isso nao e um violino

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  • 1

  • 2RODERICK SANTOS

    Isso no um violino?Usos e sentidos contemporneos

    da rabeca no Nordeste

    Natal, 2011

  • 3Todos os direitos reservados

    Diviso de Servios Tcnicos. Catalogao da publicao na fonte. Biblioteca Sebastio Fernandes (BSF) IFRN

    DIAGRAMAO E CAPACharles Bamam Medeiros de Souza

    CONTATOSEditora do IFRN

    Rua Dr. Nilo Bezerra Ramalho, 1692, Tirol. CEP: 59015-300 Natal-RN. Fone: (84) 4005-0763

    Email: [email protected]

    S237i Santos, Roderick. Isso no um violino? : usos e sentidos contemporneos da rabeca no Nordeste / Roderick Santos. Natal : IFRN, 2011. 123p. : il.

    ISBN 978-85-89571-99-9

    1. Instrumento musical - Rabeca. 2. Rabeca Processo de fabricao. 3. Rabeca e violino Estudo comparativo. 4. Rabeca no Nordeste. I. Ttulo.

    CDU 780.6

    Presidenta da Repblica Dilma Rousseff

    Ministro da Educao Fernando Haddad

    Secretrio de Educao Profissional e Tecnolgica

    Eliezer Moreira Pacheco

    Instituto Federal de Educao, Cincia e Tecnologia do Rio Grande do Norte

    Reitor Belchior de Oliveira Rocha

    Pr-Reitor de Pesquisa e Inovao Jos Yvan Pereira Leite

    Coordenador da Editora do IFRN Paulo Pereira da Silva

    Conselho Editorial Samir Cristino de Souza (Presidente)Andr Luiz Calado de ArajoDante Henrique MouraJernimo Pereira dos SantosJos Yvan Pereira LeiteValdenildo Pedro da Silva

  • 4Ao Sujeito que inventou a rabeca

  • 5Dividindo a dor

    Na calada do mercado, No pingo do meio dia, No ombro magro do cego, Uma rebeca gemia, Sentindo tambm um pouco, Da dor que o cego sentia.

    Antnio Francisco

  • 6Sumrio PREFCIO 9

    AGRADECIMENTOS 11

    INTRODUO 13

    Sobre a pesquisa 15

    1 CONSIDERAES HISTRICAS 19

    2 O QUE UMA RABECA 31

    A rabeca-violino 41 O violino-rabeca 44

    3 A CONEXO: UMA EXPERINCIA NO ENSINO COLETIVO DA RABECA 53

    O contedo do ensino 55 A prtica 57 Os eventos do Conexo Rabeca e a Escola de Luteria 68

    4 O CONSTRUTOR DE RABECAS: DESCRIO DO PROCESSO DE CONSTRUO 79 DAS RABECAS DE JANILDO

    Fazendo uma rabeca-violino 82 As Rabecas de Fernando 89

    5 A PERCEPO DA RABECA: ESTUDO COMPARATIVO ENTRE A SONORIDADE 93 DO VIOLINO E DA RABECA UTILIZANDO A ESCALA VAS EM SITUAO CONTROLADA

    Entrevistas 94 Procedimentos e experimentos 96 Resultados 101

    CONSIDERAES FINAIS 103

  • 7 SUPLEMENTO 107

    REFERNCIAS 111

    DISCOGRAFIA CONSULTADA 117

    LISTA DE ILUSTRAES 119

  • 8PREFCIO

    Em meados dos anos 1980, muitos acreditavam que a rabeca era um instrumento praticamente extinto no Brasil. Havia referncias em livros de folclore e musicologia, sabia-se de um ou outro tocador j bem velhinho, como o Cego Oliveira no Cear. Mas no se tinha conhecimento de manifestaes musicais em pleno vigor, onde a rabeca ainda desempenhasse papel importante, nem de gente moa que estivesse tocando ou aprendendo a tocar o instrumento.

    A partir dos anos 1990, a situao comeou a mudar. Naquela dcada, talvez tenham sido msicos pernambucanos os primeiros a recolocar a rabeca em ampla circulao, atravs de espetculos e CDs: o multiartista Antnio Nbrega com seus solos Brincante e Figural, Siba Veloso com o grupo Mestre Ambrsio, e Manoel Salustiano, o Mestre Salu, com seu grupo O sonho da rabeca.

    Mas isso era apenas a ponta do iceberg. Com o retorno das chamadas culturas populares esfera pblica, tendncia que se acentuou nos anos 2000, fomos, aos poucos percebendo que, margem dos conservatrios e da indstria cultural, havia um mundo de rabecas por descobrir. No Paran, em So Paulo, no Par, no Cear, em Alagoas, na Paraba e no Rio Grande do Norte (entre outros estados), tocadores, construtores e apreciadores de rabeca foram, desde ento, saindo do anonimato.

    O trabalho de Roderick Fonseca dos Santos, originalmente uma dissertao de mestrado apresentada em 2011 ao Programa de Ps-Graduao em Msica da Universidade Federal da Paraba, se insere nesse quadro de descobertas, trazendo importantes contribuies para o conhecimento da situao atual da rabeca na regio Nordeste, com um foco especial no Rio Grande do Norte. Gostaria de chamar a ateno para trs dessas contribuies.

    A primeira mostrar que, apesar de no existir uma padronizao oficial do formato e das caractersticas organolgicas da rabeca, a grande maioria dos modelos, hoje, empregados na regio Nordeste apresenta marcada semelhana com o violino (o autor prope chamar esses

  • 9modelos de rabecas-violinos). Essa semelhana vai ao ponto de muitos rabequeiros estarem optando hoje por tocar diretamente em violinos, estando hoje disponveis no mercado vrios modelos baratos desse instrumento mesmo se continuam tocando repertrio de rabecas, com tcnica de rabequeiros (Roderick prope falar, nestes casos, de violinos-rabeca).

    A segunda a descrio que faz das maneiras como a rabeca vem sendo utilizada em contextos culturais distintos daqueles em que era empregada at o final do sculo passado. Oficinas para ensino coletivo de rabecas (e de tcnicas em sua construo), orquestras de rabecas (com suplementos de pfanos e berimbaus!), rabecas com captadores eletrnicos para amplificao so alguns exemplos de como as novas geraes, em Natal e alhures, esto se apropriando desse instrumento e dialogando com ele.

    Finalmente, Roderick realizou um interessante experimento de percepo e do que poderamos chamar de semntica musical, para verificar como um grupo de jovens potiguares reage ao estmulo sonoro da rabeca, comparado ao do violino. Descobriu que, mesmo sem saber se o som escutado vinha de uma rabeca, de um violino, ou do qu, seus estudantes do Instituto Federal de Educao, Cincia e Tecnologia do Rio Grande do Norte, tenderam a associar qualificativos como spero a sons produzidos numa rabeca, e suave queles tocados num violino, sem que tais qualificativos fossem associados necessariamente a julgamentos de valor (afinal, todos sabem que os experts em vinho consideram os vinhos ditos suaves como de qualidade muito inferior!)

    Por essas e outras contribuies, e os ricos debates suscitados, o livro que o leitor tem agora em mos merece a ateno de todos os que se interessam pelas manifestaes musicais populares brasileiras e as mltiplas transformaes pelas quais esto passando atualmente.

    Carlos SandroniOutubro de 2011

  • 10

    AGRADECIMENTOS

    Este livro o resultado de uma pesquisa de dois anos, tendo sido primeiramente apresentado no formato de dissertao, intitulada Cinco abordagens sobre a identidade da rabeca. Agora, com os devidos ajustes, Isso no um violino? Usos e sentidos contemporneos da rabeca no nordeste se destina a todos aqueles que amam, admiram, tocam e fazem rabecas. Mas tambm aos intrpidos pesquisadores por este Brasil afora.

    Ao luthier Janildo Dantas do Nascimento, a quem o quarto captulo foi dedicado o meu muitssimo obrigado. Ao honorvel poeta Antnio Francisco e ao habilidoso Fernando Pereira, pelos pertinentes desenhos, sem os quais este trabalho estaria incompleto. Agradeo com o corao de amigo. Ao professor Carlos Sandroni pelas valorosas observaes e subttulo da obra. Ao IFRN pelo incentivo e apoio pesquisa. s turmas de Eletromecnica e Geologia, participantes do experimento de percepo descrito no ltimo captulo. diretoria do Projeto Felipe Camaro que me recebeu de braos abertos e sem restries, bem como seus professores e alunos. A todos os msicos e rabequeiros com os quais estive, pois, sem eles, este trabalho no teria se materializado. A minha esposa de quem recebi ininterrupto incentivo e, finalmente, aos colegas e amigos que sempre acreditaram neste trabalho.

  • 11

    INTRODUO

    Em 1979, quando optei pela formao acadmica em Educao Artstica com habilitao especfica em msica, no me havia apercebido da amplitude de um estudo da msica alm da linguagem e estruturao musical, e at onde isso poderia me conduzir. As publicaes sobre folclore musical1 a que tive acesso, nesse perodo efmero da graduao, no abordavam a msica numa perspectiva mais ampla. Tampouco havia estudos sobre a tcnica de se tocar instrumentos tradicionais brasileiros, assunto pelo qual eu tinha particular interesse. Contudo, foi nesse tempo quando ouvi, pela primeira vez, a palavra etnomusicologia.

    Outros temas com os quais travei contato, na poca, foram o cordel e a arte popular. Cheguei a adquirir uma coleo completa de documentos sonoros gravados em disco compacto pelo Ministrio da Educao e Cultura. Dessa coleo musical, um exemplar tinha um especial significado para mim: o da Nau Catarineta, da localidade de Cabedelo-PB, pois a capa estampava Tio Chico, membro da minha famlia por parte de me. Tio Chico havia me fornecido versos da Nau Catarineta para uma apresentao do Grupo de Escoteiros do Mar Almirante Barroso, do qual eu fiz parte. Isso correu no ano de 1969.

    No me recordo de haver estudado durante a graduao assuntos musicais mais especficos da cultura popular, tais como: escalas, tonalidade, ritmos, execuo e manufatura de instrumentos populares. O meu conhecimento sobre o folclore brasileiro, at ento, ficara por conta das publicaes de Mrio de Andrade, Oneida Alvarenga, Cmara Cascudo e do meu costume de ir aos acontecimentos folclricos.

    Esse quadro de informaes musicais havia comeado, em 1975, quando entrei para um conservatrio de msica clssica, onde foi fcil perceber que a msica popular recebia uma importncia menor, embora fosse apreciada e at elogiada. No era msica sria, de concerto, e, na hora de tocar, a preferncia sempre foi dada a alguma pea clssica, mesmo que fosse um minueto simplrio. Muitos colegas abandonaram a escola em busca de horizontes mais criativos nesse tempo. Sabia-se que

    1 Expresso corrente na poca para msica de tradio oral.

  • 12

    a grande maioria dos msicos brasileiros, at ento, tinham sua formao musical adquirida espontaneamente, e que o sucesso da msica brasileira, inclusive no exterior, no dependia de formao acadmica. O fato que, na dcada de setenta, no havia na cidade de Joo Pessoa, escolas de msica oficiais que oferecessem aos estudantes uma formao acadmica em msica popular. Mesmo assim, foi uma poca prdiga para a msica paraibana e nordestina2.

    Em 1988, abdiquei do cargo de segundo violinista da Orquestra Sinfnica do Rio Grande do Norte; trs anos mais tarde, ingressava na Academia de Msica da Cidade de Kassel, Alemanha, l permanecendo trs anos e quatro meses. Admirador e praticante da msica europeia antiga, a sonoridade dos instrumentos de corda do renascimento era, para mim, meditativa e tranquilizadora. A rabeca nordestina me proporcionava a mesma sensao, melanclica e relaxante.

