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ENSINO DE HISTÓRIA, UMA ÁREA DE SABER-FAZER EM MOVIMENTO

* Texto originalmente apresentado na mesa redonda “Relações entre o passado e o presente: construção identitária e orientação temporal”, coordenada pela Prof.ª Dr.ª Kátia Maria Abud (FEUSP), no IX Encontro Nacional Perspectivas do Ensino de História e o IV Encontro Internacional do Ensino de História, realizado em Belo Horizonte/MG, em abril de 2015. Esse ensaio é uma homenagem a duas importantes historiadoras do Ensino de História – que nos deixaram no ano de 2015 – Arlette Medeiros Gasparello e Maria Carolina Bovério Galzerani.

Renilson Rosa RibeiroDoutor em História Cultural pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) Estagio pós-

doutoral em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) Professor do Departamento de História, do Programa de Pós-graduação em História,

do Programa de Pós-graduação em Estudo da Linguagem e do ProfHistória - Mestrado Profissional em Ensino de História da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT)

[email protected]

RESUMOO presente artigo realiza uma análise sobre a trajetória e as perspectivas temáticas e teóricas do Ensino de História, enquanto campo de estudos, no Brasil na virada do século XX para o XXI. Nesse sentido, reconhece o papel dos referencias da História Social inglesa e Nova História francesa, nos anos 1980 e 1990, como marcas constituintes dos objetos, problemas e abordagens das pesquisas sobre a história ensinada nas universidades, e aponta os des-dobramentos possíveis a partir das questões teórico-metodológicas lançadas pela Educação Histórica e Didática da História a partir dos anos 2000.

Palavras-Chave: Ensino de História; História do Brasil; Teoria da História; Historiografia.

ABSTRACTThis article analyzes the history and thematic perspectives of History Teaching as a field of study in Brazil at the turn of the 20th century. In this sense, it recognizes the role of the references of English Social History and New French History, in the years 1980 and 1990, as constituent marks of the objects, problems and approaches of the researches on the history taught in the universities, and it indicates the possible unfolding from the questions theoreti-cal and methodological studies launched by the Historical and Didactic Education of History from the 2000s.

Keywords: Teaching History; History of Brazil; Theory of History; Historiography.UNIVERSIDADE

FEDERAL DE MATO GROSSO

NÚCLEO DEDOCUMENTAÇÃOE INFORMAÇÃO

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Nesta última etapa do túnel, certas precauções ainda devem marcar as nossas passadas. Só que não guardam mais a mesma natureza em relação àquelas que tivemos que ter ao longo desta caminhada de 20 anos, no espaço que nós é reservado ou no qual combatemos, nós historiadores.

É que o destreinamento que sofremos, tateando pelas paredes daquele espaço, iluminados às vezes apenas pelo tempo de duração da chama de um fósforo, pode cegar-nos agora diante da plena claridade que se entrevê e que, com certeza, deve haver lá fora. Por outro lado, não é desmedida prudência, neste trajeto final, perder de vista o risco de uma “meia-volta-volver”.

José Roberto do Amaral Lapa (1981)

A área de Ensino de História surgiu ao final dos anos 1970 e início dos 1980, no período da abertura política e do processo de democratização do Brasil. Nesse contexto histórico de

intensa movimentação intelectual, cultural e política, cheio de expectativas acerca do retorno da democracia e do tipo de sociedade em que uma educação crítica poderia auxiliar nesse contexto. Os historiadores se voltaram de um modo mais efetivo para pensar o ensino de História e o papel desempenhado por essa disciplina escolar – e também campo de saber – nesse processo.

Ao analisar esse momento histórico dentro da História da Educação no Brasil, Elza Nadai considerou que as

[...] respostas ao desafio de se pensar em práticas não tradicionais do ensino de História bem como o de construir uma escola democrática foram surgindo em decorrência e paralelamente à ampla participação que os “excluídos do poder” – amplos setores da sociedade civil – promoviam a respeito da própria socieda-de brasileira com o objetivo de superar o regime instaurado em 1964 (NADAI, 1986, p. 11)

A maior parte das publicações acadêmicas sobre a história ensinada no Brasil surgiu nesse instigante e incerto contexto intelectual, cultural e sociopolítico. Nesta ocasião, três níveis de acontecimentos influenciaram a constituição inicial de um campo de pesquisa do ensino de História.

