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ISSN: 2358-6354

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Page 1: ISSN: 2358-6354 - mtst.org · “Bruno Tupi Guarani Caruê”, como ... homens em condições de miséria e pobreza desvinculou-se de um enfrentamento ... caiu de 26, 4% para 23,4%,

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Plinião, presente!Agora e sempre!

Joãozinho, presente!Agora e sempre!

Nessa edição, homenageamos quatro grandes lutadores que trilharam

conosco o caminho da construção do poder popular.

João Zinclair, fotógrafo e militante comunista da cidade de Campinas

(SP), Plínio de Arruda Sampaio, aliado incontestável da luta pela reforma urbana, Lampião, ou

“Bruno Tupi Guarani Caruê”, como ele gostava de ser chamado e

Tia Deda, ou Jesabeth da Cruz Mendonça, esses últimos

trabalhadores sem-teto e guerreiros da luta das ocupações do MTST.

Aliados ou construtores diretos de um projeto de transformação, essas

pessoas foram e são imprescindíveis, porque lutaram a vida toda.

A elas, o nosso muito obrigado!

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Territórios Transversais - resistência urbana em movimento • 3

Freio de emergência

Conselho Editorial: César Órtega • Débora Cristina Goulart • Eblin Joseph Farage • Elizete Menegat • Francisco Miraglia Neto • Maria Orlanda Pinassi • Marildo Menegat • Marina Barbosa Pinto • Marina Monteiro de Castro • Neil Larsen • Nilo Batista • Paulo Eduardo Arantes • Pedro Rocha de Oliveira • Roberta Lobo • Valério Arcary • Terry Eagleton • Plínio de Arruda Sampaio (em memória)Conselho Executivo: Clarice Salles Chacon • Felipe Brito • Guilherme Simões• Henrique SaterRevisão: Pedro Rocha de OliveiraISSN: 2358-6354 Tiragem: 1000 exemplares. Data de fechamento: 25 de janeiro de 2015. Para assinar: www.mtst.org/territorios • facebook.com/mtstbrasil • [email protected]

quem faz e ajuda a fazer

EDITORIAL

A EscolA dA REvoluçãoAna Paula, professora de sociologia, da coordenação nacional do MTSTNatália Szermeta, da coordenação estadual do MTST/SP.

REsEnhA: A AtuAlidAdE dE RotA 66Deni Ireneu Alfaro Rubbo, sociólogo, autor de “Párias da terra: o MST e a mundialização da luta camponesa” (Alameda, 2014)

AnAtomiA dA novA PobREzA uRbAnALoïc Wacquant, professor de Sociologia na Universidade da Califórnia-Berkeley e Pesquisador do Centro de Sociologia Europeia-Paris.

tEAtRo E PolíticA: A ExPERiênciA do mstJulian Boal e Paula Kropf entrevistam Rafael Litvin Vilas Boas, membro da Brigada Nacional de Teatro do MST e professor da UnB.

A coRAgEm dE Edson silvAEdson Silva, da coordenação nacional do MTST

FREio dE EmERgênciAConselho Executivo Territórios Transversais.

EbolA: um víRus no coRAção dAs tREvAsJean Batou, professor de história internacional contemporânea, em Lausanne (Suíça) e membro do SolidaritéS.

cARtA A quEm sonhA Em sER jogAdoR dE FutEbolJuca Kfouri, cientista social e jornalista esportivo.

PoEsiA PAlEstinA: mAhmoud dARwishJeff Vasques, poeta, militante do PCB.

cRisE dA ÁguA Em são PAuloMarzeni Pereira, trabalha há 22 anos com saneamento, tecnólogo Especial-ista em Engenharia de Saneamento Básico e da Oposição do Sintaema.

ilustRAçõEs E cAPAGus Morais (www.gusmorais.com)

quAdRinhos/chARgEsNico e André Dahmer.

ÍNDICE

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conto: o homEm vEncidoDaniela Lima, escritora.

Plinião, presente!Agora e sempre!

dEbAtEs tRAnsvERsAis:PRA ondE vAi o luloPEtismo?Maria Orlanda Pinassi, professora de Sociologia Unesp de AraraquaraValter Pomar, historiador e militante do PT.

EnsAio: umA novA PRimAvERAGregório Bruning, fotógrafo residente do Mímesis|Conexões Artísti-cas e militante do MPM – Movimento Popular por Moradia.

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A ilusão dA REFoRmA uRbAnAMaria de Fátima Tardin Costa, arquiteta e urbanista.

cRisE cAPitAlistA Em PERsPEctivAFelipe Brito, professor da UFF e da coordenação nacional do MTST.

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Com enorme satisfação, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), contando com solidariedade e confiança de leitores, apoiadores e aliados, supera as dificuldades e lança o segundo número da Revista Territórios Transversais.

No intuito de colaborar com o empenho de elaboração contido no conteúdo da edição, aproveitaremos esse espaço para compartilhar possibilidades de leitura da realidade bem como alguns de nossos desafios e inquietações. Dada a complexidade da tarefa de apreensão crítica do capitalismo no início do século XXI, com atenção especial para o caso brasileiro, pretendemos fornecer nossas singelas contribuições, visando, sempre, transformações que atinjam as raízes da destrutiva lógica da acumulação capitalista.

Os artigos que compõem esse segundo número de “Territórios Transversais” veiculam conteúdos de absoluta responsabilidade dos autores, a quem agradecemos e reforçamos o convite para colaborarem com futuros volumes. Agradecemos também aos ilustrador Gus Morais, aos cartunistas e poetas envolvidos e à revisão realizada por Pedro Rocha de Oliveira, membro do Conselho Editorial.

Feitas estas considerações preliminares, mãos à obra!Com a nomeação da “velha-nova” equipe econômica do governo federal, não

precisamos ser um “caça-fantasma” para captar o espectro do formulador da “carta ao povo brasileiro” - Antonio Palocci - e, sobretudo, do principal fiador, articulador e operador do projeto político-econômico contido na carta – o ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva. Tanto lá como cá, desponta a pretensão de “apaziguamento” dos ânimos dos adoradores endinheirados do “Deus-mercado”, especialmente os rentistas/especuladores (e seus porta-vozes incrustados na grande mídia empresarial).

Para assegurar a plena eficácia dessa “terapia de apaziguamento” apenas representar os interesses não foi suficiente. Nomeou-se, então, o mercado financeiro de forma direta para dentro do governo. Henrique Meirelles e Joaquim Levy “Mãos de Tesoura” personificam tal encaminhamento: altos executivos do universo das finanças, ambos professam, no século XXI, e sem rodeios, o dogma de que o mercado sem intervenções externas geraria estabilidade econômica (e, por consequência, social), assim como maximizaria a criatividade e a disposição dos agentes econômicos.

O constante “apaziguamento” dos ânimos das altas finanças tornou-se um alicerce muito funcional da engenharia de governo inaugurada em 2003 com a vitória eleitoral do PT. Considerando o contexto capitalista de financeirização transnacional da economia, tal engenharia de governo pretende combinar a relativa melhora nas condições de vida de milhões de brasileiros e brasileiras com a preservação do funcionamento das engrenagens que catapultam a lucratividade do sistema financeiro. A dimensão da rentabilidade desse setor pode ser verificada, por exemplo, no lucro somado de quatro bancos (Itaú, Bradesco, Santander e Banco do Brasil), de aproximadamente U$ 20,5 bilhões, que superou o PIB de 83 países, em 2013 . Com isso, a busca de melhoria de vida da massa de mulheres e homens em condições de miséria e pobreza desvinculou-se de um enfrentamento (amplo, profundo e frontal) das bases da ordem social (que exigem confrontação a grandes agenciamentos de poderes econômicos e políticos, operados por bancos, empreiteiras, latifundiários, grande mídia etc.).

A referida “terapêutica apaziguadora” também foi empregada no setor industrial. Foi nomeado Armando Monteiro Neto, ex-presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), para desempenhar a função, “coincidências a parte”, de Ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Se na vice-presidência da vitória eleitoral de 2002 encontrava-se o empresário industrial José Alencar, o fio de coerência foi mantido na escolha. Como não citar também a inclusão da presidência da Confederação Nacional da Agricultura - entidade que aglutina os 2,3% de proprietários de 47,2% de toda a área do país disponível para a agricultura: Kátia Abreu é a nova Ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.

continuA nA PÁginA 4

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4 • Territórios Transversais - resistência urbana em movimento

No plano político-partidário, a acrobacia governamental de melhorar as condições de vida dos pobres mantendo a ordem, em certo sentido tornou prescindível a atuação de partidos de “oposição” da direita, como o DEM. Para que todo aquele “alarde oposicionista” nas fileiras do DEM, se a confrontação à escandalosa concentração fundiária no Brasil está fora de cogitação das ações do governo federal e, além do mais, os fartos financiamentos públicos ao agrobusiness estão assegurados? O ingresso na gelatinosa “base governista”, especialmente no PMDB, permitiu à ruralista militante Kátia Abreu um posicionamento politicamente mais eficaz para assegurar a pauta do setor e, inclusive, conspirar contra movimentos de luta pela terra, como o MST. Gilberto Kassab fez cálculo político parecido, porém até mais ousado, criando primeiro um partido novo (PSD) para abrigar mais políticos que também o fizeram; posteriormente, movimentou-se para ressuscitar o PL e congregar “insatisfeitos” por todos os lados, de olho no lugar estratégico do PMDB na “gestão da governabilidade”. Virou Ministro das Cidades. E assim o esfarrapado “presidencialismo de coalização” praticado no Brasil da redemocratização vai sendo nutrido.

Sabemos que essa engenharia (ou acrobacia) de governo contou com o crescimento econômico, ou melhor, com o crescimento econômico compatível com uma era de tendencial queda da taxa de crescimento do Produto Interno Bruto mundial (um traço significativo da crise estrutural do capitalismo, que se arrasta desde meados da década de 70). Esse (relativo) crescimento foi impulsionado, em grande parte, pelos preços inflacionados e especulados das mercadorias denominadas commodities, como soja, minério de ferro, celulose etc, num circuito avassalador de pilhagem de recursos naturais e devastações culturais (saberes e técnicas produtivas seculares).Tal produção, voltada ao mercado externo, envolve latifúndios gigantes, muito agrotóxico e sementes transgênicas.

Contudo, o combustível do (relativo) crescimento, que serviu para ativar um dispositivo de “administração” de interesses díspares e contraditórios, operando a lógica da “fuga pra frente”, perdeu seu poder de fogo nos últimos anos com o quadro mundial de deterioração econômica, e não há indicação de reversão de tendência. Em 2010, o crescimento computado do PIB do Brasil foi de 7,5% (a média de 2003 a 2006 foi de 3,5% ao ano e de 2007-2010 foi de 4,5%). Em 2013, o crescimento verificado foi de 2,3%. De novembro de 2013 a novembro de 2014, o crescimento foi zero. Algumas projeções para 2015, como a do Banco Mundial, indicam um índice de 0,1%.

De maneira geral as medidas voltadas aos pobress basearam-se,fundamentalmente, no alargamento do acesso

à sociedade de consumo, que em um contexto de ampliação da lógica mercadológica privatista inclui até

mesmo bens e serviços considerados como direitos constitucionais Assim, de aparelhos celulares a tratamentos ortodônticos (sem a qualidade merecida), de automóveis a planos de saúdes “populares” (também sem a qualidade merecida), de filmes hollywoodianos 3D a curso superior à distância (ainda sem a qualidade merecida), o consumo de mercadorias ampliou-se como nunca no país. Listando essas medidas, passaram pela geração de cerca de 14,5 milhões de empregos, de 2003 a 2014 (cuja análise mais detida revela o caráter precarizado, com predomínio de postos de trabalho com rendimentos mensais médios de 1,5 salários mínimos, com uma taxa de rotatividade imensa, no setor de serviço/comércio). Junto a expressiva geração de empregos precarizados, destacou-se o acesso também expressivo a meios de endividamento: ou seja, para alimentar a dilatação do consumo, passaram a consumir serviços e produtos do

mercado financeiro. Entre 2005 e início de 2013, 42,5 milhões de brasileiros e brasileiras foram “bancarizados” (para usar o jargão técnico). Entre 1996 e 2004, a relação entre o saldo de operações de créditos bancários e o PIB caiu de 26, 4% para 23,4%, ao passo que entre 2004 e 2010, quase dobrou, passando dos 23,4% para 43, 8% . O endividamento das famílias (destacando-se as famílias pauperizadas) foi o principal motor do aumento do crédito bancário, entre 2004 e 2010. Também compôs o referido pacote de medidas a chamada política de valorização continuada do salário mínimo, que entre 2003 e 2014 correspondeu a 72,3%. O efeito desse aumento continuado não incide apenas sobre os que tão acessando o mercado de trabalho, uma vez que a referência dos benefícios pagos pelo INSS, em geral, é o salário-mínimo. É necessário incluir também nesse pacote de medidas o Bolsa-Família, cuja cobertura abarca mais de 50 milhões de pessoas, com um benefício médio de R$ 167,00, e o Benefício de Prestação Continuada (BPC), que paga um salário-mínimo para 2,2 milhões de pessoas com deficiência e 1,8 milhão de idosos com 65 anos ou mais. Ainda é possível incluir no rol de medidas alavancadoras do consumo dos pobres os chamados projetos de geração de trabalho e renda, ancorados em ideologias empreendedoristas e “empoderadoras” (que utiliza a arte e fragmentos de cultura popular como promessas de “ascensão econômica”).

Essas medidas conseguiram gerar capilaridade pelos rincões do país, que se traduziu em densidade eleitoral entre uma massa urbana e rural de trabalhadores

precarizados, informalizados, desempregados. No mesmo ritmo, impactou ainda mais as forças políticas de esquerda e movimentos populares, já afetados pelos efeitos históricos de crise do socialismo realmente existente, dos projetos nacional-desenvolvimentistas de caráter anti-imperialista e democratizante, da corrosão do Welfare State e ascenção do neoliberalismo. A longa vigência do petismo no governo federal beneficiou-se também da abrangência adquirida no ciclo político em que o partido figurou como protagonista, junto com a CUT e o MST. Assim, as bases que favoreceram a integração de vários movimentos sociais e organizações políticas à agenda e ritmo das instituições governamentais estavam delineadas, comprometendo a (indispensável) autonomia de organização e ação.

A mencionada propulsão do consumo ativou o mercado interno que, entretanto, diante do contexto de desindustrialização, passou a ser abastecido por mercadorias importadas, especialmente da China, motor industrial do mundo (responsável, por exemplo, por 90% dos computadores pessoais, 80% dos aparelhos de ar-condicionado e 70% dos aparelhos de telefonia celular consumidos no mercado mundial) . Uma das expressões desse fenômeno revela-se na 38ª queda seguida do número de trabalhadores empregados no setor industrial. O montante de empregos na indústria acumulou baixa de 4,7% nos últimos 12 meses, tomando como parâmetro o intervalo entre novembro de 2013 e novembro de 2014 ; em São Paulo essa porcentagem chegou a 6,1% . Se colocarmos o foco na indústria automobilística, que envolve uma extensa cadeia produtiva, chegaremos ao seguinte número: 12,4 mil postos de trabalho eliminados em 2014, não obstante a isenção e redução de impostos, como o IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) . Com a aplicação do arrocho fiscal, há riscos iminentes dessa tendência se prolongar para além da indústria, aumentando o desemprego em outros setores. Aliás, o crescimento do setor de comércio/serviço, motor da geração recente de empregos formais (precarizados) e, por consequência, da diminuição do desemprego no país, também desacelera: caiu de 2,2 % para 0,8%, no intervalo de março a novembro de 2014 .

Vale citar, ainda, sobre o polo da dominância financeira, que há anos ininterruptos ocorre uma sangria dos recursos públicos para compor o pagamento de um sistema de endividamento tratado como uma lei irrefutável. A tesourada orçamentária de Levy, visando a obediência à “lei

de bronze” da dívida pública, será da ordem de R$ 66 bilhões, em 2015. Eis o famigerado superávit primário, enaltecido como um componente imprescindível de formação da “confiança” do mercado. Em 2013, 40,3% do orçamento foi sugado pelos tentáculos da dívida pública, isto é, R$ 718 bilhões foram mobilizados para um punhado seleto de detentores dos títulos da dívida pública (composto predominantemente por bancos, fundos de investimentos e fundos de pensão), remunerados, em geral, segundo a elevada taxa de referência estipulada pelo Banco Central, chamada Selic. De janeiro a setembro de 2014, os gastos com os serviços da dívida (juros e amortizações) foram de R$ 825 bilhões, o equivalente a 51% de todos os gastos federais, até então . Um dos mecanismos mais bizarros para sustentar essa engrenagem de espoliação reside na medição de “riscos” das economias dos países, feitas por “agências de classificação de riscos”, como a Standard & Poor’s. Com isso, pesou também na decisão do governo federal indicar “Mãos-de-Tesoura” ao Ministério da Fazenda o temor do país perder a classificação “grau de investimento” da Standard & Poor’s, que em março de 2013 mandou uma advertência em forma de um corte de nota, e operou a chantagem oficializada e objetivada.

Porém, uma ressalva é importante quando tratamos do contexto de inchaço da esfera financeira/especulativa do capitalismo contemporâneo: grandes empresas industriais operam também no mercado financeiro/especulativo. Por exemplo, a fusão entre a Sadia e Perdigão (originando a BRF), bem como da Bom Gosto e LeitBom (geradora da Lácteos Brasil S.A.), bancadas e mediadas pelo BNDES, foram motivadas por prejuízos enormes em operações (especulativas) de alto riscos no mercado financeiro, precipitados pelo estouro da bolha imobiliária, em 2008, nos EUA. E poderíamos ficar aqui enumerando, exaustivamente, exemplos do entrelaçamento entre esferas industrial e financeiro-especulativo, no contexto de financeirização econômica, bombeada pela super-acumulação de capital em forma monetária, erguida sobre a desregulamentação de mercados e operada por meio das novas tecnologias informacionais da terceira revolução industrial da microeletrônica.

O absurdo da mencionada engrenagem de espoliação fica mais realçado em um país que ainda ostenta uma vergonhosa disparidade econômico-social, na qual 60% da riqueza concentra-se nas mãos de 1% da população em forma de lucros, juros, aluguéis e renda da terra. Contribui decisivamente para a perpetuação dessa situação o conjunto de impostos que incide, principalmente, sobre o consumo de mercadorias (incluindo serviços), independente do nível de renda de quem o realizou, como o ICMS (Imposto sobre circulação de mercadorias e prestação de serviços) e o IPI (Imposto sobre produtos industrializados). Esse tipo de imposto corresponde a quase a metade de todos os tributos arrecadados no

O crescimento foi impulsionado por preços

inflacionados e especulados das commodities, num circuito avassalador de

pilhagem de recursos naturais e devastações

culturais.

A espoliação sistemática produz um país onde 60%

da riqueza concentra-se nas mãos de 1% da população em forma de lucros, juros, aluguéis e renda da terra.

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país. O Imposto de Renda, contribui com menos de 20% da arrecadação tributária, enquanto que outros impostos cobrados sobre o patrimônio têm uma representatividade irrisória no total arrecadado. O fato é que os tributos regridem (no lugar de progredirem) conforme aumenta a renda, fixando um sistema predominantemente regressivo e indireto. Logo, no Brasil pobre paga mais tributo, proporcionalmente, do que rico: o trabalhador com até dois salários mínimos compromete, em média, 53,9% da renda com impostos, ao passo que o endinheirado com rendimentos acima de 30 salários mínimos compromete 29% . No caso do Imposto de Renda de Pessoas Físicas cabe, ainda, uma consideração importante: em 2013, o montante previsto de deduções referentes a gastos com saúde e educação privadas, dentre outros, foi de R$ 37,354 bilhões . Vale lembrar que no ano passado o investimento do Bolsa Família foi de R$ 24,5 bilhões. Assim, trabalhadores mais espoliados participam do financiamento dos gastos privados da elite e da classe média, de onde provêm, em grande parte, reprovações segregadoras e rancorosas de qualquer política de transferência de renda com condicionalidades, como o Bolsa Família, e de ações afirmativas, como as políticas de cotas nas universidades públicas.

Para seguir a análise, frisamos um indicador econômico - a balança comercial. Em 2014, tivemos o pior déficit da balança comercial,

desde 1998, no valor de U$ 3,93 bilhões. Isso indica que o país está exportando menos mercadorias e serviços; o reverso da mesma moeda é que o país está importando mais, e é exatamente esse montante de importados que alimenta o consumo interno aquecido. Esse ciclo contribui para o prolongamento da forte tendência à desindustrialização, em um contexto capitalista marcado pela financeirização/especulação e hipertrofia do setor de serviço/comércio. No caso do Brasil, essa tendência acompanhou a derrocada do projeto desenvolvimentista da ditadura empresarial-militar e foi aprofundada pelo receituário neoliberal implementado pelo PSDB, que estagnou investimentos de infraestrutura, promoveu um escancaramento comercial, arremessou a taxa básica de juros Selic nas alturas, assim como a taxa de câmbio (em nome de uma dogmática “estabilidade” monetária), dentre outras medidas. Mesmo assim, o Ministro Monteiro Neto e seus pares burgueses, amplificados pela grande mídia, não vacilam na defesa de um remédio conservador: para injetar um “choque de competitividade” no país, reivindicam a imediata diminuição do que denominam “custo-Brasil” e, como de costume, o foco recai sobre o barateamento da “força de trabalho”, considerada muito cara. Logo, a pressão para a precarização das condições de trabalho é muito grande e envolve diretamente direitos trabalhistas. Um ranking de custos de produção dos 25 países que mais exportam no mundo colocou o Brasil na 22ª posição.

Promovido por uma empresa de consultoria (Boston Consulting Group), divulgado na grande mídia (especialmente em publicações voltadas ao público empresarial), colocou Indonésia e Índia, respectivamente, como campeã e vice-campeã; México e Tailândia, empatados, em terceiro lugar, ultrapassando a China, que consta no quarto lugar . É importante lembrar que na posse presidencial, Dilma Rousseff proclamou: “nenhum direito a menos, nenhum passo atrás, só mais direitos e só o caminho à frente. Esse é meu compromisso sagrado perante vocês”. Contudo, um grave alerta soou: a tesourada de R$ 18 bilhões em cinco benefícios previdenciários: seguro-desemprego, abono salarial, pensão por morte, auxílio-doença e seguro-defeso (benefício direcionado para os pescadores). A nova rodada de arrocho fiscal estava inaugurada.

Os sinais de alerta aumentam quando verificamos o perfil predominante no Congresso Nacional eleito em 2014. Além disso, quando grandes obras de infraestrutura e megaempreendimentos são negociadas com os principais patrocinadores de campanhas eleitorais, o financiamento privado de campanhas converte-se em investimento prioritário e estratégico, na qual as faturas serão cobradas, e por meios diversos. Somente sete grandes empresas da construção civil, UTC, Odebrecht, Queiroz Galvão, Engevix, OAS, Galvão Engenharia e Camargo Corrêa foram responsáveis por doações de R$ 111,4 milhões a candidatos a governos estaduais e a presidência da República de vários partidos diferentes . Se tomarmos como parâmetro temporal a chamada “redemocratização”, um mapeamento das identidades políticas dos parlamentares eleitos em 2014 indica uma reprodução ampliada do conservadorismo. Comportando uma fragmentação partidária inédita de 28 partidos (seis a mais em relação a legislatura passada), o “novo-velho” Congresso revela-se majoritariamente adepto ao inchaço do poder punitivo. Nesse caminho, por exemplo, propostas de diminuição da maioridade penal são defendidas abertamente, assim como o massacre cotidiano contra a juventude negra e pauperizada não sensibiliza grandes debates e ações no espaço dos poderes estatais. Além do mais, no bojo do conservadorismo ampliado, a homofobia e as mais diversas formas de opressão e discriminação ganham espaço. Também podemos destacar o aumento das ameaças à diversidade religiosa, cujo foco, em especial, são as manifestações de matrizes afrobrasileiras. Sob o compasso da bancada empresarial, das entidades empresariais de classe e da grande mídia, a

maioria parlamentar identifica-se com as propostas que carregam contra-reformas trabalhistas e previdenciárias em nome do tal “choque de competitividade”, postulado para a economia brasileira voltar a crescer. Em relação ao oligopólio midiático, um mero aceno (ainda impreciso) de se inaugurar uma discussão acerca da regulação da mídia já suscitou fortes reações de parlamentares. O debate da reformulação do sistema político-eleitoral não passa de um “lenga-lenga” que, como um pêndulo, transita da pasmaceira para o cinismo, e vice-versa. Por ora, enfocamos brevemente o Congresso Nacional, mas se ampliarmos a análise para os Legislativos estaduais e municipais o cenário não será menos desolador.