    Durante a minha estada na Europa, convivi com msicos de diversos pases. Esse fato foi determinante para a consolidao do meu caminho at a Etnomusicologia. Alguns estudantes, como eu, custeavam parte dos seus estudos fazendo pequenos shows nos parques, praas e metrs das cidades alems, s vezes, ao lado de artistas profissionais de rua. Essas apresentaes eram, muitas vezes, pura expresso musical das regies de origem daqueles trovadores mambembes: turcos, curdos, africanos, latino-americanos e, principalmente, eslavos vindos da ex-Cortina de Ferro.

    Aos poucos, fui convencido de que o meu caminho seria mesmo a antropologia da msica. Decidi, ento, que o sentido dos meus estudos, naquele pas, havia terminado, no era mais a austeridade hierrquica da msica erudita europeia como antes fora. Mas o desafiador e ainda pouco explorado mundo sonoro da Terra de Santa Cruz.

    2 Ctia de Frana, Fagner, Aleu Valena, Elba e Z Ramalho, so exemplos de frutos musicais que tiveram ascenso e reconhecimento nesse perodo.

  • 13

    Sobre a pesquisa

    A abordagem central desta pesquisa a rabeca no Nordeste. O primeiro captulo traz breves referncias histricas sobre a rabeca a respeito do seu passado remoto. No segundo captulo, considera-se que h um tipo de rabeca brasileira3 com caractersticas visuais marcantes e de grande incidncia no Nordeste brasileiro, sendo tambm encontrada em outras regies do pas. Rabecas desse tipo, apesar de variarem em tamanho, mantm caractersticas visuais comuns. As rabecas tm sido caracterizadas como um instrumento sem padres de construo, que cada um faz como quer. Entretanto pode-se apontar caractersticas visuais e no processo de construo, comuns a certos instrumentos, no encontradas em outros modelos de rabecas. A abrangncia deste estudo limita-se aos estados de Pernambuco, Paraba, Rio Grande do Norte e Cear. Concentra-se no tipo mais popular de rabeca brasileira encontrada no Nordeste. Para efeito de melhor caracterizao, denominada nesta pesquisa, de rabeca-violino devido a sua semelhana a este. Nessas regies, tambm notvel a incidncia do que neste trabalho chamarei de violino-rabeca, designando instrumentos que, embora tenham nascido violinos, so utilizados na msica de tradio oral brasileira recebendo modificaes feitas pelos prprios rabequeiros adequando-se msica destes. Em consequncia, assumiram caractersticas estticas particulares como mais adiante ser visto.

    O terceiro captulo aborda o ensino coletivo da rabeca no projeto Conexo Felipe Camaro, na cidade de Natal-RN. Este estudo foi motivado pela iniciativa pioneira do projeto, no estado do Rio Grande do Norte, em ensinar rabeca coletivamente atravs da transmisso oral. Parte dos alunos do projeto constitui um grupo musical denominado Conexo Rabeca. O quarto captulo descreve o processo de construo de uma rabeca violino do luthier Janildo e menciona o recente trabalho de luteria do arteso de rabecas, o paraibano Fernando Antnio de Souza.

    Por fim, o quinto e ltimo aspecto abordado na pesquisa envolve a percepo da sonoridade da rabeca constatando-se que h adjetivos

    3 Neste estudo, a expresso rabeca brasileira refere-se s rabecas utilizadas nos folguedos, romarias, cantigas de cego e outras manifestaes do folclore brasileiro essas rabecas tm sido, nas duas ltimas dcadas, introduzidas na chamada msica popular, profissionalizada.

  • 14

    mencionados pelo senso comum para a caracterizao do som das rabecas. Essa seo apresenta resultados de um experimento feito, apenas, com sons de cordas soltas de um violino e uma rabeca, no qual os ouvintes, sem tomarem conhecimento das fontes sonoras, declaram como ouvem a sonoridade dos instrumentos, sem conhecer a provenincia dos sons, respondendo a um questionrio. Inicialmente, houve a inteno de submeter o resultado desse experimento de percepo a uma anlise acstica, com o objetivo de verificar quais frequncias ou elementos fsicos foram determinantes no resultado final apresentado em tabelas. Intempries, somadas ao esguio prazo para a finalizao do trabalho, tornaram invivel o acrscimo de mais um captulo.

    Muitos atributos utilizados na caracterizao da rabeca pelo senso comum, tais como rusticidade da forma e impureza sonora, nem sempre so vistos pelos rabequeiros, msicos e admiradores do instrumento como defeitos, mas como valores singulares, importantes para afirmao da personalidade de sua msica e do instrumento.

    Neste trabalho, utilizou-se a palavra rabequeiro devido ao fato de o termo ser mais usual nas regies de abrangncia desta pesquisa, e entre os prprios praticantes do instrumento. O termo rabequista, porm foi mantido em alguns contextos, como nas referncias e comentrios obra A Rabequista rabe, de Pedro Amrico.

    Seguem, apenas, dois exemplos desses usos, extrados de publicaes diversas.

    Em 2009, o Dirio do Nordeste-CE trouxe uma notcia a respeito da morte do Cego Oliveira. A primeira pgina estampava:

    Regional Morre o rabequista Jos Oliveira Dirio do Nordeste 28 nov. 2009. [A palavra rabequeiro aparece mais frente no texto entre aspas como se fosse um apelido] J o radialista Joo Rodrigues Menezes destaca que o Z Oliveira foi um dos maiores referenciais da cultura carirense. dele a ltima foto do rabequeiro que divulgou o nome de Juazeiro.

    Em seu estudo de caso sobre a utilizao da rabeca no Fandango Caiara, Daniela Gramani escreve quarenta vezes a palavra rabequista

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    e trinta e seis vezes a palavra rabequeiro, o que demonstra a plena utilizao de ambos os vocbulos. O subttulo da dissertao comea apresentando o vocbulo rabequista pela primeira vez em seu trabalho O Aprendizado e a Prtica da Rabeca no Fandango Caiara: estudo de caso com os rabequistas da famlia Pereira da comunidade do Ariri (GRAMANI, 2009). Em um trecho mais adiante: Atrs da sonoridade que ouvia dos rabequeiros tradicionais e daquela que me agradava, comecei a tocar rabeca, feliz! (GRAMANI, 2009, p. 14).

  • 16

  • 17

    1 CONSIDERAES HISTRICAS

    Osrio Gonalves da Silva nasceu em So Mamede-PB, em 15 de setembro de 1922, filho de Jos Gonalves da Silva e de dona Maria Balbina de Oliveira. Em 1980, Osrio produziu este violino rstico, isto no diz muita coisa, se Osrio no fosse um simples agricultor. Sem nenhuma instruo, nunca saiu de So Mamede, no tinha formao musical, no conhecia o violino. Mas um dia viu a foto de um, num dia numa feira em So Mamede. Era agricultor e s vinha rua nos dias de feira. Nesse dia, Osrio viu um papel rolando pela rua, apanhou-o, e ficou maravilhado, segundo ele disse, com a coisa mais bonita do mundo, a foto de um violino. Em seguida, fez esta obra. Figura 14.

    FIGURA 1 Osrio e seu violino. So Mamede PB4

    O texto mencionado, escrito pelo jornalista Mrio Bento de Morais, foi encontrado em um folheto ao lado da rabeca de Osrio Gonalves em exposio no Festival Nacional de Arte, Joo Pessoa PB, edio 2010. Tomando como base esse pequeno texto, pode-se sugerir a seguinte pergunta: teria a rabeca como conhecida no Nordeste sua origem tambm relacionada a criaes da Arte Naif ou Popular? O que

    4 Com exceo das figuras: 2, 3, 5, 6, 7, 8, 21, 29, 30 e 41, todas as fotografias so creditadas a Roderick

    Santos.

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    se convencionou chamar arte popular refere-se arte produzida por artistas no-eruditos, a partir de temas populares geralmente inspirados no meio rural. J quando o tema urbano, costuma-se utilizar o termo nave ("ingnuo", em francs), que se pronuncia "naf" O artista popular e msico, mestre Vitalino (1909-1963) de Caruaru5, foi um desses artistas que interpretaram o mundo rural atravs do seu imaginrio.

    possvel que Osrio jamais tenha visto, at ento, uma rabeca, mas foi o que ele construiu: uma rabeca com o brao de mangueira o fundo de cedro, testo6 de pinho e a borda de pinho. Casos como o de Osrio so frequentes na arte popular. Contudo, identificar e apontar origens primrias e secundrias da rabeca no Brasil no to simples assim.

    A inveno da rabeca repousa em relativa obscuridade, pois no h, na documentao histrica, uma trajetria clara sobre o caminho percorrido por esse instrumento. O que se tem descrito que a rabeca chegou ao Brasil com os colonizadores portugueses e espanhis, tendo permanecido ligada s prticas musicais de comunidades afastadas do processo de industrializao e da educao formal. As rabecas a que me refiro possuem estreitas semelhanas visuais entre si e com os cordofones tpicos da orquestra ocidental. Em linhas gerais, sua forma geomtrica assemelha-se das violas, violinos, violoncelos e contrabaixos, podendo ser visualmente confundida com os dois primeiros. Embora no se possa afirmar com preciso a trajetria percorrida por essas rabecas que circulam no Nordeste do Brasil, sabe-se que esses instrumentos tm razes na Europa e mais remotamente no mundo rabe. Por essa razo, persiste a hiptese em relacionar sua origem s mesmas fontes que geraram as antigas violas e violinos europeus, j que a visvel semelhana desses instrumentos com as rabecas que estamos em pesquisa um ponto inquestionvel. No entanto, no transcurso da investigao, no foi encontrado nenhum exemplar do sculo XVI ou XVII em museu ou na mo de colecionadores que pudesse atestar, com veemncia, a forma desses instrumentos no alvorecer da colonizao. Sobre a existncia de rabecas no folclore portugus, Ernesto Veiga de Oliveira comenta:

    5 Parte de sua obra pode ser contemplada no Museu do Louvre, em Paris, na Frana. No Brasil, a maior parte est nos museus Casa do Pontal e Chcara do Cu, Rio de Janeiro; no Acervo Museolgico da UFPE, em Recife; e em Alto do Moura.

    6 O mesmo que tampo do instrumento na linguagem popular.

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    As rabecas j esto h muito desaparecidas no mundo ibrico (exceto nas montanhas de Santander, onde subsiste o rabel, de uma ou duas cordas, com que os pastores acompanham o seu canto ou s vezes certas danas) tendo sido encampadas nas prticas da msica popular pelo violino, ou por adaptaes deste, como o caso da rabeca chuleira (uma espcie de violino com o brao encurtado, que permite o alcance de notas extremas agudas) (OLIVEIRA, 1982, p. 226).

    A coleo do Instituto Estadual de Msica da Prssia, localizado em Berlim7, rene instrumentos musicais europeus do sculo XVI ao sculo XXI. Atualmente, o museu conta com uma coleo de 3.200 instrumentos. Em 2002, obtive acesso a vrios exemplares de instrumentos de arco dos sculos referidos, e daqueles disponveis, nenhum apresentava acabamento como o das rabecas-violino abordadas nesta pesquisa. A ausncia ou aplicao rala do verniz, cravelhas sem torneamento no dimetro, cavaletes robustos de dois a trs milmetros de espessura no ponto de contato com as cordas, so caractersticas notveis na rabeca brasileira. Embora essas caractersticas sejam corriqueiras, devem ser consideradas como referncia e no uma regra. Como ocorre com muitos fenmenos sociais, impossvel oferecer afirmaes conclusivas ou fazer julgamentos seguros sobre as alegaes e proposies tericas que esto sendo apresentadas (HALL, 2006, p. 8).