Em primeiro lugar trata-se do influxo de uma nova historiografia nas universidades brasileiras, receptiva à história cultural, marcada pela Nova História francesa que vislumbrava a introdução de novos objetos, novas abordagens e novos problemas no campo disciplinar da história. O impacto das obras de Jacques Le Goff, Georges Duby, Philippe Ariès, Michel de Certeau, Michelle Perrot, Michel Vovelle, Jean Delumeau, François Furet e o “simpatizante” Michel Foucault, tornava relevante temáticas anteriormente negligenciadas pelos historiadores brasileiros como o casamento, a família, a sexualidade, a mulher, a infância, a morte, a doença, a cultura popular, os imaginários, a vida privada, etc. Outro impacto significativo veio da historiografia marxista proveniente do grupo de intelectuais ingleses ligados a New Left Review, destacando-se entre eles Christopher Hill, Eric Hobsbawm, Perry Anderson e, sobretudo, Edward P. Thompson. Este último responsável por uma crítica contundente ao marxismo estruturalista que negava a capacidade de ação dos sujeitos históricos. Essa perspectiva permitiu, no Brasil, uma possibilidade de crítica às vertentes marxistas de interpretação histórica mais economicistas, além de salientar a relevância da noção de sujeito histórico e uma possibilidade de construir “uma história vista de baixo”, na linha dos estudos subalternos.

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Num segundo nível de acontecimentos, havia um desejo latente na sociedade brasileira de ruptura com o regime militar e com tudo o que este havia proposto em termos de educação cujas reformas buscavam, como principal objetivo, reformular e adaptar o sistema educacional aos objetivos políticos e ideológicos implantados pelo golpe de 1964. As medidas provenientes da Reforma Educacional de 1971 haviam reduzidos os conteúdos de História e Geografia sintetizando-as nos Estudos Sociais, com possibilidade de formação acelerada do professor por intermédio da Licenciatura Curta, assim como havia introduzido na grade curricular escolar Educação Moral e Cívica (EMC) e Organização Social e Política do Brasil (OSPB), disciplinas com caráter de doutrinação ideológica. No que se refere ao ensino de história, portanto, a ditadura civil-militar havia imposto uma história positivista, que reivindicava o estatuto da veracidade, objetividade e imparcialidade, mas cujas características intrínsecas eram a de uma narrativa celebradora do Estado-nação, do culto aos seus mitos fundacionais, aos símbolos pátrios e a seus heróis fardados. As vertentes historiográficas que estavam chegando aos círculos acadêmicos iam à contramão dessa histórica política oficial, sem contradições. As temáticas postas em pauta pela “terceira geração” dos Annales dessacralizava a história oficial ao tornar relevante o cotidiano, as pessoas comuns, a sexualidade, o imaginário e tudo aquilo que de certa forma não cabia naquele esquema da história nacional pomposa. Dar aos de baixo o protagonismo histórico era ainda mais herético, pois significava retirar o quadro de Duque de Caxias da parede.

