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ISSN 1517-543X FORMAÇÃO ESPECIAL Formação Presidente Prudente n. 13 v. 2 p. 1 -488 2006

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ISSN 1517-543X

FORMAÇÃO

ESPECIAL

Formação Presidente Prudente n. 13 v. 2 p. 1 -488 2006

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Revista Formação – Edição Especial – n.13 v.2

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ISSN 1517-543X

FORMAÇÃO

UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FCT/UNESP

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA MESTRADO E DOUTORADO

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: PRODUÇÃO DO ESPAÇO GEOGRAFICO

ESPECIAL

Formação Presidente Prudente no 13 v.2 p. 1 – X 2006

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RICHTER, D.; et all. A informática no processso ensino-aprendizagem: contribuindo para uma nova escola.

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Revista Formação n. 13 v.2 2006 Universidade Estadual Paulista Reitor: Marcos Macari Vice-reitor: Herman C. Voorwald Editor da Revista Eda Maria Góes Comissão Editorial Beatriz Medeiros de Melo Giunei Machado Umberto Catarino Pessoto Carlos Roberto Loboda Formação é uma publicação semestral do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Unesp, campus de Presidente Prudente – SP, destinada à divulgação da produção acadêmica de seus alunos e professores, sem excluir a participação de outros colaboradores. Pretende também estabelecer permuta com outras publicações de instituições nacionais e estrangeiras. Assessoria técnica Bibliotecária: Teresa Raquel Vanalli Jader Mozella Marton Soares Paulo César Zangalli Junior Capa “Caminho” Óleo sobre tela Maria Neuza Rotta

Conselho Editorial Antônio César Leal Antônio Nivaldo Hespanhol Antônio Thomaz Junior Arthur Magon Whitacker Bernardo Mançano Fernandes Claudemira Azevedo Ito Eda Maria Góes Eliseu Savério Sposito José Tadeu Tomaselli João Lima Sant´Anna Neto João Osvaldo Rodrigues Nunes Manoel Carlos Toledo F. de Godoy Margarete Cristiane de C. T. Amorin Maria Encarnação Beltrão Sposito Raul Borges Guimarães Rosângela Ap. de M. Hespanhol

Endereço Eletrônico www.fct.unesp.br www4.fct.unesp.br/pos/geo Revista formação

Formação/Universidade Estadual Paulista – nº 1, 1994 – Semestral V. il.; 25 cm. ISSN 1517-543x

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Revista Formação – Edição Especial – n.13 v.2

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APRESENTAÇÃO

É com muita satisfação que trazemos ao público a publicação de número 13 da Revista Formação. Com este número, agora em versão eletrônica, em sua primeira edição, a Revista Formação dá continuidade ao seu papel de contribuir para o avanço da discussão geográfica. Neste número, excepcionalmente, não haverá, como é de praxe, a publicação de entrevista, que deve ser retomada com o número 14.

A segunda edição deste número será comemorativa, com a publicação de artigos - publicados em edições anteriores - de autores importantes dentro da Geografia e de alunos que se formaram no Programa de Pós-Graduação em Geografia desta universidade, publicaram seus trabalhos na Revista Formação e estão, hoje, trabalhando em instituições de ensino e pesquisa no Brasil.

Os artigos publicados nesta revista são oriundos de trabalhos finais de disciplinas da pós-graduação e de resultados de pesquisas finalizadas em dissertações e teses, o que demonstra a qualidade dos trabalhos e, logicamente, do programa de pós-graduação. Ao final, há a publicação das provas dos melhores colocados em cada linha de pesquisa e informações sobre as últimas defesas de dissertações e teses. Aproveitamos o ensejo para agradecer a colaboração de Elias Oliveira Noronha e de Oscar Gabriel Benítez Gonzáles na elaboração do sumário em Espanhol.

A presença de artigos sobre a temática trabalho de campo, nesta edição, é um convite aos geógrafos à reflexão sobre uma prática importante de pesquisa. Ao mesmo tempo, o leitor encontrará trabalhos voltados à temática ambiental, a alguns estudos de caso e a conceitos geográficos.

Finalmente, destacamos que a pintura “Caminhos”, de Maria Neusa Rotta, na capa da revista, é uma continuidade à divulgação de obras artísticas de autores da Região de Presidente Prudente.

Erika Vanessa Moreira

Leandro Bruno dos Santos Comissão de publicação

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RICHTER, D.; et all. A informática no processso ensino-aprendizagem: contribuindo para uma nova escola.

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SUMÁRIO SUMARIO

A informática no processo ensino-aprendizagem: contribuindo para uma nova escola. La informática en el processo del enseñanza-aprendizaje: contribuyendo a una nueva escuela. Denis RICHTER; Flávia Spinelli BRAGA; Mônica FÜRKOTTER ...................................................................... 8 Considerações sobre o debate tempo e espaço. Consideraciones sobre el debate tiempo y espacio.

João Marcio Palheta da SILVA ........................................... 14 A recriação da grafia do planeta na produção da natureza e do espaço: a necessidade de se saltar escalas. La recriação de la ortografía del planeta en la producción de

la naturaleza y del espacio: la necesidad de saltar las

escalas. Fabrício Pedroso BAUAB ................................................... 20 Eliminação de “barreiras”: produção de fluidez e circulação no Brasil. Eliminación de "barreras": la producción de fluidez y

circulación en Brasil.

Roberto França da SILVA JUNIOR.................................... 29 Padrões socioeconômicos e centralidade urbana: Catuaí Shopping e Zona Norte de Londrina. Patrones socio-económicos y centralidad urbana: Catuaí

Shopping y el Zona Norte de Londrina.

Willian Ribeiro da SILVA; Maria Encarnação Beltrão SPOSITO ............................................................................. 42 Expansão e estruturação interna do espaço urbano de Presidente Prudente – SP Expansión y estructuración interna del espacio urbano de

Presidente Prudente – SP.

Silvia Regina PEREIRA .................................................... 55 O urbano como libertação – uma leitura sobre Lefebvre. El urbano como la libertación - una lectura en Lefebvre. Helton Ricardo OURIQUES ............................................. 73 À luz do tempo: imagem e memória urbana em Presidente Prudente. A la luz del tiempo: la imagen y la memoria urbana en

Presidente Prudente.

Valéria Cristina Pereira da SILVA .................................... 79

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Violência marginal: a construção da identidade e o sentido da violência. Violencia marginal: la construcción de la identidad y el

sentido de la violencia.

André Luís ANDRÉ; Eda GOES ....................................... 91 Aos “vadios”, o trabalho: considerações em torno de representações sobre o trabalho e a vadiagem no Brasil. A los "vagabundos", el trabajo: las consideraciones

alrededor de las representaciones sobre el trabajo y el

vagabundeo en Brasil.

Jones Dari GOETTERT ..................................................... 101 Fetiche do Estado e a regulamentação do conflito capital trabalho. Fetiche del Estado y la regulación del conflicto capital

trabajo.

Marcelino Andrade GONÇALVES; Eliseu Savério SPÓSITO............................................................................ 118 A crise do contrato social da modernidade: o caso da “Reforma Agrária” do Banco Mundial. La crisis del contrato social de la modernidad: el caso de la

"reforma agraria” del Banco Mundial.

Eraldo da Silva RAMOS FILHO ....................................... 132 O MST e a formação da consciência de classe trabalhadora: ideologia política ou realidade camponesa? El MST y la formación de la conciencia de la clase obrera:

¿ideología política o realidad campesina?

Rosemeire Aparecida de ALMEIDA ................................ 142 Fronteira: natureza e cultura. Frontera: naturaleza y cultura.

Celso Donizete LOCATEL ............................................... 163 Ruralidade nos territórios: o exemplo do Estado do Paraná. Ruralidad en los territorios: el ejemplo del Estado de

Paraná.

Diânice Oriane SILVA; Rosângela Ap. de Medeiros HESPANHOL ................................................................... 173 Paradoxos da tecnificação agrícola no Norte do Paraná. Las Paradojas del tecnificación agrícola en el Norte de

Paraná.

Eliane Tomiasi PAULINO …........................................… 181 Estudo de Ilhas de calor em Presidente Prudente/SP a partir dos transectos móveis. El estudio de Islas de calor en Presidente Prudente/SP com el

origen en el transectos movible.

Simone Scatoion Menotti VIANA; Carlos Eduardo Secchi

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RICHTER, D.; et all. A informática no processso ensino-aprendizagem: contribuindo para uma nova escola.

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CAMARGO; Margarete Cristiane de Costa Trindade AMORIM; João Lima SANT’ANNA NETO ................... 199 Ação antrópica, alterações nos geossistemas, variabilidade climática: contribuição ao problema. Acción antropica, alteraciones en el geossistemas,

variabilidad climática: contribución al problema.

Victor Assunção BORSATO; Edvard Elias SOUZA FILHO................................................................................ 213 Normas Editoriais ........................................................... 224

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INFORMÁTICA NO PROCESSO ENSINO-APRENDIZAGEM: CONTRIBUINDO PARA UMA NOVA ESCOLA∗

Denis RICHTER∗∗∗∗∗∗∗∗ Flávia Spinelli BRAGA∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗ Mônica FÜRKOTTER∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗

Resumo: Este artigo tem o objetivo de discutir e analisar as relações entre o processo ensino-aprendizagem e o uso das Novas Tecnologias em Educação. A partir desse espaço, apontaremos as possibilidades e os limites do uso do computador em sala de aula, bem como a importância da Formação do Professor visando à verdadeira integração da tecnologia às práticas educacionais. Palavras-chave: novas tecnologias; ensino-aprendizagem; práticas, pedagógicas; formação do professor. Resumen: Este artículo tiene como objetivo discutir y analizar las relaciones entre el proceso de enseñanza-aprendizaje y el uso de la nuevas Tecnologías en Educación. A partir de aquí, señalaremos las posibilidades y los limites del ordenador en clase, así como la importancia de la Formación del Profesor que busca la real integración de la tecnología a las prácticas educacionales. Palabras-llave: nuevas tecnologías; enseñanza-aprendizaje; prácticas pedagógicas; formación de profesores. 1. Introdução.

No mundo dinâmico em que vivemos atualmente, precisamos acompanhar suas transformações

para nele interagirmos de forma mais construtiva. As tecnologias têm influenciado muito, seja através da própria mídia, que cada vez mais nos circunda, ou mesmo pela crescente indústria das comunicações, onde ocorrem as mudanças mais profundas nos últimos anos. Analisar o atual processo ensino-aprendizagem, sem estabelecer relação alguma com as transformações da sociedade, parece-nos viver em um espaço fechado e alheio às mudanças.

Estar atento e interligado ao dinamismo mundial não é questão de apenas sobreviver, mas de possibilitar a participação e atuação mais significativa em todos os campos, em nosso caso, na Educação. As novas idéias ou concepções de como pensar ou de como se relacionar com o mundo não partem apenas de nossas interpretações do dia-a-dia escolar, mas provêm também de leituras que nos permitem dimensionar novas realidades e propostas.

Podemos citar as contribuições significativas de Almeida (1999), Papert (1994) e Valente (1993 e 1999), ligadas às questões das Novas Tecnologias na Educação; e Barreiro (2001), Fazenda (1994), Freire (1986), Hernandéz e Ventura (1998) e Perrenoud (2000), as quais se destacam no âmbito da interdisciplinaridade, metodologia de projetos e competências docentes. Esses teóricos ajudam-nos a refletir sobre o processo ensino-aprendizagem, demonstrando como as novas tecnologias representam um recurso para potencializá-lo.

Podemos destacar ainda a grande contribuição dos trabalhos de Valente e da equipe do Núcleo de Informática Aplicada á Educação - NIED/Unicamp, que tem pesquisado continuamente a importância das Novas Tecnologias no ambiente escolar, vislumbrando mudanças.

∗ Texto publicado em 2003 (n.10 v.2), produzido para o encerramento da disciplina “Novas Tecnologias em Educação”, oferecida pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, da FCT/ Unesp, ministrada pela Profa. Dra. Mônica Fürkotter, no segundo semestre de 2002. ∗∗ Mestre e Doutorando pelo Programa de pós Graduação em Geografia da FCT/ Unesp –Presidente Prudente (SP). Atualmente é professor da Unesp de Ourinhos. E-mail: [email protected] ∗∗∗ Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia da FCT/Unesp- Presidente Prudente (SP). Atualmente é professora da Rede Estadual de Ensino do Estado de São Paulo. E-mail: [email protected] ∗∗∗∗ Professora Doutora no Programa de Pós-Graduação em Educação da FCT/Unesp Presidente Prudente (SP). E-mail: mô[email protected]

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RICHTER, D.; et all. A informática no processso ensino-aprendizagem: contribuindo para uma nova escola.

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O que seria a utilização do computador na educação de maneira diferente? Seria fazer aquilo que o professor faz tradicionalmente, ou seja, passar a informação para o aluno, administrar e avaliar as atividades que o aluno realiza, enfim, ser o “braço direito’’ do professor; ou seria possibilitar mudanças no sistema atual de ensino, ser usado pelo aluno para construir o conhecimento e, portanto, ser um recurso com o qual o aluno possa criar, pensar, manipular a informação? (VALENTE, 1999, p. 19).

O uso “diferente’’ do computador na Educação, é denominado por Valente (1999) de

construcionismo, referindo-se à construção do conhecimento através da produção de algo, do seu interesse, utilizando o computador. A partir dos trabalhos desse autor podemos analisar alguns pontos fundamentais para melhor entendermos a proposta construcionista. 2. Um pouco da história da informática na educação.

A aproximação e uso do computador nas escolas é fato que tem se tornado comum nos últimos

anos, tanto em escolas públicas como particulares. No entanto, reconhecemos e temos consciência de que em nosso país, onde as diferenças sociais, econômicas e culturais são profundas, algumas realidades escolares mostram o oposto da situação de vanguarda. A introdução do computador na educação tem sido um dos maiores pontos de discussão nos fóruns de debate educacional.

Assim, podemos nos questionar: qual a realidade da escola de hoje? Segundo o raciocínio cético, como pensar em computadores, se a escola não tem estrutura básica, ou seja, se faltam os materiais mais triviais para o ensino? Por outro lado, podemos nos remeter aos otimistas que acreditam que o ensino deve acompanhar as transformações tecnológicas e, dessa forma, o computador precisa fazer parte da vida cotidiana do estudante.

Se refletirmos sobre as posições, cética ou otimista, não vamos conseguir nos aprofundar, pois o computador de uma forma direta ou indireta já se encontra presente em muitas escolas e, mais ainda, na vida cotidiana das crianças e jovens.

Primeiramente, devemos pensar e escolher entre ensino de computação ou ensino pelo computador.

No primeiro, o aluno adquire conceitos sobre o computador. No segundo, o professor utiliza os recursos computacionais para que o aluno possa adquirir conceitos sobre praticamente qualquer domínio (VALENTE, 1993).

Tendo decidido pelo segundo, é fundamental discutir a possibilidade de nortear o uso, já que no meio educacional, muitas vezes o computador tem sido utilizado simplesmente para reproduzir o que acontece em uma sala de aula tradicional, por meio de um software educacional.

Vale ressaltar que o ensino pela informática tem seu elo ao ensino através das máquinas. Pressey, em 1924, foi o pioneiro nesse tipo de trabalho, inventando uma máquina que corrigia textos. Após isso, Skinner na década de 50 criou outra para ensinar usando instrução programada. Os softwares baseados em Instrução Programada são denominados CAI`s, no Brasil mais conhecidos como Instrução Auxiliada por Computador (VALENTE, 1993).

Hoje, apresentam-se duas vertentes de trabalho: o computador ensinando o aprendiz, considerada como instrucionista; e a outra, na qual o aprendiz ensina o computador, gerenciando sua própria aprendizagem, denominada construcionista.

A primeira abordagem, quando o computador ensina o aluno, é fundamentada nos métodos de instrução programada tradicionais e, ao invés do papel ou do livro, é usado o computador. Os softwares mais utilizados nessa abordagem são tutoriais, exercício-prática e jogos educacionais.

Já na segunda abordagem, quando o aprendiz ensina o computador, são utilizados os softwares abertos e as linguagens de programação, que permitem ao aprendiz expressar a resolução de um problema.

Surge, então, um questionamento: como devemos usar os computadores? Somente como mais um recurso para o professor transmitir informações? Ou como uma ferramenta de aprendizagem, com a qual o aluno busca informações, trata-as e as transforma em conhecimento?

As leituras, reflexões e discussões realizadas na disciplina Novas Tecnologias em Educação, levaram-nos a concluir que a primeira abordagem, que contempla a transmissão de conhecimento, procura

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reproduzir o ensino tradicional, enraizado na escola. Na verdade, podemos utilizar o computador como um recurso para potencializar a aprendizagem, como uma possibilidade para mudar o paradigma educacional vigente, utilizando-o no desenvolvimento de projetos. 3. Computador e software: sua utilização em projetos de trabalho.

Segundo Hernadez e Ventura, o termo projeto conduz-nos a um

[...] procedimento de trabalho que diz respeito ao processo de dar forma a uma idéia que está no horizonte, mas que admite modificações, está em diálogo permanente com o contexto, com as circunstâncias e com os indivíduos que, de uma maneira ou outra, vão construir para esse processo (1998, p. 22).

Estamos aqui, em consonância com os autores acima, utilizando o termo “projetos de trabalho”,

contrapondo-o á idéia do “deixar fazer” da aprendizagem espontaneísta. Pensar em projetos de trabalho motiva-nos a rever nossas práticas de modo a favorecer “o

aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a ser e aprender a compreender com e do outro que hoje a UNESCO assinala como finalidades de Escola’’ (HERNANDEZ e VENTURA, 1998, p. 22), conduzindo o aluno a relacionar os conceitos trabalhados na escola com o mundo que o cerca.

A interdisciplinaridade surge então como uma possibilidade para o professor ampliar sua prática, como preconiza o parágrafo acima.

Apesar de existir análise e forte crítica sobre as atuações e caminhos da Educação como reprodução do espaço e do poder econômico, nos quais a interdisciplinaridade está arraigada ao processo de globalização, o movimento – interdisciplinaridade – que surgiu em meados das décadas de 1960, contribui para a ampliação das análises dos mais diversos assuntos e temas das diferentes áreas do conhecimento (FAZENDA, 1994), favorecendo a formação de um cidadão mais atento aos fatos do seu cotidiano, bem como do mundo.

A parceria entre as diversas áreas

[...] pode constituir-se em fundamento de uma proposta Interdisciplinar, se considerarmos que nenhuma forma de conhecimento é em si mesma racional. A parceria consiste numa tentativa de incitar o diálogo com outras formas de conhecimento a que não estamos habituados, e nessa tentativa a possibilidade, surge sempre de uma necessidade de troca, embora em certos casos possa iniciar-se até de uma insegurança inicial em desenvolver um trabalho interdisciplinar. A parceria surge também da solidão dos profissionais em relação às instituições que habitam; solidão essa que vem sendo constatada em nossas pesquisas como uma constante entre os profissionais que já assumiram uma atitude interdisciplinar (FAZENDA, 1994, p. 04).

Numa proposta interdisciplinar, os computadores podem ser um produtivo recurso no

desenvolvimento de projetos de trabalho, levando a uma aprendizagem mais significativa. Nos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN’s – as Novas tecnologias abrangem muito mais

do que o computador (BRASIL, 1997). A televisão, o vídeo-cassete, a filmadora, o rádio gravador e o retroprojetor, representam alguns exemplos de que “tal” Nova Tecnologia não está tão distante de nossas vidas e do nosso uso cotidiano. Alguns são equipamentos que possuímos em nossas próprias residências, os quais empregamos diariamente, sem que o uso desencadeie qualquer conflito “ideológico”.

Os professores também são forçados a pensar no uso dessas Novas Tecnologias uma vez que diretores, supervisores ou coordenadores pedagógicos constantemente lhes lembram que as mesmas precisam ser utilizadas. E é a partir desta “força superior” que ronda o perigo pedagógico – como usar essas Novas Tecnologias?

Uma maneira é utilizá-las no desenvolvimento de projetos interdisciplinares. Acreditamos que o uso permitirá um trabalho mais conectado com a formação de um aluno crítico e independente.

A aprendizagem por objetos ocorre por meio da interação e articulação entre conhecimentos de distintas áreas, conexões estas que se estabelecem a partir dos conhecimentos cotidianos dos alunos, cujas expectativas, desejos e interesses são mobilizados na construção de conhecimentos científicos. Os conhecimentos cotidianos emergem como um todo unitário da própria situação em estudo, portanto sem

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fragmentação disciplinar, e são direcionados por uma motivação intrínseca. Cabe ao professor provocar a tomada de consciência sobre os conceitos implícitos nos projetos e sua respectiva formalização, mas é preciso empregar o bom-senso para fazer as intervenções no momento apropriado (ALMEIDA, 2000, p. 1 - 2).

Claro que uma prática semelhante requer mais tempo de preparo e organização do professor,

tanto em materiais quanto em fundamentação teórica. Entretanto, com certeza, o resultado de um trabalho diferenciado, no qual o aluno possa produzir conhecimentos deverá render belos frutos.

Portanto, não basta equipar as escolas, é preciso preparar o professor para o uso das novas tecnologias, numa perspectiva de mudança do fazer pedagógico.

A formação do professor para ser capaz de integrar a informática nas atividades que realiza em sala de aula deve prover condições para ele construir conhecimento sobre as técnicas computacionais, entender por que e como integrar o computador na sua prática pedagógica e ser capaz de superar barreiras de ordem administrativa e pedagógica. Essa prática possibilita a transição de um sistema fragmentado de ensino para uma abordagem integradora de conteúdo [...]. Finalmente, deve-se criar condições para que o professor saiba recontextualizar o aprendizado e a experiência vividas durante a sua formação para a realidade de sala de aula, compatibilizando as necessidade de seus alunos e os objetivos pedagógicos que se dispõe a atingir (VALENTE, 1999, p. 153).

Por outro lado, demonstrar que as práticas escolares relacionadas com as Novas Tecnologias são

mais fáceis ou nos dão menos trabalho representa um engano. Devemos ter claro que o trabalho de organização será ampliado, mas precisamos estar cientes também de que serão bem valiosos os resultados finais, já que a aprendizagem do aluno servirá de termômetro para a análise final.

Como ponto a incluir em nossa análise, queremos destacar a significativa importância da Formação de Professores e a Formação Continuada para o processo do uso das Novas Tecnologias. Permitir e possibilitar condições de aprendizagem para o educador é de extrema necessidade, se quisermos reconhecer que o trabalho de construção de um novo paradigma somente irá ocorrer quando todos estiverem aptos a receber e transmitir seus conhecimentos, objetivando, dessa forma, a construção ampla e democrática de ensino.

Para isso, utilizamos as palavras do professor Paulo Freire, que chamam a atenção para as questões de mudança no ambiente escolar. De nossa parte, compreendemos que as práticas e estudos sobre a Formação de Professores constituem um marco a ser referenciado na busca pela qualidade educacional.

[...] é preciso quem não nos deixemos cair nesse sonho do chamado pragmatismo, de achar que o que serve é dar um pouco de conhecimento técnico ao trabalhador para que ele consiga um emprego melhor. Isso não basta, e é cientificamente um absurdo, porque na medida em que a gente se pergunta o que significa o processo de conhecer, do qual somos sujeitos e objetos – afinal de contas o que é a curiosidade, para o conhecimento? – percebemos que uma das grandes invenções das mulheres e dos homens, ao longo da história, foi exatamente transformar a vida em existência – e a existência não se faria jamais em linguagem, sem produção de conhecimento, sem transformação. Mas jamais com transferência de conhecimento. Conhecimento não se transfere, conhecimento se discute. Implica uma curiosidade que me abre, sempre fazendo perguntas ao mundo. Nunca demasiado satisfeito, ou em paz com a própria certeza (FREIRE, 1986, p. 42).

