issn 2238-4219 boletim - dpu.def.br · módus operandi do ipaj na prestaçÃo efectiva da ......

71
Número 1 Abril/2012 ISSN 2238-4219 REUNIÃO DAS INSTITUIÇÕES PÚBLICAS DE ASSISTÊNCIA JURÍDICA DOS PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA Boletim

Upload: lynhi

Post on 21-Sep-2018

217 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

Número 1Abril/2012

ISSN 2238-4219

Reunião das instituições Públicas

de assistência JuRídica dos Países de língua PoRtuguesa

Boletim

Page 2: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port. Brasília DF n. 1 p. 1-136 abr. 2012

n. 1Abril/2012Brasília, DF

ISSN 2238-4219

Boletim

Reunião das instituições Públicas

de assistência JuRídica dos Países de língua PoRtuguesa

DEFENSOR PÚBLICO-GERAL FEDERAL Haman Tabosa de Moraes e Córdova

SUBDEFENSOR PÚBLICO-GERAL FEDERALAfonso Carlos Roberto do Prado

CONSELHO EDITORIAL

Ministra da Justiça de AngolaGuilhermina Conteiras da Costa Prata

Diretor-Geral da Escola Superior da Defensoria Pública da União - BrasilJoão Paulo Gondim Picanço

Ministro da Justiça de Guiné-BissauAdelino Mano Queta

Diretor do Instituto de Patrocínio e Assistência Jurídica de Moçambique – IPAJPedro Sinai Nhatitima

Ministra da Justiça de PortugalPaula Teixeira da Cruz

Ministro da Justiça e Reforma do Estado de São Tomé e PríncipeElísio Osvaldo do Espírito Santo de Alva Teixeira

Defensor Público Geral Timor-Leste Sérgio de Jesus F. da Costa Hornai

2012, 1ª edição

Publicação Bianual

Distribuição gratuita

DEFENSORIA PÚBLICA-GERAL DA UNIÃOSetor Bancário Sul, Quadra 01, Lotes 26 e 27Edifícios Luiza e Luiz EduardoCEP 70070-110 – Brasília – DF

Page 3: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

© 2012 Defensoria Pública da União. Todos os direitos reservados. É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte e que não seja para venda ou qualquer fim comercial.

COORDENAçÃO, DISTRIBUIçÃO E INFORMAçõES:DEFENSORIA PÚBLICA-GERAL DA UNIÃOAssessoria Internacional - Divisão de Cooperação e Relações InternacionaisAssessor: Thiago Souza LimaSetor Bancário Sul, Quadra 01, Lotes 26 e 27Edifícios Luiza e Luiz EduardoCEP 70070-110 – Brasília – DFTel.: (61) 3319-4331/4380Site: www.dpu.gov.br/internacionalE-mail: [email protected]

PROJETO GRÁFICO:Assessoria de Comunicação CorporativaAssessor: Gustavo Pereira Damásio da SilvaTel: (61) 3319-0241E-mail: [email protected]

NORMALIZAçÃO DAS PRé-TExTUAIS:Raul Colvara RosinhaVanessa Kelly Leitão FerreiraMarcia Cristina Tomaz de Aquino

Boletim da Reunião das Instituições Públicas de Assitência Jurídica dos Paísesde Língua Portuguesa / Defensoria Pública da União. – N. 1 (abr. 2012) - . - Brasília : DPU, 2012.

v. ; 27 cm.

Bianual. ISSN 2238-4219

1. Acesso ao direito e à justiça. 2. Assistência jurídica. l. Brasil. Defensoria Pública da União. II. Título.

CDDir 341.413

SUMÁRIO

APRESENTAçÃO Haman Tabosa de Moraes e Córdova .......................................................................................... 5

A ASSISTÊNCIA JURÍDICA EM ANGOLAAngola ........................................................................................................................................ 8

BREvE HISTóRICO DO DESENvOLvIMENTO INSTITUCIONAL DAASSISTÊNCIA JURÍDICA NO BRASILDaniel Chiaretti ....................................................................................................................... 11

ASSISTÊNCIA JURÍDICA E JUDICIÁRIA NO BRASIL – LEGITIMAçÃO, EFICÁCIA E DESAFIOS DO MODELO BRASILEIRODaniel Cogoy ......................................................................................................................... 28

ACESSO AO DIREITO E à JUSTIçA NA GUINé-BISSAUJuliano Algusto Fernandes ...................................................................................................... 55

MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ASSISTÊNCIA JURÍDICA AO CIDADÃO CARENCIADOMoçambique ..................................…………………………….....…………..….................. 59

O PATROCÍNIO E A ASSISTÊNCIA JURÍDICA E JUDICIÁRIA AOSCIDADÃOS ECONOMICAMENTE CARENCIADOS Moçambique ..............….....…………......…………………………………................…...... 65

BREvE ExCURSO SOBRE O ACESSO AO DIREITO EM PORTUGALRenato Gonçalves e Tânia Piazentin .................................................................................... 72

FUNCIONAMENTO DO SISTEMA DE PROTECçÃO JURÍDICA EM PORTUGALRenato Gonçalves e Tânia Piazentin .................................................................................... 85

ASSISTÊNCIA JURÍDICA AOS NECESSITADOS E CARENCIADOS à LUZ DO ORDENAMENTO JURÍDICO SÃO-TOMENSE E A SUA EFECTIvAçÃO JURÍDICO-INSTITUCIONALKótia Solange do Espírito Santo Menezes ............................................................................ 91

O PAPEL DA DEFENSORIA PÚBLICA NA CONSTRUçÃO DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITOSérgio de Jesus da C. F. Hornai, Olga Barreto Nunes e Dennis Otte Lacerda ........................ 98

O ACESSO à JUSTIçA E O PAPEL DA DEFENSORIA PÚBLICA NO PROCESSO PENAL EM TIMOR-LESTERodrigo Esteves Rezende e Sérgio de Jesus F. da C. Homai ....................................................115

Page 4: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

76BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

APRESENTAçÃO

O processo de integração dos países lusófonos teve por marco incial a criação do Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP), por ocasião da realização do primeiro encontro dos Chefes de Estado e de Governo dos países de Língua Portuguesa, em São Luís do Maranhão, em novembro de 1989, no qual participaram Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe. Desde então, a concertação política e a cooperação nos domínios social, cultural e econômico entre tais países têm sido cada vez mais intensificadas.

Muito embora espalhados pelos cinco continentes, separados por terra e por mar, tais nações são irmanadas por uma herança histórica, pelo idioma comum e por uma visão compartilhada do desenvolvimento e da democracia. Desejosos de institucionalizar e sedimentar o especial relacionamento existente entre eles, criaram a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, em Lisboa, no dia 17 de julho de 1996. Seis anos mais tarde, em 20 de Maio de 2002, com a conquista de sua independência, Timor-Leste tornou-se o oitavo país membro da Comunidade.

A profícua cooperação e integração entre os países de língua portuguesa não poderia excluir um direito humano fundamental: o acesso à justiça.

Consciente de tal necessidade, a Defensoria Pública da União lançou a ideia da criação de foro que reunisse as instituições públicas de papel análogo ao seu nos países membros da CPLP, o qual firmaria a cooperação mútua entre tais instituições.

Dessa ideia se desenvolveu o projeto da Reunião das Instituições Públicas de Assistência Jurídica dos Países de Língua Portuguesa –

Haman Tabosa de M. e CórdovaDefensor Público-Geral Federal

Page 5: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

98BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

RIPAJ, cujo primeiro encontro ocorreu nos dias 5 a 8 de abril de 2011 em Brasília.

Os presentes àquela reunião decidiram pela publicação de periódico que teria por finalidade estimular a divulgação científica de pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso à justiça e de um sistema público ou estatal de patrocínio de assistência jurídica.

Assim, é com é com grande satisfação que a Defensoria Pública da União lança o primeiro número do Boletim da RIPAJ.

Desejo que essa publicação possa contribuir para integração das instituições públicas de assistência jurídica dos países de língua portuguesa, e que juntos possamos, conforme um dos elementos fundamentais da RIPAJ descritos em sua Declaração Constitutiva, “prover, em cada país que adota o português como o idioma oficial, a necessária assistência jurídica e judiciária das pessoas necessitadas, que permitam uma ampla defesa e o mais amplo acesso à justiça, com a devida qualidade e excelência, toda vez que tal direito for pleiteado em face do Estado”.

Uma ótima leitura a todos!

HAMAN TABOSA DE MORAES E CóRDOVADefensor Público-Geral Federal da República Federativa do Brasil

Page 6: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

1110

AN

GO

LA

AN

GO

LA

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

A ASSISTÊNCIA JURÍDICA EM ANGOLA

por Luanda

É certo que, a maioria dos cidãdaos que têm interesse em recorrer à justiça para verem resolvidas os constantes problemas quotidianos que se apresentam, não dispõem de meios económicos suficientes para suportar os honorários dos profissionais forenses, muito menos os encargos normais de uma causa judicial.

Por esta razão, a Constituição da República de Angola, assegura o acesso ao direito e e a justiça, como um direito fundamental dos cidadãos. O artigo 29º dispõe o seguinte:

“1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para a defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.2. Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídica, ao patrocinio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer

autoridade.”

Neste sentido, a assistência jurídica, afigura-se como uma ferramenta necessária ao desenvolvimento económico e social do País, na medida em que, visa proteger as classes mais desfavorecidas financeiramente da nossa sociedade, que por sua vez constituem a maioria da população angolana.

Este fundamento, vem reforçado no artigo 196º da Constituição que dispõe “O Estado assegura às pessoas com insuficiências de meios financeiros, mecanismos de defesa pública com vista á assistência jurídica a ao patrocínio forense oficioso a todos os níveis.” A presente disposição, claramente protege os mais carenciados no sentido de que a este não se deve denegar a justiça por insuficiência de meios financeiros.

Assim, a Constituição estabelece também, no seu artigo 195º que “ a organização e funcionamento da assistência juridica deve ser regulamentada por lei e deve estabelecer os meios financeiros para o efeito.”

Em Angola, a Assistência judiciária rege-se ainda pelo Decreto Lei nº 15/95 de 10 de Novembro, que regula o acesso á justiça.

A Assistência Judiciária, constitui uma responsabilidade conjunta do Estado e das instituições representativas da profissão forense e aplica-se em todos os

tribunais, qualquer que seja o processo.

A Assistência Judiciária compreende a dispensa, total ou parcial tanto dos preparos como do pagamento de custas ou pode, o seu pagamento, ser deferido assim como o pagamento dos serviços prestado pelo advogado que será remunerado pelo Estado.

A Assistência judiciária pode ser concedida as duas partes, ela pode ser requerida em qualquer estado da causa, mantém-se para efeito de recurso e é extensiva a todos os processos que sigam por apenso ao processo a que a concessão é dada.

Têm legitimidade para requerer a Assistência Judiciária:

a) O interessado;

b) O Ministério Público em representação do interessado;

c) Advogado ou Advogado Estagiário, em representação do interessado devendo a petição ser assinada pelo interessado e o patrono, devendo estes patrocinar a causa para que foi requerida;

d) Pelo Advogado, nomeado pela Ordem dos Advogados de Angola a pedido do interessado, formulado em Tribunal, devendo este patrocinar a causa para que foi requerida.

A prova de insuficiência de meios económicos é feita por atestado de pobreza, passado pelo Governo Provincial ou autoridade local e por Atestado Médico.

Presume-se que tem insuficiência económica quem estiver a receber alimentos por necessidade económica, que reúne as condições para atribuição de quaisquer subsídios por falta de rendimentos, tenham rendimentos mensais inferiores ou iguais a três vezes o salário mínimo nacional, o filho menor para efeito de investigar ou impugnar a sua maternidade ou paternidade, o requerente de alimentos e os titulares do direito à indemnização por acidente de viação.

O interessado deve, na sua petição expor os fundamentos do pedido, devendo alegar sumariamente os factos e as razões de direito que interessam ao pedido, mencionar os seus rendimentos e juntar todos os documentos que façam prova do pedido.

Embora a lei preveja o acima exposto para a concessão do Patrocínio Judiciário, ele é concedido a todos os interessados que o solicitem nos termos da lei.

A concessão de Assistência Judiciária compete ao juiz da causa, para

Page 7: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 13

BR

ASI

L

12

AN

GO

LA

BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

a qual é solicitada, constituindo um incidente do respectivo processo e admitindo oposição da parte contrária, fazendo algumas diligências complementares, ou seja, o juiz ordenará as diligências que lhe pareçam indispensáveis para decidir o incidente de Assistência Judiciária.

Está decisão do juiz, deve ser proferida, no prazo de 8 dias, especificando se este tem carácter total ou parcial.

A Assistência Judiciária, caduca pelo falecimento da pessoa singular ou pela extinção ou dissolução da pessoa colectiva a quem foi concedida, salvo se os sucessores na lide, ao deduzirem a sua habilitação, o requererem e lhes for deferida.

Luanda, 24 de Junho de 2011

GABINETE PARA A RESOLUÇÃO EXTRAJUDICIAL DE LITÍGIOS

BREvE HISTóRICO DO DESENvOLvIMENTO INSTITUCIONAL DA ASSISTÊNCIA JURÍDICA NO BRASIL

por Daniel Chiaretti Defensor Público Federal em São Paulo

Nosso objetivo no presente artigo é propor uma reconstrução do histórico da assistência jurídica1 no Brasil levando-se em consideração a alteração dos arranjos institucionais para a prestação do serviço, bem como sua relação com o conceito de acesso à Justiça. Neste sentido, dividiremos o desenvolvimento da assistência jurídica no Brasil em três momentos: i) assistência judiciária gratuita; ii) movimento de “acesso à Justiça”; iii) direito, desenvolvimento e reforma do Judiciário. Munidos deste breve histórico será possível, ao final, apontar qual deve ser a amplitude a atuação da Defensoria Pública, principal responsável pela prestação de assistência jurídica no quadro jurídico-institucional brasileiro, bem como de outros atores ligados à mesma tarefa, dentro do atual contexto.

Contudo, antes de partirmos para esta proposta de reconstrução, alertamos que estas três fases não devem ser compreendidas de forma estanque. Na verdade, a assistência jurídica brasileira seguiu uma evolução lenta, havendo uma nítida progressiva sofisticação do instituto, especialmente em razão da influência do conceito de acesso à Justiça. Deste modo, a divisão em fases leva em conta apenas o momento de consolidação de certos arranjos institucionais que permitem uma segura diferenciação em relação ao modelo anterior.

Ademais, esta proposta tem também por objetivo contestar o histórico habitual da assistência jurídica no Brasil, o qual costuma colocar no centro do debate as alterações legislativas (especialmente constitucionais), havendo especial ênfase na Constituição Federal de 1988, em cujo texto se inseriu pela primeira vez a Defensoria Pública. Esta abordagem, contudo, nos parece simplista por desprezar o progressivo desenvolvimento da legislação infraconstitucional e, principalmente, das ideias que estavam por trás de cada uma das alterações ocorridas no âmbito da assistência jurídica2.

1 É de se diferenciar a assistência judiciária, destinada a garantir ao hipossuficiente a isenção de custas, emolumentos, taxas judiciárias, honorários advocatícios e periciais etc., ou seja, das despesas necessárias para o ingresso em juízo, da assistên-cia jurídica, a qual abrange, além da assistência judiciaria, também a orientação extrajudicial e prestação de outros serviços ligados à garantia de acesso à Justiça.2 Assim, cremos que a abordagem usual insiste numa certa autonomia dos textos legislativos, o que leva a um histórico excessivamente limitado a essas alterações. Com isso, subestima-se, em certa medida, a contribuição dada pelo con-

Page 8: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 1514

BR

ASI

L

BR

ASI

L

Além disso, essa abordagem tradicional tende a privilegiar a falsa ideia de que a Defensoria Pública, por ter sido constitucionalizada apenas em 1988, é uma “instituição nova”. Na realidade, a ênfase dada à Defensoria Pública no atual arranjo para a promoção da assistência jurídica integral e gratuita é resultado de uma série de escolhas feitas ao longo da história brasileira, estando o modelo intimamente atrelado à nossa tradição jurídico-política3 .

1. PRIMEIROS óRGÃOS ESTATAIS PARA A PRESTAçÃO DE ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA

A noção de que é importante a garantia de acesso à justiça aos mais pobres é antiga, e foge do objetivo deste trabalho apontar todo este histórico4. O mais importante marco da fase inicial da organização da assistência jurídica brasileira foi o Decreto n° 2.457, de 08 de fevereiro de 1897, o qual estabeleceu as regras para o serviço de Assistência Judiciária no Distrito Federal (na época, o Rio de Janeiro). Este decreto, promulgado após um histórico de reivindicações relativos à assistência judiciária, lançou as bases para o posterior desenvolvimento de vários conceitos relativos à garantia de acesso à Justiça aos hipossuficientes.

Todas essas características foram adotadas por muitos dos modelos que surgiram na esteira do Decreto n° 2.457/1897 e permaneceram em todo o desenvolvimento da assistência jurídica brasileira durante o século XX.

O primeiro ponto de destaque do decreto foi a garantia de assistência judiciária aos litigantes tanto na esfera cível quanto criminal, bem como a autores e texto político e acadêmico. Contudo, como ensina o historiador das ideias políticas Quentin Skinner, um texto histórico deve ser investigado levando-se em conta a linguagem política articulada na sociedade, postura que adotaremos no presente trabalho (Meaning and Understanding in History of Ideas. History and Theory, Vol. 8, No. 1 (1969), pp. 3-53).3 Nesse sentido, que podemos aplicar ao desenvolvimento da assistência jurídica gratuita no Brasil a ideia de “trajetória dependente” (path dependence), segundo a qual decisões do passado tendem a levar à adoção de certos modelos institucionais. Como ensina Douglass C. North, a trajetória dependente estreita as opções disponíveis e leva à adoção de certas políticas através do tempo. Portanto, nosso modelo institucional para a prestação de assistência jurídica gratuita é um resultado de todas as opções feitas ao longo de nossa história, sendo pouco crível, neste sentido, que a Constituição de 1988 tenha tido um caráter tão inovador quanto à adoção do modelo de Defensoria Pública (Institutions, Institutional Change and Economic Performance. Nova York: Cambridge University Press, 1990, pp. 96-100).4 Para uma abordagem histórica da assistência jurídica e da Defensoria Pública: MOREIRA, José Carlos Barbosa. O Direito à Assistência Jurídica: Evolução no Ordenamento Brasileiro de Nosso Tempo. In: As Garantias do Cidadão na Justiça (org. Sálvio de Figueiredo Teixeira). São Paulo: Saraiva, 1993. ALVES, Cleber Francisco. Justiça para Todos! Assistência Jurídica Gratuita nos Estados Unidos, na França e no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. MORAES, Humberto Peña de; DA SILVA, José Fontenelle Teixeira. Assistência Judiciária: Sua Gênese, Sua História e a Função Protetiva do Estado. Rio de Janeiro: Liber Juris, 1984. MENEZES, Felipe Caldas. Defensoria Pública da União: Princípios Institucionais, Garantias e Prer-rogativas dos Membros e um Breve Retrato da Instituição Disponível em: http://www.dpu.gov.br/pdf/artigos/artigo_principios_institucionais_Felipe.pdf (consultado em 30/06/2011). LIMA, Frederico Rodrigues Viana de, Defensoria Pública. Salvador: Ed. Juspodivm, 2010.

réus (art. 1º). O conceito de pobreza era definido pela “impossibilidade de pagar ou adiantar as custas e despesas do processo sem privar-se de recursos indispensáveis para as necessidades ordinárias da própria manutenção da família”, sendo muito semelhante ao do art. 2ª da Lei n° 1.060/50, ainda em vigor. O decreto estabeleceu, ainda, que a assistência judiciária consistiria na prestação de todos os serviços necessários, independentemente do pagamento de quaisquer taxas ou custas (art. 4º).

Havia ainda a garantia do patrocínio de um advogado, o qual era apontado por uma comissão após a avalição da alegação de pobreza pelo requerente do benefício (arts. 15-27). Este advogado só tinha direito à remuneração decorrente de eventual condenação do adversário ao pagamento de honorários. Não podia, portanto, cobrar honorários do assistido, e não era remunerado pelo Estado (art. 38), sendo que a recusa na prestação dos serviços implicava o pagamento de multa e suspensão do exercício de profissão por de oito a trinta dias (art. 28). Portanto, neste modelo incipiente, limitou-se o Estado a criar uma obrigação aos advogados na prestação do serviço de assistência judiciária5 .

É importante ressaltar que esta norma formatou várias das características da assistência judiciária no Brasil, das quais destacamos: i) possibilidade de concessão do benefício indistintamente a autor e réu em processos civis e criminais; ii) adoção de um critério relativo para a aferição da hipossuficiência; iii) garantia de gratuidade de praticamente todos os custos processuais; iv) garantia de assistência por um advogado. Todas essas características foram adotadas por muitos dos modelos que surgiram na esteira do Decreto n° 2.457/18976 e permaneceram em todo o desenvolvimento da assistência jurídica brasileira durante o século XX.

Merece destaque, nesse momento, o Decreto nº 17.231A de 1926, o qual estabeleceu a figura do advogado de ofício na Justiça Militar 7. Este defensor integrava os quadros da Justiça Militar (art. 5º) e a norma em questão trazia a garantia expressa que “[n]enhum accusado, salvo quando revel, será processado sem assistencia de advogado ou curador” (art. 209). Nota-se, portanto, que o advogado de ofício, por 5 Esta solução se harmonizava com o que era praticado em outros países à época. Como mostra Mauro Cappelletti (tradução livre): “A abordagem do século XIX a esse problema [assistência judiciária] está tipificada nas soluções que sobre-viveram na Alemanha até 1919, na Inglaterra até 1949, na França até 1972 e ainda sobrevive em países como, por exemplo, a Itália. Esta solução consistia em, na prática, transferir aos membros da profissão legal a responsabilidade de representar os pobres sem pagamento, já que o estado laissez-faire não queria tal responsabilidade social.” O autor arremata, ainda, afirmando que o serviço prestado nessas condições era de má qualidade (The Judicial Process in Comparative Perspective. Oxford: Ox-ford Press, 1989, p. 239).6 Apenas para ilustrar, vale citar que a Lei Estadual n° 1.763, de 29 dezembro de 1920, a qual organizou a Assistên-cia Judiciária no Estado de São Paulo e foi precursora da Procuradoria da Assistência Judiciária (PAJ) que se desenvolveria no estado, adotou praticamente o mesmo modelo do Decreto n° 2.457/1897.7 A estrutura da advocacia de ofício na Justiça Militar serviu, muitas décadas depois, para dar início às atividades da Defensoria Pública da União.

Page 9: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 1716

BR

ASI

L

BR

ASI

L

integrar os quadros da Justiça Militar, representa um modelo de assistência judiciária diferente daquele praticado à época nos termos do Decreto n° 2.457/1897, o que iria influenciar a constituinte de 1934 alguns anos depois.

Com a criação da Ordem dos Advogados do Brasil em 1930, a prestação da assistência judiciaria passou a ficar a ela submetida8, tendo sido estabelecido, por influência da legislação precedente, que o serviço seria um múnus dos advogados. Contudo, pouco alterava a relação do Estado com a garantia da assistência jurídica.

Há uma mudança significativa desse cenário com a promulgação da Constituição de 1934, a primeira reconhecer que a assistência judiciaria gratuita era um direito fundamental9, estabelecendo ainda, pioneiramente, que caberia à União e aos Estados garantir, através de órgãos especiais, a assistência judiciaria10. Neste momento histórico, já é possível notar a transição de um Estado liberal para um Estado social, sendo este contexto essencial para o aprimoramento da garantia de assistência judiciária11.

Analisando-se as discussões sobre o tema durante a constituinte12, notamos que havia o reconhecimento, por alguns membros, de que a assistência prestada pela Ordem dos Advogados era deficiente (uma “fantasia”, segundo o constituinte baiano Pacheco de Oliveira) e que era necessária a criação de um órgão estatal que assumisse a assistência judiciária. Durante as discussões, houve a intenção de atribuir a assistência ao Ministério Público13 ou a um órgão análogo ao existente na Justiça Militar. Contudo, a Constituição não entrou em tal minúcia e o texto aprovado mencionava apenas a

8 Arts. 91 a 93 do Decreto n° 20.784, de 14 de dezembro de 1931.9 Art. 113 (...)32) A União e os Estados concederão aos necessitados assistência judiciária, criando, para esse efeito, órgãos especiais assegurando, a isenção de emolumentos, custas, taxas e selos. Interessante destacar que, já nessa época temos sedimentada ideia de que a assistência judiciária a era um direito público subjetivo. Nesse sentido: MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo I.2a. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 437. José Carlos Barbosa Moreira, a esse respeito, salienta que o direito à assistência judiciaria foi estabelecido constitucionalmente antes da garantia genérica de acesso ao Poder Judiciário, contemplada apenas pela Carta de 1946 (MOREIRA, José Carlos Barbosa. O Direito à Assistência Jurídica (...), op. cit., p. 207).10 E não aos municípios, o que se tornaria outra característica perene da assistência jurídica no Brasil (ALVES, Cleber Francisco. Justiça para Todos! (…), op. cit., p. 244).11 Paulo Bonavides e Paes de Andrade, comentando a Carta de 1934, apontam o caráter eminentemente social da Con-stituição, a qual teria inaugurado o Estado social brasileiro, o que estaria de acordo com o espírito europeu pós-guerra mas que iria se firmar apenas após a Segunda Guerra Mundial e o estabelecimento do welfare state (BONAVIDES, Paulo e ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. 8ª Ed. Brasília: OAB Editora, 2006, pp. 327-333). A não consolidação deste viés socialdemocrático pode ser vislumbrada pelo modo como Araújo Castro comenta, à época da promulgação da Constituição, a garantia de assistência judiciária por um viés mais liberal: “[n]ada mais justo do que a assistência judiciaria aos necessitados, porque, se é no Poder Judiciário que todos vão encontrar a maior garantia de seus direitos individuais, é bem de se ver que sem tal assistência as classes pobres estariam impossibilitadas de fazer valer tais direitos” (CASTRO, Araújo. A Nova Constituição Brasileira. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1935, p. 370).12 Anais da Assembléia Nacional Constituinte (1934). V. XXI, Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1934-1937, pp. 195-199, 214-219 e 270-280. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/constituinte_principal.asp (acessado em 07/07/2011).13 Segundo o constituinte Pacheco de Oliveira, o Ministério Público seria o órgão mais indicado para a “defesa dos pobres” em razão de sua atuação nas curadorias.

necessidade de existência de um “órgão especial” para a prestação do serviço14.

Obedecendo ao comando constitucional, o Estado de São Paulo15 criou, em 1935, o Consultório Jurídico do Estado, o qual tinha algumas características que seriam encontradas, posteriormente, na Defensoria Pública. Conforme o art. 151, b, da Lei Estadual n° 2.497/1935, o Consultório Jurídico deveria prestar assistência jurídica a todos os que necessitassem de proteção social, como “os menores, a família, os desvalidos, os egressos, assim de reformatórios e estabelecimentos penais e correcionais como de estabelecimentos hospitalares”16. Nos termos do art. 154, os serviços do Consultório consistiam na isenção do pagamento de custas, taxas e emolumentos dos atos processuais para a prova de condição de necessitado e dos direitos em lide, bem como da própria assistência judiciária. Além disso, o órgão contava com pessoal próprio17. Essa estrutura iria se tornar, 1947, a Procuradoria da Assistência Judiciária (PAJ), que se desmembraria da Procuradoria do Estado para dar corpo à Defensoria Pública do Estado de São Paulo em 2006.

Assim, observamos que este órgão foi criado nos termos do art. 113, 32, da Constituição de 1934, tendo sido adotado um modelo de assistência judiciária organizada pelo Estado, com quadros próprios, e voltada para a proteção social. Evidente, portanto, que esse modelo foi importante para a consolidação da assistência jurídica integral e gratuita adotada hoje no país.

Posteriormente, mesmo com a outorga da Constituição de 1937, a qual silenciou sobre a assistência judiciária, os serviços já implantados continuaram existindo e o instituto foi tratado pela legislação infraconstitucional18, merecendo destaque o Código de Processo Penal de 1941 e o Código de Processo Civil de 1939, o qual tinha um detalhado capítulo abordando a justiça gratuita e a assistência judiciária, estendendo-a às custas, taxas, emolumentos, indenizações devidas a testemunhas e honorários com advogados e peritos, além de inovar ao facultar à parte a escolha do

14 Interessante notar que na referida constituinte foram invocados argumentos muito semelhantes aos utilizados até os dias atuais contra a Defensoria Pública, em especial a suficiência da atuação a OAB e a falta de recursos para custear o serviço.15 Para um histórico mais detalhado da assistência jurídica em São Paulo: SCHUBSKY, Cássio. Advocacia Pública – apontamentos sobre a História da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo e Centro de Estudos da PGE/SP, 2008.16 Estavam excluídos os trabalhadores, já assistidos pelo Departamento Estadual do Trabalho.17 Art. 152 - O Consultório Jurídico terá o seguinte pessoal:a) um director com as funções de advogado chefe:b) dois advogados, sendo um adjunto, cujos serviços serão distribuídos pelo director, dentro de um criterio de equidade e ef-ficiencia.c) dois escripturarios dactylographos;d) um servente.18 Segundo Cléber Francisco Alves, no período getulista foi mantido o “espírito” da Constituição democrática de 1934 no que tange à assistência judiciária (Justiça para Todos! Assistência Jurídica Gratuita nos Estados Unidos, na França e no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, pp. 244-245).

Page 10: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 1918

BR

ASI

L

BR

ASI

L

advogado, rompendo com a tradição anterior19.

Contudo, desaparece do ordenamento aquela obrigatoriedade de criação de um órgão especial para a prestação da assistência. Tanto que, com o fim da ditadura getulista, a Constituição de 1946 voltou a fazer menção expressa à assistência judiciária , mas sem fazer referência a um órgão especial. Isso ajudou a consolidar uma certa autonomia dos Estados no modo de condução de seus serviços de assistência judiciária

Contudo, desaparece do ordenamento aquela obrigatoriedade de criação de um órgão especial para a prestação da assistência. Tanto que, com o fim da ditadura getulista, a Constituição de 1946 voltou a fazer menção expressa à assistência judiciária20 , mas sem fazer referência a um órgão especial. Isso ajudou a consolidar uma certa autonomia dos Estados no modo de condução de seus serviços de assistência judiciária21.

Neste contexto o antigo Distrito Federal, atualmente correspondente ao município do Rio de Janeiro, organizou sua assistência judiciária por conduto da Lei n° 216 de 1948, a qual dispunha sobre o Ministério Público do Distrito Federal, cujo degrau inicial era o cargo de Defensor Público22.

Em seguida houve a promulgação da Lei n° 1.060/50, a qual, sem trazer grandes inovações, teve o mérito de uniformizar o tema da assistência judiciária em todo território nacional, atribuindo-a aos poderes públicos federal e estadual, mas sem condicionar a prestação do serviço à existência de um órgão próprio. Com isso, diversos estados passaram a se estruturar, de maneira não uniforme, para prestação da assistência23. Ou seja, mesmo diante da inexistência de uma norma expressa na Lei n° 1.060/50 ou nas constituições posteriores, a maioria dos estados passou a prestar a assistência judiciária através de órgãos estatais.

Aqui, merece destaque o Estado do Rio de Janeiro, o qual influenciou o

19 Contudo, o modelo de assistência jurídica com indicação de advogado sem qualquer remuneração continuava a ser problematizado: “É de esperar-se que os advogados não se forrem a esse serviço, de regra sem grandes proveitos. A lei não lhes dá outra escusa que teria o profissional para não servir a determinada pessoa. O acúmulo de serviço de modo nenhum bastará para a justificação de não aceitar ou de não poder continuar a representar processualmente o beneficiado” (MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil, op. cit., p. 439).20 Art. 141 (…)§ 35 - O Poder Público, na forma que a lei estabelecer, concederá assistência judiciária aos necessita-dos.21 Apenas a título de exemplo, se analisarmos a mensagem de veto da Lei nº 7.510, de 4 de julho de 1986, observa-mos que o Presidente José Sarney se recusou a impor, via Lei nº 1.060/50, uniformidade na prestação da assistência judiciária. Afirmou, nesse sentido, que “[a]os Estados cabe prestar assistência judiciária aos necessitados dentro das condições que lhes são peculiares”. Este também foi um ponto de intensos debates na constituinte de 88.22 Art. 2º A carreira do Ministério Público compreende os cargos de Defensor Público, Promotor Substituto, Promotor Público e Curador, providos o primeiro mediante concurso de títulos e provas e os demais por promoção.23 Para um apanhado de alguns dos serviços criados: ALVES, Cléber Francisco. Justiça para todos! (…), op. cit., p. 246.

modelo de Defensoria Pública que veio a ser adotado no Brasil. A instituição para a prestação da assistência judiciária foi implantada inicialmente pela Lei n° 2.188/54, por conduto da qual foram criados os primeiros cargos de defensor público no Estado, providos por indicação do Poder Executivo. Como não havia um órgão de assistência judiciária organizado, a solução foi incluir a figura do defensor público na própria legislação do Ministério Público, submetendo-os à Procuradoria de Justiça24.

Em seguida, a Lei Federal n° 3.434/58 complementou a assistência judiciária no âmbito do antigo Distrito Federal, persistindo a prestação do serviço pelos defensores públicos ocupantes da classe inicial do Parquet. Já com a Lei Estadual n° 5.111/62, denominada “Lei Orgânica do Ministério Público e da Assistência Judiciária”, foi instituído no Estado do Rio de Janeiro um modelo de Ministério Público que também prestava a assistência jurídica. O modelo persistiu até a fusão do Estado da Guanabara com o do Rio de Janeiro, em 197525. Nesse momento, graças à “emenda constitucional Alberto Torres”, o Estado do Rio de Janeiro adotou definitivamente um sistema de assistência judiciária independente do Ministério Público, tendo essa configuração integrado o próprio texto da Constituição estadual.

Assim, percebemos que de sua gênese até a consolidação desse primeiro momento, a prestação da assistência jurídica no Brasil foi se configurando de forma razoavelmente uniforme no sentido de adoção de um modelo de prestação de assistência pelo Estado, através de órgãos próprios, com gratuidade ampla para todos os custos do processo. Em que pese já houvesse alguma inclinação para a solução extrajudicial de conflitos26, esta era tímida, estando o foco voltado para a atuação judicial na esfera individual.

Ademais, é inegável que esse modelo inicial, apesar de já possuir várias as principais características ainda visíveis nos dias atuais, era absolutamente insuficiente por diversos motivos, dentre os quais destacamos a precária estrutura do serviço e sua restrição, em regra, à assistência judiciária. E acreditamos que isso se deve ao fato de que, à época da consolidação desse modelo, ainda não era corrente no Brasil a ideia de acesso à Justiça tal como concebida a partir dos anos 60 do século XX27.24 ROCHA, Jorge Luís. História da Defensoria Pública e da Associação dos Defensores Públicos do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 9. A situação se alterou um pouco com a edição do Deceto-Lei 286/70, que transformou os cargos de defensor público em uma carreira paralela, mas ainda sob o comando do Procurador de Justiça.25 ROCHA, Jorge Luís. História da Defensoria Pública…, op cit, p. 13.26 Citamos, a título de exemplo, o seguinte artigo do Decreto-Lei 283/1970 que estruturou a Defensoria Pública do Rio de Janeiro: art 10 – Aos Defensores incumbe, especialmente: (…) II – JUNTO AOS JUÍZES CÍVEIS: (…) Procurar promover a conciliação das partes, antes de intentar a ação especialmente procurar o ajuste amigável da prestação alimentícia, tendo em vista, sempre, o interesse dos filhos menores.27 Seria um anacronismo falar, nesse primeiro momento, que havia uma preocupação relativa ao acesso à Justiça tal qual concebida a partir dos anos 60. Contudo, reiteramos a ressalva feita no início do trabalho: a mudança do paradigma “as-

Page 11: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 2120

BR

ASI

L

BR

ASI

L

2. O MOvIMENTO “ACESSO à JUSTIçA”

Conforme já clássica lição de Mauro Cappelletti e Bryant Garth28, a partir de 1965 floresce no mundo Ocidental o interesse em torno do efetivo acesso à Justiça, o que leva ao reconhecimento de três ondas renovatórias: assistência judiciária, representação jurídica para os interesses difusos e enfoque de acesso à justiça. É nesse contexto que o influente Projeto Florença é concebido com o intuito de diagnosticar os problemas envolvendo o acesso à Justiça29.

Um dos fatos que influenciaram esse movimento ocorreu nos EUA com a implantação pelo presidente democrata Lyndon Johnson do programa “Guerra à Pobreza”. Dentre as medidas adotadas no programa, destacamos aquela responsável pelo efetivo cumprimento ao entendimento sufragado pela Suprema Corte americana quando do julgamento de alguns leading cases30, levando à adoção de um modelo que custeasse um advogado àqueles sem recursos. Em razão programa, foi criado o Office of Economic Opportunity, o qual instalou escritórios em bairros carentes, disponibilizando advogados contratados exclusivamente para a prestação de assistência jurídica. Este foi o embrião para a criação, em 1974, da Legal Services Corporation, cujo orçamento era determinado pelo Congresso e que, no começo da década de 80, já contava com 320 programas de assistência jurídica, 1.200 escritórios de vizinhança, 5.000 advogados e 2.500 paralegais31.