A questão urbana (ou melhor, a crise urbana) também merece destaque. Atualmente, cerca de 85% dos brasileiros e

brasileiras moram em cidades, erguidas sobre dinâmicas cada vez mais cristalizadas de segregação e espoliação socioespaciais, operadas por vias entrelaçadas do mercado e do Estado. O peso econômico do capital imobiliário traduz-se em um similar peso político, esparramado pelos diversos setores e níveis do Estado. Nesse circuito espoliador e segregador, o drama do déficit habitacional continua afetando milhões de mulheres e homens, e enquanto isso a especulação fundiária, patrimonial e imobiliária não apenas prossegue nos termos tradicionais, mas propaga seu alcance às periferias urbanas, provocando “periferias das periferias”. O encarecimento do aluguel em favelas e bairros periférico de Rio de Janeiro e São Paulo, por exemplo, expulsa os moradores para lugares mais distantes. Falando na cidade do Rio de Janeiro, a propósito, de 2009 a 2014, a média de valorização do metro quadrado chegou a 262% e dos aluguéis a 143%.

O Programa Minha Casa Minha Vida, alheio a um projeto de transformação radical das cidades, não gera um enfrentamento às teias segregadoras da especulação e à periferização das periferias. Entre os vários dispositivos dessa política que beneficia o grande capital imobiliário, está o pagamento às empreiteiras de um valor fixo para as construções, a atribuição de definição dos terrenos e do tamanho das unidades habitacionais. A consequência é previsível: a utilização dos piores e mais longínquos terrenos do banco de terras dessas empresas e a construção de unidades habitacionais no tamanho mínimo – 39 metros quadrados. Não poderíamos deixar de registrar que os badalados megaeventos esportivos (como Copa e Olimpíadas), na condição de privilegiadas ferramentas

do empresariamento urbano (novo modelo de gestão de cidades que, além de preparar o espaço urbano para a produção, circulação e consumo de mercadorias, trata e gere a cidade como uma mercadoria propriamente dita), acelera a máquina urbana de segregação e espoliação. A intensa e sofisticada mercantilização urbana vende vitrines de cidade, mas não consegue “jogar para debaixo tapete” o absurdo acúmulo de mazelas decorrentes da crise urbana. É possível, inclusive, avaliarmos que a grande onda de atos de junho de 2013 bem como o aumento expressivo de ocupações urbanas a partir daquele período tiveram como pano de fundo a crise urbana.

Um dos mais tenebrosos capítulos dessa crise exprime-se no homicídio em massa de mais de 1 milhão de brasileiros, em três décadas (de 1980 a 2010). Acomodada ao funcionamento cotidiano do regime democrático em vigor, essa mortandade é marcada pela seletividade étnico-racial, econômica e espacial: jovens negros, pauperizados e moradores de áreas urbanas favelizadas compõem, preferencialmente, as cifras do extermínio vigente no Brasil . E

é exatamente esse massivo segmento de seres humanos mais vulneráveis ao extermínio que superlota os presídios brasileiros, formando a terceira maior população carcerária do mundo, atrás apenas dos EUA e da China. Em junho de 2014, o país contabilizava 715.655 presos. O aprofundamento da militarização das polícias encontra correspondência na ampliação do direcionamento das Forças Armadas à atuação no plano interno, em nome da “garantia de lei e ordem”. Governança territorial armada de territórios favelizados, como ocorre no complexo de favelas da Maré, e reestruturação do Centro de Informações do Exército (CIE) para monitorar movimentos sociais, demonstram que a hipertrofia vigilante-repressiva-punitiva atinge também as lutas políticas alem de atuar diretamente na criminalização da pobreza. Nesse contexto, tornam-se cada vez mais claro os limites e o esgarçamento da acrobacia de governo que pretendia dar aos pobres - e mantê-los quietos -, mas sem tirar dos ricos. 2015 e também os próximos anos prometem...fatgr

Muito mais poderia ser dito. Por ora, paramos por aqui, destacando a urgência do real combate à lógica capitalista (que destrói fundamentos naturais e sociais básicos para uma vida digna) assim como da reinvenção radical dos modos de organização social. Por isso, mesmo permeado por contradições e com mediações ainda limitadas, o exercício do protagonismo popular das massas que sofrem diretamente os efeitos da crise urbana é essencial. É esse o fundamento do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto.•

Clarice ChaconFelipe Brito

Guilherme SimõesHenrique Sater

Conselho ExecutivoTerriTórios Transversais

O debate da reformulação do sistema político-eleitoral num contexto de retrocesso evidente não passa de um

“lenga-lenga, um pêndulo que transita entre a pasmaceira e

o cinismo.

O Minha Casa Minha Vida, alheio a um projeto de transformação radical

das cidades não gera um enfrentamento às teias

segregadoras da especulação.

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6 • Territórios Transversais - resistência urbana em movimento

Valter Pomar

A TerriTórios Trans-versais pediu que eu es-crevesse um artigo sobre os rumos do lulopetismo.

Responder exige explicar o que compreendo por cada um dos termos da pergunta: o que são as “bases sociais do Brasil”? Que transformações estão ocorrendo em nossa sociedade? Qual o papel do PT e de Lula nessas transfor-mações?

O Brasil é uma sociedade capitalista, como a maior parte do planeta. O que diferencia a formação social brasileira de outras éx o processo específico, históri-co, pelo qual o capitalismo se desenvol-veu aqui: dependência, desigualdade e democracia restrita.

O desenvolvimento do capitalismo no Brasil, nos momentos de crescimen-to intenso e de recessão, em épocas de bonança internacional e de crise, foi possível graças à manutenção de imen-sas taxas de desigualdade social, de for-tes restrições às liberdades democráticas (sem as quais a desigualdade seria posta em questão) e de grande dependência externa (ideológica, militar, política, tec-nológica, de capitais, de mercados etc.).

Em outros termos: os grandes capi-talistas transformaram-se, ao longo do século XX, em classe dominante, man-tendo e aprofundando padrões de subor-dinação externa, exploração econômica e opressão política herdadas de períodos pré-capitalistas. Houvesse mais demo-cracia e bem-estar social, os capitalistas brasileiros não teriam enriquecido como enriqueceram.

Quem olha o Brasil de hoje e com-

para com o Brasil de 1914, vê um país maior e mais desenvolvido. Mas este crescimento/desenvolvimento foi obti-do como? Longos períodos de ditadura aberta ou de restrições fortes às liber-dades democráticas mais básicas. Uma constante dependência em relação às metrópoles capitalistas. E uma intensifi-cação, pelos mais variados meios, da ex-ploração das clas-ses trabalhadoras (a de pequenos proprietários e a de assalariados).

Este cresci-mento/desenvol-vimento ocorreu através de intensa luta. No Brasil, a história da tran-sição capitalista (a partir de 1850) e do capitalis-mo industrial (a partir de 1930) foi marcada por duro enfrentamento entre duas vias de desen-volvimento capitalista.

Claro que havia setores reacionários, agraristas, contrários ao desenvolvimen-to, que foram perdendo influência à exata medida que o capitalismo central passou à fase imperialista, de exportação de capitais, portanto, em alguma medi-da, estimulando o desenvolvimento de parte da periferia.

Claro que havia socialistas e comu-nistas. Mas, até 1980, estas forças se vi-ram diante de duas situações: ou não tinham influência relevante na luta po-lítica e social; ou se convertiam em linha

auxiliar das forças que defendiam um desenvolvimento capitalista democrá-tico, contra aqueles que defendiam um desenvolvimento capitalista conserva-dor.

No embate entre capitalismo de-mocrático (que defendia desenvolver ampliando a democracia, a soberania e o bem- estar) e o capitalismo conserva-

dor (que implicava em desenvolver conservando os níveis de desigual-dade, dependên-cia e democracia), quem geralmente levou a melhor, até 2002, foram os conservadores.

Há várias cau-sas para isto, mas duas delas têm muito interesse para o debate da

situação atual.A primeira causa é, exatamente, o

atraso relativo do desenvolvimento ca-pitalista no Brasil. O capitalismo chegou ao Brasil bem depois de já estar instalado solidamente nas regiões centrais. Du-rante muito tempo, conviveu com uma formação social que não era hegemoni-camente capitalista. E, durante todo o século XX, permaneceu existindo uma defasagem entre o nível de desenvolvi-mento capitalista no Brasil e nos países centrais.

Qual a conclusão que a maior parte das forças políticas tirou desse fato? A de que existe um grande espaço para o

desenvolvimento capitalista no Brasil. Motivo pelo qual o desenvolvimento foi e segue sendo palavra-chave na boca das mais variadas correntes ideológicas e for-ças políticas. Mas qual desenvolvimento?

Aí entra em cena a segunda causa das vitórias conservadoras: certo paradoxo enfrentado pelos que defendem um de-senvolvimento capitalista democrático. A saber: o capitalismo, tal como existe no Brasil, depende de altas taxas de de-sigualdade, conservadorismo político e dependência externa. Construir uma via de desenvolvimento capitalista democrá-tica implica, portanto, em choque com os próprios capitalistas. Choque que só pode resultar na vitória dos democráti-cos se estes mobilizarem as camadas po-pulares, cujo movimento traz para o pal-co questões que entram em choque com os limites do próprio capitalismo.

Por isso, os defensores do desenvolvi-mento capitalista democrático se viram frequentemente diante de uma encruzi-lhada: ou avançar por uma estrada que daria numa transição socialista, ou con-ciliar com os defensores do desenvol-vimento capitalista conservador. Estes últimos nunca pagaram para ver, motivo pelo qual é muito comum que promo-vam golpes preventivos contra “ameaças comunistas” que, na verdade, não são comunistas, mas sim democrático-capi-talistas.

Em resumo: o desenvolvimentismo conservador não apenas conta com as vantagens da inércia e da força de quem é dominante, mas também com uma “fragilidade estrutural” do desenvolvimento capitalista

pra onde vai o lulopetismo?

fator de transformação

Neste número, tERRitóRios tRAnsvERsAis inaugura a sessão “Debates Transversais”, apresentando discussões que se impõem sobre a realidade social do Brasil e do mundo com a mediação de visões distintas que estimulem a leitura crítica de acontecimentos concretos. Respondem sobre os rumos do lulopetismo, Valter Pomar, importante quadro petista e Maria Orlanda Pinassi, professora universitária alinhada aos Movimentos da esquerda anticapitalista.

Os defensores do desenvolvimento capitalista

democrático se viram diante de uma

encruzilhada: ou avançar por uma estrada que daria

numa transição socialista, ou conciliar com os defensores

do desenvolvimento capitalista conservador.

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DEBATES TRANSVERSAIS

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Territórios Transversais - resistência urbana em movimento • 7

pra onde vai o lulopetismo?

adeus às ilusões!Quem não se lembra da fes-

ta em que se anunciava a vitória de Dilma Rousse-ff, lado a lado com Lula,

Ruy Falcão e as eminências pardas dos partidos coligados (PT, PMDB, PDT, PC do B, PP, PR, PSD, PROS e PRB), os abutres prontos para cobrar os interesses do grande capital ali en-volvido? Nenhum movimento social, nenhum partido de esquerda, nenhum sindicato presente, apenas os “novos companheiros” que mostravam que a brincadeira acabava ali. Ou seja, que a próxima gestão Dilma seria antipopu-lar e bem mais austera em termos eco-nômicos e políticos.

Pois bem, o ante e o post festum do pleito presidencial chamam à refle-xão. Afinal, os apelos que provocaram debates acalorados e polarizados entre uma suposta esquerda e uma suposta direita, sobretudo no 2º turno, re-sultam num quadro ministerial que tanto poderia ter sido convocado por um como por outro dos candidatos em contenda. Além disso, a declara-ção subsequente da candidata eleita de que não representa o PT, mas a Presidência da República, justamente num momento em que o partido pa-recia pedir uma aproximação maior com o Planalto, é uma firme demons-tração de que o grande vencedor das eleições foi, de fato, o grande capital, representado nas alianças de sua cha-pa e na chapa do seu adversário. E é o grande capital que agora exige o reco-lhimento da forma petista de governar sob “consenso” e do lulismo, esse ge-nial recurso ideológico tão funcional durante a campanha para assimilar e atrair as massas para o inferno que as aguarda.

Será que Lula, o PT, etc., voltarão para as hostes da oposição, propondo um retorno triunfal ao Planalto em 2018, para novamente cumprir aque-la sua antiga função regeneradora da reprodução do sociometabolismo do capital? Haverá ainda condição mate-rial para o êxito desse tipo de política “band aid” que já comprovou ao lon-go de sua história talento especial para o desmonte das lutas populares?

Enquanto aguardamos as próximas movimentações do setor, é bem pro-vável que precisemos dizer: adeus “nova classe média”, adeus consumismo popular, adeus políticas com-pensatórias. Frente a uma economia ten-dente à estagnação, a uma pressão infla-cionária que bateu a casa dos 6,75% nos últimos 12 meses, o capital parece exigir mudanças na política econômica para que novos saltos desenvolvimentistas se-jam dados no Brasil. Para isso, é ne-cessário um governo que destrave os investimentos, dê novos rumos à po-lítica fiscal a fim de diminuir a dívida pública e ainda passar credibilidade aos investidores. Acima de tudo, é preciso que o governo implante uma política de sacrifícios “de curto prazo”, con-forme as palavras de Bresser Pereira, fundador do PSDB que migrou para as hostes de Dilma ainda durante a campanha. Esse importante intelectu-al da burguesia afirma que

Para tornar a taxa de câmbio com-petitiva, neutralizando sua tendência

à sobreapreciação cíclica e crônica, é necessário que o governo rejeite [os] populismos. Se a inflação não tiver um componente inercial importante, a so-lução é a redução da demanda.

Resumo da ópera: os anos vindou-ros serão ainda mais duros para as clas-ses trabalhadoras e a tendência absolu-tamente destrutiva de qualquer forma de desenvolvimentismo na atualidade encontrará neste próximo governo maiores facilidades para seguir sua investida predatória sobre os recursos

naturais e sobre as populações que estiverem na rota dos seus interesses. Sobre isso, foi bastante promissora para o setor da mine-ração, do agro- e do hidronegó-cio, a recusa de Dilma Rousseff, ainda na fase de campanha, em assinar docu-

mento que propõe a redução da der-rubada das florestas do mundo pela metade até 2020 até chegar ao desma-tamento zero em 2030, a Declaração de Nova Iorque sobre Florestas, pro-posta durante a Cúpula do Clima das Nações Unidas, em setembro de 2014. Naquele momento, a candidata acena-va positivamente para essa política de desenvolvimento sem limites que de-verá ser implantado por aqui.

Enquanto se urdia toda essa real intencionalidade do processo elei-toral nos bastidores do interesse pri-vado – que, aliás, é onde se decidem os destinos da nação – a cena pública

era conduzida por uma maniqueís-ta polarização entre a PSDB e o PT. A “grande questão” trazida para as massas alienadas se dava em torno da corrupção, de qual dos lados possuía mais exemplares da espécie, e qual o melhor programa de implementação da ética na política parlamentar. Uma contradição dos termos. De um lado, denuncismo espetaculoso nos debates e nas mídias, de outro, uma acanhada campanha pela reforma eleitoral.

Esse plano de sensibilização popu-lar fez tábula rasa dos mais sérios pro-blemas sociais do país: pior, procurou desviar-se deles. Foi outra manobra que reitera o velho e bom princípio liberal de que o “político” se presta a aprimoramentos, desde que devida-mente separado das tomadas de deci-são econômicas, estas sim preservadas de qualquer contaminação popular e controladas com mão de ferro pelo capital.

A cena descrita manteve-se completamente apartada do Brasil real, o Brasil que vem sendo desenhado nas ruas, nos canteiros de obras, em pátios de fábricas, garagens de ônibus, por uma massa crescente de trabalhadoras e de trabalhadores, empregados, desempregados. Uma massa profundamente insatisfeita com os impactos particularmente duros e negativos que o capital em crise estrutural já vem lhe aplicando há, pelo menos, duas décadas no Brasil. Refiro-me àqueles que vêm se empenhando em lutas populares e contingentes, sem organização protagonista, lutas que, por absoluta necessidade histórica e por esgotamento das mediações institucionais, se abrem para o enfrentamento direto.

Maria Orlanda Pinassi

Neste número, tERRitóRios tRAnsvERsAis inaugura a sessão “Debates Transversais”, apresentando discussões que se impõem sobre a realidade social do Brasil e do mundo com a mediação de visões distintas que estimulem a leitura crítica de acontecimentos concretos. Respondem sobre os rumos do lulopetismo, Valter Pomar, importante quadro petista e Maria Orlanda Pinassi, professora universitária alinhada aos Movimentos da esquerda anticapitalista.

O momento urge a absoluta necessidade

de se retomar ocaminho das lutas

ofensivas, da construção de projetos

emancipatórios que não podem caber na negociação, nem no

consenso.

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8 • Territórios Transversais - resistência urbana em movimento

Neste quadro, importa compreender o papel desempenhado pela atual explosão de greves deflagradas – das 446 greves, em 2010, saltou-se para mais de 900 em 2013, em alguns casos à revelia dos seus sindicatos pelegos - por trabalhadores dos setores públicos e privados, muitos dos quais terceirizados, precarizados. Ressalto aqui o belo movimento articulado pelos garis e professores da rede pública do Rio de Janeiro, pelos metroviários de São Paulo (neste caso, organizados por um sindicato combativo), por motoristas e cobradores em várias cidades brasileiras, pelos milhares de trabalhadores que frequentemente paralisam obras da magnitude das hidrelétricas de Belo Monte (PA) e de Jirau (RO), do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro - COMPERJ, dos estádios construídos para o Mundial de 2014. Relevante, ainda, o papel do Movimento Passe Livre em luta pelo “transporte gratuito de verdade” e pela mobilidade urbana. Ressalto também os movimentos de denúncia da violência policial sobre as populações pobres das periferias, com destaque para as Mães de Maio e o Tribunal Popular – o Estado no Banco dos Réus. E, certamente, os movimentos de luta por moradia e ocupação contra as violentas remoções e os enormes gastos públicos para atender aos interesses das empresas envolvidas com a Copa da FIFA. e com a especulação imobiliária, dentre os quais ganham relevo, no último período, o Movimento de Trabalhadores Sem Teto (MTST) e a Articulação Nacional dos Comitês Populares da COPA (ANCOP).

Localizados algumas vezes fora das vistas e do controle democrático do Estado, esses movimentos, mais ou menos conscientemente, podem de-sencadear, através da ação mobilizadora das ruas, um efetivo processo de poli-tização das massas, algo que as formas tradicionais, ao adotarem a linha de menor resistência, há tempos abando-naram. A princípio, atuam sem as me-diações oferecidas e controladas pelo capital, e costumam remeter-se direta-mente aos motes causais (econômicos) de seus infortúnios: salários, condições de trabalho, dos serviços de transpor-te, saúde, educação, moradia, terras são alguns dos seus alvos. E por mais frag-mentados, pontuais e distanciados de um projeto social alternativo, podem – por que não? – constituir um salto im-portante em relação às ações contidas no universo das regras institucionais, não porque prescindam delas absoluta-mente, mas porque as precedem. Caso mais emblemático dessa ofensiva é o da luta dos indígenas pela autodemarcação de terras.

Em geral, não surgem como movi-mentos anticapitalistas, mas seu maior trunfo é que dessa maneira pouco or-todoxa vão desnudando os limites cada vez mais estreitos do capital que, na atual quadra histórica, não pode, nem quer atender às reivindicações mais elementares da classe, como seria de se esperar em épocas mais favoráveis. Por isso mesmo, esses movimentos têm

sido alvo de repressão policial ostensiva, de criminalização, e seus manifestantes submetidos a condenações sumárias. Somente desse modo o Estado se dis-põe a controlá-los.

Pelo andar da carruagem, imagi-na-se que o agravamento social que certamente advirá da nova política econômica intensifique ainda mais a necessidade dos ativos militarizados ora em curso de intensificação no país. Uma movimentação vem se verifican-do no Planalto nesse sentido: no final do ano de 2014, a presidente anunciou que enviaria ao Congresso uma pro-posta de emenda à Constituição (PEC) para que a União divida com os estados a responsabilidade pelas políticas de se-gurança, que atualmente é uma atribui-ção dos estados da nação.

Parece, então, que a escolha exito-sa no pleito, tanto quanto seria a ou-tra, vai nos oferecer as pedras que irão pavimentar o caminho do inferno, ou seja, vai consolidar um padrão de de-senvolvimento requisitado pelo capital que certamente irá potencializar a esca-lada da superexploração do trabalho, da destruição ambiental, do extermínio da população pobre, da judicialização das questões sociais.

Os incautos que, no afã da cam-panha, acreditaram na esquerdização de Dilma, que apostaram tão credula-mente nesta vã alternativa tiveram, sim, uma vitória de Pirro. O fato se explica pelo caráter extraparlamentar do capital que decide, como já dissemos, no âm-bito privado, e em causa própria, quem terá mais competência, capacidade de gestão e de persuasão para gerenciar a máquina do Estado. Mesmo porque as instituições políticas visam garantir a continuidade do poder econômico do capital sobre o trabalho, jamais superá-lo. Ou ainda, como diria Mészáros,

… o capital afirma-se diante da socie-dade não apenas como poder de facto, mas também como poder de jure, já que ele se apresenta como condição necessária e objeti-va da reprodução societária e, portanto, como o fundamento constitucional de sua própria ordem política. A legitimidade constitucional do capital é historicamente baseada na expro-priação direta dos produtores das condições de reprodução sócio-metabólica – os instrumen-tos e materiais de trabalho -, portanto, a ale-gada “constitucionalidade” do capital (como a origem de todas as constituições) é inconsti-tucional; mas essa verdade intragável perde-se nas brumas do passado remoto.

Nossa história recente está plena de “montanhas parindo ratos”, de grandes intenções progressistas caindo na linha de menor resistência, deixando-se se-duzir por discursos politicizadores. O momento urge a absoluta necessida-de de se retomar o caminho das lutas ofensivas, da construção de projetos emancipatórios que não podem caber na negociação, nem no consenso. Si-nais de fumaça no ar!•

1)http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/veja-quem-doou-para-a-campanha-de-dilma-rousseff/2) Luiz Carlos Bresser Pereira. “Que desenvolvimento”. In Revista Margem Esquer-da, nº 23, outubro de 2014 (p. 28).3)agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2014-11/dilma-enviara-pec-ao-congresso-para-uniao-atuar-com-estados-na-seguranca4) István Mészáros. “A necessidade de se contrapor à força extraparlamentar do ca-

pital”.

democrático. Fragilidade que pode ser resumida assim: o capitalismo não se dá bem com a democracia.

De 1980 até hoje, o que mudou?Em primeiro lugar, o desenvol-

vimento capitalista brasileiro atingiu grande maturidade. Com isso, a clas-se trabalhadora assalariada passou a ter um peso maior que antes, e isso se traduziu numa mudança na liderança e na orientação dos setores defensores de uma via capitalista democrática.

No segundo turno das eleições de 1989, o conflito foi entre extremos: um neoliberal encabeçando os que defendiam um desenvolvimento con-servador, um socialista encabeçando os que defendiam um desenvolvi-mento democrático.

Este fato poderia ter resultado, nos anos 1990, numa mudança dos ter-mos da equação fundamental da his-tória brasileira. Ao invés do conflito entre duas vias de desenvolvimento capitalista (uma conservadora e outra democrática), poderíamos ter passado a um conflito entre via capitalista e via socialista de desenvolvimento.

Mas não foi isso o que ocorreu. O PT e Lula continuaram liderando o enfrentamento com o conservado-rismo. Mas o fizeram a partir de um programa de desenvolvimento capita-lista democrático, não a partir de um programa socialista.

Por que motivo isso ocorreu?Há explicações para todos os gos-

tos. Para quem acredita que os fatos fundamentais da história não podem ser explicados por escolhas subjetivas, mas que as escolhas subjetivas é que podem ser explicadas pelos fatos fun-damentais, é preciso entender o que ocorreu na luta de classes.

E o que ocorreu na luta de classes, no Brasil e no mundo, nos anos 1990, é fartamente conhecido: um retro-cesso do socialismo, uma ofensiva capitalista, uma regressão neoliberal.

Um dos efeitos do neoliberalismo foi enfraquecer a classe trabalhadora brasileira e, com isto, enfraquecer as bases objetivas de uma via de desen-volvimento socialista.

Claro que, diante desse fato obje-tivo, havia diversas alternativas. Uma delas seria dobrar a aposta na defesa de uma via de desenvolvimento so-cialista, sem mediações. Outra seria passar a ter como objetivo estratégico não mais o socialismo, mas sim uma via de desenvolvimento capitalista democrática. Uma terceira seria fazer um recuo tático, que nos permitisse reconstituir as bases estratégicas de uma via de desenvolvimento socia-lista.