A viabilização da Formação do Professor deve ser entendida como um processo contínuo,

porque a formação inicial (acadêmica) não será um produto acabado. Ela está atrelada às questões e às buscas por mudanças em suas atividades e resultados. Em conseqüência, o processo deverá estar muito ligado ao fato de transformação da escola, favorecendo a grande interação entre teoria e prática (GARCÍA , 1999).

Em razão dessas abordagens, as propostas de ensino estão sofrendo alterações significativas. Vale destacar a importância de se analisarem as reais possibilidades de viabilizar o uso das Novas Tecnologias no processo educacional, integrando as diversas áreas do saber no desenvolvimento de projetos de trabalho.

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4. As possibilidades do uso do computador no ambiente escolar.

O ensino que conhecemos em nosso tempo de banco escolar está precisando de novas compreensões e análises. Nos tempos de hoje, nos quais a informação cria um espaço cada vez maior de abrangência e influência, continuar com os mesmos métodos de ensino é de certa forma contrapor-se a tudo que está posto e menosprezar o dito “progresso’’ da sociedade humana.

Nessa direção, pensar no processo ensino-aprendizagem integrado às Novas Tecnologias requer um reconhecimento bem específico da necessidade de mudança no fazer do professor. Como decorrência, ele deve estudar, analisar e compreender algumas possibilidades ou até limites do uso das Novas Tecnologias no ambiente escolar.

Para realizar um trabalho incorporando o uso das tecnologias no processo ensino-aprendizagem, devemos refletir sobre as seguintes questões: a) o que se entende hoje por processo ensino-aprendizagem; b) quais as possibilidades de uso das tecnologia no desenvolvimento de projetos de trabalho

interdisciplinares; c) as vantagens e desvantagens do uso da informática na educação.

No estágio atual, estamos, muitas vezes, presos às abordagens pedagógicas tradicionais, fechadas

para mudanças ou novos olhares. A ênfase é colocada no conteúdo a ser memorizado, e não nas habilidades que permitem a aplicação do conhecimento na transformação da realidade.

Ao integrar o computador às práticas escolares, precisamos repensar o processo de ensinar e aprender, para que o conhecimento seja construído e contextualizado. A construção ocorre com a realização de uma ação. A contextualização é necessária para assegurar o significado da ação, tendo em vista a realidade do aluno. Nesse sentido, é preciso rever o papel do professor e do aluno. O primeiro deve “ser capaz de assumir responsabilidades, tomar decisões e buscar soluções” (VALENTE, 1999, p. 44), deve ser ativo, crítico e integrado, de modo a estar sempre aprendendo, mesmo quando deixar o sistema educacional. Ao segundo, cabe o papel de mediador, desafiador, que consegue manter vivo o interesse dos alunos, e tendo “consciência de que a construção do conhecimento dá-se por meio do processo de depurar o conhecimento que o aluno já dispõe” (VALENTE , 1999, p. 43).

Devemos estar preparados para as mudanças, como também preparar nossos alunos. Novos paradigmas não podem existir sem a interlocução com o educando, desconhecendo suas necessidades, angústias e dúvidas, que são de extrema importância para efetivar as modificações.

É importante também superar a idéia de que o computador é somente mais uma ferramenta de que o professor pode dispor no processo ensino-aprendizagem. Essa idéia precisa estar clara para o educador não fazer sub-uso do equipamento, ou limitar sua utilização ao repasse de informação, sem que o aluno consiga transformá-las em conhecimento. As Novas Tecnologias devem ser integradas no contexto escolar, utilizadas no desenvolvimento dos conteúdos curriculares, levando a um aprendizado integrado.

O professor deve conhecer as vantagens e desvantagens do uso e aplicação da informática na educação. Para aprofundar a reflexão, deve buscar leituras específicas sobre o tema, bem como discutir com seus colegas professores as possibilidades de integrar as Novas Tecnologias às práticas escolares do cotidiano da escola e aos conteúdos da sua disciplina.

O caminho indicado para a mudança é vivenciar práticas escolares aliadas às Novas Tecnologias. Como resultado, o professor terá condições de avaliar a funcionalidade e aplicabilidade das mesmas. Ao refletir sobre suas ações, sobre os resultados do trabalho com o aluno, o professor pode depurar e aprimorar sua atenção no novo ambiente de aprendizagem.

5. Palavras finais.

Criar aportes para a verdadeira integração das Novas Tecnologias com as atuais abordagens pedagógicas, permite que a escola esteja mais ajustada ás mudanças que transformam o nosso mundo. Pode-se dizer, também, que os novos métodos apaziguam as ansiedades e a “sede” pelo uso da tecnologia

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que existe atualmente, compreendida aqui como o computador e seus periféricos, sendo dessa forma integrado ao processo ensino-aprendizagem.

Saber reunir no espaço escolar essas qualidades ou iniciativas, muitas vezes comparadas à vanguarda do ensino, representa um trabalho muito difícil e árduo, se comparado ao já conhecido e comumente praticado ensino tradicional. Entretanto, muitos são as experiências bem sucedidas. Os fatos permitem-nos vislumbrar um processo de aprendizagem mais integrado com a construção do conhecimento do aluno. Ou vale dizer, um processo que respeita a sua forma de aprender, que o torna cidadão mais crítico e integrado ao mundo e à realidade em que vive e atua.

6. Referências bibliográficas. ALMEIDA, M. E. B. Projeto: um nova cultura de aprendizagem. PUC/SP, jul.1999. Disponível em www.proinfo.mec.gov.br/biblioteca. Acesso em: 28 mar. 2003. BRASIL. Ministério da Educação e cultura. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Introdução. Brasília:MEC/SEF, 1997. ______. Ministério da Educação e Cultura. Secretaria da Educação Média e Profissionalizante. Parâmetros Curriculares Nacionais: Introdução. Brasília MEC/SEMP, 1997 FAZENDA, I. Interdisciplinaridade: História, teoria e pesquisa. Campinas: Papirus, 1994. FREIRE, P. Novos Tempos, Velhos Problemas. In: III Congresso Estadual Paulista sobre a Formação de Educadores. São Paulo: Unesp, 1994. p. 37 - 44. GARCÍA, C. M. Formação de professores - para uma mudança educativa. Tradução: Isabel Narciso. Porto: Porto Editora, 1999. HERNÁNDEZ, F. e Ventura, M. A organização do currículo por projetos de trabalho. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998. ______. Transgressão e mudanças na educação: os projetos de trabalho. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998. PAPERT, S. A máquina das crianças: repensando a escola na era da informática. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. PERRENOUD, P. 10 novas competências para ensinar. 2ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2000. VALENTE, J. A. e ALMEIDA, F. J. Visão analítica da informática na Educação no Brasil: a questão da formação do professor. In: Revista Brasileira de Informática na Educação, n. 1. Florianópolis, 1997. p. 45 - 60. ________. Diferentes usos do computador na educação. In: ______ .(Org). Computadores e conhecimento: repensando a educação. Campinas: Unicamp, 1993. p. 1 - 23. ________. Mudanças na sociedade, mudanças na educação: o fazer e o compreender. In: VALENTE, J. A. (Org). O computador na sociedade do conhecimento. Campinas: Unicamp/NIED, 1999. p. 29 - 48. ________. O uso inteligente do computador na Educação. In: Revista Pátio. A. 1, n. 1. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1998. p. 19 - 21. Disponível em: www.proinfo.mec.gov.br/biblioteca. Acesso em 28 mar. 2003. _______. Por que o computador na educação. In: _____. (Org). Computadores e conhecimento: repensando a educação. Campinas: Unicamp, 1993. p. 24 - 44.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O DEBATE TEMPO E ESPAÇO*

João Marcio Palheta da SILVA**

“O movimento de uma coisa

é a modificação das suas condições exteriores

em relação a um espaço dado” (Immanuel Kant).

Resumo: Neste ensaio, minha pretensão é fazer uma breve discussão sobre o debate tempo e espaço e como esses conceitos/definições podem ser úteis no debate científico com destaque para as ciências humanas, especialmente a Geografia. Esse debate parte do pressuposto de diversos autores que pensaram de forma diferenciada a questão do tempo e do espaço. Palavras-chave: Tempo; Espaço; Ciências; Geografia. Resumen: En este ensayo, mi pretensión es realizar una pequeña discusión sobre el debate tiempo y espacio, y como estos conceptos/definiciones pueden ser de utilidad en el debate científico con destaque dentro de las ciencias humanas, especialmente en Geografía. Este debate parte del presupuesto de diversos autores que pensaron de forma diferenciada la cuestión del tiempo y el espacio. Palabras llave: Tiempo; Espacio; Ciencias; Geografía.

1. Introdução

O debate sobre tempo e espaço é muito complexo e, neste ensaio, apenas tenho a pretensão de levantar alguns questionamentos que me permitam analisar ainda mais esta relação entre tempo e espaço e tentar distanciar-me dos conceitos/definições como algo dado e acabado e, sim, entendê-los como algo em constantes transformações, pois o movimento da sociedade é também complexo e, as relações entre as sociedades não são lineares, mas sim dinâmicas e respondem aos diferentes momentos históricos e geográficos.

Gostaria então de discutir alguns fatos que me parecem ser de extrema relevância para minhas ansiedades aqui explicitadas. A curiosidade me leva a pensar como espaço e tempo são discutidos nas ciências, a partir da evolução dessas discussões no pensamento filosófico e, nesse ínterim, a filosofia tem uma contribuição importantíssima para dar ao campo científico.

Nas próximas seções, procuro enfatizar a discussão sobre tempo e espaço, tendo como base fundamental de minha proposição os pensamentos diferenciados de Immanuel Kant, Aristóteles, Bernard Piettre, Christopher Ray, David Harvey, Milton Santos, Henry Lefebvre, Skinner, Norbert Fenzel, Gottfried Stockinger, Félix Guattari e Gilles Deleuze. Sei que existe um número expressivo de autores, no tempo histórico e no espaço geográfico, que procuraram analisar a questão do tempo e do espaço e não nego suas importâncias mas, para este ensaio, me dediquei a entender apenas o pensamento de algumas obras escritas por esses autores acima mencionados, e que foram por mim selecionados, pois neste momento acredito que satisfaçam minhas ansiedades acadêmicas. 2. Procurando a realização do tempo e espaço.

Definição ou conceito? Do que falamos quando nos reportamos ao tema tempo e espaço? Procurar, a princípio, explicações para uma formulação onde possa formar e entender as transformações

* Texto publicado em 2001 (v.8), produzido para avaliação da disciplina “Metodologia Científica em Geografia”, ministrada pelo Profº. Dr. Eliseu Savério Sposito no ano de 2000. ** Atualmente é Doutor pelo Curso de Pós-Graduação em Geografia da FCT/Unesp de Presidente Prudente. Professor do Depto de Geografia da Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: [email protected]

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SILVA, J. M. P. Considerações sobre o debate tempo e espaço.

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que ocorrem no tempo e no espaço é complicado quando pensamos a sociedade e as transformações ocorridas noespaço geográfico e no tempo histórico.

Essas inquietações ocorrem todas as vezes que a própria ciência coloca em evidência e em xeque a existência das verdades dos conceitos ou das definições. Verdade que aparece virtualizada pelo avanço do conhecimento e das idéias, sobre como conceber e entender as teorias que procuram debater com mais intensidade as questões sobre tempo e espaço.

Tempo e espaço estão em contínua transformação? Falar com clareza como os acontecimentos se manifestam traduz a variabilidade desses acontecimentos no tempo e no espaço? Não há como dividi-los, separá-los sem ter perda na totalidade dos acontecimentos? E, na perda do valor de análise sobre determinado fenômeno? Não é uniforme e nem estático, sendo assim, tempo e espaço são conceitos inseparáveis?

Pensar como as coisas acontecem no tempo e no espaço tem como desafio conceber as diferentes interpretações que tentam explicar as manifestações dos fenômenos, sejam eles nas ciências naturais, sejam nas ciências humanas. Fenômenos que a realidade nos coloca e que se tornam passíveis de observação e de teorização.

No senso comum, uma carta seria o exemplo que me proporciona mostrar com simplicidade tempo e espaço, dentro de uma variável analítica que incorpora a distância entre dois pontos. Ao enviar uma carta, uma pessoa espera que ela chegue ao seu destino, porém, em se tratando da distância que separa dois corpos para pegar o exemplo da física, a distância seria o intervalo de tempo que a carta leva para chegar ao seu destino; dessa forma, a probabilidade do tempo e espaço, tornam-se únicas, mutáveis, pode ser descartada, quando a carta pode não chegar ao seu destino. Qual seria então o evento que causou tamanha fragilidade na matemática do tempo e do espaço, fazendo com que o fenômeno pré-estabelecido não acontecesse?

A realidade do tempo e do espaço é um acontecimento concreto que permite ao observador tirar conclusões de tais fenômenos. Embora não se veja o tempo nem tão pouco o espaço, enquanto conceitos, sabe-se que eles são onipresentes. O fato de sabermos por que eles participam ativamente em nossa vida mostra sua validade e, de acordo com sua influência, podemos interpretar que acontecimentos são realizados no tempo e no espaço.

A própria teoria que sustenta a discussão de Tempo e Espaço, como nos fala Piettre (1994), passa pela relação, que vai desde Aristóteles, até as discussões mais recentes da Física, passando por diversas concepções de entender espaço e tempo como conceitos/definições chaves nas intervenções de determinados fenômenos. O próprio Bernard Piettre (1994) discute a relação da subjetividade do tempo, passando pela própria negação filosófica do tempo na ciência clássica, fazendo questionamentos sobre a existência do começo e o fim da limitação dos conceitos.

De que forma, poder-se-ia então pensar em analisar mais detalhadamente as questões que envolvem tempo e espaço? A materialidade seria um caminho que aproximasse minhas ansiedades da elaboração de um tempo e espaço ligado às questões sociais. Os conflitos sociais no tempo e no espaço apresentam uma historicidade e uma geograficidade relacionadas aos processos de desenvolvimento da humanidade.

Como entender então as transformações da evolução das sociedades sem precisar tempo e espaço e seus fenômenos que dão razão para materializar tais questões? Pensar nas transformações ocorridas na sociedade durante a evolução do pensamento científico, caracteriza pensar como esses acontecimentos foram discutidos nas ciências.

Desde o pensamento que discute a concepção de tempo e espaço pelo divino, ou seja, pela concepção de Deus, o tempo e o espaço são eternos, e a criação do mundo é uma forma divina de perceber tempo e espaço como obras de Deus. É também pensada por Aristóteles como fórmula matemática de ver as transformações no tempo e no espaço; nesse sentido, o tempo é um número que classifica um movimento1.

1 Para Aristóteles não existe tempo onde não há movimento, o movimento é a mudança, que assume quatro variáveis para sua interpretação: o movimento segundo o lugar; o movimento segundo a qualidade; o movimento segundo a quantidade; e o movimento segundo a essência. Para ele o movimento celeste serviria para medir o tempo dos outros movimentos. Aristóteles (1997 ).

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A relação de espaço e tempo se encontra no sentido de perceber as transformações que desafiam a explicação do movimento do planeta Terra na física clássica. A própria interpretação do tempo e do espaço absolutos é considerada, até então na física clássica, como a verdade do conhecimento2.

A relação tempo e espaço entendida enquanto material pode ser percebida e explicitada; enquanto conceitos, tempo e espaço são “soluções” filosóficas que os cientistas abstraem pra explicar as transformações que ocorrem tanto internamente quanto externamente aos fenômenos observados.

A regulação do tempo e espaço social é condicionada pela relação dialética entre tempo e espaço. Utilizando apenas um exemplo desta relação e da discussão dos conceitos/definições de tempo e espaço, podemos dizer que de dentro de um avião não há controle sobre os mesmos, e isto depende de cada um de nós (subjetividade), quando da necessidade de ver as horas por exemplo, pois dependemos do tempo e do espaço percorrido pela aeronave. Enquanto isso, nada pode ser feito por nós; às vezes será realizado pela tecnologia (para manter contato com outras pessoas via telefone, computador), mas é um outro exemplo. Então estamos presos ao tempo e ao espaço do plano do piloto para atingirmos determinados compromissos.

São exemplos que podem auxiliar-me a pensar na questão do tempo e do espaço, mas com certeza não respondem a todas as minhas inquietações no campo da filosofia e da própria geografia, e nem poderiam, pois para esse caso seria necessário fazer um corte epistemológico e, mesmo assim, correria o risco de cometer equívocos, provando o quanto tão polêmico é analisar a questão tempo e espaço nas sociedades.

O que queremos explicar quando invocamos o tempo e o espaço para elementos de nossas reflexões? Posso dizer que tempo e espaço são conceitos ou definições que por serem tratados como totalidade expressam dúvidas na sua apreensão. De que forma, as ciências compreendem tempo e espaço e como elas podem conduzir para fomentar o debate do tema espacial e temporal.

Para os geógrafos, o espaço geográfico é analisado por um viés de interpretação em que a sociedade é objetivada pela sua organização espacial; como tal, poderia utilizar aqui como exemplo as discussões de Milton Santos no seu livro “Espaço e Método”; para ele, o espaço é pensado enquanto: estrutura, processo, função e forma, enquanto categorias metodológicas de análise, levando em consideração o período técnico-científico e os recursos sociais. O espaço geográfico, para Lefebvre, por outro lado, não é apenas parte das forças e meios de produção, é um produto dessas relações. Espaço do

consumo e o consumo do espaço (Lefebvre,1991, p.131). Dessa forma, ele se torna um espaço das representações e, também, torna-se a representação do espaço.

Para Kant (1990) 3, a natureza do tempo e espaço está ligada à existência das coisas; nesta condição, a razão e a experiência estão na origem de todo conhecimento, condicionadas pela consciência que determina nossa concepção de mundo, sejam no sentido externo, sejam no sentido interno, onde este mundo é a “soma de fenômenos no tempo e no espaço”.

Ainda utilizando o pensamento de Kant (1990), os conceitos/definições de tempo e espaço estão relacionados à metafísica da natureza, tendo como base o movimento; neste particular, o espaço e o tempo são formas absolutas (espaço puro ou espaço absoluto), seja o espaço material seja o espaço relativo.

Em relação ao espaço-tempo, podemos pensar como as telecomunicações encurtam o tempo e mantém e aproximam o lugar (espaço): cada vez mais você se comunica, encurta a distância (tempo) sem sair do lugar (espaço), embora as informações, possam modificar o lugar através do tempo.

Encurtar o tempo e acelerar o tempo, no momento que você recebe as informações aumenta seu tempo pelas trocas, marcando uma união entre o tempo côncavo com o tempo convexo e sua união, o espaço inter-relacionado. Convexo na medida de um afunilamento que ao encontrar o côncavo aumenta o tempo que antes havia diminuído, virtualmente, fazendo-me pensar na inversão dos tempos onde o

homem estica cada vez mais a sua própria escala de espaço-tempo para integrar nele todos os processos

que observa (Stockinger & Fenzel, 1991, p. 36).

2 Para Newton existiria três formas distintas em que espaço e tempo seriam considerados absolutos: por apresentarem uma independência de objetos e eventos; por possuir propriedades invariáveis absolutas e distintas ;e por serem irredutíveis e essenciais no movimento. Ray (1996). 3 Para Kant, espaço e tempo não são absolutamente conceitos. Não são formas que contêm um conteúdo material como se diz de um conceito que possui um conteúdo diferenciado, para ele a ciência só é válida enquanto seus conceitos são suscetíveis de aplicação experimental.

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Redução da distância, dos custos, a ampliação dos bens, da tecnologia, a redução do tempo e a ampliação do espaço pela competitividade encontram nas formas organizacionais um dos meios que dão vazão às interpretações do sistema capitalista de produção e de novas idéias que percorrem o conhecimento e nos colocam diante de novos desafios.

Pensar dessa forma, o espaço e o tempo quando materializados em ações dos povos, da cultura, onde diferentes interesses, modos de ser, viver e pensar a sociedade se fazem presentes, parece ser ainda muito complicado. Como entender o tempo e o espaço de culturas como as dos indígenas? Como colocá-las numa escala que demonstre com clareza o tempo e o espaço dessas formas diferenciadas de sociedades? Como procurar entender que novas transformações no tempo ocasionam mudança no espaço? 3. O tempo e o espaço geográfico.

Os avanços da tecnologia, das redes telemáticas modificaram e fizeram acelerar o tempo-espaço das sociedades. Para lembrar Harvey (1992), quando nos fala da experiência do espaço e do tempo, onde o mundo encurtou as distâncias, há um aniquilamento do espaço onde o tempo tecnológico, via inovações, assume um papel fundamental. As inovações têm modificado o tempo e o espaço entre as diferentes regiões do planeta. Um exemplo claro, dessa forma, é a internet que aproxima virtualmente as pessoas e os lugares, fazendo com que ocorra uma relação instantânea entre as mesmas, embora de forma virtualizada, via informática.

Porém, essas transformações não trouxeram consigo uma ampliação dos recursos, entendidos aqui como possibilidades a serem socializados por todos. O tempo encurtou o espaço, modificou-o, a inovação acelerou o tempo modificando o espaço das ações humanas, porém sua distribuição é reduzida e consumida diferentemente.

Mas de que tempo estamos falando? A psicologia nos fala das doenças psicossomáticas e de um tempo psicológico, e passando pela interpretação de Skinner4, posso dizer que a sociedade seria governada por regras e , dessa forma, qual o tempo do indivíduo em sociedade, tempo do lazer, do trabalho, da família, tempo da regulação da vida cotidiana? Qual a inserção do indivíduo na sociedade capitalista via de regra, e sobretudo governado por regras?

Segundo essa explicação de Skinner (1953), tudo em sociedade acontece a partir do indivíduo, mas esse indivíduo vivendo em grupo. Para chegar a essa formulação e explicar tal situação, diríamos que o surgimento das primeiras ferramentas utilizadas pelos seres humanos, foi uma criação individual e necessária do ser humano, como isto foi importante para a sobrevivência do grupo, foi incorporado pelo grupo e assim passado de geração em geração, fazendo com que as práticas sejam elas culturais, econômicas ou políticas sobrevivam ao tempo, devido a maior ou menor importância que o grupo assume dentro de um determinado contexto histórico-geográfico.

O capitalismo impõe um tempo sócio-econômico entre as regiões, dessa forma, constrói e modifica os espaços-territoriais, em espaço que ora são incluídos ora são excluídos das relações de produção mais dinâmicas dentro do sistema-mundo. Assim, como entender do tempo e do espaço quando relacionamos diferentes variáveis de interpretação, seja individual ou coletiva, para entender o avanço do conhecimento e suas implicações na sociedade?

O sentido espaço-temporal na geografia está relacionado ao avanço dos modos de produção e à incorporação de novos valores comparando as sociedades e delas interpretando seus modos de ser, viver e pensar a humanidade. O sentido de ir e vir dos seres humanos torna-se a construção de suas vidas dentro de determinado sistema de produção em que se insere determinada sociedade.

A inserção do tempo na tecnologia, via relações capitalistas, de acordo com as possibilidades e as potencialidades, definem o tempo do capital. A aceleração do tempo no espaço geográfico é formulada pelo sistema com que o espaço geográfico se insere no capitalismo, seja como reserva para aproveitamento futuro, virtualizado pelo valor econômico, seja inserido de forma imediata para acúmulo capitalista na divisão social e internacional do trabalho. Dessa forma, o tempo dos lugares acontece em

4 Para Skinner (1953), uma “lei social” deve ser gerada pelo comportamento de indivíduos. É sempre o indivíduo que se comporta, e que se comporta com o mesmo corpo e de acordo com os mesmos processos usados em uma situação não social (Skinner, 1953, p. 285).

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espaços diferenciados, e a aceleração do tempo é regulada pela dinâmica capitalista, definindo a posição dos lugares no espaço geográfico capitalizado.