Esta referência é importante por sua influência tanto em estudos acadêmicos sobre o tema quanto nos modelos de assistência jurídica ao redor do mundo. Segundo Cappelletti e Garth, em razão dessa influência, vários países passaram a buscar garantir uma maior eficiência na prestação de serviços jurídicos à população carente, alterando dramaticamente seus modelos32. sistência judiciária” para o do “movimento acesso à Justiça” não se deu de forma abrupta. De todo modo, das referências já trazidas neste breve estudo, infere-se que já havia uma certa preocupação em garantir a igualdade àqueles que não dispunham de recursos para custear uma demanda judicial. Mas, de forma alguma esta preocupação tinha a abrangência que seria consoli-dada partir do Projeto Florença.28 Acesso à Justiça, op. cit., p. 31.29 Segundo Cândido Rangel Dinamarco “[a] mais grandiosa das tentativas de levantar dados para um diagnóstico das causas da ineficiência da Justiça consistiu no monumental Projeto Florença, idealizado e levado a efeito nos anos setenta sob a liderança do idealista Mauro Cappelletti.” Contudo, segundo Cândido Rangel Dinamarco, embora os estudos lá deflagrados tenham possibilitado descobrir, com razoável clareza, as causas da ineficiência da Justiça, esta ainda é ineficiente. In: Nova Era do Processo Civil. 3a. Ed. São Paulo: Malheiros, 2009, pp. 14-15.30 Foram reconhecidos pela Suprema Corte dos EUA, v.g., o direito constitucional de gratuidade para certas taxas relativas a divórcio para pessoas pobres (Boddie v. Connecticut) e garantia de advogado para réus pobres em certos processos criminais (Gideon v. Wainwright e Argersinger v. Hamlin). Destes, o caso Gideon v. Wainwright foi o mais influente.31 FRIEDMAN, Lawrence M. American Law: An Introduction. 2a. Ed. Nova York: Norton, 1998, pp. 289-290. Res-saltamos, contudo, que durante o governo Reagan a instituição sofreu diversos cortes, apesar de ainda ser uma das grandes responsáveis pela prestação do serviço.32 Acesso à Justiça. op. cit., pp. 33-35.

No Brasil o modelo americano não teve tanta influência, eis que o país já tinha organizado uma assistência jurídica custeada por recursos estatais (ainda que de forma absolutamente precária e ineficiente). Contudo, graças à penetração dos processualistas italianos no Brasil, as “ondas renovatórias” do acesso à Justiça tiveram um notável impacto no meio acadêmico e, posteriormente, legislativo33.

Sob esse novo enfoque, o conceito de acesso à Justiça deve gozar de particular atenção por constituir o mais básico dos direitos humanos, sendo essencial em um sistema jurídico moderno que pretenda garantir, e não apenas proclamar, os direitos substantivos decorrentes das reformas do welfare state. Assim, a questão do acesso passa a constituir o ponto central da moderna processualística34

Assim, diversas obras no decorrer dos anos 80 passam a tratar da questão sob essa nova ótica, o que foi essencial para garantir que a assistência judiciária (e, posteriormente, jurídica) não mais fosse estudada de modo incidental. Neste sentido, citamos Kazuo Watanabe, responsável por cunhar a expressão acesso à ordem jurídica justa, a qual representa não só o espírito de um programa de reforma institucional, mas também um novo método de pensamento. Neste novo contexto, o direito de acesso à Justiça, encarado como direito à ordem jurídica justa, deveria abarcar uma profunda reforma institucional, voltando-se à remoção de todos os obstáculos que se anteponham ao acesso efetivo à Justiça35.

Inúmeros outros exemplos dessa influência podem ser colacionados36. Ada Pellegrini Grinover já destacava, em 1984, que a assistência judiciária não poderia se liminar à assistência processual dos economicamente fracos, mas deveria abranger também a orientação pré-processual, conciliação, a existência de um órgão de defesa tão bem estruturado quanto o da acusação, a prestação da assistência através de um quadro próprio de advogados públicos etc37.

33 Isto fica claro ao analisarmos as obras produzidas pela Escola Paulista de Processo Civil, nas quais institutos como tutela coletiva, juizados especiais e assistência judiciária são todos colocados sob a rubrica do Acesso à Justiça tal como preconizado por Mauro Cappelletti. Tal influência redundou na promulgação da Lei dos Juizados de Pequenas Causas (Lei 7244/84), Lei da Ação Civil Pública, Código de Defesa do Consumidor, dentre outros.34 CAPPELLETTI, Mauro e GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. op. cit., pp. 11-13. Este é um ponto que merece ser enfatizado, já que todo o desenvolvimento do conceito de acesso à Justiça vai se pautar, nesse paradigma, pela questão proces-sual. Apenas a partir do terceiro momento do histórico da assistência jurídica, após a Reforma do Judiciário, é que o acesso à Justiça será impulsionado além do campo meramente processual.35 WATANABE, Kazuo. Acesso à Justiça e sociedade moderna. In: Participação e Processo (org. Ada Pellegrini Grino-ver, Cândido Rangel Dinamarco e Kazuo Watanabe). São Paulo: RT, 1988. pp. 128-135.36 Vale, contudo, uma ressalva: apesar desses processualistas terem contribuído enormemente para a elevação da assistência jurídica a um plano mais nobre, este nunca foi o foco principal dos estudos por eles empreendidos. Na realidade, talvez por já haver no Brasil uma estrutura de assistência judiciária, ainda que ineficiente, as forças destes estudiosos voltaram-se principalmente à tutela dos direitos transindividuais (com especial ênfase no direito do consumidor), à estruturação dos Juizados Especiais e a reformas que diminuíssem os rigores formais do Processo Civil. Em suma, concentraram-se na segunda e terceira da ondas renovatórias.37 GRINOVER, Ada Pellegrini. Assistência Judiciária e Acesso à Justiça. In: Novas Tendências do Direito Processual,

Page 12: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 2322

BR

ASI

L

BR

ASI

L

Cândido Rangel Dinamarco, outra figura ativa nas mudanças processuais ocorridas sob a influência do movimento, consignou que “Acesso à Justiça não equivale a mero ingresso em juízo. (...) Só tem acesso à ordem jurídica justa quem recebe justiça. E receber justiça significa ser admitido em juízo, poder participar, contar com a participação adequada do juiz e, ao fim, receber um provimento jurisdicional consentâneo com os valores da sociedade”38.

Assim, quando do início dos trabalhos da constituinte em 1987, já havia no meio acadêmico a ideia de que o Estado deveria viabilizar o acesso à Justiça das camadas mais pobres da população através da garantia de um sistema abrangente e eficiente de assistência jurídica gratuita, não bastando aquele mero acesso formal garantido sob o paradigma da assistência judiciária. A esse respeito, destacamos manifestação de Sílvio de Abreu, um dos mais atuantes constituintes a favor da Defensoria Pública39:

“(...) para ser justa, a Justiça não pode efetivamente atender como a atual Justiça atende, apenas aos fortes, aos poderosos, àqueles capazes de movimentar a máquina da Justiça, a máquina do Judiciário, com os seus próprios recursos. Uma Justiça, para ser justa, é preciso que se encontre também facultada aos carentes,

aos marginalizados, aos pobres, aos miseráveis.”

Há, portanto, uma evidente apropriação da ideia de que a assistência jurídica seria necessária para a garantia de uma ordem jurídica justa. Ainda analisando os trabalhos da Constituinte, destacamos parte da manifestação do defensor público Roberto Vitagliano, um dos responsáveis por representar os interesses da Defensoria Pública perante a Subcomissão do Poder Judiciário e Ministério Público40:

“Temos certeza de que a atual Constituinte saberá fazer uma Constituição que assegure concretamente os direitos de liberdade no âmbito do Judiciário e no âmbito da cidadania em geral. E no âmbito do Judiciário, para que ele se democratize, para que se desburocratize, é essencial a existência de uma Defensoria forte, eficiente e, como acontece onde ela funciona com eficiência, elimine até do conhecimento do Judiciário dezenas, centenas, milhares de questões que são resolvidas no gabinete do defensor público, antes de se iniciar um processo caro, demorado e com fim incerto.

Portanto, Srs. Constituintes, temos certeza absoluta de que ao inserir na Constituição a Defensoria Pública, V. Exas. estarão atendendo ao anseio do povo brasileiro e atendendo a uma necessidade social à qual não nos podemos mais furtar, sob pena de continuarmos vendo lesados os direitos do homem do campo, do homem humilde da cidade, da criança, da mulher, enfim, das grandes minorias

Rio de Janeiro: Forense, 1990, pp. 243-251.38 Instituições de Direito Processual Civil. Vol. I. 6a. Ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 118.39 Assembleia Nacional Constituinte (Ata das Comissões): 3c Subcomissão do Poder Judiciário. p. 7. Disponível em: www.senado.gov.br (consultado em 30/06/2011).40 Assembleia Nacional Constituinte (…), op. cit., p. 63.

que vêm sendo sacrificadas ao longo da nossa História.”

Mais uma vez percebemos que o discurso levado à Constituinte está divorciado do conceito restrito de assistência judiciária, havendo ênfase, já nesse momento, da resolução extrajudicial de conflitos. Há, ainda, uma tentativa de utilização do conceito de vulnerabilidade, o qual estende o âmbito de incidência da assistência jurídica, antes restrita apenas ao economicamente hipossuficientes. Contudo, apenas após a Reforma do Judiciário (EC 45/2004), é que esta ideia vai se concretizar plenamente.

Por fim, vale mencionar que a defensora pública Suely Pletz Neder, então presidente da Federação Nacional das Associações de Defensores Públicos, afirmou categoricamente, na mesma ocasião, que “[o] acesso à Justiça é instrumento indispensável para assegurar as conquistas que a sociedade pretende ver insertas na Carta Constitucional.”41 Evidente, portanto, que a questão do acesso à Justiça naquele sentido cunhado na esteira do estudos deflagrados pelo Projeto Florença havia entrado definitivamente no discurso daqueles que advogavam a assistência jurídica integral e a constitucionalização da Defensoria Pública 42.

Assim, a Constituição Federal de 1988 determinou que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos” (art. 5o., LXXIV), mencionando ainda de forma explícita que “[a] Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados” (art. 134)43 . Portanto, a Constituição promulgada adotou expressamente o modelo de Defensoria Pública para a prestação da assistência jurídica integral.

Isto se deveu ao fato de já haver no Brasil um modelo de Defensoria Pública razoavelmente consolidado, ainda que de forma não uniforme. Mesmo em locais onde inexistia a instituição, como era o caso do estado de São Paulo, a prestação da assistência jurídica estava a cargo de um órgão análogo. Portanto, ainda que a constitucionalização da instituição tenha sido um passo muito importante para a

41 Assembleia Nacional Constituinte (...), op. cit., p. 72.42 Uma boa síntese do espírito pós-constitucionalização da Defensoria Pública pode ser apreendido no seguinte trecho de artigo de José Carlos Barbosa Moreira: “A mudança do adjetivo qualificador da ‘assistência’, reforçada pelo acréscimo do ‘integral’, importa notável ampliação do universo que se quer cobrir. Os necessitados fazem jus agora à dispensa de pagamen-tos e à prestação de serviços não apenas na esfera judicial, mas em todo o campo dos atos jurídicos. Incluem-se também na franquia: a instauração e movimentação de processos administrativos, perante quaisquer órgãos públicos, em todos os níveis; os atos notariais e quaisquer outros de natureza jurídica, praticados extrajudicialmente; a prestação de serviços de consultoria, ou seja, de informação e aconselhamento em assuntos jurídicos.” MOREIRA, José Carlos Barbosa. O Direito à Assistência Jurídica (...), op. cit., p. 215.43 O dispositivo aprovado, contudo, está muito aquém do inicialmente proposto, o qual estabelecia no corpo constitu-cional diversas garantias à Defensoria Pública, muitas delas em simetria com o Ministério Público.

Page 13: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 2524

BR

ASI

L

BR

ASI

L

consolidação de um modelo de assistência jurídica baseado na Defensoria Pública, a opção não foi inovadora, não sendo muito precisa a usual denominação de “instituição nova”.

Além disso, vale mencionar que a inclusão da Defensoria Pública na Constituição ocorreu graças aos esforços dos próprios defensores públicos, os quais enfrentaram grandes resistências do “Centrão” na constituinte44 e não contaram com especial apoio da esquerda tradicional45 ou movimentos sociais.

Assim, podemos dizer que esse modelo institucional influenciado pelo movimento de Acesso à Justiça, o qual exige respostas eficientes à questão da assistência jurídica, se consolida com a promulgação da Lei Complementar nº 80/94, a qual, ainda que a médio e longo prazo46 , levou a União e os Estados a adotarem um arranjo com ênfase na Defensoria Pública.

3. DIREITO, DESENvOLvIMENTO E REFORMA DO JUDICIÁRIO

A partir dos anos 90, o mundo presenciou uma série de reformas institucionais promovidas no Poder Judiciário de vários países. Estas reformas começam a surgir no contexto mundial a partir da reconhecimento da importância do rule of law47 para o desenvolvimento econômico48 . Tais reformas, em substituição às economias e mercados controlados pelo Estado, enfatizavam a abertura econômica, o estado mínimo e o livre fluxo de bens e capital pelo Globo. Deste modo, as reformas institucionais feitas no Poder Judiciário de vários países tiveram como foco principal

44 ROCHA, Jorge Luís. História da Defensoria Pública…, op cit, pp. 159-160.45 O constituinte Plínio de Arruda Sampaio, relator da subcomissão, apresentou, durante os trabalhos, muita resistência à constitucionalização da Defensoria Pública e à concessão de garantias análogas às dos membros do Ministério Público aos defensores públicos, chegando a afirmar o seguinte: “A minha pergunta é a seguinte: haveria, para garantir os defensores, necessidade de tratamento constitucional? E neste caso, em que consistiria o tratamento constitucional da Defensoria? Qual é o tipo de competência que ela quer? Privativa ou exclusiva das demais – porque é isso o que faz a Constituição, ela atribui a um órgão uma competência, concorrente ou exclusiva, mas ela, de certa maneira, exclui os demais. Ela fixa aquelas atribuições, fixa prerrogativas que são próprias, fixa sistemas de funcionamento, em geral, para evitar abusos, seja do exercício do próprio poder, seja de particulares. Então, a Constituição estabelece aquelas garantias que são fundamentais para o exercício da democracia. Mas, por exemplo, não há na Constituição um capítulo que disponha sobre o médico sanitarista, sobre o engenheiro de obras dos ministérios; sobre os geólogos, que são, também, profissões extremamente importantes.” Assembleia Nacional Constituinte (…), op. cit., p. 72.46 Vale lembrar que o estado de São Paulo instalou a Defensoria Pública apenas em 2006, e até a publicação deste artigo o estado de Santa Catarina ainda não instalou sua Defensoria Pública.47 Usaremos a expressão em inglês apenas para evitar a discrepância com outros textos, inclusive em português, relativos ao direito e desenvolvimento. De forma bem geral, e evitando enfrentar as polêmicas que cercam a expressão, podemos definir o rule of law como a estrutura institucional que permite a aplicação de leis previamente conhecidas e de modo isonômico e que evita o uso arbitrário de poder por parte do Estado.48 Esta divisão da histórica do direito e desenvolvimento em três “momentos” segue o modelo apresentado por David M. Trubek e Álvaro Santos (Introduction: the third moment in law and development theory and the emergence of a new critical practice. In: The New Law and Economic Development: A Critical Appraisal (org. David M. Trubek e Álvaro Santos). Cam-bridge: 2006, Cambridge University Press, p. 9).

a criação de um ambiente mais favorável ao desenvolvimento dos mercados. Dentro deste espectro, entende-se que o Poder Judiciário tem um bom funcionamento quando protege o direito de propriedade e dos contratos, reduz da instabilidade da política econômica e coíbe a expropriação pelo Estado, estimulando o investimento, a eficiência e o progresso tecnológico49 .

Contudo, percebeu-se que uma abordagem formalista do rule of law não era suficiente para a diminuição da pobreza, promoção da democracia e dos direitos humanos. Neste sentido, inicia-se uma segunda fase de reformas no rule of law, abrandando-se o formalismo e inserindo-se na agenda reformista certos temas até então ignorados, como a rejeição dos métodos de transplante de instituições conforme a noção simplista de “one-size fits all”, ênfase no contexto social e econômico local, consciência de que as reformas devem levar em conta um horizonte de longo prazo, reconhecimento da importância do rule of law para os segmentos mais pobres da população, com especial atenção à proteção social e redução de desigualdades, além de suporte a projetos que lidam com direitos trabalhistas, de gênero, proteção ambiental etc. E, neste contexto, a questão do acesso à Justiça também ganhou importância. A esse respeito, David M. Trubek e Álvaro Santos apontam que “como o judiciário está agora ligado à redução da pobreza e ao social, é importante garantir acesso à justiça aos necessitados”50 . Ou seja, integra-se definitivamente o acesso à Justiça ao âmbito socioeconômico 51.

No Brasil, a principal reforma do Poder Judiciário teve em sua agenda ideias ligadas tanto ao primeiro quanto ao segundo momento de reformas do rule of law. Assim, houve alterações ligadas à segurança jurídica, simplificação de procedimentos, respeito maior aos precedentes jurisprudenciais, bem como a ampliação do acesso à Justiça através da reestruturação da Defensoria Pública, estabelecimento da justiça itinerante, possibilidade de criação de varas especializadas em conflitos agrários etc. Em suma, a Reforma do Judiciário, consubstanciada em especial na Emenda Constitucional 45/2004, não confiou apenas em alterações institucionais voltadas ao mercado 52.49 PINHEIRO, Armando Castelar. Direito e economia num mundo globalizado: cooperação ou confronto? In: Direito & Economia (org. Luciano Benetti Timm). 2a. Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, pp. 41-45.50 Introduction: the third moment in law and development theory and the emergence of a new critical practice. In: The New Law and Economic Development: A Critical Appraisal (org. David M. Trubek e Álvaro Santos). Cambridge: Cambridge University Press, 2006, p. 9.51 Uma das críticas feitas pelo economista Douglass C. North ao terceiro mundo é o fato do cumprimento (enforce-ment) dos contratos ser demasiadamente caro, o que dificulta o desenvolvimento destes países. Ora, este raciocínio também às esferas mais marginalizadas da população que possuem um notório déficit econômico em razão da aludidade dificuldade nas esferas trabalhista, previdenciária, cível, bancária, consumerista etc. (NORTH, Douglass C. Institutions, Institutional Change and Economic Performance. Nova York: Cambridge University Press, 1990).52 Lembramos que o Documento Técnico nº 319, O setor judiciário na América Latina e no Caribe: elementos para

Page 14: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 2726

BR

ASI

L

BR

ASI

L

Aqui, nos importa principalmente a alteração institucional experimentada pela Defensoria Pública após a EC 45/2004. Em primeiro lugar, as Defensorias Públicas dos Estados conquistaram autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária (art. 134, § 2o., da CF)53 . Na esteira dessa conquista, houve o reconhecimento expresso da possibilidade de manejo de ação coletiva pela Defensoria Pública (Lei nº 11.448/2007). Por fim, a Lei Complementar nº 132/2009 promoveu significativas alterações na Lei Complementar nº 80/94, dentre as quais destacamos: i) reconhecimento explícito da possibilidade de atuação nas esferas extrajudicial e coletiva; ii) ênfase na mediação, conciliação e arbitragem, possibilitando a solução de conflitos fora do Poder Judiciário; iii) exercício da defesa de grupos sociais vulneráveis, extrapolando o caráter meramente econômico do conceito de hipossuficiência; iv) prestação de atendimento interdisciplinar; v) possibilidade de representação a organismos internacionais de proteção dos direitos humanos; vi) atuação junto ao sistema prisional (o que foi reforçado pela Lei nº 12.313/10).

Em síntese, as reformas ocorridas no âmbito da Defensoria Pública após a reforma do Poder Judiciário tornaram ainda mais efetivos aqueles ideais do movimento “acesso à Justiça”, integrando-os ao próprio rule of law, aqui encarado por um viés mais substantivo e não meramente institucional, e ao desenvolvimento econômico54 . Em um documento publicado em 2004, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) apontou que “a governança democrática é enfraquecida onde o acesso à justiça para todos os cidadãos (independentemente de gênero, raça, religião, idade, classe ou credo) está ausente. O acesso à justiça também está intimamente ligado à redução da pobreza, acesso a recursos básicos e voz na tomada de decisões. A falta de acesso à justiça limita a efetividade da diminuição da pobreza e programas de governança democrática ao limitar a participação, transparência e fiscalização”55 . E também outras instituições internacionais enfatizam a questão do acesso à Justiça, como é o caso do próprio Banco Mundial que mantêm um programa sobre o tema56 .

reforma, do Banco Mundial, o qual influenciou a Reforma do Judiciário no Brasil, tratou do acesso à Justiça juntamente com outras medidas voltadas ao mercado.53 Inexplicavelmente a Defensoria Pública da União não conquistou a autonomia.54 No próprio site da Secretaria de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça está dito que: “[o] acesso à Justiça é considerado um direito humano e um caminho para a redução da pobreza, por meio da promoção da equidade econômica e social.”55 UNDP. 2004. Access to Justice: practice note. http://www.undp.org/governance/docs/Justice_PN_English.pdf (aces-sado em 05/07/2011).56 http://www.worldbank.org/justiceforthepoor (acessado em 05/07/2011).

4. CONCLUSÃO

A garantia de assistência jurídica historicamente esteve presente em nosso ordenamento jurídico, tendo o Estado avocado para si, já na primeira metade do século XX, a condição de principal responsável pela prestação do serviço. Assim, percebe-se que a institucionalização da Defensoria Pública com a promulgação da Constituição de 1988 foi uma consequência de diversas opções feitas no decorrer de nossa história.

Contudo, em que pese a forma institucional para a prestação da assistência jurídica tenha se consolidado de forma gradual e sem grandes mudanças abruptas, observamos mudanças de paradigma quanto aos objetivos subjacentes à missão institucional dos órgãos incumbidos dessa garantia. Desse modo, a Defensoria Pública volta-se atualmente para a garantia ampla de acesso à Justiça aos grupos vulneráveis, o que compreende inclusive atuação extrajudicial e interdisciplinar, indicando uma mudança em relação ao paradigma da assistência judiciária, excessivamente ligado à solução individualizada de conflitos judicializados, embora esta feição ainda seja identificada como a única função da Defensoria Pública.

Neste sentido, para a efetiva consolidação de um paradigma assentado em uma abordagem da assistência jurídica que não se limita ao aspecto meramente jurídico, é imperiosa a adequada estruturação e organização da Defensoria Pública57 , bem como a criação de um cenário favorável para o surgimento de outros atores que fortaleçam o acesso à Justiça 58. Como aponta Roberto Gargarella, os países latino-americanos vivem um paradoxo: apesar de possuírem sistemas legais que incorporam diversos direitos sociais e econômicos, são ineficientes na garantia destes às camadas mais pobres da população59 . A questão ganha especial gravidade se levarmos em conta que o acesso à Justiça tende a ser ainda mais deficitário entre parcelas marginalizadas da população, como habitantes de periferias ou regiões pobres 60, mulheres vítimas de 57 De acordo com o III Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil, apenas 41,09% das comarcas são atendidas por defensores públicos. Todavia, há certos estados com baixo IDH cuja prestação de assistência jurídica é absolutamente precária: a título de exemplo, podemos apontar que em Alagoas o atendimento chega apenas a 21,05% das comarcas, enquanto no Ma-ranhão, esta cifra fica em 2,76%. O referido diagnóstico está disponível no site do Ministério da Justiça: http://portal.mj.gov.br/ (consultado em 26/09/2010).58 Em um trabalho que analisa as principais formas de assistência jurídica (mercado, estatal, filantrópica e autoajuda), Richard L. Abel aponta que, apesar do Estado ter que tomar a responsabilidade primária pela garantia, outros atores sociais também devem ser articulados para incrementar o serviço e garantir a “igualdade perante a lei”. Cf. State, Market, Philanthropy and Self-Help as Legal Services Delivery Mechanisms. Disponível em: http://www.law.stanford.edu/display/images/dynamic/events_media/State_Market_Philanthropy_Self-Help.pdf (acessado em 05/07/2011). A título de exemplo de limitação ao surgimento de outros atores, podemos citar a postura da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a qual impede a prestação de serviços jurídicos pro bono por advogados de Organizações Não Governamentais.59 GARGARELLA, Roberto. Too Far Removed from the People: Access to Justice for the Poor: The Case of Latin America. Centro de Estudios Internacionales, Universidad Torcuato Di Tella (UTDT), 2008.60 De acordo com o já citado III Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil, as regiões com o menor IDH são, justa-mente, aquelas com menor índice de atendimento por parte da Defensoria Pública.

Page 15: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 2928

BR

ASI

L

BR

ASI

L

violência doméstica, estrangeiros em situação irregular etc.

Portanto, a inserção da assistência jurídica no atual paradigma do acesso à Justiça contribui para levar a esses grupos vulneráveis toda uma gama de direitos formalmente estabelecidos, muitos deles ligados ao desenvolvimento socioeconômico, o que demonstra a importância e amplitude da missão institucional da Defensoria Pública e dos outros atores ligados à assistência jurídica neste novo cenário61.

Bibliografia

ABEL, Richard L. State, Market, Philanthropy and Self-Help as Legal Services Delivery Mechanisms. Disponível em: http://www.law.stanford.edu/display/ images/dynamic/events_media/State_Market_Philanthropy_Self-Help.pdf (con-sultado em 05/07/2011).

ALVES, Cleber Francisco. Justiça para Todos! Assistência Jurídica Gratuita nos Estados Unidos, na França e no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

BONAVIDES, Paulo e ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. 8ª Ed. Brasília: OAB Editora, 2006.

CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça (Trad. Ellen Gracie Northfleet). Porto Alegre: Sérgio Fábris, 1988.

CAPPELLETTI, Mauro. The Judicial Process in Comparative Perspective. Oxford: Oxford Press, 1989.

CASTRO, Araújo. A Nova Constituição Brasileira. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1935.

DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. V. I. 6a. Ed. São Paulo: Malheiros, 2009.

_______________________________. Nova Era do Processo Civil. 3a. Ed. São Paulo: Malheiros, 2009.

FRIEDMAN, Lawrence M. American Law: An Introduction. 2a. Ed. Nova York: Norton, 1998.

61 Ainda segundo Roberto Gargarella, a existência de uma lacuna entre os direitos constitucionalmente previstos e sua efetivação decorre de um distanciamento do Poder Judiciário e a população, o que exige a criação de novas ferramentas legais. E, como visto, a Defensoria Pública já conta com diversas novas ferramentas, como possibilidade de conciliação extrajudicial ou convocação de audiências públicas, as quais podem ser manejadas para a promoção de um efetivo acesso à Justiça.

GARGARELLA, Roberto. Too Far Removed from the People: Access to Justice for the Poor: The Case of Latin America. Centro de Estudios Internacionales, Universidad Torcuato Di Tella (UTDT), 2008.

GRINOVER, Ada Pellegrini. Assistência Judiciária e Acesso à Justiça. In: Novas Tendências do Direito Processual. Rio de Janeiro: Forense, 1990.

LIMA, Frederico Rodrigues Viana de. Defensoria Pública. Salvador: Ed. Juspodivm, 2010.

MENEZES, Felipe Caldas. Defensoria Pública da União: Princípios Institucionais, Garantias e Prerrogativas dos Membros e um Breve Retrato da Instituição. Disponível em: http://www.dpu.gov.br/pdf/artigos/artigo_principios_ institucionais_Felipe.pdf (consultado em 30/06/2011).

MORAES, Humberto Peña de; DA SILVA, José Fontenelle Teixeira. Assistência Judiciária: Sua Gênese, Sua História e a Função Protetiva do Estado. Rio de Janeiro: Liber Juris, 1984.

MOREIRA, José Carlos Barbosa. O Direito à Assistência Jurídica: Evolução no Ordenamento Brasileiro de Nosso Tempo. In: As Garantias do Cidadão na Justiça (org. Sálvio de Figueiredo Teixeira). São Paulo: Saraiva, 1993.

NORTH, Douglass C. Institutions, Institutional Change and Economic Performance. Nova York: Cambridge University Press, 1990.

ROCHA, Jorge Luís. História da Defensoria Pública e da Associação dos Defensores Públicos do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.

SCHUBSKY, Cássio. Advocacia Pública – apontamentos sobre a História da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo e Centro de Estudos da PGE/SP. 2008.

SKINNER, Quentin. Meaning and Understanding in History of Ideas. History and Theory, Vol. 8, No. 1 (1969), pp. 3-53.

TRUBEK, David M. e SANTOS, Álvaro (org.). The New Law and Economic Development: A Critical Appraisal. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.

UNDP (PNUD). 2004. Access to Justice: practice note. http://www.undp.org/governance/docs/Justice_PN_English.pdf (consultado em 05/07/2011).

WATANABE, Kazuo. Acesso à Justiça e sociedade moderna. In: Participação e Processo (org. Ada Pellegrini Grinover, Cândido Rangel Dinamarco e Kazuo Watanabe). São Paulo: RT, 1988.

Page 16: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 3130

BR

ASI

L

BR

ASI

L

ASSISTÊNCIA JURÍDICA E JUDICIÁRIA NO BRASIL –LEGITIMAçÃO, EFICÁCIA E DESAFIOS DO MODELO BRASILEIRO

por Daniel Cogoy

RESUMO

Palavras-chave: Assistência Judiciária Gratuita; Defensoria Pública;

Acesso à Justiça; Reforma administrativa.

O presente trabalho visa analisar os modelos de assistência judiciária gratuita adotados pelo Direito Brasileiro, quais sejam os prestados por meio de defensores públicos e advogados dativos, contextualizando-os com o paradigma de Estado Democrático de Direito.

Objetiva-se ainda analisar-se a prestação de tais serviços sob a ótica dos modelos burocrático e gerencial de prestação de serviço público, a fim que compreender qual o sistema que melhor pode se adequar aos ideais de eficiência e participação democrática colimados pelo Direito Administrativo contemporâneo.

Ao final, pretende-se atribuir especial ênfase à Defensoria Pública, enquanto principal instrumento de acesso à justiça dos hipossuficientes, propondo alternativas para modernização do modelo atualmente adotado em nosso país.

INTRODUçÃO

O presente estudo é apresentado como requisito para obtenção do grau de especialista junto à Universidade de Brasília. Visa o trabalho em tela o aprofundamento do debate jurídico acerca da assistência jurídica e judiciária gratuita prestada em nosso país, à luz do princípio constitucional da eficiência dos serviços públicos. O estudo terá por base a legislação vigente e os modelos ora em uso, à luz dos conceitos de modelo burocrático (weberiano) e gerencial de Administração Pública.

O estudo monográfico em tela pretende contextualizar tais modelos em face da Constituição Federal de 1988 e das mudanças introduzidas pela Emenda Constitucional 19/1998, que introduziu, na Administração Pública brasileira, o

sistema“gerencial” ou de “governança”. Em especial, visa-se debater o status atual da Defensoria Pública, principal fonte de acesso à justiça, em nosso país, para os economicamente hipossuficientes, e claramente calcada no modelo burocrático weberiano.

A seguir, com ênfase no modelo staff model – Defensoria Pública –, este será contextualizado perante os modelos burocrático e gerencial. Ao final, o trabalho busca oferecer sugestões para melhor adequação da Defensoria Pública aos princípios da eficiência e participação popular, em consonância com as exigências do paradigma constitucional vigente.

1. ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA NO BRASIL. FUNDAMENTAçÃO CONSTITUCIONAL.

Para que se possa falar sobre Assistência Judiciária Gratuita, primeiramente é necessário tecer considerações acerca de sua fundamentação constitucional. De fato, tem-se que o direito constitucional, ao longo de sua evolução, adotou diferentes paradigmas, sendo que, de acordo com o modelo adotado, também a concepção de assistência jurídica foi sendo modificada.

O primeiro paradigma constitucional é o de “Estado de Direito” ou “Estado Liberal”, adotado a partir das Constituições americana e francesa do século XVIII. Nesta concepção, cabe ao Estado o mínimo de intervenção na vida privada, garantindo-se aos cidadãos, dentre outros, os direitos de liberdade e propriedade. Neste momento, a idéia de assistência judiciária aos pobres não possuía assento constitucional. O trabalho, quando realizado, se dava de forma voluntária, eventual e gratuita, e sempre sem intervenção estatal.

Em sequência a esta concepção, vem a ser adotado o paradigma de “Estado Social” ou “Estado de Bem-estar Social”. Neste modelo, não mais cabe ao Estado a garantia apenas formal dos direitos, mas também a sua efetiva prestação. Desta forma, passa a ser responsabilidade do Poder Público assegurar aos seus cidadãos o acesso à saúde, educação e segurança, além de outros direitos tidos como fundamentais.

Neste contexto, começa-se a pensar a questão da assistência judiciária aos pobres, naquilo que CAPELETTI (1988) denominou de “Primeira Onda do Acesso à Justiça”. Logo, passa a ser exigido do Estado que garanta não apenas o direito formal

Page 17: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 3332

BR

ASI

L

BR

ASI

L

de acesso à justiça, mas também que o garanta materialmente.

Surgem, então, os primeiros modelos de Assistência Judiciária Gratuita, os quais, porém, não foram uniformemente adotados no Direito comparado. Desta forma, ora se fala apenas em gratuidade de justiça, cabendo ao Estado custear o processo aos que comprovarem insuficiência de recursos; ora em realização de convênios junto a advogados, para que estes, mediante remuneração, prestem assistência aos necessitados; por fim, alguns países optaram por criar instituições estatais cuja finalidade é a de garantir acesso aos economicamente hipossuficientes, denominadas, na América Latina, de Defensorias Públicas.

O conceito de Assistência Judiciária Gratuita, porém, sofreu as conseqüências de uma nova mudança de paradigma constitucional, com o advento do modelo de “Estado Democrático Social”, no qual há que se conceber o Estado dentro de uma realidade de solidariedade social, necessidade de proteção aos interesses difusos e coletivos, e respeito à complexidade de uma sociedade multifacetária.

É corolário deste novo paradigma que se identifique o atual fundamento constitucional da Assistência Judiciária Gratuita no art. 3.º da Constituição Federal de 1988, o qual assim prevê:

“Art. 3.º: Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e

regionais.”

Portanto, se de um lado o Estado trouxe para si o monopólio da jurisdição, podendo exercer poder de império que justifica inclusive a restrição de direitos individuais como os de liberdade e propriedade, de outro lhe cabe o dever de agir em prol da erradicação da pobreza, da marginalização e da redução de desigualdades sociais e regionais. Incumbe ao mesmo Estado acusador e expropriatório o dever de garantir, a todo cidadão, independentemente de sua classe social e poder aquisitivo, condições de obter orientação acerca de seus direitos (assistência jurídica) e meios de defendê-los em juízo (assistência judiciária).

É de se notar que, no paradigma do Estado Democrático de Direito, o próprio conceito de pobreza evoluiu em relação ao adotado pelos modelos anteriores. Assim, se em um primeiro momento concebia-se como pobre aquele que é desprovido de recursos econômicos, no paradigma atual paulatinamente os termos “pobre e pobreza” vêm sendo substituídos pelos conceitos de exclusão e vulnerabilidade social.

De fato, se bem observarmos, não há um consenso, entre os operadores do Direito, sobre o conceito de “pobre” ou “economicamente hipossuficiente”. Mesmo entre as Defensorias Públicas Estaduais e Federal não há uma uniformidade na conceituação de pobreza1, ora assim sendo definidos os que se enquadram nos critérios de isenção de imposto de renda, ora os que recebem até dois ou três salários mínimos nacionais.

ROCHA (2009), com acerto, define que pobre não é apenas o destituído de recursos financeiros, mas aquele que tem desrespeitados seus direitos fundamentais, como o acesso à saúde, educação e moradia. É pobre, e merece especial proteção do Estado, aquele desprovido de meios de fazer valer, efetivamente, o acesso aos mais básicos e elementares direitos2.

A se adotar este entendimento, pode-se afirmar que a Constituição Federal, em seu artigo 3º, ao mencionar a erradicação da pobreza, elege, como meio de assegurar a dignidade humana, a erradicação da violação dos direitos fundamentais. Logo, não é outro o fundamento do dever do Estado de garantir acesso à justiça aos cidadãos em situação de vulnerabilidade social, seja por meio da gratuidade de justiça, da atuação de advogados dativos, ou mesmo por intermédio das Defensorias Públicas.

Finalmente, há que se concluir que, dentro do modelo Estado Democrático de Direito, a idéia de Assistência Judiciária há de ser compreendida em sentido mais amplo que a mera defesa em juízo, no que CAPELETTI (1988) denominou de “segunda e terceira onda do acesso à justiça”, na qual, para além da tutela de direitos meramente individuais, há que se buscar a tutela de direitos difusos e coletivos, bem como a efetividade da prestação jurisdicional.

De fato, se bem observarmos o conteúdo dos art. 5º, LV, e 134, a Constituição Federal trata de assistência jurídica e judiciária, integral e gratuita. Ora, por assistência jurídica se compreende a orientação, ao interessado, acerca de seus direitos, e, mesmo, a educação para o exercício de direitos. Além disso, a assistência integral é aquela que abrange não apenas os direitos individuais, mas também os difusos e coletivos. E mais, deve-se conceber os socialmente vulneráveis não apenas individualmente, mas também como categoria social, de maneira a melhor garantir a defesa de seus direitos.

1 Ver o III Diagnóstico da Defensoria Pùblica no Brasil.2 Interessante ainda que ressaltar que há hipóteses em que a Defensoria Pública pode atuar a despeito dacondição econômica do assistido, como ocorre nas hipóteses de defesa na esfera criminal e curadoriaespecial. Nota-se, portanto, que o conceito de “necessitado” é bem mais abrangente que o de “desprovidode recursos econômicos”.

Page 18: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 3534

BR

ASI

L

BR

ASI

L

Além disso, é também fundamental que o acesso à justiça seja garantido de forma efetiva. Tal assertiva engloba idéias como o princípio da razoável duração do processo, mas, também, que o serviço de assistência judiciária gratuita seja prestado com qualidade e de forma eficiente. Também se exige dos órgãos públicos, e neles incluídos os responsáveis pela garantia do acesso à justiça, que prezem sua legitimidade perante a sociedade civil. Logo, tais instituições, mesmo quando organizadas de forma autônoma, devem possuir canais de interação com a população civil organizada, a fim de tornar possível não apenas o controle de sua atuação, mas também a delimitação, conjunta, de suas finalidades e objetivos.