Por fim, um terceiro desdobramento aqui é o questionamento da concepção de escola como eficiente meio de domesticação das massas e mecanismo de manipulação ideológica predominante. Esta concepção era, por um lado, um pressuposto ideológico do próprio regime que, ao exercer um esforço de controle curricular e das práticas escolares, apostava na capacidade de doutrinação da escola. Os militares haviam encomendado um ensino de história cujo objetivo, era a formação de súditos da pátria, e nesta perspectiva, a escola era visto como mecanismo para domesticar as massas. Por outro lado, as críticas realizadas a essa educação coercitiva e de doutrinação ideológica do regime, recheada de denuncismo acadêmico do projeto manipulador e maquiavélico do poder constituído, muitas vezes salientava a eficácia da escola como aparelho ideológico do Estado. Esse posicionamento, apesar de crítico, não conseguia vislumbrar os espaços de autonomia e resistência dos sujeitos no universo escolar, negando humanidade a professores, alunos e agentes educacionais, compreendendo-os de modo reducionista como autômatos do Estado, reprodutores da lógica educacional imposta de cima para baixo. Ambas as posições refletiam uma concepção conservadora do ensino, pois do ponto de vista pedagógico os entendimentos giravam em torno da educação bancária, do aluno encarado como ser passivo. Neste ponto, as contribuições do pensamento pedagógico de Paulo Freire reapareceram com força no contexto do final dos anos 1970 e início dos anos 1980. Ao compreender o aluno como ser ativo, Paulo Freire o humanizava e o colocava como um protagonista relevante do processo de ensino-aprendizagem. As teorias educacionais da aprendizagem passaram a ser mais intensamente debatidas, principalmente a partir de dois relevantes referenciais: Jean Piaget e Lev Vygostky. Apesar de Piaget e Vygotsky partilharem algumas crenças, como por exemplo, que o desenvolvimento é um processo dialético e que as crianças são cognitivamente ativas no processo de imitar modelos em seu mundo social, suas teorias divergem muitos aspectos. Em Piaget a criança possui fases biológicas de maturação que condicionam a aprendizagem de modo escalonado, por meio de fases que permitem uma evolução do concreto até alcançar conceitos abstratos. Para Piaget, o desenvolvimento antecede a

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aprendizagem. Vygostky, por sua vez, apontou para o peso das relações sociais com o meio, pois cria na “abstração e generalização” desenvolvida no indivíduo através da comunicação social que este tem com o meio que vive. Deste modo, para Vygotsky a aprendizagem pode (e deve) anteceder ao desenvolvimento.

Esse debate contribuiu para que na relação ensino-aprendizagem, o pêndulo teórico deslocasse do ensino para a aprendizagem. Este deslocamento permitiu que o aluno não fosse mais concebido como tábula rasa. Esta valorização do aluno como sujeito pedagógico e histórico entrou em perfeita sintonia com as tendências historiográficas que voltavam o olhar para os “de baixo”, ou mesmo aquelas que introduziam temas de relevância na história que não estavam no âmbito da grande política. Apesar das divergências entre as tendências historiográficas em questão, ambas traziam como ponto comum: uma história dessacralizada, despojada do oficialismo estatal, que era prerrogativa da narrativa invocada pela ditadura civil-militar.

Esses três níveis de acontecimentos influíram decisivamente na construção de um campo de saber destinado à análise da história ensinada e que foi se estruturando ao longo dos anos 1980, promovendo um processo crescente de revisão dos esquemas globalizantes e homogeneizadores, os quais, por muito tempo, nortearam as teorias e as práticas historiográficas, a exemplo da herança positivista da história escolar (marcada pela criação de uma cultura da percepção da história como exterioridade, do fato pelo fato, do estatuto da veracidade e da objetividade etc.) ou mesmo do aprisionamento estruturalista a uma concepção marxista de caráter econômico-evolucionista que limitava a história a uma sequência cronológica de alteração dos modos de produção. Nesta direção, podemos incluir o surgimento da área “Ensino de História” como fruto do processo de ampliação temática da História, marcada pela busca de novos problemas, novas abordagens, novos objetos e também pela dinâmica das discussões acerca da educação como um dos pilares de sustentação da democracia que se buscava construir após a queda da ditadura.