    A origem da rabeca e o desenvolvimento de sua estrutura fsica e esttica no constituem um estudo fcil. O termo rabeca tem origem no rabe8; a palavra j usada na Idade Mdia faz referncia a um instrumento de trs cordas em forma de pera. Diferente, portanto, como se ver adiante, da rabeca mais comum no Nordeste e referida neste estudo como rabeca-violino. A seguir, algumas definies genricas a respeito da rabeca:

    Rebec [rabeque] Instrumento de arco, que teve origem no sc. X, usado na msica erudita europeia, principalmente durante a Idade Mdia e o Renascimento. Havia duas

    7 Staatliches Institut Fr Musik Musikforschung Preussischer Kulturbesitz. Musikinstrumenten Museum.

    8 Arrabill (s.m.) Instrumento de cordas de frico, viola de arco introduzida na Europa pelos mouros aps o sc. VII, com nmero de cordas oscilando de 2 a 5, tambm conhecido como arrabel, ayabeba, rad, rabeb, rabil, rebab, rebeb, rabel, rabil, rebab, rebebe e vihuela de arco (ANDRADE, 1989, p. 423-424).

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    formas bsicas, periforme ou retilnea e estreita. A cravelheira9 s vezes formava um ngulo reto e mais tarde assumiu a forma de foice. As cordas variavam de uma a cinco ou mais, sendo trs o mais tpico: era geralmente afinado em quintas (SADIE, 1994, p. 768).

    O dicionrio eletrnico Houaiss da Lngua Portuguesa 1.0 (RABECA, 2009) a define como:

    Instrumento medieval precursor do violino, de trs ou quatro cordas, o corpo em forma de pera, usado para acompanhar o canto e a dana; rebeque. A partir do fim do sc. XVI (at o incio do sc. XX, em Portugal), designao do violino moderno, tipo de violino rudimentar, de timbre mais baixo, com quatro cordas de tripa afinadas, por quintas, em sol-r-l-mi.

    Citao de outro autor:

    Entre o meio e o final do sculo IX d. C., existem vrias descries de um instrumento chamado rabab h muitas formas ortogrficas da palavra, mas eu estou usando a mais simples, a grafia mais moderna em terras rabes. Infelizmente, no h indcios que algum exemplar tenha sobrevivido at hoje, o islamismo probe representaes do mundo real, ento a nica prova existente no literrio contemporneo. Felizmente, a evidncia literria nos d algumas descries muito pormenorizadas sobre a forma e o mtodo de tocar o instrumento. Ibn Khaldun10 escreve em Muqaddimah (Introduo Histria) uma passagem em que descreve um instrumento chamado 'rabab', que era curvado por uma corda friccionada com resina ligada a um eixo inclinado (THE REBEC..., 2003).

    Com um processo de construo mais rpido que os seus parentes violinos11, a rabeca mais comum nos estados da Paraba, Pernambuco, Rio

    9 O mesmo que cravelha, parte da rabeca usada para prender e apertar as cordas.

    10 Polmata rabe nascido em 1332. considerado o precursor de vrias disciplinas cientficas sociais.

    11 Osrio fabricou a sua primeira rabeca em 48 horas segundo ele mesmo, detalhe na Figura 1. O luthier Janildo reafirma as mesmas 48 horas para fabricar uma.

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    Grande do Norte e Cear e alvo desta pesquisa, ser denominada, daqui por diante, conforme mencionado, de rabeca-violino. As caractersticas organolgicas que justificam essa denominao, por serem comuns a essas rabecas e aos violinos, so: quatro cordas e cravelhas, voluta, efs12, desenho baseado em um molde de violino tendo, em sua construo, partes separadas: tampo, fundo e faixas laterais como os violinos. Diferente das rabecas de cocho,13 das rabecas de cabaa e das rabecas piriforme medievais. (Figura 2, 3 e 4).

    FIGURA 2 Rabecas de cabaa Luthier Francisco Ferreira de Freitas CEFonte: Amendola (2008)

    12 As duas aberturas no tampo do violino, com o fim de melhorar propagao do som.

    13 A caixa harmnica das rabecas de cocho constituida de uma s pea.

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    FIGURA 3 esquerda: rabeca medieval em forma de pera; direita, um violino moderno.

    Fonte: The Rebec Projetct (2003)

    FIGURA 4 Rabeca de luthier desconhecido (2011)

    Cristina Perazzo da Nbrega fez a seguinte citao sobre a rabeca em sua dissertao de mestrado A Rabeca no Cavalo Marinho de Bayeux, Paraba:

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    Apresenta-se hoje mais prxima do violino atual, porm possui tcnicas de construo diferenciadas e inmeras variaes nas diversas regies em que utilizada. Tambm no possui afinao padronizada e nem um nmero fixo de cordas, porm atualmente no Nordeste do Brasil s encontrei registros de rabecas de quatro cordas afinadas em quintas (NBREGA, 1998, p. 5).

    Os violinos j foram chamados de rabecas no Brasil. Cristina Perazzo apresenta uma citao a esse respeito: No Brasil, a designao rabeca foi aplicada tambm ao violino at princpios do sculo XIX. encontrada nas partituras de Jos Maurcio e de outros compositores seus contemporneos (NBREGA, 1998, p. 5). Esse fato tambm encontra apoio na obra do renomado pintor Pedro Amrico14, A Rabequista rabe (Figura 5), na qual a rabequista tange um violino ou talvez uma viola de orquestra e a segura com uma postura incomum para tocar esses instrumentos da orquestra ocidental. Mas muito semelhante a um tocador de Kemene ou uma Gadulka15. O quadro traduz o ideal romntico do seu tempo, portanto mais ideal do que real. A imagem mostra o instrumento apoiado sobre uma mesa ou almofada em uma incmoda posio para ser tocado. De qualquer forma, o quadro e sua denominao reiteram a denominao de rabeca para um violino. Outro exemplo a obra do pintor Jos Rodrigues,16 O Cego Rabequista (Figura 6). Nessa tela, a postura semelhante dos violinistas atuais e de alguns rabequeiros tambm. V-se, ento, que a denominao de rabequista ou rabeca pode perfeitamente ter sido atribuda a tocadores de violino e ao prprio instrumento. Mrio de Andrade a chamou de violino do povo: Rabeca como chamam ao violino os homens do povo no Brasil. Nas classes cultas, voz que no se escuta mais. Desde a vulgarizao do instrumento, pelo segundo quarto do sculo XIX, o chamaram de rabeca entre ns (RABECA, 1999, p. 423). No raro encontrar entre o senso comum e mesmo no meio musical acadmico, pessoas que apontem a rabeca como o av do violino. A rabeca-violino encontrada no Nordeste , visualmente,

    14 Pintor paraibano do sculo XIX. Sua obra mais conhecida Independncia ou Morte, hoje no Museu do

    15 Instrumentos tradicionais da Bulgria.

    16 Jos Rodrigues de Carvalho: Pintor romntico portugus sua obra mais famosa: O Cego Rabequista.

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    mais aparentada com os violinos e violas modernos do que com a rabeca medieval piriforme (Figura 3), da qual se afirma sua derivao. H tambm outros instrumentos dos quais a rabeca pode ter adquirido sua forma: a lira da braccio e o fidels. Esse ltimo constitui um tipo de violino popular, conforme a (Figura 7, 8).

    FIGURA 5 A rabequista rabe. 87.6 60 cm (34.49 23.62)Fonte: MUSEU Nacional de Belas Artes (2010)

    FIGURA 6 O Cego Rabequista leo sobre tela 170 x122 cm. Fonte: Museu Nacional de Arte Contempornea (2010)

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    FIGURA 7 Lyvesberger Fidels Fonte: Munich (2010)

    A respeito de como ocorreu o processo das transformaes de instrumentos antigos em rabecas e violinos, Toby Faber17 tece o seguinte comentrio:

    No fim do sculo XV, havia apenas instrumentos primitivos, adequados para a msica de dana ou para o acompanhamento de vozes, mas no para desfiar suas prprias melodias. Por volta de 1535, Gaudenzio Ferrari pintava no teto da catedral de Saronno no s violinos (ou talvez um tipo de instrumento que hoje consideraramos como violas) como tambm um violoncelo, embora em ambos os casos houvesse apenas trs cordas. Os grandes passos inovadores haviam sido dados provavelmente por uma oficina que atendia s cortes de Mntua e Ferrara, no norte da Itlia, combinando o cravelhal da Rebec, instrumento de origem moura aparentado ao alade, com a caixa de ressonncia da lira da braccio, (Figura

    17 Autor do livro Stradivarius, um Violoncelo, Cinco Violinos e um Gnio.

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    8) ela prpria um desdobramento da rabeca renascentista. Embora no possa ter sido o inventor do violino, foi com sua delicadeza e seu cuidado com os princpios geomtricos que Andrea Amati abriu caminho para os que viriam depois; todos os elementos da forma e da funo do instrumento so encontrados naquele violino de 1564 (FABER, 2006, p. 30).

    FIGURA 8 Lira da braccio by Francesco Linarol Venice, 1563. Fonte: National Music Museum (1988)

    O violino uma contribuio do alto Renascimento, resultado de um processo evolutivo, mais do que um momento de inspirao. O mais antigo violino de que se tem notcia provm do ano de 156418, contudo a luteria violinstica j vinha sendo forjada, pelo menos, meio sculantes. No h garantia de que as rabecas tenham aportado no Brasil na forma daquele primognito violino de Amati. Ademais, no difcil imaginar que outros instrumentos de corda e arco europeus tambm tenham aqui

    18 O violino mais antigo do mundo que se tem notcia, foi fabricado por Andrea Amati, por encomenda de Carlos IX. Encontra-se no Ashmolean Museum de Oxford.

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    aportado, tendo oferecido sua contribuio para o desenvolvimento da rabeca brasileira, a exemplo das violas de brao, e porque no a rabeca piriforme. Cristina Perazzo da Nbrega refere-se, em sua dissertao supracitada, a um pequeno trecho em que o Arrabil aparece em terras brasileiras:

    O primeiro registro que encontrei de algum instrumento semelhante no Brasil foi o do capito espanhol Francisco de Orellana, encarregado do descobrimento e povoamento das terras americanas, tendo visto na regio amaznica no ano de 1541 em uma tribo, pessoas tocando alguns instrumentos, como explica Alonso Carvajal sobre a referida expedio: Vinham fazendo enorme algazarra, tocando muitos tambores e trombetas de pau. [...] traziam muitas trombetas, tambor e rgos que tocam com a boca e arrabis de trs cordas [grifo nosso] (Carvajal in Camu, 1977:22). Camu comenta que os rgos que tocavam com a boca provavelmente seriam flautas de p, instrumento muito difundido entre comunidades indgenas brasileiras, mas estranha a presena do arrabil. O rabil ou arrabil um dos inmeros instrumentos variantes do rababe rabe, podendo ser at o prprio rabab, pois como j foi explicado, a nomenclatura destes instrumentos basicamente confusa, principalmente pelas modificaes que as palavras sofreram em vrias lnguas, porm sabe-se que todos so antecessores do violino atual (NBREGA, 1998, p.7).