Ao tratar o tempo e o espaço do capital, comparando com o tempo e o espaço da natureza, encontramos contradições nas formas de conceber essa dualidade do sistema de produção capitalista. Por exemplo, o tempo e o espaço da natureza é dado pelas eras geológicas, como seu tempo de recomposição também, dependendo da relação com que esta pode ser incorporada; diferentemente, o tempo e o espaço do capital é imediato. Há uma aceleração pela busca da eficiência do lucro na absorção da natureza, onde esta é incorporada numa velocidade tal que levaria anos para se recompor, e quem nos garante que as condições ambientais futuras darão conta de torná-la novamente aproveitável, mesmo no sentido econômico? Por outro lado, quem se apropriará destes recursos?

Tempo e espaço, dependem também de uma sociedade dos ritos e mitos que são preservados pelos povos em sua cultura, que a mantém viva e permanece na vida de descendentes, preservando assim a memória e a tradição de um povo, diferenciada no espaço-mundo, no tempo-mundo.

A geografia espaço-temporal se coloca como suporte das relações sociais de produção das sociedades e permanece no cerne das discussões sobre a produção do espaço geográfico, diferenciando povos e culturas, territórios e regiões envolvendo um paradoxo entre aceleração a manutenção do espaço-tempo.

4. Considerações Finais: percorrendo o tempo e o espaço.

Inicialmente, trabalhei com a breve idéia de tempo e espaço no contexto filosófico e fiz, como opção, pequeno destaque pela física e a matemática, percorrendo um longo caminho para entender a aceleração espaço-temporal. Este caminho, que não tem final e nem tão pouco é linear, permitiu uma melhor compreensão das situações que ocorrem nas sociedades. Seria muito difícil ensaiar sobre tempo e espaço sem tentar entender as transformações ocorridas, principalmente na filosofia.

A questão central colocada para mim era de não buscar respostas prontas, mas trilhar um caminho que permitisse levantar mais questionamentos sobre a relação tempo e espaço. Em “O que é Filosofia”, Deleuze e Guattari (1992) levantam o dilema sobre a relação filosófica sobre conceito e definição. Espaço e tempo são conceitos ou definições?

Tratando da ciência e da filosofia, Deleuze e Guattari discutem a apropriação, ou melhor, o tratamento dos conceitos e das definições, sendo que a primeira trata das definições e, a segunda, dos conceitos. Sem entrar no mérito da apropriação de quem é responsável pela produção das formas e funções, tempo e espaço parecem ser únicos e ao mesmo tempo, complexos. São únicos no sentido de não se poder separá-los, de não podermos tratá-los na sociedade como fenômenos díspares, e são complexos por terem nas sociedades diferentes interpretações.

O tempo real e o tempo virtual se confundem com o espaço das relações sociais? Às vezes nos deparamos com situações que nos colocam desafios no sentido de entender a produção do espaço geográfico, que por muitas vezes acaba negligenciando o tempo das relações sociais e o tempo das formas tecno-informatizadas.

O tempo e o espaço cósmico, o tempo do relógio, a regulação da vida social pelo trabalho, pelas regras ou pelas atividades que desenvolvemos durante a nossa vida, são questões que permitem ir além da concepção do tempo mecânico. Como pensar então em tempo e espaço, em se tratando das horas e dos lugares? Quais os acontecimentos que ocorrem em lugares diferentes e com fusos diferenciados? O que rege a vida das pessoas, o tempo social? Tais questionamentos devem fazer parte das discussões que envolvem tempo e espaço.

A filosofia, ao questionar os conceitos, coloca para as ciências a necessidade de uma nova invenção dos conceitos e das definições, e a sua libertação quando da sua (re)produção sem debate. O papel da ciência e da filosofia é de criação e, ao pensar o avanço do conhecimento nessas bases, observamos que necessitam sempre de serem reformuladas.

Assim, o debate tempo e espaço deve continuar a ser um dos mais realizados, principalmente pelos cientistas sociais, para efeito de avançar as discussões seja em relação ao mundo cósmico seja na

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SILVA, J. M. P. Considerações sobre o debate tempo e espaço.

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sociedade. Termino este breve ensaio, perguntando-me: Qual o tempo e o espaço ideal para vivermos numa sociedade sem contradições e mais digna para os seres humanos? 5. Referências Bibliográficas. ARISTÓTELES. Política. Tradução: Mário Kury. Brasília, UNB, 1997. DELEUZE, G; GUATTARI, F. O que é filosofia. Tradução: Bento Prado Jr & Alberto Muñoz. Rio de

Janeiro, Editora 34, 1992. HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. São Paulo, Edições Loyola, 1992. KANT, I. Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza. Lisboa, Edições 70, 1990. LEFEBVRE, H. O Direito à Cidade. São Paulo, Moraes, 1991. PIETTRE, Bernard. Filosofia e Ciência do Tempo. Tradução : Maria Pires de Carvalho. Bauru, EDUSC,

1997. RAY, Christopher. Tempo, Espaço e Filosofia. Tradução: Thelma Nóbrega. Campinas, Papirus, 1993. SANTOS, Milton. Espaço e Método. São Paulo, Nobel, 1992. SKINNER, B. F. Ciência e Comportamento Humano. São Paulo, Martins Fontes 1953. STOCKINGER, G; FENZEL, N. A Inversão dos Tempos. Belém, Cejup, 1991.

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A RECRIAÇÃO DA GRAFIA DO PLANETA NA PRODUÇÃO DA NATUREZA E DO ESPAÇO: A NECESSIDADE DE SE SALTAR ESCALAS∗∗∗∗

Fabrício Pedroso BAUAB∗∗∗∗∗∗∗∗

Resumo: A produção da natureza pelo advento do modo de produção capitalista, potencializada pelo indissociável vínculo entre ciência e técnica que possibilita, nestes termos, uma recriação na grafia dos lugares, do planeta, agora incrustados em artifícios do trabalho humano que recriam os sentidos do espaço geográfico e operacionalizam recortes, socialmente produzidos, que, ao invés de originar fragmentos, articulam diferentes dimensões da realidade, do humano, pela interconexão de diferentes escalas geográficas. Palavras-chave: espaço; natureza; geografia; escala geográfica. Resumen: La producción de la naturaleza a partir de la aparición del modo de producción capitalista, agravada por el vinculo indisociable entre ciencia y técnica, el cual posibilita, en tales términos, una recreación en la grafia de los lugares, del planeta, insertos en artificios del trabajo humano que reproducen los sentidos del espacio geográfico y gestionan recortes, socialmente producidos, que, al contrario de originar fragmentos, articulan diferentes dimensiones de la realidad, de lo humano, por la interconexión de diferentes escalas geográficas. Palabras-llave: espacio; naturaleza. geografía; escala geográfica. 1. Introdução.

Iniciamos este trabalho já com a necessidade de enfatizar a dificuldade maior que permeará a sua realização: a associação de nossa pesquisa, relativa à recriação da natureza enquanto força produtiva no capitalismo, o que desde já, produz uma global alternância na grafia do próprio planeta, com a produção da escala geográfica.

A dificuldade de associação da temática de nosso trabalho com o tema escala geográfica, abrangente, como veremos, de urna perspectiva bastante distinta do perfil instrumental da chamada escala cartográfica, faz-se, desta feita, avultada pelo, inclusive, pouco pensar na produção escalar associada a processos sócio-culturais mais amplos, como os que objetivamos estudar.

Assim, pensar, como sugere Neil Smith (2000), a dimensão escalar do corpo, ou mesmo da casa, locus da gestação da identidade, da emanação da intimidade, pode ser atrelada à produção da natureza no sentido inclusive proposto por Milton Santos, de gênese, no estágio atual do capitalismo, de um meio técnico-científico-informacional. Isto torna a recriação da natureza um fenômeno que origina o contemporâneo espaço geográfico, intencional no sentido de (re)produção do sistema, de extração de uma mais valia global, torna-se empreitada de não fácil realização.

A solução, se é que assim podemos chamá-la, para a articulação de fenômenos, que, na realidade, se fazem imbricados mas pouco perceptíveis devido à nossa tradição de análise calcada nos recortes de razão e de objeto, como ressalta Santos (2002), se atrela à própria articulação de escalas que, sem negar a própria divisão — para facilitar a apreensão, diga-se — proposta por Smith (2000), referente à escala do corpo, da casa, da comunidade, do espaço urbano, da região, da nação e, finalmente, das fronteiras globais, permite a percepção de igualizações e diferenciações geográficas cuja espacialidade perpassa, necessariamente, pela própria articulação entre produção da natureza, produção do espaço e gênese da escala geográfica, tríade esta que alicerça o próprio Desenvolvimento Desigual discutido por Neil Smith (1988).

∗ Texto publicado em 2003 (n.10 v.1), produzido no contexto da realização do Seminário do Doutorado ministrado pelo Prof. Dr. Raul Borges Guimarães, intitulado “Escola Geográfica”, no ano de 2002. ∗∗ Doutor em Geografia pela FCT/Unesp, campus de Presidente Prudente. Atualmente professor da UNIOESP, campus de Francisco Beltrão. Email para contatos [email protected].

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FRANÇA, R. Eliminação de “barreiras”: produção de fluidez e circulação no Brasil.

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É esta a articulação que aqui procuraremos discutir e que constitui este trabalho muito mais enquanto um ensaio reflexivo do que um artigo nutrido pela rigidez acadêmica. Vamos, então, a ele. 2. A Revolução científica do século XVII e a nova visão de natureza.

Século XVII, Galileu Galilei retoma o pensamento atomista de Demócrito e proclama: o verdadeiro saber científico é aquele que expressa a matemática imanente ao mundo objetivo, cujas leis, funcionamento, constituem-se independentes do crivo deformador da subjetividade, de todo e qualquer conhecimento bastardo que, antes de mais nada, expressa as disposições do sujeito que sobre quantidades alça uma série de qualidades que somente a ele dizem respeito.

Indo mais longe ainda, Galileu ressalta a necessidade de distinção da linguagem do livro da natureza, repleto de caracteres geométricos, da moral cristã expressa no livro das Sagradas Escrituras, como ressalta Rossi (1992). A incompatibilidade entre tais livros — o da natureza e o das Sagradas Escrituras – faz-se, por exemplo, manifestada no livro de lsaías, através do célebre momento em que Deus parara o Sol!

Em meio ao forte ressoar da Revolução Copernicana, na qual Galileu foi mais do que um adepto, um verdadeiro corruptor dos céus por perceber manchas solares em meio a um imutável céu e por experimentalmente provar a própria centralidade do Sol, a afirmação bíblica parecia se contrapor ao verdadeiro funcionamento da natureza, talvez procurando buscar no milagroso aspecto de uma sobrenatureza, “explicitada” pelo “parar” do Sol por parte de Deus, uma tentativa de aliciamento de crentes, como bem destacou o filósofo Spinoza no século XVII (Durant, 1999).

A corrupção do universo aristotélico-ptolomaico já há muito vinha se dando, desmontando a mescla da qualitativa ciência aristotélica com teologia que alicerçou a interpretação de mundo surgida na Idade Média. Em 1577, Tycho Brahe, como destaca Crosby (1999), calculou a distância de um cometa que cortava o céu além do mundo celeste “construído” nas esferas concêntrico cristalinas de Aristóteles, o mesmo Brahe que reconheceu novas estrelas em Cassiopéia, contribuindo para este processo de transmutação da ordem do universo de que há pouco falávamos.

As mudanças percebidas no céu, no próprio funcionamento do universo fizeram-se em consonância, como não poderia deixar de ser, com as próprias transformações ocorridas no âmbito do gradual alargamento do ecúmeno, da descoberta da verdadeira grafia do planeta atrelada ao amplo e não linear processo de origem do modo de produção capitalista. Temos, e adiante falaremos mais disso, uma similitude entre a transformação do conceber e a recriação, após a descoberta das reais feições, de uma nova grafia do planeta, ancorada em um amplo processo de mudança de olhar e de atitude que o nascimento da ciência operou diante da natureza. A citada contribuição de Galileu caminha nesse sentido.

No mesmo século XVII, Francis Bacon, em seu Novum Organum, concordou com a separação galileana entre qualidades objetivas e subjetivas, recuando até Demócrito:

[...] o intelecto humano, por sua própria natureza, tende ao abstrato, e aquilo que flui, permanente lhe parece. Mas é melhor dividir em partes a natureza que traduzí-la em abstrações. Assim procedeu a escola de Demócrito, que mais que as outras penetrou os segredos da natureza. O que deve ser sobretudo considerado é a matéria, os seus esquematismos, o ato puro, e a lei do ato puro que é o movimento (BACON, 1999, p. 44).

Como ressaltava o próprio Bacon, os falsos ídolos precisam ser afastados da natureza, por ele

vista enquanto uma selva cujo labiríntico teor deveria ser desbravado pelo aperfeiçoamento do método indutivo. A natureza não conta a história da moral cristão, sendo somente matéria e movimento. Tal história é contada pelos homens.

Mesmo fazendo críticas aos dogmas da cristandade, Bacon não deixa de neles buscar auxílio na exaltação de um projeto, tornado evidente na utópica obra Nova Atlântida, de domínio dos quadros naturais que devem ser torturados, nos mesmos termos das torturas usadas contra as “bruxas”, para que seus segredos fossem revelados. Tal “tortura” faz da ciência nascente diferenciada com relação à chamada ciência clássica grega, contemplativa por excelência, atribuidora de um caráter qualitativo aos corpos:

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eram eles leves, pesados, líquidos, sólidos, etc. O espaço, por seu turno, era visto por uma série de atributos qualitativos como alto, perto, longínquo, próximo.

Paolo Rossi, em sua obra Os filósofos e as máquinas, destaca a importância das chamadas artes mecânicas na gênese da ciência moderna. Em tal obra, destaca o apreço nutrido por Descartes, Galileu Galilei, Bacon, entre outros pelas produções mecânicas da época que, para eles detinham o mérito de aprisionar nas máquinas o movimento da natureza, atuando em sua recriação. Era, portanto, do trabalho dos engenheiros que advinha o verdadeiro saber, não do julgo das autoridades.

Aos poucos, essa natureza vista enquanto que dotada de um funcionamento independente dos anseios humanos vai ganhando o perfil de uma outra construção humana. O modelo das máquinas se agiganta, tomando o tamanho do universo. A alma, alçada sobre o mundo pelos antigos, fica, principalmente após a distinção entre substância extensiva e pensamento (cogito), por Descartes, restrita ao homem, tornando-se sinônimo de uma razão operacional por excelência, o que leva Descartes a afirmar: a natureza é uma máquina e a ciência é a técnica de exploração dessa máquina. Cabe, ao cientista, portanto, saber operar este mundo de autômatos que constituem a natureza, fazendo-a cada vez mais interagir com a necessidade de um modo de produção que realmente coloca o saber voltado para a vida prática do homem, como bem ansiava Diderot no século XVIII. Aqui, o grande problema é a generalidade atribuída ao termo homem. 3. A nova grafia do planeta.

Amsterdã. Também século XVII. Ali estava estabelecido um dos grandes centros de navegação

da Europa, com fortes laços com as costas orientais da Ásia, Índico e Pacífico. Neste contexto, os contatos científicos e comerciais entre Holanda e Japão foram estreitados e Bernhard Varenius, um médico por formação e geógrafo por afinidade, considerado por Capel (1984) o pai da Geografia Moderna, publicou uma obra descrevendo as características de tal porção da superfície do globo, intitulada Descriptio Regni Japoniae cum quibusdan affinis materiae. Em tal obra, Varenius faz uma compilação de vários autores cujos trabalhos traziam informações sobre o Extremo Oriente.

Este aludido trabalho de Varenius servirá aqui, para nós, de exemplo para algumas questões que aqui buscamos refletir, pois bem ilustra a relação que o conhecimento geográfico, ainda distante do corpo metodológico e teórico que ganhou com sua sistematização, possuiu com o alargamento do ecúmeno. Os descobrimentos marítimos, relatores por excelência do caráter estritamente alegórico do conhecimento geográfico presente na Idade Média, dispersaram as sombras alçadas por sobre a dita zona tórrida demonstrando seu caráter habitável e, até mesmo, a incoerência por detrás do termo. Na verdade, é da transposição da Zona Tórrida que vemos a possibilidade de ocorrência da chamada acumulação primitiva do capital.

Varenius existiu neste contexto, cujo papel atribuído ao geógrafo é o de precisar o olhar e ainda mais o instrumental que deveria fazer do conhecimento geográfico algo aplicável, lançando a Terra no plano das cartas, medindo os cantos e recantos do planeta, descrevendo costumes que, antes de servirem ao lazer de um leitor mais desinteressado, serviram para perpetuar a própria possibilidade de aprimorar o já citado processo de acumulação primitiva do capital através, inclusive, da corrida colonialista. Na dedicatória de sua Geografia Geral, como ressalta Capel (1984) o legado mais conhecido, Varenius atesta para a necessidade de uma geografia aplicada às navegações e ao comércio, fator este que para Capel, constitui a modernidade inerente ao seu pensamento.

Cabe ressaltar ainda que a Geografia Geral de Varenius teve uma edição traduzida por lsaac Newton, que aclamou a atualidade de uma obra recheada de alusões a Copérnico e a Galileu.

Na mesma Holanda, um século antes, outra contribuição de amplo destaque para o conhecimento geográfico veio de Gerhard Mercator que segundo Santos (2002), na constituição da projeção cartográfica, operou uma mudança substancial na relação sujeito-objeto. Se nos mapas portulanos a leitura cartográfica finda por exigir do usuário um percurso mental ponto a ponto, fazendo-se ainda estritamente presa aos contornos de um Mediterrâneo que não mais se constituía no único foco das navegações, com o mapa de Mercator temos uma projeção dada em escala planetária em que o sujeito desloca-se da superfície da Terra, observando-a de seu centro ou de outro ponto escolhido por

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conveniência. A imperfeição das áreas próximas aos pólos faz-se compensada pela precisão das coordenadas geográficas, que acabaram por grafar o espaço do mundo atribuindo-lhe um perfil métrico que se fez em consonância com o projeto intelectual que vinha empreendendo o Ocidente desde antes do século XVII. Tal projeto se constituiu, como afirma Crosby (1999), em unir matemática e a mensuração, impondo-lhes a tarefa de dar sentido a uma realidade sensorialmente perceptível e que foi tratada pelos ocidentais enquanto espacial e temporalmente uniforme. Aqui, a matemática penetra na metrificação do tempo que contabiliza a pungente extração da mais valia, na emergência da música polifônica, na natureza cujo funcionamento, segundo Japiassu (1985), parece começar a obedecer às exigências de uma gestão contábil.

Podemos dizer que o redimensionamento das noções de homem e de mundo fez-se em consonância com aquilo que Foucault (1999) veio a chamar de mudança na prosa do mundo. Tal autor ressalta que até o século XVI o mundo “enrolava-se” sobre si mesmo e que por sua reduplicação em espelho acabava por abolir a distância que lhe é própria. Ora, por sobre o mundo eram alçados os dizeres de Deus condensados na alegórica linguagem bíblica e este, assim como a Sua “grafia”, pouco diziam em termos de precisão de formas, de métrica das distâncias. O mundo símbolo, destacado por Clemente de Alexandria, em que há uma correspondência entre o espiritual e o material através do grau de parentesco entre todos os seres, enlaçados pela unidade que deriva de Deus, faz do empírico, na verdade, a grafia daquilo que se encontra mais além, não transmissível pela linguagem humana e apreendido somente pela descoberta de sua similitude com a própria significação simbólica das Escrituras (Santos, 1959). Kimble (2000), ressaltou tal situação ao apontar que os padres da Idade Média, inspirados em Sócrates, diziam que a única busca frutífera é aquela que nos ensina os deveres morais e as esperanças religiosas e estes estavam esparramados sobre o mundo conhecido, falante de uma mesma linguagem.

Foucault vai enfatizar que, neste contexto, o mundo é recoberto por símbolos que se constituem em formas de similitude, mostrando a unidade de toda microordem com o cosmos e destes com os desígnios divinos. Fazia-se necessária somente uma adivinhação das marcas do planeta que coincidiam com uma visão de linguagem enquanto descoberta de palavras de um mundo prestes a se redimir, escutando a verdadeira palavra das coisas nele depositadas por Deus.

A Revolução Científica datada do século XVII vai justamente se opor a este jogo de linguagens que transfigurava uma natureza recoberta pelos desígnios cristãos. No próprio Discurso sobre o método,

Descartes vai justamente demonstrar os caminhos para que o pensamento escape de si mesmo e penetre na essência do mundo extensivo, distinto, separado da alma e, portanto, incapaz de ser prova da existência humana. A linguagem do mundo faz-se separada da alma humana, sendo repleta de matemática, de leis invariáveis e equações que requerem do cientista uma objetividade que relegue as paixões, os dramas da existência, o conhecimento bastardo que expressa somente as disposições do sujeito no caso, repletas dos desígnios da cristandade. Portanto, a linguagem do mundo é inerente às próprias coisas, devendo ser objetivamente explorada.

Este contexto coloca-se, inclusive, posterior ao processo de descortinamento pelos descobrimentos geográficos de mundo que possibilitou, cada vez mais, o conhecimento da natureza terrestre como um todo. Aqui, bem no sentido da modernidade do pensamento de Varenius, o conhecimento geográfico busca responder a questão do onde, desenvolvendo procedimentos para isso. Os descobrimentos marítimos, por sua vez, demonstraram a imprecisão da geografia medieval, com base nos princípios simbólicos dos mapas TOs.

Talvez aqui encontremos a manifestação histórica para a frase de Smith (1988) que ressalta que no capitalismo, a natureza torna-se um meio universal para o processo de reprodução do capital. O olhar alçado sobre os inóspitos recantos já se faz carregado de uma predisposição aos encantos dos recursos naturais. A natureza começa a ser, além de reconhecida nos seus nexos mecânicos de causa e efeito, tratada no sentido de utilização, bem no sentido de dominação para a vida prática de que falava Francis Bacon no século XVII. A descoberta de novas terras, em um mundo grafado na precisão — ainda imprecisa — das linhas de latitudes e longitudes, na utilidade náutica da carta de Mercator, em um primeiro momento coloca-se enquanto descoberta das potencialidades dos recursos naturais, depois dos humanos que uma História Natural, do tipo da realizada por Buffon, começa a desenvolver, como ressalta Quaini (1992).

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A própria natureza do Ocidente, reconstruída a partir, principalmente, da chamada Revolução Científica do século XVII, é estendida para os recantos de um mundo que suprimiu a noção de ecúmeno. Não que a teologia ficasse ausente dessa nova forma de se conceber a natureza e Glacken (1992) bem ressalta os fortes resquícios dela no pensamento de Buffon e de Carl Ritter. Contudo, a contabilização das forças da natureza, seguida da necessária descrição dos costumes dos povos não cristãos, se coloca enquanto procedimento inerente a qualquer História Natural, fazendo do conhecimento do outro um aprimoramento para o estabelecimento de si próprio em uma Europa mercantil, quase industrial na Inglaterra, com finalidades bem explícitas quanto ao recolhimento de matéria prima, extração de metais preciosos e escravidão de nativos. Rousseau bem criticou esse olhar sobre um “outro” recheado dos limites de si mesmo:

Há trezentos ou quatrocentos anos, os habitantes da Europa invadem as outras partes do mundo e publicam sem cessar novas coletâneas de viagens e relatórios, mas eu estou convencido de que os únicos homens conhecidos por nós são os europeus; além disso, pelos preconceitos ridículos que ainda sobrevivem entre as pessoas cultas, parece que cada um, sob o nome pomposo de estudo do homem, estuda somente os homens de seu país. Os indivíduos podem ir e vir, mas a filosofia parece que não viaja; e a filosofia de cada povo é pouco adaptada a outra [...] Não se abre um livro de viagens sem encontrar descrições de caracteres e hábitos; mas espanta ver como estas pessoas que descreveram tantas coisas tenham dito somente aquilo que todos já sabiam, já não conseguindo descobrir, do outro lado do mundo, senão aquilo que dependia deles observarem sem se afastar de seu caminho, e como os verdadeiros traços distintivos das noções que saltam aos olhos capazes de ver, tenham quase sempre escapado aos seus olhos. (ROUSSEAU apud QUAINI, 1992, p. 104).