A partir de 1995, a posição majo-ritária no PT foi aderir ao desenvol-vimento capitalista democrático. Não

foi uma mudança de direito, pois o socialismo segue nas resoluções como objetivo estratégico do Partido. Mas foi uma mudança de fato e que ad-quire cada vez mais cidadania no dis-curso petista, como se pode constatar pela defesa veemente que vem sendo feita, de um “país de classe média”.

O PT venceu as eleições presi-denciais de 2002, 2006, 2010 e 2014 e governa o país orientado por esta perspectiva estratégica, capitalista democrática. Neste sentido, foi mais longe do que todos os seus antecesso-res. Mas também levou mais longe a contradição fundamental de todo os que defendem uma via de desenvolvi-mento capitalista democrática.

Repetimos o que já dissemos an-tes: o capitalismo, tal como existe no Brasil, depende de altas taxas de desi-gualdade, conservadorismo político e dependência externa. Construir uma via de desenvolvimento capitalista democrática implica, portanto, em choque com os próprios capitalistas. Choque que só pode resultar em vi-tória dos democráticos caso eles mo-bilizem as camadas populares. Cujo movimento traz para o palco questões que entram em choque com os limi-tes do próprio capitalismo.

Por isso, o PT está diante de uma encruzilhada: ou avançar por uma estrada de reformas estruturais, de-mocráticas, populares e socialistas; ou conciliar com os defensores do desen-volvimento capitalista conservador. Que novamente estão demonstrando que não pagam para ver, motivo pelo qual já se fala de golpe contra a “ame-aça comunista”.

O Brasil vive, há alguns anos, este dilema: ou construímos um caminho de desenvolvimento democrático que se articule com uma via de desenvol-vimento socialista ou, no final das contas, por um caminho ou outro, acabará prevalecendo o desenvolvi-mento conservador.

O desfecho deste dilema depende de opções que estão sendo tomadas aqui e agora, mas é certo que vere-mos choques de proporções cada vez maiores.

Qual a posição de Dilma, Lula e o PT frente a esse dilema?

O que foi feito ao longo desses doze anos pode ser resumido assim: os governos federais encabeçados pelo PT estão tornando possível recom-por, mesmo que lentamente, a força objetiva e subjetiva da classe trabalha-dora; mas não fomos capazes de des-montar as bases objetivas e subjetivas do poder do grande capital e seus alia-dos.

Para fazer isto, o PT precisará adotar outra estratégia. Nisso estamos empenhados.•

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É como encontrar ouro no meio do lixão. Rota 66: a história da Polí-cia que mata, de Caco Barcellos, é garantia de que não haverá ar-

rependimento na leitura, mas um incomum êxtase com uma reportagem explosiva. Tensa, contundente, a narrativa desse livro alcança in-tensidade e vibração, como se cada parágrafo da leitura fosse o momento decisivo de um livro que respira ofegantemente, sem pausas. Isso faz dessa obra algo singular no jornalismo brasileiro – um jornalismo, aliás, tão amesquinhado, aco-vardado, canalha.

Publicado em 1992, o livro de Caco Bar-cellos, um dos grandes nomes do jornalismo investigativo brasileiro, hoje na TV Globo, foi considerado o mais completo estudo sobre as origens da Polícia Militar. E privilegia, na sua investigação, o trabalho das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, a Rota, entre as décadas de 1970 e 1990. objetivo era extremamente ousa-do e altamente perigoso: conhecer em porme-nores o perfil das vítimas da PM, e as circuns-tancias em que foram mortas. Estamos diante de um escritor decidido a desvendar e denunciar os crimes da PM. E o faz, sem subterfúgios.

Tudo começou no dia 9 de abril de 1970, quando ocorreu a fusão da Polícia Civil e da Força Pública, para a criação da Polícia Militar de São Paulo. Em 1969, os que seriam conheci-dos como policiais militares eram treinados pelo Exército a usar metralhadoras, não para proteger a sociedade, como se costuma dizer, mas para combater guerrilheiros. Desde então, essa mes-ma polícia decidiu garantir a segurança das ci-dades brasileiras sob um conceito de segurança pública no mínimo questionável. É como se a população fosse um inimigo externo. Na reali-dade, o alvo central da PM é um setor da socie-dade brasileira: jovem, pobre, negro ou pardo. O autor mostra que as vítimas são escolhidas a partir de uma simples desconfiança. Durante os crimes narrados, a Rota desobedece algo que qualquer policial do mundo conhece desde o final do século XIX, quando surgiu a crimina-

lística na França: o local do crime deve ser pre-servado. Mas esse é apenas um dos festivais de irregularidades cometidos. Inverte-se sempre o argumento: “o morto é sempre o culpado por sua própria morte”.

Munido de um banco de dados preciso e ex-tenso, confeccionado por mais de sete anos de pesquisa, através de observações e entrevistas feitas no pátio do Instituto Médico Legal de São Paulo, da leitura atenta do extinto jornal Notí-cias Populares, e do trabalho árduo na sala em-poeirada do IML onde estavam guardadas as in-formações para cada registro de morte, Barcellos chegou a uma triste constatação: o número ofi-cial de civis assassinados pelo esquadrão de mor-te é comparável ao de uma guerra. A PM de São Paulo matou mais do que em Canudos, mais do que no Contestado, mais do que na Guerra da Vacina, mais do que nas insurreições pernam-bucanas. Só perde para a Guerra do Paraguai.

Vinte e dois anos depois de seu lançamento, em que retratou com qualidade literária os ce-nários e bastidores de matança da Rota, o livro tem uma atualidade impressionante. Afinal, nos últimos anos, a PM não cessou de executar ci-vis – na maioria inocentes, diga-se de passagem –, mas potencializou a matança credenciando-se como o mais notável bastião de incivilidade do país. Entre 2005 e 2009, por exemplo, a PM de São Paulo matou nove vezes mais do que toda a polícia dos Estados Unidos. Em Rota 66, Barcellos não abordou a violência da polícia em ações de mediação de conflitos sociais ur-banos, mas apenas investigou o patrulhamento regular da cidade. Eis aqui um tema promissor, extremamente ousado e perigoso, já que as for-ças policiais têm agido desproporcional e barba-ramente em ações de reintegração de posse. Se não colocamos de uma vez por todas, na agen-da pública, o debate acerca da extinção da PM ou da desmilitarização da polícia, a sociedade brasileira continuará condescendente não com matadores de bandidos, mas com matadores de inocentes. E não adianta dizer que isso é discur-so de militante que não tem o que fazer da vida, e que a polícia faria um trabalho digno. Lem-brem-se: por cada morte nas periferias, mesmo a quilômetros de distância, a responsabilidade é da sociedade. •

treinado para matar:a atualidade de Rota 66

Deni Ireneu Alfaro Rubbo

RESENHA

“- Calma, meu filho, eles só querem prender você.- Rota não prende, mãe. Rota só mata.”Wagner Bossato, o Tatuagem, executado sumariamente pela Rota.

a narrativa alcança intensidade e vibração, como se cada parágrafo da leitura

fosse o momento decisivo de um livro que respira

ofegantemente, sem pausas

Inverte-se sempre o argumento: “o morto é

sempre o culpado por sua própria morte”

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10 • Territórios Transversais - resistência urbana em movimento

guetos e antiguetos:uma anatomia danova pobreza urbana

Em Urban Outcasts (“Pá-rias Urbanos”; Polity Press, 2008), você faz uma comparação metodoló-

gica entre a evolução do gueto nos Estados Unidos e a periferia urbana francesa, ou banlieue, ao longo das últimas três décadas. O que levou você a realizar essa comparação, e o que ela revela a respeito das mudan-ças na pobreza urbana?

Loïc Wacquant: Esse livro nasceu da confluência entre dois choques: o pri-meiro, pessoal; o segundo, político. O choque pessoal foi conhecer em primeira mão o gueto negro dos Estados Unidos – ou o que sobrou dele – quando me mu-dei para Chicago, onde vivi na borda do South Side. Vindo da França, fiquei hor-rorizado com a intensidade da desolação urbana, segregação racial, privação social e violência de rua concentrada nessa terra non grata que era universalmente temi-da, evitada e denegrida por quem não morava lá, inclusive muitos acadêmicos.

O choque político foi a difusão de um pânico moral em torno da guetiza-ção na França e em boa parte da Europa Ocidental. Na década de 1990, a mídia, os políticos e até alguns pesquisadores começaram a acreditar que os bairros de trabalhadores na periferia das cidades europeias estavam se transformando em “guetos”, seguindo o padrão dos Estados Unidos. Com isso, o debate público e a política de Estado foram reorientados para lutar contra o crescimento desses assim chamados guetos, com base na premissa de que a pobreza urbana estava sendo “Americanizada”, isto é, marcada por um aprofundamento da divisão étni-

ca, aumento da segregação e criminaliza-ção desenfreada.

Quando você junta esses dois cho-ques, o resultado é a questão que ali-mentou minhas pesquisas durante uma década: há realmente convergência en-tre os guetos dos Estados Unidos e os distritos de classe baixa europeus com concentração de imigrantes? Se não, o que está acontecendo? Qual é a causa de sua transformação? Para responder àquelas questões, coletei dados estatísti-cos e fiz observações de campo em uma área decadente do “Cinturão Negro” de Chicago, e num subúrbio desindustriali-zado do “Cinturão Vermelho” de Paris, localizado entre o aeroporto Roissy e a capital. Também reconstruí sua trajetó-ria histórica, porque não dá para enten-der o que aconteceu com essas áreas na década de 1990 sem considerar o século XX como um todo, marcado pelo flo-rescimento e perecimento do industria-lismo fordista e do Estado de bem-estar keynesiano.

O que aconteceu, então, com o Cinturão Negro americano e com o Cinturão Vermelho francês? Estão convergindo?

Eu mostro que, no lado dos EUA, depois dos levantes da década de 1960, o gueto negro implodiu, ou, se você quiser, desabou sobre si mesmo, devido à con-

tração da economia de mercado simul-taneamente à retração do Estado social. O resultado foi uma forma urbana que eu chamo de hipergueto, caracterizada pela dupla exclusão com base na raça e na classe, e reforçada por uma política de Estado de retração dos serviços de bem-estar e abandono urbano. Assim, quan-do falamos sobre o gueto nos Estados Unidos, é fundamental historicizá-lo, e não confundir o “gueto comunal” da década de 1950 com seu descendente do fim do século. O gueto comunal era um mundo paralelo, uma “cidade negra dentro da branca”, como disseram os so-ciólogos afro-americanos St. Clair Drake e Horace Cayton, na sua obra-prima Black Metropolis (“A metrópole negra”; 1945). Ele servia como um reservatório de trabalho industrial não-especializa-do, e sua densa teia de organizações era como um para-choque contra a domina-ção branca. Com a desindustrialização e a alteração para o capitalismo financeiro, o hipergueto perde a função econômica e tem suas organizações comuniais des-troçadas. Elas são substituídas por insti-tuições estatais de controle social. O hi-pergueto é um instrumento de exclusão nua e crua, um mero receptáculo para as frações estigmatizadas e supérfluas do proletariado negro: os desempregados, os dependentes de auxílio governamental, os criminosos, e as pessoas inseridas na crescente economia informal.

Do lado francês, a percepção que im-pera na mídia e na administração pública está completamente errada. Os bairros de classe baixa sofreram um processo de pauperização e decomposição gra-dual que os conduziu para longe do pa-

drão do gueto. Um gueto é um enclave etnicamente homogêneo onde ficam contidos todos os membros e as insti-tuições de uma categoria subordinada, impedindo-os de circular na cidade. As banlieues são muito misturadas, e torna-ram-se mais diversas em termos de re-crutamento étnico ao longo das últimas três décadas. Tipicamente, são habitadas por uma maioria de cidadãos franceses, e imigrantes pertencentes a vinte ou trin-ta nacionalidades diferentes. A presença crescente desses migrantes pós-coloniais resulta de uma diminuição de sua sepa-ração espacial: eles costumavam ser im-pedidos de acessar moradias públicas e, portanto, eram ainda mais segregados. Os residentes que sobem na estrutura de classes através da educação, do mercado de trabalho, ou do empreendedorismo rapidamente abandonam essas áreas de-gradas.

As banlieues do Cinturão Vermelho também perderam a maioria das institui-ções locais ligadas ao Partido Comunista, ao qual devem seu apelido. Aquelas ins-tituições costumavam organizar a vida ao redor da tríade fábrica-sindicato-vizi-nhança, dotando as pessoas de um orgu-lho coletivo por sua classe e sua cidade. A heterogeneidade étnica das banlieues, suas fronteiras porosas, densidade insti-tucional decrescente e incapacidade de criar uma identidade cultural comparti-lhada tornam essas áreas o oposto exato dos guetos: são antiguetos.

Isso tudo vai contra a imagem pin-tada pela mídia francesa, pelos po-líticos de Direita e de Esquerda, e pelos ativistas mobilizados em tor-

Entrevista com Loïc Wacquant

A marginalidade aumentará enquanto os governos insistirem

em políticas de desregulação econômica e mercadorização

dos bens públicos.

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Territórios Transversais - resistência urbana em movimento • 11

no das questões de imigração, raça e cidadania, especialmente depois da onda de levantes que varreu as ban-lieues de classe baixa em novembro de 2005.

Essa é uma boa ilustração de como a sociologia pode fazer contribuições im-portantes para o debate cívico. Através da conceituação precisa e a observação sis-temática, a sociologia revela os enormes abismos – nesse caso, uma contradição total – entre a percepção pública e a rea-lidade social. Os imigrantes e seus filhos, nas cidades francesas, estão misturando-se mais, e não se separando. Em termos de perfil social e de oportunidades, os imigrantes estão ficando mais parecidos com os franceses nativos, e não mais di-ferentes, ainda que ainda sofram com taxas de desemprego mais altas. Estão se espalhando mais pelo espaço, e não se concentrado. É precisamente por estarem mais “integrados” no mainstream da vida social, e portanto competirem por bens coletivos, que os imigrantes agora são vistos como uma ameaça, de modo que a xenofobia vem crescendo entre as frações nativas da classe trabalhadora ameaçadas pela mobilidade descendente.

As periferias urbanas da Europa Oci-dental não estão sofrendo um guetização, mas uma dissolução de sua classe traba-lhadora tradicional, causada pela norma-lização do desemprego em massa, dos empregos instáveis e de meio expediente, e pela difamação sistemática no debate público. De fato, o discurso da “gueti-zação” contribui com a demonização simbólica dos bairros de classe baixa, en-fraquecendo-os socialmente e marginali-zando-os politicamente.

Urban Outcasts demonstra que a tese da “convergência” entre a Europa e os Estados Unidos, no que diz respeito ao modelo do gueto negro, está errada em-piricamente e é enganosa politicamente. E prossegue, revelando o aparecimento de um novo regime de pobreza urbana em ambos os lados do Atlântico, distinto do regime do meio-século anterior, que estava ancorado no trabalho industrial estável e na rede de proteção do Estado keynesiano. Essa marginalidade avançada é alimentada pela fragmentação do traba-lho assalariado, a reorientação da política estatal para a retirada da proteção social e em favor da compulsão do mercado, e o reaparecimento generalizado da de-sigualdade – ou seja, é a marginalidade produzida pela revolução neoliberal. Isso significa que não se trata de algo que dei-xamos para trás, mas de um processo que está à frente. A marginalidade avançada tende a persistir e crescer enquanto os go-vernos insistam em implementar políticas de desregulação econômica e mercado-rização dos bens públicos. Mas essa nova realidade social, gerada pela escassez e instabilidade do trabalho, e pela mudança no papel do Estado, é ofuscada pelo idio-ma etnicizado da imigração, da discrimi-nação e da “diversidade”. É claro, essas questões espelham problemas reais, mas

não dizem respeito às forças que estão por trás da crescente marginalização da peri-feria urbana europeia. E pior: servem para esconder a nova questão social do traba-lho inseguro e suas consequências para a formação do proletariado urbano do sé-culo XXI.

No livro, você enfatiza a indignidade pessoal sentida pelas pessoas que es-tão presas ao hipergueto e à banlieue desindustrializada. Os residentes do Cinturão Negro perderam seu or-gulho racial, e suas contrapartes no Cinturão Vermelho perderam seu orgulho de classe. Você diz que a “estigmatização territorial” é uma dimensão nova da marginalidade ur-bana tanto nos Estados Unidos quan-to na Europa, nesse início de século.

De fato, uma das características dis-tintivas da marginalidade avançada é a difusão de um estigma espacial que de-precia as pessoas presas às regiões urbanas de relegação. Em toda sociedade avan-çada, há distritos ou cidades que se tor-naram símbolos nacionais e sinônimos de todos os males urbanos: Clichy-sou-s-Bois (onde começaram os levantes de novembro de 2005) na França, o Moss Side em Manchester, no caso da Ingla-terra, Berlin-Neuköln na Alemanha, o South Bronx em Nova Iorque, etc. Essa crescente difamação dos distritos inferio-res da metrópole é uma consequência do enfraquecimento político dos afro-ame-ricanos na cena política dos Estados Uni-dos e da classe trabalhadora no sentido político europeu.

Quando um distrito passa a ser ampla-mente percebido como um “buraco” ur-bano onde apenas o detrito da sociedade tolera viver, quando seu nome é sinôni-mo de vício e violência na discussão jor-nalística e política, uma mácula espacial é superimposta ao estigma da pobreza e da etnicidade – a “raça”, nos Estados Uni-dos, e a origem colonia, na Europa. Nes-se ponto, lanço mão das teorias de Er-ving Goffman e de meu professor Pierre Bourdieu para salientar como a desgraça pública que aflige essas áreas desvaloriza o sentimento de si de seus moradores, e corrói seus laços sociais. Em resposta à di-famação espacial, os moradores desenvol-vem estratégias de distanciamento mútuo e denegrecimento lateral. Retiram-se para a esfera privada da família e, quando podem, abandonam a área. Essas práticas de autoproteção simbólica desencadeiam uma profecia autocumprida através da qual as representações negativas do lugar acabam produzindo nele a anomia cul-tural e o atomismo social que se dizia já existirem.

A estigmatização territorial não ape-nas destrói a capacidade de identificação e ação coletiva das famílias de classe baixa, como também provoca o preconceito e a discriminação entre não-residentes tais como empregadores e burocracias públi-cas. Entre os jovens de La Courneuve, a cidade estigmatizada nos arredores de

Paris que estudei, era constante a queixa de que, para evitar reações negativas de medo e rejeição, precisam esconder seu endereço durante a busca de emprego, quando estão travando conhecimento com mulheres ou quando vão à univer-sidade fora de sua cidade. Policiais são particularmente suscetíveis a tratar esses jovens com mais severidade quando des-cobrem que vêm dessa cidade corrom-pida, amplamente percebida como um “gueto” temível. O estigma territorial é mais um obstáculo no caminho da inte-gração socioeconômica e da participação cívica.

Observe que o mesmo fenômeno acontece na América Latina, entre ha-bitantes de regiões de má reputação tais como as favelas do Brasil, as poblaciones do Chile e as villas miserias da Argentina. Suspeito que os moradores de Villa del

Bajo Flores, La Cava ou Villa de Ret’iro, em Buenos Aires, devem conhecer muito bem o significado da “discriminação de endereço”. O estigma territorial é esten-dido a esses distritos mais baixos da ci-dade Argentina segundo a mesma lógica com que é imputado aos hiperguetos dos Estados Unidos e os anti-guetos da Euro-pa: a presença de migrantes sem emprego, sem-teto e sem documentos, bem como dos estratos mais baixos do proletariado urbano empregado na economia de ser-viço desregulada. Além da tendência das elites estatais a se esconderem atrás das questões sobre o espaço, evitando encarar os problemas enraizados na transforma-ção do trabalho.

O estigma territorial facilita a virada para o Estado penal e a implementa-ção da política de “tolerância zero”, cuja difusão global você analisou em seu livro anterior, Les prisons de la misère (“As prisões da miséria”, 1999)?

A mácula espacial dá ao Estado mais liberdade de ação para implementar polí-ticas agressivas de controle da nova mar-ginalidade. Essas políticas podem ter a forma da dispersão ou da contenção, ou, melhor ainda, podem ser uma combina-ção dos dois. A dispersão visa espalhar os pobres no espaço e recapturar os territó-rios tradicionalmente ocupados por eles, sob o pretexto de que os lugares onde moram são totalmente degradadas sem chance de salvação. Essa política está sen-do empregada na demolição em massa de moradias populares no centro do gueto histórico da metrópole dos Estado Uni-dos e nas periferias pauperizadas de várias cidades europeias. Milhares de unidades habitacionais são destruídas de um dia

para o outro, e seus ocupantes são disse-minados em áreas adjacentes ou distritos pobres longínquos, criando, assim, a apa-rência de que “o problema foi resolvido”. Só que a dispersão dos pobres urbanos só aumenta sua invisibilidade, diminuindo o incômodo político que eles causam, sem ajudá-los a obter trabalho ou alcançar um status social viável.

A segunda técnica para lidar com o aumento da marginalidade avançada vai na direção contrária: procura concentrar e conter as desordens geradas pela frag-mentação do trabalho e desestabilização da hierarquia étnica (ou racial ou nacio-nal) lançando uma rede de contenção policial ao redor da região urbana de re-legação e expandindo as prisões nas quais seus elementos mais rebeldes são cronica-mente exilados. Essa contenção punitiva é tipicamente acompanhada, no front do bem-estar social, por medidas desenhadas para empurrar os beneficiários do auxílio público (“welfare”) a ocupar vagas de bai-xo nível na economia de serviços desre-gulada, sob a designação de “workfare”. (A invenção, nos Estados Unidos, dessa nova política que combina “workfare” restritivo e “prisonfare” expansivo, é descrita por mim no meu próximo livro, Punir os pobres, publicado no Brasil em 2003). Mas a política de “tolerância zero” derrota a si mesma. Os desempregados, subempregados e praticantes de pequenos delitos, ao serem jogados na cadeia, tor-nam-se ainda menos empregáveis, o que desestabiliza ainda mais as famílias e os es-paços urbanos de classe baixa. A utilização da polícia, dos tribunais e da prisão para o combate à marginalidade não é ape-nas enormemente custosa e ineficiente, como também agrava os mesmos males que supostamente deveria curar. Assim, reentramos no círculo vicioso apontado há tempos por Michel Foucault: o fra-casso da prisão em solucionar o problema da marginalidade serve como justificativa para sua contínua expansão.

Além disso, na Argentina e em pa-íses vizinhos que passaram por décadas de governo autoritário no século XX, a polícia é, ela mesma, um vetor de violên-cia, e o aparato judicial está marcado pelo desmando. De modo que o emprego do Estado penal nos setores mais baixos da ordem de classes e de espaços equivale a reestabelecer a ditadura sobre as frações marginais da classe trabalhadora. Na prática, trata-se da violação do ideal de cidadania democrática que teoricamente guia as autoridades. O que o Estado pre-cisa combater não é o sintoma, a insegu-rança criminal, mas a causa da desordem urbana: a saber, a insegurança social que o próprio Estado desencadeou ao tornar-se um zeloso serviçal do despotismo do mercado.•

Entrevista originalmente concedida à revista Thesis Eleven,

agosto de 2008. Tradução: Pedro Rocha de Oliveira.

A utilização da polícia, dos tribunais e da prisão para

o combate à marginalidade é custosa, ineficiente e

agrava os mesmos males que supostamente deveria curar.

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Ao avistar uma ocupação de sem-teto, certamente não ficamos desejosos em conhecê-la pela sua bela

paisagem, menos ainda por ser um lugar agradável de visitar, com arqui-teturas incríveis ou belos restauran-tes. A curiosidade que nos desperta é tentar entender como sobrevivem as pessoas nesse lugar tão precário. Como podem, com tanta miséria e falta de infraestrutura básica, terem tanta esperança no que fazem? Para além disso, como podem ser esses os protagonistas de tantas lutas por di-reitos, a ponto de terem sido a maior ameaça à abertura da Copa do Mun-do no Brasil?

As ocupações de terra são, para o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), um espaço de cons-trução da transformação social. Lu-tar por moradia não é privilégio de quem vive em situação de rua. No Brasil, o problema da moradia atinge 22 milhões de pessoas, ou seja, 10%

da população do país; lutar por mo-radia é mais do que reivindicar par-ticipar de um programa habitacional que nos proporcione um lar, é lutar pela efetivação de um direito social, cuja garantia é de responsabilidade do Estado desde a Constituição de 1988.

Portanto, ocupar uma terra é também questionar o direito que apenas tem validade para os proprie-tários de terra; é questionar a eficácia da constituição quando se trata de di-reitos sociais que dizem respeito aos mais pobres. Ocupar terra é questio-nar o que vale mais para a sociedade em que vivemos: a propriedade ou a vida?

E mais, é também demonstrar que é impossível uma relação harmoniosa entre aqueles que tudo têm (inclusive as leis), e aqueles a quem tudo é ne-gado (inclusive seus direitos).