2. MODELOS DE ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA: ADvOCACIA DATIvA. DEFENSORIA PÚBLICA. ADvOCACIA vOLUNTÁRIA.

O acesso à justiça aos necessitados é garantido, nos sistemas judiciários ocidentais, de diferentes maneiras, de acordo com a conveniência do poder constituído. Costuma-se agrupar os diferentes modelos em três grupos: o sistema judicare, o staff model e o misto.

O sistema judicare é bastante comum, sendo adotado em diversos países europeus, tais como França, Inglaterra, Holanda e Áustria. Neste sistema o patrocínio da defesa dos necessitados é garantido por meio de advogados remunerados pelo Estado, mas sem vínculo empregatício com o

Poder Público. Entende-se que, em razão de caber aos advogados o monopólio da representação em juízo dos particulares, não cabe à Administração Pública se imiscuir em tal seara. Outrossim, por se tratar de atividade privada, impõe-se ao Estado a devida contrapartida financeira aos prestadores deste serviço.

Finalmente, há países que adotam sistemas combinados, mesclando tanto o modelo judicare quanto o staff model.

No Brasil, a assistência judiciária aos pobres é garantida desde a Constituição Federal de 1934. Esta previa, em seu artigo 113, que cabia ao Estado prestar assistência judiciária aos necessitados. Apenas na Carta Magna de 1988, porém, em seu art. 134, foi criada a Defensoria Pública como instituição – no âmbito estadual e federal – com a finalidade de garantir a assistência jurídica integral e gratuita a todos os necessitados. Tem-se, porém, que o Brasil adota um sistema de acesso

à justiça misto, com a Defensoria Pública exercendo o papel de principal meio de acesso, utilizando-se, subsidiariamente, do sistema judicare, denominado advocacia dativa em nosso país.

No Brasil, preferencialmente, a Assistência Jurídica é prestada pelas Defensorias Públicas, nos termos do artigo 134 da Constituição Federal. A Defensoria Pública se encontra organizada em duas instituições: A Defensoria Pública da União (DPU) e as Defensorias Públicas dos Estados, Territórios e Distrito Federal (DPEs). A primeira tem atribuição para atuar nas Justiças Federal, Eleitoral, Militar e do Trabalho; a competência das DPEs é residual. Desse modo, as pessoas consideradas hipossuficientes, assim definidas aquelas que não possuem condições financeiras de arcar com os custos de contratação de advogado sem prejuízo do sustento, seu e de sua família, podem se socorrer de tais serviços.

Embora as Defensorias Públicas, enquanto instituições essenciais à administração da justiça, tenham adquirido tal status apenas a partir da Constituição Federal de 1988, o fato é que, a despeito de previsão constitucional, elas vêm sendo organizadas em nosso país há pelo menos cinqüenta anos. Como já antes asseverado, surgem como conseqüência da adoção do paradigma do Estado Social, que ocorreu em nosso país, por ocasião da edição da Constituição Federal de 1934, ao lado de diversos outros direitos, como acesso ao trabalho, saúde e educação.

Dessa forma, as Defensorias Públicas são criadas com a finalidade de garantir acesso à justiça aos cidadãos necessitados. Primeiramente, na esfera criminal, visando garantir o direito de defesa e contraditório aos acusados em geral, especialmente aos pobres. E, mais recentemente, ampliando sua esfera de atuação, a fim de atingir também a esfera cível, com ênfase na tutela de direitos de família e direitos possessórios, para, há pouco tempo, abranger outras áreas, como a defesa do consumidor e mesmo a tutela de direitos difusos e coletivos.

4. ACESSO à JUSTIçA E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO.

Modelos burocrático e gerencial.

Conforme já asseverado linhas acima, a necessidade de prestação, por parte do Estado, de serviços que garantam o acesso à justiça aos hipossuficientes apenas surge no momento histórico em que se vivenciava, na sociedade ocidental, o

Page 19: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 3736

BR

ASI

L

BR

ASI

L

paradigma constitucional do Estado Social. Logo, não é de se estranhar que boa parte dos países ocidentais tenha adotado o modelo de staff model, o qual se ajusta, com precisão, ao modelo burocrático, conforme descrito por Max Weber.

WEBER (2000)3 indicava como forma de dominação da sociedade o caráter racional, assim definido como “baseado na crença da na legitimidade das ordens estatuídas e do direito de mando daqueles que, em virtude dessas ordens, estão nomeados para exercer a dominação (dominação legal)”. Segundo o referido autor, esta dominação legal se baseia nas seguintes idéias: a) todo direito pode ser estatuído de forma racional; b) todo direito é abstrato; c) as ordens do superior obedecem à ordem impessoal que orienta suas disposições; d) quem obedece o faz ao direito, e não ao seu superior; e) em razão disso, os membros da associação apenas estão obrigados a obedecer as ordens que se enquadrem dentro de sua competência objetiva; f) a existência de uma hierarquia oficial, isto é, a existência de instâncias fixas de revisão e supervisão; g) separação absoluta entre os quadros administrativos e os meios de administração e produção; h) inexistência de apropriação do cargo pelo detentor; i) aplica-se o princípio da documentação dos processos administrativos.

Ainda de acordo com WEBER (2009), seria próprio do quadro administrativo burocrático o fato de serem os servidores pessoalmente livres, nomeados com competência funcional fixa, salário determinado, que exercem seu cargo como atividade principal, com perspectiva de progressão funcional, trabalhando em separação absoluta dos meios de produção e estando submetidos a um sistema rigoroso de disciplina e controle do serviço. Segundo Weber, a dominação burocrática significa dominar por meio do conhecimento.

Seriam conseqüências da dominação burocrática o nivelamento, a plutocratização e a impessoalidade. Além disso, tal sistema faria com que os servidores executassem sua função por meio de formalismos, exercendo seus cargos de forma materialmente utilitarista.

Como forma de reação a este modelo – o burocrático – surge o modelo de governança ou gerencial. Nas palavras de MEDAUAR (2009)4:

A importância da Administração se revela pelo tratamento amplo que hoje recebe nas Constituições, inclusive a brasileira. Revela-se, ainda, pela preocupação, quase universal, em modernizá-la, para que tenha eficiência, atue sem corrupção, não desperdice recursos públicos e respeite o indíviduo, tratando-o como cidadão,

3 WEBER, Max. Economia e Sociedade, volume I. Brasília: Editora UnB. 2000.4 MEDAUAR, Odete. Pag 32. Direito Administrativo Moderno, 13.a edição, Revista dos Tribunais, SãoPaulo, 2009.

portador de direitos, não como súdito que recebe favor. A tentativa de modernizar a Administração muitas vezes se expressa em propostas de reforma administrativa, que em geral, permanecem na condição de promessa de campanha ou se limitam a extinguir órgãos, com dispensa de servidores. O tema da reforma administrativa, então, vem sendo reiterado também no Brasil, o que se mostra necessário até que medidas efetivas propiciem melhoria contínua e crescente no funcionamento da Administração.

Algumas idéias de fundo devem nortear a reforma administrativa: Administração do serviço público; Administração eficiente, ágil rápida para atender adequadamente às necessidades da população, o que facilitará o combate à corrupção; economicidade e Administração de resultados; predomínio da publicidade sobre o segredo.

Um dos pontos fundamentais do sistema gerencial é a idéia de eficiência dos serviços públicos. No Brasil, tal medida foi introduzida por meio da EC 19/98, a qual incluiu a eficiência entre os princípios da Administração Pública, elencados no art. 37 da CF. Por meio de tal comando, exige-se do Estado que aja de forma rápida e com rendimento, alcançando os objetivos traçados pela sociedade. Além disso, o modelo gerencial ou de governança também implica em que o Estado delegue a particulares o exercício de funções públicas, mantendo para si, porém, a atividade de regulação e fiscalização do prestação das mesmas.

Tendo em vista o acima exposto, tem-se por necessário o aprofundamento do debate jurídico acerca da assistência jurídica e judiciária gratuita prestada em nosso país, à luz do princípio constitucional da eficiência dos serviços públicos. Tal estudo deve ter por base a legislação vigente e os modelos ora em uso, à luz dos conceitos de modelo burocrático (weberiano) e gerencial de Administração Pública. À primeira vista, os modelos de advocacia dativa e pro bono, nos moldes ora vigentes, têm enquadramento no modelo gerencial, enquanto que a Defensoria Pública pode ser classificada dentro do sistema weberiano.

Entretanto, resta perquirir se, de fato, os modelos adotados para prestação de assistência jurídica e judiciária em vigência no nosso país obedecem a critérios mínimos de economicidade, eficiência e transparência, possibilitando, inclusive, a participação da sociedade e do terceiro setor.

Ora, outra não é a realidade das Defensorias Públicas, notadamente no sistema brasileiro, que não sua adequação ao modelo burocrático. Os defensores públicos são necessariamente bacharéis em Direito, ingressando na carreira por meio de concurso público. Aos mesmos são garantidas inamovibilidade e independência funcional, havendo, ainda, hipóteses de progressão na carreira por antiguidade e

Page 20: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 3938

BR

ASI

L

BR

ASI

L

merecimento.

Ocorre que, dentro de tal modelo, como bem asseverado por Weber, verifica-se uma situação de dominação, ou seja, o cidadão que busca tais serviços o faz na condição de cliente, de dominado, de subserviente.

Além disso, como já asseverado, os defensores públicos estão expostos aos efeitos negativos do modelo burocrático, em especial o formalismo e a execução meramente utilitarista. Tal se revela uma contradição em si mesma, haja vista que, justo por parte da Defensoria Pública, se espera um papel importante na emancipação dos marginalizados. Quando a Defensoria, entretanto, se revela instrumento de dominação racional, compromete-se toda a sua função constitucional.

Necessário dar destaque, em tal debate, ao papel institucional da Defensoria Pública, haja vista ser ela, ainda hoje, a principal prestadora de assistência jurídica e judiciária, e em razão de se encontrar em franca fase de expansão, consolidação e ampliação de suas funções. Tais assertivas restam evidentes, ante as recentes alterações legislativas que concederam autonomia orçamentária e financeira às Defensorias Públicas dos estados, bem como garantiu, aos defensores públicos, legitimidade para a proposição de ações coletivas. Além disso, o Congresso Nacional recentemente aprovou projeto de alteração da Lei Complementar n.º 80/94, o qual ampliou, em muito, não apenas as prerrogativas dos defensores públicos, mas também sua área de atuação.

Enfim, cabe lançar luz sobre algumas questões, tais como: a) Qual o modelo ideal, para nosso país, de assistência jurídica e judiciária gratuita? b) Os modelos existentes atendem às necessidades do paradigma de Estado Democrático de Direito, possibilitando a participação da sociedade na definição de suas prioridades? c) Os modelos existentes são eficientes, econômicos e transparentes? Caso a resposta aos questionamentos propostos seja negativa, como melhorar tal atuação, ou, ainda, que instrumentos vêm sendo utilizados, no âmbito da Administração Pública, para promover a melhoria na prestação de tais serviços?

Nesse diapasão, um dos objetivos do presente trabalho é determinar como pode a Defensoria Pública, enquanto instituição essencial à administração da justiça, e alicerçada no modelo burocrático, superar estas limitações e modernizar-se, de modo a se adequar aos paradigmas constitucionais contemporâneos, enquanto instituição pautada pela idéia de eficiência e aberta à participação popular. Ou se, de outro

lado, resta mais adequado ao modelo gerencial que a Administração Pública delegue tais atividades a particulares, cabendo-lhe tão somente a fiscalização e cobrança de resultados.

5. A DEFENSORIA PÚBLICA E O MODELO GERENCIAL DE ADMINISTRAçÃO. LEGITIMAçÃO, EFICÁCIA E DESAFIOS DO

MODELO BRASILEIRO.

Primeiramente, é preciso argüir se, de fato, o sistema judicare seria o mais adequado à realidade brasileira, levando-se em conta o paradigma de Estado Democrático Social e o modelo gerencial.

As principais vantagens deste sistema seriam o baixo custo para os cofres públicos, além da capilaridade, haja vista ser possível, desta maneira, garantir-se acesso ao Judiciário inclusive em pequenas localidades, já que não há comarca onde não existam advogados. Por outro lado, tem-se que, em seu desfavor, estaria a circunstância de que as causas acabam por ser tratadas sempre de forma individual. Desta forma, não são levadas ao Judiciário as demandas que representem interesses de classe, bem como não há que se falar em defesa de interesses difusos e coletivos comuns aos necessitados. Como a prestação do serviço, nestes sistemas, não se dá de forma orgânica, também se peca por uma ênfase, principalmente à atuação na área judiciária/processual, omitindo-se a importante tarefa de serem trabalhadas questões referentes à prevenção à violação de direitos, educação e orientação jurídica.

Quer parecer, pois, que tais limitações são insuperáveis, ainda que o Estado buscasse, para si, a gestão de tal sistema.

O modelo mais adequado ao contexto brasileiro parece ser mesmo o staff model, consubstanciado, em nosso país, na figura das defensorias públicas. Na hipótese, a defesa dos hipossuficientes ocorre por meio de advogados remunerados pelo Estado, e a este vinculados como seus servidores. CAPELETTI (1988) afirma que não são poucas as vantagens de tal sistema:

As vantagens dessa sistemática sobre o judicare são óbvias. Ela ataca outras barreiras ao acesso individual, além dos custos, particularmente os problemas derivados da desinformação jurídica pessoal dos pobres. Ademais, ela pode apoiar os interesses difusos ou de classe dos pobres. Esses escritórios, que reúnem advogados numa equipe, podem assegurar-se as vantagens dos litigantes organizacionais, adquirindo conhecimento e experiência dos problemas típicos dos pobres. Advogados particulares, encarregados apenas de atender indivíduos,

Page 21: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 4140

BR

ASI

L

BR

ASI

L

geralmente não são capazes de assegurar estas vantagens. Em suma: além de apenas encaminhar as demandas individuais dos pobres que são trazidas aos advogados, tal como no sistema judicare, esse modelo norte-americano: 1) Vai em direção aos pobres para auxiliá-los a reivindicar seus direitos e 2) cria uma

categoria de advogados eficientes para atuar pelos pobres, enquanto classe.

Por outro lado, tal modelo também apresenta desvantagens. Em primeiro lugar, não raro, é comum dar-se prioridade às causas de interesse preponderantemente coletivo em detrimento das demandas individuais. Em verdade, raramente os beneficiários deste sistema têm, de fato, um atendimento personalizado. Aponta-se ainda como vício de tal sistema a excessiva dependência estatal. Tal circunstância ora inibe as demandas dos escritórios em face dos órgãos estatais, ora é obstáculo a que se realizem os necessários investimentos para implementação e adequação dos escritórios às necessidades para atendimento à demanda. Além disso, o staff model é apontado como mais dispendioso para o Estado, embora tal assertiva nem sempre seja comprovada na prática. Finalmente, em uma sociedade pós-moderna, onde a cada momento surgem novos direitos a exigirem a tutela do Poder Judiciário, a demanda por advogados públicos é sempre crescente. Logo, é bastante difícil se garantir, apenas por meio do Estado, o acesso amplo e irrestrito à assistência jurídica integral e gratuita a todos quanto dela necessitem. Tal medida demanda não apenas contínuos investimentos, mas também o constante acréscimo nos quadros responsáveis por tal atividade.

Outro ponto negativo decorre da circunstância de que as Defensorias Públicas foram concebidas de acordo com o modelo burocrático ou weberiano, nos termos acima descritos. Os defensores públicos são empossados a partir de aprovação em concurso de provas e títulos; detém conhecimento específico (jurídico); possuem prerrogativas como inamovibilidade, estabilidade e independência funcional; e desempenham sua atividade fim dentro dos estritos limites da legalidade. Isto significa que a atividade deles, tal qual concebida, não está adstrita a nenhum critério de eficiência e adequação aos anseios da população. Ao defensor basta exercer seu mister, de forma livre, não lhe sendo cobrada a obtenção de resultados. Bastaatender às pessoas que não preenchem os requisitos de hipossuficiência – e a eles garanta a devida assistência – para que se considere que exerceu bem sua função pública. Não se lhe é perquirido se agiu ou não de forma eficiente, se a defesa apresentada foi ou não de boa qualidade e se o atendimento prestado foi ou não ágil e eficaz.

A função exercida pelas Defensorias Públicas, hoje, porém, já não é mais

livre de críticas. Em parte, a limitação dos serviços oferecidos não pode ser imputada aos defensores públicos, haja vista ser patente a insuficiência de seus quadros ante a crescente demanda por atendimentos. Tal circunstância tem feito aflorar o debate acerca de qual o melhor meio a ser utilizado para prestação de assistência jurídica e judiciária aos necessitados, fazendo reabrir o debate sobre a utilização do sistema judicare em nosso país.

De fato, o próprio Conselho Nacional de Justiça, por meio de projetos que envolvem a chamada “advocacia voluntária”, vem buscando suprir as deficiências de atendimento da Defensoria Pública. Além disso, há estados da Federação que resistem em adotar e fornecer meios de atuação às DPs, sob o argumento de que tais serviços seriam ineficientes.

Em realidade, não é difícil constatar que o modelo burocrático, por si só, se mostra inadequado à prestação de assistência judiciária gratuita. Ora, como restou afirmado no início deste trabalho, tem-se que o papel das instituições responsáveis por garantir o acesso à justiça é de contribuir para a erradicação da pobreza e diminuição das desigualdades sociais. Outrossim, ao se adotar o sistema weberiano, a instituição que deveria ser responsável em emancipar os excluídos acaba por se converter em opressora. Ora, trata-se de hipótese de dominação racional, o que se agrava em se tratando do público alvo. Quando se fala em Defensoria Pública, tem-se, de um lado, um corpo de funcionários extremamente qualificado e detentor de um conhecimento específico – o conhecimento jurídico. E, de outro, um público a ser atendido, carente não apenas de recursos materiais, mas principalmente de instrução. O assistido – aquele que depende do serviço das DPs e de outras formas de assistência jurídica – possui sempre um perfil não apenas de pobre, mas notadamente de pouca instrução. Logo, qualquer que seja o serviço que lhe seja prestado, não saberá aferir sua qualidade, em razão do total desconhecimento quanto a seus direitos. Sua relação com quem lhe presta assistência será então, tal qual bem qualificado por Weber, de submissão.

Este quadro, por certo, não atende às finalidades sociais e funções constitucionalmente atribuídas aos órgãos de assistência jurídica, notadamente as Defensorias Públicas. Logo, cabe aos órgãos de assistência judiciária se adequarem à realidade de reforma administrativa e paradigma de Estado Democrático de Direito, buscando abrir espaço à aplicação do princípio da eficiência e participação da sociedade civil na determinação dos objetivos institucionais a serem perseguidos. É necessário, pois, atualizar a idéia de acesso à justiça. E tal atualização, de acordo com este estudo,

Page 22: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 4342

BR

ASI

L

BR

ASI

L

perpassa pelos seguintes pontos:

a) Educação para os direitos;

Quando se fala em “Educação para os Direitos”, deve-se ter em mente, primeiramente, que o comando constitucional previsto no art. 5.º, LXXV, da CF, determina que a assistência aos hipossuficientes implica em assistência jurídica e judiciária. Tradicionalmente se compreende a primeira como orientação a respeito de direitos, enquanto que a segunda significa o auxílio a ser prestado em todas as fases do processo judicial.

Logo, é função institucional das Defensorias Públicas orientar as pessoas a respeito de seus direitos. Ora, segundo Weber, um dos principais aspectos da dominação racional é justamente a circunstância de que o possuidor do conhecimento se impõe sobre aquele que não o detém. Logo, é possível que se atenue a submissão dos “assistidos” aos seus defensores se estes puderem partilhar seu conhecimento técnico junto aos seus destinatários, e não apenas lhes impor sua superioridade. É de se notar que, quanto mais esclarecido o destinatário do serviço, menor será sua condição de submissão em relação ao prestador da função pública.

É papel da Defensoria Pública5 orientar os usuários de seus serviços com relação aos direitos que possuem não apenas em face de terceiros e do Estado, mas também – e fundamentalmente – perante a própria Defensoria. Se assim não for, a prestação de assistência judiciária poderá a ser interpretada como apenas mais um “favor” estatal, e não como um dever do Estado e uma função pública que deve ser exercida em conformidade não apenas com o princípio da legalidade, mas também com eficiência, publicidade e economicidade.

Neste diapasão, é impossível deixar de se citar as recentes inovações trazidas pela Lei Complementar n.º 132/2009, que alterou a LC n.º 80/94. Por meio da mesma, resta evidente a necessidade de se divulgar e promover, junto aos hipossuficientes, o conhecimento de seus direitos e garantias. Leia-se:

Art. 3º-A. São objetivos da Defensoria Pública: (Incluído pela

Lei Complementar nº 132, de 2009).

5 A Defensoria Pública da União, a título de exemplo, mantém interessantes projetos com a finalidade deEducação para os direitos, dentre os quais o DPU Itinerante, DPU nas Escolas e DPU na comunidade.Entretanto, tais políticas dependem ainda, em muito de iniciativas, não raro isoladas, de membros dainstituição, não se revelando ainda como uma prática tida como indispensável ao cumprimento de suasfunções institucionais.

I – a primazia da dignidade da pessoa humana e a redução das desigualdades sociais; (Incluído pela Lei Complementar nº 132, de 2009).

II – a afirmação do Estado Democrático de Direito;

(Incluído pela Lei Complementar nº 132, de 2009).

III – a prevalência e efetividade dos direitos humanos; e

(Incluído pela Lei Complementar nº 132, de 2009).

IV – a garantia dos princípios constitucionais da ampla defesa e

do contraditório. (Incluído pela Lei Complementar nº 132, de 2009).

Art. 4º São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre

outras:

I – prestar orientação jurídica e exercer a defesa dos necessitados, em todos os graus; (Redação dada pela Lei Complementar nº 132, de 2009).

III – promover a difusão e a conscientização dos direitos humanos, da cidadania e do ordenamento jurídico; (Redação dada pela Lei Complementar nº 132, de 2009). (sem grifo no original).

b) Estabelecimento de critérios de eficiência na atuação das Defensorias Públicas;

Como já anteriormente afirmado, uma das principais inovações no Direito Administrativo moderno é a inserção do princípio da eficiência dentre os fundamentos da Administração Pública. Não se trata de substituir-se a legalidade pela eficiência, mas sim de conjugar ambas as idéias. Portanto, ao servidor não mais basta apenas agir em conformidade com a lei, mas sim prestar um serviço de qualidade, com a agilidade que dele se espera.

Não é esta, em muitos casos, a realidade dos serviços prestados pelas Defensorias Públicas. Em geral há demora na prestação do serviço, longas filas e mesmo a limitação do atendimento mediante a distribuição de fichas. O serviço prestado, não raro, é massificado, não sendo dada a devida atenção às peculiaridades dos casos apresentados. Carecem ainda os órgãos de prestação de assistência judiciária de pesquisas que apontem critérios seguros de aferição da qualidade dos serviços prestados pelos defensores públicos. Os padrões até o momento utilizados se atêm tão somente a critérios quantitativos (quantidade de atendimentos realizados), sem que haja um debate acerca da eficiência e qualidade das medidas judiciais – e mesmo preventivas e conciliatórias – adotadas.

Page 23: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 4544

BR

ASI

L

BR

ASI

L

As recentes inovações trazidas pela Lei Complementar n.º 132/2009, que alterou a LC n.º 80/94, deixam bem evidente a necessidade de divulgação de conhecimento jurídico aos hipossuficientes. Leia-se:

Art. 4º-A. São direitos dos assistidos da Defensoria Pública, além daqueles previstos na legislação estadual ou em atos normativos internos: (Incluído pela Lei Complementar nº 132, de 2009).

I – a informação sobre: (Incluído pela Lei Complementar nº 132, de 2009).

a) localização e horário de funcionamento dos órgãos da Defensoria Pública; (Incluído pela Lei Complementar nº 132, de 2009).

b) a tramitação dos processos e os procedimentos para a realização de exames, perícias e outras providências necessárias à defesa de seus interesses; (Incluído pela Lei Complementar nº 132, de 2009).

II – a qualidade e a eficiência do atendimento; (Incluído pela

Lei Complementar nº 132, de 2009).

III – o direito de ter sua pretensão revista no caso de recusa de atuação pelo Defensor Público; (Incluído pela Lei Complementar nº 132, de 2009).

IV – o patrocínio de seus direitos e interesses pelo defensor natural; (Incluído pela Lei Complementar nº 132, de 2009).

V – a atuação de Defensores Públicos distintos, quando verificada a existência de interesses antagônicos ou colidentes entre destinatários de suas funções. (Incluído pela Lei Complementar nº 132, de 2009).

Necessário, pois, sejam fortalecidos os órgãos de controle interno – in casu, as Corregedorias – e mesmo, ante a recente autonomia orçamentária/administrativa atribuída às DPEs, a necessidade de criação de órgãos de controle externo, nos moldes dos Conselhos Nacionais de Justiça e do Ministério Público.

c) Fortalecimento dos meios de interação entre asDefensorias Públicas e a sociedade civil organizada.

Argemiro Martins, citando Claus Offe, narra que, no Direito Administrativo moderno, seriam três os critérios para aferição da legitimidade dos serviços prestados: o critério racional/legal, o de eficiência e o de consenso político. O primeiro, alicerçado no modelo burocrático, como já anteriormente analisado, tem-se revelado, historicamente, insuficiente. O segundo, baseado na idéia de eficiência, tem seu alicerce no modelo gerencial e de governança. Ocorre que ambos podem se revelar falhos, na medida em que os resultados a serem almejados pelo serviço público reflita, ou não, os verdadeiros anseios da coletividade. Por esta razão, tem

se defendido, crescentemente, o incremento da participação popular na definição das prioridades da Administração Pública. Desta feita, a sociedade participaria da Administração não apenas no momento do voto, mas também de todo o processo de execução das atividades públicas, e, fundamentalmente, na definição dos resultados a serem obtidos, bem como nos critérios de eficiência a serem estabelecidos.

Tal medida vem ao encontro das necessidades de modernização da Assistência Judiciária prestada em nosso país, haja vista que os responsáveis pela prestação de tais serviços sequer são eleitos, mas sim egressos de aprovação em concurso público. Logo, os fins a serem perseguidos e alcançados por meio do exercício de tal atividade pública não podem ser fruto, apenas, da vontade dos defensores públicos, devendo ser estabelecidos, se não pela sociedade – o que se revela inviável –, ao menos com a participação desta.

Neste sentido o ensinamento de MEDAUAR (2009):

Como resultado do processo que se acentua na segunda metade do século XX, o Estado mostra hoje configuração diversa da acima descrita. O estado passou a ter atuação de profundas conseqüências nos setores econômicos e sociais da coletividade. A atuação no âmbito econômico deixou de ser algo externo e estranho e passou a integrar o rol de funções do Estado, mesmo mantendo-se o princípio da iniciativa privada. Ampliaram-se também as funções sociais e assistenciais. Com isso a máquina administrativa cresceu em quantidade e complexidade. Floresceram inúmeras entidades e associações privadas, que exercem contínua pressão sobre os poderes estatais na busca de realização dos interesses que defendem. Tais transformações no modo de atuar do Estado e na estrutura da sociedade acarretam a atenuação da distância entre Estado e sociedade, agora vinculados e condicionados por número crescente de inter-relações. Em decorrência, a Administração vê-se obrigada a olhar para fora de si mesma, relacionando-se de modo mais intenso com o entorno social.

Esta tendência já se revela presente na recente Lei Complementar n.º 132 de 2009, a qual instituiu, como meios de interação entre a sociedade e as Defensorias Públicas, os instrumentos das audiências públicas6 e, ainda a Ouvidoria. Infelizmente, no que tange a este último instrumento, restou criado apenas com relação às Defensorias Estaduais. Outra iniciativa digna de nota, no âmbito da Defensoria Pública da União, foi a criação das Câmaras de Coordenação, nas áreas previdenciária, cível, penal e de tutela coletiva e direitos humanos.

Inicialmente tal órgão tinha a função apenas de revisar o atendimento prestado pelos defensores públicos, a fim de elidir hipóteses de arquivamento indevido.

6 Art. 4º São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras XXII – convocar audiênciaspúblicas para discutir matérias relacionadas às suas funções institucionais. (Incluído pela LeiComplementar nº 132, de 2009).

Page 24: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 4746

BR

ASI

L

BR

ASI

L

Outrossim, recentemente, tal órgão teve suas funções ampliadas a fim de aproximar a DPU da sociedade civil organizada, criando canais de interação.

6. CONSIDERAçõES FINAIS

Como bem se observa a partir do estudo ora proposto, o Estado brasileiro adotou, no que tange à prestação de assistência jurídica e judiciária gratuita aos economicamente hipossuficientes, um modelo misto, combinando os sistemas judicare (advocacia dativa) e staff model (Defensoria Pública).

Tem-se, porém, que o melhor sistema, dentre os apresentados, é o de Defensoria Pública, haja vista a melhor qualificação e amplitude dos serviços prestados, com ênfase na possibilidade de atuação, deste órgão na orientação jurídica, visando a prevenção de conflitos, o que não é possível por meio da advocacia dativa.

Outrossim, a Defensoria Pública, no Brasil, ainda precisa superar as limitações do modelo burocrático, nos termos descritos por Max Weber, e buscar uma maior modernização, adequando-se, desta forma, ao paradigma de Estado Democrático de Direito.

Logo, é necessário que a Defensoria Pública busque se adequar aos ideais de eficiência e interação democrática, tão caros ao Direito Administrativo moderno. Para tanto, cabe à instituição investir na educação para os direitos, adotar critérios de eficiência na prestação de seus serviços e, ainda, reforçar os canais de interação com a sociedade civil organizada.

Não se pode mais compreender-se a Assistência Judiciária em nosso país sob o estrito critério da legalidade, em que a Defensoria Pública cumpre seu papel apenas por prestar orientação jurídica e judiciária aos economicamente pobres, sem que a sociedade participe de qualquer das etapas da prestação deste serviço.

A Defensoria Pública deve ser vista como um instrumento de emancipação dos socialmente vulneráveis, exercendo papel fundamental no acesso desta população aos seus direitos fundamentais. Para tanto, faz-se necessário que exerça suas atividades sobre critérios de eficiência e qualidade na prestação de seus serviços, não mais sendo admitidas a demora injustificada no atendimento, as longas filas, a distribuição de fichas e mesmo a restrição de atuação em áreas nas quais sua atuação se faz premente.

Também se espera das Defensorias Públicas que abram espaço à

fiscalização e participação da sociedade no exercício de sua atividade. As DPs devem se pautar pela transparência na execução de seus serviços e de seu planejamento. É fundamental, ainda, que seja buscada uma maior aproximação com a sociedade civil organizada (associações de moradores, entidades de classe, mutuários e ONGs) seja pelo diálogo, seja por meio de audiências públicas, a fim de ampliar a participação democrática dentro da instituição, definindo-se, em conjunto com a população, quais as metas a serem atingidas pelas Defensorias Públicas.

Apenas desta forma, estarão as Defensorias Públicas efetivamente cumprindo seu papel social de tutela dos direitos humanos e de erradicação da pobreza e das desigualdades sociais.

Referências:

AGUIAR, Jean Menezes de. Considerações Acerca do Defensor Público como Agente Político do Estado – A vez de todos. Revista de Direito da Defensoria Pública X/173-180.

ALVES, Cleber Francisco; PIMENTA, Marilia Gonçalves. Acesso à Justiça: em preto e branco: Retratos Institucionais da Defensoria Pública. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.

CAPPELLETI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988.

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre a facticidade e a validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v. 1.

MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira. A noção de Administração Pública e os critérios de sua atuação. Obtida via internet, www.cead.unb.br/agu, em 30/04/09.

MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 13.a ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.

MENEZES, Felipe Caldas. Defensoria Pública da União: Princípios

Page 25: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 49

GU

INÉ

BIS

SAU

BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 201248

BR

ASI

L

Institucionais, Garantias e Prerrogativas dos Membros e um Breve Retrato da Instituição. Obtida via internet, www.dpu.gov.br, em 28/08/09.

MORAES, Humberto Peña de, A Assistência Judiciária Pública e os mecanismos de acesso à Justiça, no Estado Democrático. Revista de Direito da Defensoria Pública II/70-89.

MOREIRA, José Carlos Barbosa. “O direito à assistência jurídica”. Revista de Direito da Defensoria Pública V/123-137.

NETO, Diogo Figueiredo Moreira. A Defensoria Pública na Construção do Estado de Justiça. Revista de Direito da Defensoria Pública VII/15-39.

OFFE, Claus. Critérios de racionalidade e problemas funcionais da ação político-administrativa. In: ______. Problemas estruturais do Estado Capitalista. Tradução de Bárbara Freitag. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1984. p. 216-233.

PIMENTA, Marilia Gonçalves; ALVES, Cleber Francisco. Acesso à Justiça: em preto e branco: Retratos Institucionais da Defensoria Pública. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.

ROCHA, Amélia Soares. “Defensoria Pública Brasileira. Realidades e Perspectivas”. Advocacia de Estado e Defensoria Pública. Letra da Lei, 2009.

SILVA, José Fontenelle Teixeira da. Advocacia Privada e Advocacia Estatutária – Uma Nova Proposta de Classificação das Atividades Privativas da Advocacia. Revista de Direito da Associação dos Defensores Públicos do Estado do Rio de Janeiro II/173-187.

SOARES, Fábio Costa. Acesso do Hipossuficiente à Justiça. A

Defensoria e a Tutela dos Interesses Coletivos Lato Sensu dos Necessitados. Acesso à Justiça. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 69-107.

SOUZA, Francisco Bastos Viana de. O Defensor Público como Agente Político do Estado. Revista de Direito da Defensoria Pública XI/49-52.

WEBER, Max. Economia e Sociedade, volume I. Brasília: Editora UnB. 2000.

ACESSO AO DIREITO E à JUSTIçA NA GUINé-BISSAU

Juliano Algusto Fernandes

Introdução

Sem recuarmos ao período coberto pela luta armada de libertação nacional (1963-1974) durante o qual vigorava, nas zonas do território da então Guiné Portuguesa, controladas pelo PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde/Movimento de Libertação ) – as chamadas regiões libertadas – a justiça popular, ministrada pelas estruturas especificas do partido, denominadas tribunais populares e em que os Comissários Políticos assumiam papel de relevo, no âmbito do principio de centralismo democrático, vamos nos deter, neste nosso artigo, naquilo que têm sido os pilares do acesso das populações ao direito e à justiça a partir da década de noventa.

Desde os primórdios dos anos oitenta e, com maior acentuação, nos anos noventa, o Governo, forjado nos ideais democráticos de promoção da cidadania substanciado na liberdade de associação, reunião, manifestação e de expressão política, de um lado, e do acesso ao direito e à justiça, entendido, este ultimo, como sendo sinônimo de aproximação da justiça aos cidadãos, por outro lado, extinguiu a justiça popular (os tribunais e advocacia popular).

Em seu lugar, nasceu a justiça clássica de juízes independentes, ordens e organizações judiciárias independentes, gestão e disciplina autônomas das magistraturas judicial e do Ministério Publico, bem como a Ordem dos Advogados, regida pelo direito privado e com estatuto de serviço e utilidade públicos.

Foram, igualmente, criados os tribunais de pequenas causas, denominados tribunais de sector localizados mais perto de aglomerados populacionais e conhecendo e julgando litígios, segundo a equidade e os usos e costumes locais não contrários à lei, com dispensa de assistência e patrocínio judiciário de advogados.

Isso, na justa medida em que a maioria esmagadora da população não tinha condições, nem possibilidades econômicas de aceder aos tribunais, as mais das vezes situados a distâncias consideráveis dos seus locais de residência e havia

Page 26: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 5150

GU

INÉ

BIS

SAU

GU

INÉ

BIS

SAU

um desconhecimento das regras de funcionamento desses tribunais, bem como dos direitos que lhes assistiam e das obrigações a que estavam adstritos do ponto de vista legal.

A adicionar a tudo isso, acresce sublinhar que a Guiné-Bissau se caracteriza por ser um pais cuja maioria esmagadora da população não sabe ler, nem escrever e se reparte por mais de 3 dezenas de etnias, professando crenças religiosas, rituais culturais e usos e costumes, localizados e bastante dispares, porém muito enraizados e regulamentando as relações sociais e humanas no seio das diversas comunidades

Conceito e âmbito do acesso ao direito e à justiça

Pode definir-se, no meio de tantas acepções que o tema comporta, o acesso ao direito e à justiça como o conjunto de fatores, meios e mecanismos que, postos à disposição das pessoas, ou por estas partilhados e professados lhes proporcionam conhecimentos de caráter jurídico e lhes apetrecham de instrumentos e faculdades que lhes permitem o recurso aos órgãos jurisdicionais competentes afim de fazerem valer os seus direitos.

Em suma, o acesso ao direito e à justiça, nada mais, nada menos é do que o exercício livre, espontâneo e eficaz do direito de cidadania por todos os membros de uma determinada comunidade, sem exclusão, nem limitação, baseadas em razões de ordem econômica, sócio-política e cultural.

Nessa medida, o conceito projeta-se, entre outros, pelos eixos seguintes:

a) Assistência Judiciária;

b) Direito à informação, consulta e proteção jurídica

Em jeito de desenvolvimento dessas vertentes por onde se pode encarar e fazer a abordagem do acesso ao direito e à justiça, vamos por partes:

Antes de mais, em que é que se traduz a assistência judiciária?

Nos termos do disposto no artigo 32° da Constituição da Republica de 16 de Maio de 1984, “todo o cidadão tem o direito de recorrer aos órgãos jurisdicionais contra os atos que violem os seus direitos reconhecidos pela Constituição e pela lei, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios econômicos”.