    Nesse contexto de incerteza histrica sobre as origens remotas das rabecas no Brasil, seria mais razovel sugerir que os dois instrumentos o violino e a rabeca brasileira vieram das mesmas fontes quinhentistas, A rabeca adquiriu ao longo de sua existncia, personalidade como instrumento brasileiro, tendo se expandido por todo o pas. Tais dimenses ainda precisam ser mais profundamente investigadas. Determinar a origem da rabeca foge s intenes deste trabalho. As referncias histricas aqui apresentadas so importantes para orientar principalmente aquele leitor ainda pouco familiarizado com a origem da rabeca e suas transformaes, propiciando algum referencial concernente a sua origem para uma leitura mais confortvel das sees que se seguem. Com efeito, os acontecimentos do passado so imutveis, mas a sua interpretao depende do incansvel trabalho de investigao dos pesquisadores e tambm do julgamento dos leitores dos livros de Histria (GOMES, 2010, p. 23).

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    2 O QUE UMA RABECA

    A rabeca um instrumento de cordas tangidas por um arco de crina animal ou sinttica, desprovido de padres universais de construo, afinao e execuo. Na sistematizao Sachs e Hornbostel19 a rabeca pode ser classificada como um cordofone composto, por possuir uma caixa de ressonncia como parte integrante do instrumento; ao contrrio de um berimbau, que um cordofone simples, podendo ser tangido mesmo sem a caixa de ressonncia, embora com alteraes no timbre. A rabeca tambm poderia ser includa na famlia do violino, sendo uma variao popular de instrumento de corda de arco. Existem duas formas bsicas de construo: rabecas esculpidas (ditas de cocho) ou manufaturadas em partes separadas.

    Como j mencionado, as rabecas so frequentemente confundidas com violinos. Nos antecedentes desta pesquisa, pessoas me perguntavam, com frequncia sobre a diferena entre a rabeca e o violino. Essa pergunta manteve-se viva durante o processo de elaborao deste livro.

    Pesquisadores tm apontado muitas variedades de rabecas e procedimentos de construo de rabecas, o que procedente. O luthier Janildo Dantas do Nascimento, sem dvida, o mais atuante construtor de rabecas do Rio Grande do Norte na atualidade, acostumou-se a ser indagado a respeito de suas rabecas expostas em feiras e exposies: Me perguntaram: por que este violino to feinho? Na verdade, a cultura muito pouca no Rio Grande do Norte, ningum conhece a rabeca. A rabeca tem o som mais rstico e grosso, um instrumento feito pelo pessoal do mato mesmo, que no tinha condio, a rabeca o pai do violino que foi evoluindo (comunicao verbal). 20

    A rabeca brasileira vem pouco a pouco conquistando um novo espao na msica brasileira, embora, sob muitos aspectos, encontre-se ainda inexplorada ao estudo da cincia. A industrializao, o aparecimento da msica de massa, a migrao europeia do final do sculo XIX e incio do sculo XX para o Brasil possibilitaram a troca, a fuso, a criao, o declnio

    19 Publicado, pela primeira vez, no Zeitschrift fr Etnologie em 1914.

    20 Entrevista realizada na Sede do Conexo Felipe Camaro-RN, em 28/09/2010.

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    e a prtica de diversos gneros musicais em tempo acelerado. A rabeca, de certo modo, foi beneficiada com a fuso de possibilidades sonoras e estilos que caracterizam tendncias musicais das trs ltimas dcadas. As sociedades modernas so, portanto, por definio sociedades de mudana constante, rpida e permanente. Esta a principal distino entre as sociedades tradicionais e as modernas (HALL, 2006, p. 14).

    A rabeca no Brasil faz parte do grupo de instrumentos que servem predominantemente msica de tradio oral, mas existem, atualmente, outras tendncias musicais no Brasil nas quais o instrumento tem atuado: a msica pop e a chamada msica do mundo so bons exemplos. Novas geraes de rabequeiros trouxeram ateno de um pblico amplo esse cordofone at pouco tempo destinado ao esquecimento. A Orquestra de Rabecas Cego Oliveira - CE e a Orquestra de Rabecas de Pedras de Fogo-PB so outros exemplos.

    Seguindo o costume, as rabecas constituem uma grande diversidade no Brasil, h rabecas de cocho, rabecas de cabaa, rabecas de trs cordas, alm de modelos personalizados como a rabeca de lata de Luiz Costa-CE, e a rabeca do sonho de Chico Barbeiro-CE, eletrificada, confeccionada em PVC e sem caixa acstica. Os processos de fabrico so os mais diversos. A construo mais recente de rabecas em oficinas de luteria parece apontar para uma tendncia mais aparentada com os violinos, conforme se pode observar na (Figura 5). Para o professor Agostinho Lima, essas aproximaes com as medidas do violino no , por si, um indicativo direto de mudana nos procedimentos dos artesos na busca de uma aproximao ao modelo do violino.

    O que se pde constatar como fato mais importante, que as dimenses das rabecas variam conforme cada arteso, nas suas tentativas particulares de equalizao entre aspectos de sonoridade e beleza visual do instrumento. No se desconsidera que, numa troca de informao com outros segmentos culturais, alguns aspectos do modelo do violino estejam vindo a influenciar a construo de rabecas. Mudanas nos procedimentos de construo que poderiam advir de um contato maior dos rabequeiros artesos com o violino ou viola de orquestra [...] (LIMA, 2001, p. 21).

    bastante comum encontrar esse modelo de rabeca em projetos

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    destinados ao ensino coletivo do instrumento; suas dimenses tendem a aproximar-se dos violinos. O fato de essas rabecas serem produzidas em uma escala maior pode ter contribudo para tal semelhana, e tambm, para a facilitao do processo da produo. Referente popularizao do violino entre os rabequeiros, Z da Rabeca, ex- professor de rabeca do projeto Conexo Felipe Camaro, Natal/RN d o seguinte depoimento: Est havendo agora uma substituio da rabeca pelo violino, alguns mestres amigos meus preferem hoje tocar com o violino que com uma rabeca: como mestre Oliveira, mestre Ccero e mestre Geraldo. Todos a esto substituindo, pois mais fcil comprar um violino que uma rabeca, so poucos os construtores de rabecas, j que o som do violino mais limpo, eles esto indo na influncia e continua [...] Este movimento de substituio aqui no Rio Grande do Norte onde eu conheo os mestres daqui (Comunicao verbal). 21

    Na verdade, muitos mestres rabequeiros utilizam, hoje, um violino para tocar em lugar de uma rabeca tradicional. Assim, fazia o virtuose Geraldo Idalino, de Campina Grande PB, falecido, em 2007, e assim faz seu conterrneo Valdemar (Figura 9).

    FIGURA 9 Valdemar e o seu violino. Campina Grande PB (2009)

    21 Entrevista realizada no estdio de gravao do IFRN, Natal-RN em 23/04/2010.

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    FIGURA 10 Hermnio e o seu violino em apresentao com o Cavalo Marinho de Bayeux, PB (2010)

    O mestre Hermnio, de Bayeux PB (Figura 10), justifica sua preferncia pelo violino dizendo o seguinte: A tonalidade da Rabeca rouca, o violino um instrumento mais pr frente, tem mais qualidade que a rabeca e a tonalidade diferente, a rabeca tem o som mais grosso e o violino tem o som mais fino. A escala de rabeca diferente da escala de violino. Eu prefiro tocar o violino, toquei rabeca desde criana e agora comprei um violino. Agora prefiro o violino, o som mais bonito a escala mais fcil. Toco no Boi de Reis do mestre Zequinha aqui de Bayeux (comunicao verbal).22

    Isso curioso, visto que essa tendncia parece ir na contramo do renascimento da rabeca e do zelo dos novos rabequeiros em ter uma rabeca em mos para tocar, e no um violino. Janildo, luthier do RN, presta o seguinte depoimento: tanto que se voc fizer uma rabeca bem feitinha, o povo que mexe com rabeca no quer comprar a rabeca, s compra se for a tradicional mesmo. Eu vendo muito para o Recife, que l tem mais tradio, a no adianta fazer uma rabeca bonitinha (comunicao verbal)23.

    22 Entrevista realizada no Teatro Cilaio Ribeiro, Joo Pessoa-PB em 17/07/2010.

    23 Entrevista realizada na Sede do Conexo Felipe Camaro-RN em 28/09/2010.

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    Alguns dos novos artesos dispem de recursos materiais, como ferramentas de preciso, a que os rabequeiros mais antigos, isolados do mundo urbano, certamente no tiveram acesso. provvel que no fosse mesmo necessrio para a fabricao de suas rabecas do passado. Contudo, o acesso informao escolar de luteria (s vezes, informalmente) por esses novos artesos parece ter dado mais uniformidade aos instrumentos provavelmente com o fim de atender demanda das novas geraes de rabequeiros e das recentes escolas de rabeca. Algumas so projetos governamentais de incluso social; outras, de iniciativa mista e incluem outras atividades. O fato que esses novos rabequeiros do mundo pop parecem necessitar de instrumentos mais prticos e rabecas mais versteis, recorrendo a microafinadores, cravelhas macias e espelho anatmico capazes de atender s dimenses de concerto, s vezes, exigindo virtuosismo do instrumento. Deve-se, tambm, outorgar o mrito a rabequeiros como Geraldo Idalino, cujo ofcio foi exercido at os ltimos dias de sua existncia, tendo permanecido ativo numa poca, quando a prtica de tocar rabeca j estava em declneo. Foi graas a esses penltimos guerrilheiros da rabeca, que se manteve viva a tradio de tocar o instrumento.

    O luthier de instrumentos de arco Fbio Vanini24, de So Paulo, comenta que, em sua oficina costuma receber rabecas para consertos. Segundo Vanini, a constante quebra desses instrumentos deve-se ao fato de eles serem submetidos a exigncias musicais de performance para as quais no foram concebidos. Outro motivo para a quebra, aponta o luthier, que muitos desses instrumentos foram construdos sem as exigncias bsicas que um instrumento de arco dessa natureza deveria ter para fins de durabilidade. Em meu atelier, tenho contato com muitos msicos de So Paulo. So violinistas, violistas profissionais, amadores e uma gerao de msicos que se apresentam com bandas em teatros e utilizam a rabeca em vez do violino, por razes talvez cnicas ou timbrsticas para imprimir um carter diferenciado ao grupo. O que tenho observado que eles trazem esses instrumentos advindos do litoral sul e norte para serem adaptados s suas exigncias musicais. So instrumentos muito rsticos; ento tenho que adapt-los dinmica do palco. O que eu tenho que fazer, muitas vezes, ajustar a grossura do brao, pois a mo do msico , muitas vezes, bastante diferente da mo do escultor; trocar ou ajustar as

    24 Entrevista realizada na Sede do Conexo Felipe Camaro-RN em 25/03/2011.

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    cravelhas, inverter as cravelhas, e fazer enxerto que consiste em trocar o brao do instrumento mantendo a caixa de cravelhas e reforar o tampo. Uma coisa muito interessante que acontece s rabecas de um conhecido rabequeiro. Fazendo este rabecas em uma s pea, utiliza um bloco de madeira, esculpido por fora e escavado por dentro. Madeiras como fruta-po ou jaqueira que so muito moles e fceis de ser esculpidas. Alm disso, essas madeiras so trabalhadas ainda verdes; com o tempo a madeira seca em bloco como se fosse na natureza, o instrumento chega a rachar de ponta a ponta, no tampo e no fundo. Outro fator a cola de peixe utilizada por ele: trata-se de uma cola instvel e fcil de degradar-se com a variao de temperatura, provocando descolamento no instrumento (comunicao verbal).25

    Os comentrios do luthier Fbio Vanini apontam para uma nova gerao de rabecas. Elas so manufaturadas ou adaptadas especialmente para atender s novas exigncias do recente mercado da msica de rabeca (Figura 11). Talvez seja ainda muito cedo para supor que, em breve, teremos rabecas industrializadas nas lojas de msica.