Para travar esta batalha, é neces-sário que os oprimidos se apropriem dos seus direitos e, em movimento,

se sintam irmãos defensores das mes-mas causas e oprimidos pelo mesmo “sistema”!

As ocupações de terra não são de fato espaços onde temos qualidade de vida adequada, por isso são espa-ços transitórios na luta pela moradia: ocupamos terra não para reproduzir a vida precária das comunidades, mas como forma de pressionar o po-der público a se movimentar diante de tanta calamidade. Porem, é im-portante ressaltar que 48 milhões de pessoas vivem em condições inade-quadas de moradia, faltando desde energia elétrica até coleta de lixo ou abrigando várias pessoas por cômo-do!

Mas há, na organização das ocu-pações, três elementos fundamentais a serem considerado em uma análise menos superficial.

1) É certo que, em geral, as pesso-as que adentram na luta por moradia, ocupando um terreno, vivem o dra-ma cotidiano do déficit habitacional:

vivem em moradia precária, às vezes dividindo-a com várias outras pesso-as, ou pagam o aluguel abusivo que atinge uma imensa massa de traba-lhadores. Essas pessoas convivem com o problema isoladamente sem descobrir respostas individuais, até que se deparam com uma ocupação. A ocupação transforma a maneira de resolver o problema do déficit habi-tacional, porque apresenta a perspec-tiva de uma solução coletiva.

2) Individualmente, essas pessoas podem existir pacificamente na so-ciedade. Ou seja, sozinhas, essas pes-soas não causam tanto problema para os poderosos. Mas, se estão juntas, a história é outra!

3) Esse empoderamento coletivo proporciona uma esperança de cons-trução do novo, permite uma cons-ciência crítica da sua própria vida e da sua sobrevivência, uma mudança nítida de comportamento, visível na apropriação de seus direitos, ir-radiando para outras reivindicações

Ana Paula Ribeiro e Natalia Szermetaa escola da revolução

Ocupar é questionar o que vale mais para a sociedade em que vivemos: a propriedade ou a vida?

Luizinho, Zé e Bahia constróem barracos na Ocupação Zumbi dos Palmares, em São Gonçalo/RJ, novembro de 2014. Foto: Mídia Ninja

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HabitarSalvio Melo

Olhamos para cima, Nem teto, nem céuOlhamos para frente, Poeira, bate-estaca, escavadeiras, Prédios, sujeira, dinheiro Tua casa é logo aliE a nossa? Onde fica?Não queremos barracas de papelão, periferias e opressão, nem muros invisíveisOcupar é organizar e reunir, Resistir é sangue, suor, açãoAinda sonhamos com o futuro que viráCriar poder popular.

que transbordam da luta pela mora-dia!

As ocupações são espaços onde as contradições da sociedade capitalista se afloram, deixam de ser naturais e passam a ser questionadas, tornando-se um momento importantíssimo de combate à ideologia dominante. Coloca o combate à ideologia na prática, desconstruindo muito do que pensam sobre a luta e a própria ocupação. As pessoas passam a vida inteira ouvindo que é errado “inva-dir o que é dos outros”, mas se veem na situação de “invasores” e passam a entender porque não invadimos, e sim ocupamos!

E é a partir das contradições que a vida é organizada nas ocupações, não como uma ilha, mas como um espa-ço de formação cotidiano, onde cada dia que passa é uma nova resposta que encontramos para os nossos pro-blemas. A opção aqui é clara: é pre-ferível errar com os pobres a acertar sozinho!

Quando se junta um monte de sem-teto, que são apenas núme-ros para o sistema, um a um, como humanos que reivindicam, que têm voz e opinião, abre-se um horizon-te novo na vida das pessoas. Não são raros os casos de pessoas que deixam de tomar medicamentos antidepres-sivos quando se juntam às ocupações, inúmeros são os relatos de pessoas, principalmente mulheres, que dizem nunca ter tido a possibilidade de fa-lar sobre suas histórias de vida e que nunca tinham tido a sensação de se-rem escutadas, vistas, consultadas so-bre suas angústias.

O sistema capitalista é muito mais do que uma rígida relação de explo-ração; ele adentra nas nossas vidas, dita nosso comportamento, ele toma de assalto a nossa alma! Isso nos de-prime; quando um movimento con-trário disputa nossa alma, bomba nosso sangue, dispara nosso coração, ele alimenta nossa esperança de que é possível, sim, um mundo melhor!

Quando construímos uma cozi-nha coletiva, onde a comida é feita de forma voluntária, a partir de uma necessidade coletiva, a fome, estamos dando uma resposta coletiva a um problema que aparentemente é indi-vidual. Quando estabelecemos que a solidariedade, o companheirismo e a igualdade são valores que preser-vamos nos nossos espaços, estamos buscando novas formas de responder aos velhos problemas antes tratados de maneira particular.

Quando juntamos o lixo da ocupação e levamos até a porta da subprefeitura local e, no dia seguin-te, o caminhão passa para recolher o lixo, estamos mostrando que mesmo

os menores problemas podem ser re-solvidos de maneira diferente!

Ao juntarmos as famílias da ocu-pação na porta da Secretaria de Edu-cação com as crianças que estão sem escola e, na semana seguinte, as vagas são oferecidas, demonstramos que, novamente, conseguimos solucionar coletivamente o problema que pare-cia ser de cada mãe e pai!

Quando as famílias organizam as regras de convivência na ocupação, inclusive as formas de evitar que os problemas aconteçam, ou definindo como tratar caso a caso as regras que não são cumpridas, estamos demons-trando que é possível convivermos de maneira diferente.

Quando tratamos as questões polêmicas – drogas, aborto, violên-cia, sexualidade ou religião – sem moralismo, analisando as contradi-ções, sem condenações individuais ou buscando um culpado entre nós, demonstramos que é não só possível, mas necessário, destruirmos este sis-tema!

Quando ousamos regar nossas práticas com as convicções de Carlos Marighella, Rosa Luxemburgo, Che Guevara, Chico Mendes, Lênin, Marx e tantos outros, alimentamos a chama da liberdade que se espraia em cines sem teto, em saraus de resistên-cias, teatros de rua, músicas combati-vas, futebol de várzea. Enfim, pouco a pouco as ocupações vão disputando a alma das pessoas com o Capital, vão despertando a fúria adormecida exis-tente em cada oprimido da periferia e se tornam Escolas da Revolução!

Tudo isso de forma organizada, tomando as principais avenidas do Brasil... É um processo ameaçador para os donos do poder. Por isso, o movimento desperta reações raivosas e criminalização estatal. Cada ocu-pação é um front da resistência po-pular em nosso país.•

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Carta a quem sonha em ser jogador de futebolMeu caro jovem que sonha em ser jogador do fu-tebol, eu não quero matar seu sonho, não quero de-sestimulá-lo, quero apenas que você saiba o que en-frentará, quero lhe passar algumas informações e opiniões. Primeiramente, quero deixar bem claro que eu, no seu lugar, teria o mesmo sonho. Ser jogador de futebol, dos bons – porque a gente, é claro, não sonha em ser perna-de-pau – deve ser um grande barato. Além do mais, que outra atividade aparen-temente significa maior oportunidade para subir na vida, dar conforto à família, ficar rico?

Eu mesmo, de família de classe média acima da média, sonhei em ser jogador do futebol – não para ficar rico, mas para sentir a emoção de subir no alambrado do Pacaembu na comemoração de um gol. Era meio grosso, embora goleador. Acabei indo jogar basquete e virei jornalista – tudo por causa do futebol. A partir daí, já com 20 anos de idade, comecei a ver o que era a verdadeira vida de um profissional da bola.

Posso garantir que não é uma vida fácil, embora saiba que você não esteja pensando em nenhuma moleza, em vagabundagem, porque, na verdade, vida de trabalhador é fácil? Vida fácil têm os filhinhos de papai, os herdeiros de gente rica.Mas você pre-cisa saber. E não leve tudo isso como conselho de velho, ou cuidado de pai, ou até mesmo preconceito contra quem joga bola, porque, repito, imagino que seja muito legal ser um craque, e trocaria minha carreira como jornalista pela de futebolista, desde que dos bons. Não precisaria ser um Neymar, mas, ao menos, um Guerrero.

Apenas leve em conta que, por maior que seja seu sonho, por mais que você ouça elogios ao seu talen-to, você não deve largar a escola pela bola, porque se a bola furar, a escolar pode salvar.

Como tudo na vida, para se dar bem no mundo do futebol, você vai precisar de sorte. A sorte de escolher um clube legal para fazer a peneira, para ser escolhido e acolhido.Você terá de tomar cuida-do para não cair nas mãos de um empresário es-pertalhão, e a maioria deles é cúmplice dos cartolas dos clubes e federações.

Por mais talentoso que você seja, saiba que os bastidores do futebol são podres, e que o jogador é visto como mera mercadoria, um produto como outro qualquer na prateleira, que cartolas e empre-

sários veem apenas como oportunidade de fazer grana, de lucrar, custe o que custar, submeta o jovem ao que for. Tenha claro que apenas 1% fica milionário, 2% ficam bem, 3%, no máximo, ficam re-mediados. A imensa maioria é o que chamamos de “bóias-frias do futebol”, atletas que vagueiam pelo país afora em busca de uma chance de jogar, víti-mas de um calendário desumano que sobrecarrega a elite e não dá oportunidade para a maioria, sem trabalho a maior parte do ano.

A podridão, meu jovem amigo, começa lá em cima. Nem vou falar da FIFA, a grande empresa multina-cional que comanda o espetáculo, uma organização que pode ser comparada à Máfia, porque emprega métodos, segredos e lealdades muito semelhantes. Além disso, fica na Suíça que, até outro dia mesmo, era o paraíso da lavagem de dinheiro e das contas bancárias com dinheiro sujo.

Mas não precisa ir tão longe para sentir o mau cheiro, embora Zurique, a cidade que abriga a FIFA, seja aparentemente um primor. Basta ir ao Rio de Janeiro, ali mesmo, num prédio recém-inaugurado e chamado José Maria Marin. Esse prédio a abriga a CBF, a Confederação Brasileira de Futebol, tam-bém chamada de a Casa Bandida do Futebol.

Marin, se você não sabe, foi um filhote da dita-dura brasileira. Jamais conseguiu se eleger a coisa alguma em disputas majoritárias, mas, por apadri-nhamentos espúrios, foi até governador de São Paulo por quase um ano, ao suceder Paulo Maluf – sim, ele! – de quem era vice, ambos escolhidos pelo partido que apoiava os generais.

Marin é aquele que embolsou a medalha e foi fla-grado pelas câmaras da TV. Pois bem, ele hoje é o presidente da CBF. Sucedeu Ricardo Teixeira, que precisou fugir para Miami, apanhado com a boca na botija. A sucessão não foi por voto, mas por ser o mais velho entre os vice-presidentes da entidade. Normalmente, para chegar à presidência da CBF o cartola precisa ser eleito, embora em eleições de cartas marcadas.

Imagine que são apenas 47 eleitores: os 27 presi-dentes das federações estaduais (coisa que, como a jabuticaba, só existe no Brasil) e os 20 clubes que participam da Série A do Campeonato Brasileiro. Além do mais, quem quiser se candidatar, como oposição, por exemplo, precisa ter sete assinaturas

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de presidentes de federações e cinco de presi-dentes de clubes. Sabe o que acontece? Mesmo que haja gente insatisfeita com a direção da CBF, ninguém se arrisca a ser um dos 12 signatários, nin-guém se arrisca a amarrar o guiso no pescoço do gato -- OK, no caso, do rato.

E o que isso tem a ver com o seu sonho? Tem tudo a ver! Porque é nessa estrutura viciada que você entrará. Uma estrutura em que todos os que têm poder se beneficiam, e tentam impedir que os jogadores, os trabalhadores do futebol, os artistas, ponham a cabeça para fora. Daí ser tão raro ver-mos um movimento como o do Bom Senso FC, ao qual voltaremos adiante.

Normalmente, eu sei, você olha para um Neymar, o vê num carrão, até num iate, uma baita casa, e pensa: “Não quero mais nada da vida”. E imagina: “Como foi fácil! Outro dia mesmo, ele não era nada. Tudo tão rápido!”. Não se iluda. Neymar é a exceção das exceções. Ter o talento dele é para poucos, e ter a força de vontade dele também não é para qualquer um.

Se você quiser ter uma boa visão de como as coisas, de fato, são, leia o livro do Paulo André, “O Jogo de Minha Vida”, da editora Leya, onde ele conta tudo que teve de enfrentar para ser um profis-sional do futebol. Não foi à toa que virou um dos

líderes do Bom Senso FC, organização que nasceu para tentar dar um basta nessa situação desumana por que passa a maioria dos jogadores de futebol no Brasil.

Insisto: não quero matar seu sonho, dou força a ele, vejo a carreira de futebolista como tão digna quanto qualquer uma hoje. Mas o Brasil é um país in-justo e o futebol é uma das faces dessa moeda. No Brasil, a corrupção ainda corre solta e, no futebol, não é diferente. A superestrutura do futebol brasi-leiro é reacionária, avessa às mudanças, corrompida e corruptora. Empresários desonestos e explora-dores da boa fé e do trabalho alheios contaminam o ambiente, e é necessário não cair na conversa deles, embora tudo esteja montado para que eles prevalecem.

Enfim, e em resumo, não seja ingênuo ao tentar entrar neste mundo.

E, se conseguir, levado pela justa aspiração de melhorar de vida e ajudar seus próximos, faça-o com os pés no chão e com a cabeça alerta para as armadilhas.

Seja feliz, não desista, não desespere, lute para fazer não só a sua vida e dos seus familiares me-lhor, mas, também, a do seu – a do nosso – país.

Um forte e otimista abraço doJUCA KFOURI

de presidentes de federações e cinco de pre-sidentes de clubes. Sabe o que acontece? Mesmo que haja gente insatisfeita com a direção da CBF, ninguém se arrisca a ser um dos 12 signatários, nin-guém se arrisca a amarrar o guiso no pescoço do gato -- OK, no caso, do rato.

E o que isso tem a ver com o seu sonho? Tem tudo a ver! Porque é nessa estrutura viciada que você entrará. Uma estrutura em que todos os que têm poder se beneficiam, e tentam impedir que os jogadores, os trabalhadores do futebol, os artistas, ponham a cabeça para fora. Daí ser tão raro ver-mos um movimento como o do Bom Senso FC, ao qual voltaremos adiante.

Normalmente, eu sei, você olha para um Neymar, o vê num carrão, até num iate, uma baita casa, e pensa: “Não quero mais nada da vida”. E imagina: “Como foi fácil! Outro dia mesmo, ele não era nada. Tudo tão rápido!”. Não se iluda. Neymar é a exceção das exceções. Ter o talento dele é para poucos, e ter a força de vontade dele também não é para qualquer um.

Se você quiser ter uma boa visão de como as coisas, de fato, são, leia o livro do Paulo André, “O Jogo de Minha Vida”, da editora Leya, onde ele conta tudo que teve de enfrentar para ser um profis-sional do futebol. Não foi à toa que virou um dos líderes do Bom Senso FC, organização que nasceu

para tentar dar um basta nessa situação desumana por que passa a maioria dos jogadores de futebol no Brasil.

Insisto: não quero matar seu sonho, dou força a ele, vejo a carreira de futebolista como tão digna quanto qualquer uma hoje. Mas o Brasil é um país in-justo e o futebol é uma das faces dessa moeda. No Brasil, a corrupção ainda corre solta e, no futebol, não é diferente. A superestrutura do futebol brasi-leiro é reacionária, avessa às mudanças, corrompida e corruptora. Empresários desonestos e explora-dores da boa fé e do trabalho alheios contaminam o ambiente, e é necessário não cair na conversa deles, embora tudo esteja montado para que eles prevalecem.

Enfim, e em resumo, não seja ingênuo ao tentar entrar neste mundo.

E, se conseguir, levado pela justa aspiração de melhorar de vida e ajudar seus próximos, faça-o com os pés no chão e com a cabeça alerta para as armadilhas.

Seja feliz, não desista, não desespere, lute para fazer não só a sua vida e dos seus familiares me-lhor, mas, também, a do seu – a do nosso – país.

Um forte e otimista abraço do

JUCA KFOURI

Por mais talentoso que você seja, saiba que os bastidores do futebol são podres, e que o jogador é visto como mera mercadoria, um produto como outro qualquer na prateleira, que cartolas e empresários veem apenas como oportunidade de fazer grana, de lucrar, custe o que custar, submeta o jovem ao que for.

de presidentes de federações e cinco de presi-dentes de clubes. Sabe o que acontece? Mesmo que haja gente insatisfeita com a direção da CBF, ninguém se arrisca a ser um dos 12 signatários, nin-guém se arrisca a amarrar o guiso no pescoço do gato -- OK, no caso, do rato.

E o que isso tem a ver com o seu sonho? Tem tudo a ver! Porque é nessa estrutura viciada que você entrará. Uma estrutura em que todos os que têm poder se beneficiam, e tentam impedir que os jogadores, os trabalhadores do futebol, os artistas, ponham a cabeça para fora. Daí ser tão raro ver-mos um movimento como o do Bom Senso FC, ao qual voltaremos adiante.

Normalmente, eu sei, você olha para um Neymar, o vê num carrão, até num iate, uma baita casa, e pensa: “Não quero mais nada da vida”. E imagina: “Como foi fácil! Outro dia mesmo, ele não era nada. Tudo tão rápido!”. Não se iluda. Neymar é a exceção das exceções. Ter o talento dele é para poucos, e ter a força de vontade dele também não é para qualquer um.

Se você quiser ter uma boa visão de como as coisas, de fato, são, leia o livro do Paulo André, “O Jogo de Minha Vida”, da editora Leya, onde ele conta tudo que teve de enfrentar para ser um profis-sional do futebol. Não foi à toa que virou um dos

líderes do Bom Senso FC, organização que nasceu para tentar dar um basta nessa situação desumana por que passa a maioria dos jogadores de futebol no Brasil.

Insisto: não quero matar seu sonho, dou força a ele, vejo a carreira de futebolista como tão digna quanto qualquer uma hoje. Mas o Brasil é um país in-justo e o futebol é uma das faces dessa moeda. No Brasil, a corrupção ainda corre solta e, no futebol, não é diferente. A superestrutura do futebol brasi-leiro é reacionária, avessa às mudanças, corrompida e corruptora. Empresários desonestos e explora-dores da boa fé e do trabalho alheios contaminam o ambiente, e é necessário não cair na conversa deles, embora tudo esteja montado para que eles prevalecem.

Enfim, e em resumo, não seja ingênuo ao tentar entrar neste mundo.

E, se conseguir, levado pela justa aspiração de melhorar de vida e ajudar seus próximos, faça-o com os pés no chão e com a cabeça alerta para as armadilhas.

Seja feliz, não desista, não desespere, lute para fazer não só a sua vida e dos seus familiares me-lhor, mas, também, a do seu – a do nosso – país.

Um forte e otimista abraço doJUCA KFOURI

Por mais talentoso que você seja, saiba que os bastidores do futebol são podres, e que o jogador é visto como mera mercadoria, um produto como outro qualquer na prateleira, que cartolas e empresários vêem apenas como oportunidade de fazer grana, de lucrar.

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16 • Territórios Transversais - resistência urbana em movimento

crise da águaem são paulo

A crise hídrica em São Paulo tem despertado nossa aten-ção a partir de 2014. E não é por acaso. O estado mais

rico, industrializado e populoso do Bra-sil corre sério risco de sofrer uma crise de saúde pública, ambiental, econômi-ca e institucional sem precedentes nas Américas.

Recentemente, o astrofísico estadu-nidense Greg Laughlin calculou o valor do Planeta Terra. No seu cálculo, a água doce equivale a 75% de todas as riquezas do planeta somadas. Pode parecer absur-do, mas o capitalismo enxerga tudo sob a ótica do valor econômico.

O Brasil é um dos países mais ricos em água do mundo, com cerca de 13% de toda a água doce do Planeta. Tam-bém possui os maiores aquíferos subter-râneos: o Alter do Chão e cerca de 70% do aquífero do Guarani. Nesse cenário, o Pais ocupa posição de grande impor-tância na geopolítica mundial, uma vez que a água doce tem se tornado cada vez mais escassa, como contrapartida à cres-cente produção de alimentos e de outras riquezas dependentes da água.

Água virtual: quantidade de litros necessários à produção de 1 kg de alimento

farelo de soja 2400 littrosóleo de soja 5400 litros

soja grão 1800 litroscarne bovina 15497 litroscarne porco 6309 litros

milho 909 litrosPor outro lado, a produção de ali-

mentos para exportação, atividade es-sencialmente desenvolvida pelo Agrone-gócio, coloca o Brasil entre os países que mais exporta água. Com base nos dados de exportação disponibilizados pelo Mi-nistério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, em 2013, levando em conta apenas soja, carne bovina e su-ína, milho e café, o país exportou cerca de 200 trilhões de litros de água “virtu-al”, ou seja, a água necessária para a pro-dução desses itens. Esse volume equivale a 200 vezes o Sistema Cantareira cheio, e seria suficiente para abastecer a Região Metropolitana de São Paulo por cerca de 100 anos. A agricultura como um todo responde pela maior fatia do consumo

de água no Brasil: 70%, contra 22% da indústria e apenas 8% das residências.

A exportação de alimentos em larga escala traz poucos e discutíveis benefí-cios: empregos e divisas. Empregos são em pequena quantidade, em função da mecanização das monoculturas. Já as di-visas, vão para quem? Para que servem, além do exercício contábil de equilíbrio da balança comercial?

Já os prejuízos são imensos: destrui-ção dos biomas, redução e contaminação dos corpos d’água com consequências para a população de todo o País. Existem vários estudos indicando que a superex-ploração dos recursos hídricos e o des-matamento do Cerrado são responsáveis pelo desaparecimento de vários afluentes de importantes rios de outras regiões como, por exemplo, o São Francisco. Isso, somado com o desmatamento da Amazônia, vem reduzindo a umidade atmosférica proveniente do norte do País, chamada de “Rio Voador”. É essa umidade que possibilita grande parte das chuvas no Sul e Sudeste do Brasil.

Uma hipótese bastante aceitável é que combinação de fenômenos climá-ticos à redução das florestas e corpos d’água no Norte e Centro-Oeste seja a principal responsável pela seca extrema no Sudeste. Obviamente, isso se agrava com o desmatamento da própria região sudeste. No Oeste do estado de São

Paulo, a vegetação nativa foi quase que totalmente substituída por plantações de cana-de-açúcar, laranja, eucalipto, etc. O desmatamento nas regiões de manan-ciais também não é desprezível.

Atribuir esse quadro preocupante simplesmente à ação predatória do “ser humano” não é acurado, pois dilui a responsabilidade e a culpa. As terras e as águas – e as exportações – são contro-ladas por grupos muito pequenos, mas com grande influência nos governos. Assim, seria mais preciso dizer que os

capitalistas e o capitalismo é que estão levando o planeta ao colapso. A necessi-dade de ganho imediato e o crescimento econômico obrigatório explicam parte da crise de abastecimento de água em São Paulo.

Nos últimos meses, vivenciamos uma das maiores estiagens da história da região Sudeste do Brasil, com impacto em um dos maiores sistemas de abaste-cimento de água do mundo, o Sistema Cantareira. Diante dessa estiagem, a Re-gião Metropolitana de São Paulo cor-re sério risco de ficar inteiramente sem água. Outras cidades que dependem dos rios que abastecem o Cantareira já estão sofrendo com o desabastecimento.

Mas o risco de desabastecimento não paira apenas sobre a área de cobertura do Cantareira. O sistema adutor me-tropolitano de São Paulo é interligado, e a água de um sistema pode abastecer parte do outro. Isso permitiu que a área de influência do Cantareira fosse reduzi-da, sobrecarregando os demais sistemas. Mas nenhum desses sistemas tem condi-ções de suprir a lacuna do Cantareira por muito tempo.

Se é verdade que, até o momento, não é possível controlar eventos climá-ticos tais como a estiagem, também é verdade que já é possível prevê-los e to-mar precauções contra seus efeitos. Há mais de uma década, especialistas vêm alertando para o colapso no sistema de abastecimento de água de São Paulo, de-vido ao simples fato de que há um cres-cimento substancial da demanda sem contrapartida na oferta. Nos últimos 20 anos, não houve a construção de um único sistema de tratamento de água. O mais recente, o do Alto Tietê, entrou em operação em 1993; o Cantareira, em 1973; Guarapiranga, Rio Grande, Ri-beirão da Estiva, Baixo Cotia, Alto Co-tia e Rio Claro entraram em operação entre 1914 e 1973.

Assim, não é de hoje que os sistemas de abastecimento de água da Região Metropolitana de São Paulo vêm traba-lhando no limite, e pouca coisa foi feita para aumentar a capacidade das represas, melhorar a eficiência na distribuição, ou desenvolver novas opções de abasteci-mento e uso diferenciado. Muito me-nos na preservação dos mananciais, por

onde passou o Rodoanel, por exemplo, e onde se registra enorme aumento da ocupação do solo.