Desta feita, como afirma Santos (2002), cada rio, cada montanha, espécie vegetal e animal ou

ainda novas expressões étnicas, irá compor o sistema de produção e reprodução da vida originariamente européia, compondo o seu vocabulário, suas referências éticas e filosóficas e seu próprio entendimento do que é ciência, natureza e em que medida a parte se relaciona com o todo.

Neste contexto, a noção de espaço, composto da soma das partes que o constituem, aproxima-se do espaço absoluto teorizado por Newton, que, nos dizeres de Smith (1988), constitui-se em receptáculo universal, homogêneo, dos diferentes atributos que se movem no mundo do espaço relativo. Daí, boa parte da Geografia produzida no século XIX por Alexander von Humboldt e Carl Rifter considerar a Terra enquanto um imenso organismo, cujo conhecimento das partes — eis um dos intuitos da Geografia

Comparada ritteriana e dos próprios Quadros da Natureza de Humboldt — implica na compreensão do todo, do hólos terrestre componente do hólos universal. Daí Humboldt, no segundo livro dos Quadros da

Natureza, intitulado “As cataratas do OrenocoAturés e Maipurés”, considerar a descoberta da nascente do Orenoco por parte de Robert Schomburgk enquanto uma eloqüente conquista para a ciência geográfica.

Em todo livro, temos um papel bem claro atribuído à geografia, reconhecido também por Capel (1981): uma precisão na localização, na delimitação das nascentes, na demarcação dos afluentes. Não que a contribuição humboldtiana se limite somente a esta perspectiva. Longe disso. Mas sua empresa, explicitada nos Quadros da Natureza (1950), se mostra em consonância com a perspectiva da precisão locacional sob o prisma das coordenadas geográficas.

A geografia, nesse sentido, em seu processo caminha no sentido de aumento da cognoscibilidade do planeta, dessacralizando a natureza e precisando os contornos do mundo, mensuráveis na escala operacional da cartografia. 4. A produção do espaço na recriação da natureza enquanto força produtiva.

Smith (1988) ressalta que a produção do espaço se dá enquanto resultado lógico da produção da natureza, e que a generalização do capitalismo na natureza é a unificação prática de todos os quadros naturais no processo de produção. Citando Marx, o mesmo autor ressalta que poderia parecer um paradoxo afirmar que um peixe não fisgado, por exemplo, é um meio de produção da indústria de pesca. Contudo, até hoje ninguém descobriu a arte de pescar peixes em águas que não os contêm.

As águas que contêm peixes, o substrato terrestre rico em recursos, a variação vegetal, enfim, o conjunto do planeta também ganha no sentido de mensuração de suas potencialidades. “Na busca de

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lucro, o capital corre o mundo inteiro. Ele coloca uma etiqueta de preço em qualquer coisa que ele vê, e a partir dessa etiqueta de preço é que ele determina o destino da natureza” (SMITH, 1988, p.94).

Da natureza medieval sonhada pelo poeta, estudada pelo mesmo sob os auspícios da qualitativa ciência aristotélica e visualizada em sua narrativa da história da salvação cristã, a natureza do cientista transformou-se em objetividade plena, apreensível verdadeiramente no seu movimento, na taxonomia que lhe mostrava em partes. O conhecimento científico que a explica verdadeiramente desvincula-se do uso de suas descobertas. Daí, o controle da natureza, tão avultado naqueles que preconizaram o saber revolucionário enriquecido no século XVII, ter se vinculado a uma apropriação classista, preenchendo o conteúdo científico de ideologia, indo ao encontro da afirmação de Smith (1988) de que as relações limitadas dos homens com relação à natureza determinam as relações limitadas de uns para com os outros, sendo as relações limitadas de uns para com os outros determinantes das relações estritas do homem para com a natureza. Daí a natureza tomada enquanto condição geral para a reprodução do capital.

Japiassu (1985) ressalta o desenvolvimento das técnicas atrelado à aplicação particular das leis gerais descobertas pela ciência. O resultado de tal imbricação é a tecnologia. É justamente na potencialização que as máquinas realizam frente à atividade corporal, fisica do homem, que temos alçado sobre a natureza, próteses, nos dizeres de Milton Santos, que se apropriam de suas forças atribuindo-lhes um caráter eminente de força produtiva. Aqui, as palavras de Marx, extraídas por Smith (1996) do Grundrisse, bem expressam este tipo de transformação:

A natureza não constrói máquinas, nem locomotivas, telégrafo, redes telegráficas, equipamentos automáticos, etc. Estes são produtos da indústria humana natural transformados em órgãos do homem sobre a natureza [...]. São órgãos do cérebro humano, criados pela mão do homem; o poder do conhecimento objetivado (MARX apud SMITH, 1988, p. 89).

Desta feita, na ampliação do processo produtivo, os instrumentos de trabalho deixam de ser um

apêndice do corpo transformando-se, como ressalta Santos (1 996a), em um apêndice da natureza, dando, ao corpo do mundo, uma gradual carga de técnica e informação resultante do que Santos (1 996b) chama de meio técnico-científico-informacional, sinônimo do meio geográfico atual onde os objetos mais proeminentes são elaborados a partir dos próprios mandamentos da ciência, servindo-se de uma técnica informacional que lhe empresta o alto coeficiente de uma intencionalidade servidora das diferentes modalidades do modo de produção.

Da gradual inserção de um sistema de técnicas no meio natural, que no estágio atual aumenta a cognoscibilidade do planeta, a extração de uma mais valia global pela sua unicidade técnica (SANTOS, 2000), temos que:

A técnica potencializa a produção e a circulação, a primeira através de um sistema de máquinas ferramentas e a segunda através dos meios de transporte e comunicação e, sob essa forma, viabiliza, torna possível e implementa a sucessão do primado entre as esferas, implementando a hegemonia da forma dominante de capital (MOREIRA, 2001, p. 12).

Eis o perfil da simbiose entre produção da natureza e produção do espaço: das mudanças de

visões que nos remetem ao Renascimento à gênese da ciência moderna cujas conseqüências atrelaram-se à descoberta, na métrica das distâncias, na exatidão dos números, dos verdadeiros contornos do planeta,

das potencialidades inerentes ao teatro da vida que tem como pano de fundo o espaço absoluto,

receptáculo universal. O resultado é a grafia da simultaneidade, da compressão espaço-tempo que dá origem, na contemporaneidade dos eventos tidos enquanto geradores do chamado fenômeno de globalização, ao que Smith (2001), chama de escala global. 5. Produção do espaço e produção da escala geográfica.

Antes de discutirmos o significado mais específico da escala global, faz-se necessário uma maior clarificação no que se refere ao termo escala geográfica. Neil Smith, em artigo intitulado Geografía,

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Diferencia y Políticas de Escala, destaca a produção da escala enquanto um processo social, aspecto este que a diferencia com relação à escala cartográfica, recurso instrumental dependente da arbitrariedade de recorte do pesquisador. Nestes termos, a diferenciação de escalas estabelece e se estabelece através da estrutura geográfica das interações sociais, assumindo um sentido que não se refere somente à escala material, trabalhada e re-trabalhada como paisagem, sendo também a escala da resolução ou abstração que nós empregamos para entender as relações sociais qualquer que seja a sua impressão geográfica (SMITH, 1992).

Desta feita, temos na escala global, trabalhada por Smith (2000), enquanto, primariamente, uma construção para a circulação do capital. Aqui, o papel da unicidade técnica, ofertada pela gestação do meio técnico científico informacional, potencializador da produção e da circulação, faz-se determinante na formação de um mercado cuja construção se deu a partir da sua globalização no século XIX. Como bem ilustra Smith (2000), “fazemos negócios em um único lugar”, diz um anúncio da Salomon Brothers

de seus serviços financeiros, sob uma fotografia visionária da “Espaçonave Terra” (SMITH, 2000, p.l 56). Smith (1992,1996, 2000) ressalta que mais do que estabelecer uma hierarquia de escalas,

necessário se faz o saltar escalas, permitido pela conexão social e política que oferece um princípio unitário para as abstrações geográficas que o conceito de escala permite construir.

Neste salto de escalas podemos citar o lugar enquanto conceito que bem permite explicitar as conectividades existentes entre os diferentes níveis escalares apontados por Neil Smith. Alguns geógrafos brasileiros também fazem referência a isto. Carlos (1996), por exemplo, ressalta, citando José de Souza Martins, que a história local é a história da particularidade, embora esta se determine pelos componentes universais da história. No mesmo sentido, a autora se referencia em Milton Santos para enfatizar que o lugar permite ao mundo realizar-se em uma dialética do próximo e do distante em que ambos se retro-alimentam. Neste sentido, Carlos irá considerar que a história do lugar passa cada vez mais pela história compartilhada que se reproduz além de seus limites físicos.

A mesma autora, no entanto, discute que o lugar, além de manifestação da globalidade, é o espaço passível de ser sentido, pensado, apropriado e vivido através do corpo, constituindo-se, portanto, na porção de espaço apropriado para a vida. Assim, temos, na tradição dos estudos da universalidade, uma redução dos estudos do lugar, redobrada pelo estatuto epistemológico que toma a totalidade enquanto essencial e o fragmento enquanto acidental, acessório. Aqui temos um ponto que merece ser aprofundado.

Smith (1992), discutindo as perspectivas inerentes à chamada pós-modernidade, destaca a morte do discurso totalizante, processo este que Moreira (1997), por seu turno, chama de queda dos universais. Assim, como ressalta Smith (1992), o que previamente era um todo agora se faz distendido em fragmentos, em que cada generalização pode desfazer-se em diferentes experiências, sendo cada uma delas, potencialmente, uma generalização. O discurso das diferenças emerge abrindo possibilidades de surgimento para uma teoria da espacialização social em que a escala geográfica possa aparecer enquanto conceito central balizador da diferença espacial. Neste sentido, teríamos a produção do espaço enquanto o meio através do qual se dá a construção e reconstrução da diferença social.

Contudo, neste privilegiar da possibilidade de generalização de um discurso construído através do lugar, ou de qualquer outra referência que expresse uma ruína das perspectivas universalizantes, pode-se cair naquilo que o próprio Neil Smith aponta, com base em Edward Soja, no que se refere a um relativismo de pobreza epistemológica. Aqui, a questão que se coloca é a inadiável necessidade de um discurso que aclame e perceba o próprio processo de diferenciação espacial (geográfica) em relação com processos sociais mais amplos, fugindo do subjetivismo mais relativista. Neste sentido, a articulação de escalas, a percepção da imbricação de processos que atuam em uma localização que em um sentido amplo “ata-se” a processos mais amplos, coloca-se enquanto indispensável. Em contrapartida, o problema também se relaciona a um novo recair na diluição da diferença pelo discurso totalizante.

Quando ressaltamos, com base em Carlos (1997), o lugar enquanto uma constituição dialética em que o próximo e o distante se combinam em uma auto-recriação constante, destacamos também o papel do corpo na própria apropriação do espaço imediato e do mundo. Eis o ponto de partida da proposta, não hierárquica diga-se de passagem, de divisão escalar realizada por Smith (2000). É ele o local físico primário da identidade pessoal, marcando a fronteira entre o eu e o outro. Também enquanto lugar do prazer e da dor, tem vontades, desejos e medos e é o órgão biológico definidor das noções de doença e

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saúde. A construção do lugar refere-se à cotidianeidade de suas relações, das áreas mais comuns de convívio.

Do corpo para a casa encontramos um nível mais diferenciado de abstração, o que permitiu a Smith a reconsideração de mais uma escala. O referido autor ressalta que os atos rotineiros de reprodução social — comer, dormir, fazer sexo, limpar, criar filhos, baseiam-se — mas não são exclusivamente praticados — no lar, em torno dele. Aqui, as relações de gênero fazem-se mais explícitas: o homem, menos preso aos limites da casa, alcança escalas geográficas mais altas, enquanto as mulheres buscam suprimir tal tipo de desigualdade.

Da casa, constituída e constituinte de um corpo formador da identidade pessoal, chegamos até a comunidade, cuja contigüidade espacial é menos definida, quase inexistente dependendo da classe social que a forma. Neil Smith ressalta a comunidade enquanto a escala espacial menos especificamente definida, com significado bastante vago. Desta feita, temos que as classes altas vivenciam um diferente tipo de comunidade, pois além dos limites da casa, podem incluir, por exemplo, o local de uma casa de verão situada a centenas de quilômetros ou de outros lugares não contíguos habitualmente visitados.

Passando pela escala urbana, cuja simultaneidade de eventos demonstra ali a mais rápida realização do mundo, em consonância com os “pontos luminosos” apontados por Santos (1998), que conhecem a mais alta concentração de técnica e de informação, chegando a escala regional, lugar da produção econômica, ligada à uma divisão territorial do trabalho atrelada, por seu turno, aos mais amplos ritmos da economia global, temos um caminhar, um saltar escalas que nos permite, na exaltação da diferença espacial, fugir do monismo atrelado ao mais ingênuo discurso totalizador e, ao mesmo tempo, escapar do relativismo ignóbil que saúda a diversidade por ela própria!

Por fim, a escala do estado-nação, cujo impulso para a formação é encontrado, como realça Smith (1988), na circulação de capital e sua competição. A internacionalização do capital leva à sua nacionalização, em um acordo fundado entre uma classe dominante nacional minoritária com grupos internacionais, cujos interesses são incorporados ao tecido legal e ideológico do Estado (SMITH, 2000).

Voltando ao âmbito da escala global, ou escala das fronteiras globais, temos uma totalidade que não se mostra clara e muito menos formada pela soma das partes. Há, em todo o processo de produção da natureza que destacamos nos primeiros momentos desse texto, a produção do espaço, cuja relatividade e diferencialidade só foi possível de ser notada na aproximação da geografia com as demais ciências sociais. Portanto, a produção da natureza, que discutimos principalmente tomando como base a Revolução Científica do século XVII, ganhou o aspecto universal enquanto conseqüente possibilidade de universalização da natureza para a reprodução do sistema, tendo como resultado lógico a própria produção do espaço que, na unicididade técnica que lhe explicita a globalidade, não condiz com uma homogeneidade supressora das diferenças, do localmente constituído na dialética do próximo-distante. Eis, dentro deste amplo processo de transmutação da grafia do planeta, a importância do estudo da diferença espacial inclusive no sentido de resistência proposto por Smith (2000). 6. Considerações finais.

Do espaço repleto de fronteiras sociais da cidade, cujo veículo de sem-teto de Krzysztof Wodiczkol5 cumpriu a função de “perfurar” a privatização da apropriação do espaço público, rompendo escalas que comprimem o habitante nos estreitos limites de sua possibilidade de pagar, ao espaço global, temos, como destacam Moraes e Costa (1994), a integração do valor do espaço e do valor no espaço. Aqui, a natureza recria-se enquanto valor de troca e a unicidade técnica permite a gestação de um mercado mundial que atua na penetração do mundo no lugar. Isto, como vimos, foi um longo processo e a congruência dos diferentes níveis escalares aqui destacados realça-se no sentido de produzir e ser produzido pelo espaço. Daí a importância das diferenciações geográficas que não anulam o sentido do espaço geográfico; pelo contrário, na verdade o reafirmam ao esmiuçar diferenças que, no alto nível de

5 Para maiores informações ver Smith (2000). Em tal texto, Neil Smith cita o veículo dos sem-teto criado pelo artista plástico Krzysztof Wodiczko, uma alternativa metafórica. irônica, que lhes permitiria agrupar diferentes possibilidades de moradia e mobilidade espacial.

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abstração do conceito espaço geográfico, ficariam suprimidas. Temos, então, um enriquecimento do conceito e um aumento do potencial interpretativo dos conceitos geográficos. 7. Referências bibliográficas. BACON, Francis. Novum Organum. São Paulo: Abril Cultural, 1999. (Colos Pensadores) CAPEL, Horacio. Edición y estúdio introductorio: Geografía Geral de Bernhard Varenio. 2.ed. Barcelona: Ediciones de la Universidad de Barcelona, 1984. CARLOS, Ana Fani Alessandri. O lugar no/do mundo. São Paulo: Hucitec, 1997. CROSBY, Alfred W. A mensuração da realidade — quantificação e a sociedade ocidental 1250-1600. Trad. Vera Ribeiro. São Paulo: Ed. UNESP, 1999. DESCARTES, Renée. O discurso do método. São Paulo: Abril Cultural, 1999. (Col. Os Pensadores) DURANT, Will. História da filosofia. São Paulo: Abril Cultural, 1999. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. 8 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. (Col. Tópicos) GLACKEN, Clarence J. Huellas en la playa de Rodas — naturaleza y cultura en el pensamiento occidental desde la Antigüedad hasta finales del siglo XVIII. Barcelona: Ediciones del Serbal, 1996. HUMBOLDT, Alexander von. Quadros da Natureza. Tradução de Assis de Carvalho. São Paulo: W.M. Jackson, 1950. 2.v JAPIASSU, Hilton. A revolução científica moderna. Rio de Janeiro: lmago, 1985. KIMBLE, H.T. A Geografia na Idade Média. Trad. Márcia Siqueira de Carvalho. Londrina: Ed. UEL, 2000. LENOBLE, Robert. História da idéia de natureza. Lisboa: Edições 70, s.d. MORAES, Antônio Carlos Robert de & COSTA, Wanderley Messias da. A geografia e o processo de valorização do espaço. In: SANTOS, Miiton. Novos rumos da geografia brasileira. 4.ed. São Paulo: Hucitec, 1994. MOREIRA, Ruy. A pós-modernidade e o mundo globalizado do trabalho. Revista Paranaense de Geografia, Curitiba, n.2, 1997.p.48-56. _______________________ As novas noções do mundo (geográfico) do trabalho. Revista Ciência Geográfica, Bauru, n.20, 2001, p1O-l3 QUAINI, Massimo. A construção da Geografia Humana. Trad. Liliana Logana Femandes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. (Col. Geografia e Sociedade) ROSSI, Paolo. A ciência e a filosofia dos modernos. Trad. de Álvaro Lorencini. São Paulo: Editora da Unesp, 1992. Rossi, Paolo. Os filósofos e as máquinas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. SANTOS, Douglas. A reinvenção do espaço: diálogos em torna da construção do significado de uma categoria. São Paulo: Ed. Unesp, 2002. SANTOS, Mário Ferreira dos. Tratado de Simbólica. In: Enciclopédia das ciências filosóficas e sociais. 2.ed. São Paulo: Logos, 1959. SANTOS, Milton. Por uma Geografia Nova. São Paulo: Flucitec, 1996. _______________ A natureza do espaço. São Paulo: Hucitec, 1996. Técnica, Espaço e Tempo: globalização e meio técnico científico informacional. São Paulo: Hucitec, 1997. _______________ Por uma outra globalização. 2.ed. Rio de Janeiro: Record, 2000. SMITH, Neil. Desenvolvimento Desigual. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988. _______________ Geography, difference and the politcs of scale. In: DOHERTY, J. Graham and MALEK, M. (Eds.). Postomodernism and the social science. London: Maximillian, 1992, p.57-79. (Trad. para o espanhol de Maria Franco Garcia, Presidente Prudente, 2002) _______________ Contornos de uma política espacializada: veículos dos sem-teto e produção da escala geográfica. In: ARANTES, Antônio (org.). O espaço da diferença. Campinas-SP: Papirus, 2000. VARENIO, Bernhard. Geografía General — en laque se explican las propiedades generales de la tierra. 2.ed. Trad. José Maria Requejo Prieto. Barcelona: Ediciones de la Universidad de Barcelona, 1984.

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ELIMINAÇÃO DE “BARREIRAS”: Produção de fluidez e circulação no Brasil♣♣♣♣

Roberto França DA SILVA JUNIOR♣♣♣♣♣♣♣♣

La geografía histórica del capitalismo ha sido simplesmente notable. Pueblos con la mayor diversidad de

experiencia histórica, que vivían en una serie de circunstancias físicas increíbles, han quedado unidos, a

veces con halagos pero la mayoría de las veces por el ejercicio cruel de la fuerza bruta, en una unidad

compleja bajo la división internacional del trabajo. (DAVID HARVEY - Los Límites del Capitalismo y la Teoría Marxista, 1990)

Resumo: Quando se fala em “Custo Brasil”, logo vem à tona a imagem do transporte rodoviário, que é considerado dispendioso. Diante disto, elaboram-se os “clássicos” estudos comparativos entre os modais de transporte, demonstrando que da composição total, a maior parte do transporte de mercadorias no Brasil se realiza no sistema rodoviário. Assim sendo, é comum lermos e ouvirmos diversas afirmações descabidas e superficiais, que não passam do nível do senso comum, como se esses números fossem as únicas representações da realidade do transporte de mercadorias no Brasil, desconsiderando a formação territorial brasileira. Este artigo visa contribuir para uma leitura geográfica da circulação, discutindo a formação do espaço da circulação no Brasil, procurando ir além das constatações meramente econômicas e geopolíticas. Palavras-chave: circulação, sistemas de transporte, técnica, tecnologia, Estado, divisão internacional do trabalho, fluidez Resumen: Cuando se habla en “Casto Brasil”, luego surge el imagen del transporte rodoviario, que es considerado dispendioso. Enfrente disto, hacen elaboraciones del “classicos” estudios comparativos entre el modales de transporte, demonstrando que de la composición total, la mayor parte del transporte de mercancías en el Brasil se realiza en el sistema rodoviario. Desta manera, es común leermos y oírmos diversas afirmaciones descabidas y superficiales, que no pasan de nivel de el sentido-común, como si eses números fosem las únicas representaciones de a realidad del transporte de mercancías en el Brasil, desconsiderando la formación territorial brasileña. Este artículo visa contribuir para una lectura geográfica de la circulación, discutindo la formación del espacio de la circulación en el Brasil, procurando decorrer además de las constataciones solamente económicas e geopoliticas. Palabras llave: circulación, sistemas de transporte, tecnica, tecnología, Estado, división internacional del trabajo, fluidez. 1. Introdução.

A ascensão dos transportes modernos, a partir da segunda metade do século XVIII, provocou no mundo uma reviravolta sem precedentes na história, diferenciando-se dos transportes dos demais períodos, por se tornarem mercadorias e por transportarem mercadorias. Além desses importantes aspectos, do ponto de vista tecnológico ocorre uma revolução, que propicia ao capital grande mobilidade e fluidez de seu espaço.

Até então, segundo Aron citado por De Masi (2000, p.16):

♣ Texto publicado em 2002 (n.9 v.1). ♣♣ Mestre e Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia da Faculdade de Ciências e Tecnologia de Presidente Prudente - UNESP. Membro do GAsPERR - Grupo de Pesquisa “Produção do Espaço e Redefinições Regionais”. Atualmente professor da UNICENTRO, campus de Irati. E-mail: [email protected]

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A irregularidade do progresso técnico é um dos fatos capitais da história. Entre a Antiguidade e o mundo de ontem, as diferenças em termos das possibilidades técnicas são medíocres. Para deslocar-se de Roma a Paris, César empregava aproximadamente o mesmo tempo que Napoleão. Os inventos técnicos foram inúmeros, mas não modificaram as características fundamentais da sociedade humana.

Assim, progressivamente, todos os ramos da economia foram criando vínculos de dependência com esta atividade responsável pela movimentação e circulação de mercadorias.

A história da circulação e dos meios de transportes no capitalismo, mostra a crescente vinculação com as forças produtivas, assumindo nos dias atuais um papel preponderante. Assim, os transportes possuem uma importância central na sociedade capitalista na medida em que passa haver maior mobilidade de pessoas, idéias e principalmente, do capital. Este último encontra na facilidade da circulação proporcionada pelo constante crescimento do meio técnico e da estrutura fixa do território, a base para sua reprodução6. Desta forma, a maior circulação e fluidez são causas e conseqüências do maior dinamismo e mobilidade do capital.

O sistema de transporte ferroviário foi o que primeiro cumpriu o papel acima descrito, para viabilizar a aceleração da circulação de mercadorias das indústrias inglesas da primeira revolução industrial, entretanto, no Brasil, este sistema serviu principalmente para o escoamento do café colhido das fazendas paulistas durante a segunda metade do século XIX.