    FIGURA 11 Instrumento pertencente a Claudio da Rabeca, perfeitamente adaptado s necessidades da msica de rabeca pelos novos grupos de pop regional ou de fuso regional . Microafinadores em todas as cordas, trs

    captadores sendo um Fishman condicionado ao cavalete, como se faz no violino, e cordas perfeitamente alinhadas em altura e largura. Condado, PE (2009)

    25 Informao colhida na sede do Conexo Rabeca. 21/03/20011

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    O status, atualmente, desfrutado pela rabeca recente, pois h poucas referncias anteriores dcada de 1980, apenas generalizaes ou a completa falta de informao sobre o instrumento. De fato, hoje, quando se buscam informaes sobre rabeca na internet, certamente, se vai encontrar uma quantidade considervel de referncias rabeca no Brasil embora muitas dessas informaes estejam repetidas, e outras no encontrem base cientfica ou pura fico. De qualquer modo, a constatao de referncias da rede mundial de comunicao reflete o interesse e a popularidade que a rabeca vem conquistando desde a dcada de oitenta aos dias atuais. Na dcada de setenta, as poucas referncias existentes sobre a rabeca brasileira eram restritas aos escritos de folcloristas, limitando-se a curtas passagens ou breves citaes de antigos viajantes.

    Em 1975, quando estudava msica, em um Conservatrio na capital paraibana, interessei-me por rabecas e lembro-me muito bem de que a nica forma de estudar o instrumento era entrar para um grupo de folguedo popular. A recente possibilidade de aprender a tocar rabeca em projetos culturais da iniciativa privada ou governamentais constitui um milagre para um instrumento que h, apenas, trs dcadas estava destinado ao completo esquecimento. Nesse sentido, as contribuies de Antnio Nbrega, como performer, e Eduardo Gramani no meio acadmico, representam um pioneirismo na crescente popularizao do instrumento.

    Pesquisadores brasileiros tm, nas ltimas duas dcadas, desenvolvido estudos cientficos acerca da rabeca no Brasil. Dentre eles, encontra-se a dissertao da violista paraibana Cristina Perazzo da Nbrega, um estudo de caso denominado A Rabeca no Cavalo Marinho de Bayeux Paraba (NBREGA, 1998). Outro trabalho muito interessante e tambm pioneiro em seu campo de abordagem o do pesquisador Agostinho Lima, Msica Tradicional e com Tradio da Rabeca (LIMA, 2001). Nesse trabalho, o autor estuda a msica de rabequeiros que se transferiram para a periferia das mdias e grandes cidades, em funo do xodo rural, provocado pelas crises econmicas. No menos importantes so os trabalhos de Daniela Gramani e Luiz Fiaminghi. Gramani (2009), dedica dez pginas do seu estudo de caso O Aprendizado e a Prtica da Rabeca no Fandango Caiara rabeca brasileira. Faz vrias referncias e alguns comentrios acerca de trabalhos desenvolvidos por pesquisadores entre nacionais e estrangeiros, que, em algum momento, dedicaram-se

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    ao estudo da rabeca. Segue um pequeno texto desse captulo26.

    No Brasil existem alguns estudos j realizados sobre a rabeca. De um modo geral esses estudos tratam da rabeca em uma manifestao especfica, como o caso de Nbrega (2000) que escreveu sobre esse instrumento no cavalo marinho da cidade paraibana de Bayeux, ou da utilizao da rabeca por msicos de uma determinada regio, como no estudo de Lima (2001) que relatou a prtica de rabequeiros nordestinos. A seguir discuto essas e outras duas pesquisas sobre a prtica da rabeca, realizadas em universidades (NBREGA, 2000; LIMA, 2001; OLIVEIRA, 1994; MURPHY, 1997). H tambm estudos que merecem destaque apesar de no estarem inseridos em contextos acadmicos propriamente ditos, no s pela sua qualidade, mas tambm porque ampliam o universo da rabeca para as regies norte, sul e sudeste (GRAMANI, 2003; MARCHI; SAENGER; CORRA, 2002; EDWARD, 1988; MORAES; ALIVERTI; SILVA, 2006). Para finalizar apresento os estudos que se debruaram sobre a rabeca no fandango caiara (HASSE, 1977; SETTI, 1985; ROMANELLI, 2005). No inteno fazer uma anlise aprofundada sobre cada estudo, mas sim uma pequena descrio da pesquisa enfatizando aspectos relacionados prtica e aprendizagem do instrumento, que so relevantes para a presente dissertao.

    Existem diversos textos avulsos de Luiz Fiaminghi sobre rabeca, dentre os quais, merece destaque: A Rabeca Brasileira e Interpretao Musical como Pluralidade de Nveis Temporais: Tradio e Inovao em Jos Eduardo Gramani.

    O interesse atual sobre a revitalizao dos instrumentos populares tradicionais, em particular a rabeca, um fenmeno recente. Se por um lado isto colocou em evidncia instrumentos esquecidos da prtica musical urbana, trouxe tona a questo da incorporao destes instrumentos

    26 Exceto os trabalhos de Cristina Perazzo da Nbrega (2000) e Agostinho Lima (2001), todos os outros ttulos me foram, gentilmente, cedidos pela autora para esta pesquisa.

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    fora do contexto da msica ritualstica, assumindo novos papis no intrincado jogo da msica camerstica, anteriormente destinados ao violino: composio dentro de padres formais complexos, virtuosismo instrumental, notao musical e improvisao. A interveno do intrprete neste caso determinante para revelar novos parmetros cuja escolha norteada pelo termmetro esttico que varia da objetividade histrica e cientfica intuio subjetiva. Qualquer interpretao musical que se pretenda convincente, no uma reapresentao, contida nas amarras da notao musical, mas sempre uma nova apresentao, liberada pela interveno direta do intrprete. Estes fatores, ligados a uma fenomenologia da interpretao musical, contrapem-se linearidade do pensamento positivista vigente at meados dos anos 60 que se recusava a conectar passado com presente, popular e erudito, intrprete e compositor, esquivando-se de ler o culto atravs do popular ou o popular atravs do culto (FIAMINGHI, 2010a).

    A abertura para novas possibilidades a dinmica na qual o sculo XX tratou a arte em um sentido mais amplo, oportunizando uma enormidade de fragmentaes, fuses, morte e renascimento muito contribuiu para o ressurgimento da msica antiga europeia de concerto e dos instrumentos que a serviram, bem como para o uso desses instrumentos em linguagens experimentais. Fiaminghi no somente reconhece, mas parece ver de maneira positiva essa liberao musical.

    A rabeca surge inserida em uma nova linguagem, mas, agora, parece ser outro instrumento, um elemento novo, ressurgido de um mundo esquecido. Ironicamente, o estigma de instrumento primitivo parece ter comeado a perder fora, pelo menos, no meio acadmico, o mesmo que havia relegado ao status de instrumento menor durante dcadas.

    Concernente rabeca brasileira, o pesquisador e msico Luiz Fiaminghi escreveu, em defesa da sua identidade:

    A rabeca brasileira viveu margem do mundo musical oficial por muito tempo. Os ltimos anos testemunharam, no entanto, um forte impulso no interesse pela rabeca, que juntamente com seus pares instrumentais que formam

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    o depositrio das tradies musicais mais profundas ainda existentes no Brasil como a viola caipira e suas variaes (viola de cocho; viola sertaneja), os pfanos, e toda famlia dos instrumentos de percusso ganhou os palcos e espaos urbanos, revelando a integridade de personalidades musicais como Nelson da Rabeca, Mestre Salustiano, Luiz Paixo, Siba, Gramani, e muitos outros. Esses msicos colocaram em evidncia o ofcio do rabequeiro, anteriormente associado imagem de incompletude e atraso, tendo como parmetro o violino e a cultura erudita. Desafiando esses parmetros, esses msicos mostraram que a rabeca tinha muito a falar, na sua prpria lngua, e que o seu dialeto poderia acrescentar novas faces para a imensa variedade j existente (FIAMINGHI, 2010b).

    De fato, ao retirar a rabeca do seu tradicional contexto musical, atribuindo-lhe um novo repertrio, pode exigir do executante e do instrumento novas possibilidades de afinao e sonoridades. A rabeca tinha mesmo muito a dizer. (Figura 12). Um fato comum, entre os trs ltimos autores mencionados, reside na preocupao em reconhecer, na rabeca brasileira, a sua dignidade perdida na noite dos tempos.

    FIGURA 12 - Rabecas-violino do projeto, Rabecas e Rabequeiros de Condado patrocinado pelo BNB,

    apoio do Ponto de Cultura Viva Pareira.

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    Como foi mencionado, a rabeca possui uma grande variedade de formas, tamanhos e sonoridades. O professor Gramani, msico pesquisador e entusiasta do instrumento, foi um dos pioneiros a trabalhar pelo reconhecimento da identidade da rabeca sem o estigma de violino feio, rouco e primitivo. Em seu livro Rabeca, o Som Inesperado, Gramani menciona: O que se conhece at agora sobre a rabeca indica que cada construtor a concebe de maneira prpria, s vezes tentando imitar a construo de outras rabecas, ou tentando construir um violino (GRAMANI, 2002).

    Um fato curioso sobre um dos parentes aproximados da rabeca, - o violino - que esse tambm fora, no passado, rejeitado pela igreja e outros segmentos da sociedade at antes do alto Renascimento. Toby Faber comenta em seu livro Stradivarius:

    Na poca o violino no tinha l uma fama das melhores. A opinio geral era que podia servir de bom acompanhamento para a dana, mas no era capaz de despertar o interesse dos verdadeiros msicos. Em certas partes da Itlia, havia inclusive decretos da igreja determinando a destruio desse objeto licencioso. As violas, outra inveno recente, eram consideradas muito mais apropriadas tanto para msica palaciana quanto para a religiosa (FABER, 2006, p. 28-29).

    A rabeca-violino

    Embora as rabecas no obedeam a um padro no processo de construo como os violinos, possvel, entre a diversidade de formatos, saber quando o instrumento uma rabeca; embora, s vezes, e dependendo do ponto de vista abordado, no seja uma tarefa fcil. No caso da rabeca brasileira, Luiz Fiaminghi27 comenta:

    A tarefa de definir as fronteiras entre um instrumento e outro, ou seja, a distino entre a rabeca brasileira e o violino, no , entretanto, to evidente: suas

    27 Bacharel em composio e regncia pela UNICAMP/SP.

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    caractersticas so determinadas menos pela organologia, e mais pelos aspectos socioculturais. A rabeca esteve sempre naturalmente associada s comunidades que permaneceram por longo tempo isoladas (FIAMINGHI, 2010b).

    De qualquer maneira, a diversidade de padres de construo ou falta deles, imprime s rabecas uma sonoridade peculiar, apesar das variaes causadas pelas diferenas de tamanho, textura interna da caixa de ressonncia, poder de filtragem do cavalete, entre outras especificidades. Mas tambm h de considerar que, mesmo se a fabricao de violinos conhecida pelos rgidos processos de construo e padronizao, tambm os construtores de violino deixam sua personalidade na forma e sonoridade do instrumento. No preciso ser um conhecedor para estabelecer a diferena de sonoridade entre dois violinos. Assim como o das rabecas, o seu som tambm inesperado, embora possivelmente com um menor grau de contraste. Tenho o hbito de levar dois violinos de modelos diferentes para a sala de aula e tocar para as classes de alunos do IFRN; acostumei-me a ouvir os comentrios dos alunos sobre as diferenas de sonoridades dos dois instrumentos.