Enquanto a capacidade dos sis-temas de água cai, o lucro da Sabesp só aumenta: em 2009, era R$ 1,37 bilhões, pulando

para R$ 1,9 bi em 2012, e chegando próximo aos R$ 2 bilhões em 2013. Em cinco anos, o lucro total ultrapassou R$ 8 bilhões. Segundo o jornal Valor Eco-nômico, em matéria do dia 9 de maio de 2014, a Sabesp acumulou um lucro líquido de R$ 13,1 bilhões nos últimos onze anos. Desse montante, os acionis-tas abocanharam cerca R$ 4,4 bilhões. Aqui está um dos problemas que impe-dem os investimentos em mais em obras de reservação de água, redução de per-das, reuso da água e preservar manan-ciais. Os investimentos necessários em reservatórios e mananciais são altos, e o retorno é de longo prazo. Portanto, tor-nam menos atrativas as ações no merca-do financeiro. Para o mercado, o retorno tem que ser imediato.

Essa lógica privatista acompanha to-dos os governos nos últimos 20 anos. Inicialmente, a ideia era privatizar a Sa-besp. A empresa foi, por isso, fatiada em unidades de negócio e, se necessário, co-gitou-se vendê-la por região. A tentativa de privatização não prosperou porque havia confusão jurídica sobre a concessão do saneamento, além de alta rejeição da ideia pela população. Mas isso não impe-diu que a empresa fosse privatizada por dentro, com uma administração voltada por o mercado e terceirização de quase tudo. Ademais, a aprovação das Parcerias Público-Privadas no governo Lula/PT possibilitou que o governo do estadual do PSDB repassasse sistemas inteiros, como o Alto Tietê, ao setor privado, dei-xando a população à mercê da gula dos empresários.

Hoje, a maior parte dos serviços de saneamento é executada por emprei-teiras. Aqui reside outro problema gra-ve, pois essas empreiteiras são grandes financiadoras de campanhas eleitorais dos partidos burgueses, aparecendo fre-quentemente nas prestações de contas ao TSE. Serviços que deveriam ser exe-cutados pela Sabesp são passados para empresas terceirizadas. Essas empresas,

Marzeni Pereira

A água doce equivale a 75% de todas as riquezas do planeta

somadas. Pode parecer absurdo, mas o capitalismo enxerga tudo sob a ótica do

valor econômico.

Cantareira em 2014 - Projeto Conta dágua.

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Territórios Transversais - resistência urbana em movimento • 17

para reduzir custos, não executam as obras conforme as normas de quali-dade. Quando ocorrem os esperados vazamentos, as empreiteiras são contra-tadas mais uma vez para consertar o es-trago que causaram. Ademais, as obras de emergência dispensam licitações, de modo que custam muito caro à popula-ção e aumentam o lucro das empreiteiras ainda mais.

Assim, a terceirização exacerbada na Sabesp nada tem a ver com redução de custo ou melhoria na qualidade. Um exemplo disso é a pesquisa de vazamento não-visível. Quando terceirizado, esse serviço custa R$ 638 por quilômetro de rede. Se cada técnico da empreiteira pode fazer até 5 km por dia, ou até 110 km/mês, o trabalho de um só técnico pode custar para Sabesp mais de R$ 70 mil por mês (dos quais, evidentemente, apenas uma parte ínfima é realmente paga ao técnico). Se tal pesquisa fosse fei-ta por um empregado da própria Sabesp, a mesma não sairia por mais de R$ 7 mil com todos os custos.

Os profissionais da Sabesp têm alto nível técnico e são conhecedores da re-alidade do saneamento, mas são substi-tuídos por mão de obra rotativa e nem sempre especializada. São contratadas empresas que apresentam uma pequena equipe de profissionais que são especia-lizados, mas que não vão executar os serviços de fato. A Sabesp deixou de ter equipes especializadas em fiscalização há muito tempo: hoje, são as empreitei-ras que fiscalizam as empreiteiras.

Nos últimos anos, portanto, a Sabesp tornou-se refém das empreiteiras. Quando um contrato acaba, a pró-

pria Sabesp não tem pessoal para realizar os serviços. Tecnologias novas, de me-lhor qualidade e mais baratas, não po-dem ser utilizadas quando não constam no contrato. Isso ocorre, por exemplo, com a utilização de ferro fundido e PVC nas tubulações de água, tecnologias anti-gas que já poderiam ser substituídas pelo PEAD, material com menor incidência de vazamentos.

O resultado disso é visto nas ruas: valas com péssima pavimentação, esgo-to transbordando, e muitos vazamentos. Cerca de 30% da água tratada é perdida nos vazamentos. Os serviços mal feitos trazem consequências financeiras, am-bientais e de saúde pública.

A Sabesp ainda arca com a falta de compromisso das empresas terceiriza-das para com seus próprios empregados. Milhares de trabalhadores dessas em-presas estão acionando-as na Justiça do Trabalho, em processos nos quais a Sa-besp aparece como corresponsável. Em março de 2014, um porteiro terceiriza-do acorrentou-se no portão da Estação de Tratamento de Esgoto Parque Novo Mundo, impedindo o acesso às depen-dências da empresa, enquanto não fosse

pago seu salário atrasado.

O governador vem insistindo, des-de dezembro de 2013, que não haverá rodízio de água. Essa orientação é, no mínimo, irresponsável. Mas ela atende a dois interesses: o dos acionistas, pois evita redução da lucratividade resultante da redução da venda do produto, e o do governador, de ser reeleito.

Se depender dos acionistas, vende-se até a última gota de água. E quanto mais raro for o produto, mais caro fica. Isso ganha maior importância quando se tra-ta de um produto essencial à sobrevivên-cia. Quando acabar a água das represas, o bom negócio será vender água engarra-fada. Um exemplo disso é o saneamento de Itu, que é feito por uma empresa pri-vada. Lá, a água praticamente acabou por completo. Não será surpresa se a empre-sa abandonar a cidade quando começar a ter prejuízos.

O governador Alckmin apostou na ajuda do céu para esconder a faltar de

planejamento e investimento em ma-nanciais. Entretanto, a água da Região Metropolitana de São Paulo pode aca-bar antes de chegar o segundo semestre de 2015. Aí, o cenário seria catastrófico para cerca de 16 milhões de pessoas que dependem dessa água.

Do ponto de vista ambiental, os da-nos podem ser irreversíveis. A fauna e a flora da região dos mananciais estão sob séria ameaça. A redução dos peixes já vem ocorrendo ano a ano, mas, com a redução dos níveis de água a concentra-ção da poluição aumenta muito, aumen-tando a mortandade de animais aquáti-cos. Espécies inteiras podem desaparecer para sempre dessas regiões, provocando efeito cascata em outras espécies e, con-sequentemente, no ecossistema como um todo.

O risco de colapso é muito grande, e as consequências são maiores ainda. Se o ritmo de queda dos níveis

de água continuar como está, teremos colapso total no sistema de saneamento em São Paulo. Mesmo que, nos próxi-mos meses, a quantidade de chuvas seja maior que a média dos últimos anos, o abastecimento de água a curto e médio

prazo está comprometido.Assaltos a supermercados para obten-

ção de água para sobreviver, ou êxodos em massa para outras regiões do Brasil parecem cenários impensáveis, mas não sabemos o que pode acontecer se o siste-ma de fornecimento de águas entrar em colapso. Será impossível para as pessoas comprar água engarrafada para suprir to-das as suas necessidades por muito tem-po.

Além disso, a incidência de doenças transmitas por água contaminada ou por falta d’água pode ser alarmante, e a quan-tidade de mortes pode chegar a níveis nunca vistos. Pesquisa do Ministério da Saúde aponta que 80% das internações hospitalares no Brasil poderiam ser evita-das se tivéssemos saneamento adequado, e que para cada R$ 1 investido em sa-neamento economiza-se R$ 5 em saúde curativa. Mas o que temos no caso de São Paulo é um processo inverso, o que pode gerar um impacto imprevisível.

A atuação irresponsável e mentirosa

do governador Geraldo Alckmin cons-titui, assim, um duplo crime: contra a saúde pública, colocando milhões de pessoas em risco, e contra o meio am-biente. O afastamento do governador deveria ocorrer o mais rápido possível, pois não se trata de uma situação normal. Milhões de pessoas e seres vivos podem estar ameaçadas.

A política de Alckmin, entretanto, não está isolada: está afinadíssima com o ideário neoliberal. A água e o saneamen-to estão sendo dominados pelo mercado e colocados à disposição dos empresários em detrimento das necessidades vitais.

Hoje, está em andamento a Parceria Público Privada do Sistema São Lou-renço, ao custo de R$ 2,2 bilhões, para aumentar o fornecimento de água em 4.700 litros por segundo, com previsão de término para 2018. Do montante total, R$ 440 milhões virão da JICA, agência de fomento do governo japonês, e o R$ 1,8 bilhão restante virá do BN-DES e da Sabesp. Mas quem vai gerir o empreendimento é o capital privado, que não entra com recurso algum.

Por outro lado, se fosse incentivado o uso de água de chuva em São Paulo, seria possível economizar cerca de 10%

do consumo, algo em torno de 5.000 litros por segundo. A coleta e tratamen-to de esgoto poderia disponibilizar mais de 20.000 litros por segundo de água de reuso não-potável. Se fosse reduzida em 10% a perda de 30% na distribuição, através da substituição da tubulação e melhorias nos serviços de assentamento, seriam economizados 2.000 litros por segundo. Somente esses itens já repre-sentam o equivalente a um novo Siste-ma Cantareira. Será que o governo quer isso?

O consumo de água na Região Me-tropolitana de São Paulo, onde há pouca atividade agrícola, concentra-se em resi-dências, indústria, comércio e atividade pública. Aí, o consumo residencial re-presenta a maior parte da água tratada e distribuída pelas companhias de sanea-mento (cerca de 84%). Entretanto, mui-tas empresas têm poços, o que distorce esses dados. Portanto, não seria absurdo sugerir que o consumo empresarial e re-sidencial têm o mesmo peso.

Com a possibilidade da água aca-bar, vários setores empresariais já falam em paralisação das atividades e demis-sões. Entretanto, existem outros seto-res que acharam uma oportunidade de mercado: empresas de perfuração de poços, caminhões pipa, caixas de água, e principalmente as de água envasada (galões, copos, garrafas, etc.). Visan-do aumentar o lucro, empresários de diversos ramos estão pedindo a deso-neração (PIS/Cofins) e um possível reajuste acima da inflação, com a jus-tificativa de que precisam de mais in-vestimentos.

É necessário desencadear uma luta imediata com as seguintes pautas:

1) Estatização imediata da Sabesp e das empresas de saneamento,

com controle pelos trabalhadores (hoje o que existe é o controle pelos empresários);

2) Criação de um Conselho de Usuários com poder de fiscaliza-

ção e de deliberação sobre as ques-tões de Saneamento;

3) Preservação dos mananciais. Para isso é necessário um plano

habitacional sério que possa englo-bar todas as famílias em áreas de risco e que estão sem moradia, bem como o combate à especulação imobiliária;

4) Combate às perdas de água. Fim da terceirização e do cartel

das empresas prestadores de servi-ço;

5) 100% de coleta e tratamento do esgoto. Reuso planejado da água

do esgoto tratado (para fins não po-táveis ou consumo humano);

6) Incentivo à coleta e uso de água de chuva (distribuição de reser-

vatórios, com projetos de instala-ção).•

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UMA NOVA PRIMAVERAredescobrindo o povo brasileiro

Fotos e Texto: GREGÓRIO BRUNING

A grande arte brasileira do passado sempre teve estreita ligação com o seu povo. E isso, para os artistas do início do século XX, significou empreender finalmente a

descoberta deste imenso povo. O negro recém lib-erto, o branco pobre, os caboclos dos sertões, os índios, a imensa riqueza humana espalhada por este vasto território em tipos, psicologias, culturas e mes-mo línguas diferentes constituiu o caldo do qual be-beram Lima Barreto, Mário de Andrade, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Portinari, José Lins do Rego, Guimarães Rosa, Villa-Lobos.

Era preciso, em primeiro lugar, descobrir a própria língua dos brasileiros. O louvável esforço de Mário de Andrade com Macunaíma foi, com o perdão da expressão, macunaímico; não estava o escritor ainda em condições de perceber a imensa diversidade cul-tural regional brasileira, e por isso seu personagem é quase uma caricatura, um tipo irreal a quem é difícil conceder existência. Mas, ao olhar mais de perto, era possível verificar que não existia um caráter brasileiro unívoco. Éramos um povo muito mais diverso. Seria preciso captar essa diversidade com mais realidade e especificidade.

O moleque Ricardo, pobre vindo do campo para se tornar operário em uma padaria e morrer na prisão por acreditar na revolução. O Mestre José Amaro, seleiro morador tradicional nas terras de um sen-

hor de engenho excêntrico e decadente, por quem é despejado, mas salvo por cangaceiros. Os Capitães de Areia, meninos de rua auto-organizados na luta pela sobrevivência, de vida e modos bárbaros, em que o Sem-Perna se mata para não cair. Paulo Honório, o homem enérgico que atropela a tudo e todos para er-igir uma fazenda. Os retirantes Fabiano, Sinhá Vitória e os filhos. Os retirantes de Portinari. Todos eles ex-istiram. Até a cachorra Baleia existiu. Podiam figurar nos livros de história. Aliás, foi a forma da arte dar nome e rosto para um povo anônimo.

Vidas Secas de Graciliano Ramos é de 1938. O Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa foi lança-do há mais de meio século, em 1958. Sua geração de artistas mergulhou fundo no seio do povo, com res-peito e admiração, e provou ser o caldo cultural deste imenso Brasil popular o motor da grande arte. Em-preenderam a tarefa de tal maneira que as gerações posteriores acharam que a missão estava cumprida, e a mão de ferro dos militares acabou por apartar o artista do seu povo.

Mesmo com o retorno da democracia, acostumar-am a olhar o Brasil com desdém. Teve até banda de rock de sucesso cantando que “a terra é uma beleza, o que estraga é essa gente”. Passaram a olhar mais para as elites europeias e americanas, pois nada de novo haveria para se encontrar nesta terra. No entanto, de-pois de tantas décadas, o povo brasileiro não é mais

o mesmo. O menino do engenho veio para a cidade e se tornou doutor, Paulo Honório é empresário do agronegócio e Fabiano trabalha em uma montadora no ABC. A arte, que não acompanhou o seu povo nesta jornada, tem diante de si o desafio de redesco-bri-lo.

E irá fazê-lo, em grande parte, nas periferias das grandes e médias cidades, que concentram hoje a mas-sa do povo trabalhador brasileiro. Povo que trouxe suas heranças regionais e que cria no caos urbano novas raízes para o futuro do país. Nas periferias se cruzam as diversas tradições culturais e étnicas bra-sileiras, as diversas esperanças e sonhos de uma vida mais elevada, as diversas mãos que constroem nosso país. Nelas se encontra a força viva de um novo Bra-sil, ainda amarrada pela dependência econômica, pelo sistema social injusto, pela ideologia da exploração.

O povo brasileiro quer progredir, quer romper es-tas amarras. E a maior expressão deste povo que quer progredir são os movimentos sociais, organizados para lutar por aquilo que temos direito, o fundamen-tal para uma vida digna. Nas ocupações urbanas, a diversidade do mundo popular brasileiro se integra de maneira monumental para lutar e construir um novo Brasil.•

Estas fotografias são uma mostra do trabalho em processo Uma Nova Primavera, iniciado em setem-

bro de 2012 na Ocupação Nova Primavera, na Cidade Industrial de Curitiba/PR.

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24 • Territórios Transversais - resistência urbana em movimento

ebola

Jean BatouTradução: Pedro Rocha de Oliveira

O Filoviridae Ebola é um ví-rus composto de dez pro-teínas que foi identificado pela primeira vez em 1976,

no Zaire, hoje República Democráti-ca do Congo (RDC). Atualmente, são conhecidos cinco tipos do vírus, mas acredita-se que sejam todos mutações da primeira variedade conhecida, que hoje é encontrada na África Ocidental (Gire et al., Science, August 28, 2014). Não resta dúvida de que o vírus originou-se de morcegos frutívoros da África Subsaariana. Esses mamíferos alados transmitem-no a macacos e outros animais, mas também aos seres hu-manos, diretamente. O agente pato-gênico provoca epidemias recorrentes de uma febre mortal, cujos primeiros sintomas são parecidos com os da gri-pe, seguidos por fraqueza, diarreia, vômitos e, muitas vezes, hemorragias – sintomas que podem ser facilmente con-fundidos com os de outras doenças. Em mais da metade dos casos, a infecção leva à morte.

Desde a primeira irrupção do Ebo-la na RDC, cerca de vinte epidemias já afetaram dez países, primeiro na bacia do Rio Congo – Ebola é o nome de um de seus afluentes – e depois na África Oci-dental, particularmente na Guiné, na Li-béria, em Serra Leoa, na Nigéria e, mais recentemente, no Senegal (1). Contudo, a atual epidemia do Oeste da África fará mais vítimas do que todas as epidemias juntas até hoje. De 1976 a 2013, o Ébo-la causou 2.345 mortes, enquanto que a Organização Mundial de Saúde (OMS) estima, de forma otimista, que cerca de 20.000 pessoas morrerão na pandemia atualmente em curso. Alguns epidemio-logistas acreditam que esse número aca-bará sendo pelo menos cinco vezes maior (Mediapart, 2 de Setembro, 2014). De

fato, pela primeira vez, o vírus está se-guindo um novo caminho, adentran-do centros urbanos importantes, entre eles Conakry, na Guiné, Monrovia, na Libéria, e Freetown, em Sierra Leoa. Também é importante observar que são as mulheres as mais afetadas, porque são sobretudo elas que estão cuidando dos pacientes.

A apropriação privada da terra

Como podemos explicar a in-fecção de seres humanos por um vírus que, até recente-mente, ocorria apenas entre

animais selvagens? A resposta está na exploração cada vez mais intensa da sa-vana africana, uma vasta zona de cerca de 4 milhões de quilômetros quadrados que vai do Senegal à África do Sul, e que a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura e o Banco Mundial descrevem como a nova El Do-rado agricultural do mundo (2). Como se sabe, o declínio da agricultura de pe-queno porte praticada por lavradores, em benefício do agronegócio para exporta-ção, levou ao deslocamento de milhões de pequenos produtores pobres, e à con-centração de terra nas mãos de grandes corporações multinacionais. Essa “acu-mulação por expropriação” está ex-plodindo nos países afetados pelo vírus Ebola. Aquela expropriação leva ao des-

matamento de áreas gigantescas, e cria comunidades rurais que sobrevivem da caça de animais que, anteriormente, não tinham contato com os seres humanos.

Evidentemente, macacos, pequenos mamíferos e morcegos foram, por muito tempo, parte da alimentação tradicional dos povos dessas regiões. Mas suas neces-sidades crescentes de proteínas levaram-

nos a apelar mais e mais para a caça, o que aumenta a exposição a novos patógenos (3). Além disso, a desorga-nização de ecossistemas, resultante do desmatamento em larga escala nos úl-timos anos, contribuiu para o aumento do contato entre animais infectados e grupos humanos. Particularmente, o desmatamento de 40 mil quilômetros quadrados na África Subsaariana entre 2000 e 2010, correspondendo a quase um terço do desmatamento mundial,

combinou-se com o aquecimento glo-bal na acentuação da aridez e aumento da duração da estação seca, dois fatores favoráveis à eclosão de epidemias, pois fazem com que animais potencialmente portadores de vários vírus saiam de seus nichos ecológicos tradicionais (4).

Em períodos recentes, os países afeta-dos pela epidemia em curso foram o alvo preferido dos investidores internacionais, devido à abundância de terra cultivável “disponível”, a vulnerabilidade de seus pequenos produtores dedicados à agri-cultura de subsistência, e condições polí-tica favoráveis (leia-se, a promoção indis-criminada do livre empreendimento e o declínio da atividade estatal). É assim que grande interesses italianos (Nuove Inizia-tive Industriali) e americanos (Farm Land of Guinea) voltaram seus olhos à Guiné. Na Libéria, também estão presentes in-vestimentos malaios (Sime Darby), além de companhias Suíças (Addax). Serra Leoa é a preferida das Sino-vietnamitas.

Essas empresas controlam a produção de biocombustíveis, que está em rápida ex-pansão.

Um pequeno camponês expressou sucintamente as consequências sociais do controle da empresa malaia Sime Darby sobre milhares de acres de terra na Libé-ria: “Agora nos falta comida. Não temos comida nem hospital. Nem escola. Não temos trabalho (...) então é difícil pagar os professores (…) Então eles vão embo-ra.” (5). A apropriação de terra por em-presas privadas estrangeiras vêm na sequ-ência de décadas de ajuste estrutural que literalmente destruíram a infraestrutura pública dos países mais pobres da África Subsaariana, especialmente a educação e a saúde. O Ebola, agora, exacerbará essa pobreza endêmica, causando uma nova crise de alimentos nas áreas mais afeta-das, como resultado direto da imposição de quarentenas que interrompem o cul-tivo agrícola e o comércio, provocando aumento nos preços de gêneros alimen-tícios básicos (USA Today, 28 de agosto de 2014).

Reféns da Pobreza

Aparentemente, o primeiro surto da atual epidemia ocor-reu em dezembro de 2013. nas aldeias próximas à cida-

de de Guéckédou, no sul da Guiné. Na década de 2000 a 2010, a população de Guéckédou praticamente triplicou, de-vido ao influxo de refugiados das guerras civis em Serra Leoa e na Libéria. A infra-estrutura pública é, obviamente, incom-patível com as necessidades básicas dessa população, e as autoridades estão em to-tal descrédito. Os profissionais de saúde, muito poucos e mal equipados, não têm meios para enfrentar o aumento no nú-mero de pacientes, e nem mesmo para proteger-se da doença. Com isso, as frá-geis instituições de saúde se transformam

SAÚDE

um vírus no coração das trevas

Os profissionais não têm meios para enfrentar o número de pacientes e proteger-se e as frágeis instituições de saúde se

transformam em centros de propagação da epidemia.

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em centros de propagação da epidemia.Sob tais condições, sem que existam

nem mesmo formas locais de testagem da infecção com Ebola – para realizar esses testes, é preciso enviar as amostras para a Europa e a América do Norte – a epidemia saiu de controle rapidamente. Pouco a pouco, ela chegou a comunida-des vizinhas, especialmente Guéckédou, que é a sede de um importante mercado regional, de onde migrou para as capitais da Guiné, da Libéria e de Serra Leoa. É importante dar-se conta de que, de acor-do com investigações epidemiológicas, cada paciente teve contato, em média, com 20 a 40 pessoas, as quais, teorica-mente, teriam que ser identificadas e ras-treadas durante 21 dias (Le Monde, 5 de agosto de 2014).

Na Europa e na América do Norte, não seria difícil deter o contágio de uma doença que é principalmente transmitido por contato direto com fluidos corporais de pacientes (saliva, suor, vômito, uri-na, fezes, sêmen, sangue, etc), embora a possibilidade de infecção por inalação do vírus parece não ter sido excluída (Ame-rican Thinker, 24 de agosto de 2014). Ao contrário da AIDS, o tempo de in-cubação do Ebola é curto (em média, 10 dias), e os indivíduos afetados só podem espalhar a doença durante o breve perí-odo em que aparecem os sintomas. As-sim, para evitar que o Ebola se espalhe, é preciso, apenas, serviços de saúde capazes de tratar os pacientes com um mínimo de segurança (uso de gorros, luvas, más-caras, agulhas limpas, etc), evitando que entrem em contato com suas famílias, e também rastreando e informando as pes-soas com que tiveram contato.

Entretanto, em países que registram menos de um médico para cada 50.000 habitantes, “profissionais de saúde tra-balhando nos locais afetados (…) não têm acesso aos recursos básicos para pro-tegerem a si mesmos e a seus pacientes. Muitos dos hospitais estão deteriorados, o controle infectológico é extremamen-te limitado, e a capacidade de rastrear os contatos é praticamente nula.” (Vox, 9 de agosto de 2014). No total, de acor-do com a OMS, quase 8% das vítimas do Ebola são médicos ou enfermeiros (The Spokesman-Review, 31 de agosto de 2014). “Em Serra Leoa, na cidade de Kenema, 18 médicos e enfermeiros que trabalhavam na ala de infectados com Ebola e febre Lassa contraíram Ebola, e pelo menos 5 morreram (…) Alguns enfermeiros que trabalharam com Ebola pararam de vir ao trabalho: estavam tra-balhando em turnos de 12 horas, vestidos com roupas de proteção herméticas, e su-postamente deveriam ganhar um adicio-nal de periculosidade de 30 dólares por dia, mas o governo de Serra Leone não realizou os pagamentos (…) Na Libéria, partes do sistema médico colapsaram (…) Os hospitais da capital, Monrovia, lotados de pacientes com Ebola, estão recusando novos pacientes (…) Corpos infectados estão sendo abandonados nas

ruas: o surto está começando a assumir um caráter medieval” (The New Yorker, 11 de agosto de 2014).