Portanto, por via desta consagração constitucional, a assistência judiciária pode abordar-se em duas perspetivas, a saber:

Acesso universal ao direito e à justiça. Todo o cidadão guineense ou estrangeiro, vivendo, residindo ou trabalhando na Guiné-Bissau, ou tendo ca interesses, tem direito de se socorrer dos orgãos jurisdicionais do pais, a fim de defenderem, nos termos e segundo os mecanismos estabelecidos na lei, os direitos que lhes assistem, contra quaisquer atos que ponham em causa esses direitos. Para tanto, o Estado criou os tribunais e neles colocou a trabalhar juizes, agentes do ministério publico e oficiais de justiça e os pôs à disposição de todos e quaisquer interessados. Além de reconhecer e viabilizar mecanismos alternativos de resolução de conflitos que tenham atuação e administrem a justiça de forma não desconforme à lei.

Apoio do Estado aos mais carenciados e vulneraveis. Apoio, esse, traduzido em isenção total ou parcial das custas e dos impostos judiciais (i), ou diferimento de seu pagamento (ii), ou ainda o asseguramento de patrocionio judiciario oficioso (iii).

Acesso universal

Além da Constituição da Republica, o acesso universal ao direito e à justiça é assegurado pela lei orgânica dos tribunais (Lei, n° 3/2002, de 20 de Novembro), no seu artigo 4° (Acesso à justiça) que reza:

1. “A todos é assegurado o acesso aos tribunais judiciais como meio de defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios economicos.

2. Lei propria regula o acesso aos tribunais judiciais, em caso de insuficiência de meios economicos”.

Apoio do Estado

a) Isenção parcial ou total ou deferimento do pagamento de custas e outras despesas judiciais. Sobre esta matéria consultar o Código das Custas Judiciais (Decreto-Lei, n° 8/2010, de 14 de Junho), a Convenção de Viena sobre as relações diplomáticas e consulares e acordos de cooperação bilaterais ou de sede entre a Guiné-Bissau e outros Estados ou Organismos Internacionais e ONGs.

b) Patrocinio oficioso. Sobre esta matéria, o Código de Processo Civil (Decreto-Lei, n° 44.129/61, de 28 de Dezembro, com as modificações introduzidas pelo Decreto-Lei, n° 47.690/67, de 11 de Maio) e o Código de Processo Penal (Decreto-Lei, n° 5/93, de 13 de Outubro) prevêem o patrocínio oficioso, quando seja obrigatória a constituição de advogado (artigo 32° do Código de Processo Civil e artigos 69° e 74° do Código de Processo Penal), conforme, respetivamente, os seus artigos seguintes:

No que tange ao Código de Processo Civil:

Page 27: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 5352

GU

INÉ

BIS

SAU

GU

INÉ

BIS

SAU

Artigo 43° (Nomeação oficiosa de advogado)

1. “Se a parte não encontrar na comarca ou julgado quem aceite voluntariamente o seu patrocínio, pode dirigir-se ao presidente do conselho distrital da Ordem dos Advogados ou à respetiva delegação para que lhe nomeiem advogado.

2. A nomeação sera feita sem demora e notificada ao nomeado, que pode alegar escusa dentro de quarenta e oito horas. Na falta de escusa ou quando esta não seja julgada legitima por quem fez a nomeação, deve o advogado exercer o patrocinio, sob pena de procedimento disciplinar”.

Artigo 44° (Nomeação efetuada pelo juiz)

1. “O que fica disposto no artigo anterior é aplicavel à nomeação de solicitador, sendo, porém exercidas pelo juiz as atribuições cometidas ao presidente do conselho distrital e à delegação.

2. Ao juiz pertence também a nomeação de advogado nos casos de urgência ou quando a entidade competente a não faça dentro de cinco dias”

No que ao Código de Processo Penal diz respeito:

Artigo 69° (Representação judiciária)

1. “O assistente é sempre representado por advogado.

2. Se forem varios os assistentes a representação é feita por um so advogado que competira ao Ministério Publico ou ao juiz, respetivamente, escolher se houver desacordo entre os assistentes”

Artigo 72° (Defensor)

1. “ O suspeito tem direito a constituir defensor ou a que lhe seja nomeado, oficiosamente, ou a requerimento, em qualquer altura do processo

2. A nomeação compete ao Ministério Publico ou ao juiz conforme a fase processual em que ocorra e devera recair de preferência entre licenciados em direito

3. É permitida a sustituição do defensor, por iniciativa do suspeito ou do proprio defensor, invocando motivo justificado”

Artigo 75° (Assistência a vários suspeitos)

1. “Sendo varios os suspeitos no mesmo processo, cada um pode ter um defensor ou terem defensor comum, se isso não contrariar a função da defesa.

2. O tribunal pode nomear defensor aos suspeitos que o não tenham constituido, de entre os constituidos para os restantes suspeitos”.

Em que consiste o direito à informação, consulta e proteção jurídica?

Uma olhadela pelo regime jurídico da assistência judiciária nos dias de hoje.

O Governo atual, por iniciativa do seu Ministro da Justiça, Dr. Mamadu Saliu Jalo Pires, inspirado pelo disposto na Constituição da Republica nomeadamente nos seus artigos 32° (“todo o cidadão tem o direito de recorrer aos órgãos jurisdicionais contra os atos que violem os seus direitos reconhecidos pela Constituição e pela lei, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios econômicos”) e 34° (“Todos têm direito à informação e à proteção jurídica, nos termos da lei”), inscreveu no seu programa de governação, como uma das suas prioridades, estabelecer, por lei, o regime jurídico de acesso ao direito e à justiça, através da adoção de um novo conceito de assistência judiciária, englobando, quer a assistência judiciária, na sua acepção restrita substanciada nos diplomas legais, supra citados, quer o direito à informação, consulta e proteção jurídica.

Com efeito, o Governo aprovou o Decreto-Lei, n° 11/2010, de 14 de Junho, publicado no Boletim Oficial, n° 24, da mesma data.

Esse diploma:

a) Define como seu objetivo fundamental, proceder ao enquadramento legal de soluções que assegurem aos cidadãos condições eficazes de acesso ao direito e à justiça que lhes garantam o exercício ou a defesa dos seus direitos. Para tanto, cria mecanismos capazes de suprir as diferenças resultantes das condições sociais ou culturais, de carência econômica, de informação ou de localização geográfica que possam influenciar, negativamente, o acesso ao direito de cada cidadão individual (artigo 1°)

b) Acomete ao Estado, através do Ministério da Justiça, a obrigação geral de prestação de informação jurídica necessária a tornar conhecido o direito e o ordenamento juridico nacional, através de publicaçoes, campanhas de divulgação e outras formas de publicitação, devendo, para tanto cooperar com a Ordem dos Advogados (artigos 2° e 4°).

c) Define as modalidades de assistência judiciária, fazendo compreender: a consulta jurídica, o apoio judiciário sob forma de dispensa, total ou parcial, de custas, de preparos e do prévio pagamento de taxa de justiça e o apoio judiciário, através do patrocínio oficioso (artigo 5°).

d) Define o âmbito do acesso ao direito e à justiça, dizendo que a assistência judiciária, em qualquer das suas modalidades, é concedida para questões ou causas judiciais concretas ou suscetíveis de concretização que versem sobre direitos diretamente lesados ou ameaçados de lesão e desde que o requerente demonstre um interesse próprio. Por outro lado, o apoio judiciário só pode ser concedido a quem se

Page 28: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 5554

GU

INÉ

BIS

SAU

GU

INÉ

BIS

SAU

encontrar em situação económica que lhe não permita suportar, total ou parcialmente, as despesas normais da causa (artigos 6° e 7°).

e) Quanto à consulta juridica, estabelece o diploma em apreço que esta deve ser proporcionada por um gabinete do Ministério da Justiça com a finalidade de facultar aos cidadãos que o requeiram conhecimentos dos seus direitos e deveres perante uma situação concreta da sua esfera jurídica, embora possa também concretizar-se sob forma de realização de diligências extrajudiciais ou atos de mediação ou conciliação (artigo 10°).

O Governo aprovou ainda o Decreto-Lei, n° 11/2011, de 3 de Fevereiro que regula as condições para o estabelecimento dum serviço publico de informação e consulta jurídica junto da população em geral e da colaboração a prestar, nesta matéria, por organizações da sociedade civil, as formas especificas de cooperação com a Ordem dos Advogados, bem como a interação com as autoridades tradicionais de modo a influenciar, positivamente a qualidade das intervenções asseguradas por meio dos mecanismos informais de justiça e reportar aos órgãos de controlo formal as situações de duvidosa legalidade conhecidas (artigos 1° e 18° desse diploma)

O mesmo diploma, define como grupos prioritários, sem prejuízo do disposto quanto ao acesso universal:

a) Cidadãos economicamente mais desfavorecidos;

b) Grupos mais desprotegidos em função do gênero;

c) Camadas da população mais carecidas de proteção em razão da idade;

d) Cidadãos iletrados.

A fim de assegurar a efetivação da assistência judiciária, sob forma de patrocínio oficioso, o Ministério da Justiça garantirá o pagamento dos honorários ao patrono oficioso nomeado, fixado pelo juiz dentro dos limites estabelecidos legalmente e atendendo ao trabalho desenvolvido e à complexidade do processo (artigo 27° do Decreto-Lei, n° 11/2010, de 14 de Junho).

Por outro lado e naquilo que diz respeito aos casos específicos de utentes dos Centros de Acessos à Justiça, criados nas regiões pelo Governo e coordenados pelo Gabinete de Informação e Consulta Jurídica - GICJU (criado pelo Decreto-Lei, n° 11/2011, de 3 de Fevereiro, publicado no 3° suplemento ao Boletim Oficial, n° 5 da mesma data) o Ministério da Justiça já firmou, com a Ordem dos Advogados

um protocolo, nos termos do qual, o GICJU, transfere para a Ordem dos Advogados determinado montante anual, em tranches mensais, para custear as despesas com o patrocínio oficioso, a ser assegurado por advogados, a favor de utentes desses Centros.

Dr. Juliano Augusto Fernandes

Coordenador do Gabinete de Informação e Consulta Jurídica – GICJU

Page 29: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 5756

GU

INÉ

BIS

SAU

GU

INÉ

BIS

SAU

ACESSO AO DIREITO E à JUSTIçA, UMA REALIDADE NA GUINé-BISSAU?

Juliano Algusto Fernandes

Implementação do regime jurídico da Assistência judiciária na Guiné-Bissau

Embora a consagração do regime jurídico de assistência judiciária remonte ao Código de Processo Civil, aprovado pelo Decreto-Lei, n° 44.129/1961, de 28 de Dezembro e modificado pelo Decreto-Lei, n° 47.690/1967, de 11 de Maio, em vigor na Guiné-Bissau, e mais tarde, elevado à dignidade constitucional, pela Constituição da Republica de 16 de Maio de 1984 e retomado pelo Código de Processo Penal (Lei n° 5/93, de 13 de Outubro) e a Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais (Lei, n° 3/2002, de 20 de Novembro), a verdade é que a sua implementação prática tem sido muito tênue.

Senão vejamos:

A assistência judiciária, traduz-se, nos termos do disposto no artigo 5° do Decreto-Lei, n° 11/2010, de 14 de Junho, em:

a) Consulta jurídica;

b) Apoio judiciário sob forma de dispensa, total ou parcial, de custas, de preparos e do prévio pagamento de taxa de justiça;

c) Apoio judiciário, através do patrocínio oficioso.

Consulta jurídica

Nessa modalidade, a assistência judiciária tem sido, até ao presente, assegurada, maioritariamente, pelos advogados, apenas perante (e em beneficio de) clientes seus.

Nalguns tímidos casos, por organizações da sociedade civil, nomeadamente a Liga Guineense dos Direitos Humanos e, no passado, algo longínquo, pelo CIOJ (Centro de Informação e Orientação Jurídica) e, desde há relativamente pouco tempo, pelo CEOJ (?), a funcionar junto da Faculdade de Direito de Bissau.

O Estado, a quem compete, primacialmente, assegurar a efetivação desse

Page 30: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 5958

GU

INÉ

BIS

SAU

GU

INÉ

BIS

SAU

direito, pouco tem feito nesse sentido, cabendo assinalar uma iniciativa do Ministério da Justiça, antes da guerra civil de 1998/99, curiosamente titulado, na época pelo atual Ministro da Justiça, nesse sentido, no quadro e na sequência da criação dos tribunais de pequenas causas (tribunais de sector)

Apoio judiciário, sob forma de dispensa, total ou parcial, de custas, de preparos e do prévio pagamento de taxa de justiça

Esta é a modalidade de assistência judiciária que tem registado um grau elevado de implementação, se bem que se lhe possa apontar o facto de concomitantemente representar um óbice de acesso à justiça, porquanto, os elevados custos com a justiça, representarem, desde logo, um fator de inibição do recurso aos tribunais. Aliás, o fator que mais encarece a justiça e, desse modo, repele as pessoas mais carenciadas de se aproximarem dos tribunais, é a obrigação de pagamento dos preparos iniciais, como condição prévia ao desencadeamento dos ulteriores termos processuais. Pelo que, antes mesmo de requererem a dispensa ou o diferimento do pagamento dos preparos iniciais, já o espetro dos elevados encargos, constitui fator de inibição.

Apoio judiciário sob forma de patrocínio oficioso

O patrocínio oficioso, assegurado pelo Gabinete de Oficiosas da Ordem dos Advogados, tem sido a única via utilizada pelos cidadãos interessados, mais carenciados, para aceder aos tribunais, a fim de defenderem os seus direitos e interesses legítimos. Ora, a Ordem dos Advogados tem-se visto em dificuldades para assegurar esse patrocínio por limitações de ordem financeira, com todas as conseqüências negativas que uma oficiosa nessas condições acarreta para as partes processuais que a elas recorrem, em termos de profundidade técnica e eficácia da defesa que se lhes oferece. Várias têm sido as tentativas de inscrição de verbas, com essa finalidade, por parte dos sucessivos Governos, nos orçamentos gerais do Estado, sem sucessos.

Como se apresenta, hoje em dia, esse instituto de assistência judiciária na Guiné-Bissau, tendo em conta o novo regime jurídico adotado pelo atual Governo, com a aprovação, pela primeira vez, no país, da lei de acesso ao direito e à justiça substanciada na assistência judiciária, nas suas diversas modalidades.

O Decreto-Lei, n° 11/2010, de 14 de Junho, sobre a assistência judiciária bem como o Decreto-Lei, n° 11/2011, de 3 de Fevereiro que cria o Gabinete de Informação e Consulta Jurídica – GICJU, do Ministério da Justiça e os Centros de

Acesso à Justiça – CAJs, que irão brevemente começar a funcionar nas regiões-piloto de Cacheu (1 Centro) e Oio (1 Centro) e no Setor Autônomo de Bissau (2 Centros), são diplomas recentes. O que faz com que essas estruturas, e seu mecanismo de funcionamento e os mecanismos legais de sua articulação, colaboração e parceria com a Ordem dos Advogados, as Organizações da Sociedade Civil a credenciar, os Poderes Tradicionais, ainda não estejam operacionalizadas.

Tanto assim que, não obstante o protocolo rubricado com a Ordem dos Advogados, O Ministério da Justiça encontra-se em fase de formação seletiva dos Técnicos de Assistência Jurídica que irão trabalhar para os Centros de Acesso à Justiça, com a responsabilidade de procederem à identificação dos casos de utentes que carecerão de patrocínio oficioso e encaminhá-los, através do Coordenador do GICJU, à Ordem dos Advogados.

Todavia, em jeito de conclusão, cabe dizer que, hoje, mais do que no passado, estão criadas as condições jurídicas, legais, logísticas e financeiras para que o acesso à justiça se traduza em realidade nos próximos anos. A sua sustentabilidade, contudo, passa pela inscrição, permanente, no orçamento Geral do Estado de verbas destinadas a financiar o funcionamento do GICJU e dos CAJs, bem como o patrocínio oficioso.

Dr. Juliano Augusto Fernandes

Coordenador do Gabinete de Informação e Consulta Jurídica – GICJU

Page 31: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 6160

MO

ÇAM

BIQ

UE

MO

ÇAM

BIQ

UE

MO

ÇAM

BIQ

UE

MóDUS OPERANDI» DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ASSISTÊNCIA JURÍDICA AO CIDADÃO CARENCIADO

Questão Prévia

A Lei nº 6/94, de 13 de Setembro, criou o Instituto do Patrocínio e Assistência Jurídica, doravante designado por IPAJ, definindo-o como instituição do Estado destinada a garantir a concretização do direito de defesa constitucionalmente consagrado, proporcionando ao cidadão economicamente desprotegido, o patrocínio judiciário e a assistência jurídica de que careça;

Do Departamento Jurídico Central

Devido à sua natureza institucional, o IPAJ-Sede encontra-se subdividido em vários departamentos, de onde encontramos o Departamento Jurídico Central, que para além de desencadear funções como as de conciliação extra-judicial e/ou arbitragem, tem como funções fundamentais as seguintes:

• Proceder à assistência jurídica e judiciária ao cidadão economicamente carenciado;

• Garantir um funcionamento paralelo dos Gabinetes Jurídicos do IPAJ junto às Delegações Provinciais, incluindo à Cidade de Maputo, e;

• Assessorar Juridicamente a Direcção Nacional;

Funcionamento:

Havendo necessidade de melhorar a qualidade dos serviços prestados pelo IPAJ, no quadro da assistência jurídica ao cidadão economicamente carente, foi aprovada a Circular nº 1/2010, que tem o mérito de trazer um novo modelo atendimento, que vai desde a entrada em funcionamento da Triagem, estabelecimento de um atendimento por senhas, a divisão do departamento Jurídico por áreas de intervenção, culminando com o estabelecimento de um sistema de arquivo sólido;

Assim sendo, sempre que o cidadão carenciado procure pelos serviços do IPAJ, é, numa primeira fase ouvido pelo sector da Triagem, que por sua vez, depois de compilar a informação trazida pelo cidadão, remete-a à coordenação, por via de uma ficha de atendimento, para efeitos de apreciação e posterior distribuição.

Uma vez chegada a ficha de atendimento à coordenação, esta é apreciada

Page 32: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 6362

MO

ÇAM

BIQ

UE

MO

ÇAM

BIQ

UE

no sentido de identificar a respectiva área de intervenção a que o caso couber, para de seguida beneficiar de um despacho dando a indicação do Técnico ou assistente que irá assistir tal caso.

Uma vez proferido o despacho, a ficha de atendimento é novamente remetida ao sector da Triagem, desta feita para efeitos de registo e distribuição, tendo em conta o despacho proferido pela coordenação.

Refira-se ainda que, periodicamente, a coordenação do Departamento Jurídico reúne-se com os responsáveis pelas diferentes áreas de intervenção, a fim de ouvir destes as dificuldades encaradas no âmbito do seu trabalho, bem como aferir o pulsar das suas actividades.

Paralelamente a estes encontros periódicos, o Departamento Jurídico reúne-se trimestralmente, onde todos os funcionários efectivos do departamento são chamados a tecer algumas considerações sobre os trabalhos.

Ainda no âmbito da assistência Jurídica e judiciária ao cidadão economicamente carenciado, refira-se que a Direcção Nacional do IPAJ aprovou a Circular nº 2/2010, por via da qual o IPAJ-Sede coloca os seus Técnicos e Assistentes Jurídicos a prestar assistência jurídica junto às Esquadras bem como às Procuradorias da República e do Gabinete Central de Combate à Corrupção, tendo na mesma sequência a Circular ora referenciada conferido às Delegações Provinciais do IPAJ, competências análogas Junto às respectivas áreas de jurisdição, orientando inclusivamente a colocação dos serviços do IPAJ junto aos estabelecimentos prisionais.

Relação e evolução dos casos assistidos, cobertura territorial e número de funcionários

AnosCasos Assistidos Cobertura Territorial Nº de Funcionários

Absoluto % Absoluto % Absoluto %

2006 7059 - - -

2007 7327 3,80 44 - 125 -

2008 26677 264,09 74 68,18 144 15,20

2009 39998 49,93 89 20,27 162 12,50

2010 53184 32,97 111 24,72 224 38,27

Total 134245 - - - - -

N.B: No que diz respeito a cobertura territorial até ao primeiro semestre de 2011, vide tabela em anexo.

Quanto a natureza dos casos assistidos referentes à tabela acima, destacam-se três principais áreas de intervenção, designadamente, as áreas Civil, Laboral e Criminal, sendo que esporadicamente temos vindo a assistir casos de natureza Administrativa e/ou Aduaneira.

De entre as áreas acima indicadas, refira-se que a que temos vindo a assistir em maior número é a área Laboral.

Educação Cívica

No âmbito da prossecução dos seus objectivos, o IPAJ tem estabelecido parcerias com várias entidades da sociedade civil e públicas, no sentido de desenvolver em conjunto acções de educação cívica e jurídica, a título de exemplo:

Foi assinado um memorando tripartido entre o Ministério da Justiça, o Instituto Superior de Ciências e Tecnologia de Moçambique (ISCTEM) e a Televisão de Moçambique (TVM), no sentido de promover o incremento da cultura jurídica e a melhoria das condições do acesso à Justiça pelos cidadãos carenciados, por via de criação da Tenda da Justiça na TVM, onde em dias de semana previamente designados, os estudantes do estabelecimento de ensino superior acima indicado irão prestar assistência Jurídica e proceder com o respectivo acompanhamento judiciário aos cidadãos que dela careçam, sob a coordenação e orientação de um Técnico Jurídico Superior proveniente do IPAJ-Sede.

Paralelamente à parceria acima indicada, refira-se ainda que o IPAJ estabeleceu uma outra com a Rádio Moçambique, ainda por formalizar, por via da qual os Técnicos e os Assistentes Jurídicos do IPAJ participam de um programa radiofónico designado Tarde em Família, onde debruçam-se sobre vários temas Jurídicos da actualidade, oferecendo patrocínio e orientação jurídica a quem dela necessitar.

Page 33: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 6564

MO

ÇAM

BIQ

UE

MO

ÇAM

BIQ

UE

Pro

vín

cias

coBErTUra TErriToriaL

DisTriTos coBErTos aTÉ DEZEMBro 2010 DisTriTos coBErTos aTÉ i semestre de 2011

Fisica

ToTa

L

aMBULaTÓria

ToTa

L

Fisica

ToTa

L

aMBULaTÓria

ToTa

L

Maputocidade

Ka Mpfumu, Ka Hlamankulu, Ka

Mubukwana e Ka Tembe6 0 Ka nyaca 1 0

Maputo Província

Boane, Moamba, Marracuene, Manhiça, Matutuine e namaacha

6 Magude 1 0 0

GazaBilene-Macia, chibuto, chockwe, Manjacaze,

Guijá e Xai-Xai6

Massingi, chicualacuala e

Mabalane3 0 0

inhambane

cidade de inhambane, inharrime, Homoine, Mabote, Massinga,

Maxixe, Morrumbene e Zavala

8 Jangamo, vilanculos 2 0 0

sofala Dondo 1 chibabava 1**Búzi, caia,

**Gorongosa e **nhamatanda

4 0

ManicaGondola, sussundenga,

Machaze, Manica, Barue, Guro e Mossurize

7 Macossa e Tambara 2 0 0

Zambézia

alto Molocue, Gurue, ilé, Milange, Maganja da

costa, Mocuba, namacura e Pebane

8 chinde e Gilê 2 nicoadala 1 0

Tete

angónia, cahora-Bassa, changara, Macanga, Mutarara, Magoé e

Moatize

7 chiuta, chifunde, Maravia e Tsangano 4 0 0

nampula

angoche, cidade de Nampula, Erati, Ilha de Moçambique, Malema,

Meconta, Mecuburi, Memba, Mogovalas,

Moma, Monapo, Mossuril, Muecate,

Murrupula, nampula-rapale, nacala-Porto,

nacala-velha, Mongicual e ribaué

19 Lalaua nacarôa 2 0 0

niassa

cuamba, Lago, Mandimba, Marrupa, Mecanhelas, Maua, Mavago, Muembe e

sanga

9 n´gauma e Majume 2 0 0

cabo Delgado

ancuabe, Balama, chiúre, Macomia, Mocimboa da

Praia, Pemba, Mon-tepuez, Mueda, nangade

e namuno

10 Muidumbe 1 **Pemba-Metuge 1 0

Total 87 20 7 0

**Distritos que estavam em regime ambulatório até 2010 e 2011 passaram para fisica.

Pro

vín

cias

coBErTUra TErriToriaL

PErsPEcTiva

aTÉ DEZEMBro DE 2011

ToTa

L

2012

ToTa

L

Maputocidade

Maputo Província

Gaza Massingir 1 chicuala 0

inhambane Jangamo, vilanculos e inhassoro 3

sofala 4 cheringoma, Muanza e Maringué 3

Manica Macossa e Tambara 2

Zambézia Morrumbala 1 inhassunge e Lungela 2

Tete chiuta, chifunde e Maravia 3 Tsangano e Zumbo 2

nampula nacarôa 1

niassa Majume e n´gauma 2 Mecula, Metarica e nipepe 3

cabo Delgado 0 Mecufi e Muidumbe 2

Total 17 12

Page 34: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 6766

MO

ÇAM

BIQ

UE

MO

ÇAM

BIQ

UE

O PATROCÍNIO E A ASSISTÊNCIA JURÍDICA E JUDICIÁRIA AOS CIDADÃOS ECONOMICAMENTE CARENCIADOS

A ExPERIÊNCIA DE MOçAMBIQUE

1.Da Proibição do Exercício da Advocacia à sua Liberalização

Tendo como objectivo proceder a construção de um Estado Democrático popular instituído pela Constituição de 1975, na primeira sessão do Conselho de Ministros de Moçambique, realizada em Julho de 1975, foram tomadas algumas medidas provisórias destinadas a resolver problemas do sistema judicial, enquanto não fosse possível efectuar a sua completa reestruturação. Foi então decidido encerrar os escritórios dos advogados (Decreto-Lei nº 4/75, de 16 de Agosto), considerando a advocacia privada incompatível com a existência de «uma justiça ao serviço das largas massas do povo moçambicano» 1.

No mesmo quadro foi criado, pelo Decreto-Lei nº 4/75, de 16 de Agosto, o Serviço Nacional de Consulta e Assistência Jurídica (SNCAJ), subordinado à Procuradoria-Geral da República e com a função de garantir o direito de defesa aos cidadãos particularmente, aos arguidos em processo-crime.

Em 1986, volvidos pouco mais de uma década, o Estado, reconhecendo as suas obrigações de garantir o serviço de consulta e assistência jurídica aos cidadãos, aprovou a Lei nº 3/86 de 16 de Abril, que introduziu alterações substanciais ao Decreto-Lei nº 4/75,de 16 de Agosto, definindo as novas regras pelas quais se devia orientar o exercício da advocacia em Moçambique, criando para tanto, o Instituto Nacional de Assistência Jurídica (INAJ), o embrião do actual Instituto do Patrocínio e Assistência Jurídica (IPAJ) e, da Ordem dos Advogados de Moçambique (OAM).

O INAJ encontrava-se subordinado ao Ministério da Justiça e competia organizar, controlar e orientar o exercício da assistência jurídica pelos advogados, técnicos e assistentes jurídicos.

Apesar de os serviços serem onerosos, aos cidadãos carenciados, era-lhes assegurado e garantido o patrocínio e assistência jurídica e judiciária gratuita, para que ninguém ficasse excluído do direito de acesso à justiça e aos tribunais.

1 Santos, Boaventura de Sousa; Trindade, João Carlos (2003). Conflito e Transformação Social: Uma Paisagem das Justiças em Moçambique, 2º vol. Pag. 35

Page 35: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 6968

MO

ÇAM

BIQ

UE

MO

ÇAM

BIQ

UE

Entretanto, com a introdução do Estado de Direito Democrático pela Constituição da República de Moçambique de 1990, o INAJ tornou-se desadequado aos desafios do momento, impondo-se assim, a «adopção de mecanismos jurídicos mais consentâneos com as novas exigências da sociedade no que se refere ao exercício da advocacia e da assistência jurídica gratuita».

Assim, é criado e aprovado pela Lei nº 7/94, de 14 de Setembro, a Ordem dos Advogados de Moçambique (OAM), pessoa colectiva de direito público, independente, regida por regras próprias e com a função de coordenar o exercício da advocacia liberal. O diploma consagra a advocacia como um dos três pilares da administração da justiça.

Ao mesmo tempo, é criado pela Lei nº 6/94, de 13 de Setembro, o Instituto do Patrocínio e Assistência Jurídica (IPAJ), um organismo destinado a garantir o acesso à justiça pelos cidadãos economicamente desfavorecidos.

2.A Assistência Jurídica e a Criação do IPAJ

O IPAJ é a Instituição do Estado que visa garantir a concretização do direito de defesa, proporcionando ao cidadão economicamente desprotegido, o patrocínio judiciário e a assistência jurídica de que carecer.

O patrocínio e a assistência jurídica são serviços prestados a título gratuito aos cidadãos carenciados.

As atribuições do IPAJ são de entre outras:

- Coordenar o exercício do patrocínio judiciário e assistência jurídica pelos seus membros;

- Coordenar o serviço cívico a realizar pelos advogados estagiários;

- Participar no estudo e divulgação das leis e promover o respeito pela legalidade;

- Promover o estreitamento de relações com organizações estrangeiras congéneres.

3.Beneficiários dos Serviços do IPAJ

São beneficiários dos serviços do IPAJ todos os cidadãos economicamente

carenciados que, por falta de condições financeiras, não podem contratar os serviços de um advogado. A todos esses cidadãos lhes é assegurado e garantido o patrocínio e assistência jurídica gratuito para que ninguém fique excluído do direito do acesso à justiça e aos tribunais.

Para se aferir se um determinado cidadão é carenciado ou não, o IPAJ exige do mesmo a apresentação de um atestado de pobreza que é um documento autêntico, nos termos dos artigos 369 e 371 ambos do Código Civil moçambicano. Este documento é emitido pelo Conselho Municipal e faz prova da situação económica do cidadão.

O atestado de pobreza é emitido apôs certificação da real situação do requerente pelo Chefe de quarteirão e Secretário do bairro, por serem indivíduos idóneos que se encontram a viver junto da comunidade e que, melhor conhecem a situação dos requerentes.

Contudo, a emissão do atestado de pobreza, traz consigo duas problemáticas estando a primeira relacionada com o custo de emissão que é de 100, 00 MT (equivalente a 6, 25 Reais) valor este que pode constituir um entrave ao acesso a justiça porque o comum dos cidadãos vive em pobreza extrema. A segunda problemática prende-se com o facto de nem sempre as entidades que participam na emissão do atestado de pobreza seguem o rigor necessário para determinar se de facto está ou não diante de um cidadão carenciado.

O IPAJ permite também que seja prestada assistência jurídica a cidadão que não apresentem o atestado de pobreza, desde que no acto do atendimento seja notária a situação de carência do assistido independentemente de este ser assalariado ou não e sob o risco de denegar a justiça a quem a necessita.

4.Carreira Técnica

A carreira técnica do IPAJ constitui-se em:

Técnicos Superiores em Assistência Jurídica – referente aos licenciados em direito e que tenham sido aprovados em concursos realizados pelo IPAJ.

Técnicos de Assistência jurídica – referente aqueles que estejam habilitados com cursos de formação, reconhecidos pelo Ministério da Justiça.

Page 36: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 7170

MO

ÇAM

BIQ

UE

MO

ÇAM

BIQ

UE

No passado a carreira técnica do IPAJ era composta por Técnicos e Assistentes Jurídicos. O recurso a essas figuras tinha como objectivo sanar a falta de juristas, agravada pelo encerramento da Faculdade de Direito da Universidade Eduardo Mondlane.

5.A relação entre o IPAJ e a Ordem dos Advogados de Moçambique

Para a materialização dos objectivos concebidos aquando da criação do IPAJ, foi-lhe atribuído de entre outras tarefas, a coordenação do serviço cívico a realizar pelos Advogados Estagiários.

Os Estatutos da Ordem dos Advogados de Moçambique aprovados em 2009, introduzem passos significativos na melhoria da articulação entre a OAM e o IPAJ no que se refere as normas que devem reger o estágio, sendo de destacar:

• A intervenção do IPAJ no estágio profissional dos Advogados e,

• A dispensa do estágio ao licenciados em direito que prestem assistência jurídica pelo período de 16 meses no IPAJ (art. 147 nº 4 dos estatutos da OAM) – uma vez ser o patrocínio jurídico e judiciário uma actividade cometida a essas duas Instituições.

A visão do sistema judiciário moçambicano assenta em mecanismos de articulação com as instâncias de justiça judiciais e de cooperação, com as entidades não-governamentais de promoção e defesa dos direitos humanos e com outros actores das profissões jurídicas.

Esta visão ganha corpo com a introdução de mecanismos mais eficazes de articulação entre as instituições supra mencionadas – manifestada nos Estatutos actuais da OAM e na proposta dos Estatutos do IPAJ depositada na Assembleia da República. O objectivo está virado a uma efectiva prestação do serviço cívico previsto na lei, bem como das actividades a desenvolver pelos Advogados Estagiários na segunda fase do Estágio quando inscritos na OAM.

5.1.O estágio

No que concerne ao IPAJ, a selecção dos candidatos ao estágio é por via do

concurso público e é nossa intenção que o estágio a que são submetidos os candidatos a Advogados, seja dotado de um nível de rigorosidade que faça jus a dignidade da profissão, pelo que, achamos ser necessário melhorar as componentes de formação, quer nas matérias relativas a técnicas e práticas forenses, quer nas matérias relativas a deontologia profissional e, a consequente monitoria e avaliação do desempenho dos formandos no presente curso.

Duas experiências a destacar: o primeiro grupo de estagiários - actualmente no terreno a cumprir o estágio - foi recrutado em 2010, tendo a formação ocorrido em Agosto do mesmo ano no Centro de Formação Jurídica e Judiciária;

O segundo grupo foi recrutado no ano em curso e a formação teve lugar em Abril no Centro de Práticas Jurídicas da Faculdade de Direito da Universidade Eduardo Mondlane – fruto de uma parceria entre o IPAJ e a OSISA.

A formação, monitoria e avaliação, é efectuada e facilitada por operadores do Direito com experiência profissional bastante, nomeadamente Advogados, Conservadores, Docentes de Direito e áreas afins.

Após a primeira fase – que compreende a formação – os advogados estagiários são integrados nos vários gabinetes de atendimento do IPAJ junto das Cadeias, Procuradorias, PIC, GCCC, Esquadras, etc.

Os ganhos durante o estágio traduzem-se na melhoria dos níveis de conhecimento em práticas forenses por parte dos candidatos e no incremento quantitativo e qualitativo dos serviços prestados pelo IPAJ.

Findo o período dos 16 meses, os estagiários que tiverem aproveitamento, recebem uma declaração para se apresentarem à OAM para efeitos de inscrição ao exame nacional de acesso.

5.2Avaliação

A recolha de informação é feita por intermédio de relatórios mensais a prestar pelos advogados estagiários. O IPAJ criou regulamentos internos que visam melhorar a monitoria das actividades de assistência jurídica desenvolvidas durante o estágio pelos Advogados estagiários quer sejam inscritos directamente no IPAJ quer sejam provenientes da OAM, os quais deverão obrigatoriamente prestar relatórios mensais e final findo o estágio.

Page 37: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 7372

MO

ÇAM

BIQ

UE

MO

ÇAM

BIQ

UE

6.Desafios para o futuro

O serviço de patrocínio e assistência jurídica prestado aos cidadãos economicamente carenciados é gratuito. Porém, existindo pessoas que não sendo carenciadas não podem pagar os honorários de um advogado, socorrendo-se do princípio da não denegação da justiça, a proposta dos Estatutos depositada na Assembleia da República para debate, preconiza taxas de serviço moderadas a serem cobradas a esse grupo de cidadãos.

Por outro lado, visando assegurar o acesso à justiça, reduzindo para o efeito as custas judiciais, propõe-se que:

- Os requerentes cujo agregado familiar tenha um rendimento mensal inferior a três salários mínimos da função pública tenham acesso a todos serviços e prestações do sistema de forma totalmente gratuita;

- Os requerentes cujo agregado familiar tenha um rendimento superior a 3 salários mínimos da função pública possam beneficiar de redução no pagamento de taxas de justiça e outros encargos processuais nos termos seguintes:

- Se o rendimento for superior a 3 e inferior a 6 salários mínimos da função pública, a redução será entre 75% e 50% do valor devido;

- Se o rendimento for superior a 6 e inferior a 10 salários mínimos da função pública, a redução será entre 50% e 30% do valor devido;

- Se o rendimento for superior a 10 e inferior a 15 salários mínimos da função pública, a redução será entre 30% e 20% do valor devido;

- Se o rendimento for superior a 15 e inferior a 20 salários mínimos da função pública, a redução será entre 20% e 10% do valor devido;

Os requerentes cujo agregado familiar tenha rendimento superior a 20 salários mínimos da função pública, não são elegíveis para beneficiar da redução no pagamento de taxas de justiça.

Propõe-se ainda que o IPAJ seja dirigido por um Director – Geral nomeado pelo Primeiro-ministro, sob proposta do Ministro que superintende a área da Justiça.

A nível central o IPAJ constitui-se em:

- Director – Geral do IPAJ;

- Conselho de Direcção;

- Inspecção;

- Gabinete Central de Assistência Jurídica e Judiciária;

- Gabinete de Formação e Estágio;

- Departamento de Planificação e Cooperação;

- Departamento de Administração e Finanças;

- Departamento de Educacação Cívica;

- Departamento de Recursos Humanos;

A nível local, o IPAJ estrutura-se em delegações com jurisdição provincial ou distrital. O Delegado do IPAJ é o chefe de cada delegação e representa o IPAJ na área da respectiva delegação.