No âmbito das lutas sociais, os professores se defrontaram com a política de descaracterização e desvalorização da disciplina História no ensino de 1o e 2o graus (atual Ensino Fundamental e Médio). Diante de um contexto que vislumbrava a democracia, a insatisfação com um modelo que pregava a ideia de cidadania submissa e subserviente ao Estado crescia. A democracia exigia cidadãos críticos e ativos. Neste contexto, o ensino de história era algo debatido, questionado, pensado e vivido. Estava com um pé nas universidades onde se tornou um objeto de pesquisa nas pós-graduações que se estruturavam e outro pé na rua, nas mobilizações sociais e políticas dos professores e estudantes. Ao analisar esse momento histórico dentro da história da educação no Brasil, Elza Nadai (1986, p. 111) afirmou que as “respostas ao desafio de se pensar em práticas não tradicionais do ensino de História bem como o de construir uma escola democrática foram surgindo em decorrência e paralelamente à ampla participação que os “excluídos do poder” – amplos setores da sociedade civil – promoviam a respeito da própria sociedade brasileira com o objetivo de superar o regime instaurado em 1964.”

Enfim, os professores e os estudantes de História começaram a partir desse mo-mento, a vislumbrar um raio de luz que os conduzia a um novo tempo, em que as únicas convicções eram as incertezas e a necessidade de repensar as práticas escolares e de reescrever a história, ou melhor, escrever outras histórias.

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Neste ínterim, intensificaram-se os debates acerca do conhecimento histórico, dando início a um diálogo aberto entre espaços e formas de produção, por intermédio de trocas de experiências cada vez mais frequentes na academia e no ensino de 1o e 2o graus. As lutas profissionais, desde a sala de aula até as manifestações públicas, pelo retorno das disciplinas de História e Geografia nos currículos escolares e pela extinção dos cursos de Licenciatura Curta e Plena de Estudos Sociais multiplicaram-se neste período, sendo num segundo momento encampadas também pela Associação Nacional dos Professores Universitários de História, a ANPUH (atual Associação Nacional de História).

A natureza dessas discussões e lutas profissionais, expressas em diferentes trabalhos, divulgados em encontros, livros e periódicos, possibilitou a apresentação de diversas perspectivas que foram constituindo as dimensões do ensino da História dentro da realidade educacional brasileira.

A literatura referente ao tema foi se tornando profícua nos anos 1980. As propostas curriculares de História que emergiram nos âmbitos estadual e municipal traduziram e, ao mesmo tempo, incentivaram a crítica a forma positivista e a busca de modelos alternativos. Entre estes modelos destacaram-se as abordagens marxistas dos currículos (notadamente o de Minas Gerais) e dos livros didáticos, ainda marcados pelo viés do determinismo econômico, mas que aos poucos foram cedendo lugar para as perspectivas mais centradas na atuação dos sujeitos, principalmente dos oprimidos. Também já se discutia a possibilidade de uma história cultural, com viés na história do cotidiano, mas essa perspectiva apareceu mais significativamente a partir dos anos 1990.

Uma quantidade de publicação e temas que orbitavam em torno do Ensino de História apareceu auxiliando no processo de construção da área: história do ensino de História, análise de livros didáticos e paradidáticos, produção do conhecimento, construção de currículos, ensino temático, diferentes linguagens, novas tecnologias, propostas alternativas, entre outros. Esse crescente interesse pelo assunto fica evidente na quantidade de livros, coletâneas e dossiês em periódicos científicos publicados no país, entre os anos 1980 e 1990, dentre os quais se destacaram: Repensando a História, organizado por Marcos Silva (1984), O ensino de História: revisão urgente, de Conceição Cabrini (1986); O ensino de história e a criação do fato, organizado por Jaime Pinsky (1988); a tese de doutorado História, que história é essa – uma análise dos livros paradidáticos de história? de Ernesta Zamboni (1991); Caminhos da História Ensinada, de Selva Guimaraes Fonseca (1993); O saber histórico na sala de aula, organizado por Circe Bittencourt (1997); a tese de doutorado Produzindo livros didáticos e paradidáticos, de Kazumi Munakata (1997). Alguns artigos publicados em periódicos científicos foram também referenciais: A formação do profissional de História e a realidade de ensino, de Déa Ribeiro Fenelon (1981), A escola pública contemporânea: os currículos oficiais de História e o ensino temático, de Elza Nadai (1986), O ensino de história como fator de coesão nacional: os programas de 1931, de Kátia Abud (1993), O ensino de História Local, de Joana Neves (1994), entre outros.