Mobilização Popular

Para uma luta eficaz contra a epidemia, são necessários mais recursos. Porém, também é fundamental a mobilização po-

pular e o trabalho conjunto com os pro-fissionais da saúde pública, especialmente para evitar que os doentes sejam escondi-dos por suas famílias, para assegurar que as cerimônias funerais sejam seguras – os mortos são particularmente contagiosos – e também para garantir que as casas dos mortos sejam desinfetadas. Mas, sobretudo, aquela mobilização é neces-sária para exigir uma política de saúde que atenda às demandas das populações ameaçadas.

Essas condições estão ausentes de muitas das comunidades afetadas, que têm boas razões para desconfiar de suas autoridades. A tática destas últimas tem sido a de criminalizar as famílias que escondem parentes doentes, e empregar as Forças Armadas para impedir que as pessoas circulem, ao invés de aumentar o financiamento público da saúde e en-corajar a administração coletiva da saúde (E-International Relations, 26 de julho de 2014; Le Monde, 1o de agosto de 2014).

Além disso, é difícil exigir que os ha-bitantes dos países em questão confiem em atores internacionais que são majo-ritariamente brancos (OMS, Médicos Sem Fronteiras, UNICEF, Cruz Ver-melha, etc), que vêm vestidos em roupas espaciais e roubam seus mortos para co-locá-los em sacos plásticos. Dado o papel das instituições de financiamento inter-nacional na imposição dos programas de ajuste estrutural durante os últimos 30 anos, todos os ingredientes estão presen-tes para alimentar as teorias da conspira-ção que afirmam que interesses racistas e neocoloniais deliberadamente causaram surtos de AIDS e de Ebola para facilitar a apropriação da riqueza africana (6).

A iniciativa espontânea de artistas, cantores e atores, e também de bloguei-ros, no esforça de alertar a sociedade e en-corajar seus concidadãos a protegerem-se da doença, bem como o envolvimento dos sobreviventes em campanhas de pre-venção, sugerem que métodos melhores estão sendo tentados (NPR, 19 de agos-to de 2014; ABCNews, 26 de agosto de 2014). Entretanto, uma verdadeira organização de base para resistir à epide-mia exige o reconhecimento de direitos democráticos básicos, e sua tradução em termos de organizações da sociedade ci-vil, algo incompatível com a preservação dos enormes privilégios das burguesias locais e internacionais.

De fato, no plano internacional, a ação hesitante e tardia da OMS é absur-da. O orçamento disponível para lidar com as crises de epidemia foi cortado pela metade nos últimos dois anos: de 469 milhões de dólares em 2012-2013

para 228 milhões de dólares em 2014-2015. É um sinal dos tempos que o Banco Mundial tenha destinado 200 milhões de dólares para cobrir o inves-timento limitado da agência das Nações Unidas (The Lancet, setembro de 2014). Da mesma forma, as organizações não-governamentais, tais como os Médicos Sem Fronteiras (MSF), ou as ordens religiosas tais como a San Juan de Dios – à qual pertencia o padre espanhol que recentemente foi vítima da epidemia – estão à frente da intervenção de campo (7). Trata-se de uma imagem vívida da privatização dos serviços essenciais, cada

vez mais negligenciados pelos governos e organizações internacionais.

A falência moral do capitalismo

Desde que a OMS declarou, bastante tarde, no dia 8 de agosto, que a epidemia da África Ocidental havia se

tornado uma emergência internacional, houve um aumento gigantesco do valor das ações das companhias farmacêuti-cas avançadas envolvidas no desenvolvi-mento de vacinas e antivirais (Tekmira, Sarepta, BioCryst, NanoViricides, Mapp Bio e Zmapp, um coquetel de três anti-corpos que foi administrado com sucesso para dois trabalhadores de ajuda huma-nitária dos EUA, mas que não surtiram efeito para o padre espanhol e em um médico da Libéria). Essas empresas de-senvolveram substâncias – por enquan-to, em quantidades experimentais – que estão quase prontas para a testagem em seres humanos (Reuters, 8 de agosto de 2014; Forbes, 29 de agosto de 2014).

De acordo com o prof. Daniel Baus-ch, da Escola Tulane de Saúde Pública e Medicina Tropical, o principal obstáculo à produção desses medicamentos eficazes não é científico nem técnico, mas eco-nômico: “As companhias farmacêuticas não se sentem incentivadas a usar seus recursos financeiros em pesquisa e de-senvolvimento para curar uma doença que só aparece esporadicamente em pa-íses africanos pobres” (nakedcapitalism.com, agosto de 2014). É por isso que o Dr. John Ashton, presidente da Fa-culdade Britânica de Saúde Pública fala abertamente da “falência moral do capi-talismo” (Independent on Sunday, 3 de agosto de 2014).

Até agora, o que o Ebola conseguiu foi despertar a atenção das Forças Arma-das, interessadas na prevenção de bioter-rorismo. As grandes companhias farma-cêuticas negam-se a financiar os testes clínicos, que são caríssimos, porém es-senciais. A OMS, até o momento, man-

tém uma proibição sobre a testagem de vacinas em seres humanos, dada a altíssi-ma taxa de fatalidade dos infectados pelo vírus. De acordo com o renomado pes-quisador belga Peter Piot, um dos desco-bridores do Ebola e fundador do Comitê para a Abolição da Dívida do Terceiro Mundo, “Depois que a epidemia ter-minar, os investimentos em pesquisa de tratamentos e vacinas serão suspensos. Quando vier uma nova epidemia, nada terá sido feito. Depois do surto de 1976, a OMS afirmou que criaria uma equipe internacional de intervenção. Isso nunca aconteceu.” Piot está solicitando apoio

para financiar a pesquisa e para ofere-cer tratamento gratuito sob respon-sabilidade da OMS para os atingidos pela doença (Le Monde, 7 de agosto de 2014).

A trágica epidemia hoje em curso mostra como a busca incessante por lucros é incompatível com a saúde pública, especialmente aquela das massas pobres dos países oprimi-

dos. O líder de extrema-direita francês Jean-Marie Le Pen, recentemente con-tribuiu para elevar o nível de barbárie ao extremo, ao afirmar que o “Senhor Ebola” tem os meios para deter a explo-são populacional mundial em três meses. Para ir além da legítima indignação, e realmente mudar o curso das coisas, pre-cisamos romper com a atual desordem mundial. Em primeiro lugar, a saúde pú-blica não pode ser separada de objetivos ecossocialistas, porque a saúde depende do ambiente em que vivemos, e o pro-dutivismo de nossa sociedade constante-mente promove o aparecimento de novas patologias somáticas e psicológicas, que o capitalismo a qualquer custo põe na con-ta da sociedade. A pesquisa e a indústria farmacêutica não responderão às necessi-dades da humanidade, especialmente dos grupos mais pobres, enquanto não se re-nunciar à prática de limitar a distribuição de seus produtos aos clientes pagantes, ao invés de atender necessidades sociais democraticamente definidas. Para que isso aconteça, será preciso socializá-las e financiá-las publicamente. Será que não se poderia começar com a utilização dos gigantescos recursos destinados ao pa-gamentos dos serviços de dívida pública pelos povos do Sul e do Norte para fi-nanciar a assistência em saúde?•

(1) Uma epidemia de menor duração também afetou a Repúbli-ca Popular do Congo em julho último, provavelmente ligada a uma outra cepa de Ebola.(2) Awakening Africa’s Sleeping Giant. Awakening Africa’s Sle-eping Giant. Banco Mundial, 2009.(3) Mecanismos deste tipo foram recentemente estudados glo-balmente por David Quammen.(4) Daniel G. Bausch and Lara Schwarz, “Outbreak of Ebola Vi-rus Disease in Guinea: Where Ecology Meets Economy,” (5) The Globe and Mail, “Land Grabs in Africa: Liberia”(6) Ver a declaração que explica as razões pela petição lançada pelo matemático Pascal Adjamagbo, o Dr. Guy Alovor e Kanyana Mutombo, a qual solicita que a União Africana, associada ao Conselho de Segurança da ONU, crie uma comissão para estu-dar as origens da AIDS e do Ebola. (7) Esta ordem religiosa é parcialmente financiada pelas receitas dos títulos públicos do Estado espanhol (La Jornada, 17 de agosto de 2014).

A pesquisa e a indústria farmacêutica não responderão

às necessidades da humanidade, especialmente

dos grupos mais pobres

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26 • Territórios Transversais - resistência urbana em movimento

teatro e política no BrasilNo período que vai de meados dos

anos 50 até o início dos anos 70, a intensidade das lutas populares coincidiu com uma profunda re-

novação da cena teatral no Brasil. O teatro não almejava mais ser apenas um diverti-mento importado da Europa para consumo dos abastados, mas adotou para si a tarefa de botar no palco os problemas do Brasil con-temporâneo, buscando como interlocutor os movimentos sociais. A maneira de atuar, de escrever peças, o modo como os grupos se organizavam, a relação com o publico, tudo foi debatido e reinventado. Foi, sem dúvida, um dos momentos mais férteis da cena brasileira.

A realidade atual nos mostra que o apro-fundamento da crise social parece trazer no-vas lutas políticas. A questão é saber como os grupos de teatro hoje podem se colocar diante dessa nova conjuntura. A trajetória e a reflexão de quem viveu o teatro político no passado, e vive-o ainda no presente, pode nos ajudar a responder essa questão. Pensan-do nisso, entrevistamos Rafael Villas Bôas, membro da Brigada Nacional de Teatro do MST e professor da UnB.

Julian Boal e Paula Kropf - Como nasceu a ideia de uma ação cultural organizada dentro do MST?

Rafael - Nasceu junto com o MST, em 1984. A conquista da terra sempre signifi-cou para os camponeses uma luta plena pela conquista de muitos direitos, da produção de alimentos, da educação, da saúde, da cul-tura, etc. As simbologias sempre estiveram presentes nas ações do MST, nas ocupações, lutas de resistência aos despejos, marchas, noites culturais... Há influências da estética religiosa, da produção artística de movimen-tos socialistas e comunistas, mas nenhuma delas foi assimilada sem ser ressignificada, sem sofrer processos de sincretismo. Histo-ricamente, o debate sobre a cultura no MST ganhou força especialmente a partir de um seminário realizado em 1998, que reuniu militantes de diversos setores. Dois anos de-pois desse debate, foi criado o Coletivo Na-cional de Cultura, como desdobramento de uma frente do Setor de Educação.

A expressão de síntese de maior origina-lidade e autonomia em relação às influências da indústria cultural é a mística do MST. A mística é a expressão política e estética que articula o passado (a consciência de quais lutas somos tributários, o aprendizado com as derrotas, o legado dos valores, estratégias, etc.), o presente (a leitura precisa da conjun-tura da correlação de forças) e do futuro (o traçado das providências táticas, em con-sonância com a estratégia, coletivamente elaborada, e em permanente gesto de cons-trução). Além disso, é a expressão que funde as linguagens artísticas da música, do teatro, da dança, das artes plásticas, e que torna seu gesto de produção uma ação coletiva, con-trária ao caráter segregador e alienador da divisão social do trabalho no sistema capi-talista.

Como você avalia a experiência passa-da e acumulada ao longo dos anos de atu-ação das frentes de cultura do movimento? Como você observa a relação do setor cul-tural com as demais esferas de organização da luta dentro do movimento?

No decorrer dos seus 30 anos de exis-tência, o MST desencadeou um amplo processo de apropriação prática e teórica do sentido do direito à cultura. Esquematizar é sempre um problema, mas podemos fazer a seguinte periodização. Em primeiro lugar, houve a discussão do direito à cultura como parte do direito à terra e à vida. Nesse perí-

odo, trabalhou-se a expressão espontânea da cultura nas ações de luta, nos acampamentos e assentamentos. A arte era evocada como uma necessidade orgânica do movimento, embora ainda sem a preocupação da discus-são sobre o fazer artístico e sobre a necessi-dade de organização da cultura como um elemento estratégico. Mas nos anos de 1997 e 1998 começa a produção sistemática de textos e o debate sobre a necessidade de uma revolução cultural interna na organização, que pudesse contemplar os valores, a forma-ção, o perfil adequado para as demandas re-volucionárias encampadas pela organização.

Com isso, o MST entra numa segunda etapa. Em paralelo à reivindicação da cultura como um direito, ou como uma derivação conservadora dessa dimensão ampliada, vem a reivindicação do acesso aos bens cul-turais. A cultura é compreendida como um código de acesso ao universo do consumo, por exemplo, acesso à TV e sua programa-ção, acesso ao cinema, etc. Cultura como sinônimo de produto cultural. O ponto principal desse questionamento é a condi-ção de acesso como público consumidor, e não o debate sobre apropriação dos meios de produção.

O fato disso aparecer no MST é indício do caráter contraditório do Movimento, pois ao mesmo tempo em que há consci-ência da necessidade de domínio dos meios de produção para o trabalho na terra con-quistada pela luta, uma parte da organização demora a compreender que, no campo da cultura, deve valer a mesma regra. Entre os militantes da cultura essa consciência é latente desde o início da parceria com Au-gusto Boal e o Centro do Teatro do Opri-mido, em 2001, e é aprofundada e mais amplamente disseminada após a realização do Seminário Arte e Cultura na Formação, realizado na Escola Nacional Florestan Fer-nandes, em 2005.

Num terceiro momento, a cultura apa-rece como frente estratégica de formação, diálogo com a sociedade e organização so-cial. Desde a criação do Coletivo Nacional de Cultura, aparece a discussão específica sobre cultura e arte no Movimento. A ques-tão cultural passa a ser encarada como um fator importante na construção da estratégia da organização, para o processo de formação de militantes e trabalho de base nos acam-pamentos e assentamentos, e também como meio de diálogo com a sociedade em geral. Também é nesse momento que se com-preende a relação entre Indústria Cultural e Agronegócio. Entra em pauta a discussão sobre os padrões hegemônicos de represen-tação da realidade, e o questionamento à lógica do espetáculo e seus efeitos danosos para dentro do Movimento, na medida que esse debate nos permitia reconhecer nossa condição de vulnerabilidade nesse flanco da luta.

Conte um pouco das atividades que concretamente são desenvolvidas e de que modo.

O setor de Cultura do MST atua em di-versas frentes. Nas oficinas, cursos e seminá-rios, a militância é convocada para transmitir o que aprendeu, com diversos objetivos. Na animação e agitação em ações de luta ou grandes eventos, a militância da Cultura é sempre convocada para estar nos palcos ou nos carros de som durante as marchas, ou preparando a ornamentação de atividades, e o ambiente público em que um grande evento do MST ocorrerá. Também é pro-movida a parceria com outros setores para a formação de militantes: no MST, muitos desafios surgem de demandas concretas,

como a necessidade de trabalho articula-do entre Saúde e Cultura, para fortalecer o debate sobre as duas dimensões nos assenta-mentos e acampamentos; ou o trabalho das linguagens artísticas com as turmas de edu-cação de jovens e adultos; o trabalho com as artes nos cursos de formação de militantes; o papel da Cultura no treinamento dos mili-tantes da Frente de Massa; a discussão sobre a questão cultural no debate sobre a matriz da agroecologia, e sobre cooperação, etc. Ao lado disso tudo, está o trabalho especí-fico com as linguagens artísticas: dentro do Coletivo de Cultura temos a estrutura das frentes por linguagens para dar conta de es-pecificidades do trabalho com cada lingua-gem. Temos ainda eventos como a Semana da Cultura Brasileira e da Reforma Agrária, que são grandes atividades culturais de pro-paganda da Reforma Agrária e de diálogo com a sociedade urbana pela dimensão da cultura e da arte.

Roberto Schwarz, em um ensaio sobre a atualidade de Brecht, faz duas afirmações que trazem implicações para a prática teatral na atualidade. A primeira é a de que não haveria nada mais a ser desvelado, o estado das coi-sas não é mais algo que precise ser des-coberto, já o foi. A outra é a constata-ção de que o conhecimento, uma vez adquirido, não instaura automatica-mente uma passagem para a ação, não desperta um contexto revolucionário. Partindo destes dois pontos, qual seria hoje o papel do teatro?

Sem desconsiderar a pertinência do argumento, cabe, todavia, lembrar que a dinâmica de mercantilização da vida segue em processo acelerado e a arte e a cultura são sempre espaços potenciais de expressão formal do problema, expressão das contra-dições. Portanto, não apenas o que já foi descoberto carece ainda de ser socializado para as grandes massas da população (e, logo, a eficácia de seu potencial emancipatório ca-rece ainda de ser testada) como há questões a serem descobertas, aprofundadas, questio-nadas, etc.

Quanto à questão de que o conheci-mento ao ser adquirido não instaura uma passagem automática para a ação, estamos de acordo, pois, caso contrário, incorreríamos numa tendência idealista, de acharmos que só estamos na condição histórica de subde-senvolvimento, superexploração e iniquida-de por conta da falta de formação da classe trabalhadora. É certo que um processo de formação mais consistente pode incidir com maior vigor sobre as contradições da luta de classes, mas há dimensões da infraestrutura que são decisivas para o confronto entre ca-pital e trabalho.

O papel do teatro hoje é múltiplo, e não é muito diferente do que foi sistema-tizado por Eugenia Cassini Ropa no texto “A arma do teatro”, sobre o teatro político das décadas de 1920 e 1930. Para essa auto-ra, como linguagem artística, o teatro deve fornecer imagens não mercantilizadas de um mundo cujas contradições podem, e devem, ser superadas pela ação da humani-dade, tendo em vista a perspectiva emanci-patória. Como instrumento de agitação e propaganda, o teatro deve ser potencializado por meio de brigadas, no campo e na cida-de, e nas escolas, pelo papel de educadores críticos, cientes do sentido humanizador que a arte pode cumprir quando associada à dimensão da formação e educação. Como forma de disputa com os instrumentos de persuasão e manipulação da indústria cul-tural, o teatro pode colocar em campo seus

procedimentos estéticos à serviço da crítica contra o fetichismo da mercadoria e, em chave desideologizadora.

A experiência brasileira dos anos 60 foi o grande momento político, artístico, cultural, que ainda hoje traz influências para a criação teatral. Em que medida esta herança se coloca como acúmulo, para a elaboração de modos de enten-der a realidade, ou como obstáculo, no sentido de não avançar na crítica e na construção de alternativas que consi-gam dialogar com as condições atuais?

A experiência teatral dos anos 1960 foi interrompida pelo golpe de 1964 quando es-tava em processo de rápido amadurecimen-to. Há estudos que atestam que o processo de formação do teatro brasileiro, enquanto síntese dialética das influências externas e do processo de acumulação interna, ocorre naquela década, sobretudo, nos anos que an-tecedem o golpe militar-civil de 1964.

O estudo de Iná Camargo Costa, “A hora do teatro épico” (Graal, 1996) é a obra mais consistente sobre a questão. Nesse tra-balho, a autora alega que o processo brasilei-ro pulou do estágio inicial, de transferência dos meios de produção, para o estágio do massacre da experiência, tendo atropelado o segundo estágio, que é o da apropriação sistemática da classe trabalhadora dos meios de produção das linguagens artísticas.

Talvez, possamos afirmar que há expe-riências, hoje em dia, nos coletivos de teatro político espalhados pelo país, que não dei-xam nada a dever em termos de qualidade ao que de melhor foi produzido naquele período. Por outro lado, a associação orgâ-nica daquela experiência a uma perspectiva de construção de um projeto de país é algo que não reapareceu nas décadas seguintes ao golpe de 1964.

O trabalho que o MST faz no campo da Cultura, sobretudo, a partir da parceria com Augusto Boal e o CTO, e da organização da produção cultural do Movimento, que já soma treze anos, desde 2001, em termos temporais, e de capilaridade pelo território nacional, levou adiante o projeto da segunda fase interrompida pelo golpe, a de transfe-rência dos meios de produção da linguagem teatral para a classe trabalhadora. Porém, as condições de produção dos grupos de tea-tro do MST não permitiram ainda que, do ponto de vista estético, a qualidade das obras atinjam um nível equivalente ao padrão do que era produzido na década de 1960.

Entretanto, esse critério de aferição da qualidade da produção, comparando as experiências contemporâneas com o que tivemos na década de 1960, não deve ser considerado um fator limitante, porque são contextos diferentes, com gamas diversas de problemas para levarmos em conta. Há experiências significativas, no âmbito da linguagem teatral, em algumas das peças do MST, como destaca Iná Camargo Costa, no prefácio do livro “Teatro e Transformação Social” (2007). A questão da eficácia estética não deve ser analisada de forma dissociada da função que o trabalho pretende cumprir e das condições de produção da obra, pois, de modo geral, quando isso ocorre, o julga-mento estético pode vir atrelado a uma posi-ção política de classe, mesmo quando não se manifeste claramente no discurso. Já ocor-reu na história de críticos ligados a partidos comunistas (vide os casos alemão e soviéti-co) desqualificarem o trabalho de trupes de agitação e propaganda, ou das peças didáti-cas de Brecht, com critérios burgueses, com pressupostos estéticos da forma dramática.•

a experiência do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra

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8 NÃO– Mas você se comporta como um homem vencido.– Hoje em dia, é bem visto ser um homem

vencido. Fui vencido aos poucos. Sem me dar conta de todos os processos, até que fosse irreversível. Mas desde que pude enxergar que fui vencido, me tornei um homem sem grandes inquietudes. Ser vencido me definia, era a minha borda. Um homem se torna pleno quando se depara com as suas bordas. Quan-do percebe que tudo o que está para fora delas é apenas fantasia. Esta condição permite um descan-so de todas as utopias. Desde que fui vencido, me tornei um homem sem grandes sofrimentos. Se eu acreditasse em terapia, diria que fui curado de mim mesmo. Curado de mim mesmo, pude finalmente fazer parte do exército silencioso de homens ven-cidos.

7 A LIBERDADE DO POSSÍVEL Agora que sou um homem curado, posso enxergar unicamente o possível; aquilo que existe. Enxergar unicamente aquilo que

existe me livrou de dois sentimentos parasitários: esperança e descontentamento. Perder a esperança de que as coisas sejam de outra maneira é se tornar uma peça que faz girar a engrenagem do possível. Perder a esperança é viver no presente; naquilo que existe. Perder a esperança significa não sentir mais descontentamento por tudo aquilo que está fora do sistema de coordenadas do possível. Desta maneira, poderei alcançar aquilo que todos os homens con-temporâneos colocam em seu mais alto patamar: a felicidade.

6 HOMEM CONTEMPORANEOQuando deixei de dizer não, me tornei um homem contemporâneo. Encaixei perfeita-mente no projeto teológico-político do ho-

mem contemporâneo. Poderia até mesmo servir de modelo para que outros se curassem dessa indeter-minação, que alguns chamam de Eu. Um homem contemporâneo precisa cumprir três etapas para estabelecer com precisão as suas bordas: a primei-ra é deixar de dizer não. Em outras palavras, tudo aceitar. As coisas são como são. As coisas sempre foram assim. As coisas sequer te dizem respeito. Viva como se não estivesse no mundo: é a segunda etapa. Essa é a maior contribuição para manter o mundo e as coisas do mundo em seus devidos lu-gares. Por fim, pense apenas nas suas questões indi-viduais (a infiltração no teto do banheiro afeta mais a sua vida do que qualquer criança passando fome em propagandas apelativas). Assim, você evitará se relacionar com a tensão compartilhada da revolta,

encaixando-se perfeitamente no projeto do homem contemporâneo.

5 A MORTE DA POLÍTICAA morte da política é consequência do nas-cimento do homem contemporâneo. Se a política é um procedimento de verdade, ou

seja: uma experiência que constrói um determina-do tipo de verdade que diz respeito ao coletivo. A ação política transforma em verdade aquilo que o coletivo é capaz. Mas se uma das principais carac-terísticas do homem contemporâneo é agir e pensar individualmente, o seu nascimento é a morte do coletivo. E, consequentemente, a morte da política.

4 MANIFESTAÇÂOMovido pela fantasia da ação política, for-mulei questões fora do sistema de coorde-nadas do possível: somos capazes de pro-

duzir igualdade? Somos capazes de integrar tudo aquilo que é heterogêneo? E a mais perigosa das perguntas: de que são capazes indivíduos a partir do momento em que se reúnem, se organizam e pen-sam? Em algum momento, o plano de felicidade do homem contemporâneo falhou e surgiu um des-contentamento individual, que virou descontenta-mento coletivo. Em algum momento, a “peste de um só homem se tornasse a peste coletiva”.