    Quanto s rabecas denominadas, neste estudo, de rabecas-violino, trata-se do modelo mais comum de rabeca existente nos estados da Paraba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Cear. A forma sinuosa dos violinos, cravelhas encaixadas horizontalmente, efs, voluta e cavalete ajustado um pouco acima das cavidades laterais atestam a semelhana com as violas e violinos modernos. Em conversa com diversos rabequeiros a esse respeito, perguntando-lhes se conheciam outros colegas de profisso que, no exerccio do ofcio de rabequeiros, utilizassem uma rabeca diferente da acima mencionada, como as rabecas de trs cordas, de cabaa ou com o cravelhal voltado para cima, a resposta foi sempre negativa. Claudio da Rabeca, durante uma entrevista na cidade de Condado-PE, 2009, afirmou no conhecer nenhum rabequeiro no estado de Pernambuco, onde muito bem relacionado, que exercesse o ofcio de rabequeiro com outro modelo de rabeca. Nos folguedos populares assistidos durante a pesquisa, notou-se, sistematicamente a presena de rabecas-violino ou de violinos. O desenho desses instrumentos assemelha-se de tal maneira com o das violas e violinos que o observador distrado pode facilmente confundir.

    Por outro lado, as variaes visualmente contrastantes mais

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    evidentes parecem mesmo ficar por conta do tamanho e acabamento. O que j bastante para imprimir personalidade a cada rabeca. Mas h outros elementos significativos agregando-se a eles. A afinao, o tipo de encordoamento28 e a postura dos rabequeiros completam as diferenas. O msico e compositor Vital Farias v as rabecas mais aparentadas com as violas do que com os violinos; de fato, os modelos de rabecas mais antigos assemelham-se mais com as violas e utilizam uma afinao mais baixa devido ao seu maior tamanho. A rabeca [...] relaciona-se com a viola de arco, seria como uma viola de arco popular. O violino tem som agudo, chegado msica clssica tem menos aparncia com a rabeca que a viola (comunicao verbal)29.

    FIGURA 13 Damio Oliveira, com a sua pegada horizontal, lembrando o Cego Oliveira. Casa da Ribeira RN (2010)

    No h uma nica maneira correta de se tocar rabeca, contudo o costume revela alguns hbitos comuns. A rabeca tangida, normalmente, encostada ao peito; o rabequeiro no movimenta a posio da sua mo esquerda; a ausncia de uso do dedo mnimo tambm muito comum, bem como a no utilizao da quarta corda. Z da Rabeca-RN afirma que no necessrio afinar a quarta corda. Os arcos tradicionais da rabeca-

    28 Os rabequeiros utilizam encordoamentos diversos para suas rabecas: de violo, guitarra, bandolim etc.

    29 Entrevista realizada na casa do compositor. Joo Pessoa-PB 2009.

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    violino so rgidos e curtos, no servem para pular nas cordas, o que no parece ser um dado importante, visto que, na performance dos rabequeiros, esse recurso parece no ter serventia, ou no conhecido por esses artistas. (Figura 13)

    Das gravaes e execues verificadas, no foi percebido nada semelhante a saltos, pizzicatos e outros malabarismos tpicos dos instrumentos de arco ocidentais da msica de concerto, do tango argentino ou da msica cigana. Essas tcnicas parecem no pertencer msica tradicional de rabeca no Brasil. Muitos rabequeiros do Nordeste tm se valido de arcos industrializados para tanger as suas rabecas.

    Os modos de afinao tambm so diversos. A esse propsito, Agostinho Lima escreve: Na afinao da rabeca o intervalo sonoro buscado entre as cordas o de quinta justa, mas este intervalo nem sempre obtido, sendo possvel observar pequenas alteraes microtonais (LIMA, 2001, p. 22). Esse comentrio referente afinao dos rabequeiros Artur Hermnio, Joo Alexandre, Geraldo Idalino, Maciel Salustiano, e Siba Veloso. Os rabequeiros contactados, nesta pesquisa, confirmaram, tambm, o hbito de afinar em intervalos de quintas. Beto Brito e Z da Rabeca utilizam-se dos intervalos: a) Sol-R-L-Mi; Siba, Luiz Paixo e Cludio da Rabeca a afinam em: b) R-L-Mi-Si, do grave para o agudo.

    O violino-rabeca

    Durante este estudo, constatou-se que h rabequeiros preferindo tocar em um violino a tocar em uma rabeca. Esses rabequeiros so, normalmente, mais velhos30, pertencem outra gerao dcada de

    30 A idade dos rabequeiros no uma norma: trata-se de uma constatao de abrangncia dentro dos limites desta pesquisa.

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    50, 60 e 70 e parecem liberados do compromisso de preservao da tradio oral, uma postura exercida, hoje, pelos novos rabequeiros e diversos projetos governamentais.

    No livro Rabecas do Cear, do Professor Gilmar de Carvalho (2006) encontram-se fotos de pouco mais de uma centena de rabecas de quatro cordas nas quais se pode verificar que, aproximadamente a metade desse montante so rabecas-violino, o que reitera a afirmao da grande predominncia desse tipo de rabeca na regio Nordeste. Curiosamente, a parte restante desses instrumentos no so, originalmente, rabecas, mas violinos fabricados em srie e, de alguma maneira, sofreram modificaes adequando-se sonoridade desejada pelos rabequeiros. Esses violinos, possivelmente, copiados de um molde modelo Stradivarius, como costume nesses instrumentos industriais, so organizados em lotes e globalizados para os quatro cantos do mundo. Fato que foi posteriormente, compartilhado com o conhecido luthier de violinos, Fbio Vanini, durante o primeiro mdulo do curso Luteria de Rabecas promovido pelo Projeto Felipe Camaro, em Natal. Ao lhe apresentar o livro Rabecas do Cear, e sem que eu houvesse mencionado o contedo do livro em relao a esta pesquisa fui surpreendido com a destreza do prof. Vanini ao identificar, de pronto, no somente os violinos, mas detalhes destes que me passaram completamente despercebidos, tais como violinos brasileiros de fabricao Gianinini feitos com madeira nacional, provenientes da dcada de setenta ou oitenta. Segue uma transcrio da fala do professor Vanini a respeito dos violinos mostrados no livro Rabecas do Cear. Olhando o livro do Gilmar de Carvalho sobre as rabecas do Cear, verifiquei uma coisa que havia imaginado, mas no pude at ento constatar: Com o desaparecimento de construtores de rabecas seria natural que os msicos optassem por utilizar violinos no lugar de rabecas, impulsionados tambm pela competitividade de mercado dos violinos asiticos. Dando uma olhada no livro fcil identificar que mais da metade dos rabequeiros esto utilizando violinos, mas os seguram como se fossem rabecas. At ento eu no tinha visto isso na prtica. Pessoas procurando violinos e transformando-os em rabecas. Aconteceu, uma vez, que uma pessoa pediu-me para transformar um violino em rabeca, mas a ideia no foi adiante. O normal que as pessoas me encomendem rabecas ou violinos. Mas aqui no livro est bem claro que rabequeiros tocam com violinos. Observa-se, tambm, que muitos deles so os primeiros violinos comerciais de fbrica do Brasil, cujo verniz tinha tendncia a ficar completamente rachado, o

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    tampo era de pinho de araucria e o fundo de imbuia ou outra madeira nacional (comunicao verbal)31.

    O desaparecimento dos construtores de rabecas, a que Vanini se refere, provavelmente, est relacionado extino dos folguedos populares32 nos quais a rabeca tinha participao efetiva33. No passado, os construtores de rabeca costumavam ser os prprios rabequeiros. medida que os folguedos se extinguiam e sem um mercado de compra para esses instrumentos, no havia razo para que o costume de fabricar rabecas se perpetuasse.

    Algumas das modificaes mais significativas encontradas em alguns desses instrumentos foi a substituio das cordas e a troca do cravelhal por tarraxas de violo (Figura 14) ou outro instrumento de cordas dedilhadas. O virtuose Geraldo Idalino-PB, tambm conhecido por Geraldo da Rabeca, falecido, em 2007, usava um violino-rabeca por ele preparado que contava com um estandarte de chifre de boi34 confeccionado por ele mesmo conforme se pode verificar na (Figura 15): tarraxas de violo e crina de agave no arco, esta era colhida no mato e preparada por ele prprio. As fotos a seguir foram feitas, em 2009, na casa onde morava Idalino na cidade de Campina Grande-PB, aps uma conversa com os familiares do rabequeiro. Violino-Rabeca de Geraldo Idalino (Figura 16).

    31 Entrevista realizada na Sede do Conexo Felipe Camaro-RN em 25/03/2011.

    32 provvel que a rabeca tenha tido um papel importante como instrumento solista na animao de festas de forr antes da disseminao da sanfona na msica do Nordeste.

    33 Bumba meu boi, Cavalo marinho.

    34 O original havia se partido devido a uma maior tenso a que o submetera, em consequncia das cordas rgidas emprestadas de outro instrumento.

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    FIGURA 14 Detalhe do cravelhal do violino-rabeca de Geraldo Idalino PB (2009)

    FIGURA 15 Detalhe do estandarte de chifre do violino-rabeca de Geraldo (2009)

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    FIGURA 16 Violino-rabeca de Geraldo Idalino. Campina Grande ( 2009)

    O despojamento desses rabequeiros parece ter o poder de transformar violinos, violas e porque no dizer qualquer objeto que possa ter uma caixa de ressonncia e sobre ela cordas tangidas por arco, em uma rabeca. A dinmica desses rabequeiros surpreende muitas vezes, desfazendo limites que foram construdos no estudo da cultura de tradio oral. Para muitos rabequeiros, a importncia em preservar a tradio no faz parte do seu vocabulrio. Em conversa com um dos filhos de Geraldo da Rabeca, ficou claro que talvez o maior desejo de Geraldo fosse ter o reconhecimento do ofcio de msico, vender seus discos, fazer shows e ser bem-remunerado pelo seu ofcio. Ele sempre se autodenominou violinista.

    Nem sempre os rabequeiros fazem uma distino clara do que seja uma rabeca e um violino; alguns mencionam que violino o nome que se d, hoje, rabeca; outros fazem uso das palavras como sinnimos. Manoel S declarou Ai eu fao umas rabecas, agora violino n? Aprendi de cabea, peguei de fazer umas de flande, depois fiz as outras pelas outras, n? (CARVALHO, 2006, p.191). A distino entre os instrumentos perece assumir uma maior importncia entre as novas geraes de rabequeiros e para estudos organolgicos.

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    A postura dos rabequeiros um fator muito importante na construo da identidade da rabeca, pois a postura, ao tocar o instrumento, determina a qualidade da msica que ele far. O som tambm um elemento por meio do qual possvel identificar uma rabeca, e a ele est agregada a atitude artstica do rabequeiro perante o seu mundo, a expresso da sua arte.

    Aos artistas foram concedidas certas liberdades proibidas normalidade da vida. A palavra brincante, talvez seja a que melhor expresse o porqu de esses artistas serem populares.

    Como foi mencionado, rabequeiros possuem tcnica muito subjetiva e diversificada de tanger o instrumento, ao contrrio do violino que persegue um ideal coletivo de beleza e pureza de sonoridade rgidos da msica de concerto. Entretanto, no se deve esquecer que essa afirmao esttica para com o violino parcial. O violino est presente na msica popular e folclrica de muitos pases do leste europeu como o povo Roma, na Romnia, Hungria e Bulgria bem como na msica tradicional de Cabo Verde, entre muitos outros pases. Ali apresenta estticas muito distintas da que predomina na chamada msica clssica.