Segundo Santos (2001, p.l74), “a cada momento histórico os objetos modernos não se distribuem de forma homogênea, e as normas que regem seu funcionamento pertencem a escalas diversas. Isso é ainda mais válido para o sistema ferroviário.”

Antes da ascensão do rodoviarismo no Brasil, os sistemas de transportes predominantes eram o ferroviário e o aquaviário (mais especificamente o marítimo, que detinha o papel de integração mínima do território brasileiro), que aos poucos foram perdendo espaço.

Para analisar os sistemas de transportes de carga no Brasil se faz necessário o entendimento da promoção da fluidez no âmbito das relações internacionais sustentadas pela divisão internacional do

trabalho, que definiu, de uma certa maneira, a forma de transporte predominante em cada período histórico7. No âmbito brasileiro, como veremos a seguir, a produção da fluidez se deu através dos interesses imediatistas das elites brasileiras no decorrer do tempo que sucumbiram diante dos interesses de ingleses e posteriormente de estadunidenses, sem a elaboração de um planejamento com vistas ao futuro. 2. Raízes e desenvolvimento do rodoviarismo no Brasil.

Consideramos como marco da ascensão do sistema rodoviário o 1º Congresso Paulista de Estradas de Rodagem realizado em 1917 em São Paulo, presidido por Washington Luiz, então prefeito dessa cidade.

Nesse Congresso discutiu-se o retardamento rodoviário do Brasil, procurando soluções para a ampliação dessa forma de transporte. Alguns participantes do Congresso fizeram críticas à política ferroviária existente no país.

Em 1919 a Ford obteve autorização para funcionar no Brasil e montar o modelo “T”, sendo instalada em São Paulo.

Para se ter uma idéia do impacto causado pelo setor automotivo, neste período, nas zonas pioneiras paulistas, surgia, a partir do prolongamento dos trilhos, a estrada e o caminhão. O transporte entre as fazendas e as estações, até então, era realizado por meio de tropas de muares ou de lentos e

6 Conforme KOLARS e NYSTEN (1974, p.113. In: SANTOS, 1996, p.28, nota 2), “A sociedade opera no espaço geográfico por meio dos sistemas de comunicação e transportes. À medida que o tempo passa, a sociedade atinge níveis cada vez maiores de complexidade pelo uso das hierarquias e pelo manejo especial dos materiais e das mensagens.” 7 Cf. CONTEL, Fábio Betioli. Os sistemas de movimento do território brasileiro. In: SANTOS, Milton; SILVEIRA, Maria Laura. O Brasil. Território e Sociedade no início do século XXI. 2ed. Rio de Janeiro-São Paulo: Record, 2001.

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pesados carros de boi. Já os viajantes, usavam o cavalo ou o trole, que foram “substituídos pelos Ford”,

que “revolucionaram a circulação”. Nos mesmos anos generalizou-se o uso do caminhão, que surgiu nas zonas pioneiras em 19248. Assim, os fazendeiros sentiram a necessidade de abrir estradas e alargar os velhos caminhos, pois descobriram no transporte rodoviário um meio rápido e de menor custo de implantação. Nota-se que até então, a produção de fluidez partia em grande parte de iniciativas não governamentais, denotando os anseios das elites por um meio de transporte mais rápido.

Para expressar esta idéia, tomaremos emprestada a seguinte afirmação baseada em Barat (1978), que fizemos em recente artigo9:

A chegada mais sistemática dos primeiros automóveis e caminhões e a abertura de novas estradas com melhoramento dos antigos caminhos, deram à elite brasileira da época, uma certa ‘crença em que o bom governo seria aquele que promovesse a expansão acelerada da infra-estrutura rodoviária’. Daí em diante houve uma herança desta concepção pelos demais governos, que achavam que através das ligações rodoviárias haveria automaticamente aumento da produção, do emprego e renda, transformando o investimento no setor rodoviário em ‘um fim em si mesmo do qual dependeria o dinamismo econômico de regiões inteiras’. Caminhões, ônibus e automóveis, foram inovações tecnológicas que passaram a constituir no imaginário coletivo, modernizações frente à ferrovia, que a partir de então passou a ser considerada como uma representação do ‘atraso’. Isto bastava para justificar os investimentos rodoviarios.10

Em 1926, Washington Luiz, que havia sido Presidente da Província de São Paulo desde 192011 e

posto em prática uma política de desenvolvimento rodoviário com base no 1º Congresso Paulista de Estradas de Rodagem, se tornou Presidente da República. Uma das primeiras frases dita por ele, no discurso da posse foi: “Governar é abrir estradas”. Já em 1926, Washington Luiz conseguiu do Congresso Nacional, a criação do Fundo Especial para Construção e Conservação de Estradas de Rodagem Federais, arrecadado através de impostos sobre consumo de combustíveis e de peças de reposição.

Depois de ter construído a Rio-Petrópolis (69 km), a primeira rodovia asfaltada do Brasil, iniciou a construção da rodovia Rio-São Paulo em 1928 que foi concluída em 1929, aproveitando ao máximo o antigo traçado (80% da estrada só recebeu revestimento primário).

Havia neste momento, uma certa tendência à industrialização que ganhava impulso com as estradas na medida que também impulsionava o rodoviarismo. A economia cafeeira demonstrava sinais de crise, havendo um movimento pela industrialização.

O crash de 29, marcou a aceleração do processo de derrocada da hegemonia das oligarquias, que sucumbiriam frente às classes médias, à burguesia industrial e alguns chefes oligarcas (como Getúlio Vargas) depois da “revolução por cima” de 1930. Esses grupos clamavam pelo fim da política oligarca e da economia do café, para dar lugar à industrialização12.

A prova do fortalecimento do setor industrial é a criação do Centro das Indústrias do Estado de São Paulo (Ciesp) em 1928 e posteriormente, a criação da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) em 193113.

Neste período, a Inspetoria Federal de Obras Contra a Seca, criada em 1909, intensificou o seu projeto de construção de estradas a partir do Plano Rodoviário do Nordeste. Segundo Xavier (2001, p.331) citando Manoel Corrêa de Andrade, isto ocorreu com o intuito de criar postos de trabalho e reter a mão-de-obra local.

No entanto, o que se verificou foi a intensificação dos fluxos migratórios para o Sudeste, centro dinâmico da economia brasileira.

8 MONBEIG, P., 1984, p. l98. 9 SILVA JR, Roberto França & MAGALDI, Sérgio Braz. Formação da estrutura dos meios de transportes modernos e das redes fixas: desdobramentos econômico-territoriais e logísticos em Presidente Prudente-SP. In: Geografia em Atos. Presidente Prudente: Departamento de Geografia, 2001. No prelo. 10 As palavras grifadas são de BARAT, p. 345-346. 11 Naquela época os Estados eram chamados de Província e o Governador era chamado Presidente. 12 WEFFORT, F. 1978, pp. 61-78. Segundo este autor, apesar da crise, o café continuou sendo o principal produto brasileiro para exportação por algum tempo. 13 VESENTINI, J. W., 1986, p.125.

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Neste contexto, aos poucos o Estado brasileiro passa a intervir na economia, investindo cada vez mais em infra-estrutura. O processo de reordenação estatal, prossegue com o Governo Getúlio Vargas, em especial após 1937, promovendo uma centralização político-administrativa, em detrimento dos Estados e municípios.

Em 1937 foi construída a primeira grande estrada do Brasil, a Régis Bittencourt, ligando São Paulo a Porto Alegre, passando por Curitiba. No mesmo ano foi iniciada a construção da Rio-Bahia.

Em 1942, o Brasil dispunha de 240.000 km de estradas, sendo um pouco mais de 1.000 km pavimentadas, ou seja, 0,5%. Quanto aos veículos, havia 197.316 a motor e 411.650 movidos por tração animal em todo o país. Durante a guerra, o ritmo de construção de rodovias foi diminuído devido à restrição de importação de combustíveis líquidos, impedindo a plena utilização de equipamentos motorizados empregados nos trabalhos de terraplanagem.

Com estes empreendimentos, Vargas criou “condições institucionais para uma maior circulação e maior mobilidade da força de trabalho”14. Portanto, a maior capacidade de circulação se deveu à eliminação de barreiras físicas, através da melhor infra-estrutura de circulação e da eliminação de barreiras fiscais dentro do país.

Segundo Xavier (2001, p.33 1):

Ao longo da década de 1930 e início da década de 1940, quando o país conhecia um primeiro crescimento industrial significativo, deslocando o centro dinâmico da economia para o mercado interno, a extensão das estradas foi mais que duplicada. Esse aumento concentrou-se entre os anos de 1930 e l937 [...]

Sobre o momento econômico, Barat (1978, p.9l) afirma:

Com a intensificação do processo de industrialização, a partir da década de 40, alterou-se bastante a estruturação do espaço geoeconômico; do predomínio quase absoluto, de unidades produtivas pequenas e médias, disseminadas pelo espaço geoeconômtco e produzindo para mercados locais e regionais, chegou-se às tendências recentes de concentração industrial no eixo São Paulo-Rio de Janeiro, com mercados de âmbito nacional, à medida que eram implantadas etapas mais avançadas do processo industrial. Com a expansão e diversificação da oferta final de bens, o deslocamento dos fluxos adicionais de bens intermediários e finais passou a ser feito com a participação crescente do transporte rodoviário. A expansão da carga geral justificou a suplementação da capacidade de transporte através das rodovias, surgindo, de início, as primeiras ligações rodoviárias de âmbito interestadual e inter-regional. Muitos investimentos na infra-estrutura rodoviária passaram a objetivar, posteriormente, a função de transporte a longa e média distância, para a consolidação de um mercado nacional, surgindo, na década de 50, as ligações troncais paralelas às ferrovias e ao mar. A implantação de um sistema rodoviário principal acompanhou a consolidação das etapas superiores do processo de industrialização. A substituição de bens anteriormente importados fez-se no sentido dos mais simples — para consumo semi-durável e durável — aos mais complexos insumos básico de bens de capital. As densidades e partidas de carga justificavam, de certa forma, o uso intensivo do caminhão.

Os “Planos de Viação” também revelavam um ímpeto geopolítico da necessidade de integração

territorial evidenciado na figura de Getúlio Vargas. Nos dizeres deste ditador:

“O imperialismo do Brasil consiste em ampliar as suas fronteiras econômicas e integrar um sistema coerente, em que a circulação das riquezas e utilidades se faça livre e rapidamente, baseada em meios de transportes eficientes, que aniquilarão as forças desintegradoras da nacionalidade. O sertão, o isolamento, a falta de contato são os únicos inimigos terríveis para a integridade do país. Os localismos, as tendências centrífugas são o resultado da formação estanque de economias regionais fechadas. Desde que o mercado nacional tenha a sua unidade assegurada, acrescentado-se a sua capacidade de absorção, estará solidificada a federação política. A expansão econômica trará o equilíbrio desejado entre as diversas regiões do país, evitando-se que existam irmãos ricos ao lado de irmãos pobres. No momento nacional só a existência de um governo central, forte, dotado de recursos suficientes, poderá trazer o resultado desejado”15.

14 SEABRA, M e GOLDENSTEIN, L, 1982, p. 39. 15 SCHWARTZMAN, Simon (org.). Estado Novo, um auto-retrato (Arquivo Gustavo Capanema). Brasília: EDUnB, 1982, pp.422-423, citado por COSTAn (1922, 9. 124)

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Na verdade, o modal rodoviário apresentou, entre outras vantagens, o transporte porta a porta, que com grande flexibilidade passou a atender à demanda exigida, atraindo principalmente os fretes de carga geral e alimentos acondicionados em sacaria para atender o mercado interno que ampliava o seu alcance16, principalmente depois do movimento de centralização promovido por Getúlio Vargas, na década de 1930.

Além de envolver operações mais simplificadas de carga e descarga (porta a porta), o transporte rodoviário envolvia relativamente menos mão-de-obra com níveis de remuneração mais baixos devido ao excesso de oferta. Com o transporte rodoviário evitava-se fortes pressões sindicais como ocorria nos setores marítimo e ferroviário, que tinham sindicatos mais consolidados.

Outra facilidade encontrada no transporte rodoviário, é que pelas suas características específicas, oferece maior velocidade e rapidez, além de possuir maior regularidade nos seus deslocamentos, estando submetido a menos avarias. “Assim, os incrementos de carga geral resultantes do processo de industrialização foram deslocados, em grande parte por caminhão, reforçando cumulativamente a expansão rodoviária”. (BARAT, op. cit., p.56)

O uso das rodovias localmente, atendendo à função urbana, não atingia o caráter complementar com os outros meios. Mesmo com uma industrialização incipiente já se notava os “avanços” que as rodovias traziam. Isto motivou a construção de rodovias troncais (como foi o caso da Régis Bittencourt), com a crença de que este era o caminho para o desenvolvimento.

A partir deste período, nota-se no mundo inteiro, principalmente nos Estados Unidos, uma absorção do setor rodoviário de parte do ferroviário e hidroviário, mas não necessariamente levando estes ao colapso, mas, a uma especialização. No entanto, no Brasil, no processo de delineamento dos transportes, houve uma forte expansão do setor rodoviário e um acentuado declínio dos setores ferroviário e marítimo.

O setor ferroviário passou a concorrer com o setor rodoviário no sistema troncal, perdendo com relação ao quesito carga geral, que cresceu muito com o processo de substituição de importações, iniciada na Era Vargas no período de 1930 a 1945, sendo decisivo para a sua derrocada. Desta maneira, segundo Barat (1978, p.23):

O sistema ferroviário brasileiro [...] revelou-se inadequado para responder aos estímulos do intenso processo de industrialização, iniciado a partir da década de trinta. As profundas modificações estruturais da economia brasileira colocaram gradativamente, como elementos mais importantes no movimento geral de carga, os fluxos de bens intermediários e finais para o atendimento do mercado interno. A capacidade instalada e a operação do sistema ferroviário não foram flexíveis ou eficientes para transportar os acréscimos substanciais na oferta final de bens resultantes da industrialização.

No período de eclosão da II Guerra Mundial (1939-45), o sistema ferroviário brasileiro entrou

em decomposição, devido à cessação das importações de peças e acessórios para reposição. Além disto, todo material era importado, não havendo uma preocupação no investimento de indústrias para o setor. (TORLONI, 1990, p. 222)

O conflito mundial levou a Inglaterra a uma crise que se transferiu para o setor ferroviário do Brasil, pois muitas ferrovias eram fruto de capitais ingleses ou associados. Estas companhias não conseguiram manter as estradas de ferro a elas pertencentes, então, o Poder Público passou a processar a aquisição de algumas linhas. (FERREIRA NETO, 1975, p.l23)

Torloni (1990, p.223) explica que após o conflito, um balanço da situação demonstrou que 50% do sistema ferroviário brasileiro, exigiria reconstrução total ao preço de US$ 295 mil por quilômetro. Nos outros 50%, era preciso substituir o leito e a via permanente a US$ 70 mil por quilômetro. Ao passo que a construção de uma rodovia custava US$ 125 mil por quilômetro, “com a vantagem de ficar o material rodante e a parte operacional por conta dos usuários. E o petróleo custava apenas 2 dólares o barril...”

Para a perda de importância do setor ferroviário, também contribuíram: as diferenças de bitolas e as deficiências de traçado, que impossibilitaram a existência de uma rede ferroviária integrada que ligasse

16 BARAT, obra citada, p.348)

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os diversos pontos do território brasileiro. Os elevados custos de implantação, bem como a demora na maturação dos investimentos, também contribuíram para a queda das ferrovias17.

Após a II Guerra Mundial, uma importante parte das reservas cambiais acumuladas durante o conflito, foram destinadas para a aquisição de ativos ingleses das ferrovias obsoletas. Segundo Barat (p.252):

As razões da aquisição foram, em parte, a existência desta disponibilidade de divisas que possibilitaria efetivamente ao Governo Federal centralizar sob seu comando e adaptar a rede marítimo-ferroviária as novas condições de desenvolvimento do país e, em parte, às pressões dos proprietários dos ativos visando reconvertê-los em outras possibilidades de investimento com maior rentabilidade. Por sua vez, o Governo, ao adquiri-los, não estava em condições de operá-los eficientemente, além de herdar o seu obsoletismo. Esta operação deficiente da rede marítimoferroviária acelerou a tendência de modificação na estrutura da demanda pelos serviços de transporte em favor do rodoviano.

Com as divisas adquiridas no período da guerra, o Brasil investiu pesado na construção de rodovias e na importação de veículos automotores. Mais tarde, a implantação da indústria automobilística iria confirmar a tendência “sem volta” dos investimentos rodoviários. Soma-se a esses fatos, o rápido crescimento da oferta final de bens produzidos no Brasil, resultado do dinamismo do setor industrial, que daí em diante, encontraria no estrangulamento dos transportes, o impedimento à obtenção de maiores faturamentos.

Desta forma, as elites empresariais, com ascendente influência política, já no início da década de 40 abordavam em seus discursos a fraqueza da infra-estrutura de base, especialmente siderurgia, combustível e transportes18. Havia também um interesse por parte das elites na expansão da fronteira agrícola, que vai determinar a ocupação de áreas de floresta, possíveis através da abertura de estradas para o escoamento da produção de produtos agrícolas19.

No ano de 1945 foi criado o polêmico Fundo Rodoviário Nacional (mantido durante o Regime Militar), alimentado pelo imposto sobre lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos usados no país. Como o uso destes combustíveis não se restringia aos usuários de rodovias, houve um favorecimento do setor em detrimento do restante da sociedade20.

A partir de 1950, na composição percentual entre os modais de transporte, o rodoviário de carga já aparecia com a participação de 38%, o ferroviário com 29,2% e o de cabotagem com 32,4%21.

Em 1951, a Comissão Mista Brasil/Estados Unidos, elaborou uma política para o desenvolvimento e melhoramento do transporte ferroviário, decorrente de um acordo entre o Governo brasileiro e o BIRD. Esta comissão elaborou 24 projetos de políticas ferroviárias, entre os quais podemos destacar a supressão de linhas antieconômicas22.

Em 1953, foi criada por Getúlio Vargas a Petrobrás, que municiou o desenvolvimento do rodoviarismo no Brasil na medida em que se produziu muito asfalto, facilitando principalmente o serviço de pavimentação23. Além disto, do ponto de vista subjetivo, a criação da Petrobrás incentivou ainda mais o uso de automóveis e caminhões para o transporte de carga. No primeiro ano de funcionamento a

17 Ibidem, pp. 23-24. 18 DINIZ, 1978, p.102. 19 Este discurso se fez mais presente na Ditadura Militar com lemas como “Integrar para não entregar” e “A Amazônia é um lugar de terras sem homens e o Nordeste é um lugar de homens sem terra”. Esta última frase foi dita pelo presidente Médici ao inaugurar a rodovia Transamazônica. 20 Para mais detalhes Cf. Barat, op.cit. pp. 62-71. 21 Brasil. Ministério dos Transportes. Anuário Estatístico dos Transportes, 1970. Este foi o primeiro anuário estatístico elaborado pelo Ministério, através do Serviço de Estatística dos Transportes da Assessoria de Planejamento e Orçamento do respectivo ministério. Para este primeiro anuário, foi elaborada uma série histórica da composição modal a partir de 1950. Os dados referentes ao decênio de 1950 a 1960, foram obtidos através do relatório do BIRD de maio de 1965 e os dados referentes aos anus de 1961 até 1968, foram elaborados pelo Geipot (na época Grupo de Estudos para Integração da Política dos Transportes). O segundo anuário (1971) foi elaborado pelo Geipot. Em 1965, ano em que foi criado o Geipot. Em 1965 a sigla significava Grupo Executivo para Integração da Política dos Transportes, em 1969, passou a significar Grupo de Estudos para Integração da Política dos Transportes e a partir de 1973, passou a ser Empresa Brasileira de Planejamento dos Transportes, o mesmo significado que tem nos dias atuais. 22 FERREIRA NETO, obra citada, p. 124. 23 FERREIRA NETO, obra citada, p. 124.

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Petrobrás produziu 2.500 barris de petróleo por dia, o que era muito pouco ainda, tendo o Brasil que importar grande parte do petróleo consumido.

No período de 1950 a 1954, o transporte rodoviário ascendeu fortemente, chegando a atingir um crescimento de 37%. Entre os anos de 1951-1952 chegou a crescer mais de 20%. Ver gráfico a seguir.

Gráfico 1. O surto do transporte rodoviário de cargas na era Vargas. Participação entre os modais (%)

Em uma conjugação de interesses, Juscelino Kubitschek abordou na sua campanha eleitoral o

slogan “Energia e Transporte”24 e, quando eleito cumpriu “à risca” o compromisso com o empresariado, elaborando um Plano de Metas de caráter desenvolvimentista, no qual os transportes tinham um lugar de destaque.

Diante disto, com relação aos transportes pode-se destacar a expansão das rodovias federais, que foram aumentadas em 15.000 Km (as pavimentadas foram 6.200 Km) de 1956 a 1961. Entre as rodovias construídas estão a Belém-Brasília (2.000 km), a Belo Horizonte-Brasília (700 km), a Goiânia-Brasília (200 km), Fortaleza-Brasilia (1.500 km) e Acre-Brasília (2.500 km)25. Portanto, podemos considerar a construção de Brasília como fundamental para a concretização do transporte rodoviário no Brasil.

Para trafegar nestas novas estradas de rodagem era necessário estimular o uso do automóvel em um país de industrialização tardia, com baixos níveis de remuneração e de economia dependente. Por isto, Juscelino Kubitscheck incentivou o modelo de substituição de importações de automóveis.

Em 1957, foram implantadas a FNM (Fabrica Nacional de Motores), a primeira indústria automobilística do Brasil e montadoras como a Chevrolet e Mercedes Benz, com a intensificação da produção de caminhões e ônibus. A Fábrica Nacional de Motores produzia aproximadamente 2.500 caminhões por ano. Com a instalação de algumas multinacionais do setor, chegou-se a uma produção (de 1956 a 1960) de 154.000 caminhões e ônibus, 61.300 jipes, 53.200 utilitários e 52.000 automóveis de passeio. A indústria brasileira em geral se expandiu, atingindo um aumento de 80% na produção, sendo que a taxa mais elevada ficou por conta das indústrias de equipamentos de transportes com 600%. (VESENTINI, 1986, p.104)

Durante o Governo Juscelino Kubitscheck o setor rodoviário apresentou um crescimento de 15%, principalmente depois da implantação da indústria automobilística, conforme podemos observar no gráfico 2 a seguir:

24 VESENTINI, 1986, p. 127. 25 Ibidem, p. 104

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Gráfico 2. Crescimento do setor rodoviário durante o Governo JK.

O Governo Federal, “tentando” dar uma solução ao contínuo processo de deterioração das

ferrovias brasileiras, encampou 80% delas, criando a Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA) em 1957. As ferrovias integrantes do sistema RFFSA e de administração paulista, passaram então a

absorver grandes subvenções, que chegou em 1969 a 92,7%, sendo que a porcentagem do PIB era de 0,4%, valor que veio declinando desde 1964, cuja porcentagem do PIB foi de 1 ,7%26.

Mesmo as subvenções foram incapazes de evitar a constante deterioração do setor, que continuou em queda na sua participação entre os modais.

Durante a Ditadura Militar manteve-se a opção rodoviária, mesmo com as “tentativas” de melhoria das ferrovias, sendo assim, foram construídos vários quilômetros de estradas de rodagem, frutos de planos de integração nacional e programas de desenvolvimento regionais. Nesse contexto, foram construídas a Transamazônica e outras rodovias de integração na região Amazônica, Nordeste e Centro-Oeste.

Durante os governos de Castelo Branco e Costa e Silva (1964-1969), foram criados o Geipot (ver nota 12) e o Ministério dos Transportes. Neste período, o transporte rodoviário teve um crescimento menor que dos períodos anteriores, atingindo cerca de 4%, conforme demonstrado no gráfico 3 a seguir:

Gráfico 3. O crescimento do Transporte rodoviário nos primeiros anos do Regime Militar. Participação entre os modais

(%).