3 DESCONTENTAMENTONão existia um discurso comum. Não existia um consenso. Existia apenas o des-contentamento. Mas poderia a peste do

descontentamento resistir e desfazer a imagem do homem contemporâneo?

2 VIOLÊNCIA– Somos movidos apenas por sentimentos! Ao que alguém respondeu: – Sem partido! Sem violência! Qualquer mudança é essen-

cialmente perturbação. Violência. E não seria uma violência contra a paz estabelecida, mas uma vio-lência contra a violência necessária para naturalizar a violência do sistema. Se não tem violência, não tem mudança. Se não tem mudança, o desconten-tamento persiste?

1 AGONIAA multidão perdia. Eu perdia.Todos se debatiam para evitar que a política

preenchesse qualquer fissura, quando a política já preenchia todas as fissuras. Quando, das ruínas do homem contemporâneo, do homem sem bandeira, do homem não violento, surgia o homem contem-porâneo.•

o homem vencidoDaniela Lima

“Quem for idêntico a si próprio, este pode ser colocado no caixão, este já não existe mais, não está mais em movimento. Idêntico é um memorial. O que preci-samos é do futuro, e não da eternidade do instante. Precisamos desenterrar os mortos, mais e mais, porque só deles podemos receber o futuro.” Heiner Müller

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28 • Territórios Transversais - resistência urbana em movimento

36 milhões em menos de 1 segundocrise capitalista em perspectivas

No dia 11 de setembro de 2014, foi noticia-do nos jornais que a commodity minério

de ferro atingiu o menor preço dos últimos cinco anos. Essa sucessão de baixas nos preços provocou o fa-migerado Goldman Sachs a soltar um relatório que veicula o “fim da Idade do Ferro”, com estimativas de encerramento, em 2015, de 110 milhões de toneladas em capacidade de produção anual do minério no planeta, além de mais 75 milhões, em 2016. Seguindo os rastros da crí-tica da Economia Política elaborada por Karl Marx, que, grosso modo, identifica na superacumulação o de-tonador das crises econômicas no capitalismo, podemos apontar para a correlação entre a superprodução da indústria chinesa de aço e o exor-bitante estocamento, tanto do aço,

quanto do minério. O Brasil recen-temente surfou no inflacionamento do preço das commodities. Por trás da predominância delas na pauta ex-portadora do Brasil e de muitos ou-tros países, encontra-se o que David Harvey denominou de acumulação por despossessão: uma reedição e ampliação da pilhagem dos recursos naturais e socioculturais, incluindo a rapinagem privada dos fundos pú-blicos, a expansão da privatização, as contrarreformas que corroem direi-tos, além do avanço da terceirização que amplia e institucionaliza a pre-carização nas relações de trabalho. A despossessão inclui também mais extravasamento da racionalidade (irracional) econômica para as es-feras constitutivas da vida cotidiana na chamada “globalização”, expres-sando, assim, uma monstruosa pre-tensão (potencialmente) totalitária

de domínio do mundo natural e sociocultural (nas mais diversas di-mensões), ou seja, das condições objetivas e subjetivas da nossa vida em sociedade. A rigor, em resposta aos obstáculos estruturais da acumu-lação capitalista em tempos de crise crônica, restabeleceu-se um regime de espoliação aberta, direta, crua, imediata, que, na esteira do próprio Harvey e outros formuladores críti-cos, como Arantes e Menegat, pode ser tratada como a (re)ativação, por meios high-tech, da metodologia da acumulação primitiva do capitalis-mo.

A superprodução ou supera-cumulação, tendência imanente à contradição em processo do capi-tal, manifesta-se, também, em um segmento estratégico à acumulação capitalista: a indústria bélica ou, conforme expressão do ex-general

e ex-presidente ianque Dwight Ei-senhower, complexo industrial-mi-litar. Assim, a finalidade desvairada de multiplicar, incessantemente, di-nheiro em mais dinheiro, gera não apenas sobreacumulação monetária de mercadorias e serviços, de força de trabalho e de maquinaria: engen-dra também superacumulação de meios vigilantes, repressivos, puniti-vos. Nessa linha, a corporação trans-nacional Hitachi, autoproclamada como uma empresa “que reúne di-versas medidas para tornar as cidades mais inteligentes”, por meio de um espaço comprado numa revista bra-sileira voltada ao público empresa-rial, veiculou um novo equipamento tecnológico “a serviço da seguran-ça”: um sistema que consegue regis-trar 36 milhões de rostos em menos de 1 segundo – repito: 36 milhões de rostos em menos de 1 segundo!

Felipe Brito

O sistema da Hitachi, capaz de monitorar e registrar 36 milhões de rostos em 1 segundo.

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Uma onda de indignação, insubordinação e pro-testo que tomou conta de Fergusson, no esta-

do de Missouri, EUA, arrancou da invisibilidade o assassinato do jovem Mike Brown, alvejado por tiros des-feridos por um policial militar em 9 de agosto de 2014. Brown era negro e pauperizado, morador de periferia, tal como, não coincidentemente, a maioria esmagadora de mortos por agentes da lei estadunidense ou por seguranças privados. Segundo o re-latório Malcolm X Grassroots Mo-vement, a cada 28 horas um homem negro é assassinado por um policial, segurança privado ou patrulheiro nos Estados Unidos. Aproveitan-do esse triste ensejo, vale destacar também a megalomaníaca política de encarceramento, na casa dos dois milhões de indivíduos. Pautando-se em projeções rebaixadas, em 2020, pelo menos 1 em cada 4 jovens ne-gros estará no cárcere. Logo, a má-quina mortífera e encarceradora da democracia de mercado norte-ame-ricana é marcada pela seletividade econômica, racial e espacial.

No calor da ocupação das ruas pela revoltada e atônita população, profissionais da grande mídia em-presarial depararam-se com um opulento cortejo bélico, em grande parte empregado na chamada “guer-ra do Golfo”, nas invasões do Iraque e Afeganistão (dentre outras mais ou menos clandestinas). O cortejo era composto por veículos blindados an-timinas, lançadores de granada, fuzis e rifles automáticos de infantaria, vi-seiras de raio-x, dentre outros, que juntavam-se aos já mais conhecidos gás lacrimogênio, spray de pimenta, cassetete, etc. Não se tratava apenas da Guarda Nacional (formada prin-cipalmente por reservistas das For-ças Armadas), convocada para tirar a multidão das ruas e restabelecer a “ordem”, mas, sobretudo, de poli-ciais locais portando o mencionado aparato. A discrepância de se depa-rar em Ferguson com policiais lo-cais usando aparato voltado à guerra, executando operação de guerra, las-treou um elucidativo exagero (for-mulado como interrogação, mas, até mesmo, como afirmação): o “Iraque é aqui”!? Os agentes da grande mí-dia, que em maior ou menor grau acompanham o desmoronamento do Iraque, bem sabem que os EUA não são o Iraque. Com um olhar um pouco mais atento do funcionamen-to da maior democracia de mercado do mundo, o exagerado enuncia-do encontra ainda um lastreamento maior, posto que o emprego de ar-mamentos e táticas de combate an-titerroristas passou a ser corriqueiro

na “guerra às drogas” e, inclusive, no combate a outros tipos penais.

É possível localizarmos no cha-mado Programa 1033, fabricado pelo perdulário lobby do complexo industrial-militar, um catalisador da militarização interna num país que exporta guerras, no bojo do acú-mulo de medidas de exceção de-sencadeado no pós-11 de setembro. Somente no ano de 2013 a “monta-nha” de dólares destinada à compra das mercadorias bélicas para as forças policiais alcançou cerca de 450 mi-lhões de dólares. Eis um estratégico escoadouro para a superprodução de mercadorias bélicas (ainda que insuficiente frente ao produtivismo desvairado do capital). Linhas sub-sidiadas de crédito foram criadas e canalizadas especificamente para municípios comprarem o arsenal bé-lico superacumulado das Forças Ar-madas, independente dos índices de criminalidade registrados. O estado do Missouri, por exemplo, recebeu cerca de 69 milhões de dólares nos últimos cinco anos para efetuar a es-calada de compras.

A superacumulação de meios vi-gilantes/repressivos/punitivos (cor-relata à sobreacumulação monetária, de mercadorias e serviços, de força de trabalho e de maquinaria) expres-sa-se também no sombrio Rex 84, abreviatura de Readiness Exercise 1984, fabricado pelo governo nor-te-americano depois do susto com a sublevação dos negros das periferias capitaneada pelos Black Panthers, das mobilizações contra a guerra do Vietnã, de experiências político-culturais mais radicalizadas advindas da chamada “contracultura”, dentre outros temores conservadores. De-nunciado pelo jornal Miami Herald, em 5 de julho de 1987, foi revelado

pela primeira vez durante as inves-tigações e audiências acerca do es-cândalo do Irã-Contras, no mesmo ano. Resumidamente, o programa Rex 84 consiste na instalação e ma-nutenção preventivas de campos de concentração (em quantidade sigilo-sa) para confinamento em massa, vi-sando casos de conflagrações sociais. Originalmente, segundo consta, foi concebido para conter um projeta-do êxodo em massa de estrangei-ros que cruzassem ou forçassem o cruzamento das fronteiras norte-a-mericanas, no caso de uma invasão militar ostensiva dos EUA em países da América Central e América La-tina. Tais campos (ou, pelo menos, a maioria deles) estariam preparados

para abrigar 20 mil prisioneiros. A FEMA (Federal Emergency Ma-nagement Agency), supostamente voltada à “gestão de emergências” provocadas por eventos naturais ex-tremos, como furacões, tufões, ter-remotos, inundações etc., operaria tais campos, cujo funcionamento dependeria da decretação da Lei Marcial (e consequente suspensão da Constituição federal) por obra de uma mera assinatura presidencial, complementada por uma megalo-maníaca ordem de prisão (anexada de uma “lista de nomes”) do Procu-rador Geral. Aproveitando o ensejo, vale lembrar das prisões secretas vin-culadas a CIA, instaladas em, pelo menos 54 países, espalhados por to-dos os continentes do mundo. Parte dessas prisões secretas, inclusive, é instalada em navios.

Compondo a superprodução/superacumulação de dispositivos vigilantes-repressivos-punitivos, desponta não apenas a tendência marcante de militarização da lógica policial, mas, de modo correlato, um

crescente entrelaçamento envolven-do o exercício do poder de polícia e o fazer bélico das Forças Armadas. Pertence também aos solavancos da superprodução/superacumulação a proliferação das medidas de exceção como tecnologia de governo, na es-teira da também marcante tendência do regime democrático se reprodu-zir, pelo menos em alguma medida, como “Estado de Exceção”.

Chegamos a um momento opor-tuno para expormos e analisarmos brevemente características marcan-tes de um significativo laboratório de regulação social armada de terri-tórios em curso na cidade do Rio de Janeiro.

No final de novem-bro de 2010, todos os tipos de polícias existentes por aqui,

a Guarda Municipal da cidade do Rio de Janeiro e as três Forças Ar-madas planejaram e executaram, conjuntamente a maior megaope-ração policial/militar (ou militar/policial) em áreas urbanas faveli-zadas do país, mobilizando vin-

te e dois mil indivíduos, com uma grande variedade de armamentos e utensílios bélicos. Esse contingente representava quase o dobro do total de militares empregados, à época, na intervenção do Haiti – 11.449 mili-tares, de 31 países – e um quinto do contingente militar dos EUA mo-bilizado na invasão do Afeganistão. Além das sanguinárias tropas de elite das polícias militar e civil do estado do Rio de Janeiro, respectivamente BOPE (Batalhão de Operações Es-peciais da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro) e CORE (Coor-denadoria de Recursos Especiais da Polícia Civil do Estado do Rio de Ja-neiro), participaram tropas de elites das Forças Armadas, como o Corpo de Fuzileiros Navais da Marinha e a Brigada de Infantaria Paraque-dista do Exército. Acompanhando as informações oficiais e, sobretu-do, as frenéticas imagens televisivas transmitidas, muitas vezes ao vivo, foi possível constatar variados tipos de armamentos, carros de combate, helicópteros etc. No tocante aos car-

Pertence aos solavancos dasuperprodução e da superacumulação a

proliferação das medidas de exceção como tecnologia de

governo

Nos dias de hoje, a aparição contínua de militares das Forças Armadas numa

cidade como o Rio de Janeiro virou um (naturalizado) componente da paisagem

urbana cotidiana

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ros de combate, como exemplo elen-camos o M-113, de fabricação nor-te-americana, utilizado na guerra do Vietnã, e ainda muito requerido nas guerras em curso do Oriente Médio; o Mowag Piranha, de fabricação suí-ça, amplamente usado pela MINUS-TAH; o CFN Anfíbio 7A1, também conhecido como CLAnf (“Carro de Lagarta Anfíbio”), de fabricação norte-americana, incorporado nas diversas incursões ao redor do mun-do; o SK 105 adaptado, produzido na Áustria e modificado pela tecno-logia industrial-militar brasileira; o Urutu, blindado de origem nacional, também muito usado pela MINUS-TAH. Em relação aos helicópteros, sobressaíram-se, nas coberturas mi-diáticas, os da Aeronáutica, principal-mente o H-1H (já usado na Guerra do Vietnã) e o H-34 Super-Puma. Esse aparato bélico serviu para recru-descer o arsenal das polícias militar e civil do Rio de Janeiro, composto, por exemplo, por fuzis 7.62, 5.56 e M-16, pistolas .380 e 9 mm, o Cavei-rão, o Caveirão-aéreo – um helicóp-tero de 3,5 toneladas, com 240 quilos de blindagem capaz de suportar tiros de calibre “ponto 30”, e capacidade para 15 tripulantes. E por aí vai. Do lado do comércio varejista de drogas ilícitas, foram encontrados fuzis AR-15 e 7.62, uma bazuca AT-4, utiliza-da pelo Exército ianque na guerra do Iraque, uma submetralhadora 9 mm de origem italiana, granadas, bombas caseiras, pistolas 9 mm, revólveres ca-libre 38, etc.

A área atingida é composta por uma espécie de conurbação de fa-velas incrustadas em morros e es-praiadas também por terrenos planos – o Complexo do Alemão e a Vila Cruzeiro. Essa megaoperação, é in-dispensável frisar, inaugurou uma governança territorial armada do Exército por mais de 2 anos, sem a decretação de Estado de Defesa, Es-tado de Sítio ou intervenção federal (conforme prescrição constitucional), que foi substituída por uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), em 30 de maio de 2012, quando começaram a se manifestar indícios do envolvi-mento da tropa com o chamado “ar-rego” e sucessivas contestações dos moradores.

E por falar em governança terri-torial armada do Exército (também sem a decretação de Estado de Defe-sa, Estado de Sítio ou intervenção fe-deral), está em curso no complexo de favelas da Maré algo do tipo,sem data precisa para terminar, tratado como um preâmbulo à instauração de uma prometida UPP. A implementação de tal governança contou com a atu-ação do Poder Judiciário: um juiz do Rio de Janeiro expediu mandado de busca e apreensão coletivo para todas

as casas. Vulneráveis a tal generalis-mo judicial, encontra-se uma popu-lação numericamente superior à de 5530 municípios brasileiros, de um total de 5570. Apontamos aqui para um modelar exemplo de uma medi-da de exceção: instaurando-se uma espécie de “legalização da inconsti-tucionalidade”, viola-se/suspende-se a ordem normativa em nome da de-fesa da ordem normativa, num qua-dro de intervenção que abdica de um decreto de intervenção. Conforme já mencionado, podemos identificar a vigência de uma tecnologia de go-vernança assentada na proliferação de medidas de exceção. Sem a pretensão ingênua e equivocada de identificar uma regra geral, é possível lembrar que, há um tempo atrás (e nem tanto tempo assim), a exibição frequente do arsenal militar no espaço urbano era sinal de que a ordem normativa estava, no mínimo, ameaçada. Nos dias de hoje, a aparição contínua de militares das Forças Armadas numa cidade como o Rio de Janeiro virou um (naturalizado) componente da paisagem urbana cotidiana, tornan-do-se um veículo de manutenção da ordem normativa enquanto tal, sobre a qual se ergue o regime democrático de mercado.

Com efeito, vale destacar que o atual comandante das tropas do Exército responsáveis pela governan-ça territorial armada na Maré, Gene-ral Roberto Escoto, comandou tanto a Brigada de Infantaria Paraquedista do Exército quanto a MINUSTAH. No mesmo compasso, é importante salientar que, não por um acaso, o comandante da megaoperação de no-vembro de 2010 e da posterior gestão territorial militarizada no Complexo do Alemão e Vila Cruzeiro, General Fernando Sardemberg foi também comandante da MINUSTAH. Com isso, identificamos vasos comunican-tes entre as mencionadas megaopera-ção e governanças territoriais arma-das com a incursão militar no Haiti, que apresentou uma ímpar oportu-nidade para a refuncionalização das Forças Armadas, no sentido de ades-tramento da tropa para as crescentes intervenções em “conflitos urbanos internos”, em nome da tal “garantia

de lei e ordem”. A propósito, no fi-nal de 2008 o Ministério da Defesa anunciou a Nova Estratégia de Defesa Nacional, composta por uma regula-mentação da Garantia de Lei e Or-dem que confere mais espaço para as Forças Armadas “combaterem a cri-minalidade”, exercendo o “papel de polícia” nas ruas das cidades brasilei-ras. Nesse registro, por exemplo, a já citada Brigada de Infantaria Paraque-dista do Exército direciona seu ades-tramento de elite para “atuar com ra-pidez nas ações de defesa externa e na garantia de lei e da ordem em qual-quer parte do território nacional”.

Junto à violência e criminali-zação dos setores pauperiza-dos, agrega-se a violência e criminalização das mobiliza-

ções e lutas populares. O Centro de Informações do Exército (CIE) está sendo profundamente reestrutura-do e reativado, segundo informações divulgadas na mídia, com foco nas áreas de inteligência e contra-inteli-gência voltadas ao monitoramento de movimentos sociais. Para isso, mili-tares que atuaram nas áreas de inteli-gência e de operações especiais, hoje na reserva, estão sendo convocados para treinar novos quadros do CIE. Como reação aos atos de rua de ju-nho de 2013, despontou uma atuação intersetorial, que pode ser identifica-da em alguns episódios ilustrativos, dentre vários. Em São Paulo, polícia e Ministério Público evocaram a Lei de Segurança Nacional para enqua-drar manifestantes. Nesse mesmo estado, palco recente de ostentação (reeditada) de uma cultura de elite autoritária e antipopular (que cos-tumeiramente clama, inclusive, por uma ditadura militar), um juiz de di-reito classificou ativistas presos com

a expressão pejorativa “esquerda ca-viar”. Tal classificação não aconteceu em um momento informal, mas sim num ato judicial. No Rio de Janeiro, a bizarra prisão em massa por supos-tos flagrantes de 84 manifestantes no dia 15 de outubro de 2013 foi enqua-drada na Lei das Organizações Cri-minosas (Lei 12.085/2013), além da deliberação explícita de estabelecer fianças estratosféricas para dificultar tanto quanto possível a soltura de ati-vistas. Não poderia deixar de figurar nessa seleção de exemplos a proposta de uma tipificação criminal genérica de “terrorismo”, contida na proposta legislativa de “lei anti-terrorismo”, que pode resvalar nas lutas popula-res. Vale elencar, ainda, a detenção de advogados, ou melhor, a triviali-zação da detenção de advogados no cumprimento de suas atribuições profissionais, constitucionalmente contempladas. Na ondulação puni-tiva, advogados também passaram a ser capturados nas detenções em massa.

Voltando o foco, mais diretamen-te ao laboratório carioca de regulação social armada de territórios, pode-mos captar não somente o aprofun-damento da militarização da polícia, mas também um entrelaçamento en-tre o exercício do poder de polícia e o fazer bélico das Forças Armadas, num contexto de aplicação de medi-das de exceção como tecnologia de governança. Com isso, resguardan-do as singularidades, consideramos plausível inserir tal laboratório num contexto mais amplo, com resso-nâncias em várias partes do mundo, de normalização e normatização de operações de polícia como incur-sões bélicas, e vice-versa. Seja lá o que for: “guerra assimétrica”, “guer-ra irregular”, “novíssima guerra”, “guerra molecular”, “pós-guerra” ou “estados de violência” distintos da “guerra”, o fato é que commodities e armas (superacumuladas) perfazem o modo capitalista de produção ma-terial e simbólica da vida social alie-nada, num contexto global de crise econômica. E quem comprar a mer-cadoria securitária nova da Hitachi poderá registrar 36 milhões de rostos em menos de 1 segundo. •

As commodities e armas (superacumuladas)

perfazem o modo capitalista de produção material e simbólica da vida social

alienada, num contexto global de crise econômica.

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Territórios Transversais - resistência urbana em movimento • 31

reforma urbana: uma ilusão socialmente construída

Reforma urbana, já! Esta é uma reivindicação ainda comum em manifestações organiza-das por movimentos sociais

de luta por terra e moradia nas cidades bra-sileiras. Mas o que está pressuposto neste direito reclamado? Que expectativas e que compreensão das formas simbólicas da re-forma urbana têm as massas que sofrem o processo de espoliação urbana e acreditam que este pode ser o caminho? Propomos neste artigo trazer questões que contribuam para pensar a historicidade da bandeira da reforma urbana e sua influência sobre mo-vimentos sociais urbanos.

O projeto de reforma urbana no Brasil fundamenta-se num ideário que parte da possibilidade de um Estado forte e da exis-tência de um espaço de lutas por ampliação de direitos sociais referentes ao direito à ci-dade justa e igualitária, que pressupõe uma gestão democrática da cidade. Entretanto, estes pressupostos não se realizaram na so-ciedade brasileira e, diante das transfor-mações decorrentes da reestruturação do capitalismo mundializado, essa arena de disputa da cidade democrática versus os interesses da produção capitalista da cidade mostrou-se inviabilizada. A re-forma urbana não se constituiu como uma forma de enfrentamento contra o capital e a especulação imobiliária, nem como instrumento de organização de modos de sociabilidade para a luta libertária e por emancipação humana.

Por sua atuação no processo Consti-tuinte, nos anos 1987 e 1988, o Movimento Nacional por Reforma Urbana (MNRU) teve importante papel histórico. Nas últi-mas décadas, o Fórum Nacional da Refor-ma Urbana (FNRU) se colocou no papel de interlocutor para o debate crítico relacio-nado à questão urbana no Brasil, e condu-ziu a sua relação com os movimentos sociais que o compõem, a partir do enquadramen-to destes a ações limitadas a lutas por avan-ços institucionais e regulatórios. Na medida que tais movimentos sociais enquadraram suas potencialidades ao positivismo jurídi-co, houve o distanciamento do ideário da reforma urbana construído pelas lutas da década de 1980. Diante das transformações ocorridas na sociedade no curso da déca-da de 1990 (crise estrutural do capitalismo mundial, as políticas neoliberais de privati-zação, desregulamentação e desconstrução de direitos sociais, constitutivas do processo de globalização), o esgarçamento do tecido social e os limites históricos de bandeiras de luta dos anos 80 foram revelados. Hoje, nos limites de sua existência como projeto de mudanças jurídico-institucionais, não há lugar para os elementos democráticos de modernização que estavam na origem do projeto da reforma urbana. O seu ideário, como as propostas programáticas e as for-mas de ação dele decorrentes, não dão con-ta de permitir vislumbrar a superação do

que Ermínia Maricato chama de “Impasse da política urbana no Brasil”.

Na lógica da produção capitalista da ci-dade, no atual estágio de desenvolvimento do capitalismo, em sua fase de amadureci-mento e esgotamento, predominam a es-peculação e a fusão do cultural com o eco-nômico nos moldes da cidade-mercadoria, movida a boas oportunidades e grandes eventos, considerados atrativos de vanta-gens econômicas e geopolíticas. Nesse pe-ríodo do fetiche total, da perda da materia-lidade da reprodução do capital, o dinheiro se transforma em mais dinheiro, sem a me-diação do trabalho e sem acréscimo real de valor. Um exemplo bem visível nas gran-des cidades dessa realidade especulativa é a especulação imobiliária, que permite que um imóvel sofra uma variação de seu valor de compra e venda de mais de 100%, sem qualquer investimento material, no período de um ano ou, até, em poucos meses. O ca-pital especulativo atinge de forma perversa a

vida nas cidades. O preço dessa ordem ur-bana é a desigualdade cada vez maior. Num movimento de destruir para construir e destruir novamente, o processo de transfor-mação do espaço urbano vem sendo feito a uma velocidade sem precedentes.