Na sede e nas delegações provinciais do IPAJ funciona uma Secretaria.

As delegações provinciais estruturam-se em Gabinete de Assistência Jurídica e Judiciária, Repartição de Administração de Finanças e Recursos Humanos.

Sempre que necessário o Conselho Directivo poderá deliberar outras formas de estruturação e de representação do IPAJ.

A materialização dos princípios e normas estabelecidos na proposta, traduzir-se-á na melhoria da estrutura, do funcionamento e da clarificação das atribuições do IPAJ no quadro dos restantes órgãos da administração da justiça, resultando consequentemente no incremento da qualidade dos serviços a serem prestados pelo IPAJ.

Page 38: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 7574

PORT

UG

AL

PORT

UG

AL

BREvE ExCURSO SOBRE O ACESSO AO DIREITO EM PORTUGAL

Renato Gonçalves e Tânia Piazentin1

1. Introdução

Fruto do trabalho que vêm desenvolvendo enquanto Consultores de política legislativa da Direcção-Geral da Política de Justiça, os Autores do presente artigo têm tido o privilégio de contactar, de perto, com a problemática do acesso ao Direito, nas suas diversas cambiantes, seja porque têm sido confrontados com a necessidade de se debruçarem sobre a política regulatória que vem sendo desenvolvida pelos sucessivos Governos nesta matéria, seja porque têm estado envolvidos na monitorização do actual sistema de acesso ao Direito português.

Em virtude do trabalho desenvolvido, constatou-se que não existe, nos últimos anos, em Portugal, um texto sintético que, sem pretensões académicas, mas, com carácter eminentemente prático, dê a conhecer a todos aqueles que se preocupam com tal temática, em traços tão largos, mas precisos, quanto possível, qual foi o caminho percorrido até se chegar ao actual recorte do sistema de acesso ao Direito vigente entre nós.

Neste contexto, considerou-se útil, por um lado, dar à estampa uma resenha histórica sobre o instituto do acesso ao Direito, procurando destacar as principais vicissitudes que justificam as opções de política legislativa que conduziram à actual configuração do regime que disciplina esta matéria no quadro jurídico nacional, e, por outro, dar conta dos principais traços enformadores do actual regime jurídico que modela o sistema de acesso ao Direito português.

Com este modesto contributo, esperam os Autores concorrer para uma melhor compreensão do caminho até agora percorrido neste domínio no nosso país, a fim de se evitar a repetição de experiências menos bem conseguidas que, por serem desconhecidas de muitos, poderiam ser novamente ensaiadas, na voracidade dos tempos modernos que, tantas vezes, não permite que nos debrucemos sobre a realidade

1 Sem prejuízo da sua actividade como Consultores de política legislativa da Direcção Geral da Política de Justiça, do Ministério da Justiça Português, as opiniões expressas no presente texto são da exclusiva responsabilidade dos Autores, não podendo ser entendidas como exprimindo qualquer entendimento daquela Direcção-Geral.

tão aturadamente quanto seria desejável para que as soluções propugnadas como forma de resolução dos problemas que, certamente, se fazem sentir neste capítulo sejam ponderadas em todas a suas facetas.

Escopo deste trabalho é também o de dar a conhecer na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa o regime legal em matéria de acesso ao Direito, permitindo, assim, uma partilha de informação entre todos os que se inserem nessa comunidade.

2. Resenha histórica sobre o acesso ao Direito e aos tribunais em Portugal

2.1 O acesso ao Direito em Portugal até à Constituição de 1976

Antes da consagração constitucional do direito de acesso ao Direito e aos tribunais, em 1976, havia já regulamentação que disciplinava a matéria da assistência judiciária, por forma a garantir que aqueles que julgam ser titulares de um determinado direito o possam fazer valer em tribunal, mesmo que não tenham meios económicos para suportar os custos inerentes à utilização do sistema de justiça: custos com o processo, com advogados, solicitadores, etc..

Um simples olhar sobre a história do Direito demonstra que ao longo dos tempos têm sido inúmeras as manifestações legislativas que têm procurado assegurar aos mais pobres o acesso sobretudo à via judicial, outrora conhecida como assistência judiciária2.

Em Portugal, já nas Ordenações Filipinas se encontravam referências à necessidade de se facultar aos mais pobres assistência judiciária3 .

A moderna regulamentação da assistência judiciária conta já com mais de um século, datando de 21 de Julho de 1899 a Lei da Assistência Judiciária, diploma inspirado na legislação francesa sobre assistência judiciária de 1851. À luz desta legislação, os pobres que não dispusessem de meios de fortuna suficientes para fazerem face às despesas do tribunal poderiam usufruir tanto do não pagamento das custas do

2 Cf. Neste sentido, Carlos Alegre, “Acesso ao Direito e aos Tribunais”, Coimbra, Livraria Almedina, 1989, p.11 a 13 e e Adélio Pereira André, “Defesa dos direitos e acesso aos Tribunais, Lisboa, Livros Horizonte, 1980, p. 177 a 180. Para uma análise mais aprofundada do enquadramento histórico da assistência judiciária em Portugal, vide Octaviano de Sá, na Confer-ência proferida na qualidade de secretário do Conselho Distrital de Coimbra da Ordem dos Advogados na sala das sessões do Tribunal da Relação de Coimbra e na abertura do ano judicial no dia 24 de Janeiro de 1944, subordinada ao tema “Assistên-cia Judiciária — A humanidade do processo— A colaboração do Advogado”, em Revista da Ordem dos Advogados, Ano 4.º (1944), n.º 1 e 2 , pp. 106 e ss.3 Cf. Arthur Bragança de Vasconcellos Weintraub, 500 Anos de Assistência Judiciária no Brasil, in Revista da Facul-dade de Direito, Universidade de São Paulo, S. Paulo, vol. 95, 2000, pág. 241 e ss..

Page 39: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 7776

PORT

UG

AL

PORT

UG

AL

processo, como de patrocínio oficioso da respectiva causa, promovido, consoante os casos, por advogado ou solicitador.

Mais tarde, em 1927, o Estatuto Judiciário então promulgado veio, genericamente, reproduzir aquela velha legislação, passando o instituto da assistência judiciária a encontrar-se regulado dentre as matérias que disciplinam a organização e funcionamento do sistema de justiça, tendo-se alargado, nessa mesma ocasião, o seu âmbito subjectivo às Misericórdias e às corporações de beneficência legalmente erectas (cf. artigo 816.º do Estatuto Judiciário). Em termos objectivos, a assistência judiciária limitava-se ao processo civil, competindo ao juiz proceder oficiosamente à nomeação de um advogado ou de um solicitador, responsáveis pelo patrocínio de uma causa de forma gratuita. Previa-se igualmente a dispensa do prévio pagamento de preparos, custas e sêlos, que, não obstande, seriam contados.

No entanto, a assistência judiciária continuou a estar limitada, por via de regra, a uma das partes, posto que, à semelhança do que sucedia à luz da lei anterior, só deveria ser concedida se o requerente de assistência judiciária demonstrasse, ainda que de forma perfunctória, que a sua pretensão era susceptível de obter vencimento.

Em 1933 o Estatuto Judiciário foi alterado, passando a consagrar um conceito de pobre, entendo-se como tal, o indivíduo que não possui bens ou rendimentos suficientes para ocorrer às despesas normais do pleito, conceito este que se manteve em 1944, momento em que o instituto da assistência foi alargado por forma a aplicar-se igualmente ao processo penal. No plano subjectivo, passam a ter a faculdade de gozar de patrocínio oficiosas pessoas colectivas de utilidade pública administrativa.

Na década de 70, foram publicados dois novos diplomas, a Lei n.º 7/70, de 9 de Junho, e o Decreto n.º 562/70, de 18 de Novembro, que regulamentou a primeira. Estes diplomas procederam à reestruturação do regime da assistência judiciária, emprestando-lhe, agora, um cunho assistencialista, mas não de cariz caritativo, sendo este um dos principais traços do regime então implantado.

Acresce, ainda, que após a entrada em vigor deste regime, a assistência judiciária passou a poder ser concedida a todos os intervenientes numa causa, desde que os mesmos se encontrassem em situação económica que os impossibilitasse de suportarem as despesas inerentes à lide. Também no processo penal, passaram a beneficiar de assistência judiciária, não só os ofendidos, como também os acusados da prática de crime que não dispusessem de meios de fortuna suficientes para se defenderem em juízo.

Se nos detivermos um pouco nas novidades trazidas pelo regime instituído pelos diplomas anteriormente referidos, constatamos que a assistência judiciária podia agora ser prestada tanto a pessoas singulares como colectivas, ainda que estas últimas não possuíssem estatuto de utilidade pública, o que representa um alargamento do campo subjectio de aplicação do instituto da assistência judiciária em termos bastante amplos (cf. Base II da Lei n.º 7/70). Note-se, aliás, que na actualidade, as pessoas colectivas em geral não podem beneficiar dos mecanismos de apoio judiciário equivalentes aos então consagrados em 1970, excepção feita às pessoas colectivas com fins não lucrativos que poderão sempre beneficiar daquele regime quando preencham os demais requisitos legais. No plano objectivo, a assistência judiciária passa a ser aplicada a qualquer jurisdição, podendo dela beneficiar ambas as partes de uma causa, independentemente da sua posição processual (Base V da Lei n.º 7/70).

Também inovador é o facto de se passar a prever que o juiz da causa determina a remuneração que deve ser paga ao patrono designado para promover o patrocínio (Bases IX e X da Lei n.º 7/70).

Apesar destas cruciais inovações de regime, que transformaram a assistência judiciária numa ferramenta mais adequada para se promover a efectiva igualdade das partes no processo, certo é que o mesmo ainda encerrava alguns aspectos que condicionavam o alcance real da sua aplicação. Efectivamente, ao abrigo deste regime, a assistência judiciária não deveria ser concedida se a pretensão do respectivo requerente não tivesse o mínimo fundamento. Por outro lado, ainda que a lei proclamasse que a assistência judiciária poderia ser solicitada em qualquer jurisdição (civil, comercial, laboral, penal, administrativa, etc.), certo é que o diploma que a veio regulamentar (o Decreto n.º 562/70) só tratava da assistência judiciária a requerer nos tribunais ordinários, o que na prática acabou por suscitar dúvidas quanto à sua aplicação no foro laboral. Dúvidas essas que vieram a ser dissipadas pelo Decreto-Lei n.º 44/77, de 2 de Fevereiro.

2.2 O acesso ao Direito em Portugal no quadro da Constituição de 1976

Quando, em 1976, a Constituição da República Portuguesa reconheceu como direito fundamental o acesso ao Direito e aos tribunais, o legislador sentiu a necessidade de instituir um regime regulador do acesso ao Direito e aos tribunais de cariz universal, que propiciasse a todos aqueles que não disponham de meios

Page 40: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 7978

PORT

UG

AL

PORT

UG

AL

económicos para suportarem os custos da utilização do sistema de Justiça os mecanismos necessários para ultrapassar tal problemática. Por seu turno, impunha-se também disciplinar a matéria das condições em que as partes poderiam beneficiar de auxílio em matéria de consulta jurídica, problemática que não havia sido alvo de regulamentação anterior, uma vez que a regulamentação da assistência judiciária que então vigorava só tratava da assistência a conferir aos sujeitos que interviessem num certo pleito judicial.

A regulação do acesso ao Direito em Portugal é uma realidade que conta, assim, com alguns anos de existência, tendo sido introduzidas as fundações do actual regime por via da Constituição da República Portuguesa de 1976.

De facto, o artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, na sua versão originária, sob a epígrafe “Defesa dos direitos” estabelecia no seu n.º 1 que a “A todos é assegurado o acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos”. Assim, o legislador originário veio reconhecer a existência do direito de acesso aos tribunais no quadro dos direitos fundamentais, enquanto manifestação do princípio da igualdade de todos perante a lei4 .

A partir de 1982, com a primeira revisão constitucional, a Lei Fundamental veio consagrar de forma expressa que todos têm direito à informação e à protecção jurídica, incorporando no seu texto a melhor doutrina existente sobre este assunto.

Desenvolvendo os referidos direitos constitucionalmente consagrados, em 1987, o legislador ordinário veio regular, através do Decreto-Lei n.º 387-B/87, de 29 de Dezembro, aprovado no uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 41/87, de 23 de Dezembro, o regime do acesso ao Direito e aos tribunais. Tal regime visava assegurar que, para além de todos gozarem efectivamente do direito de acesso aos tribunais, para defesa dos seus interesses, é a todos garantido acesso à informação e à consulta jurídica. Trata-se do chamado direito de acesso ao Direito, expressão que foi acolhida em Portugal na década de 70 do século passado, passando a ter expressão positivada na epígrafe do artigo 20.º da Constituição, na sua revisão de 1982, e foi posteriormente vertida no corpo do n.º 1 daquele dispositivo na revisão constitucional de 1989. Note-se, no entanto, que, do ponto de vista material, desde a revisão constitucional de 1982, a Lei Fundamental já acolhia os mecanismos que

4 Cf. artigo 13.º, n.º 1 da Constituição. Neste sentido, Carlos Alegre, “Acesso ao Direito e aos Tribunais”, Coimbra, Livraria Almedina, 1989, p.8 e Adélio Pereira André, “Defesa dos direitos e acesso aos Tribunais, Lisboa, Livros Horizonte, 1980, p. 189.

traduzem o acesso ao Direito: informação e protecção jurídica (n.º 1 do artigo 20.º da Constituição, na redacção que lhe foi dada pela Lei Constitucional n.º 1/82).

Assim, aqueles que se encontrassem em condições de poder beneficiar de protecção jurídica, dado estarem em situação de insuficiência económica, poderiam, não só, usufruir do apoio judiciário, isto é, o patrocínio por um profissional forense de dada questão jurídica em tribunal, mas também, de consulta jurídica enquanto forma de aconselhamento especializado sobre determinada matéria relevante para o Direito, estando aqui englobado o acompanhamento extrajudicial para a resolução de litígios, como seja, a elaboração de contratos, representação junto de entidades públicas não jurisdicionais, etc..

Com esta alteração de paradigma, o legislador foi muito além de assegurar a clássica assistência judiciária na sua vertente de patrocínio por advogado ou solicitador de uma causa em tribunal em que se encontre envolvido uma pessoa com carência económica.

Outro dos aspectos inovadores do Decreto-Lei n.º 387-B/87, de 29 de Dezembro, é a regulação da remuneração dos profissionais forenses envolvidos no patrocínio oficioso dos beneficiários do regime de acesso ao Direito.

Com o Decreto-Lei n.º 391/88, de 26 de Outubro, que regulou o apoio judiciário, definindo o respectivo regime financeiro, pela primeira vez, foi estabelecida uma tabela de honorários a pagar aos advogados, advogados estagiários e solicitadores pelos serviços por estes prestados. De sublinhar que a mencionada tabela definia limites mínimos e máximos para o valor dos honorários devidos aos profissionais forenses pela prática de actos ou diligências realizadas no âmbito de apoio judiciário, competindo ao juiz da causa fixar, em concreto, a medida da remuneração efectiva a pagar pelo Cofre Geral dos Tribunais. Com esta medida pretendeu-se estabelecer balizas remuneratórias até aí inexistentes com a finalidade de harmonizar a retribuição aos profissionais forenses incumbidos das defesas oficiosas.

Realça-se que as despesas inerentes ao processo que fossem suportadas pelo profissional forense encarregue do patrocínio judiciário lhe poderiam ser reembolsadas quando fossem devidamente comprovadas e julgadas adequadas pelo juiz.

Sendo certo que, ao longo dos anos, o regime em questão foi sofrendo alguns aperfeiçoamentos, o mesmo manteve os seus principais traços até ao ano 2000,

Page 41: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 8180

PORT

UG

AL

PORT

UG

AL

momento em que, por virtude da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro, se introduziu uma significativa alteração à tramitação do procedimento de solicitação de protecção jurídica, visto que este passou a realizar-se junto da Segurança Social, ao invés de se processar perante o juiz. Esta alteração configura uma importante inovação, por se traduzir na desjudicialização do aludido procedimento, factor que terá contribuído para a agilização da sua tramitação, constituindo também o reconhecimento indubitável, por parte do Estado, de que a protecção jurídica é uma componente de cariz social, que, como tal, deve ser administrada. Com a desjudicialização do procedimento visa-se reservar os tribunais para o magno exercício das funções jurisdicionais que lhes estão constitucionalmente cometidas.

Em 2004, com a publicação da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, lançaram-se as bases da regulamentação actual do sistema de acesso ao Direito, tendo-se procurado objectivar as circunstâncias que podem justificar a concessão de protecção jurídica, por forma a moralizar e uniformizar a concessão deste benefício social.

Por outro lado, foram revistas e actualizadas as tabelas de honorários devidos aos advogados, advogados estagiários e solicitadores com intervenção no âmbito da protecção jurídica, seja na vertente de apoio judiciário, seja na componente de consulta jurídica, com a finalidade de tornar mais justa a remuneração daqueles profissionais, e assim incrementar a qualidade dos serviços prestados, em prol dos beneficiários do sistema de acesso ao Direito. Tal foi o resultado da Portaria n.º 1386/2004, de 10 de Novembro.

Outro traço do novo regime legal instituído pela Lei n.º 34/2004 consistiu na enfatização do papel atribuído à consulta jurídica, uma vez que se passou a fazer depender a concessão de apoio judiciário da prévia apreciação da validade da pretensão jurídica do requerente desse apoio, levada a cabo por profissional forense no âmbito da consulta jurídica. Assim, a consulta jurídica seria uma fase prévia ao apoio judiciário, de carácter obrigatório, que visava realizar uma primeira triagem sobre o objecto da causa, procurando-se erradicar do sistema de justiça acções manifestamente inviáveis e canalizar os recursos afectos ao sistema de acesso ao Direito para aqueles beneficiários que, efectivamente, apresentavam pretensões não desprovidas de fundamento legal. Com efeito, dispunha o artigo 14.º da Lei n.º 34/2004, no seu n.º 1, que: “A consulta jurídica abrange a apreciação liminar da inexistência de fundamento legal da pretensão, para efeito de nomeação de patrono oficioso.” Acrescentava o artigo 21.º daquele diploma, sob a epígrafe “Juízo sobre a existência de fundamento legal da pretensão”

que: “A nomeação de patrono oficioso, pela Ordem dos Advogados, destinada à propositura de uma acção depende de juízo sobre a existência de fundamento legal da pretensão, feito em sede de consulta jurídica.”

O actual quadro regulatório do sistema de acesso ao Direito vigora plenamente desde 1 de Setembro de 2008, encontrando-se vertido na Lei n.º 34/2004, tal como alterada e republicada pela Lei n.º 47/2007, de 28 de Agosto, e regulamentada pela Portaria n.º 10/2008, de 3 de Janeiro, alterada e republicada pela Portaria n.º 654/2010, de 11 de Agosto, pelo Portaria n.º 11/2008, de 3 de Janeiro e pela Portaria n.º 1085-A/2004, de 31 de Agosto, alterada pela Portaria n.º 288/2005, de 21 de Março e parcialmente revogada pela Lei n.º 47/2007.

O sistema em causa é gerido pela Ordem dos Advogados e a participação no mesmo passou a ser voluntária. De notar que, desde então, a gestão do sistema de acesso ao Direito, e, nomeadamente, as nomeações de advogados que participam no sistema como patronos ou defensores oficiosos, passaram a ser efectuadas por via electrónica, assim se esperando contribuir para uma maior eficiência e eficácia da tramitação do procedimento de concessão de protecção jurídica, em prol dos cidadãos que do mesmo careçam.

Vejamos, mais detalhadamente, os moldes em que o regime jurídico que disciplina o acesso ao Direito se encontra gizado em Portugal.

3. O regime actual do sistema de acesso ao Direito – uma descrição sumária

O sistema de acesso ao Direito apresenta duas valências essenciais: informação jurídica e protecção jurídica.

A informação jurídica é garantida, de forma directa, pelo Estado, e traduz-se, nomeadamente, na divulgação de múltipla informação sobre os mais diversos temas relacionados com a matéria da Justiça.

É da competência do Ministério da Justiça, nos termos da mencionada lei, a organização de acções de informação jurídica, tendentes a dar a conhecer o Direito aos cidadãos. Esta tarefa pode ser desenvolvida em colaboração com todos os operadores da Justiça5. 5 Em cumprimento deste desiderato, a Direcção-Geral da Política de Justiça, tem sido um dos serviços do Ministé-rio da Justiça que tem contribuído para a produção e divulgação de diversos materiais com informação jurídica sobre temas ligados à área da justiça. A título de exemplo, podemos indicar que, a partir de 2007, se encontra disponível ao público em geral, através do sítio da Internet http://www.dgpj.mj.pt um vasto acervo de legislação relevante neste domínio, composto

Page 42: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 8382

PORT

UG

AL

PORT

UG

AL

Relativamente à protecção jurídica, o sistema de acesso ao Direito procura facultar aos cidadãos que não tenham condições de suportar os custos de utilização do sistema de justiça, a possibilidade de reacção contra a lesão efectiva ou potencial dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos.

Assim, têm direito a protecção jurídica, aqueles que, demonstrando insuficiência económica, sejam cidadãos nacionais ou da União Europeia, estrangeiros e apátridas que tenham título de residência válido na União Europeia, estrangeiros sem título de residência válido em Estado-membro da União Europeia, desde que os cidadãos portugueses beneficiem de idêntico tratamento nos países de que aqueles sejam nacionais (princípio da reciprocidade) e as pessoas colectivas sem fins lucrativos, restringindo-se, nestes casos, a protecção jurídica à modalidade de apoio judiciário. Tal é o que deriva do disposto no artigo 7.º da Lei n.º 34/2004. Em conformidade com este dispositivo legal, segundo um princípio de reciprocidade de tratamento, os nacionais dos Estados-membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa poderão beneficiar de apoio judiciário.

A protecção jurídica compreende a consulta jurídica e o apoio judiciário.

A consulta jurídica traduz-se no esclarecimento de natureza técnica sobre o Direito aplicável ao caso concreto, abrangendo ainda a prática de diligências extrajudiciais que decorram do aconselhamento prestado. Este regime encontra-se previsto no artigo 14.º da supra citada lei.

A consulta jurídica pode ser prestada em gabinetes de consulta jurídica ou em escritórios de advogados que se encontrem inscritos no sistema de acesso ao Direito (cf. Artigo 15.º da Lei n.º 34/2004).

O apoio judiciário compreende as medidas concedidas pelo Estado aos cidadãos economicamente hipossuficientes, por forma a que estes possam utilizar o sistema de justiça, sub-rogando-se o Estado no pagamento integral ou parcial dos custos àquele inerentes, sejam estes devidos a título de custas e outros encargos emolumentares, sejam reportados à remuneração do profissional forense ou agente de execução público nomeado.

por cerca de 2000 diplomas, denominado “Leis da Justiça”, cujo projecto teve por objectivo facultar aos cidadãos informação devidamente tratada e organizada sobre todo o quadro legal português em matéria de justiça. Contemplam-se diplomas sobre organização e funcionamento do Ministério da Justiça, organização judiciária, leis civis e de processo civil, leis criminais, de processo criminal e prisionais, leis sobre contra-ordenações, leis administrativas, de processo, procedimento administrativo e responsabilidade do Estado, leis da nacionalidade, registos e do notariado, leis comerciais e da empresa, leis sobre arbitragem e exercício extrajudicial da justiça e leis sobre advogados e solicitadores, organizando-se em 10 livros.

Note-se que a pluralidade de medidas criadas pelo legislador para este fim teve por escopo responder da forma mais completa e ajustada possível à panóplia de situações em que o beneficiário hipossuficiente se pode encontrar no momento em que carece de recorrer ao sistema de acesso ao Direito. Na verdade, é fácil conceber que, nuns casos, o utente da justiça que carece de protecção jurídica consegue suportar parte dos custos de funcionamento do sistema, pelo que o Estado só deverá assumir a parcela de encargos que não esteja dentro das possibilidades económicas do requerente. Noutros casos, pelo contrário, ao requerente deve ser concedida uma “isenção” total de pagamento dos encargos resultantes do recurso à justiça, bastando, para tanto, que este não disponha de pecúnia suficiente para fazer face a tais despesas. Na mesma linha de raciocínio, facilmente se compreende que a lei tenha estabelecido que sempre que o beneficiário de protecção jurídica adquira meios económicos bastantes para prover aos custos da utilização do sistema de justiça, o benefício será cancelado, sendo reembolsados ao serviço do Ministério da Justiça com responsabilidade em matéria de gestão financeira os fundos que o beneficiário haja percebido. Regem nesta matéria os dispositivos contidos nos artigos 10.º, 11.º e 13.º da Lei do acesso ao Direito.

Nos termos do artigo 16.º da lei, são modalidades de apoio judiciário a dispensa do pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo, a nomeação e pagamento da compensação de patrono, o pagamento da compensação de defensor oficioso, o pagamento faseado de taxa de justiça e demais encargos com o processo, a nomeação e pagamento faseado da compensação de patrono, o pagamento faseado da compensação de defensor oficioso e a atribuição de agente de execução.

Sendo certo que, com a Lei n.º 34/2004, na sua redacção primitiva, passou a estar objectivado o conceito de insuficiência económica (cf. o disposto no artigo 8.º da Lei n.º 34/2004), estando definidos os critérios legais para apreciação dessa insuficiência, com a alteração introduzida pela Lei n.º 47/2007, de 28 de Agosto, naquele diploma, imprimiu-se uma certa flexibilidade na apreciação da insuficiência económica, ao atribuir-se ao dirigente máximo dos serviços de segurança social que apreciaram o pedido de apoio judiciário a faculdade de, mediante despacho especialmente fundamentado, considerar que se está perante uma situação de insuficiência económica mesmo que da estrita aplicação dos referidos critérios tal não resultasse. Pretende-se assim afastar eventuais situações de denegação de justiça que poderiam advir da simples observância daqueles critérios.

Pedra de toque em que assenta todo o regime de acesso ao Direito tal como

Page 43: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 8584

PORT

UG

AL

PORT

UG

AL

plasmado na Lei n.º 34/2004, na sua actual redacção, é o carácter voluntário da adesão dos profissionais forenses a este sistema. De facto, se até à entrada em funcionamento do actual sistema, ocorrida em 1 de Setembro de 2008 6, patrono ou defensor oficioso – consoante estejamos perante um processo de natureza cível ou criminal -, poderia ser nomeado dentre advogados, advogados estagiários ou solicitadores inscritos nas respectivas ordens profissionais, a partir daquela data, somente aqueles que se encontrem inscritos no sistema de acesso ao Direito poderão ser nomeados para prestarem serviços de protecção jurídica.

De notar que a lei regula detalhadamente a nomeação de defensor oficioso em processo penal, uma vez que a sensibilidade dos valores tutelados por este ramo do Direito impõe que se adoptem mecanismos de resposta rápida para a facultação de defesa aos arguidos.

Neste sentido, o legislador previu, no artigo 39.º, que a nomeação de defensor ao arguido, a dispensa de patrocínio e a substituição se efectuam nos termos do Código de Processo Penal, do capítulo IV daquela lei e da portaria que a regulamenta. A nomeação só é efectuada, no entanto, nos casos em que o arguido, advertido do direito a constituir advogado, declare que não o pode fazer por se encontrar em situação de insuficiência económica. Esta insuficiência será ab initio avaliada pela secretaria com base na informação prestada pelo arguido, segundo os critérios previstos na lei, sendo a nomeação provisória até confirmação pelos serviços da segurança social de que o arguido é hipossuficiente. Caso seja nomeado defensor oficioso e se venha a verificar que o arguido dispunha de meios económicos bastantes para suportar a sua defesa, será sancionado com o pagamento de quantias avultadas previstas na lei.

De registar igualmente, no que concerne a esta matéria em particular, que em Portugal as defesas oficiosas têm de ser asseguradas por profissional forense inscrito no sistema de acesso ao Direito, o que visa garantir a qualidade do serviço prestado, desiderato este plasmado em várias disposições da lei.

Seguindo o rumo que tem sido traçado para simplificar, modernizar e agilizar a prestação de serviços públicos, também no domínio da protecção jurídica se entendeu imprescindível lançar mão dos mais modernos recursos tecnológicos, tendo em vista desmaterializar, quer o procedimento de atribuição de protecção jurídica, quer

6 A este propósito, faz-se notar que a data de entrada em vigor das alterações introduzidas pela Lei n.º 47/2007, de 28 de Agosto, à Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, ocorreu em 1 de Janeiro de 2008; não obstante, as Portarias que regulamentaram aquele regime legal só produziram efeitos plenos a partir de 1 de Setembro de 2008, pelo que foi só nesta data que o sistema de acesso ao direito passou a ser de ingresso voluntário (Portarias n.ºs 10/2008, de 3 de Janeiro, e 210/2008, de 29 de Fevereiro).

a gestão do sistema de nomeação e remuneração dos profissionais forenses inscritos no sistema de acesso ao Direito. De igual modo, também as comunicações entre os profissionais forenses, as respectivas associações públicas profissionais e os serviços da segurança social e os tribunais devem operar-se electronicamente.

A lei prevê ainda um conjunto de mecanismos que visam reforçar as garantias de efectivo acesso ao Direito e à justiça por parte dos cidadãos hiposssuficientes que carecem de regulação, nomeadamente, o pagamento faseado da taxa de justiça, encargos com o processo e compensação do profissional forense sempre que o beneficiário não tem direito à gratuidade no acesso ao Direito mas é-lhe concedida redução dos pagamentos devidos bem como os procedimentos de protecção jurídica a adoptar nas conservatórias e nas situações em que estejam em causa interesse colectivos ou difusos.

Para além da disciplina contida na Lei do acesso ao Direito, como já deixámos entrever, há um conjunto de matérias que se encontram desenvolvidas e regulamentadas nas portarias que foram aprovadas no seguimento daquele diploma7 , das quais se destacam, a admissão, substituição, saída e exclusão dos profissionais forenses ao sistema de acesso ao Direito, a nomeação de patrono e defensor oficioso e pagamento da compensação devida, a distribuição de processos entre os profissionais inscritos no sistema, os termos como se organiza e funciona o serviço de consulta jurídica, encargos decorrentes da concessão de apoio judiciário, identificação das estruturas de resolução alternativa de litígios que se encontram abrangidas pelo sistema de protecção jurídica e gestão e monitorização do sistema.

Outro dos traços inovadores que caracteriza o actual sistema de acesso ao Direito reside na circunstância de se ter estabelecido um sistema de monitorização permanente do seu funcionamento, cometido a uma comissão, designada Comissão de acompanhamento do sistema de acesso ao Direito (CASAD). Esta comissão conta com a participação de várias entidades, tendo a sua composição sido alargada já em 2010, aquando das alterações introduzidas à Portaria n.º 10/2008, de 3 de Janeiro, pela Portaria n.º 654/2010, de 11 de Agosto, no sentido de incorporar todos os serviços do Ministério da Justiça com intervenção no domínio do acesso ao Direito.

7 Vide Portaria n.º 10/2008, de 3 de Janeiro, alterada e republicada pela Portaria n.º 654/2010, de 11 de Agosto; Portaria n.º 11/2008, de 3 de Janeiro; Portaria n.º 1085-A/2004, de 31 de Agosto, alterada pela Portaria n.º 288/2005, de 21 de Março e parcialmente revogada pela Lei n.º 47/2007.

Page 44: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 8786

PORT

UG

AL

PORT

UG

AL

4. Conclusão

Em Portugal, desde há muito que são consagradas regras aptas a permitir aos cidadãos mais carenciados o acesso à justiça para tutela dos seus direitos. Contudo, essa tutela não revestiu sempre os mesmos contornos. Se inicialmente, a assistência jurídica assumia uma feição pro bono, de matriz caritativa, com a Constituição de 1976 a protecção jurídica dos mais pobres passou a ser um dos direitos fundamentais do catálogo constitucional. Por esse facto, a amplitude da protecção jurídica hoje concedida em Portugal e os recursos públicos a ela afectos são muito mais significativos. Com efeito, o modelo actualmente em vigor assegura aos mais desfavorecidos efectiva protecção jurídica para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.

FUNCIONAMENTO DO SISTEMA DE PROTECçÃO JURÍDICA EM PORTUGAL

Renato Gonçalves e Tânia Piazentin1

1. Objecto

O presente artigo pretende lançar luz sobre o modo como vem funcionando, em termos práticos, o regime de protecção jurídica em Portugal. Com este propósito, abordam-se de seguida as seguintes matérias:

i) Procedimento de concessão da protecção jurídica;

ii) Modo de funcionamento do sistema de acesso ao Direito;

iii) Financiamento do sistema de acesso ao Direito;

iv) Monitorização do funcionamento do sistema.

2. Procedimento de concessão da protecção jurídica

Desde que se encontra plenamente em funcionamento a actual legislação sobre o sistema de acesso ao Direito2 , quem pretender beneficiar do mesmo deverá em primeiro lugar dirigir-se aos serviços da segurança social e requerer, em formulário próprio, esse benefício.

Para tal, os serviços da segurança social estão habilitados a prestar a colaboração que se mostre necessária para o correcto preenchimento dos formulários-tipo existentes com a informação necessária à análise do pedido. Os pedidos são apreciados, por aqueles serviços, mediante critérios objectivos fixados na lei.

Podem requerer protecção jurídica pessoas singulares, nacionais ou da União Europeia, estrangeiros ou apátridas com título de residência válido na União

1 Sem prejuízo da sua actividade como Consultores de política legislativa da Direcção Geral da Política de Justiça, do Ministério da Justiça Português, as opiniões expressas no presente texto são da exclusiva responsabilidade dos Autores, não podendo ser entendidas como exprimindo qualquer entendimento daquela Direcção-Geral.2 Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, alterada e republicada pela Lei n.º 47/2007, de 28 de Agosto, e regulamentada pela Portaria n.º 10/2008, de 3 de Janeiro, alterada e republicada pela Portaria n.º 654/2010, de 11 de agosto, pela Portaria n.º 11/2008, de 3 de Janeiro e pela Portaria n.º 1085-A/2004, de 31 de Agosto, alterada pela Portaria n.º 288/2005, de 21 de Março e parcialmente revogada pela Lei n.º 47/2007.

Page 45: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 8988

PORT

UG

AL

PORT

UG

AL

Europeia, e estrangeiros sem aquele título desde que os portugueses gozem de idêntico benefício nos Estados de origem.

Apenas às pessoas colectivas sem fins lucrativos é reconhecido o direito à protecção jurídica gratuita ou a custos reduzidos3.

Pressuposto da concessão da protecção jurídica é que o requerente se encontre em situação de insuficiência económica, nos termos da lei, o mesmo é dizer que, pode requerer tal benefício quem “ (…) tendo em conta o rendimento, o património e a despesa permanente do seu agregado familiar, não tem condições objectivas para suportar pontualmente os custos de um processo. Por razões de segurança jurídica, os pedidos apresentados têm de ser instruídos com os documentos que provem essa situação de insuficiência económica.

De sublinhar que a apresentação do pedido de protecção jurídica nos serviços da segurança social interrompe os prazos processuais em curso, que apenas se reiniciam após a notificação do profissional forense nomeado ou a notificação do decisão de indeferimento da pretensão. Os serviços da segurança social dispõem de 30 dias para apreciar e decidir o pedido de protecção jurídica, sob pena de deferimento tácito do mesmo, ou seja, considerar-se concedida a pretensão de forma automática pelo mero decurso do tempo.

O requerente que veja denegada a sua pretensão pode reagir judicialmente no prazo de 15 dias, impugnando em tribunal a decisão que lhe seja desfavorável, sem necessidade de constituir advogado para esse efeito.

3. O sistema de acesso ao Direito em acção

Após a concessão da protecção jurídica ao requerente, este entra em contacto com um conjunto organizado de regras e procedimentos que visam assegurar ao beneficiário uma verdadeira defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos – trata-se do sistema de acesso ao Direito. Vejamos, pois, em traços gerais, o modo de funcionamento deste sistema.

Contrariamente ao que sucedia até Setembro de 20084 , em que todos os advogados poderiam, em princípio, ser convocados para promover defesas oficiosas, 3 Com maior detalhe sobre o regime vigente em Portugal, ver “Breve excurso sobre o acesso ao Direito em Portugal”, Renato Gonçalves e Tânia Piazentin.4 Data em que entrou em pleno funcionamento o sistema de acesso ao Direito na sua actual configuração, por efeito das alterações ao quadro legal vigente pela Lei n.º 47/2007, de 28 de Agosto e respectiva regulamentação.

a partir de então o sistema de acesso ao Direito passou a ter carácter voluntário. Esta voluntariedade potencia que os profissionais forenses que integram o referido Sistema se dediquem, de forma acirrada, à defesa daqueles que da mesma carecem e assenta no pressuposto de que os que participam no sistema são pagos em tempo e de forma periódica pelos serviços que prestam.

O sistema de acesso ao Direito assenta num modelo de gestão inovador, baseado na tramitação electrónica do procedimento de nomeação do profissional forense e registo electrónicos dos actos praticados, objecto de remuneração. Com efeito, foi desenvolvido o Sistema de informação nacional da Ordem dos Advogados (SinOA), aplicação que gere todos os processos de nomeação dos advogados inscritos no Sistema de Acesso ao Direito, e bem assim, as vicissitudes inerentes à nomeação de cada advogado, como sejam, pedidos de nomeação de advogado para acompanhamento de processo, pedidos de escusa, pedido de substituição de advogado para acompanhamento de processos, termo do processo, substituição dos processos inseridos em lotes, pedidos de pagamento, designação para participação em escalas de prevenção, etc.. No caso dos procedimentos urgentes, nomeadamente, assistência ao primeiro interrogatório de arguido detido e audiência em processo penal na forma sumária, à Ordem dos Advogados incumbe a organização de escalas de prevenção, sendo a nomeação efectuada pelo tribunal com base na lista de advogados inscritos nessas escalas, e confirmada pela Ordem dos Advogados, com base em procedimentos electrónicos.