Em 1970, foi criada pelo Governo de São Paulo a FEPASA (Ferrovias Paulistas S/A), que encampou as ferrovias privadas, juntando-as à Sorocabana que era de propriedade do Governo paulista desde sua construção.

Neste período até 1972 (metade do Governo Médici), as rodovias consumiam cerca de 80% dos recursos destinados a transportes, quando foi criado o I PND (Plano Nacional de Desenvolvimento), o programa rodoviário absorveu 53% dos investimentos, principalmente com grandes rodovias de integração. Apesar disto, houve uma queda de 3% na participação do transporte rodoviário entre os modais, conforme podemos observar no gráfico 4 a seguir:

26 BARAT, obra citada, pp. 24-25.

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FRANÇA, R. Eliminação de “barreiras”: produção de fluidez e circulação no Brasil.

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Gráfico 4. Participação nos modais no Governo Médici (%)

O II PND veio no Governo Geisel (1975-1979), que procurou dar ênfase aos transportes urbanos (metrô e vias expressas), às ferrovias e às hidrovias. Neste plano, o transporte rodoviário acabou ficando com 24,1% e o ferroviário com 22,3% dos investimentos27.

Entre 1980 e 1984 foi lançado o III PND, que deu prioridade às hidrovias (que receberam 32% dos investimentos) e às ferrovias (que receberam 31% dos investimentos em transportes), ao passo que o setor rodoviário recebeu 21%. Neste período, o transporte rodoviário de cargas apresentou uma queda de 7%, conforme gráfico 5, a seguir:

Gráfico 5. Transporte Rodoviário de Carga no Governo Figueiredo. Participação entre os modais (%)

No Governo Sarney (1985-1989), investiu-se 43% em rodovias, 25% em ferrovias e 20% em hidrovias. No entanto, no ano de 1985, o transporte rodoviário de cargas continuou apresentando queda, chegando a 53,6%, se recuperando no ano de 1988, com 56,4% e 1989 com 57,20%28.

A partir de 1987 passou-se a adotar uma política de atração de capitais privados para a construçao de ferrovias.

Na última década, em relação aos anos 1980, houve um leve crescimento do modal rodoviário de cargas, atingindo níveis de participação variando na casa dos 62% (Geipot, 2000).

No geral, na última década, os modais se mantiveram estáveis com a ressalva de que houve uma leve queda dos transportes terrestres e um leve crescimento na participação dos modais dutoviário e aquaviário, que receberam os maiores investimentos públicos, depois do rodoviário, conforme tabela 1, a seguir:

27 Não encontramos dados comparativos entre os modais dos anos compreendidos entre 1977 a 1980. Nos anos de 1975 e 1976, os modais se mantiveram estáveis em relação a 1974, mas já no ano de 1981, o transporte rodoviário de cargas apresentou uma queda de 14%. 28 Não obtivemos dados comparativos entre os modais relativos aos anos de 1986 e 1987.

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3. Considerações finais.

O Brasil, país de industrialização tardia, estruturou seu território a partir de uma lógica diferente dos países do centro da economia-mundo, portanto, as simples comparações a partir de números que mostram que o Brasil é um país onde o transporte rodoviário é predominante, enquanto que outros países possuem uma “racionalidade” em termos de equilíbrio entre os sistemas de transportes, não vai explicar corretamente a formação socioespacial brasileira pelos transportes.

A Europa, no período de primeira revolução industrial, necessitou de ferrovias, enquanto que no mesmo período, no Brasil, foi a atividade cafeeira que necessitou delas. O Brasil se industrializou definitivamente a partir dos anos 1940, necessitando do transporte rodoviário, já que os avanços tecnológicos neste setor eram mais evidentes e acessíveis. Veja que esta situação configura uma defasagem de mais de cem anos.

A ferrovia, verdadeira “coqueluche” do período da primeira revolução industrial, foi espalhada pelo mundo inteiro sobretudo com capital, ferro e carvão ingleses.

Diante disto, Pedrão (1996, p.176) afirma que no contexto da economia mundial do século XIX, o Brasil ressurge como exportador de café, no entanto, o autor enfatiza que o significado principal do país “era como mercado de investimentos de baixo risco”. Em nota da mesma página o autor afirma:

Nesse período, que corresponde ao Segundo Império, o Brasil tornou-se atrativo para investimentos na capitalização de empresas dedicadas à prestação de serviços públicos, em que atuaram como contratistas do governo, portanto, investimentos em que o Estado absorvia os riscos.

Apesar disto, até o ano de 1862 várias concessões para exploração de ferrovias em todo o Brasil

foram dadas com diversos tipos de privilégios e facilitações, mesmo assim, o ritmo de implantação ainda era lento, principalmente para o escoamento de café, pois as ferrovias existentes não davam conta da produção29. Situação esta, que se arrastou por toda a história dos transportes no Brasil, incentivando assim, o rodoviarismo.

O Brasil iniciou o século XX com 500 km de estradas com revestimento macadame30 com um tráfego muito reduzido de viaturas, quase todas movidas por tração animal, enquanto na Europa e nos Estados Unidos, o desenvolvimento da indústria automobilística já se encontrava, como já nos referimos anteriormente, na vanguarda das inovações.

Os primeiros automóveis foram importados no final do século XIX, sendo que poucos tinham acesso. Em 1903 começou o emplacamento de veículos; em 1906 começaram os exames para a obtenção de carteira de motorista e em 1907 foi fundado o Automóvel Clube do Brasil.

Em 1908 foi efetuada a primeira viagem de automóvel entre Rio e São Paulo, cuja estrada havia sido aberta antes de 1822. A viagem realizada pelo conde francês Lesdain levou 33 dias. 29 Segundo Santos e Silveira (2001, p.174): “A produção da fluidez é o resultado de conflitos e cooperações, acordos e negociações, sempre provisórios, entre o Estado e as empresas, na construção e operação de grandes sistemas técnicos. A participação dos governos mundiais (organismos internacionais financeiros) é permanente, viabilizando os emprecndimentos por meio de crédito ou impondo os próprios projetos de engenharia. E os fluxos ferroviários decorrem dessas dinâmicas, que são sempre datadas.” 30 Mac Adam criou o revestimento que leva o seu nome, em 1775. Este revestimento trazia uma camada de 15 a 20 cm de cascalho, recoberta de pedras britadas e areia, regadas e passadas por um cilindro a fim de torná-lo compacto (DERRUAU, 1982, p.l29). Segundo o autor, isto rompeu com a tradição das fundações profundas e do calcetamento”, O revestimento ficou conhecido no Brasil como macadame.

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Em 1917, ano do 1º Congresso Paulista de Estradas de Rodagem, foi registrado um total de aproximadamente 5.000 veículos circulando basicamente no perímetro urbano de Rio de Janeiro e São Paulo que juntas possuíam 90% da frota.

Diante destes episódios, vemos que o automóvel no Brasil tinha um acesso dificultado, pelo fato de ocorrer um atraso na implantação da indústria automotiva no país, porém em plena expansão. Sendo assim, grande parte das atividades desenvolvidas através dos automóveis eram esportivas e de passeio, sendo estes, os principais fatores de investimento, antes do desenvolvimento das atividades agropecuárias no interior do estado de São Paulo, quando aos poucos os veículos automotores passaram a dar conta de cargas mais pesadas. Os automóveis apresentavam rápidas melhorias, juntamente à indústria de pneumáticos. Os caminhões sucessivamente aumentavam sua tonelagem.

Uma carga de três toneladas está em 1925 no limite das possibilidades. Dez anos mais tarde, ultrapassam-se as doze toneladas: um caminhão transportará, daqui a diante, quase tanto como um pequeno vagão de mercadorias. O aumento das velocidades é acompanhado por progressos na sinalização rodoviária e de uma adaptação das estradas (por exemplo, a elevação das curvas e a atenuação do bombeamento central)31.

A segunda revolução industrial, comandada pelos Estados Unidos, inaugurou a era do

automóvel. Indústrias automotivas norte-americanas procuraram consumidores em vários países. Segundo Furtado (1961, p.l5l):

Assim como a indústria têxtil caracterizava a revolução industrial de fins do século XVIII e a construção de estradas de ferro os decênios da metade do século seguinte, a indústria de veículos terrestres a motor de combustão interna será o principal fator dinâmico das economias industrializadas durante um período que corresponde o último decênio do século passado e os três primeiros do presente.

A partir da busca dos elementos de origem na formação do aparato fixo de transporte, podemos

interpretar sobre a atual situação deste setor no Brasil. Desta forma, o que podemos notar é que houve uma confluência entre os interesses imediatistas das elites brasileiras e principalmente, da Inglaterra com o financiamento ferroviário e posteriormente dos Estados Unidos através da exportação de automóveis para o Brasil. Quando o modelo do financiamento ferroviário começou a entrar em declínio juntamente à política agrícola do café, entraram na cena brasileira, empresas norte-americanas que estimularam o uso do automóvel pela “imposição” de um modelo de transporte.

Apesar deste fator, devemos entender que não foi apenas o investimento rodoviário ou o sucateamento das fenovias e hidrovias que levaram o transporte rodoviário a ser predominante, mas a conjugação dos dois fatos, até porque nos momentos de abrupta decadência dos ramos não rodoviários, houve injeções de capitais que não foram suficientes para a retomada do crescimento dessas atividades.

Segundo Barat (op. cit., p.135O) citando Abouchar, o subsídio ao setor rodoviário através de mecanismos indiretos de transferência de recursos oriundos de outros setores da economia, “não foi menos importante, no passado, que o financiamento dos déficits das modalidades não rodoviárias”, que receberam maciças subvenções com o dinheiro direto do tesouro nacional.

Hoje, o modelo de transporte de cargas no Brasil possui distorções que devem ser sanadas, pois no cômputo geral do escoamento da produção há prejuízos. É aí que começam os problemas analíticos, pois se começa a comparar custos de transportes a partir de abstrações, afirmando que “o transporte rodoviário de cargas encarece a produção, pois é o modal mais caro”.

Tendo em vista esta afirmação, questionamos: O transporte rodoviário encarece qual produção? Para responder a esta questão, ratificamos que a afirmação não está totalmente errada, mas não

está totalmente correta. O transporte rodoviário de cargas encarece a produção de produtos como: açúcar, milho, trigo,

soja, minérios, adubo, cimento, combustíveis, café, etc. Porém, para produtos como autopeças, confecções, eletro-eletrônicos, produtos de papelaria, produtos para informática, produtos alimentícios industrializados, utilidades domésticas, medicamentos, cosméticos, entre outros, devemos relativizar, pois estes produtos demandam partidas constantes e fracionadas, que o transporte ferroviário e aquaviário não podem oferecer. 31 DERRUAU, M. p.129

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Os agentes transportadores rodoviários circulam em rodovias com péssimas condições de uso. Segundo a CNT (Confederação Nacional do Transporte) com base na sua 6ª Pesquisa Rodoviária (2001), 68,8% das rodovias brasileiras foram reprovadas, ficando conceituadas entre péssimo, ruim e deficiente. As rodovias públicas estão em um péssimo estado de conservação e as rodovias privatizadas, que possuem um “bom” estado de conservação, cobram elevadas tarifas de pedágio que são incorporados aos preços dos fretes, ou seja, são repassados ao consumidor. Segundo Portella (2000), nos últimos quatro anos as viagens no Estado de São Paulo, ficaram 45% mais caras32, ao passo que, no mesmo período, a inflação medida pela Fipe ficou em 25,88%.

Diante destas condições, pensamos que não se pode deixar de investir alto na melhoria da circulação rodoviária. Apesar de ter recebido os maiores investimentos na última década, devemos frisar que não conseguimos visualizar melhorias significativas e ficamos com a seguinte indagação: Será que o dinheiro está realmente sendo destinado para o transporte rodoviário?

Segundo o Geipot, os investimentos no transporte rodoviário vem sendo destinados para aplicações em construção, pavimentação, melhoramento de rodovias, terminais rodoviários, estudos e projetos, desapropriações, indenizações e duplicação de rodovias.

Nota-se que a maior parte das aplicações são as chamadas “tapa-buracos”, que apenas amenizam a situação precária do setor.

Desta forma, fazemos outras perguntas: Se o dinheiro na última década foi investido idoneamente, qual é a solução para a melhoria dos sistemas de transporte? Deve-se buscar melhorias no setor rodoviário, onde atuam 12 mil empresas transportadoras e 350 mil transportadores33 autônomos , que respondem por cerca de 3,4% na participação do PIB, ou investe-se mais em outros sistemas de transporte?

Diríamos de antemão, que deve haver um equilíbrio nos investimentos entre os modais, com planejamento e idoneidade, algo que faltou nesta breve história dos transportes de cargas no Brasil contemporaneo. 4. Referências Bibliográficas. BARAT, Josef. A Evolução dos Transportes no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE/LPEA, 1978. BRASIL. Ministério do Planejamento e Orçamento. Brasil em Números. v.6. Rio de Janeiro: IBGE, 1998. BRASIL. Ministério do Planejamento e Orçamento. Pesquisa Anual do Transporte Rodoviário. Rio de Janeiro: v.9, IBGE, 1998. BRASIL. Ministério dos Transportes. Anuário Estatístico dos Transportes. Secretaria Geral de Planejamento e Orçamento. Serviço de Estatística dos Transportes, 1970. BRASIL. Ministério dos Transportes. Anuário Estatístico dos Transportes. Geipot, 1977, 1986, 1992-1993, 1997. BRASIL. Ministério dos Transportes. Anuário Estatístico dos Transportes. Geipot, 2000. In: homepage: http://www.geipot.gov.br. CONTEL, Fábio Betioli. Os sistemas de movimento do território brasileiro. In: SANTOS, Milton & SILVEIRA, Maria Laura. O Brasil. Território e Sociedade no início do século XXI. 2ed. Rio de Janeiro-São Paulo: Record, 2001. COSTA, Wanderley Messias da. Geografia Política e Geopolítica. São Paulo: Edusp/Hucitec, 1992. DE MASI, Domenico. A sociedade pós-industrial. 3 ed. São Paulo: Senac, 2000. DERRUAU, Max. Geografia Humana. v. 2,3 ed. Lisboa: Presença, 1982. 32 No Estado de São Paulo, as concessionárias de rodovias administram 3,5 mil Km, equivalentes a 15% das estradas do Estado. 33 Das empresas transportadoras, 95% são pequenas e médias. Além desses agentes, 50 mil empresas transportam a própria carga. NTC (Associação Nacional do Transporte de Carga)

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PADRÕES SOCIOECONÔMICOS E CENTRALIDADE URBANA: CATUAÍ SHOPPING CENTER E ZONA NORTE DE LONDRINA∗∗∗∗

Willian Ribeiro da SILVA∗∗∗∗∗∗∗∗

Maria Encarnação Beltrão SPOSITO∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗ Resumo: Este artigo tem por objetivo principal a análise do processo da redefinição da centralidade na/da cidade de Londrina - PR, com intuito de explicitar a segmentação do espaço urbano, que apresenta um considerável nível de fragmentação. Para tanto, apresenta-se um estudo sobre os processos de descentralização e de (re)centralização dispersa, para o qual foram escolhidas duas áreas centrais de Londrina, que se diferem em relação à camada social a que atendem e quanto à sua escala de atração de consumidores. Estudamos o Catuaí Shopping Center, que expressa uma centralidade de escala interurbana, que atrai população de camadas sociais mais abastadas e a Zona Norte, que é constituída de conjuntos habitacionais populares, construídos nos anos de 1970, possuindo uma população de aproximadamente 100.000 habitantes, apresentando uma concentração de estabelecimentos comerciais e prestadores de serviços bastante elevada, atendendo à população local. Portanto, este estudo realiza uma análise comparativa entre essas duas áreas centrais, avaliando seus graus de centralidade e seus padrões socioespaciais. Palavras-chave: Centralidade urbana; Londrina; padrões socioespaciais; estruturação urbana; áreas centrais; poli(multi)centralidade. Resumen: Este artículo objetiva analizar el processo de de definición de la centralidad en/de la ciudad de Londrina - PR, con el propósito de explicar la segmentación del espacio urbano, que presenta un nivel considerable de fragmentación. Para esto, presentamos un estudio de los procesos urbanos de descentralización y de (re)centralización dispersa, para el que fueron seleccionadas dos áreas centrales de Londrina, cuya diferencia se relaciona con el estrato social al que atienden así como sua escala de atracción. Estudiamos el Catuaí Shopping Center, que expresa centralidad de escala interurbana, que atrae a la población de los estratos sociales más favorecidos y a la Zona Norte, la cual se constituye de conjuntos de viviendas de protección oficial, construidos en los años setenta y con una población actual de aproximadamente 100.000 habitantes. Presenta además una concentración de establecimientos comerciales y de servicios bastante elevada, que atiende a la población local. Por tanto, la tendencia de nuestro estudio es el análisis comparativo de áreas centrales, avaluando los grados de centralidad y sus patrones socioespaciales. Palabras-llave: Centralidad urbana; Londrina; patrones socioespaciales; estruturación urbana; áreas centrales; poli(multi)centralidad. 1. Introdução.

O presente artigo visa levantar a discussão sobre as relações existentes entre as características

socioespaciais e a centralidade, de modo a ressaltar que a territorialização de atividades funcionais é um dos elementos fundamentais na determinação dos fluxos internos na cidade. Serão caracterizadas as duas áreas estudadas - Catuaí Shopping Center e Zona Norte - para, então, analisarem-se os padrões

∗ Texto publicado e em 2003 (n.10 v.2), produzido a partir das discussões apresentadas no capítulo 5 da dissertação de mestrado intitulada “Descentralização e redefinição da centralidade em e de Londrina”, defendida junto ao Programa de Pós-graduação em Geografia da FCT/UNESP, no ano de 2002, com financiamento da FAPESP. ∗∗ Doutor em Geografia pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia da FCT/UNESP, Campus de Presidente Prudente-SP. Membro do GAsPERR (Grupo de pesquisa “Produção do Espaço e Redefinições Regionais”). Atualmente professor da UFRJ. E-mail: [email protected] ∗∗∗ Professora do Departamento de Geografia da Universidade Estadual Paulista, campus de Presidente Prudente-SP. Membro do GAsPERR. E-mail: [email protected]

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SILVA, W. R; SPOSITO, M. E. B. Padrões sópcio-econômicos de centralidade urbana: Catuaí Shopping Center e Zona Norte de Londrina.

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socioespaciais dos estabelecimentos instalados nas mesmas e suas influências na redefinição da centralidade na cidade de Londrina. 2. Catuaí Shopping Center.

Trata-se de um empreendimento que foi inaugurado no final do ano de 1990, construído pela Construtora Khouri, de capital local, associado a: Catuaí Construtora, Banco Pontual, Banco Multi Stock, Badressa Participações, Ceres Fundação, Fundação Braslight, PRHOSPER, Instituto Rhodial, Prebeg Caixa e Regius Sociedade. Para a realização desse empreendimento, demandaram-se investimentos da ordem de 55 milhões de dólares, oriundos da Caixa Econômica Federal e dos fundos de previdência privada da Light e da White Martins.

Possui uma área total de 92.266 metros quadrados, sendo 57.726 metros quadrados de área construída, com 180 lojas, das quais, quatro são lojas âncoras, cinco de artigos do lar, 40 de artigos diversos, três de conveniência, 83 de vestuário, 16 lanchonetes, três restaurantes, cinco cinemas, agência dos correios, nove estabelecimentos prestadores de serviços gerais, uma agência bancária, sete caixas eletrônicos de outros bancos e estacionamento para 2.300 automóveis34.

É, portanto, um empreendimento de grande porte que foi construído numa área onde, antes de sua construção, produzia-se soja. Havia poucas condições favoráveis aos fluxos entre essa área e o Centro Principal de Londrina, ou seja, era um setor do entorno urbano de difícil acessibilidade. Para a viabilidade de tal empreendimento, foi necessária a resolução de tal problema, com a duplicação de uma via de acesso, a Avenida Madre Leônia Milito e a construção de um viaduto que facilitou a conexão com a PR - 445, que serve de acesso à Curitiba e aos municípios da região de Londrina e do interior do Estado de São Paulo.

Reforçando o que Lúcio Kowarick chama de “contradição urbana”, os custos da construção de tais obras foram arcados, em sua maior parte, pelo Estado do Paraná, no Governo de Álvaro Dias, pela Prefeitura Municipal de Londrina, na administração de Antônio Belinatti, e em menor parte pelos empreendedores, evidenciando que a produção do espaço urbano se faz de forma coletiva, mas sua apropriação se faz de forma privada e seletiva.

As palavras de Alfredo Khouri, o empreendedor do Shopping, em entrevista ao jornal Mais Londrina, de 29 de junho de 2001, são muito ilustrativas das relações entre o público e o privado:

Enfrentamos muitas dificuldades porque não dava para duplicar a avenida de acesso, a Madre Leônia, e não havia dinheiro do Governo do Estado [...]. Eu e o então prefeito Antônio Belinati fomos até Curitiba para falar com o Álvaro Dias [...]. Álvaro tinha a vontade, mas não os recursos. E entendia como bom administrador, que é preciso apoiar os empresários em seus empreendimentos, principalmente disponibilizando a infra-estrutura necessária. E nós trouxemos o progresso para essa região.

Percebe-se, então, que há uma forte ação, por parte das elites, pressionando o poder público para

atuação em seus proveitos e, para isto, se utiliza a ideologia, ou seja, criam-se argumentos para justificar a apropriação de recursos públicos, em nome do que é comumente chamado de “progresso da região”, quando, no entanto, as metas eram os lucros dos empreendedores. Acrescenta-se, ainda, que o Shopping recebeu da Prefeitura uma isenção, por 10 anos, de IPTU, o que gerou e gera muitos protestos por parte dos comerciantes de outras áreas e que vem sendo contestado atualmente pelos proprietários do Royal Plaza Shopping, que também reivindicam uma isenção semelhante.

Gaeta (1992, p.55) contribui com a análise ao apontar uma estreita relação entre os planos de implantação de shopping centers e os investimentos públicos, pois:

34 Nota-se que o estacionamento do Catuaí Shopping Center foi ampliado no início do ano de 2002, aumentado consideravelmente sua capacidade.

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A gerência cientifica aplicada à construção de espaços imobiliário-comerciais, como os shopping centers, parte de uma ampla programação do espaço, na qual a contribuição do Estado tem sido importante. Esta ocorre de forma a limitar o peso das determinações locais, o que garante a esses empreendimentos uma certa (e crescente) “autonomia do capital” em relação à herança da localização. Permite ainda uma ampliação do controle privado sobre as chamadas externalidades.

A análise de como as relações se estabeleceram e como os investimentos foram realizados para a

construção do Catuaí Shopping Center, demonstra que tal empreendimento é de total interesse econômico dos proprietários e não possui qualquer cunho social que justificasse investimentos públicos, mas a partir dos aparelhos de dominação do Estado, isto se faz e se legitima através da idéia de progresso e desenvolvimento econômico.

Atualmente, com toda a infra-estrutura implantada na área do shopping, há o surgimento de vários condomínios horizontais de elevado padrão residencial, implementados nas glebas de terras que constituíram o “estoque” das áreas que se valorizariam com a construção deste grande equipamento comercial e de serviços. Atualmente, estes loteamentos fechados são lançados associados à idéia de status social e melhor qualidade de vida35. Os preços da terra nessa área variam de 20 a 100 reais (o metro quadrado).

O Catuaí Shopping Center conta com um fluxo de 180.000 veículos e uma freqüência de 500.000 pessoas por mês, expressando uma centralidade de escala intra-urbana e interurbana, ou seja, sua atração

35 Para tal cria-se, no imaginário da população, a idéia, por exemplo, de que a área não possui os problemas da cidade, portanto, se assemelha aos lugares “tranqüilos” da zona rural.

