todos sepul-

tados atrás de quatro severas fachadascomo de palácios, esculpidas sobre umalto degrau da encosta. A solene, absor-ta majestade de Persépolis desapareceu:

aqui predomina o orgulho, a beligerân-cia, a armação da própria superiorida-de sobre o inimigo, a exibição da opu-lência. Uma humanidade a cavalo que

perpetua as próprias jornadas: a epopeiados ataques a galope, a apoteose da re-aleza equestre, o estrondo das trombe-tas, a nuvem de poeira e o ribombo dos

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cascos no solo — tudo isso está regis-trado nas formas que aoram da rocha.Um elegante Shapur   I coberto de fran-

jas e adereços ergue o braço e a espadamontado na sela de um robusto cavaloa cujos pés se ajoelha o vencido Valeri-ano, imperador dos romanos, de braços

estendidos e trêmulos, o olhar arrasado. Antes ainda, Ahura Mazda em pessoa dáa Ardeshir   I o diadema da investidura,do qual pendem tas compridas e nas.

Pela primeira vez o deus é visível: e éum cavaleiro da mesma estatura do reisassânida, trajado com igual esplendor,montado num cavalo igualmente forte.

Na volta, meu caminho se cruza como de uma tribo de nômades em marcha.Mulheres descalças de vestidos coloridos

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tangem com gritos e bastonadas umala de asnos. Na garupa dos animais se-guem em equilíbrio uma galinha, um ca-

chorro, um carneiro atravessado; outroscarregam alforjes de cujas bocas despon-tam cordeirinhos e bebês recém-nasci-dos. O último burrico arranca levando

na garupa uma velha bruxa aos gritos,sentada de viés, com um bastão na mão:toda a energia motriz que empurra a ca-ravana parece emanar dessa velha. Se-

gue um rebanho de cabras, depois umamanada de camelos; um camelinhobranco e alvo trota entre as patas damãe. O cortejo se dirige a um acampa-

mento de tendas negras. É a estação emque as tribos dessas populações nôma-des, de língua turca, atravessam as este-pes do Fars; depois de passarem o inver-

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no nas margens do golfo Pérsico, rumamcomo todos os anos em direção ao Cás-pio. Os homens, à diferença das mulhe-

res, estão vestidos com trajes urbanos;esperam na soleira das tendas, saúdamos estrangeiros com um Salam! e os con- vidam a beber chá. Com a chegada de

estranhos, algumas mulheres escondemo rosto e riem no branco e preto dosolhos; uma delas despeja água de umodre de pele de cabra; uma outra em-

pasta a farinha. No chão se espalham osfamosos tapetes tecidos em seus teares.Há séculos os nômades percorrem essesáridos territórios entre o golfo Pérsico e

o Cáspio sem deixar vestígios atrás de sialém das pegadas na poeira.

Num mesmo dia não z mais que en-contrar em meu caminho multidões hu-

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manas em marcha: las de pessoas xa-das para sempre na rocha e outras -las que se deslocavam em trânsito per-

pétuo. Ambas habitam espaços diversosdo nosso: umas se incorporam ao com-pacto mundo mineral, outras aoram oslugares ignorando os nomes da geogra-

a e da história, percorrendo itineráriosnão assinalados nos mapas, como as mi-grações dos pássaros. Se eu tivesse deescolher entre os dois modos de ser, de-

 veria avaliar demoradamente os prós eos contras: viver em função do sinal in-delével a ser marcado, transformando-sena própria gura gravada na página de

pedra, ou viver se identicando com ociclo das estações, com o crescimentoda relva e dos arbustos, com o ritmodos anos que não pode deter-se porque

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segue a rotação do sol e das estrelas.Num caso e no outro, é da morte quese quer escapar. Num caso e no outro,

é a imutabilidade que se quer alcançar.Para uns, a morte pode ser aceita desdeque se salve o momento da vida quedurará para sempre no tempo uniforme

da pedra; para outros, a morte desapare-ce no tempo cíclico e no eterno repetir-se dos signos zodiacais. Em ambos oscasos, algo me detém; não encontro o

 vão em que poderia introduzir-me paraacomodar-me na la. Somente um pen-samento me faz sentir à vontade: os ta-petes. É na tessitura dos tapetes que os

nômades depositam sua sapiência: obje-tos variegados e leves que se estendemsobre o chão nu onde quer que se parepara passar a noite e que de manhã são

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enrolados e levados juntos com todos osoutros pertences sobre a corcova dos ca-melos.

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 NOTA

 Advertência

 A primeira edição de Coleção de areia foi publicada pela Editora Garzantiem 1984 e terminava com esta  Nota re-digida por Italo Calvino, mas não assina-da:

Os escritos contidos nas partes 1, 2e 3 foram todos publicados no diário La Repubblica entre os anos de 1980 e1984, com exceção dos seguintes: “Co-leção de areia”, em Corriere della Sera,25 de junho de 1974; “Como era novo o

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Novo Mundo”, comentário oral para umatransmissão da RAI-TV , em dezembro de1976; e “A enciclopédia de um visioná-

rio”, em FMR , n. 1, março de 1982. A parte 4,  A forma do tempo, reúne

páginas sobre o Japão e o México es-critas em 1976, em parte publicadas no

Corriere della Sera e em parte inéditas, epáginas sobre o Irã, inéditas, a partir deapontamentos de uma viagem feita em1975.

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Copyright © 2002 by Espólio de Italo Calvino

Todos os direitos reservados

Graa atualizada segundo o Acordo Ortográco

da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vi-

 gor no Brasil em 2009.

Título original:

Collezione di sabbia

Capa:

 Raul Loureiro

Preparação:

Silvia Massimini Felix 

Revisão:

 Huendel Viana

Camila Saraiva

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 Arquivo ePub:

Simplíssimo Livros 

ISBN 978-85-8086-303-1

Todos os direitos desta edição reservados à