Essa crescente de publicações relativa ao ensino de história ganhou uma dimensão maior com a criação de eventos científicos relevantes dedicados exclusivamente ao tema, caso do Seminário Perspectivas do Ensino de História, realizado pela primeira vez em 1988 na cidade de São Paulo (USP) a partir de uma proposta da professora Elza Nadai, e do Encontro Nacional de Pesquisadores do Ensino de História, iniciado em 1993, na cidade de Uberlândia. Assim, os dois eventos específicos da área de Ensino de História têm sido realizados no Brasil, em diferentes instituições, com o objetivo de

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contribuir para o debate, o diálogo, a formação permanente de professores e pesquisadores na área do ensino de História. Ao longo desse processo se formou a Associação Brasileira de Ensino de História (ABEH), tendo a professora Ernesta Zamboni (Unicamp) como presidente-fundadora. A criação do Grupo de Trabalho História e Educação na ANPUH, em 1997, também intensificou o processo de consolidação do campo.

A valorização das pesquisas nesta direção também se refletiu nas reformas curriculares dos cursos de licenciatura em História no Brasil com a ampliação do espaço das disciplinas de didática, práticas e estágio supervisionado na sua carga horária, apontando para a necessidade de se investir na formação de professores, sem deixar de lado a dimensão da pesquisa histórica como componente formativo.

Apesar da qualidade dos trabalhos produzidos sobre a história da disciplina ao longo das últimas três décadas, apontando para o reconhecimento da prática da sala de aula e dos personagens que compõem este cenário – professores e alunos – identificamos ainda a presença de distanciamentos, preconceitos e estereótipos nas representações produzidas no próprio meio acadêmico, escolar e na sociedade sobre o papel da escola e do ensino da História. Mesmo nos cursos de licenciatura nas universidades e faculdades, após as recentes reformas curriculares, o universo da sala de aula permanece ainda um grande enigma para os futuros professores.

Em parte, tal atitude decorre de uma forte tradição de pensamento que toma a escola como um espaço incapaz de criar algum tipo de produção intelectual própria, como se essa fosse apenas um receptáculo de ideias de uma cultura que lhe é exterior – reprodutora de ideologias. Segundo André Chervel (1990, p. 182), “a concepção da escola como puro e simples agente de transmissão de saberes elaborados fora dela está na origem da ideia, muito amplamente partilhada no mundo das ciências humanas e entre o grande público, segundo a qual ela é, por excelência, o lugar do conservadorismo, da inércia, da rotina.”

Procurar decifrar os meandros do ensino de História na educação básica brasileira, a partir da análise restrita de leis, currículos e livros didáticos, desconsiderando os saberes e práticas presentes no fazer de professores e alunos, pode revelar a persistência dessa visão da escola como espaço de reprodução ou vulgarização do conhecimento. Essa contestação da escola apenas como um aparelho ideológico do Estado cresceu também em decorrência das teorias da recepção trazida por diferentes intelectuais da história cultural em suas diversas colorações, como Michel de Certeau, Roger Chartier, Robert Darnton, entre outros. Essa perspectiva historiográfica, que destaca a autonomia do processo de leitura, aliada a crescente valorização do processo de aprendizagem pelas teorias pedagógicas, permitiu o desenvolvimento de um olhar mais cuidadoso sobre a escola.

Para Antonio Almeida Neto (1996, p. 13), não se trata de desconsiderar o peso desses objetos do cotidiano escolar, mas sim de entender que mesmo a legislação mais inovadora não mudará, por si só, a educação e o ensino da história; que o melhor livro didático, forjado a partir de novas concepções historiográficas e pedagógicas, pode ser subutilizado ou mesmo deixado de lado; que um decreto autoritário pode ser acatado formalmente e burlado quando a porta da sala de aula se fecha; que o aluno alfabetizado da estatística oficial, às vezes, só sabe assinar o próprio nome. Em linhas gerais, “a desconsideração da prática da escola, incorre num empobrecimento da análise da educação, por analisar a história não pelas mudanças concretas, mas pelas proposições ideais.”