Este sistema interage com todos os sistemas informáticos das entidades envolvidas no acesso ao Direito: segurança social, tribunais e instituto do Ministério da Justiça responsável pelos pagamentos.

3. Financiamento do sistema de acesso ao Direito

Sendo incumbência do Estado, com assento constitucional, garantir o direito de acesso ao Direito e aos tribunais, o legislador ordinário atribuiu ao Estado a responsabilidade de promover tal direito, estabelecendo, nomeadamente, o dever de “cooperação com as instituições representativas das profissões forenses” 5. Ao Estado compete, por outro lado, como decorrência do imperativo constitucional, financiar o sistema, provendo aos profissionais forenses uma compensação adequada6 .5 Cf. artigo 2º da Lei n.º 34/2004.6 Cf. artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, artigos 3.º e 45.º da Lei n.º 34/2004 e artigo 33.º da Por-taria n.º 10/2008.

Page 46: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 9190

PORT

UG

AL

PORT

UG

AL

Cabe ao Instituto de Gestão Financeira e de Infra-Estruturas da Justiça (IGFIJ) o processamento dos pagamentos devidos no âmbito do sistema de acesso ao Direito, o qual se financia por transferências do Orçamento de Estado para os cofres do referido instituto, bem como através de receitas próprias, como seja, a taxa que, em certos casos, é devida pela prestação de consulta jurídica.

A este respeito, importa dar nota que tem-se registado alguma irregularidade no pagamento atempado da compensação devida aos profissionais forenses inscritos no sistema, sendo este um dos aspectos que podem por em causa o funcionamento regular do sistema, pelo que urge encontrar uma forma adequada para a sua ultrapassagem, a qual poderá passar, designadamente, por alterar o modelo de financiamento do sistema de acesso ao Direito.

4. Monitorização do funcionamento do sistema

São caracteres do sistema de acesso ao Direito na sua actual configuração a obrigação de o Estado assegurar, em qualquer circunstância, o direito de acesso ao Direito e aos tribunais, a natureza voluntária do ingresso dos profissionais forenses no sistema de acesso ao Direito e a existência de mecanismos informáticos na gestão dos recursos envolvidos no sistema. Desde cedo se percebeu que a sua articulação era susceptível de acarretar riscos, que poderiam consistir por um lado, na insuficiência (ao menos temporária) de advogados a prestar os serviços necessários para a defesa daqueles que carecem de protecção jurídica, e por outro lado, na ocorrência de bloqueios à prestação daqueles serviços. Assim, consciente da importância de detectar e suprir as eventuais dificuldades que viessem a surgir, o legislador confiou a uma comissão, designada Comissão de acompanhamento do sistema de acesso ao Direito (CASAD), a regular monitorização do funcionamento do sistema.

Esta comissão é composta actualmente por quatro representantes do Ministério da Justiça, quatro representantes da Ordem dos Advogados e um representante da segurança social.

No âmbito da regular monitorização do sistema de acesso ao Direito, a CASAD elaborou, em Agosto de 2009, o 1.º Relatório de Monitorização do Sistema de Acesso ao Direito, no qual foram identificados os principais constrangimentos detectados à data e se apontavam possíveis aperfeiçoamentos a introduzir no quadro legal vigente. Procurando dar resposta a algumas das preocupações manifestadas no

referido relatório, o Governo procedeu à alteração da portaria que regulamenta a Lei de Acesso ao Direito. Destacam-se os seguintes aspectos: procedimentos a utilizar para o pagamento da taxa prévia, quando devida pela prestação de consulta jurídica e para o pagamento do serviço ao advogado que a presta, procedimentos relativos ao pagamento de despesas realizadas pelos profissionais forenses e alteração da composição da CASAD por forma a abranger todas as entidades com competências no âmbito do acesso ao direito.

Já no quadro da vigência das alterações introduzidas pela Portaria n.º 654/2010, de 11 de Agosto, a CASAD sinalizou alguns problemas resultantes da implementação daquelas, encontrando-se em preparação o 2.º Relatório de Monitorização do Sistema de Acesso ao Direito.

5. Conclusão

O sistema de acesso ao Direito, nos seus moldes actuais, tem respondido de forma satisfatória e regular aos pedidos de protecção jurídica formulados. No entanto, há aspectos do seu funcionamento que podem e devem ser aperfeiçoados, sendo indispensável prosseguir com a sua monitorização.

Page 47: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 93

SÃO

TO

E

PRÍN

CIPE

BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 201292

PORT

UG

AL

ASSISTÊNCIA JURÍDICA AOS NECESSITADOS E CARENCIADOS à LUZ DO ORDENAMENTO JURÍDICO SÃO-TOMENSE E A SUA

EFECTIvAçÃO JURÍDICO-INSTITUCIONAL

Kótia Solange do Espírito Santo Menezes

1- ASSISTÊNCIA JURÍDICA AOS NECESSITADOS E/ CARENCIADOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO SÃO – TOMENSE

A República Democrática de São Tomé e Príncipe é um Estado de Direito democrático, baseado nos direitos fundamentais da pessoa humana. O Estado de Direito Democrático implica a salvaguarda da justiça e da legalidade como valores fundamentais da vida colectiva.

O direito de acesso à justiça constitui assim, o pilar de um Estado Democrático, e, por essa razão, a Constituição da Republica de São Tomé e Príncipe plasma no seu artigo 1º o seguinte: “A República Democrática de São Tomé e Príncipe é um Estado soberano e independente, empenhado na construção de uma sociedade livre, justa e solidária, na defesa dos Direitos do Homem e na solidariedade activa entre todos os homens e todos os povos”.

A constituição são-tomense de 2003, em vigor, preconiza no seu artigo 20.º que “Todo o cidadão tem direito de recorrer aos tribunais contra os actos que violem os seus direitos reconhecidos pela Constituição e pela lei, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos”.

No excerto referido supra, está em causa o acesso aos Tribunais, ao contrário dos outros ordenamentos jurídicos constitucionais, onde a questão é mais abrangente, sendo o acesso ao direito e aos Tribunais.

Em ordenamentos jurídicos diferentes, as normas constitucionais têm uma amplitude maior que a da Constituição são-tomense e essa diferença tem consequências a nível dos meios e mecanismos que são postos à disposição dos cidadãos para o seu esclarecimento e a formação da consciência jurídica e, por conseguinte, na plena e eficaz garantia dos seus direitos.

No conjunto da realidade são-tomense principalmente a partir de 2003,

Page 48: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 9594

SÃO

TO

E

PRÍN

CIPE

SÃO

TO

E PR

ÍNCI

PE

quando se reafirmou a objetivo de construção de uma sociedade mais justa e solidária, mais intensamente os diversos segmentos sociais não buscaram a implementação de serviços e ações afirmativas do Estado para trazer sentido e praticidade aos programas que foram desenhados na Constituição. Assim, o cidadão que necessita de defender seus direitos, muitas vezes não encontra amparo na Carta Constitucional que expõe que todo o cidadão tem direito de recorrer aos tribunais contra os actos que violem os seus direitos reconhecidos pela Constituição e pela Lei, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.

Apesar da insuficiência do texto da norma constitucional são-tomense, a evolução legislativa posterior também não possibilitou, na nossa opinião, uma verdadeira concretização do princípio do acesso ao direito, aos tribunais e à justiça e, mais ainda, quando em 1994, após a entrada em vigor do Código das Custas Judiciais, aumentou-se substancialmente o montante a pagar a título de custas judiciais.

Extirpa-se dos preceitos transcritos que existe a plena garantia formal do acesso à justiça. Todavia, se por um lado a tarefa de regular o exercício da jurisdição é do Estado, por outro lado, como veremos, tal tarefa depende de um conjunto de fatores, indo desde o direito processual até o nível de instrução das pessoas.

2- PRESTAçÃO JURÍDICA E JURISDICIONAL POR PARTE DA INSTITUIçÃO SÃO-TOMENSE.

A recente e atual Constituição são-tomense ao destacar o dever de prestação da assistência jurídica, é muito sucinta no tratamento desta matéria, pois,não esclareceu também quem deve fazê-la.

O acesso ao tribunal não é nem deve ser a única via para garantir os direitos dos cidadãos e que o recurso ao tribunal apenas deve acontecer quando o conflito não for passível de resolução através das outras formas de acesso ao direito e justiça.

O Poder Judiciário, no Estado Democrático de Direito, parafraseando Lobato, foi chamado para ser guardião da Constituição. Assim, para o mesmo autor, agindo como mecanismo de control dos demais poderes, o Judiciário está atuando de forma a fortalecer as instituições democráticas.1

1 LOBATO, Anderson Oreste Cavalcante. Política, constituição e justiça: desa-fios para a consolidação das instituições democráticas. Revista de Sociologia Política, Curitiba, n. 17, 2001, p. 46.

Em São Tomé e Príncipe, só muito recentemente e de forma lenta é que os Tribunais decidiram assumir sua co-rresponsabilidade na atuação providencial do Estado. Pode-se afirmar que os factores desta lentidão são vários, dentre os quais o conservadorismo da cultura jurídica, o desempenho burocrático assente na justiça retributiva politicamente hostil à justiça distributiva, organização judiciária deficiente com carências em recursos materiais, humanos e técnicos, e por fim, legislações antiquadas, distantes da complexidade dos conflitos sociais e da realidade actual.

Como consequência, continuamos a aplicar a Lei n.º 7/70, de 9 de Junho (Lei de Assistência Judiciária) e o respectivo Decreto Regulamentar (Decreto n.º 562/70, de 18 de Novembro) e, para as causas criminais, as disposições do Código de Processo Penal, que já não se adequam a realidade actual, produzindo, por vezes, efeitos perversos. E, mais grave ainda, perante a elevada taxa das custas judiciais (cerca de 12% do valor da acção) e a não assunção pelo Estado da sua obrigação com encargos decorrentes da assistência judiciária e patrocínio judiciário, a grande maioria dos cidadãos não conseguem aceder aos tribunais para fazer valer os seus direitos.

Ora, a Lei n.º 7/70 prevê na sua Base I o seguinte:

1. “A assistência judiciária compreende a dispensa, total ou parcial, de preparos e do prévio pagamento de custas, e bem assim do patrocínio oficioso.

2. De iguais benefícios goza o interessado para obter a assistência.

3. Os interessados com direito à assistência podem requerer a concessão dos dois benefícios a que se refere o n.º 1 ou somente um deles.”

Nos termos desta Lei, têm direito à assistência todos aqueles que se encontrem em situação económica que lhes não permita custear as despesas normais do pleito, sendo que a insuficiência económica do requerente deve ser demonstrada mediante prova documental, excepto nos casos de presunção estabelecida na Lei ou regulamento (Bases II, n.º 1 e III, n.º 1).

Encontra-se em situação de insuficiência económica aquele que, tendo em conta o rendimento, o património e a despesa permanente do seu agregado familiar, não tem condições objectivas para suportar, pontualmente, os custos de um processo. Cabe ao requerente fazer a prova da sua situação económica.

Nos termos da Base VI a assistência judiciária pode ser requerida em qualquer estado da causa pelo:

a) Interessado;

Page 49: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 9796

SÃO

TO

E

PRÍN

CIPE

SÃO

TO

E PR

ÍNCI

PE

b) Pelo Ministério Público, em representação do interessado;

c) Por advogado nomeado pelo juiz para esse efeito, a pedido do interessado ou do Ministério Público.

Nas causas criminais a assistência só pode ser concedida aos acusados e àqueles de cuja acusação depende o exercício da acção penal pelo Ministério Público. (base V, n.º

A competência para concessão da assistência judiciária pertence ao juiz da causa para qual é solicitada e tal pedido é processado como um incidente do respectivo processo, admitindo oposição da parte contrária. Porém, quando for evidente que a pretensão do requerente não pode proceder, o seu pedido de assistência deve ser liminarmente indeferido (Bases VII, n.º 1 e III, n.º 2).

A decisão que concede a assistência não é passível de recurso, mas da que recusar o pedido de assistência cabe recurso de agravo com efeito suspensivo.

Sempre que for concedida a assistência, esta mantém-se para efeitos de recurso, qualquer que seja a decisão sobre o mérito da causa.

A assistência judiciária concedida pode, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, da parte contrária, do advogado ou solicitador nomeado ou dos funcionários do tribunal, ser retirada quando:

I. O beneficiado adquirir meios suficientes para poder dispensá-lo;

II. Se provar por novos documentos que não subsistem as razões com base nas quais foi concedida a assistência;

III. Que os documentos que serviram de base à concessão forem declarados falsos por decisão com trânsito em julgado;

IV. Em recurso, for confirmada a condenação do assistido como litigante de má-fé.

Ainda nos termos da Lei n.º 7/70, o patrocínio oficioso é exercido por advogado e solicitador nomeado pelo juiz, em princípio mediante escala a organizar pela Ordem dos Advogados e pela Câmara dos Solicitadores. Ora, até ao ano 2007, STP não tinha uma Ordem dos Advogados e não tem até a presente data uma Câmara de Solicitadores. O Conselho Superior Judiciário que acumulava as competências nesta matéria nada fez nesse sentido.

É certo que o juiz poderia nomear um advogado que tenha aceite a indicação

feita pelo interessado (Base VIII, n.º 3) mas como o interessado não conhece a lei essa hipótese raras vezes ocorre.

A Lei prevê que a obrigação de pagamento de custas e honorários só é exigível quando o devedor, beneficiário de assistência, adquira meios que lhe permitam efectuá-lo. Por outro lado, os patronos ou defensores nomeados não podem exigir ou receber quaisquer quantias além das que forem fixadas pelo tribunal. Ora, em S. Tomé e Príncipe já há muito que os advogados, patronos ou defensores nomeados, deixaram de receber honorários pelos serviços prestados, o que não tem motivado alguns advogados a colaborar no sistema de acesso aos tribunais em vigor.

Todavia, na prática actual, a protecção jurídica se resume a casos de nomeação de defensor oficioso nos processos crimes e nos poucos casos apoio ou assistência judiciária nos processos cíveis ou laborais que exige dos potenciais interessados ou beneficiários a deslocação às Câmaras Distritais para solicitarem certidão de deliberação da Junta de Freguesia ou da Câmara Municipal onde tenha residência há mais de seis meses (o vulgarmente chamado “atestado de pobreza”), sem observância do que vem estipulado quer na Lei de assistência judiciária quer no respectivo regulamento, o que provoca situações inadmissíveis. Além disso, para que a Câmara emita a certidão ou atestado é necessário que o interessado requeira e pague a quantia de cinquenta mil Dobras. A Câmara solicita informações à Direcção dos Impostos e à Direcção dos Registos e Notariado para saber se o requerente tem bens/património e, posteriormente, emite a certidão.

Por outro lado, a insuficiência económica pode igualmente ser provada por certidão de que o requerente se encontra a cargo de assistência pública ou por informação do chefe de secretaria do tribunal da causa.

É que, para além de exigir que o requerente alegue os factos e as razões de direito que sustentam o seu pedido de assistência judiciária, a lei e o regulamento exigem que o mesmo apresente logo todas as provas. No seu requerimento, o requerente deve fazer alusão aos seus rendimentos e vencimentos, os seus encargos ou despesas pessoais e familiares, as contribuições e impostos que paga, podendo o juiz oficiosamente investigar a sua veracidade quando tiver por conveniente (Artigo 2.º do Regulamento – Decreto n.º 562/70, de 18 de Novembro).

Recebido o pedido de assistência judiciária, o juiz deve proferir despacho liminar e quando não indefira a pretensão, mandará citar ou notificar, conforme o caso,

Page 50: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 9998

SÃO

TO

E

PRÍN

CIPE

SÃO

TO

E PR

ÍNCI

PE

a parte contrária para contestar. Essa oposição deve ser deduzida no articulado da acção imediato ao do pedido, se esta o admitir, ou em articulado próprio, no prazo de 5 (cinco) dias, sendo logo oferecidas provas (artigo 11.º do Regulamento).

Recebida a oposição o juiz ordenará que se efectue diligências que lhe pareçam indispensáveis para decidir o incidente da assistência, devendo a decisão ser fundamentada e especificar qual a modalidade de assistência concedida e se ela é total ou parcial, e neste caso, quais os benefícios que foram atribuídos.

As custas do incidente da assistência são da responsabilidade da parte vencida, não havendo custas se a assistência for concedida sem oposição da parte contrária. Os articulados, requerimentos e documentos necessários ao incidente são isentos de prévio pagamento de imposto do selo e não são exigidos preparos. (artigo 28.º do Regulamento).

3- CONCLUSÃO

A questão do acesso aos direitos e à justiça por parte dos carenciados tem sido constantemente discutida, devido a sua importância jurídica, social e política no Estado Democrático de Direito em que o país se insere.

A ideia de abordar a temática do “acesso à justiça e prestação jurisdicional de acordo com a desigualdade socioeconómica” no ordenamento jurídico são-tomense fundamenta-se no fato de querer-se desenvolver no presente trabalho, não de maneira absoluta a forma como o Estado são-tomense se posiciona face a tal problemática (Acesso à Justiça) dentro da Sociedade, mas ainda, a postura da sociedade na busca desta garantia que lhe assiste.

O sistema Jurídico de São Tomé e Príncipe mostra-se incapaz de atender o aumento das demandas judiciais e as necessidades sociais cada vez mais crescentes e emergentes em razão de atrelar-se aos métodos tradicionais de resolução de conflito por meio da aplicação do direito positivo. A necessidade urgente de viabilizar no Estado são-tomense um efetivo e célere acesso à justiça de forma a proporcionar não somente a garantia, mas também, ao efetivo cumprimento da norma constitucional requere a criação de uma estrutura no quadro jurídico institucional são-tomense, para dar uma melhor resposta a estes casos.

A outra questão que se levanta nesta problemática do acesso à justiça

em São Tomé e Príncipe é a necessidade de uma maior cultura jurídica por parte da população, facto esse que está ligado a problemas de alfabetização que infelizmente ainda persiste na nossa população.

Pelas suas atribuições de instituição essencialà função jurisdicional do Estado, cuja missão é prestar assistência jurídica, judicial e extrajudicial, integral e gratuita, aos necessitados, podemos concluir que torna imprescindível a comprovação da real necessidade financeira para a criação de uma estruturacom a finalidade já aludida, não sendo para tal a imposição de um obstáculo à prestação jurisdicional, mas sim uma forma eficaz de permitir que os recursos do Estado cheguem realmente àqueles que o necessitem, cumprindo assim uma das suas funções que é de facilitar e garantir os direitos aos seus cidadãos, e consequentemente promovendo à maior justiça social possível.

NOTA BIBLIOGRÁFICA:

Constituição da Republica Democrática, 2003

Revista Defensoría Pública da União, nº 2- Julho de 2009

Lei n.º 7/70, de 9 de Junho, Lei de Assistência Judiciária.

Decreto n.º 562/70, de 18 de Novembro.

Doc. “Encontro Nacional de Justiça”, Novembro de 2009.

Doc. “I REUNIÃO DAS INSTITUIÇÕES PÚBLICAS DE ASSISTÊNCIA JURÍDICA E PATROCÍNIO JUDICIÁRIO DOS PAÍSES DE LÍNGUA OFICIAL PORTUGUES”, Brasília, 05 a 08 DE Abril DE 2011.

Page 51: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 101100

TIM

OR

LES

TE

TIM

OR

LES

TE

O PAPEL DA DEFENSORIA PÚBLICA NA CONSTRUçÃO DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Sérgio de Jesus da Costa Fernandes Hornai1 Olga Barreto Nunes2

Dennis Otte Lacerda3

I. Introdução; II. O Público e o Privado: a importância da distinção para a Democracia; III. Os Modelos para Aplicação do Direito numa Sociedade Democrática: as contribuições de Kelsen, Bobbio, Hart e Dworkin; IV. A Defensoria Pública e a consolidação da Democracia; V. Conclusão.

I - Introdução

Após a restauração da independência, o Timor-Leste adentrou na fase da democratização, tendo como marco a promulgação da Constituição de 2002. Ocorre que a forma de discurso a ser produzido numa democracia se perdeu há muito tempo e a participação da população está reduzida a escolha de representantes, um simulacro de democracia. A distinção que antes existia entre o espaço público e o privado não é mais visível e toda a tensão que deveria ser resolvida com o debate de ideias tem como solução o uso da violência, característica do espaço privado. Assim, a partir de um diálogo com Hannah Arendt, procurar-se-á delimitar e compreender o espaço público e privado, distinção necessária para análise da expansão e construção da democracia. A seguir, passar-se-á a analisar os modelos de interpretação e aplicação do direito dos autores clássicos, uma vez que numa sociedade cada vez mais complexa o direito desempenha um papel determinante para o aprofundamento da democracia. Por fim, de posse da noção de espaço público e de como a aplicação do direito contribui para atenuar as tensões geradas neste espaço, encerra-se o trabalho com uma pequena análise de como a Defensoria Pública pode contribuir na construção da democracia.

1 Defensor Público-Geral da República Democrática do Timor-Leste, membro do Conselho Superior da Defensoria Pública, membro do Conselho Superior do Ministério Público e membro da Comissão Nacional de Eleições da República Democrática do Timor-Leste.2 Defensora Pública da República Democrática do Timor-Leste. Bacharel em Direito.3 Defensor Público Federal no Brasil, com designação extraordinária para atuar na Defensoria Pública da República Democrática do Timor-Leste como Defensor Público Internacional. Mestre em Direito.

II. O Público e o Privado: a importância da distinção para a Democracia

A constituição do sujeito é política decorrente da pluralidade humana. O mundo está num processo constante de transformação e a partir da modernidade o sujeito foi gradativamente perdendo a sua faculdade política, mergulhando num processo de alienação que terá como resultado final o aniquilamento do ser humano e de seu mundo.

Hannah Arendt propõe compreender “o que nós estamos fazendo”, a partir de uma reconsideração da condição humana com a finalidade de resgatar a ação política do ser humano a partir da recuperação do espaço público.

A partir da obra A Condição Humana4 , ARENDT reflete acerca das condições de possibilidade para o exercício da cidadania, sendo a ação uma das atividades da vita activa, pressuposto das faculdades da vita contemplativa. Somente adentra no espaço político o cidadão que quer, pensa e julga. É necessário que o cidadão seja ao mesmo tempo ator e espectador para compreender os acontecimentos em sua plenitude e contribuir para a construção do mundo. Para ARENDT, da interação dos cidadãos no espaço público, marcado pela igualdade, é que surge o autêntico poder que legitima a política e o direito.

A sua reflexão sobre os aspectos essenciais da condição humana parte da expressão vita activa. Com esta expressão pretende designar três atividades humanas fundamentais, que correspondem cada uma às condições básicas mediante as quais a vida foi dada ao homem na Terra: o labor, o trabalho e a ação. (i) o labor é a atividade que corresponde à subsistência. A condição humano do labor é a própria vida; (ii) o trabalho é a atividade que produz um mundo artificial. A condição humana do trabalho é a mundaneidade; (iii) a ação corresponde à condição humana da pluralidade. Exerce-se diretamente entre os homens, sem mediação das coisas e é a condição de toda vida política. A pluralidade é a condição da ação humana pelo fato de sermos todos humanos sem que ninguém seja exatamente igual.

A vita activa, ou seja, uma vida dedicada aos assuntos públicos e políticos tem raízes permanentes num mundo de homens ou de coisas feitas pelos homens. A vida humana não é possível sem um mundo que testemunhe a presença de outros seres humanos, por isso a ação não pode ser realizada fora da sociedade dos homens. O

4 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense Uni-versitária, 2001.

Page 52: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 103102

TIM

OR

LES

TE

TIM

OR

LES

TE

labor e o trabalho, que não necessitam da presença de outros homens, não são dignos o suficiente para constituir um modo de vida autônomo e humano.

Na esfera privada tem-se o predomínio da força e da violência. Na esfera pública, o espaço da liberdade e da ação, é a essência da verdadeira política que faz surgir o poder autêntico, sempre que os cidadãos se reúnem no espaço público, para o discurso e a ação. Este encontro dos cidadãos é real e parte do pressuposto de que a pluralidade é inerente à condição humana.

ARENDT aduz critica a doutrina liberal dos modernos, que vê no Estado o detentor do monopólio do poder e da criação do direito, cujo princípio da legalidade está a serviço da liberdade dos cidadãos, a garantir-lhes os direitos à vida e à propriedade. A modernidade colocou na razão a possibilidade de instituir o Estado e fundar a ordem social. A força das leis é capaz de submeter os homens. ARENDT não concorda com esta racionalidade e na imposição das leis para direcionar condutas.

O poder surge sempre que os cidadãos se reúnem e travam o discurso político que conduz à ação, não havendo a relação de subordinação neste espaço público, uma vez que todos estão em igualdade de condições de expressar seus pontos de vista.

ARENDT busca a definição das esferas pública e privada na antiga sociedade grega. Na polis grega havia uma perfeita delimitação entre o espaço privado e o público. No primeiro eram desenvolvidas as atividades do labor, inerentes à sobrevivência, e da fabricação de bens, enquanto que no segundo, os cidadãos desempenhavam uma terceira atividade, a ação política, a mais importante de todas, uma vez que resultava na criação das instituições políticas que asseguravam a existência do mundo comum.

Os antigos gregos consideravam dois os modos de viver: o público e o privado. O primeiro era o único modo de vida considerado livre e autenticamente humano. Compreendia as atividades ligadas aos assuntos da polis e à contemplação ou filosofia. Era considerada como vida voltada às coisas não necessárias à sobrevivência do homem. A privada girava em torno das atividades necessárias à satisfação das necessidades materiais da vida, do trabalho e da fabricação. Nesse período, entretanto, somente a vida dedicada à política possuía verdadeira importância na vita activa.

Na vida pública (na polis) tudo era decidido mediante palavras e persuasão, e não através da força e violência, que eram características da vida privada (em

família). O domínio absoluto e inconteste do chefe da família sobre as pessoas e os escravos na esfera privada era totalmente contrário ao que ocorria na esfera pública. O espaço privado se restringia às atividades econômicas necessárias à reprodução da vida, não havendo sociabilidade nem interação entre os indivíduos.

A polis diferenciava-se da família pelo fato de somente conhecer iguais, ao passo que a família era o centro da mais severa desigualdade. Ser livre significava ao mesmo tempo não estar sujeito às necessidades da vida, nem ao comando do outro e também não comandar.

A noção de espaço público se configura como o espaço no qual a ação e o discurso de cada um contribuem para a construção de um “mundo comum”, a essa noção agrega-se sua dimensão política.

Com o advento da Modernidade há um esvaziamento do espaço público e o declínio do homem político, oportunizando o surgimento de uma sociedade despolitizada e atomizada pela competição e por uma instrumentalização do mundo.

Na modernidade ocorre uma inversão histórica entre as esferas pública e privada: a primeira passa a ser a esfera da liberdade e a segunda a da necessidade, perdendo o seu sentido essencialmente político. As atividades da condição humana - ação, trabalho e labor - perderam o sentido na modernidade.

Isso pois ao se elevar à esfera pública a preocupação com a sobrevivência, a esfera política sofre um verdadeiro achatamento. Agora, ao invés de servir de instrumento para a resolução das questões que se interpõem entre os homens, à política moderna incumbe o gerenciamento da economia doméstica, antes reservada à esfera privada.

Com a ascensão da sociedade e declínio da família, o que ocorreu, na verdade, foi uma absorção da família por grupos sociais correspondentes. A sociedade exclui a possibilidade de ação, que antes era exclusiva do lar doméstico e, ao invés da ação, a sociedade espera de cada um dos seus membros um certo tipo de comportamento, impondo várias regras, normalizando seus membros, fazendo-os ficarem comportados, abolindo a espontaneidade e a reação inusitada.

O surgimento da sociedade de massas indica que os vários grupos sociais foram absorvidos por uma sociedade única, como as famílias haviam sido absorvidas por grupos sociais, ocorrendo por parte da esfera social o controle com igual força

Page 53: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 105104

TIM

OR

LES

TE

TIM

OR

LES

TE

de todos os membros de determinada comunidade. Quanto maior é a população de qualquer corpo político maior é a probabilidade de que o social, e não o político, constitua a esfera pública, pois os indivíduos, agrupados numa multidão, desenvolvem inclinação para o despotismo pessoal ou governo da maioria. A autora ainda alerta que a ausência ou a presença de uma esfera pública é tão irrelevante quanto qualquer realidade tangível e mundana; e nenhuma atividade pode tornar-se excelente se o mundo não proporciona espaço para o seu exercício.

Na era moderna, após a promoção da sociedade à proeminência pública, impera uma sociedade de massas onde vemos todos passarem subitamente a se comportar como se fossem membros de uma única família, cada um a manipular e prolongar a perspectiva do vizinho, tornando os homens privados de ver e ouvir os outros e privados de ser vistos e ouvidos por eles, o que a autora chama de prisioneiros da subjetividade de sua própria existência singular.

Como forma de substituir os espaços público e privado, diluídos em função dessas transformações, ocorre a ascensão do “social”, esfera através da qual todos os membros da sociedade consideram tudo o que fazem como modo de garantir a vida.

O Estado Moderno, por meio de seus mecanismos, pôde subtrair dos indivíduos o direito de participar diretamente na constituição do mundo público, introduzindo a democracia de massas.

O isolamento, conseqüência da perda do espaço que articula os homens num mundo compartilhado de significados, se traduz como uma forma de vida radicalmente privatizada. Reduzidos à vida privada, no sentido de privação, os homens se tornam prisioneiros de sua própria existência singular, fragmentada e sem significação para o mundo dos homens. Como só no espaço público a singularidade de cada um é reconhecível e pode ser reconhecida, ocorre a perda da capacidade de agir e falar, a perda do senso comum, da imparcialidade e da memória.

Ao tratar da esfera privada, a autora diz que a acepção original de privado é “privação”, da destituição de coisas essenciais à vida verdadeiramente humana, e que nas circunstâncias modernas a privação da relação entre as pessoas tornou-se o “fenômeno de massa da solidão”. Posteriormente, quando trata sobre a propriedade, ARENDT diz que “a riqueza privada (...) tornou-se condição para admissão à vida pública (...) porque garantia como razoável certeza que ele não teria que prover para si mesmo os meios do uso e do consumo, e estava livre para exercer a atividade política”. Depois, quando passou à esfera pública, “a sociedade assumiu o disfarce

de uma organização de proprietários que, ao invés de se arrogarem acesso à esfera pública em virtude de sua riqueza, exigiram dela proteção para o acúmulo de mais riqueza”

Para ARENDT, a vida privada não tem necessariamente um sentido negativo, pois equivale a ter um lugar no mundo. Sua reflexão pretende estabelecer o seu lugar e definir as fronteiras entre duas formas distintas de existência social: ambas se diluíram no mundo moderno, significando a perda dos critérios de diferenciação entre aquilo que tem como medida a vida de cada um e aquilo que é comum. No sentido político, a perda do espaço público significa a ausência de um espaço reconhecido de ação e opinião, significa a perda de liberdade que exige, para sua efetivação, um espaço politicamente organizado.

Apenas na experiência da pluralidade humana o mundo pode se constituir como medida que transcende a vida pessoal de cada um e somente nessa interação entre os homens é que um mundo plenamente humano pode se constituir. Como resultado da ausência da esfera pública, para o indivíduo, o “outro” pouco importa e pouco conta, sua existência não faz a menor diferença, o que pode tender ao uso da violência.

A falta do espaço público traduz a perda de um espaço no qual a ação e a palavra podem se manifestar enquanto poder; ocorrendo uma incapacidade de elaborar uma “história comum”.

Quando os princípios que caracterizam a esfera pública – ação, poder, política, liberdade e pluralidade – se retraem em função daqueles intrínsecos à esfera privada – trabalho, violência, economia, necessidade e uniformidade, as manifestações políticas passam a ser balizadas pelos rudimentos privados, tendo em vista o alcance de objetivos imediatos.

Dessa forma, ocorre a perda de um mundo comum, que desfaz a estrutura das atividades públicas e seus produtos: o senso comum, o julgamento, a imparcialidade e a memória. A perda dessas qualidades reduz o homem e a vida ao seu ciclo mais rudimentar: apenas a produção e reprodução da vida.

A distinção entre as atividades da vita activa, quando transportada para a contemporaneidade serve para mostrar que o espaço público da ação política desapareceu nas modernas democracias, limitando-se os cidadãos e exercer o direito de voto, um simulacro de participação. Hoje o espaço privado diz respeito tanto as

Page 54: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 107106

TIM

OR

LES

TE

TIM

OR

LES

TE

paredes da casa como ao social, espaço onde se desenvolvem as atividades econômicas do labor e da fabricação, ou seja, vigora apenas os interesses particulares, ficando a política relegada a um segundo plano, entregue nas mãos de políticos profissionais.

Segundo ARENDT, a modernidade alçou o homo faber para o topo das atividades e sua mentalidade de fazedor e fabricante perdurou durante toda a era moderna. Hoje, na sociedade consumidora de bens descartáveis há nova inversão.

No cume o animal laborans, pois tudo o que os homens fazem é laborar para produzir e consumir bens descartáveis, num processo de alienação de si próprio e do mundo, correndo, os homens, o perigo de se tornarem escravos da necessidade.

A partir da modernidade elevou-se a capacidade produtiva do homem a mais alta aptidão do ser humano, invertendo-se a entre ação (práxis) e pensamento (theoria).

A verdadeira política é construída pelos cidadãos, sempre que existam espaços públicos para o encontro e para a conversa que objetiva a solução de problemas políticos. Daí a sua preocupação em resgatar a ação, colocando-a no topo de hierarquia das atividades humanas, como uma fora de virar as páginas da história, relegando ao passado os erros cometidos e criando uma nova forma de governo e organização social, uma autêntica República.

A ação é a própria liberdade, e esse é o sentido de política, para ARENDT. Não mais a liberdade individual, o ideal da auto-suficiência do credo liberal, mas sim uma conciliação desta soberania com o exercício plural da liberdade. Com ARENDT o ponto de partida é a pluralidade e a conservação do mundo. Os valores a serem preservados devem ser vistos sob o prisma dos interesses coletivos, a partir do reconhecimento da dignidade humana e da necessidade de se preservar a vida no mundo, mediante a coexistência e a solidariedade entre todos os povos.

Para ARENDT, a crise do mundo atual é basicamente de natureza política. Conviver exige o respeito às regras sejam elas morais que são opcionais, sejam elas as regras do direito, que são coercitivas. A garantia de adesão da nova geração à ordem de direito instituída que a recebe ao nascer é o direito de resistir, de não concordar.

É possível a reconciliação do ator com o espectador, na pessoa do cidadão, uma vez que a ação política não pode prescindir do juízo político. E é a política, o espaço da liberdade de ação, onde a forma possível de comunicação é através da troca

de opiniões entre os cidadãos, chegando-se apenas a uma verdade relativa, devido a contingência humana. Toda a pretensão, na esfera dos assuntos humanos, a uma verdade única, cuja validade não seja questionada, quer provenha de uma religião, quer resulte de uma ideologia política, ou da especulação filosófica, esta fadada ao fracasso.

A moralidade não passa de hábitos e costumes que podem ser facilmente trocados por outros. A menos que o ser humano seja capaz de algo mais, de resistir, pensar, refletir, enfim, julgar.

Mas isto não é suficiente para o cidadão, que não pode abdicar da cidadania, devendo sempre assumir suas responsabilidades perante si próprio e os outros. Pois a sua omissão, ou seja, a negativa em participar do diálogo contribui também para a conformação do mundo comum, sendo que esta omissão é uma forma de manifestar-se que também traz conseqüências para si próprio e para o mundo.

Mas nesta era de angústias e incertezas, com ARENDT, resta a esperança de que cada ser humano é sempre um recomeço que possui o dom da liberdade, que se manifesta na ação, verdadeira capacidade de operar milagres, podendo o cidadão iniciar uma seqüência absolutamente singular de eventos, sempre que adentrar no espaço político da aparência e somar esforços com seus pares. O desdobramento efetuado por ARENDT no que tange a vita activa e a vita contemplativa, leva a uma maior compreensão deste ser existente, apto a laborar, fabricar, pensar, querer, mas, principalmente, apto a formular juízos políticos e agir, no sentido de dar a sua contribuição no espaço da pluralidade, no que tange a organização e a manutenção do mundo comum.

III. Os Modelos para Aplicação do Direito numa Sociedade Democrática

Compreendendo a noção de esfera pública e sua importância como espaço organizado para discussão política e resolução de conflitos e tensões, com o reconhecimento do direito de todos à participação, destaca-se a contribuição da aplicação do direito para a construção do espaço público e conseqüentemente da democracia. Assim, importante analisar a contribuição teórica dos autores clássicos (Kelsen, Bobbio, Hart e Dworkin) para se verificar a evolução da aplicação do direito na história.

Page 55: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 109108

TIM

OR

LES

TE

TIM

OR

LES

TE

KELSEN

Para historiar, necessário iniciar com Hans KELSEN, verdadeiro “divisor de águas” para a cultura jurídica. Apesar de ser um dos juristas mais debatidos de todos os tempos, todos concordam na importância que seu pensamento teve para o desenvolvimento da ciência jurídica. Assim, importante dedicar algumas linhas a um dos seus mais valiosos trabalhos, a Teoria Pura do Direito 5.

Para tanto, buscar-se-á proceder a uma descrição das principais idéias do doutrinador austríaco, sem se preocupar com eventuais críticas à mencionada obra.

A pretensão de KELSEN era livrar a doutrina jurídica dos elementos metajurídicos e reduzir os fenômenos jurídicos a uma dimensão própria, uma ciência jurídica pura, sem valorações e questões ideológicas. Na descrição do próprio KELSEN, era:

(...) desenvolver uma teoria jurídica pura, isto é, purificada de toda a ideologia política e de todos os elementos de ciência natural, uma teoria jurídica consciente da sua especificidade porque consciente da legalidade específica de seu objeto. Logo desde o começo foi meu intento elevar a Jurisprudência, que – aberta ou veladamente – se esgotava quase por completo em raciocínios de política jurídica, à altura de uma genuína ciência, de uma ciência do espírito. Importava explicar, não as suas tendências endereçadas à formação do Direito, mas as suas tendências

exclusivamente6.