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extrapola os limites de Londrina e alcança a população de outras cidades da região e de outros estados, como será visto adiante. 3. Zona Norte de Londrina.

A Zona Norte de Londrina é resultado de uma política habitacional implementada em escala federal, estadual e municipal, a partir da articulação entre esses três níveis do poder executivo, num momento que houve a confluência da crise no Brasil, a reorganização da rede urbana brasileira e a diminuição radical do plantio da cultura do café na Região Norte do Paraná, com a conseqüente intensificação da migração rural-urbana, pois, com a introdução de novas culturas mecanizáveis no campo e com o aumento da concentração da propriedade da terra, muitos trabalhadores agrícolas, foram obrigados a se mudarem para as cidades.

A cidade de Londrina foi uma das áreas de atração desta população, em parte, pela propaganda que se fazia da prosperidade da cidade e pela ilusão de ser fácil arrumar empregos e “ganhar” casas, fato que atraiu não apenas trabalhadores da zona rural, mas, também, de outras cidades da região.

Porém, com a chegada dos trabalhadores às cidades, intensificada a partir dos anos de 1970, houve uma escassez de oferta de emprego, e parcela deles, que não possuía qualificação para os trabalhos urbanos, ficou desempregada e terminou não tendo outra opção, produzir suas moradias na cidade de forma precária, ou seja, em áreas normalmente irregulares e em condições baixas de higiene.

No entanto, como já afirmado, havia uma confluência de interesses e ações envolvidos na construção de habitações, para buscar a suavização da crise que se instaurava. Nesse contexto é importante considerar a ação do então prefeito Municipal, Antônio Casemiro Belinatti, que, como já mencionado, realizou uma administração de caráter populista, fato que acabou por aumentar a atração de pessoas, pois se criou a imagem de que, em Londrina, não haveria problemas com a falta de moradia, pois “o prefeito” a forneceria a todos os habitantes36.

A crise de moradia é inerente ao desenvolvimento da cidade capitalista, como se verifica pelas reflexões já elaboradas no século XIX:

Uma sociedade não pode existir sem crise de moradia, quando a grande massa dos trabalhadores só dispõe exclusivamente de seu salário, quer dizer, da soma dos meios indispensáveis à sua subsistência e à sua reprodução; quando as novas melhorias mecânicas retiram o trabalho das massas dos operários: quando crises industriais violentas e cíclicas determinam, por um lado, a existência de um verdadeiro exército de reserva de desempregados e, por outro lado, jogam momentaneamente na rua a grande massa dos trabalhadores: quando estes estão amontoados nas grandes cidades e isto, num ritmo mais rápido do que o da construção de moradias nas circunstâncias atuais e que, por mais ignóbeis que sejam os pardieiros, sempre se encontram locatários para eles: quando, enfim, o proprietário de uma casa, na qualidade de capitalista, tem não só o direito mas também, em certa medida, graças à concorrência, o dever de obter de sua casa, sem escrúpulos, os aluguéis mais altos. Neste tipo de sociedade, a crise de moradia não é um acaso, é uma instituição necessária; ela não pode se eliminada, bem como suas repercussões sobre a saúde, etc., a não ser que a ordem social por inteiro, de onde ela decorre, transforme-se completamente (ENGELS citado por CASTELLS, 2000, p. 221 - 222).

Desta forma, deve-se entender a crise da moradia como uma instituição, ou seja, como algo

inerente às determinações da reprodução de capital, e não apenas decorrente da cobrança de aluguéis, como afirma Engels, mas também de suas etapas de produção, pois através de vários mecanismos, o capital imobiliário, com a participação e/ou conivência do poder público, implanta estratégias de produção de moradias, nos diferentes padrões sociais, deixando a existência de áreas denominadas “vazios urbanos”, como forma de valorização.

No entanto, segundo Castells (200, p. 230) a produção de moradias sociais é de exclusivo encargo do poder público por não ser uma prática suficientemente rentável, pois, 36 Utiliza-se a expressão “o prefeito forneceria a moradia” pelo fato de que a população foi levada a acreditar que quem “dava” as casas era o prefeito e não que elas eram construídas com recursos públicos.

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Não há praticamente produção privada de moradia “social”, ao mesmo tempo em que encontramos indústrias que fabricam bens de consumo destinados a todas as faixas de renda. Se isto é verdade, podemos supor que a rentabilidade dos capitais neste setor é bem menor que nas outras indústrias, a tal ponto que são desencorajados e torna-se necessária uma intervenção pública maciça para limitar os prejuízos.

Por tal motivo, a produção de habitações populares fica a cargo do poder público, seguindo os

pressupostos da ideologia capitalista, pois conforme afirma Chauí (1984), sem a estrutura do Estado, que é tido como uma instituição “neutra”, não haveria a ordem de dominação capitalista.

Em Londrina, houve um crescimento populacional e uma intensa construção, principalmente na Zona Norte, de conjuntos habitacionais populares, com a produção, nos anos de 1970, de 8.369 unidades residenciais em conjuntos habitacionais chegando ao total, no ano de 1996, de 15.641 unidades residenciais, segundo dados da COHAB - Londrina (1996).

Com esta produção, houve o surgimento de um estoque de moradias numa área distante do Centro Principal, com a constituição de vazios urbanos nos espaços intermediários, nos quais a implantação de infra-estrutura, por parte do poder público, serviu para a valorização dessas terras, por meio de práticas especulativas.

Com isso, a Zona Norte de Londrina, que ficou conhecida popularmente por “Cinco conjuntos” ou, mais recentemente, “Cincão” passou a receber a instalação de meios de consumo coletivo e, devido à distância em relação ao Centro Principal, uma concentração de estabelecimentos comerciais e prestadores de serviços, constituindo aos poucos, um subcentro.

Vários autores afirmam que os subcentros se constituem enquanto núcleos secundários, como “miniaturas” do Centro Principal, e, portanto, não possuem diferenças em relação a este, com exceção da escala, como demonstram as afirmações que seguem.

Para Corrêa (1995,p.51):

Os núcleos hierarquizados são uma réplica intra-urbana da rede regional de localização centrais. O subcentro regional constitui-se em uma miniatura do núcleo central. Possui uma gama complexa de tipos de lojas e de serviços, incluindo uma enorme variedade de tipos, marcas e preços de produtos. Muitas de suas lojas são filiais de firmas da Área Central, e, à semelhança desta, porém em menor escala, o subcentro regional constitui-se em importante foco de linhas de transporte intra-urbano. (destaque nosso).

E Villaça (1998, p. 293):

[...] o subcentro consiste, portanto, numa réplica em tamanho menor do centro principal, com o qual concorre em parte sem, entretanto, a ele se igualar. Atende aos mesmos requisitos de otimização de acesso apresentados anteriormente para o centro principal. A diferença é que o subcentro apresenta tais requisitos apenas para uma parte da cidade, e o centro principal cumpre-os para toda a cidade. (destaques nossos).

Porém, o crescimento/aparecimento dos subcentros está vinculado á própria estruturação do

espaço urbano, entendido enquanto conjunto, pois, mesmo que se observe dinâmicas de fragmentação, mantêm-se as articulações entre as partes. Quando Corrêa (1995) afirma que o subcentro é uma “miniatura da Área Central” está considerando que esta parcela do espaço urbano é vinculada e dependente de fluxos com o Centro Principal.

Por isso, entende-se que os subcentros são formados, inicialmente, por estabelecimentos de proprietários locais, visando atender a uma demanda local, gerado pelo consumo específico de uma população com características homogêneas, que difere da teórica pluralidade socioeconômico dos freqüentadores do Centro Principal.

Quando se desenvolvem, gradativamente passam por um estágio de substituição e/ou incremento de filiais dos estabelecimentos do Centro Principal (daí a expressão “miniaturas”). No entanto, de acordo com o crescimento da área e com a dinâmica dos agentes envolvidos, há uma penetração de capitais externos à área que modificam as lógicas de atuação e localização dos estabelecimentos e geram uma redefinição na forma urbana e na expressão de centralidade desses subcentros.

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Pelo fato de os subcentros atenderem a uma parcela particular (local) na âmbito de uma cidade e, ainda, de que os espaços urbanos são caracterizados por diferenciação e segmentação socioeconômica e funcional, o que pode levar à emergência de segregação e exclusão socioespacial temos parcelas de população diferenciadas para consumir nos subcentros, sendo esta uma distinção crucial entre essas áreas e o Centro Principal, que, em princípio, atende à população de toda a cidade.

Desta forma, encontra-se uma diferenciação em relação à escala, mas, também, em relação aos padrões socioespaciais, entre os subcentros e o Centro Principal da cidade. Com isso, considera-se um equívoco entender tais formas espaciais apenas como réplicas menores do Centro Principal, quando se trata de áreas que se constituem a partir das características econômicas da população local e dos conflitos e contradições decorrentes das atuações dos capitais locais, municipais e regionais, que irão produzir um espaço urbano diferenciado, porém, articulado internamente.

Acrescenta-se a este fato, a presença dos processos de fragmentação sóciopolítico-espacial do espaço urbano, que produzem, cada vez mais, padrões socioespaciais diferenciados. Como afirma Souza (200, p. 214),

[...] o que está em jogo, na esteira da fragmentação do tecido sóciopolítico-espacial, é a própria cidade em seu sentido usual – ou seja, como uma unidade na diversidade, em que as contradições de classe, as tensões de fundo étnico e a segregação residencial não eliminam a percepção da cidade como uma entidade geográfica coerente.

De início, por se tratar de uma área popular, portanto, de moradores que possuem uma menor

mobilidade devido às dificuldades de transporte, os estabelecimentos comercias e prestadores de serviços que foram se instalando eram de propriedade dos moradores locais, que os abriam nas frentes ou nos quintais de suas casas, buscando abastecer a população com produtos de primeira necessidade, principalmente alimentos.

Porém, na medida em que houve a implantação de infra-estrutura, a área foi sendo valorizada, e houve a instalação de filiais dos estabelecimentos do Centro Principal de Londrina. Atualmente, pode-se encontrar a instalação de um hipermercado, com lojas de suporte, uma agência bancária e dois caixas eletrônicos de outros bancos. Este hipermercado é de capital externo, oriundo de Cascavel - PR que, recentemente, instalou outras duas lojas em Londrina e em outras cidades do Estado do Paraná. Sua instalação gerou uma redefinição do padrão da subcentralidade local.

Atualmente, há uma concentração, em grande número e em grande variedade, de estabelecimentos na Zona Norte de Londrina, sobretudo, na Avenida Saoul Elkind, que possui a maior densidade de atividades comerciais e de serviços. Isto termina por produzir uma valorização dos imóveis que se localizam mais próximos desta avenida, criando certa diferenciação nos padrões residenciais locais.

A tabela 01 mostra a variedade dos estabelecimentos existentes na área, tabulados a partir da proposta de classificação de Muller (1958), de Cordeiro (1980), do Censo de comércios, serviços e indústrias do IBGE (1980) e de pesquisa de campo. Percebe-se haver uma predominância de estabelecimentos relacionados ao comércio de alimentos e de bebidas, e de prestação de serviços. Isso mostra que muitas das características da implantação e ocupação, ainda, estão presentes, acrescentando-se que muitos destes estabelecimentos ainda estão funcionando juntos ou na mesma edificação que tem uso residencial. Tabela 1 - Atividades Econômicas na Zona Norte de Londrina.

Atividades Número de Estabelecimentos

Percentual

Comércio 384 48,9

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Lanchonetes, restaurantes, bares, etc. 216 27,4 Comércio de armarinhos, fotos, informática, livrarias papelarias, etc.

71 9,02

Materiais de Construção; elétricos; peças de veículos.

44 5,59

Artigos pessoais e para casa (Vestuário, louças, móveis, etc.)

23 2,92

Abastecimento, alimentos (açougues, supermercados etc)

10 1,27

Farmácias e perfumarias 9 1,14

Comércio atacadista 6 0,76

Outros 5 0,63

Serviços 335 42,56 Oficinas (mecânica, costura, alfaiataria, transporte etc.)

224 28,46

Instituições culturais, sociais, políticas e religiosas

35 4,44

Serviços de estética/salões de beleza/ cabeleireiros/academias de ginástica

33 4,19

Serviços relacionados à saúde (clínica odontológica, fisioterapia, posto de saúde, hospital etc.)

23 2,92

Profissionais Liberais e imobiliárias37 16 2,03 Finanças (agências bancárias e caixas eletrônicos)

4 0,50

Indústrias 22 2,79

Uso misto 46 5,84

Total 787 100

Fonte: Prefeitura Municipal de Londrina, 2000; Editel, 1999-2000, 2001-2001; Pesquisa de campo, 2001.

Pode-se verificar uma expressiva concentração de estabelecimentos na Zona Norte, em três setores: - uma maior concentração a leste, em área conhecida por Cinco Conjuntos, - uma concentração com características diferentes na Avenida Gines Parra, e - outra mais a oeste, nas proximidades do Terminal de Transportes Coletivos Urbanos do Vivi Xavier, no Conjunto Vivi Xavier.

Pode-se apreender algumas relações a respeito da concentração dos estabelecimentos nestas áreas as quais irão reforçar vários aspectos que já foram mencionados anteriormente. A seguir, o destaque será dado à presença de fluxos de transportes coletivos que reforçam a expressão de centralidade, já que se tratam de áreas freqüentadas por população de poder aquisitivo reduzido.

Analisando o percurso do transporte coletivo urbano na Zona Norte e sobrepondo suas informações com a territorialização das atividades funcionais da Zona Norte, encontram-se as três áreas, anteriormente mencionadas, com uma intensidade expressiva de linhas de ônibus, o que significa uma movimentação maior de pessoas e, consequentemente, uma maior facilidade para visibilidade das mercadorias a serem comercializadas ou dos serviços a serem oferecidos. Essa maior concentração de estabelecimentos reforça a centralidade e atrai mais pessoas, estabelecendo um movimento dialético, como afirma de Sposito (1991, p. 10), “De uma forma ou de outra, os subcentros estão em áreas de densidade habitacional alta, constituindo-se centros ‘regionais’ no interior da estrutura urbana, e pequenos nódulos de convergência de transporte coletivo” (destaque nosso).

37 Incluímos as imobiliárias como atividade de serviços por se tratar, além do comércio de imóveis, dos aluguéis dos mesmos.

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Esta relação é fundamental para o entendimento da centralidade junto a Avenida Gines Parra, no Conjunto Habitacional Maria Cecília, que, em certo ponto, é uma área relativamente próxima da Avenida Saul Elkind, onde há maior concentração comercial e, portanto, maior centralidade.

No entanto, percebe-se que em função das pessoas que residem no Conjunto Maria Cecília utilizarem-se basicamente o transporte coletivo para se deslocarem em suas práticas cotidianas, necessitam freqüentar e permanecer na Avenida Gines Parra para embarcar e desembarcar do ônibus, o que facilita a prática do consumo na área, portanto, constitui-se num nódulo de convergência que reforça a expressão da subcentralidade local. Os estabelecimentos localizados na Avenida Gines Parra, mesmo sendo variados, são, basicamente, comerciais voltados ao abastecimento alimentar, pois fazem parte das compras rápidas feitas no cotidiano, sendo que as demais compras são praticadas, principalmente, na Avenida Saul Elkind. 4. Características dos estabelecimentos e suas estratégias.

Para se analisar os padrões socioeconômicos relacionados ás áreas em estudo faz-se necessária uma abordagem das características dos estabelecimentos presentes nas duas áreas, pois há uma relação intrínseca entre esses aspectos: de acordo com o padrão de estabelecimentos, tem-se um perfil de consumidor, assim como, de acordo com o perfil do consumidor, tem-se um padrão de comércio e serviços. Para avançar nessa análise é necessário estudar o processo de formação das áreas, para se conhecer as características iniciais que possibilitaram a emergência de uma expressão de centralidade. Como já foram apresentadas as duas áreas, passaremos a destacar as características dos estabelecimentos nelas presentes.

Foram realizadas entrevistas junto aos estabelecimentos comercias e prestadores de serviços das duas áreas, em número de dez em cada área, de forma a se realizar uma análise de cunho qualitativo que fornecesse elementos que pudessem esclarecer a dinâmica do processo de descentralização e de redefinição da centralidade em e de Londrina, a partir do discurso de alguns dos agentes responsáveis por essas dinâmicas. Apresentar-se-á os resultados obtidos de forma comparativa para serem avaliadas as diferenças e/ou similaridades entre as duas áreas.

Sobre o número de funcionários dos estabelecimentos das duas áreas, encontrou-se uma diferença significativa. Dos dez estabelecimentos entrevistados na Zona Norte, três não possuem funcionários contratados e as atividades são realizadas apenas com mão-de-obra familiar, quatro possuem entre um e quatro funcionários e nenhum mais que dez funcionários. Diferentemente, em relação aos estabelecimentos que foram entrevistados no Catuaí Shopping Center, nenhum funciona apenas com mão-de-obra familiar, quatro têm até cinco funcionários e dois tem número superior a 50 funcionários. Este fato evidencia a diferença de porte dos estabelecimentos, pois mostra que os da Zona Norte, possuem ainda, uma forte característica herdada de sua origem, ou seja, daqueles moradores que abriram uma loja ou um bar em frente ás suas casas e, por não terem concorrência na área foram se desenvolvendo juntamente com ela, constituindo um comércio de vizinhança. Esta prática é muito comum na formação de subcentros de características populares. Já no Catuaí Shopping center, a lógica conduz á implantação de estabelecimentos que implicam em elevados investimentos.

Quanto aos motivos de se instalarem nas áreas, percebeu-se novamente esta tendência, pois os entrevistados da Zona norte, na grande maioria, residem na área, e iniciaram seus negócios por não haver nenhuma concorrência. Muitos dizem que apostam na área pelo fato de possuir uma grande população. Encontrou-se também, pessoas que moram em outras áreas e possuem outros estabelecimentos comerciais e de serviços, sendo esta tendência representativa de uma nova etapa no processo de consolidação e desenvolvimento da área, como atesta esse trecho de entrevista:

Escolhi os “Cinco Conjuntos” por ser um lugar bom. As pessoas com menor poder aquisitivo pagam melhor. O comércio daqui é forte. Está dentro de Londrina, Mas é uma outra cidade. Aqui, as pessoas têm menos condições financeiras, mas pagam melhor (Christiane, proprietária da Auto Escola Christiane, 2002) 38.

38 Entrevista realizada em março de 2002.

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Porém encontrou-se, também, estabelecimentos de grupos em outro estágio de desenvolvimento, com maiores graus de capitalização, pertencentes a empresas estrangeiras, como o caso da Farmácia Drogamed Saul Elkind, de uma multinacional do Chile (Rede FASA - Rede de Farmácias Ahumada do Chile), que se instalou na área, em dezembro de 2001 e possui sete funcionários.

Já no Catuaí Shopping Center, os estabelecimentos possuem sempre um padrão tipicamente capitalista, como se pode perceber pelas características das respostas. Encontrou-se algumas franquias que, inclusive, valorizam os lugares de abertura, como foi o caso das lanchonetes “M´cDonald´s” e Casa do Pão de Queijo, servindo como âncoras. Em ambos casos, os proprietários são oriundos de São Paulo e nem conheciam Londrina quando as franqueadoras apontaram-na como um local apropriado para a instalação desses empreendimentos.

Fiz a proposta de abrir uma franquia com a Casa do Pão de Queijo; gostaria de abrir uma loja em São Paulo, mas lá a espera seria maior, em torno de dois anos, então, quando apareceu a proposta de abrir em Londrina, vim para conhecer a cidade e o shopping, gostei do movimento e me interessei (Anselmo, proprietário da lanchonete Casa do Pão de queijo, 2002)39.

Pelo fato de alguns dos comerciantes entrevistados possuírem lojas, também, no Centro Principal

de Londrina, torna-se possível uma análise dos fatos que propiciam a ocorrência do processo de descentralização, ou seja, da abertura de outros estabelecimentos em outras áreas da cidade, no caso, o Catuaí Shopping Center. Para tal efeito, serão abordados os motivos apontados como definidores da preferência de abertura de loja no shopping e, posteriormente, apresentar-se-á, uma análise comparativa entre o desenvolvimento das lojas no shopping e em ouras áreas, para avaliar as tendências atuais do processo de redefinição da centralidade.

Alguns lojistas, tradicionais em Londrina, ou seja, que possuem lojas há mais de 20 anos, receberam convites/propostas para abrirem lojas no shopping, fato que foi uma das marcas do processo de descentralização, como o caso da Mirex:

Faltava uma loja de variedades em artigos de bebê. Recebi uma boa proposta do shopping, e como já estavam confirmadas várias âncoras, resolvi aceitar (Helena, gerente proprietária da Mirex, 2002)40.

Outras lojas foram instaladas posteriormente, quando o shopping já estava consolidado, em

função de que a imagem de possuir uma loja no Catuaí Shopping Center poderia ser uma estratégia de marketing, como no caso da loja de calçados London London, cujo gerente responsável afirmou que a abertura no shopping foi em função do “nome do shopping”, de sua “tradição”, pois, segundo ele, seria muito bom para a marca da empresa.

Existem casos como o da Bergerson, já mencionada anteriormente, que é uma joalheria destinada ao consumidor de elevado poder aquisitivo e que permaneceu instalada no “calçadão” de Londrina por 25 anos, sendo transferida para o Catuaí Shopping Center em dezembro de 2002, numa busca de melhor infra-estrutura e segurança.

Desde 1990, quando foi inaugurado o Catuaí Shopping Center, muitas lojas, inclusive âncoras, já fecharam e saíram da área. Estas substituições sempre foram vistas com atenção pela administração do shopping, pois mexem com a sua imagem. Como exemplo, tem-se o caso da abertura da livraria “Bom Livro”. Quando a “Livraria Saraiva” decidiu fechar sua loja, a administração precisava substituí-la, e convidou a “Bom Livro” que, segundo sua gerente, era a única empresa do ramo com potencial para assumir a loja do shopping. Foi, então, que se realizou a compra da Livraria Saraiva, com o ponto completo e com o apoio financeiro do shopping.

Assim, percebe-se que se tratam de estratégias capitalistas, as quais diferem das aplicadas na Zona Norte, onde, atualmente, inicia-se um acirramento da competição, mas ainda conservam-se características de sua etapa inicial de comércio de vizinhança.

39 Entrevista realizada em março de 2002. 40 Entrevista realizada em março de 2002.

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5. Rompimento de relações com o conjunto urbano.

Com base na quantidade de filiações junto a ACIL (Associação Comercial e Industrial de Londrina), tem-se que dos 10 estabelecimentos entrevistados na Zona Norte de Londrina, sete não são filiados, o que ocorre, exatamente em mesmo número nos estabelecimentos entrevistados do Catuaí Shopping Center. Este fato revela uma fragmentação das relações com o restante da cidade, por parte dos comerciantes das duas áreas estudadas, pois em ambos casos, há a união em torno de uma Associação Patronal própria para a defesa de seus interesses, perdendo a necessidade de filiação junto a ACIL, que seria um órgão representativo da unidade dos comerciantes de Londrina.

Analisando a opinião dos lojistas sobre a infra-estrutura das áreas em que estão instalados, percebe-se que há, também, uma diferença de satisfação, pois os comerciantes da Zona Norte, em grande maioria, apontaram problemas de segurança, de falta de limpeza da rua e de coleta de lixo, ou seja, problemas relacionados à atuação do poder público que, segundo eles, não destina a atenção devida à área, enquanto que no Catuaí Shopping , as reclamações se encaminham pra outras direções, como as elevadas taxas de condomínio e, portanto, referentes ao custo elevado para se manter no shopping.

Em função das insatisfações, em 2001, a Associação Comercial e Industrial da Zona Norte – ACIRENOR, em conjunto com Associação de moradores da Zona Norte de Londrina, lançaram um protesto e uma tentativa de emancipação política, alegando não receber recursos suficientes para uma boa manutenção da área. Este projeto acabou não tendo êxito, pois não haveria geração suficiente de recursos para a instalação de um município. Posteriormente, reivindicaram a instalação de uma subprefeitura, o que ainda vem sendo discutido.