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Embora tenhamos uma significativa produção acadêmica em coletâneas, revistas e anais de eventos dedicados às tramas do fazer histórico na sala de aula, há ainda persistência de discursos e práticas que apresentam professores e alunos como personagens marginalizados ou coisificados. Assim, as análises que buscam se contrapor às imagens idealizadas desses sujeitos presentes nos textos oficiais e livros didáticos, muitas vezes recorrem à descrição dura e crua da realidade escolar, com professores mal qualificados e alunos semianalfabetos, apresentando, desse modo, um caráter denunciador. Esse duelo entre o ideal e o real acaba soterrando a diversidade e complexidade do universo escolar e do ensino da História no Brasil.

A partir do final dos anos 1990, tem havido uma preocupação por parte pesquisadores do ensino de História, de forma mais detida e problematizada, com a prática da sala de aula: a formação e a prática do professor de História e a construção do conhecimento pelos alunos, decorrentes em parte da consolidação das perspectivas históricas e pedagógicas de valorização dos sujeitos. Nesse sentido, merecem destaque nesse vasto e rico “leque” de tonalidades teóricas os estudos de Antonio Simplício de Almeida (1996), Selva Guimarães Fonseca (1997), Marizete Lucini (2000), Ana Maria Monteiro (2007), Sonia Regina Miranda (2007), Maria Aparecida Lima Dias (2007), Flávia Eloisa Caimi (2008), Raquel Sena Venera (2009), Ronaldo Cardoso Alves (2011) e Regina Maria de Oliveira Ribeiro (2012). Tais estudos passaram a considerar a escola como espaço de produção de cultura, e não apenas transmissora e difusora de conhecimentos prontos; o professor de História e os alunos como criadores de interpretações de mundo no ensino da disciplina. A análise deste universo tem sido auxiliada pelo uso de fontes documentais como relatos orais (de professores e alunos), manuscritos (registros internos de escolas, registros de professores, relatórios de estágios, atividades e textos dos alunos), além das impressas (documentação oficial e livros didáticos).

Uma consequência desta ênfase na aprendizagem, a guisa de ilustração, foi o surgimento de uma área específica para pesquisar e avaliar a aprendizagem da história dentro e fora do universo escolar denominada de “Educação Histórica”.

Este campo constituiu-se durante os anos 1970, em especial, no Canadá, Estados Unidos e Inglaterra. Questionava a perspectiva cognitiva que opunha pensamento concreto versus pensamento abstrato e propunha avaliar o processo cognitivo específico acerca da História. Os estudos pioneiros de Alaric Dickinson, Peter Lee, Rosalyn Ashby e Dennis Shemilt debruçaram-se sobre compreensão conceitual, estruturação da explicação, possibilidade de interpretação e impacto de narrativas históricas variadas. Estas análises permitiram trazer a tona os critérios epistemológicos fundantes e constituintes do raciocínio histórico. Esse caminho aproximou o campo da própria teoria da história, já que conceitos como significância histórica, mudança, evidencia e narrativa, ganharam centralidade.

Nesta aproximação entre a didática e a teoria da história o nome do historiador alemão Jörn Rüsen se destaca. Entre as suas preocupações a educação histórica questiona: como os alunos compreendem a disciplina História? Qual o papel da mídia, das tecnologias de informação, da família e dos grupos sociais em que estão inseridos os indivíduos na aprendizagem da história e dos seus conceitos? Como a escola poderia articular o processo de desenvolvimento do raciocínio histórico sem desconsiderar essas outras fontes, levando em conta essa dinâmica de múltiplas referências históricas? No Brasil, o campo de investigações da Educação Histórica tem crescido de

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modo significativo e se institucionalizado a partir de meados da primeira década do século XXI, trazendo assim, novas contribuições para a área de ensino de história (COSTA; OLIVEIRA, 2007, p.155-156).