E foi exatamente isso que KELSEN se propôs, criar parâmetros para o desenvolvimento de um estudo jurídico livre de interferências externas que não a do próprio Direito.

Na busca destes parâmetros KELSEN idealizou a norma hipotética fundamental. Importante destacar que a norma hipotética fundamental não é norma positiva e sim presumida. É fundamento último de validade do ordenamento jurídico, ou seja, a norma fundamental confere legitimidade a norma que se encontra no ápice do ordenamento jurídico e essa confere validade as demais normas jurídicas.

Assim, todos os juristas, em maior ou em menor grau, adotam o pensamento kelseniano, muitas vezes até sem o perceberem, pois que tal pensamento, por exemplo, está na justificação de validade de uma determinada norma jurídica em decorrência dessa ter sido emanada de órgão competente

Por fim, a teoria kelseniana não ignora a política jurídica ou, até mesmo, a

5 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.6 KELSEN, Hans. Op.cit. Prefácio à primeira edição, fl. XI.

sociologia jurídica. Entretanto deixa essas fora da análise da ciência jurídica:

Tomando estes enunciados como base, pode-se dizer que a teoria kelseniana se pretende “pura” em dois sentidos distintos: a) o objetivo de sua teoria é libertar-se de quaisquer considerações ideológicas ou julgamentos de valor quanto ao sistema jurídico positivo; e b) a sociologia jurídica, bem como a política, a economia e outras ciências afins podem ser consideradas ciências auxiliares, mas estão fora da caracterização específica da ciência jurídica. A preocupação de Kelsen era criar uma ciência jurídica purificada de elementos valorativos, ao mesmo tempo em que estabelecia um rígido critério de demarcação entre ciência e seu objeto, e também entre o mundo do ser e o do dever ser. Por detrás desse objetivo, existia uma clara preocupação com o rigor e com questões de fundo metodológico7.

BOBBIO

Norberto BOBBIO é outro clássico jurista importante para o direito. Com sua obra Teoria do Ordenamento Jurídico8 questiona as diferentes formas do ordenamento, pensa sua unidade e completude. É ainda um positivista, mas não no modelo kelsiano. Ao tratar do ordenamento jurídico como um sistema, BOBBIO se insurge contra a tese kelseniana de que o sistema jurídico é puramente dinâmico:

...se é assim, parece difícil falar apropriadamente do ordenamento jurídico como de um sistema, isto é, chamar ‘sistema’ ao sistema de tipo dinâmico com a mesma propriedade com que se fala em geral do sistema como totalidade ordenada (...) Ora, atendo-se à definição de sistema dinâmico como o sistema no qual o critério de enquadramento das normas é puramente formal, deve-se concluir que num sistema dinâmico duas normas em oposição são perfeitamente legítimas. E, de fato, para julgar a oposição de duas normas é necessário examinar o seu conteúdo;

não basta referir-se à autoridade da qual emanaram9.

Para o jusfilósofo italiano o ordenamento, enquanto sistema dinâmico, não pode ser considerado um sistema justamente porque comporta contradição entre seus entes, e, como alternativa, aponta para uma concepção do sistema jurídico a partir do princípio de que nele não podem existir normas incompatíveis, sendo a compatibilidade o critério de validade e a coerência um dever de justiça.

Se num ordenamento vêm a existir normas incompatíveis, uma das duas ou ambas devem ser eliminadas. Se isso é verdade, quer dizer que as normas de um ordenamento têm um certo relacionamento de compatibilidade, que implica a exclusão de incompatibilidade. Note-se, porém que dizer que as normas devam ser compatíveis não quer dizer que se encaixem umas nas outras, isto é, que constituam um sistema dedutivo perfeito. (...) confrontado com um sistema dedutivo, o sistema jurídico é alguma coisa de menos; confrontado com o sistema

7 KOZICKI, Katya. Conflito e Estabilização: Comprometendo Radicalmente a Aplicação do Direito com a Democ-racia nas Sociedades Contemporâneas. Florianópolis, 2000. Tese (Pós-Graduação em Direito) - Universidade Federal de Santa Catarina, p. 156 8 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 6 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 19959 BOBBIO, Norberto. Op.cit. p. 73 e 74.

Page 56: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 111110

TIM

OR

LES

TE

TIM

OR

LES

TE

dinâmico, do qual falamos no parágrafo anterior, é algo de mais: de fato, se se admitir o princípio de compatibilidade, para se considerar o enquadramento de uma norma no sistema não bastará mostrar a sua derivação de uma das fontes autorizadas, mas será necessário mostrar também que ela não é incompatível com

outras norma10.

Quanto à Norma Fundamental, BOBBIO entende que ela é necessária para fundar o sistema normativo, dando-lhe unidade e fechamento, e, sendo ela a norma última, a ela deve ser referido como “o fundamento último de legitimidade de todo o sistema”, tendo natureza atributiva e imperativa, a depender da perspectiva do poder que ela dá origem ou da obrigação dela proveniente.

Assim, BOBBIO compreende que se o poder jurídico advém sempre de uma norma jurídica, o poder constituinte só pode ser considerado jurídico se também produzido por uma norma jurídica e essa é a Norma Fundamental. Noutra perspectiva, BOBBIO explica que uma norma pode ser posta, mas para ser válida depende de sua compatibilidade/conformidade com o sistema ou ordenamento jurídico. Todavia, em relação à Norma Fundamental não cabe esse tipo de questionamento, uma vez que, sendo posta, ela é válida justamente porque é produto do poder originário, fundante e coercitivo, proveniente daqueles que têm força para fazerem com que suas normas sejam respeitadas. Assim, BOBBIO elimina a distância entre a va lidade e a positividade da Norma Fundamental e a elege como critério maior de validação das demais normas do sistema, atendendo a seu imperativo de unidade.

HART

Outro teórico importante para o direito foi Herbert HART, que em sua obra o Conceito de Direito11 parte da constatação de que uma das maiores dificuldades encontradas para a elaboração de uma teoria jurídica é fornecer uma explicação que contemple a complexidade dos fatos e pondere sobre a diferença entre o observador interno e externo, não desconsiderando nenhum desses pontos de vista.

Katya KOZICKI ao comentar a construção teórica de HART revela:

O ponto de vista externo - ou do observador do sistema - pode assumir diferentes formas. Neste aspecto, o observador pode referir-se à forma sob a qual os membros do grupo comportam-se de acordo com as regras, destacando o ponto de vista interno que estes adotam. Mas ele pode também contentar-se com a mera observação de padrões regulares de condutas em conformidade com as regras,

10 BOBBIO, Norberto. Op.cit. p. 80 e 81.11 HART, H.L.A. O Conceito do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1986.

observando também que às atitudes em desconformidade a estas se seguirão reações hostis por parte dos membros do grupo.

(...)

O ponto de vista interno exige ... um elemento cognitivo (atitude reflexiva) e um elemento volitivo (atitude crítica). O elemento cognitivo manifesta-se na descoberta da correlação entre certos atos (e suas conseqüências) e o conteúdo da regra de conduta. Esta correlação dá origem a padrões de conduta em consonância com a norma. Já o elemento volitivo refere-se ao desejo ou preferência que este padrão se mantenha, para o sujeito que formula o enunciado para os outros. O ponto de vista interno é, assim, um reflexo da maneira pela qual o grupo encara o seu comportamento de acordo com as normas, utilizando-se delas como base para a sua conduta social.12

Para compreensão do fenômeno jurídico HART parte do ponto de vista interno e externo do sujeito. O membro do grupo que aceita ass regras e as usa como guia de conduta parte do ponto de vista interno. Com a Expressão “ser obrigado a”, HART explica que há internamente uma afirmação psicológica motivando a ação, independentemente da existência de um conteúdo normativo. Por outro lado, o ponto de vista externo é o do observador que não aceita ele próprio as regras, mas, mesmo sem aceitá-las, refere-se ao modo como o grupo esta afetado por elas, de um ponto de vista interno, ou pode simplesmente observar as regularidades de comportamento, prevendo que o desvio será seguido de sanção. HART caracteriza esse ponto de vista com a expressão “ter a obrigação de”, que pressupões um contexto institucionalizado, independentemente de motivações psicológicas.

KOZICKI ainda aponta como um dos aspectos fundamentais da obra de HART a preocupação com a linguagem, base da formação dos enunciados jurídicos. Ao enfocar a centralidade da posição do intérprete do sistema e dentro de uma concepção do direito como fato institucional, HART toma em consideração o aspecto pragmático da linguagem. Nesta perspectiva, tem-se em vista a função desta como instrumento de mediação na relação sujeito/sujeito. Os usos e funções da linguagem vão ser revelados dentro de uma situação comunicacional, tendo em vista também o contexto da enunciação13.

Assim, ao privilegiar o ponto de vista do participante do sistema jurídico na interpretação do fenômeno jurídico, HART contribui para a construção do direito e o alcance das normas jurídicas.

12 KOZICKI, Katya. O positivismo jurídico de Hart e a perspectiva hermenêutica do direito. In: Paradoxos da auto-obervação: percursos da teoria jurídica contemporânea. Curitiba: JM, 1997, 133 e 134.13 KOZICKI, Katya. O positivismo jurídico de Hart e a perspectiva hermenêutica do direito. op.cit. p.130.

Page 57: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 113112

TIM

OR

LES

TE

TIM

OR

LES

TE

DWORKIN

Importante contribuição teórica vem de Ronald DWORKIN, em especial na obra O Império do Direito14 . Para este autor, as teorias positivistas pressupõem que advogados e juízes usem os mesmos critérios para decidir as proposições jurídicas em termos de falsas ou verdadeiras. Estas teorias consideram o direito como simples questão de fatos, ou seja, as divergências existentes são empíricas e não teóricas.

DWORKIN critica as teorias positivistas, pois a defende que o direito autoriza o uso da força, e para que isso ocorra é necessário que o direito tenha legitimidade. A idéias da purificação do direito é negada por DWORKIN, pois para ele o conceito de direito o vincula à justificativa de força coercitiva, vinculando-o a uma prestação jurisdicional.

Apesar de ter sucedido Hart em Oxford, Dworkin travou um debate com ele em razão da teoria jurídica liberal e a contemporânea versão de teoria positivista criada pelo antigo catedrático. Conquanto haja uma visível negação do positivismo e do utilitarismo na teoria jurídica, é deveras difícil estabelecer um ponto de distinção certo e seguro entre o que Dworkin sugeriu como a interpretação construtiva das categorias explicitadas na Constituição Federal e o poder criador atribuído ao julgador; a linha fixada entre ambos, é muito tênue e merece o debruçar dos operadores do direito moderno.

O juiz, quando provocado, deve dar a “resposta certa: a melhor possível para os hard cases (sem norma aparentemente aplicável ao caso)” sem, contudo, criar; logo, sugere-se a utilização de conceitos, tais como o da “integridade” e, especialmente, o da “interpretação construtiva”.

De acordo com sua tese da integridade do direito, um juiz ao considerar que duas interpretações se ajustam ao caso concreto, deve ampliar seus estudos para incluir outras áreas do direito, a fim de determinar qual das duas opções se encaixa no âmbito mais abrangente, sem desconsiderar a prioridade da área do direito da qual surge a questão jurídica imediata. Para DWORKIN a interpretação é uma prática historicamente situada no contexto institucional da comunidade em que se insere. O direito como integridade possibilita formas de tensão dentro da interpretação, bem como é considerado como um ideal político , pois permite uma comunidade governada por uma visão de justiça, eqüidade e pelo devido processo legal.

14 DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

A teoria do direito de DWORKIN, enquanto integridade se configura como contribuição importante para novas possibilidades de interpretação jurídica, pois condiciona o juiz a escolher, dentre várias alternativas possíveis, aquela que melhor se amolde as práticas sociais e as políticas da comunidade em que se insere, com o objetivo de tornar a comunidade cada vez mais aprimorada. Para DWORKIN, os tribunais não podem se furtar à prestação da tutela jurisdicional e o juiz é obrigado a julgar de acordo com a lei e não existe a criação do direito pelo juiz, pois o ordenamento possui as respostas para os problemas jurídicos, principalmente aos se considerar a história da sociedade a que serve.

Iv. A Defensoria Pública e a consolidação da Democracia

Denota-se que a aplicação do direito enseja conseqüências políticas e pode contribuir na construção do espaço democrático. O compromisso do direito é com a justiça e com a democracia. A aplicação do direito se dá pelo Poder Judiciário, mas este tem de ser provocado para decidir uma questão. É neste ponto que se destaca o papel da Defensoria Pública como instituição política voltada a levar ao Poder Judiciário as questões que podem contribuir para a ampliação da democracia.

No Brasil, a própria Constituição brasileira, promulgada em 05 de outubro de 1988, encarregou-se de fixar o conceito de Defensoria Pública no caput do art. 134, como sendo a “instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5°, LXXIV”. Como se pode extrair de tal conceito, com o advento da Carta Política de 1988, a Defensoria Pública foi eleita pela norma fundamental como o órgão público responsável pela orientação jurídica e pela representação dos economicamente necessitados.

No Timor-Leste, a Defensoria Pública está regulada pelo Decreto-Lei n. 38 de 17 de outubro de 2008, como instituição essencial à boa administração da justiça na salva-guarda dos direitos e legítimos interesses dos cidadãos mais carentes. Apesar de ainda não possuir o mesmo tratamento constitucional da sua congênere brasileira, desde a sua efetiva implantação, após vencer forte resistência, a Defensoria Pública timorense está a ganhar cada vez mais espaço e reconhecimento no âmbito político, social e jurídico, e caminha a passos largos para ser inserida no texto constitucional

Page 58: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 115114

TIM

OR

LES

TE

TIM

OR

LES

TE

como Instituição essencial ao Estado Democrático de Direito.

Numa sociedade cada vez mais complexa e desigual social e economicamente, a Defensoria Pública pode ser utilizada como instrumento responsável a ampliar o debate democrático pela aplicação do direito, uma vez que a parcela da população que atende é a dos excluídos. A tensão que se estabelece entre os excluídos e o Poder Público, e que muitas vezes é resolvido pela violência, através de uma efetiva atuação da Defensoria Pública, tem sua resolução deslocada para o campo das ideias e do debate democrático.

v - Conclusão

Com Hannah ARENDT percebe-se que a perda do espaço público retira dos seres humanos a possibilidade de criar um mundo comum, onde as tensões são resolvidas pelo diálogo e não pela violência. O ser humano cada vez mais se reduz a mera reprodução e consumo de bens descartáveis, e a continuar nesta toada, fadado está ao seu desaparecimento e do mundo comum. É só através do diálogo democrático que seremos capazes de reverter este quadro. A democracia convive com a tensão entre a inclusão e a exclusão e a sua síntese produz um mundo de solidariedade e coexistência.

Numa sociedade cada vez mais complexa o direito desempenha um importante papel na construção da democracia, uma vez que sua aplicabilidade é capaz de aumentar ou restringir o espaço público (palco do debate democrático). Destaca-se, aí, a importância da Defensoria Pública na construção da democracia, haja vista que age na defesa dos direitos dos excluídos e sua atuação leva ao Poder Judiciário questões que não seriam discutidos na sociedade o que incrementa a violência. Nossas ações e omissões geram efeitos e somos os destinatários das conseqüências. A proposta é agir para reduzir as tensões e as desigualdades existentes.

Referências

ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.

BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 6 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995.

DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

FONSECA, Ricardo Marcelo (org.). Direito e Discurso: discursos do direito. Florianópolis: Fundação Boiteaux, 2006.

HART, H.L.A. O Conceito do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

KARAM, Munir e PRADO, Luiz Regis (coords.). Estudos de filosofia do direito: uma visão integral da obra de Hans Kelsen; conferencistas Miguel Reale (et al.). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1984.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7° ed. São Paulo : Martins Fontes, 2006.

KOZICKI, Katya. O positivismo jurídico de Hart e a perspectiva hermenêutica do direito. In: Paradoxos da auto-obervação: percursos da teoria jurídica contemporânea. Curitiba: JM, 1997.

________. Conflito e Estabilização: Comprometendo Radicalmente a Aplicação do Direito com a Democracia nas Sociedades Contemporâneas. Florianópolis, 2000. Tese (Pós-Graduação em Direito) - Universidade Federal de Santa Catarina, p. 156

OLIVEIRA, L.V.N. O caráter mediador do direito na construção e ampliação do espaço público. Florianópolis: Fundação Boiteaux. Revista Sequência, n.º 47, 2003 p.59-80.

Page 59: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 117116

TIM

OR

LES

TE

TIM

OR

LES

TE

O ACESSO à JUSTIçA E O PAPEL DA DEFENSORIA PÚBLICA NO PROCESSO PENAL EM TIMOR-LESTE

Rodrigo Esteves Rezende1 Sérgio de Jesus F. da Costa Hormai2

A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado e responsável pela orientação e defesa jurídicas dos necessitados, assim entendidos aqueles que não possuem condições de suportar o pagamento de custas judiciais e honorários advocatícios sem prejuízo do sustento próprio e de suas famílias.

Conforme afirmado no artigo jurídico “Defensoria Pública e o acesso à Justiça em Timor-Leste”3 , o conceito de Defensoria Pública está intimamente ligado à preocupação do Estado em garantir igualdade social através do acesso da população carente à justiça e se originou do instituto da assistência judiciária, que tem seu registro mais remoto no Código de Hamurabi, datado do início do ano 2000 a.C4. , passando pela idade média, quando a assistência ao pobre, inclusive a jurídica, passou a ser encarada como dever religioso5 , chegando à idade moderna, em que juízes nomeavam ex officio Advogados para promoverem a defesa gratuita dos interesses de necessitados, sistema que evoluiu na Europa do século XX e ainda existe em alguns países daquele continente, com a idéia de se garantir a assistência jurídica gratuita aos menos abastados através de Advogados remunerados pelo próprio Estado, tendo sido, mais tarde, sucedida mundialmente pelo pioneirismo norte-americano, que atribuiu a órgãos oficiais estatais prerrogativas e a responsabilidade de prestar a assistência jurídica gratuita à população carente.

1 Defensor Público Federal de Primeira Categoria , tendo executado missão oficial em Timor-Leste como Defensor Público Internacional de 2007 a 2009 e como Defensor Público Assessor de 2009 a 2011.2 Defensor Público-Geral da Defensoria Pública de Timor-Leste; membro nato do Conselho Superior da Defensoria Pública; membro do Conselho Superior do Ministério Público de Timor-Leste; e Comissário da Comissão Nacional de Eleições em Timor-Leste.3 REZENDE, Rodrigo Esteves, “Defensoria Pública e o acesso à Justiça em Timor-Leste”, publicada na obra “Visões Jurídicas Brasileiras em Timor” escrita em parceria com o Dr. Frederico Magno de Melo Veras, Juiz-Auditor da JMU; e o Dr. Roberto de Campos Andrade, Promotor de Justiça do Estado de São Paulo, todos integrantes do Projeto de Fortalecimento da Justiça em Timor-Leste da UNDP, em virtude de acordo de Cooperação celebrado entre Brasil, Timor-leste e a UNDP. - Março de 2008.4 MENEZES, Felipe Caldas. “Defensoria Pública da União: Princípios Institucionais, Garantias e Prerrogativas dos Membros e um Breve Retrato da Instituição”, in Revista da Escola da Magistratura Federal do TRF da 2ª Região - Revista da EMARF Volume 8.5 MOREIRA, José Carlos Barbosa. “O direito à assistência jurídica”, in Revista de Direito da Defensoria Pública n 5, V/124, Rio de Janeiro - 1991.

Page 60: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 119118

TIM

OR

LES

TE

TIM

OR

LES

TE

Tal sistema, que parte do raciocínio de que cabe ao Estado não só prever garantias e direitos fundamentais do indivíduo, mas também criar os mecanismos adequados para alcançá-los e satisfazê-los, foi adotado de forma majoritária nos países cujos regimes de governo evoluíram para o formato democrático, em que havia uma preocupação com a inclusão social, com a redução das distorções sócio-econômicas e com a constituição de um Estado de Direito.

Para o mestre Paulo Galliez “...no sentido de manter o equilíbrio, pelo menos em relação ao aspecto jurídico, entre os “os donos do poder” e os oprimidos, é que a Defensoria Pública se impõe como instituto essencial do Estado de Direito, a fim de enfrentar o desenvolvimento desigual entre as classes sociais.” 6

Não obstante o acesso à justiça ter sido previsto pela Constituição da República Democrática de Timor-Leste, em seu art. 26.°7 , como garantia fundamental do indivíduo, em especial do hipossuficiente econômico, e como princípio basilar do Estado Democrático de Direito, a Defensoria Pública, como mecanismo estatal de acesso à justiça, ainda dá os primeiros passos rumo à sua consolidação na organização administrativa do Estado como uma instituição forte e independente que possa promover a satisfação dos direitos e garantias por ele idealizados, a exemplo do Ministério Público e da Magistratura Judicial.

Apesar de não haver previsão na Constituição da República acerca dos objetivos, da organização, das garantias e do nível de autonomia funcional da Defensoria Pública em Timor-Leste, esta foi criada inicialmente, a nível infraconstitucional, pelo Regulamento 24/2001, de 5 de Setembro, da UNTAET8 , que foi elaborado para reger a instituição apenas transitoriamente e, passados sete anos de sua primeira regulamentação, foi criado o Estatuto da Defensoria Pública através do Decreto Lei n° 38/2008, de 29 de outubro.

Em resumo, o processo de instalação da Defensoria Pública foi iniciado em Timor-Leste ainda durante a administração transitória das Nações Unidas com um brasileiro, o saudoso Sérgio Vieira de Mello, Representante Especial do Secretário-Geral das Nações Unidas, Administrador Transitório de Timor-Leste e personalidade eternizada na história do país, que, em 2001, no momento em que renascia a nação

6 GALLIEZ, Paulo. A Defensoria Pública: O Estado e a cidadania. Rio de Janeiro, Ed. Lumen Júris, 1999, Pag. 077 Artigo 26.º (Acesso aos tribunais): 1. A todos é assegurado o acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos. 2. A justiça não pode ser denegada por insuficiência de meios económicos.8 UNTAET – United Nations Transitional Administration in East Timor (Administração Transitória das Nações Uni-das em Timor-Leste). Este organismo, sob o comando de Sérgio Vieira de Mello, exerceu os poderes Executivos e Legislativos em Timor-Leste e governou o país no período transitório pós-independência compreendido entre 25 de outubro de 1999 a 20 de maio de 2002.

timorense, gerou o embrião da Defensoria Pública ao criar o “Serviço de Assistência Judiciária de Timor-Leste”, como um órgão público responsável por prestar assistência jurídica e gratuita a todo aquele incapacitado de arcar com o pagamento de honorários advocatícios sem prejuízo do sustento próprio ou de sua família.

No entanto, para crescer forte e cumprir sua missão social, a Defensoria Pública, como todo recém-nascido, precisava de cuidados, como a dotação pelo Estado de uma organização normativa adequada e a proteção legal de seus agentes que permitisse uma atuação independente e intransigente na defesa do indivíduo necessitado; a capacitação de seus quadros; e uma estruturação suficiente para atender os anseios de quase um milhão de timorenses.

Em 2002, foi aprovada a Constituição da República Democrática de Timor-Leste, que previa dentre as garantias fundamentais do indivíduo, nos artigos 26° e 34°, n° 39 , respectivamente o direito de acesso à justiça independente da condição financeira do interessado e o direito inviolável à defesa em processo criminal. Entretanto, lamentavelmente, deixou-se de prever de que forma o Estado iria garantir a satisfação destes direitos, que mecanismo seria adequado para alcançá-los.

Quase um ano depois, em 2003, seguindo o modelo defensivo idealizado durante a administração transitória da UNTAET, criou-se a Defensoria Pública através do Estatuto Orgânico do Ministério da Justiça10 como instituição estatal por ele tutelada e responsável por prestar assistência jurídica aos cidadãos com menos recursos econômicos.

Somente em 2008, após vencida a resistência imposta por alguns segmentos e demonstrado que o sistema através do qual o Estado pudesse garantir o acesso à justiça por meio de uma instituição independente era o mais adequado à conjuntura sócio-econômica timorense e perfeitamente compatível com o sistema judicial implantado em Timor-Leste, podendo se desenvolver em perfeita harmonia com o execício paralelo da advocacia pela comunidade de advogados que se forma gradualmente no país, aprovou-se o Estatuto da Defensoria Pública através do Decreto-Lei n° 38/2008, de 29 de outubro, em que foram previstos seus objetivos, sua organização e os direitos, garantias e deveres de seus membros.

Apesar de necessitar ainda de profundo aperfeiçoamento, principalmente porque não proporciona a mesma proteção legal destinada ao Ministério Público, ao

9 Artigo 34° (Garantias de processo criminal): n. 3. É assegurado a qualquer indivíduo o direito inviolável de audiên-cia e defesa em processo criminal.10 Decreto de Governo nº 3/2003 de 29 de Outubro.

Page 61: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 121120

TIM

OR

LES

TE

TIM

OR

LES

TE

Tribunal e à Advocacia, que tiveram seus Estatutos criados por Lei e não por Decreto-Lei11, o Estatuto da Defensoria Pública representou um significativo avanço no desenvolvimento da instituição.

No entanto, o processo de estruturação e consolidação da instituição ainda está no princípio, havendo um longo caminho a se percorrer. Neste contexto, a Defensoria Pública, além de depender do próprio Estado para se desenvolver, conta ainda com o apoio de diversos organismos internacionais, como o PNUD; a AUSAID; a USAID; a ASIA FOUNDATION, dentre outros, e inúmeros países, dentre os quais merece destaque o Brasil, como o único país da CPLP que adotou a Defensoria Pública como mecanismo estatal de garantia do acesso à justiça e tem, cada vez mais, compartilhado esta experiência com Timor-Leste em benefício de população timorense.

Portanto, nota-se que a Defensoria Pública em Timor-Leste, apesar de instrumento fundamental à consolidação da democracia, da cidadania e da efetiva justiça social, existe no sistema jurídico e na organização administrativa do Estado ainda de forma muito incipiente e vulnerável, de modo que decorre de uma decisão do Governo em exercício, enquanto que se fosse prevista na Constituição da República se traduziria em um mecanismo eleito pelo próprio Estado, enquanto representante da vontade popular num estável e verdadeiro Estado Democrático de Direito.

De uma maneira geral, deve-se reconhecer que a legislação adotada em Timor-Leste, em especial aquela de natureza processual, foi inspirada no sistema português, em que, em função de distinta conjuntura social, cultural e político-econômica, não se previu a Defensoria Pública como uma instituição estatal responsável por garantir o acesso à justiça. Entretanto, os sistema judicial que foi implantado em Timor e o sistema de acesso à justiça representado pela Defensoria Pública são perfeitamente compatíveis, tornando-se imperativo apenas que o poder legiferante local e o operador do Direito tenham sensibilidade para promover as adequações necessárias à realidade local.

Para explicar a atuação da Defensoria Pública no âmbito criminal é preciso primeiro entender que suas atribuições, como instituição responsável por garantir o acesso à justiça, abrangem, em síntese, três vertentes distintas e complementares:

a) a prestação de assistência judicial integral e gratuita perante os Tribunais

11 No sistema parlamentarista timorense, o Decreto-Lei é um ato normativo emanado pelo Conselho de Ministros, enquanto representantes do Governo, e a Lei é ato normativo emanado do Parlamento Nacional. Ambos os atos normativos .

nas mais diversas áreas de atuação, tais como de direitos humanos, civil, trabalhista, eleitoral, criminal, entre outras;

b) a atuação extrajudicial para a realização de mediações na tentativa de solução de conflitos entre cidadãos e perante a Administração Pública;

c) a prestação de assistência jurídica preventiva e consultiva, indispensável para a redução de conflitos de interesse no âmbito da sociedade, diminuindo, desta forma, o volume de demandas apresentadas aos Tribunais.

Na esfera civil, a atuação da Defensoria Pública, de forma resumida, se inicia na fase extrajudicial, no aconselhamento e consultoria aos assistidos de forma a prevenir e solucionar os conflitos de interesses sem a necessidade de propositura de ações judiciais e, caso o acordo extrajudicial não seja possível ou suficiente, tem a Defensoria Pública a missão de conduzir a pretensão do hipossuficiente econômico aos Tribunais para que lá seja deduzida, ou, por outro lado, garantir a defesa dos direitos do réu que também integra uma relação jurídica de direito material que se espera ser deduzida em juízo.

Na seara criminal, que é o tema ora em análise, tem a Defensoria Pública a missão de garantir a ampla defesa ao suspeito ou arguido12 e zelar pela aplicação dos Princípios do Contraditório e do Devido Processo Legal, satisfazendo, assim, os direitos e garantias fundamentais do indivíduo previstas nos artigos 26° e 34° da Constituição da República.

Para se esmiuçar a atuação da Defensoria Pública na área processual penal, faz-se necessário antes analisar os sistemas processuais penais existentes no mundo jurídico e identificar qual deles foi implantado em Timor-Leste.

Há basicamente na história do processo penal o registro de 3 sistemas processuais diversos:

12 Em linhas gerais, arguido é o termo atribuído sujeito passivo da relação jurídica que se estabelece com a persecução penal. Dispõe os números 1 e 2 do Artigo 59 (constituição como arguido) do Código de Processo Penal Timorense: 1. Assume a qualidade de arguido todo aquele contra quem for deduzida acusação num processo penal. 2. Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, é obrigatória a constituição de arguido logo que: a) Correndo inquérito contra pessoa determinada, esta prestar declarações perante qualquer autoridade judiciária ou entidade policial; b) Tenha de ser aplicada a qualquer pessoa uma medida de coacção ou de garantia patrimonial; c) Um suspeito for detido; ou d) For levantado auto de notícia que dê uma pessoa como agente de um crime e aquele lhe for comunicado.

Page 62: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 123122

TIM

OR

LES

TE

TIM

OR

LES

TE

• Sistema inquisitivo (ou inquisitório) - o juiz enfeixa em suas mãos as funções de acusar e de julgar. Foi adotado notadamente no período da idade média. Está superado, embora ainda haja resquícios deste sistema.

• Sistema acusatório - sistema adotado hoje em Timor-Leste. Há absoluta separação entre as funções de acusar e julgar. O juiz não atua oficiosamente para satisfazer o direito de punir do Estado. O juiz depende de provocação para exercer a jurisdição.

• Sistema misto – hoje abandonado por Timor-Leste e também pela maioria dos países. É o sistema do antigo juizado de instrução.

O Código de Processo Penal timorense, que foi inspirado na lei processual penal portuguesa, adota o sistema acusatório, com alguns resquícios do sistema inquisitivo. A lei processual penal deve ser interpretada à luz dos princípios constitucionais do processo, quais sejam, o devido processo legal (due processo of law), a ampla defesa e o contraditório. Essa interpretação gerou a corrente doutrinária e filosófica denominada de garantista. O garantismo nada mais é do que a interpretação e a aplicação das leis processuais à luz dos princípios constitucionais do processo.

Feita está introdução, faz-se necessário passar ao estudo da persecução penal, que é a atividade desenvolvida pelo Estado, visando à apuração do crime e à punição de seu autor e se compõe de duas fases distintas: a investigação criminal e a ação penal (persecutio in juditio). A investigação criminal, em regra, é feita pelo aparelho policial do Estado, sob a direcção do Ministério Público, que se vale para tanto do inquérito policial.

O inquérito policial é o conjunto de diligências investigatórias realizadas pelo aparelho policial com a finalidade de apurar o crime e sua autoria., tornando possível a promoção da ação penal condenatória. O inquérito é por excelência um procedimento investigatório, pré-processual, de natureza persecutória. Apesar de o Código de Processo Penal timorense, de forma atécnica, se referir por vezes ao inquérito como “processo”, deve-se esclarecer que ambos se consubstanciam em fases distintas da persecutio criminis, sendo certo que o inquérito não é fase do processo.

Por processo entende-se o conjunto de atos animados pelo contraditório que se desencadeiam em direção a um fim. O inquérito é um mero procedimento e não um processo, uma vez que não há a presença do contraditório.

Segundo a própria lei processual penal timorense, a investigação criminal realizada através do inquérito é sempre inquisitiva ou inquisitorial, não havendo nesta fase, à exceção dos atos de natureza cautelar, como a audiência de primeiro interrogatório, a presença do contraditório, sendo o suspeito ou arguido, nesta fase, mero objeto de investigação. Já a instrução criminal realizada através do processo criminal é contraditória, sendo o arguido sujeito de direitos. O princípio do devido processo legal exige, na fase processual criminal, a observância plena das garantias do contraditório e da ampla defesa.

Com efeito, há que se ressaltar que a investigação criminal tem como destinatário imediato e natural o Ministério Público. O juiz, na fase de inquérito, chamado juiz de garantismo, se constitui em destinatário mediato do inquérito, uma vez que, certas vezes, é chamado no curso do inquérito para proferir decisões sobre a legalidade do procedimento, em especial quando cerceado o direito de liberdade do arguido, como é o caso da providência de habeas corpus, ou sobre medidas de natureza cautelar, como as medidas de coação, a busca domiciliar, a interceptação telefônica etc.

Concluindo, vale dizer que, no sistema acusatório de processo, há dois juízos que recaem sobre a ação penal: um juízo de pertinência da ação penal, que é sempre de quem a promove e, portanto, cabe ao Ministério Público, e um juízo de admissibilidade da ação penal, que cabe ao juiz. O juiz para proferir despacho liminar, para receber ou rejeitar o despacho de acusação, vai ter que verificar os elementos da investigação que instrui o referido despacho. Por isso se diz que o juiz é um destinatário mediato do inquérito.

No que diz respeito à Defensoria Pública, apesar de o art. 68° do CPPT13 dispor em suas alíneas a) e b) que a assistência do defensor é obrigatória no primeiro interrogatório de arguido detido ou preso e a partir da acusação e até ao trânsito em julgado da decisão, dando uma idéia de que no inquérito esta assistência técnico-jurídica não seria indispensável, em suas alíneas c) e d) dispõe de forma muito mais abrangente que também é obrigatória a assistência do defensor para a apresentação de reclamações, assim se entendendo não só a forma de impugnação prevista nos arts. 50° e 51° do CPPT, mas qualquer forma de reclamar a satisfação e a observância do

13 Artigo 68 (Assistência obrigatória): É obrigatória a assistência por defensor: a) No primeiro interrogatório de arguido detido ou preso; b) A partir da acusação e até ao trânsito em julgado da decisão, nomeadamente para a interposição de recurso; c) Para a apresentação de reclamações; d) Nos demais casos previstos na lei.

Page 63: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 125124

TIM

OR

LES

TE

TIM

OR

LES

TE

direito do suspeito ou arguido, inclusive através de mecanismos exportados da lei processual civil, nos termos dos arts. 3° e 94° do Código de Processo Penal timorense; sendo também obrigatória e indispensável nos demais casos previstos na lei, levando o aplicador do Direito a analisar todas as hipóteses em que a assistência técnico-jurídica de um profissional habilitado na área é necessária e indispensável para se garantir a satisfação do direito à ampla defesa, previsto constitucionalmente como garantia fundamental do indivíduo.

Para entender o alcance da alínea d) do art. 68° do CPPT, faz-se mister a realização de interpretação sistemática da legislação processual penal e à luz da Constituição da República.

Neste sentido, vejamos que o art. 26°, n° 1, da Constituição da Reública Democrática de Timor-Leste-CRDTL, dispõe que “A todos é assegurado o acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos”, esclarecendo, em outras palavras, que a lei não poderá excluir da apreciação dos Tribunais LESÃO ou AMEAÇA a direito.

O art. 135°, n° 1, da Carta Magna dispõe que o exercício da assistência jurídica e judiciária é de interesse social, e atribui tal missão aos advogados e defensores.

Da inteligência dos referidos dispositivos constitucionais, entende-se que, sempre que um direito do indivíduo estiver em causa, pode o mesmo recorrer aos Tribunais para que o proteja, valendo-se para tanto da assitência técinico-jurídica de um Advogado ou Defensor Público, que são os profissionais habilitados para o exercício da assistência judicial e extrajudicial ao indivíduo.

Note-se, neste sentido, que o n° 1, do art. 1°, do Decreto Lei n° 38/2008, que cria o Estatuto da Defensoria Pública, dispõe que a Defensoria Pública tem como missão a prestação de assistência jurídica, judicial e EXTRAJUDICIAL, INTEGRAL, e gratuirta aos mais necessitados.

Então, outro não pode ser o entendimento de que, inclusive no âmbito do inquérito, que é procedimento pré-processual e, portanto, extrajudicial, é também indispensável a assistência jurídica de um profissional do Direito, seja Advogado ou Defensor Público, ao suspeito ou arguido durante esta fase da persecução penal, principalmente quando este esteja detido ou preso, uma vez que seu direito de liberdade está sendo efetivamente cerceado; ou ainda quando precise praticar algum ato como

o de prestar depoimento durante as investigações, uma vez que, nesta hipótese, seu direito de liberdade está, no mínimo, ameaçado.