    Durante a primeira metade da dcada de 1990, assisti a muitos desses msicos de rua na Alemanha35. Certa vez, uma famlia de msicos errantes da Hungria chamou-me a ateno: a violinista tirava do seu instrumento uma sonoridade esganiada produzida por uma tcnica virtuosstica que eu jamais havia visto. Achei aquilo maravilhoso. Nesse contexto, a sonoridade desses violinos difere em muitos exemplos do ideal erudito, aproximando-se, muitas vezes, da sonoridade das nossas rabecas. Assim, alguns aspectos da cultura dos instrumentos de arco, como a rabeca e o violino, tm uma linha diferencial, realmente, muito tnue.

    O crescente uso de violinos no ofcio de rabequeiro uma realidade. Um violino novo fabricado na China, com estojo, arco, afinadores e breu, pode hoje (2011) ser adquirido ao preo de trezentos reais. J sendo usado, pode ser comprado por um valor ainda menor. Um atrativo sedutor para muitos rabequeiros. Certa feita, na segunda metade da dcada de noventa, encontrei uma romaria no povoado praieiro de Forte Velho-PB. Ela vinha a p de um lugarejo chamado Capim,

    35 So conhecidos como Strassenmusikanten

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    em direo igreja da Guia na foz do Rio Paraba. A distncia entre as localidades de aproximadamente 70 Km. O rabequeiro, que fazia o seu ofcio de acompanhador com maestria, usava um violino novinho, estava contentssimo com ele, mas curiosamente o seu arco era um pedao de pau sem crina. Se a rabeca outro instrumento, como preconiza Gramani (2002), com personalidade prpria, portanto diferente de um violino, bvio que existiriam caractersticas que o diferenciam de outros instrumentos. Quais so essas caractersticas?

    O preconceito para com a rabeca parece justificar-se mais pelas desigualdades sociais do que pela forma e sonoridade do instrumento. De qualquer forma, caracterizar uma rabeca brasileira no fcil. Essa caracterizao seria incompleta se for considerada apenas a descrio fsica do instrumento, embora seja essa uma parte importante. Os trs elementos fundamentais para tal caracterizao seriam, ento:

    a. A forma do instrumento e os seus componentes.

    Nessa abordagem, o reconhecimento do instrumento seria feito atravs da considerao de sua aparncia esttica e da estrutura de seus componentes.

    b. A sua sonoridade e a percepo desta.

    Esse item trata do reconhecimento do instrumento atravs da sua sonoridade. A forma como o instrumento foi construdo e seus componentes fornecem rabeca uma acstica peculiar, uma forma sonora, o timbre atravs do qual a reconhecemos. possvel mencionar a acstica e a psicologia experimental como campos do conhecimento para o estudo com base nessa perspectiva.

    c. Sua significao em contextos sociais. So as influncias culturais que afetam a esttica da msica de rabeca. A opo na escolha dos materiais regionais para fabricao, sua utilizao em determinada comunidade ou grupo social. Mitos, atribuies funcionais, religiosas etc... Um vasto leque de estudos para

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    diversos ramos das cincias humanas.

    Nenhum dos itens mencionados existe isoladamente. Violinos j foram chamados de rabecas, o termo rabab obteve diferentes variaes e nomeou diferentes instrumentos ao longo de sculos. Uma rabeca de cabaa de trs cordas do sudeste do pas poderia no ser reconhecida como tal numa outra regio do pas como rabeca, podendo no se prestar ao uso por msicos que no estejam habituados a essa forma.

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    3 A CONEXO: UMA EXPERINCIA NO ENSINO COLETIVO DA RABECA

    Conexo Felipe Camaro um projeto social idealizado pela Organizao No Governamental (ONG) Associao Companhia Terramar, desenvolvido na comunidade de Felipe Camaro, bairro da zona oeste da cidade de Natal, com cerca de 75 mil habitantes, e um dos beros da cultura potiguar (Figura 17). Segundo a mentora do projeto Conexo Felipe Camaro e coordenadora-geral, Vera Santana,36 o projeto possui 22 funcionrios; congrega professores, coordenadores e servios de burocracia. O projeto desenvolve um trabalho educacional atravs da cultura local, que tem como objetivo contribuir para o desenvolvimento de crianas e jovens da comunidade e seus familiares. Agrega vrias aes como o Ponto de Cultura e Programa Ao Gri Nacional Programa Cultura Viva-MinC, o Programa GESAC, do Ministrio das Comunicaes, entre outros, integrando a comunidade e seus sujeitos: crianas, jovens, Mestres de Tradio Oral, educadores e escolas pblicas parceiras.

    FIGURA 17 Fachada principal do prdio do Conexo Felipe Camaro (2010)

    36 Vera Santana tem graduao em Histria pela UFRN, e Mestrado em Histria pela UFRJ.

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    Segundo Vera Santana, mentora e coordenadora-geral do projeto:

    Sabemos que um povo reconhecido em qualquer lugar por causa de seus hbitos e manifestaes, que representam genuinamente a sua cultura. Uma das maiores carncias de muitas comunidades brasileiras a falta de estrutura do sistema educacional, notoriamente de baixa qualidade, que no atua na formao e valorizao do indivduo enquanto cidado detentor de uma cultura autntica. A possibilidade de gerao de renda visando auto-sustentabilidade desses jovens em suas comunidades de origem, atravs de aes incisivas e de cunho formativo para a ampliao do seu modo de agir e pensar, representa a continuidade de aspectos estruturantes da cultura brasileira. Encontramos no Ponto de Cultura de Felipe Camaro o suporte para o desenvolvimento de propostas que unam a cultura e a tecnologia a servio de suas vidas com reflexos diretos e decisivos na sua formao cidad e profissional, bem como favorecimento e reconhecimento de uma cultura que se faz presente na rvore genealgica de geraes passadas e futuras. Evidentemente o Ponto de Cultura um meio eficaz de insero no processo de incluso social pela perspectiva de ampliao de conhecimentos, reunio de saberes, formao de novos mercados, gerao de possibilidades profissionalizantes e divulgao da diversidade cultural. No presente caso, o Ponto de Cultura de Felipe Camaro incrementa aes que j acontecem de maneira valorosa com o Projeto Conexo Felipe Camaro. A oportunidade dos benefcios do Cultura Viva ir potencializar a existncia e perpetuao de cultura genuna, rica, viva e que precisa ser conhecida mundo afora (CONEXO..., 2010).

    O Conexo fundamenta-se na cultura de tradio oral do bairro e seus patrimnios imateriais Auto do Boi de Reis do mestre Manoel Marinheiro, teatro de bonecos do mestre Chico Daniel, mestre Ccero da Rabeca, Capoeira do mestre Marcos; e em pressupostos poltico-

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    filosficos de brasileiros como Ansio Teixeira, Paulo Freire, Amir Haddad, Darcy Ribeiro, Milton Santos, Lurdinha Guerra educadora potiguar entre outros, cujas ideias e aes possibilitaram novas formas de pensar a relao entre cultura e educao, desenvolvimento e transformao social e cidadania. O Projeto atua no bairro centrado em trs ncleos estratgicos:

    Ncleo Comunitrio de arte-cultura

    Ncleo de Educao atravs da linguagem do Cinema/vdeo (Crculo de Cultura)

    Ncleo de Eventos

    Na prtica, alunos de sete escolas pblicas do bairro participam de oficinas focadas na preservao da memria das prprias tradies do bairro, com destaque para o Auto do Boi de Reis do mestre Manoel Marinheiro. So realizadas as oficinas de Boi de Reis (Mirim), Capoeira, Musicalizao de Flauta, Musicalizao de Rabeca e Luteria de Rabeca.

    Segundo Vera Santana, o ensino da rabeca no projeto justificado pela tradio oral existente no bairro h dcadas; atravs do boi de reis do mestre Manoel Marinheiro e do mestre rabequeiro Ccero. A rabeca conta a diversidade cultural brasileira, a histria da ocupao do pas. o smbolo que traduz a histria de muitas geraes, traz uma diversidade contida incomensurvel. A prtica dos rabequeiros mistura sensibilidade, arte e histria [...] Eu no criei um grupo de rabequeiros para tocar pelo Brasil, no foi esta a ideia, a ideia foi provocar o sistema educacional a repensar sua prtica, este o objetivo (comunicao verbal) 37.

    O contedo do ensino

    As informaes relacionadas a seguir so utilizadas nas aulas das classes de rabeca do Conexo Felipe Camaro e foram retiradas,

    37 Entrevista concedida na Sede da Associao Companhia Terramar, Natal, em 18/10/2010.

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    integralmente, de uma apresentao em slides do projeto. Os dados contidos nessa apresentao so do professor Ozawa Gaudncio e da aluna Mirelle Bezerra. As informaes esto ordenadas da mesma maneira com que so apresentadas durante as aulas. O material foi cedido pela coordenadora do projeto, Leila Maranho:

    No Conexo, ensina-se assim, conforme apontado pelo professor Ozawa e por Mirelle:

    Histria a rabeca nasceu antes das escrituras bblicas, no continente africano. Depois, com a colonizao dos europeus na frica, foi para a Europa, e atravs dos portugueses veio para o Brasil.

    Os ndios tocam rabeca teoria de Ozawa e Mirele. Fabio das Queimadas foi um negro que comprou a sua alforria e a

    de sua famlia tocando rabeca. Fabio era da fazenda Queimadas em Pedro Velho/RN

    Histria do seu Ccero tocava com mestre Manoel Marinheiro desde a fundao do Boi de Reis do mestre em Felipe Camaro.

    Mestre Luiz Paixo Um mestre de rabeca do Cavalo Marinho, que uma variante independente do boi de reis na mata norte de Pernambuco e Paraba.

    Mestre Nelson da Rabeca que aprendeu a tocar rabeca na televiso, e construiu sua prpria rabeca rabeca de cocho.

    A rabeca, no incio, tinha formato de pera e cordas de tripa. O arco de crina de cavalo chins hoje usamos nylon. O breu tem a funo de dar atrito do arco nas cordas,

    encontrado em feiras livres se no usar o breu, no sai o som das cordas.

    Rabequeiro quem fabrica e constri a rabeca. Rabequista quem toca a rabeca.

    A expresso queimar significa tocar mais rpido ( usada pelo mestre Ccero de rabeca).

    Partes fundamentais da rabeca: rabicho, estandarte, cavalete, cintura/sovaco, efs, espelho/rgua, cravelha, voluta/caracol, tampo - superior/cima, tampo - inferior/debaixo, brao, alma/ressonncia.

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    Nomes das cordas: Mi, L, R, Sol38 prima/primeira, segunda, terceira e quarta.

    Escala Musical: D, R, Mi, F, Sol, L, Si. Msicas: msicas do boi e msicas populares. No usamos o quarto dedo na rabeca segundo os mestres,

    antitico.

    Usamos a luteria para explicar como feita a rabeca; de qual madeira feita a rabeca: ip, pinho; procedimentos de como cortar, medir e montar a rabeca.

    O repertrio ensinado nas aulas de rabeca do projeto, segundo o professor Ozawa, o seguinte:

    Do Auto do Boi de Reis: Na Chegada Desta Casa, Jaragu, Burrinha, Trabalha Marujo, O Boi, Menino Jesus da Lapa.

    Luz Gonzaga: Asa Branca, A volta da Asa Branca, Assum Preto, Xote das Meninas.

    Elino Julio: Na Sombra do Juazeiro, Canto da Ema.