O colapso urbano da sociedade capi-talista em sua face mais evidente, que é a exponencial favelização do planeta, como descreve Botelho , é resultado de uma história relativamente recente. Embora a primeira favela no Rio de Janeiro (Morro da Providência) tenha surgido no final do século XIX, a grande maioria das favelas do mundo cresceu a partir da década de 1960. No Brasil, no século XX, as popu-lações expulsas do campo e atraídas pela crescente industrialização dos centros urba-nos, no papel de exército de reserva de mão de obra, exerceram a prática de ocupações de terras em áreas que ainda não interessa-vam ao capital, formando cortiços, favelas e loteamentos irregulares. Movidas pela ne-cessidade, essas massas de espoliados pelo capital, em fins da década de 70 e início dos anos 80, se organizaram em diversas cidades enquanto movimentos populares contra a carência de condições de habitabi-lidade e de urbanização dessas áreas. Foram lutas sociais contra o Estado, por água, luz, transportes, creches, etc., que contavam com o apoio de amplos setores da esquerda e de setores liberais que pediam o fim do regime militar.

A luta por reformaurbana no Brasil

A lenta e gradual transição de-mocrática brasileira dos anos 1980 garantiu a continuidade da ordem existente, e muitas

expectativas foram frustradas nesse percur-so, como é o caso do fracasso da campa-nha das “Diretas Já” seguido da eleição de Tancredo Neves. Mas havia a ilusão de que os problemas urbanos eram decorrentes, especialmente, da falta de um regime de-mocrático. Na segunda metade da década de 1980, mais especificamente em 1987, parte das massas urbanas de espoliados pelo capital organizaram-se e articularam-se no processo constituinte, mobilizados em torno da discussão e da coleta de assinatu-ras da emenda popular da reforma urbana. Esse enquadramento das lutas populares no contrato social, ou seja, a juridicização das lutas pela constituinte, já era uma ma-nifestação de um processo funcional para

o desenvolvimento capitalista periféri-co, na redemocratização conservadora. Segundo Baldez, havia um momento rico de politização da discussão urbana, e a possibilidade de elaboração de emen-das populares desviou o debate político para a abstração da lei. Passado o processo constituinte e, sendo o Estado o eixo das ações do projeto da reforma urbana, fica evidente que o projeto não incluía uma

ação política estratégica de mobilização po-pular que desse sentido à continuidade da luta, para além de esperar que a lei se cum-prisse.

A reforma urbana no Brasil, portanto, se insere no campo abstrato do direito e do poder estatal, um conceito que não “reflete apenas uma ideologia, mas, também a rea-lidade objetiva da formação de uma esfera concentrada de dominação.” Some-se a isso, a herança patrimonialista do Estado brasileiro. Historicamente, nos dois mo-mentos em que surgiu uma articulação por reforma urbana no Brasil – em 1963 (refor-mas de base) e em 1987 (processo consti-tuinte) – buscava-se estabelecer uma forma jurídica excepcional para as relações sociais da realidade objetiva das massas excluídas do direito à cidade, num momento em que a luta política fazia crer que seria viável a dis-puta pelo “caráter insurgente do direito”, ou seja, como toda ideia reguladora, estava relacionada aos processos em desenvolvi-mento.

Em uma transmutação das condições sociopolíticas da sociedade brasileira, prin-cipalmente a partir da terceira revolução tecnocientífica, com o predomínio da acu-mulação por espoliação, as bandeiras da reforma social vão se transformando em técnicas de gestão de uma situação social em estado de calamidade. Os processos que se desenvolveram a partir daí nos colocam diante da gravidade do quadro de estado de exceção – numa forma em que não preci-

sa ser suprimido o direito democrático do voto. A reforma urbana que, no momen-to do Congresso Constituinte, é resultado do movimento social, representa, hoje, um impedimento à luta emancipatória e é um projeto factível para o gerenciamento da crise.

Perante a realidade da regressão social que se efetiva no conjunto de processos de gentrificação, em que a cidade-mercado-ria é meio fundamental de acumulação de capital e o espaço urbano se torna o esteio desta acumulação por espoliação, a reforma urbana tem como premissa um rebaixa-mento de expectativas, e faz parte daquilo que Leonardo Boff define como “utopia mínima”, a política de inserção de mi-lhões de brasileiros no mercado de consu-mo. Destaca-se, nesse contexto, o Minha Casa Minha Vida, um dos principais pro-gramas do atual governo, e que promove a produção habitacional nos moldes mais tradicionais e conservadores, reproduzindo e aprofundando as desigualdades e injusti-ças socioterritoriais históricas do Brasil. Ele tem reduzido a discussão sobre conflitos de terra urbana à positivação da moradia como mercadoria. Não obstante, o FNRU se po-sicionou favoravelmente a esse programa, afirmando que representa um “avanço” na agenda econômica do país por incluir a ha-bitação na estratégia de investimento para o desenvolvimento do país.

Inserida nesse contexto, a bandeira da reforma urbana foi se tornando um fetiche para a luta por terra e moradia na cidade. Para ter direito a acessar diretamente os re-cursos do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, movimentos populares criaram seus CNPJs e tornaram-se ONGs. Teóricos, por sua vez, renderam-se ao po-sitivismo jurídico, prestando-se ao papel de mediadores de conflitos sociais que cum-prem a função de formatar a participação social aceita pelo Estado. Tal despolitização da reforma urbana insere-se na crise da so-ciedade capitalista e de uma determinada forma de luta política e social que naturaliza fatos como manifestações de apoio ao “fim dos despejos forçados” feitas pelo FNRU, não obstante este se apresente com um discurso apologético em favor do governo, que financia, em grande parte, esses despe-jos. E esta não é uma questão apenas moral ou que se resolva com reforma política.

Como afirma Burnett, na construção das relações sociais no âmbito da luta por uma cidade justa e igualitária, o “Movi-mento da Reforma Urbana” assume “valo-res da democracia burguesa” e submete “a luta urbana aos procedimentos institucio-nais do planejamento”, comprometendo a autonomia das organizações populares e contribuindo para acumulação e reprodu-ção capitalista no espaço urbano, “agravan-te da tragédia das cidades”. Os movimen-tos que compõem o FNRU criaram um círculo vicioso de dependência dos espaços

Maria de Fátima Tardin Costa

A especulação imobiliária permite que um imóvel sofra

variação de seu valor em mais de 100% sem qualquer

investimento material

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institucionais, e alimentam a ilusão de que é possível fazer a luta por direitos na barbá-rie civilizada que é o Estado de Bem-Estar Social. Entretanto, o processo histórico de desenvolvimento do capitalismo no Brasil conduziu a sociedade brasileira à impossi-bilidade de produção desse tipo de Estado.

A natureza ideológica doEstado e a fetichização da norma

A constatação da natureza ideoló-gica do Estado não nos autori-za a abrir mão da obrigação de estudar a realidade objetiva no

mundo exterior e não apenas nas ideias. Da mesma forma, não nos autoriza a espe-rar a negação de sua condição original coerciva de classe, e nem a acreditar que exista alguma contradição entre o Estado e o mercado. Ao estabelecer os limites da legalidade e possuir o monopólio da vio-lência, o Estado cumpre função decisiva no apoio e na promoção dos processos de acumulação capitalista.

No caso do Brasil, todo o desenvolvi-mento da economia é compatível, hoje, com uma forma de administração da socie-dade em dissolução. Como afirma Harvey, a condição ideal para a reprodução do capital “é um Estado burguês em que instituições de mercado e regras contratuais (...) sejam legalmente garantidas e em que se criem es-truturas de regulação para conter conflitos de classes e arbitrar entre as reivindicações de diferentes facções do capital.” Na reali-dade brasileira, desde uma perspectiva his-tórica, mercado e Estado não constituem realidades conflitantes, pois atuam e impul-sionam de forma complementar o mesmo processo de exploração e destruição.

No campo político-intelectual do de-bate sobre política urbana, o Estatuto da Cidade é um parâmetro e um referencial enquanto marco regulatório da Reforma Urbana. Entretanto, também é o teto. Os instrumentos jurídico-urbanísticos da re-forma urbana, mais amigáveis ao capital, foram implementados como indutores do desenvolvimento urbano e garantia da es-tabilidade das relações de dominação sob o comando liberal do Estado Democráti-co de Direito. Este, por meio do contrato social, das leis ordinárias, e do uso legal da força, tem a função de defender o direito “natural” de propriedade, sem interferir na vida econômica dos proprietários, que de-vem ter a liberdade de estabelecer as regras das atividades econômicas, e de garantir a ordem pública, julgando e decidindo sobre os conflitos existentes na sociedade civil. Como suporte desse contexto, há a “tradi-ção positivista” da tecnocracia, que atua sob a proteção da racionalidade do Estado. Essa condição também inclui aqueles gestores públicos, agentes do direito e urbanistas, que creem nos “procedimentos institucio-nais” e “nos processos educativos, capazes de instrumentalizar a todos para uma atua-ção cientifica” rumo à “solução para a con-tradição urbana capitalista, isto é, o atendi-mento dos interesses dos explorados.”

Pela natureza ideológica do Estado, portanto, a realidade objetiva das forças atu-

antes na sociedade não prevalecem, apenas a realidade na consciência que é a norma como ordem jurídica objetiva. Esta assimi-lação ilusória do Estado Democrático tem gerado consequências devastadoras no que diz respeito às massas urbanas espoliadas: enquanto buscam e aguardam decisões da Justiça, muitas vezes caminham enfeitiça-das pela lógica da participação social aceita, disputando espaço político em conferências e conselhos de mediação, e transformando suas bandeiras de luta em agenda governa-mental.

Nas experiências das prefeituras petis-tas, no final dos anos 1980, no que concer-

ne às políticas urbanas, o Projeto da Re-forma Urbana viveu seu ápice e pode “se efetivar” apenas como “avanços” no campo da institucionalidade e no campo profissio-nal, ocupando o vazio da política, através do FNRU. Neste início do que chamamos de profissionalização da reforma urbana, ocorre, fundamentalmente, um processo de inserção das perspectivas e ideias desse campo profissional à lógica do sistema. À medida que isso acontece, ocorre também a conversão do ideário da reforma urbana às possibilidades do desenvolvimento das forças produtivas do mercado capitalista periférico, ou seja, à economia de mercado.

A partir de 2003, com Lula presidente, e com a criação do Ministério das Cidades, o programa da reforma urbana, concebido pelo FNRU, passa a ser o discurso de refe-rência na condução das políticas desenvol-vidas pelo novo ministério. Desde então, respaldado no capital simbólico que o cons-tituiu como autoridade política-intelectual nesse campo, o FNRU se mantém como força hegemônica na gestão social da crise nos governos do PT e nos Conselhos das Cidades.

Potencialidades utópicasda luta urbana

Se faz sentido o que expomos, por certo a reforma urbana não se cons-tituiu como práxis anticapitalista. O que justifica, então, que persona-

gens desse campo, desde sua origem, ve-nham repetindo os mesmos argumentos e a mesma ladainha sobre os benefícios que as cidades teriam “se” fossem aplicados os instrumentos jurídico- urbanísticos previs-tos na Constituição em 1988 e regulamen-tados pelo Estatuto da Cidade há mais de treze anos?

Para além da justificativa de que a ques-tão da reforma urbana se transformou em uma profissão e que há muitas empresas nessa atividade humana produtiva , para uma compreensão do sentido da reforma urbana no Brasil hoje, cabe retomar Pa-sukanis quando diz que, na realidade ma-terial, a relação social deve prevalecer sobre

a norma. Portanto, se os instrumentos da reforma urbana, que garantiriam o direito do morador que ocupa as favelas, cortiços e prédios vazios nas cidades, não se efe-tivam, ou pior, produzem efeito inverso quando utilizados, a conclusão deveria ser tratar aqueles instrumentos como se fossem inexistentes. Como, apesar disso, se insiste em afirmar sua existência, foi fundamental fetichizar a norma e, neste caso, seu ins-trumento principal, o Estatuto da Cidade. Nesta tarefa, empenham-se muitas teorias do direito, que a fundamentam com “con-siderações metodológicas muito sutis”.

Dada a sua não efetividade, a ideia da reforma urbana, hoje, só é possível na imaginação de uma “realidade” que poderia existir: “se” houvesse gestão de-mocrática, “se” o Estado do Bem-estar se efetivasse, “se” os instrumentos de recuperação de mais-valias fundiárias não estivessem sendo apropriados como facilitadores do livre funcionamento do

mercado de terras urbanas, etc. Portanto, se as condições de produção e reprodução do espaço urbano não se alteram, e só fizeram piorar nesses vinte e seis anos de Constitui-ção, não cabe mais que militantes organiza-dos em movimentos sociais em luta contra as desigualdades socioterritoriais inerentes à cidade capitalista adotem como horizonte reformar a cidade capitalista, porque isso implica no círculo vicioso do enquadra-mento de sua luta na lógica da reprodução desta sociedade produtora de mercadorias que os exclui.

No contexto da crise urbana global, é de fundamental importância a formação de movimentos sociais anticapitalistas de re-sistência à barbárie. Entretanto, o domínio completo da mercadoria anula a política e a autonomia da cultura. Para a práxis eman-cipatória, essa falta de horizontes é fatal. Portanto, para imaginar potencialidades utópicas para além dos limites desta forma social produtora de mercadorias, cabe per-guntar: que práxis social pode ser concebida na situação de condicionamento da subje-tividade fetichizada dos agentes sociais na barbárie contemporânea, se a eliminação de todas as possibilidades de transformação é o horizonte histórico para nós?

Os movimentos sociais não elaboram suas lutas de forma autônoma. Diante da demanda produzida pela necessidade de-corrente do processo de espoliação, eles his-toricamente se apropriam do que é armaze-nado socialmente. Com o tecido social cada vez mais fragmentado e fundamentado em valores do indivíduo, a sociedade burguesa contemporânea, permeada por práticas de uma subjetividade sem historicidade, reme-te os movimentos a mobilizarem, na grande maioria das vezes, formas “convencionais” e conservadoras de se fazer política – através da busca de apoio a parlamentares, partidos políticos, sindicatos e através das eleições –, formas que hoje evidenciam seus limites lógicos. Além disso, pouco conhecimento retiram de suas ações coletivas para que pos-sam ser transformadas em práxis inovadoras e emancipatórias. Nessa lógica, as diferen-ças entre esquerda e direita desaparecem e a

despolitização da economia é regra.Nesse tempo despolitizado, é a uto-

pia que pode ocupar o espaço do vazio da política, no sentido de que a construção de diagnósticos, trajetórias e críticas à condição de alienação da sociedade, em relação à sua existência, seja um movimento utópico de desalienação e de reconstrução de uma his-toricidade que não invisibilize as massas de subalternizados. Na vida cotidiana, utopia é pensar este mundo sem horizonte; esta-belecer o nexo entre a impossibilidade da política e a necessidade da utopia; entre o fracasso da política e a presença da utopia. Agora é o momento exato dela. O pensa-mento utópico é o que nos leva ao diagnós-tico do fracasso desta sociedade, ao diag-nóstico de que o capitalismo não promove o que promete: a emancipação humana, a liberdade, a justiça, e o bem-estar.

Aberturas no horizonte surgem quan-do há perspectiva de se imaginar um futuro que não seja repetir o passado. A mediação crítica é uma condição para o irrompimen-to de impulsos utópicos ou, ao menos, para o surgimento de projetos coletivos que con-siderem o presente como parte da história, e um futuro que não seja a reprodução ou o aperfeiçoamento do que já existe. De-senvolver formas cognitivas desta realidade e novos modos de organização de sociabi-lidade já é um começo importante. Neste sentido, os espaços de resistência da luta urbana são fissuras dessa lógica sistêmica, e potencialidades para o surgimento de mo-vimentos contra o capitalismo que, tendo atingido seus limites lógicos, atingiu sua fase de acumulação por espoliação de re-cursos naturais e de direitos sociais.•Este artigo traz reflexões desenvolvidas na tese de douto-rado “Ideologia e utopia no ocaso da Reforma Urbana no Brasil” e na pesquisa História Oral da Reforma Urbana no PPGPS/UERJ entre 2008 e 2012. O Forum Nacional da Reforma Urbana (FNRU), em sua trajetória, articula a passagem de uma situação em que o projeto de Reforma Urbana , em 1988, era tema ignorado pelo PT, passa, nos anos 90, a fazer parte da coordenação das Campanhas presidenciais; e, a partir do Governo Lula, assume a institucionalidadeBALDEZ, Miguel Lanzellotti. Desapropriação (verbete). In Dicionário da Educação do Campo. BOTELHO, Maurílio. Favelização Mundial. O colapso urbano da sociedade capitalista. Revista Territórios Trans-versais. Ano1. N. 1. Jun. 2014.BURNETT, Carlos Frederico Lago. Da Tragédia Urbana à Farsa do Urbanismo Reformista: a fetichização dos planos diretores participativos.HARVEY, David. O Novo Imperialismo. Loyola. São Paulo, 2004.p.80KURZ, Robert. Razão Sangrenta: Ensaios sobre a crítica emancipatória da modernidade capitalista e de seus valores ocidentais. São Paulo: Hedra, 2010. p. 296.PASUKANIS, Eugeny Bronislanovich. A teoria geral do direito e o marxismo. Rio de Janeiro. Renovar, 1989.

Nesse tempo despolitizado, é a utopia que pode ocupar o espaço do vazio da política

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Territórios Transversais - resistência urbana em movimento • 33

Eles são muitos, e estão desabrigados, expulsos de seu lugar, va-gando à procura de sua terra, sobrevivendo em barracos, estran-geiros em sua própria pátria, humilhados, massacrados... Essas palavras bem poderiam representar os sem-teto do Brasil em sua

luta diária, mas refletem a agonia de um povo distante, o povo palestino. Essa semelhança não é coincidência, a luta dos trabalhadores é uma só em todo o mundo. Sofremos os mesmos despejos, fervemos na mesma revol-ta e sonhamos as mesmas transformações. Reconhecendo isso, o MTST, num gesto de solidariedade ao povo palestino, batizou duas de suas ocupa-ções com os nomes de “Nova Palestina” e “Faixa de Gaza”.

Você pode pensar que isso pouco significa, que são apenas palavras, nomes numa tabuleta. Mas palavras não são só palavras, companheiros. Quem nunca as sentiu, como facas, vindo da boca de um inimigo? Quem nunca se arrepiou com a força-fera de uma palavra-de-ordem gritada em uma só voz? Palavras podem agir, estremecer o peito, brilhar os olhos, podem estender a mão, abraçar e acolher, unir os distantes, preparar para a luta, podem denunciar, conspirar, dar corpo à memória... podem, enfim, se fazer poesia revolucionária na boca coletiva do povo. É preciso, por-tanto, ocupar as terras, os tetos, mas também as palavras, torná-las nosso instrumento de resistência e combate.

Na Palestina, a poesia popular, de luta, cumpre um papel fundamental e permanente no fortalecimento da combatividade de seu povo. Escritas por poetas, muitas vezes anônimos, essa poesia corre de mão em mão, de boca em boca, numa corrente vulcânica subterrânea, mantendo a memória do povo palestino viva, compartilhando dores e sonhos, homenageando seus mortos, e permitindo que refugiados dispersos se reencontrem nessa pátria clandestina da palavra que os chama a resistir e lutar.

O governo israelense sabe do poder de fogo das palavras, por isso mes-mo muito dos poetas palestinos foram assassinados, exilados, presos e si-lenciados. Uma das vozes poéticas que rompeu essas barreiras e se fez co-nhecido em todo o mundo é a de Mahmoud Darwish, o mais importante poeta da causa palestina.

Mahmoud Darwish (Palestina, 1941-2008)Em 1948, quando mais de 700 mil palestinos foram expulsos de seus

lares, Darwish tinha apenas sete anos. Sua família, da Galileia, viu-se obri-gada a fugir, mas retornou, em 1949, apesar do risco de serem assassinados pelas milícias israelenses. Foram viver numa colina de onde observavam aqueles que invadiram suas terras. Mais tarde, aos 12 anos, Darwish, já re-conhecido como poeta, foi cobrado a escrever um poema sobre o “Dia da Independência” de Israel. Mas o poema que fez descrevia os sentimentos de uma criança que volta à sua cidade e descobre outras pessoas dormindo em sua cama e cultivando as terras de seu pai. Em resposta, o governo mi-litar ameaçou proibir seu pai de trabalhar caso continuasse escrevendo ma-terial subversivo. Assim, desde cedo, Darwish conhece o poder da palavra.

Entre 1961 e 1976, foi preso cinco vezes, e Israel acabaria por tirar de Darwish sua “cidadania”, o que o obrigou a vagar como muitos outros palestinos pelo Egito, Jordânia, Líbano. Em 2002, o ministro da Educação de Israel tentou incluir cinco poemas de Darwish num currículo escolar “multicultural”. O parlamento israelita recusou totalmente a proposta. Darwish comentou: “Eles ensinam aos estudantes que o país estava va-zio. Se ensinassem os poetas palestinos, romperiam esse conhecimento. A maior parte da minha poesia fala do amor pelo meu país.” E acrescen-tou: “É difícil acreditar que o país militarmente mais poderoso do Médio Oriente seja ameaçado por um poema”. Até o fim, o governo de Israel considerou Mahmoud Darwish um perigoso inimigo.

Darwish, dentre muitos feitos, foi o autor da Declaração de Indepen-dência Palestina, escrita em 1988 e lida pelo líder palestino Iasser Arafat quando declarou a criação do Estado Palestino. Darwich foi membro do Partido Comunista de Israel e da OLP (Organização para Libertação da Palestina), da qual se afastou, em 1993, por discordâncias referentes aos Acordos de Oslo. Seu funeral contou com a presença de milhares de pes-soas, tornando-se o maior acontecimento político de massas na Cisjordâ-nia desde o funeral de Arafat.•

(fonte: http://aworldtowinns.co.uk/ e “Poesia Palestina de Combate”, editora Achiamé;

traduções de Jaime W. Cardoso e José Carlos Godim)

sem-tetos, sem-pátrias, sem-palavrasJeff Vasques

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“A poesia de resistência, tal como a concebo, é a expressão da recusa ao fato consumado, um instrumento total de mobilização que deve levar à tomada de consciência do absurdo desta ordem, da necessidade de mudá-la e da possibilidade dessa mudança. (...) O grito do homem oprimido, não importa em que país, é, antes de tudo, um grito que interessa a todos os homens.” Mahmoud Darwish

Registra-mesou árabeo número de minha identidade é cinquenta miltenho oito filhose o nono… virá logo depois do verãovais te irritar por acaso?

registra-mesou árabetrabalho com meus companheiros de lutaem uma pedreiratenho oito filhosarranco pedraso pão, as roupas, os cadernose não venho mendigar em tua portae não me dobrodiante das lajes de teu umbralvais te irritar por acaso?

registra-mesou árabemeu nome é muito comume sou pacienteem um país que ferve de cóleraminhas raízes…fixadas antes do nascimento dos temposantes da eclosão dos séculosantes dos ciprestes e oliveirasantes do crescimento vegetalmeu pai… da família do aradoe não dos senhores do Nujub*e meu avô era camponêssem árvore genealógicaminha casauma cabana de guardade canas e ramagenssatisfeito com minha condiçãomeu nome é muito comum

registra-mesou árabesou árabecabelos… negrosolhos… castanhossinais particularesum kuffiah e uma faixa na cabeça**as palmas ásperas como rochasarranharam as mãos que estreitame amo acima de tudoo azeite de oliva e o tomilhomeu endereçosou de um povoado perdido… esquecidode ruas sem nomee todos os seus homens… no campo e na pedreiraamam o comunismo***vais te irritar por acaso?

registra-mesou árabetu me despojaste dos vinhedos de meus antepassadose da terra que cultivavacom meus filhose não os deixastenem a nossos descendentesmais que estes seixosque nosso governo tomará tambémcomo se diz

Vamos!escrevebem no alto da primeira páginaque não odeio os homensque eu não agrido ninguémmas… se me esfomeiamcomo a carne de quem me despojae cuidado… cuida-tede minha fomee minha cólera.

* Célebre tribo da Arábia** Elementos de adorno dos palestinos

*** Este verso foi suprimido nas edições árabes do poema, salvo na revista At-Tarig “Carteira de Identidade” é um dos poemas mais famosos de Darwish.

Narra o momento em que um árabe fornece os números de seu documentoem uma barreira israelense, na tentativa de retornar à sua terra.

Confissão de um terrorista(Mahmoud Darwish, tradução de Jeff Vasques)

Ocuparam minha pátria,expulsaram meu povo,

anularam minha identidadee me chamaram de terrorista.

Confiscaram minha propriedade,arrancaram meu pomar,

demoliram minha casae me chamaram de terrorista.

Legislaram leis fascistaspraticaram odiado apartheid,

destruíram, dividiram, humilharame me chamaram de terrorista.

Assassinaram minhas alegrias,sequestraram minhas esperanças,

algemaram meus sonhos,quando recusei todas as barbáries

eles… mataram um terrorista!

Carteira de Identidade(Mahmoud Darwish, tradução de Jeff Vasques)

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Tia Deda, presente!Agora e sempre!

Lampião, presente!Agora e sempre!

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