Não fosse assim, como poderia o suspeito ou arguido analisar tecnicamente a legalidade formal e material de sua detenção, para fins de habeas corpus, antes mesmo de sua apresentação ao Tribunal, que pode levar até 72 horas, nos termos do art. 60°, al. a) do CPPT? Após sua detenção, quem iria esclarecer-lhe de forma indubitável que, perante o aparelho policial ou o Ministério Público, não é obrigado a produzir provas contra si ou a prestar informações que o desfavoreçam, ou, ainda, que tem o direito constitucional de permanecer calado ou até mesmo, dependendo da situação, orientá-lo a exercer tal direito, senão um profissional do Direito devidamente habilitado e comprometido com a proteção de seus interesses. Note-se que é indiscutível que o Ministério Público, ainda que exerça a função de fiscal da lei, no âmbito criminal tem a qualidade de parte, não possuindo a isenção necessária, como investigador-acusador que é, para proteger os direitos do suspeito ou arguido contra sua própria atuação. Este, na verdade, é o verdadeiro ideal do sistema acusatório, em que as figuras do investigador-acusador, da defesa e do julgador estão muito bem definidas e separadas, não havendo como negar que, mesmo na fase de inquérito, há direitos do indivíduo, quando na qualidade de investigado, que estão ameaçados ou são postos em causa, carecendo, por isso, proteção jurídica, sendo certo que tal proteção só pode ser prestada por profissional habilitado e comprometido com essa defesa.

Com efeito, é pacífico que as declarações prestadas pelo arguido, ainda que na fase de inquérito, além de meio de prova, porque são levadas em consideração para o oferecimento da acusação e podem ser utilizadas em juízo para formar a convicção do julgador (art. 116, n° 214 c/c art. 266, n° 2, al. b)15 , ambos do CPPT) constituem-se, também, em meio de defesa, que, se iniciada sem a devida orientação jurídica de um defensor, pode acarretar sérios prejuízos aos direitos do arguido.

A fim de cumprir os mandamentos constitucionais e legais que protegem o indivíduo no âmbito do processo penal, ainda na fase pré-processual do inquérito, o Excelentíssimo Defensor Publico-Geral de Timor-Leste, através da Portaria n° 14 Artigo 116, n °2. “Constituem meio de prova em processo penal, nomeadamente: a) As declarações do arguido”15 Art. 266. “1. A convicção do tribunal só pode fundamentar-se em provas que tenham sido produzidas ou examina-das na audiência. 2. Ressalvam-se do disposto no número anterior as seguintes provas que po-derão ser utilizadas mesmo que não tenham sido examinadas em audiência por falta de quem o requeresse: a) Os autos relativos à produção de prova para memória futura, no domicílio, por carta precatória ou mediante carta rogatória a que tenha presidido um juiz; b) Os autos de inquérito na parte em que contenham declarações do arguido, do lesado ou de testemunhas ouvidas perante autoridade judiciária;”

Page 64: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 127126

TIM

OR

LES

TE

TIM

OR

LES

TE

07/2008 GAB/DPG/TL16 , de 19 de maio de 2008, determinou a realização de plantão de Defensores Públicos no Centro de Detenção de Dili (Watch House), com o intuito de garantir a assistência jurídica integral e gratuita aos indivíduos detidos assim que for noticiada a detenção e antes mesmo da audiência de primeiro interrogatório. Encaminhou-se então tal Portaria às autoridades policiais com a solicitação de que comunicassem a Defensoria Pública toda e qualquer detenção, contudo pouquíssimas vezes a Defensoria foi acionada imediatamente após a detenção, tendo conhecimento da mesma apenas quando é informado pelo Tribunal que o arguido será apresentado para a realização de audiência de primeiro interrogatório, o que, normalmente, acontece poucas minutos antes do ato, sendo disponibilizado ao Defensor Público tempo mínimo, quase sempre insuficiente, para que possa obter do arguido informações acerca de sua detenção, haja vista a preocupação excessiva de alguns juízes do Tribunal de que a audiência não se inicie com atraso.

Para que fosse respeitado com mais efetividade o direito do arguido na fase de inquérito, seria necessário comando legal que determinasse a comunicação imediata à Defensoria Pública acerca da realização de uma detenção, sob pena de nulidade da mesma, a exemplo do que aconteceu no Brasil com a edição da Lei nº 11.44917 , de 15 de janeiro de 2007, que alterou a redação do artigo 306 do CPP brasileiro, onde prisão e detenção têm o mesmo significado.

Ainda quanto a obrigatoriedade de assistência por defensor durante a persecutio criminis, seja na fase de inquérito, seja na fase judicial, deve-se ter em mente que por “defensor” entende-se o profissional do Direito devidamente habilitado para exercer as atribuições prevista no art. 135° da CRDTL, razão pela qual merece severas críticas o disposto no número 2, do artigo 260.° do Código de Processo Penal18 , que permite ao juiz, na hipótese de ausência do defensor do arguido, nomear uma pessoa

16 Portaria n° 07/2008 GAB/DPG/TL, “Art. 1º . Os Defensores Públicos que integram a escala de plantão junto aos Tribunais de Dili, prestarão assistência jurídica integral e gratuita também aos indivíduos detidos no Centro de Detenção de Dili (Watch House) assim que for noticiada a detenção e antes mesmo da audiência de primeiro interrogatório, com vistas a garantir o direito à ampla defesa previsto na Constituição da República Democrática de Timor-Leste e no Código de Processo Penal.”17 Art. 1o O art. 306 do Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal, passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 306. A prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz compe-tente e à família do preso ou a pessoa por ele indicada. § 1o Dentro em 24h (vinte e quatro horas) depois da prisão, será encaminhado ao juiz competente o auto de prisão em flagrante acompanhado de todas as oitivas colhidas e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública. § 2o No mesmo prazo, será entregue ao preso, mediante recibo, a nota de culpa, assinada pela autoridade, com o motivo da prisão, o nome do condutor e o das testemunhas.”

18 Artigo 260.°, n°2, (Falta do Ministério Público ou do defensor do arguido): O Ministério Público será substituído pelo respectivo substituto legal e o defensor por pessoa idónea, de preferência advogado ou licenciado em direito, sob pena de nulidade insanável.

“idônea” dentre todos os integrantes da sociedade, que não precisa obrigatoriamente ser advogado ou bacharel em Direito. Ora, como garantir o efetivo exercício do direito de defesa através de uma pessoa que sequer teve noções de Direito?

Neste sentido, conforme opinião já externada na obra “Defensoria Pública e o acesso à Justiça em Timor-Leste” , conclui-se que o referido dispositivo legal é claramente inconstitucional, eis que incompatível com os ditames do artigo 26.° da Constituição da República Democrática de Timor-Leste19, que prevê o acesso à justiça como garantia fundamental do indivíduo, afrontando, também, o disposto no número 3, do artigo 34.°, da Carta Magna, que garante ao indivíduo o exercício da ampla defesa. Definitivamente, não se pode garantir o efetivo acesso à justiça ou o exercício da ampla defesa, conforme previsto na Constituição de Timor-Leste, senão através de um Defensor Público, um Advogado ou, ao menos, em último caso, um bacharel em Direito.

Não se pode confundir exercício do direito de defesa com o fato de se estar sentado na cadeira da defesa e pedindo ao Juiz apenas que seja feita justiça, como acontece em praticamente todas as vezes em que o Tribunal nomeia uma pessoa do povo que não seja Advogado ou, ao menos, licenciado em Direito, não por má-fé mas por simples desconhecimento das leis e dos direitos por ela previstos. Isto não é defesa e o prejudicado será o próprio povo de Timor, que busca sua consolidação como uma Nação democrática e inspirada nos preceitos de cidadania e de justiça e igualdade social.

Ainda no âmbito do inquérito, é realizada a audiência de primeiro interrogatório, que deve ser iniciada pelo Tribunal em até 72 horas após a detenção do arguido e tem por fim a análise da legalidade formal e material da detenção e a identificação da medida de coação necessária para a garantia da instrução probatória e da aplicação da lei penal.

A audiência de primeiro interrogatório é ato judicial que integra um processo de natureza cautelar que se instaura durante a fase de inquérito. O fato de não estar organizado e explicitado normativamente como o processo penal de conhecimento, não deixa de possuir a natureza de processo cautelar, onde, reconhecida a legalidade da detenção, será aplicada uma medida de natureza cautelar, que é a medida de coação. Portanto, por se constituir em um processo, ainda que de natureza cautelar, e ainda que instaurado durante a fase de inquérito, deve ser orientado pelos Princípios norteadores

19 Ob. cit.

Page 65: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 129128

TIM

OR

LES

TE

TIM

OR

LES

TE

do Direito Processual Penal, quais sejam, o contraditório e a ampla defesa.

Note-se que, na audiência de primeiro interrogatório o juiz que a preside pratica ato de natureza jurisdicional.

Entretanto, alguns integrantes da Magistratura Judicial e do Ministério Público timorense entendem que o arguido e seu defensor não têm o direito de acesso aos autos do inquérito antes ou durante a audiência de primeiro interrogatório, por acreditarem que a restrição da publicidade nesta fase da persecutio criminis também se aplica à defesa, impedindo que a mesma faça análise da legalidade formal e material da detenção imposta ao arguido, conforme, de fato, determina e garante o Código de Processo Penal e Constituição da República Democrática de Timor-Leste.

Tal entendimento baseia-se na equivocada interpretação, a contrario sensu, dos arts. 74°, número 2, in fine20 e 75°, número 121 , todos do Código de Processo Penal timorense, segundo o qual o segredo de justiça é imposto inclusive à defesa na fase de inquérito, não obstante o art. 77 22 do mesmo diploma legal permitir a consulta aos autos, desde que previamente autorizada pelo Magistrado do Ministério Público, e a despeito do entendimento de que o segredo de justiça não é, em regra, dirigido ao arguido.

Os defensores de tal posicionamento acreditam que o legislador timorense consagrou que ao arguido, na fase de inquérito, é imposto o sigilo como regra, podendo o Ministério Público, apenas como exceção prevista no art. 77° do CPP, dar publicidade se quiser e do que quiser, como, de fato, é o que acontece atualmente.

Entretanto, salvo entendimento contrário, os defensores deste entendimento equivocam-se ao interpretar que o legislador timorense impôs o sigilo ou o segredo de justiça às partes, em especial à defesa, como regra na fase de inquérito, senão vejamos.

O art. 74° do Código de Processo Penal, que trata do segredo de justiça, restringe a publicidade apenas ao público, em proteção clara ao arguido, quando dispõe em seu número 1 que “todos os participantes processuais e quaisquer pessoas que, por qualquer título, tomarem contacto com o processo e conhecimento, total ou

20 Art. 74. “2. É proibido a qualquer pessoa assistir à prática de acto processual a que não tenha o direito ou o dever de assistir, ou, por qualquer outra forma, tomar conhecimento do conteúdo do acto processual.”21 Art. 75. “1. O processo penal é público a partir da acusação.”22 Art. 77. “1. Sem prejuízo do disposto nos artigos anteriores, o Ministério Público, o sus-peito, o arguido e o lesado podem consultar os autos e obter certidão ou có-pia. 2. Sempre que se verifique não ser legalmente possível satisfazer a pretensão, ficam tais actos dependentes de prévia autorização da autoridade judiciária que presidir à fase processual em curso. 3. Sem prejuízo do disposto nos artigos anteriores, a consulta do processo e a obtenção de certidão ou cópia por outras pes-soas dependem de devida demonstração de interesse legítimo e prévia autorização da autoridade judiciária que presidir à fase processual em curso.”

parcial, do seu conteúdo, ficam impedidos de o divulgar” (grifamos). Ou seja, ficam as partes, ou quem tomar conhecimento do processo, impedidos de divulgar o seu conteúdo ao público em geral.

O número 2 do mesmo dispositivo legal, por sua vez, dispõe que “é proibido a qualquer pessoa assistir à prática de acto processual a que não tenha o direito ou o dever de assistir...”. As partes tem todo o direito de assistir a prática dos atos processuais. Caso contrário como se poderia exercer a ampla defesa prevista no art. 34°, n. 3, da Constituição da República Democrática de Timor-Leste como garantia fundamental do indivíduo?

O art. 75° do CPP, ao seu turno, dispõe que o processo é público a partir da acusação. Antes, portanto, ele é restrito ao público em geral, mas nunca à defesa. E tal restrição tem a finalidade de proteger o próprio arguido, porque o processo, por si só, pode injustamente gerar prejuízo ao mesmo caso seja publicizado o fato de que ele está sendo investigado e é suspeito de ter praticado um delito, que é, por natureza, um ato reprovável socialmente.

Da conjugação dos mencionados dispositivos legais do Código de Processo Penal timorense, que tratam da publicidade e do sigilo no processo penal, pode-se concluir que a lei restringe a publicidade dos atos processuais apenas ao público e não à defesa.

Portanto, não se está sustentando que os referidos dispositivos legais são inconstitucionais, a interpretação que é dada a eles é que se choca com preceitos constitucionais.

Não se pode fazer, em hipótese alguma, interpretação extensiva dos referidos dispositivos. A uma porque possuem natureza de norma processual penal e envolvem, ainda que indiretamente, o direito de liberdade, que, por sua vez, se constitui em uma das mais importantes garantias fundamentais do indivíduo prevista na constituição. A duas porque a própria CRDTL, em seu art. 24°, n. 223 , estabelece que não se pode interpretar extensivamente normas infraconstitucionais que venham a restringir direitos, liberdades e garantias.

O único dispositivo legal existente no Diploma Processual Penal timorense que restringe apenas EXCEPCIONALMENTE a publicidade dos atos processuais à

23 Art. 24. “2. As leis restritivas dos direitos, liberdades e garantias têm, necessariamente, carácter geral e abstracto, não podem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos dispositivos constitucionais e não podem ter efeito retro-activo.”

Page 66: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 131130

TIM

OR

LES

TE

TIM

OR

LES

TE

defesa é o art. 76°, que, em seu número 1, estabelece que:

“Excepcionalmente, o tribunal pode restringir, parcial ou totalmente, a publicidade

do acto processual público, desde que as circunstâncias concretas do caso o

aconselhem, como forma de preservar outros valores, nomeadamente a moral

pública e a dignidade humana.”(grifamos)

O numero 324 do mesmo artigo dispõe de forma semelhante, impondo outras situações em que se pode restringir a publicidade de certos atos à defesa.

Portanto, somente em casos excepcionais é que o tribunal, e não o Ministério Público, poderá restringir a publicidade dos atos à defesa, notadamente quando haja necessidade de se produzir alguma prova sem que a parte possa ter conhecimento, caso contrário seria inviável a realização da mesma, como por exemplo a realização de interceptação telefônica ou de busca e apreensão. Nestes casos a própria natureza da medida de interceptação telefônica ou de busca e apreensão demonstra claramente que o segredo de justiça é inerente à própria eficácia da medida adotada, pois, sendo uma medida cautelar, assecuratória do alcance da verdade real, não faria sentido e perderia objeto a comunicação prévia ao suspeito ou arguido de que seu telefone sofreria uma interceptação das comunicações ou que em sua casa seria realizada a busca e apreensão de provas.

Ainda assim, nestas hipóteses, o contraditório é diferido ou postergado para que, após produzida a prova, possa a defesa sobre ela se manifestar.

No entanto, esta é uma medida excepcional a ser determinada e devidamente motivada pelo Tribunal e não regra geral em todo e qualquer inquérito. A Constituição da República e o Código de Processo Penal timorenses não dispuseram desta forma e não cabe ao intérprete da norma fazê-lo.

Note-se que até mesmo durante o estado de exceção, como o estado de sítio, situações em que se restringe uma série de liberdades e garantias do indivíduo, o legislador constituinte preservou o direito de defesa como algo inviolável, conforme dispõe o art. 25º, nº 5 25, da CRDTL. Portanto, se até mesmo durante o estado de exceção

24 Art. 76. “3. Não implica restrição da publicidade a decisão do tribunal de impedir a assistência de algumas pessoas a todo ou a parte do acto processual, nomeadamente, como forma de sancionar comportamentos incorrectos ou de garantir a segurança do local em que se realiza o acto e das pessoas que nele participam.”25 Art. 25. “5. A declaração do estado de sítio em caso algum pode afectar os direitos à vida, integridade física, cidadania e não retroactividade da lei penal, o direito à defesa em processo criminal, a liberdade de consciência e de religião, o direito a não ser sujeito a tortura, escravatura ou servidão, o direito a não ser sujeito a tratamento ou punição cruel, desumano ou degradante e a garantia de não discriminação.”

o direito à ampla defesa é respeitado e protegido, porque em condições normais vai se impor o sigilo e o prejuízo ao direito de defesa? Até porque, o contraditório é um consectário do direito de defesa e, por contraditório, entende-se a ciência bilateral dos atos do processo com a possibilidade de contraditá-los. Se a parte não tem ciência dos atos do processo, como poderá contraditá-los, como poderá exercer efetivamente o direito de defesa? Como poderá verificar se o arguido estava realmente em situação flagrancial quando foi detido (art. 219° CPPT)26 ; ou se havia a devida autorização judicial para a prisão (art. 221°, n°. 1, CPPT)27 ; ou, ainda, se estavam presentes os pressuposto para prisão preventiva previstos no art. 183°28 e 194°, n.129 do CPPT, cumulativamente, como previsto no art. 63°, n°. 230 , e no art. 194°, n°. 331 , ambos do CPPT?

Com efeito, constata-se que o Ordenamento Jurídico timorense, seja na esfera constitucional, seja na infraconstitucional, consagrou o princípio da publicidade como princípio geral basilar do Direito Processual Penal, e permitiu que, EXCEPCIONALMENTE, apenas em algumas hipóteses de interesse público, a fim de assegurar a instrução probatória ou a aplicação da lei penal, pudesse o Tribunal restringir temporariamente esta publicidade ao arguido, postergando o exercício do contraditório e da ampla defesa.

A Carta Política, ao proclamar os direitos e deveres individuais e coletivos, enunciou preceitos básicos, cuja compreensão é essencial na caracterização da ordem democrática. Desta forma, não há, nos modelos políticos que consagram o Estado Democrático de Direito, que, aliás, inspirou o legislador constituinte da Nação de Timor-Leste, conforme art. 1º, nº. 132 , da CRDTL, espaço possível reservado ao mistério.

26 Art. 219. “1. É flagrante delito todo o crime que se está cometendo ou se acabou de come-ter. 2. Reputa-se tam-bém flagrante delito o caso em que, logo após o crime, o agente é perseguido por qualquer pessoa ou encontrado com objectos ou sinais que mostrem que acabou de o cometer ou nele participar. 3. Em caso de crime permanente, o estado de flagrante delito só persiste enquanto se mantiverem sinais que mostrem que o crime está a ser cometido e o agente está a participar nele.27 Art. 221. “1. Sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo anterior, a de-tenção fora de fla-grante delito só pode ser efectuada mediante mandado cujo duplicado será entregue ao detido.”28 Art. 183. “Excepto o termo de identidade e residência, a aplicação de qualquer outra medida de coacção depende da verificação de, pelo menos, um dos seguintes requisitos: a) Fuga ou fundado perigo de fuga do arguido; b) Fundado perigo de perturbação da investigação ou da realização da audiência de julgamento, nomeadamente, por perigo para a aquisição, con-servação ou veracidade da pro-va; ou c) Fundado perigo de continuação da actividade criminosa ou de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, em razão da natureza e circunstâncias do crime ou da personalidade do delinquente.”29 Art. 194. “1. Para além da verificação de um dos requisitos previstos no artigo 183.º, a apli-cação da prisão preven-tiva depende da verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: a) Fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão su-perior a três anos; b) Inadequação ou insuficiência de qualquer outra medida de coacção pre-vista na lei.”30 Art. 63. “2. O primeiro interrogatório após detenção do arguido é da ex-clusiva competência do juiz e visa, além do mais, o exercício do contraditório relativamente aos pressupostos da deten-ção e às condições da sua execução.”31 Art. 194. “3. A aplicação da prisão preventiva deve, sempre que possível, ser precedida ou seguida da audição do arguido, permitindo-lhe contraditar a verificação dos pressupostos da referida medida.”32 Art. 1°. “1. A República Democrática de Timor-Leste é um Estado de direito democrático, soberano, independente e unitário, baseado na vontade popular e no respeito pela dignidade da pessoa humana. “

Page 67: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 133132

TIM

OR

LES

TE

TIM

OR

LES

TE

A publicidade dos atos processuais integra o devido processo legal em seus aspectos material e formal e representa uma das mais sólidas garantias do direito de defesa, principalmente porque o sistema adotado pelo ordenamento jurídico processual penal de Timor, conforme já demonstrado, foi o acusatório, que tem a publicidade como uma de suas características principais.

O que está sendo construído em Timor-Leste? Um Estado Democrático de Direito ou um Estado inquisitorial?

Antes mesmo da audiência de primeiro interrogatório o arguido deve saber exatamente que fatos lhe são imputados. Neste sentido, entende-se que deve ser informado ao arguido qual conduta lhe está sendo imputada, em que circunstâncias de tempo, espaço e modo ela se deu, bem como que indícios pesam contra ele. Caso contrário, como poderá o defensor orientar juridicamente o arguido e exercer o contraditório previsto expressamente no art. 63°, nº. 2, do CPP?

Portanto, se somente for informado à Defensoria Pública e ao arguido, após iniciada a audiência de primeiro interrogatório, e de forma resumida, a imputação dirigida a este, é evidente que a ampla defesa e o contraditório, que, mais que direitos, são verdadeiras garantias fundamentais do indivíduo, não estarão sendo respeitadas, já que é impossível contraditar fatos que sequer se tem conhecimento. Espera-se que o arguido, após sua detenção, faça prova negativa, ou seja, prove que não cometeu o crime? Ora, o sistema adotado em Timor-Leste não foi o inquisitorial. A defesa deve saber dos fatos que são imputados ao arguidos para que possa contraditá-los.

É certo que a legislação processual penal timorense foi inspirada na portuguesa, mas apenas inspirada, o que não quer dizer que a mesma interpretação, que era feita em Portugal e deixou de ser no início de 2008 com a reforma do Código de Processo Penal português, tenha que ser aplicada em Timor-Leste, que, sob os aspectos social, cultural e político-econômico, é um país completamente diferente de Portugal. Repita-se que até mesmo em Portugal, donde nasceu tal entendimento, foi operada reforma em suas regras processuais penais, especialmente no que diz respeito ao segredo de justiça e ao sigilo das investigações, conforme mostra a “Nota sobre a Revisão do Código do Pocesso Penal” extraído da internet, do site “http://www.portugal.gov.pt/NR/rdonlyres/8CC81C2C-1DD7-4311-9ADA-F29B144A6AB7/0/Nota_Anteprojecto_Revisao_Processo_Penal.pdf”:

“Nota sobre a Revisão do Código do Processo Penal

1- Por que foi necessário rever o Código de Processo Penal?

Apesar de o Código de Processo Penal em vigor constituir uma boa lei, tanto no

plano da efectivação de valores constitucionais como no plano técnico-jurídico,

a sua revisão tornou-se necessária por cinco razões essenciais: algumas normas

em vigor foram objecto de juízos de inconstitucionalidade; as fontes de Direito

Internacional a que o Estado português está vinculado impõem certas alterações;

determinados regimes suscitam problemas práticos de difícil resolução; outras

normas ainda são obscuras ou de difícil interpretação; e, por fim, é desejável

aumentar a celeridade processual.

Os problemas de constitucionalidade respeitam, por exemplo, ao direito de acesso

aos autos pelo arguido, para poder exercer a sua defesa, nomeadamente por

ocasião da aplicação de medidas de coacção como a prisão preventiva.”

Mais adiante, dispõe a nota sobre a preocupação da revisão com as garantias de defesa dos arguidos:

“As alterações pressupõem que o processo penal é um desenvolvimento do próprio

Direito Constitucional, ou seja, dos direitos, liberdades e garantias fundamentais

dos cidadãos – não apenas, como é obvio, dos arguidos, mas também de todas as

vítimas, reais ou potenciais, de crimes.

Por conseguinte, as alterações procuram conciliar sempre a protecção da vítima e o desígnio de eficácia e celeridade com as garantias de defesa próprias do Estado de direito democrático.”

E mais a frente conclui sobre as principais alterações do Código de Processo Penal preconizadas:

“Entre outras, merecem destaque as seguintes alterações:

1.

2.

3.

4. O arguido é obrigatoriamente informado dos factos imputados e dos meios de

prova cuja revelação não puser em causa a investigação, a descoberta da verdade

ou direitos fundamentais de outras pessoas, antes de ser interrogado.

Page 68: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 135134

TIM

OR

LES

TE

TIM

OR

LES

TE

5.

6. O segredo de justiça é restringido, passando os sujeitos a aceder ao processo

sempre que não haja prejuízo para a investigação ou para direitos fundamentais.

...”

Note-se que, pela reforma, o sigilo só é aplicável à defesa quando haja prejuízo para a investigação, ou seja, em caráter EXCEPCIONAL, e não como regra como quer fazer crer alguns operadores do Direito que atuam neste momento em Timor-Leste, sendo certo que tal restrição a publicidade deve ser devidamente motivada como qualquer ato decisório, conforme previsto no art. 89°, n° 4, do CPPT33 , e não aplicada como regra sem qualquer satisfação à defesa.

Antes mesmo do oferecimento da acusação, encontrando-se o arguido preso preventivamente, deve Defensor Público estar atento ao prazo para revisão dos pressupostos que ensejaram inicialmente a decretação da prisão preventiva como única medida adequada, bem como ao prazo para a conclusão do inquérito.

O n° 1, do art. 232° do CPP dispõe que “o prazo para a realização do inquérito é de seis meses, se houver arguidos presos preventivamente”. No entanto, tal prazo pode ser prorrogado uma única vez por igual período em caso de grande complexidade do inquérito, conforme dispõe o n° 234 do mesmo dispositivo legal.

Cumpre asseverar que o despacho que alega a grande complexidade do inquérito deve ser devidamente motivado, demonstranto que diligências foram praticadas e quais ainda estão pendentes de conclusão, não podendo o Procurador da República limitar-se, única e tão somente, a afirmar que há complexidade no inquérito.

O art. 89° do CPP, que trata dos atos decisórios praticados no âmbito do precesso penal, refere em seu número 2 que “os actos decisórios do Ministério Público tomam a forma de despachos” e, conforme já afirmado, em seu número 4 dispõe que “os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.” (grifamos)

Não fosse assim, se tornaria inócua a exigência do art. 232°, n° 2, do CPPT no sentido de ter o Ministério Público que proferir despacho acerca da complexidade. Portanto, não basta que o Ministério Público “declare” a complexidade, é preciso que

33 Art. 89. “4. Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.”34 Art. 232 “2. Em casos de grande complexidade ao nível da investigação, o prazo referido no número anterior pode ser prorrogado, uma só vez, por mais seis meses, por despacho do Ministério Público”

ele demonstre e fundamente a existência da mesma.

Num outro giro, de uma interpretação do referido dispositivo legal à luz da Constituição da República timorense, conclui-se que o mencionado despacho acerca da complexidade do inquérito deve ser submetido à apreciação do Tribunal que, ao invés do Ministério Público, é o órgão competente para tal decisão, uma vez que a prorrogação do prazo para conclusão do inquérito configura, por via indireta, o cerceamento do direito de liberdade do arguido por mais seis meses, sendo certo que, como direito fundamental do indivíduo que é, só pode ser restringido por decisão judicial e nos estritos termos da lei, conforme dispõe o art. 30°, n° 235 , da CRDTL.

Merece atenção o fato de que o prazo de 1 ano para o oferecimento da acusação previsto no art. 195°, n° 1, al. a) do CPP, constitui o prazo máximo para a duração do inquérito, estando o arguido preso, já computada a possibilidade excepcional de prorrogação do prazo de 6 meses por igual período e por uma única vez para conclusão do inquérito em caso de grande complexidade.

Portanto, na hipótese de processo em que o arguido esteja preso preventivamente, há duas situações que merecem atenção do Defensor Público e que, se não observadas pelo julgador, devem ser atacadas por providência de Habeas Corpus, haja vista o excesso do prazo de duração da prisão preventiva, nos termo do art. 205°, n° 2, al. c)36 :

1- A revisão, a requerimento ou oficiosamente, pelo Tribunal, dos pressupostos da prisão preventiva a cada seis meses, enquanto durar a referida medida de coação (art. 196 do CPP)37 .

2- A adoção de uma de três medidas pelo Ministério Publico ao término do prazo de seis meses a contar da detenção dos arguidos: a) despacho de Arquivamento, b) despacho de Acusação, ou c) despacho justificado acerca da grande complexidade do inquérito dirigido ao respectivo Tribunal (arts. 235°, 236° e 232°, n° 2, todos do CPP c/c art. 30°, n° 2 da CRDTL).

Proferido despacho de acusação pelo Ministério Público, deve o Tribunal

35 Art. 30. “2. Ninguém pode ser detido ou preso senão nos termos expressamente previstos na lei vigente, devendo sempre a detenção ou a prisão ser submetida à apreciação do juiz competente no prazo legal.”36 Art. 205 (Habeas Corpus). “2. A ilegalidade da detenção ou prisão deve fundar-se no facto de: c) Mostrarem-se ultrapassados os prazos máximos de duração, nomeada-mente as setenta e duas horas para apresentação do detido para o primeiro interrogatório judicial;”37 Art. 196. “1. O juiz reexamina os pressupostos de que depende a manutenção da prisão preventiva todos os períodos de seis meses, podendo o arguido e o Ministério Público pronunciarem-se nos dez dias anteriores ao termo do prazo. 2. Durante o inquérito, o Ministério Público apresenta os autos ao juiz competen-te dez dias antes de esgotados os seis meses referidos no número anterior.”

Page 69: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 137136

TIM

OR

LES

TE

TIM

OR

LES

TE

examinar se estão presentes os requisitos previstos no art. 1°, al. c), do CPP, a contrario senso38 e se constam os elementos previstos no art. 236°, n° 339 , do mesmo diploma legal, decidindo por rejeitar a acusação, conforme dispõe o art. 239°, al. b)40 do CPP, ou por receber a mesma, nos termos da alínea c) do referido dispositivo legal, hipótese em que deverá designar data para a realização da audiência de julgamento e determinar a notificação dos intervenientes processuais.

Recebida a notificação pela Defensoria Pública de Timor-Leste, deverá o Defensor checar se e quando o arguido foi notificado do despacho de recebimento da acusação, já que é desta data que, em regra, começam a correr os prazos. Em regra porque deve ser observado se no mandado de notificação havia a indicação da necessidade de patrocínio judiciário e dos prazos para a arguição de nulidade ou oferecimento de contestação, conforme inteligência do art. 198°, n° 2, CPC41 combinado com os arts. 3°42 e 94°43 , ambos do CPPT.

Para a elaboração da contestação, o Defensor Público conta com a prerrogativa de solicitar a quaisquer autoridades públicas ou seus agentes, incluindo o aparelho policial, quaisquer documentos, certidões ou informações que repute necessárias ou úteis ao exercício da defesa do arguido, conforme previsto no art. 48°, n° 2, do Estatuto da Defensoria Pública, que se constitui em mecanismo legal criado na tentativa de equilibrar as duas partes do processo penal em conflito, uma vez que o Estado-Acusação tem o aparelho policial investigativo a seu serviço, fazendo-se necessário que ao Estado-Defesa também sejam conferidos mecanismos para, ao menos, tentar buscar provas em favor do arguido.

As prerrogativas dos Defensores Públicos não se confundem com seus

38 Art. 1°. “Para efeitos do disposto no presente Código considera-se: c) “Acusação manifestamente infundada”, aquela que não contenha a narração dos factos ou as indicações ten-dentes à identificação do arguido, não indique as disposições legais aplicáveis ou as provas que fundamentam a acusação, ou cujos factos narrados não constituam crime;”39 Art. 236. “3. O despacho de acusação contém, sob pena de nulidade: a) As indicações tendentes à identificação do arguido; b) A narração dos factos que constituam o crime ou relevem para a determinação da sanção ou medida de segurança; c) A indicação das normas substantivas aplicáveis; d) A data e a assinatura.40 Art. 239.“Recebidos os autos no tribunal, o juiz: b) Profere despacho de rejeição, se considerar a acusação mani-festamente infundada. c) Recebe a acusação e designa dia para julgamento, se entender que o processo deve seguir para julgamento.”41 Art.198. “2. No acto de citação, indicar-se-á ainda ao destinatário o prazo dentro do qual pode oferecer a defesa, a necessidade de patrocínio judiciário e as cominações em que incorre no caso de revelia. De tudo se lavrará certidão, assinada pelo citado.” Compulsando o Código de Processo Civil, constata-se ex vi do art. 190 que a citação é ato correspondente à notificação do Processo Penal através do qual se dá conhecimento ao arguido de que contra ele pesa uma acusação, ou seja, que a ele foi imputado um fato decrito como típico, chamando-o ao processo para se defender.42 Art. 3°. “Nos casos omissos, quando as disposições deste Código não puderem aplicar-se por analogia, observam-se as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal e, na falta destas, os princípios gerais de processo penal.”43 Art. 94“são aplicáveis subsidiariamente em processo penal as normas constantes do Código de Processo Civil, com as devidas adaptações.”

direitos, sendo inerentes ao cargo e não a seu ocupante, e tendo a função essencial de permitir que o Defensor Público possa exercer suas atribuições com o fim de alcançar a satisfação do direito do assistido, razão pela qual sequer pode o Defensor abrir mão de uma prerrogativa já que ela não se destina a ele mas ao necessitado.

Estando o arguido preso, seja a título de medida de coação de prisão preventiva, seja a título de pena em função de sentença condenatória transitada em julgado, deve o Defensor Público estar atento aos prazos para a duração da prisão e às condições em que o Estabelecimento Prisional mantém os encarcerados. O prazo máximo de duração da prisão do arguido na fase de inquérito já foi devidamente analisado, valendo ressaltar que, após o oferecimento da acusação, tem o Tribunal dois anos para julgar a causa, sendo que o prazo de duração da prisão preventiva não pode ultrapassar três anos sem que haja condenação com trânsito em julgado, excepto se existir recurso sobre questões de constitucionalidade, caso em que o prazo passa a ser de três anos e meio, conforme previsto no art. 195°, n°1 do CPP. É importante notar que, nos termos do n° 2 do referido dispositivo legal, os prazos previstos no n°1 podem ser acrescidos de seis meses por decisão do Tribunal em hipótese de comprovada complexidade. Ultrapassados estes prazos, deve o Defensor Público requerer a providência de habeas corpus ao Tribunal de Recurso.

Após o trânsito em julgado de sentença condenatória que aplicou pena de prisão ao arguido, cabe a Defensoria Pública, passada a fase de liquidação da pena, onde se deduzirá o período em que o arguido permaneceu detido ou preso antes do início do cumprimento da penas aplicada, estar atenta às hipóteses de livramento condicional.

A fim de promover o melhor acompanhamento da situação dos arguidos encarcerados, o Excelentíssimo Defensor Público-Geral de Timor-Leste determinou, através do art. 3° da Portaria n° 07/2008 GAB/DPG/TL, de 19 de maio de 2008, a realização de plantão junto ao Presídio de Becora, uma vez por semana, com vistas a identificar e satisfazer os direitos dos presos durante a medida restritiva de liberdade, bem como a prevenir violações de direitos humanos.

É importante frisar que, no âmbito criminal, a hipossuficiência econômica do arguido não é requisito indispensável para a concessão da assistência jurídica pela Defensoria Pública, uma vez que, nesta seara, se está a tratar do direito de liberdade e do direito à ampla defesa, que foram erigidos à categoria de garantias constitucionais e fundamentais do indivíduo. Ou seja, mesmo que o arguido não seja hipossuficiente

Page 70: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

BOLETIM RIPAJ BOLETIM RIPAJ

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012

B. Reun. de Instituições Públ. de Assist. Jur. dos Países de Língua Port.Brasília, DF, n.1, p.1-136, abr. 2012 139138

TIM

OR

LES

TE

TIM

OR

LES

TE

economicamente, se ele não possuir advogado constituído para representá-lo em juízo, deve a Defensoria Pública atuar em seu favor, a fim de garantir a ampla defesa no processo criminal e evitar o perecimento do seu direito de liberdade. O que acontece nestas hipóteses em alguns países que chamaram para si a responsabilidade de garantir o acesso à justiça ao necessitado através de um instituição estatal, é a fixação de honorários em juízo e sua reversão em favor do Estado, que, posteriormente, exigirá através dos mecanismos processuais adequados o pagamento da dívida pelo arguido, que teve o auxílio da Defensoria Pública apenas para evitar lesão ao seu direito à ampla defesa e, consequentemente, ao direito de liberdade, mas que possui condições de arcar com as despesas de constituição de um advogado e o pagamento de custas judiciais, não podendo, por isso, fazer uso gratuito de um serviço que é destinado aos necessitados justamente com a finalidade de reequilibrar as distorções sócio-econômicas.

Tentou-se mostrar nesta obra a importância e, em linhas gerais, o papel da Defensoria Pública no âmbito processual penal timorense e perante toda a sociedade.

Desta exposição conclui-se também que de nada adianta assegurar aos cidadãos carentes direito ao contraditório e à ampla defesa, ao devido processo legal, à inviolabilidade da sua vida, bem como todos os demais direitos e as garantias fundamentais idealizadas pelo Parlamento Nacional para a elaboração da Constituição da República se estes não podem se socorrer dos Tribunais senão por meio de uma Defensoria Pública fortalecida e independente. O direito fundamental à orientação e à assistência jurídica estatal é pressuposto imprescindível de afirmação dos direitos dos cidadãos carentes.

O Estado Democrático de Direito previsto na Constituição timorense só será consolidado com a efetivação de um triângulo da justiça equilátero, tendo, em cada um de seus vértices, uma instituição estatal essencial à realização da Justiça, da Democracia e da verdadeira Cidadania, quais sejam, a Defensoria Pública, o Ministério Público e a Magistratura Judicial.

Page 71: ISSN 2238-4219 Boletim - dpu.def.br · MóDUS OPERANDI DO IPAJ NA PRESTAçÃO EFECTIvA DA ... pesquisas e estudos relacionados aos temas de acesso ... ou impugnar a sua maternidade

9 772238 421254

ISSN 2238-4219

Reunião das Instituições Públicas de Assistência Jurídica dos Países de Língua Portuguesa