    A prtica

    Quanto seleo dos alunos para as classes de rabecas, no se faz por idade, mas pelo grau de adiantamento, sendo comum o convvio entre crianas e adolescentes (Figura19). Quase todo o repertrio de rabeca ensinado nas classes regional ou de tradio oral. Essa prtica justificada pela ideologia educacional do projeto. Embora as aulas de rabeca sejam ministradas quase exclusivamente pelo processo de imitao, existe alguma sistematizao escrita para o aprendizado. Para ensinar msicas aos novatos, o professor Ozawa faz uso de representaes. Vejamos o exemplo para o ensino da msica Na Sombra do Juazeiro, de Elino Julio:

    - Notas do Estribilho da cano Na sombra do Juazeiro do

    38 Do agudo para o grave.

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    compositor potiguar Elino Julio:

    Meu bem vem c, venha ligeiro eu vou te esperar na sombra do Juazeiro.

    Si-R-Mi-R-Mi-Mi-MiMi

    Si-Mi-MiMi-R

    Mi-F-Mi-Re-Do-Si-L-Sol.

    Os nmeros agregados ao nome das notas so correspondentes aos dedos da mo esquerda. Indicador, mdio e anular. Contudo a letra no cantada, apenas as notas so pronunciadas.

    Melodia do estribilho da cano Na sombra do Juazeiro. (transcrio minha).

    Na Sombra do Juazeiro

    Elino Julio

    Meu bem vem c, venha ligeiro

    Eu vou lhe esperar, na sombra do juazeiro

    Viver sem carinho eu juro que no d

    Achei um cantinho pra nos conversar

    O povo do lugar to fuxiqueiro

    Eu vou lhe esperar na sombra do juazeiro

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    L tem um banquinho pra nos se sentar

    Nos fica sozinho ningum vai olhar

    Pode sossegar que eu chego primeiro

    Eu vou lhe esperar na sombra do juazeiro

    Outro exemplo de uma variante do mtodo foi observado durante um ensaio do Hino Nacional (Figura 18) para uma apresentao na Petrobrs em abril do corrente ano. Na partitura dos alunos, verifica-se o mesmo mtodo aplicado nos ensaios, entretanto, agora, serve para diferenciar as oitavas. Os nmeros junto s notas D4 e D3 tm a funo de orientar o aluno para que ele saiba que a primeira nota deve ser encontrada na quarta corda e a segunda, na terceira corda. Idntico raciocnio usado para as outras notas e, assim por diante, sempre que houver a mesma nota em oitavas diferentes. A posio da mo do aluno ser sempre a mesma, ou seja, a primeira, j que os rabequeiros no costumam sair dessa posio.

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    FIGURA 18 Notas do Hino Nacional para ensaio do grupo Conexo Felipe Camaro 2011Fonte: Acervo do Conexo Felipe Camaro

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    FIGURA 19 Ozawa ministra aula de Rabeca. (2010)

    FIGURA 20 Rabecas-violino utilizadas nas aulas do projeto; direita, uma rabeca para criana. (2010)

    Embora o ensino da rabeca seja ministrado sem o uso de notas no pentagrama e outros elementos da linguagem musical ensinada em conservatrios, alguns procedimentos conhecidos do ensino formal dos instrumentos de arco foram incorporados, de alguma maneira, s aulas

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    da rabeca. Os espelhos de algumas rabecas so marcados com fitas adesivas brancas para orientar os alunos a encontrar os tons de maneira mais fcil, artifcio utilizado no mtodo Suzuki para cordas. possvel que esse costume tenha sido incorporado pelo primeiro professor de rabeca do Conexo, como se ver mais adiante. Para os iniciantes, o costume desenhar as cordas do instrumento na lousa e indicar-lhes o nome por escrito. A prtica de escalas tambm faz parte do aprendizado para tocar a rabeca. A escala utilizada a de D maior executada na primeira posio e com uso de apenas trs dedos, contudo no h nenhuma explicao formal do que so escalas, tons e semitons. Para ajudar a memorizao das melodias, solicitado aos alunos novatos que cantem a melodia solfejando o nome das notas. Consiste em um recurso, apenas, para decorar as melodias no instrumento. No h nfase na entonao.

    O ensino de rabeca no Conexo baseia-se, principalmente, no acmulo de informaes e valores que foram repassados por todos os mestres de rabeca que atuaram no projeto desde a sua fundao em 2004. Os conhecimentos desses mestres de rabeca so considerados de relevncia dentro do Conexo. Essas informaes compem o perfil do projeto e o legitimam no que ele prope a fazer: preservar a memria do bairro, das tradies. No se discute aqui se isso correto ou no, se a crena em mitos eternizados pelos costumes populares boa para a educao formal. O que se pretende neste trabalho, mostrar a maneira como se tem construdo o perfil dessa iniciativa ainda pioneira39 que visa desenvolver uma metodologia para ensinar a tocar rabecas coletivamente atravs da tradio oral.

    As rabecas utilizadas no Conexo Felipe Camaro so rabecas-violino; foram fabricadas pelos artesos Sergio e Janildo. Um dos problemas mais evidentes que se pode observar no ensino com essas rabecas a afinao. Certa vez, durante um ensaio do Conexo Rabeca, fui chamado, s pressas, pelo professor e atual regente do grupo, o flautista Carlos Zens, para encontrar uma forma de melhorar a afinao em determinada pea musical. Percebi que um dos problemas mais evidentes era que os dedos dos alunos escorregavam no espelho do instrumento fazendo com que a frequncia da nota fosse alterada constantemente. Esse efeito funciona muito bem para um rabequeiro solista, mas no ajuda em execues em grupo, pois dilui a melodia em um zumbido oscilante e intil para aquele propsito. Outro ponto a observar foram os

    39 O ensino coletivo de rabeca ainda uma atividade pouco praticada.

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    ataques dos arcos das rabecas. Como no havia homogeneidade, tocava-se como se queria, e enquanto um executava a arcada para cima, outros a executavam para baixo. Foi observado, tambm, o desconhecimento da possibilidade de executar dois ataques com a mesma arcada. A maneira de tomar o arco na mo era tambm diversificada, bem como a intensidade dos ataques. Pouco pude contribuir em apenas um ensaio. Por outro lado, ficou evidente o tamanho do desafio que enfrenta o Conexo Rabeca na tentativa de ensinar rabeca coletivamente atravs da tradio oral.

    Muitos alunos do Conexo gostariam de fazer um outro tipo de msica tambm. E no somente tocar rabecas e pfanos. Aulas de violo, certamente, seriam muito bem-vindas. Contudo, tal propsito no est em acordo com a ideologia do projeto. Como se percebe, o projeto trabalha quase exclusivamente com a tradio oral. Para que o Conexo Rabeca possa alcanar um respeito como grupo musical na comunidade e no meio musical, como alguns dos alunos do projeto sugerem, seria necessrio absorver outros elementos tcnicos e valores em sua msica, atribuindo uma dimenso mais profissional ao grupo, ou seja, indo alm do propsito de insero social pela msica como vem sendo feito. Alguns passos, porm, foram dados nesse sentido como se ver mais adiante.

    Embora o Conexo no seja uma escola de msica nos moldes de um conservatrio ou das escolas de msica popular, existem no projeto, como mencionado, classes especficas para o ensino de instrumentos, e salas destinadas a esse fim.

    evidente o respeito concedido aos mestres de rabeca, e a relevncia atribuda ao conhecimento que, por eles, foi transmitido no Conexo. Alguns desses mestres tm os seus nomes escritos nas salas de estudo do projeto: Sala Mestre Luiz Paixo, Luteria de Rabeca Mestre Ccero. Esse zelo , tambm, observado, em escolas de Msica e Conservatrios, onde os nomes de compositores e renomados msicos figuram nas dependncias das escolas.

    Z da Rabeca foi pioneiro no ensino de rabeca no Conexo, permanecendo no projeto durante quatro anos, tendo sido o primeiro professor de rabeca da instituio. Dos sete aos onze anos, frequentou aulas do mtodo Suzuki de violino no Instituto de Msica Waldemar de Almeida na cidade do Natal, RN. J no incio da adolescncia, abandonou o violino e assumiu a rabeca na tradio musical oral de sua famlia: o Boi de Reis de seu tio-av, Jos Marinheiro. Z declara a sua preferncia pela rabeca devido a sua natureza livre, j que cada um faz e toca como quer.

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    A rabeca me d plena liberdade, na rabeca no existe muita coisa errada, tudo criatividade do executante. No violino, se tem que seguir risca tudo o que est l. O rabequeiro no, cada vez que ele toca uma msica ele j recria algo diferente. Se for pegar ao p da letra, alguma coisa mudou, h alguma coisa a mais. esta liberdade que eu gosto na rabeca, de tocar uma msica vrias vezes e toc-la diferente. De um rabequeiro para outro a tcnica totalmente diferente. Na rabeca, o executante quem vai criar sua tcnica, enquanto que no violino no, j est tudo organizado, tudo tradicional l. Eu gosto da liberdade que a rabeca me d de tocar do jeito que eu quero e modificar a execuo de uma msica. Faz parte dela modificar as notas e no ser errado. Alguns disseram que desafinado, alguns professores disseram que so microtons, um monte de notas um pouquinho fora do padro, mas um novo som. Na rabeca eu vejo esta coisa muito ampla (comunicao verbal)40.

    O comentrio de Z da Rabeca nos remete para um fato singular: o violino, apesar de estar entre ns durante todo o sculo XX (perodo profcuo para formao e afirmao de diversas tendncias da msica brasileira), no se caracterizou como um instrumento tpico da nossa msica de tradio oral, tampouco est integrado aos gneros do que chamamos MPB. No h uma tcnica popular para se aprender a tocar violino, provavelmente por ele no pertencer a grupos que cultuam um gnero musical especfico, como aconteceu ao bandolim e ao cavaquinho no choro, viola com os repentistas do Nordeste ou aos metais no frevo pernambucano. O violino permanece associado msica erudita. A presena popular do violino no Brasil, normalmente, limita-se aos arranjos orquestrais. H casos pontuais em que ele aparece como solista na msica brasileira no erudita: Ricardo Herz41 e grupos como o Caf do Vento-RN42 e Dazaranha-SC, so alguns exemplos. Mesmo assim, parece no haver gnero musical em que o violino seja um instrumento imprescindvel na msica brasileira.

    Quando Z comenta a falta de liberdade para tocar o violino, refere-se, na verdade, severa disciplina violinstica, ou seja, um poo sem fim de proibies estticas e tcnicas que determinam o que se deve ou no tocar. Embora esse quadro venha, paulatinamente, se modificando, com

    40 Entrevista realizada no estdio de udio e vdeo do IFRN, Natal em 23/04/2010.

    41 Possui um disco no mercado intitulado: Violino Popular Brasileiro: Rdio Eldorado.

    42 www.cafedovento.mus.br e www.myspace.com/cafedovento.

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    a introduo da msica popular nos conservatrios brasileiros, ele ainda persiste. Era essa disciplina que incomodava Z e o fez tornar-se finalmente rabequeiro, conquistando sua liberdade de expresso. Z, porm, faz um comentrio positivo com relao metodologia Suzuki de violino a que se submeteu por vrios anos: A base do mtodo Suzuki a oralidade, devo ao mtodo a facilidade para memorizar, pois trabalhvamos decorando as melodias previamente gravadas, que assemelham-se tradio oral popular, e como aprendo as msicas para tocar at hoje (comunicao verbal)43.

    No Rio Grande do Norte, os indcios apontam para Lus Mrio Rocha Machado, ex-violista da Orquestra Sinfnica do Rio Grande do Norte, como pioneiro em procurar uma sistematizao para o ensino da rabeca no incio dos anos 2000. Embora no tendo concludo o seu intento, escreveu msicas para rabeca e ministrou aulas do instrumento em sua prpria casa. Tencionava fundar uma ONG para o ensino da rabeca e outros instrumentos que dominava, mas, infelizmente, veio a falecer antes de realizar