Em síntese, há hoje uma interação entre as fontes clássicas de pesquisa e os saberes e práticas produzidos no contexto escolar por professores e alunos.

Nessa perspectiva, o cotidiano escolar e o fora dele não são mais visto apenas como ilustração ou idealização, mas sim como recursos analíticos. Em linhas gerais, passa-se a dar importância à ação dos sujeitos; o individual e o coletivo no tempo e no espaço.

Este começo de século vê uma área de saber – Ensino de História – em nítido desenvolvimento, constituindo um lugar de referência para pensar uma multiplicidade de temas e problemas relacionados à história do ensino de História no Brasil.

* * *

Diante dos dilemas e desafios do ensino de História – enquanto área e prática – na contemporaneidade, a sala de aula como espaço inventivo continua a requerer do docente o entendimento de que partir do universo de interesse do aluno não significa apresentar-se aos alunos de mãos vazias, fazendo a seguinte pergunta: “O que vocês gostariam de (não) aprender na aula de hoje?” Como nos lembra Flávia Caimi (2007, p. 24), em sua crítica aos jargões e modismos de área que povoam os manuais, cursos de formação inicial e continuada e reuniões de planejamento pedagógico, “levar em conta o universo da criança ou do adolescente não é, pois, abdicar do rigor intelectual ou do valor do conhecimento histórico, mas garantir que a apropriação deste conhecimento ocorra permeada de sentido e significação, resultando em sólidas aprendizagens”.

Embora tenhamos consciência da burocracia inerente ao funcionamento da escola, das péssimas condições de trabalho, dos baixos salários e, consequentemente, do excesso da carga de atribuições, que são uma combinação de fatores que prejudicam qualquer proposta de ensino-aprendizagem, não podemos nos esquivar dos significados e desafios da sala de aula para o profissional docente da área – quem em sua maioria teria de assumir a sua condição de pesquisador de um campo de saber.

A aula de História é antes de tudo uma tomada de consciência do professor, daquilo que ele entende como seu fazer. É o lugar da constituição permanente da identidade de uma área de saber, do seu profissional e também dos alunos, que buscam ali sentidos e significados diversos para a sua vida. A sala de aula é a tradução para o professor de História da sua formação, vivências, experiências e, principalmente, escolhas.

Segundo Maria Auxiliadora Schmidt, a aula de História é o cenário em que o professor, tendo consciência do saber que possui e representa para a sociedade, pode oferecer a seu aluno a apropriação do conhecimento histórico existente, através de um esforço e de uma atividade com a qual ele retome a atividade que edificou esse conhecimento. É também o espaço em que um embate é travado diante do próprio saber: de um lado, a necessidade do professor ser o produtor do saber, de ser partícipe da produção do conhecimento histórico, de contribuir pessoalmente.

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De outro lado, a opção de tornar-se apenas um eco do que os outros já disseram (SCHMIDT, in BITTENCOURT, 1998, p. 57)

Feitas essas considerações, cabe-nos aqui a pergunta incômoda e necessária: “Que professores de História somos ou almejamos ser?” As repostas possíveis para este questionamento são fundamentais para a formulação das concepções do que seja a história, seu ensino e seu papel na vida dos alunos.

E ensinar é lembrar, lutar e resistir... E como não lembrar daqueles que partilham/partilharam essa jornada. A construção do nosso campo está intimamente ligada à história da resistência contra a ditadura civil-militar no Brasil, final dos anos 1970 e início dos anos 1980. A democracia foi uma das balizas que orientaram o engajamento dos professores de História, nas escolas e universidades, na formulação de novos currículos, práticas e pesquisas.

Essa é a nossa causa, e haveremos mais uma vez de resistir contra a toda alcateia de ladroes “intitulados homens de bem” em nome do Estado democrático de direito e de uma educação plural, pública e universal. Como nos recorda o inesquecível Eduardo Galeano, “A memória guardará o que valer a pena. A memória sabe de mim mais que eu; e ela não perde o que merece ser salvo.” E o que vale guardar são as lutas e certeza de que combatemos o bom combate.

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