O grau de fragmentação urbana, gerada pelo distanciamento sociofuncional, da Zona Norte vem aumentando na medida em que aqueles que desenvolvem atividades econômicas neste setor da cidade organizam-se em torno de outras estratégias, como a criação de periódicos de anúncios publicitários dos comerciantes da Zona Norte, com circulação restrita à área, o que provocou a diminuição da necessidade de se anunciar em meios que atinjam toda a cidade de Londrina.

Este fato ganhou novas proporções quando houve, no final do ano de 2001, a criação de um jornal informativo local, a “Folha Norte de Londrina”, que é semanal, com uma tiragem de 5.000 exemplares, atinge cerca de 20.000 leitores e é distribuído, gratuitamente, na Zona Norte, aos sábados.

Entrevistando a Diretora de Redação do Jornal, Mahoko Kasuya, percebeu-se que o jornal considera a Zona Norte de Londrina como um espaço que possui grande diferença do restante da cidade e uma dinâmica própria, sendo, a partir daí que surgiu a idéia de criar o jornal. A empresa responsável por ele, existe em Londrina há 52 anos, com uma equipe que constitui uma agência de notícias que funciona com 28 jornalistas e que produz um jornal destinado à comunidade nipo-brasileira, um jornal para um colégio da cidade, um jornal para a Cooperativa integrada e, agora, a Folha Norte de Londrina.

Segundo a diretora de redação, o jornal está prosperando muito rapidamente, pois os comerciantes estão anunciando muito e a população está participando ativamente com denúncias, queixas e sugestões e, em contrapartida, o jornal oferece informação. Como afirma Mahoko:

Está sendo um sucesso porque é uma população muito grande, mais de 100.000 habitantes, em que o jornal atinge em cheio o público da classe b, c, e d. Foi por isso que começamos e está dando muito certo em tempo muito mais rápido que todos os outros produtos que temos. O retorno é ótimo. Nós somos a informação da Zona Norte de Londrina (Mahoko Kosuya, diretora de redação da Folha Norte de Londrina)41.

Estes fatos reforçam a fragmentação do espaço urbano e fortalecem a expressão de centralidades

diferenciadas, o que altera a própria estruturação da cidade de Londrina. 6. As tendências do processo de descentralização.

41 Entrevista realizada em abril de 2002.

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Os lojistas que possuem estabelecimentos instalados em áreas comerciais e de serviços que não o shopping, forneceram alguns elementos importantes para a análise das tendências do processo de redefiniçao da centralidade, pois traçaram comparações sobre as vantagens e desvantagens de se manter no shopping.

A Livraria Bom Livro, possui sua matriz em Maringá - PR, onde tem quatro lojas, sendo que uma, considerada “mega store”42, está instalada em um shopping e três lojas de rua. Em Londrina, possui duas lojas, uma no Catuaí, de porte “mega store” que, inclusive, é a maior do grupo, e uma loja de rua. A loja do Catuaí, como dito anteriormente, comprou o espaço que era ocupado pela Livraria Saraiva, em 1996, e mudou-se, em 2001, para o espaço atual, chamado de “mega store”, o que segundo a gerente local, aumentou o movimento em quatro vezes.

Depois da abertura da “Mega Store”, o público passou a freqüentar quatro vezes mais a loja e a comprar três vezes mais; se transformou num centro de lazer e, ainda, de compras e uso de serviços (Josiane, gerente local da livraria Bom Livro do Catuaí Shopping Center)43.

A gerente local, afirmou que, antes da abertura da “mega store” a loja de rua localizada no

Centro Principal de Londrina vendia mais que a do shopping, mas que agora ocorre o inverso, pois a “mega store” supera em, praticamente, o dobro a loja do centro. Porém, esclarece que a loja do Centro vende produtos mais relacionados à papelaria, enquanto que a loja do shopping vende mais livros, ou seja, possuem um público diferenciado. Como a “mega store” está com um movimento elevado, está compensando as elevadas despesas com a manutenção da loja.

A Mirex, que é uma loja especializada em roupas infantis, aberta desde a abertura do shopping, como já mencionado, iniciou suas atividades em Londrina há 43 anos, possuindo quatro lojas nessa cidade, (três no Centro Principal, e uma no Catuaí) duas lojas em Maringá - PR, uma em Cornélio Procópio, uma em Cascavel (franqueada), uma em Blumenau - SC, uma em Camburiú - SC e uma em Apucarana - PR. A gerente proprietária da loja do shopping, revelou que de todas as lojas, a do Catuaí é a que mais vende, porém, é que possui os maiores custos, pois,

Além dos custos elevados de condomínio, é preciso ter duas caixas, dois gerentes, pela questão dos horários. Por isso, precisa ter um movimento maior e, com a atual queda do movimento, o efeito sentido pela loja do shopping é maior (Helena, gerente proprietária da Mirex, 2002).

A Loja Toque de Classe, especializada no comércio de bijuterias e acessórios, foi instalada desde o início do shopping, e é uma das cinco lojas de uma mesma proprietária, sendo que dessas, quatro se localizam em Londrina, (três no Centro Principal e uma no Catuaí). Estas lojas possuem o gerenciamento centralizado em um escritório localizado no Centro principal de Londrina, e o entrevistado Ricardo, gerente responsável por todas as lojas, afirmou que, após uma recente reforma e ampliação, a Toque de Classe passou a ser a primeira em questão de faturamento, no entanto, deve-se considerar que as despesas são elevadas, pois se paga, entre aluguel do ponto e condomínio, R$ 8.0000,00 mensais. A reforma consistiu na modificação da estética interna e na ampliação da loja, com a compra da loja vizinha, por R$ 80.000,00.

Como se tem conhecimento de que muitas lojas do Catuaí tiveram que fechar pela questão do elevado custo, depreende-se que é um local bastante valorizado, pois consegue atrair um fluxo de 20.000 pessoas por dia, mas que necessita de elevados investimentos, como os que foram realizados pelas duas últimas lojas relatadas. Além do fato de que existem comentários sobre a existência de uma união entre os lojistas mais “fortes” do shopping que realizam um controle sobre a abertura de novas lojas, como uma “máfia”, fato que foi relatado em entrevista junto a um ex-lojista.

Há indicadores de que o potencial de consumo no shopping é alto, embora sejam necessários investimentos altos, como afirma Ricardo Gaspar, gerente responsável pelo “McDonald´s” do Catuaí 42 A denominação “mega store” se refere a um novo conceito de livraria, sendo um espaço aconchegante para se apreciar os livros, com espaço para consulta de internet, para um café, e até mesmo, com brinquedos para as crianças. 43 Entrevista realizada em março de 2002.

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SILVA, W. R; SPOSITO, M. E. B. Padrões sópcio-econômicos de centralidade urbana: Catuaí Shopping Center e Zona Norte de Londrina.

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Shopping Center44, que possui 58 funcionários operacionais, 12 gerentes e quatro ligados à administração. Por tratar-se de uma franquia, a Corporação “McDonald´s” escolhe e toma todas as decisões sobre implantação, reforma e ampliação de qualquer restaurante da rede. Tal empreendimento foi implantado junto com o Shopping, em 1990, com o pagamento de uma franquia no valor de 500.000 dólares mais investimentos com o treinamento, mas consegue aferir uma receita de 4.000.000 de reais bruto, por mês, sendo o sexto colocado no ranking dos da franquia do Sul do Brasil, em que o primeiro é o de Porto Alegre45. Em comparação com os demais “McDonald´s” de Londrina, é o do shopping é o que possuí o maior faturamento, chegando a ser mais que o dobro dos outros. (da Avenida Higienópolis, da Avenida Tiradentes e do Royal Plaza Shopping - incluindo os quiosques em galerias e shoppings).

O gerente do “McDonald´s” ainda comentou que o restaurante possui uma dependência em relação ao Carrefour, que segundo ele, é o responsável por atrair 50% do seu movimento, sendo que às quartas-feiras este papel é desempenhado pelos cinemas, que operam com preços promocionais e conseguem atrair consumidores que redinamizam o comércio durante a semana. Aos fins de semana, tem alcançado faturamentos elevados, sendo que os domingos já estão superando o movimento dos sábados, que sempre foram os recordistas, confirmando noção da centralidade móvel que está incutida nas estratégias dos empreendedores.

Tem-se, portanto, uma tendência de concentração de empresas comerciais e de serviços no shopping, que possuem elevadas quantias de capital disponível para investimento, sendo que, os outros estão sendo obrigados a deixarem o shopping e retornar ao Centro Principal, que foi apontado por alguns estabelecimentos, como de maior faturamento que no shopping, o que mostra existir uma seletividade quanto ao poder de investimento, mas também quanto ao ramo de atuação.

Para lojas como a “London London”, que possui três lojas em Londrina, sendo uma no Catuaí e duas no Centro Principal, que segundo o gerente local, Leandro, possui maior poder de vendas que as demais, os custos são elevados, o que faz com que as lojas do centro obtenham faturamento líquido maior que a do shopping. Entretanto, esse gerente afirma que vale a pena manter a loja no Catuaí, mesmo com o maior custo, em função da tradição, do nome e da capacidade de atrair clientes. Percebe-se, pois, que seria uma forma de divulgar a marca, e uma estratégia de marketing, a manutenção da loja no shopping46.

A mesma situação foi detectada na loja “Pura Mania”, que é uma rede que possui quatro lojas em Londrina, sendo três no centro Principal de Londrina e uma no Catuaí, pois o gerente, Oscar, afirmou que:

Em minha opinião o Centro de Londrina possui uma capacidade de vendas superior ao shopping, pela questão do movimento de pessoas, que é superior ao do shopping, que só dá movimento nos finais de semana ou durante as noites [...]. Entre os problemas que podem ser destacados no shopping é a abertura em feriados que, tradicionalmente, geram movimentos, porém não vendas satisfatórias, servem apenas para gastar dinheiro [...]. A marca vende bem, e por isso, aqui não é diferente, porém, a empresa precisa ter uma loja no shopping para divulgar a marca e, consequentemente, para vender mais (Oscar, gerente local da Pura Mania do Catuaí Shopping Center, 2002)4714.

Tem-se, por fim, que, em Londrina, não há a tendência imediata de um “empobrecimento” do

Centro Principal, como pode ser verificado em outras cidades que passam pelo mesmo processo, mas sim, uma tendência a um reforço da centralidade que se expressa no Centro Principal, daí a necessidade de se discutir, com maior precisão, as características da dinâmica das chamadas cidades médias. Porém, percebe-se que há um movimento dialético, pois, ao mesmo tempo em que são criadas condições que propiciam o surgimento de novas áreas centrais e, consequentemente, de novas expressões de centralidade, criam-se, também, elementos que reforçam a centralidade do Centro Principal.

Desta forma, torna-se difícil uma generalização, pois, devido às especificidades da cidade de Londrina, identifica-se um processo que, conforme Lefebvre (1999), “cria e estilhaça a centralidade”. 44 Nota-se que o proprietário do “McDonald´s” do Catuaí Shopping Center era o presidente da ACIL, quando da entrevista. 45 A título de curiosidade, o primeiro colocado, no ranking da corporação, em vendas do mundo é o restaurante de Moscou e no Brasil, o que se localiza no Shopping Iguatemi, em São Paulo, segundo Ricardo Gaspar. 46 Ressalte-se que esta afirmação não significa dizer que a loja opera no prejuízo, mas que possui rentabilidade menor que o centro. 47 Entrevista realizada em abril de 2002.

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7. Considerações finais.

Apresentam-se como considerações finais, o fato de que com o processo de redefinição da centralidade, há uma modificação na estruturação urbana da cidade, que via mexer e alterar a convivência entre as pessoas que nela habitam ou a freqüentam. Há uma separação considerável decorrente dos diferentes padrões de poder aquisitivo, o que se mostra decisivo nas escolhas das áreas a serem freqüentadas e evidencia a segmentação existente no espaço urbano.

Percebe-se, então, que o crescimento da cidade de Londrina, assim como a mudança da lógica da produção do espaço urbano e os interesses que a engendram provocam um processo de fragmentação do espaço urbano, decorrente da emergência de áreas que podem ser diferenciadas claramente pelo padrão de rendimento. Essa segmentação reduz as possibilidades de convívio entre as diferenças sociais, ou seja, é uma forma de ampliar a diferenciação interna nos espaços urbanos. Considera-se que os diferentes padrões residenciais decorrem da valorização diferenciada do solo urbano e dos imóveis que se constituem mercadorias no âmbito de nossa sociedade. Portanto, é fundamental considerar que o espaço urbano é apropriado seletivamente.

Tem-se, então, a tendência de formação de áreas no interior das cidades que possuem cada vez mais uma maior homogeneidade no que diz respeito ao padrão residencial, fazendo com que os conflitos entre as classes sociais fiquem encobertos pela diferenciação e separações socioespaciais.

E, ainda, há que se considerar a dialética que orienta o movimento de mudanças nas relações, pois, o processo segue várias determinações, sob a atuação de vários agentes, que nem sempre possuem os mesmos interesses. Portanto, estas relações fazem do processo de redefinição da centralidade, um processo complexo, com variações espaciais e temporais que determinam quais pontos e em quais momentos se expressará a centralidade. 8. Referências Bibliográficas. CASTELLS, Manuel. A questão urbana. São Paulo: Paz e Terra, 2000. CENSO COMERCIAL. IX Recenseamento Geral do Brasil - 1980. v. 4, n. 1. CENSO DOS SERVIÇOS. IX Recenseamento Geral do Brasil - 1980. v. 5, n. 1 CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. São Paulo: Abril cultural/Brasiliense, 1984. CORDEIRO, Helena Kohn. A metodologia e as técnicas de pesquisa. In:______. O centro da metrópole paulistana. Expansão recente. São Paulo: USP – IG, 1980. CORRÊA, Roberto Lobato. O Espaço Urbano. São Paulo: Ática, 1995. GAETA, Antonio Carlos. Gerenciamento dos Shopping Centers e Transformação no Espaço Urbano. In: PINTAUDI, Silvana Maria; FRÚGOLI JR., Heitor (Org.). Shopping Centers: Espaço, Cultura e Modernidade nas cidades brasileiras, São Paulo: UNESP, 1992. KOWARICK, Lucio. A espoliação urbana. 2. ed. Paz e terra, 1993. LEFEBVRE, Henri. A Revolução Urbana. Tradução de Sérgio Martins. Belo Horizonte: UFMG, 1999. MULLER, Nice Leccocq. A área central da cidade. In: AZEVEDO, Aroldo de. A cidade de São Paulo. Estudos de Geografia Urbana. Vol III. Aspectos da metrópole paulista. Companhia Editora Nacional. São Paulo, 1958. pág. 121 - 182. SOUZA, Marcelo Lopes de. O desafio Metropolitano: um estudo sobre a problemática sócio-espacial nas metrópoles brasileiras. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. RIBEIRO, William da Silva. Descentralização e redefinição da centralidade em e de Londrina. 2002. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Universidade Estadual Paulista, Presidente Prudente, 2002. SPOSITO, Maria Encarnação Beltrão. Centro e as formas de expressão da centralidade urbana, Revista de Geografia. Universidade Estadual Paulista/UNESP. São Paulo, 1991 v. 10. VILLAÇA, Flávio. Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo: Studio Nobel: FAPESP: Lincoln Institute, 1998.

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EXPANSÃO E ESTRUTURAÇÃO INTERNA DO ESPAÇO URBANO DE PRESIDENTE PRUDENTE-SP∗∗∗∗

Silvia Regina PEREIRA∗∗∗∗∗∗∗∗

Resumo: Procuramos retratar a expansão e estruturação do espaço urbano de Presidente Prudente, no intuito de compreender a constituição do centro e dos subcentros e sua relação com as diferenças socioespaciais no interior da cidade, que por sua vez estão associadas à lógica de produção/apropriação do espaço urbano. Palavras-chave: expansão urbana; espaço urbano; centros; subcentros; centralidades. Resumen: Intentamos retratar la expansión y estructuración del espacio urbano de Presidente Prudente, con la intención de comprender la constitución del centro y de los subcentros y su relación con las diferencias socioespaciales en el interior de la ciudad, que a su vez se asocian a la lógica de producción y apropiación del espacio urbano. Palabras llave: expansión urbana; espacio urbano; centro; subcentros; centralidades. 1- Expansão urbana de Presidente Prudente - SP

Para o entendimento da configuração atual de Presidente Prudente, precisamos considerar o processo de sua formação, pois o espaço urbano é o resultado de diferentes ações que se justapõem ao longo do tempo (MELAZZO, 1993). Como enfatiza Choriey:

[...] la ciudad es dinámica y está sometida a un proceso estado de constante cambio y crecimiento de sus partes constitutivas, por la extensión periférica de la zona urbana, y/o por la reorganización interna de sus actuales usos de suelo. Ambos originan cambios, a su vez, en la accesibilidad intra-urbana y, por tanto, en la estructura de usos del suelo, que a su vez, se refleja en el cambio del sistema de localizaciones. (CHORLEY, 1971, p. 282)

A produção desse espaço urbano, ao longo das últimas décadas, reflete a lógica geral de

produção das cidades sob o capitalismo, pois nele se apresentam: - crescimento territorial descontínuo com expansão horizontal e vertical; - ocorrência de inúmeros “vazios urbanos”; -implantação de vários conjuntos habitacionais periféricos e condomínios fechados; - multiplicação de áreas centrais, bem como a constituição de subcentros e vias especializadas; - desigual distribuição/concentração de equipamentos comerciais, de serviços, infra-estrutura e equipamentos urbanos; dinâmicas essas que resultam em uma configuração espacial bastante desigual.

Quais são, diante dessa configuração espacial desigual, as condições de vida dos moradores das diferentes áreas do interior da cidade?

A partir das iniciativas dos coronéis Goulart e Marcondes de colonizar e comercializar terras surgiram os núcleos urbanos que originaram Presidente Prudente, que é reconhecida em 1921 como Município. Os núcleos urbanos iniciais foram se desenvolvendo à medida que atraíam compradores para os lotes rurais, favorecendo o povoamento, concomitante a especulação de terras e a expansão cafeeira que ocorreu na Alta Sorocabana.(ABREU, 1972).

A estação ferroviária era o ponto de referência para os dois núcleos, sendo que a Oeste dessa se encontrava a Vila Goulart e a Leste a Vila Marcondes. A Vila Goulart, implantada pelo coronel Francisco de Paula Goulart, possuía uma regularidade na planta, projetada por um agrimensor, era considerada um

∗ Texto publicado em 2002 (n.9 v.1), referente ao primeiro capítulo da dissertação de mestrado intitulada “Subcentros e Condições de vida no Jardim Bongiovani e Conjunto Habitacional Ana Jacinta- Presidente Prudente-SP, orientada pela Professora Maria Encarnação Beltrão Sposito, junto ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da FCT/UNESP, financiada pela FAPESP e defendida em Dezembro de 2001. ∗ ∗ Graduada em Geografia, mestre e doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia da FCT/UNESP. Atualmente professora contratada da UNIOESTE, campus de Francisco Beltrão. E-mail para contato: [email protected]

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empreendimento individual, destinado a povoar o núcleo e a partir de então atrair compradores para as terras dos arredores. Esse loteamento deu origem ao núcleo urbano localizado em frente à ferrovia, no qual o Coronel Goulart fazia concessões e oferecia facilidades para a aquisição de terras.

Já a Vila Marcondes, implantada pelo coronel e agente de negócios José Soares Marcondes, associado à Companhia Marcondes de Colonização, Indústria e Comércio, fundada em 1920 (ABREU, 1972), tinha um caráter empresarial e, também, visava a venda de lotes, ocorrendo duas colonizações distintas, mas ambas com o objetivo de comercializar as terras existentes naquela época.

A colonização Marcondes divulgou por meio de campanha publicitária as qualidades do solo, o

que favoreceu a venda dos lotes em pouco tempo, como ocorreria com a Vila Goulart, conforme destaca Abreu:

Em pouco tempo, todos os lotes estavam vendidos. Do outro lado da estação em frente à Vila Goulart, traçou a Vila Marcondes a fim de, como no caso da outra, servir de centro de abastecimento de gêneros e instrumental de trabalho, onde se encontrassem escola, médico, farmácia e hospital. Esses elementos seriam atrativos para a fixação dos compradores de terra. (ABREU, 1972, p.l9)

O movimento de especulação ganhou importância com o aumento do número de moradores, com

a procura por terras para implantação seja de residências, estabelecimentos industriais e de serviços, áreas de lazer, gerando assim o aumento da área da cidade. (SPOSITO, 1990)

A preferência por terras em relação aos outros tipos de bens imóveis pode ser explicada pela dinâmica de expansão territorial que atrai compradores por meio dos preços baixos em relação a áreas mais consolidadas e também por haver a perspectiva de valorização futura (MELAZZO, 1993). Há, então, uma expansão territorial, com a incorporação de novas áreas, concomitante à permanência e surgimento de “vazios urbanos” e a um déficit habitacional, já que a busca por terrenos muitas vezes não está associada à edificação de moradias.

Desde a origem tem-se uma ocupação ao longo da ferrovia, que de certa forma conduziu a expansão, no período em que esse era o principal meio de transporte interurbano, ocorrendo, até a década de 1940, um crescimento nas proximidades do núcleo da Vila Goulart, hoje entendido como área central, implantando-se, a oeste da ferrovia, o Bairro do Bosque e Vila Formosa e, a leste, Vila Furquim e Vila Brasil, como exemplos, dentre outros loteamentos. (BELTRÃO SPOSITO, 1991)

Foi ocorrendo uma reestruturação do espaço à medida que foram implantados os loteamentos, não se podendo esquecer que o “[...] poder público contribui com essa organização do espaço, realizando intervenções viárias que redirecionam esta expansão”. (SOARES, 1994, p. 136)

Já na década de 1950, de acordo com Beltrão Sposito, houve uma paralisação nesse crescimento, tendo destaque, na década de 1960, a implantação do Jardim Bongiovani. Na porção leste foi implantado o Jardim Santana, Vila Aurélio e Planaltina, que foram vendidos a segmentos de baixo poder aquisitivo. A área denominada além linha (zona leste), tem declividade considerável, o que se constituí como obstáculo, até hoje, para a ocupação residencial de padrão elevado e implantação de estabelecimentos, não atraindo muitos investimentos.

O Jardim Bongiovani, implantado em 1962, era de propriedade da Família Bongiovani e possuía, desde o início, preços mais altos em relação ao mercado de terras, mesmo desprovido de asfalto, esgoto, com acesso dificultado pela presença do Córrego do Veado, distante do centro e dos serviços públicos, resultando em uma baixa demanda por terrenos nesse loteamento na década de 1960. (BELTRÃO SPOSITO, 1983). Com as melhorias instaladas nessa área, a partir do final da década de 1960, há um crescimento da demanda por terrenos.

Com a canalização do Córrego do Veado (1973-1974) e implantação do Parque do Povo, ampliou-se a acessibilidade e promoveu-se uma série de externalidades positivas para os loteamentos adjacentes, como o Jardim Bongiovani. Este se tomava atraente para as classes de renda mais elevadas, que viriam pagar mais tributos, mas não conviveriam com uma vizinhança de baixo poder aquisitivo, pois desde o início possuía preços elevados no intuito de atrair camadas de médio/alto poder aquisitivo. (BELTRÃO SPOSITO, 1983)

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Nas proximidades do Jardim Bongiovani os demais loteamentos foram também beneficiados, como a Cidade Universitária.

Já os loteamentos Jardim Caiçara e Vila Matilde Vieira, que estão próximos à Cidade Universitária tiveram processos de ocupação diferentes. Surgiram na década de 1960, mas com péssimos atributos locacionais, destinando-se a segmentos de baixa renda, e, a partir de 1975, com a melhoria de condições gerais dessa localização e a demanda por terrenos nas áreas próximas à Cidade Universitária e ao Jardim Bongiovani, a área foi valorizada e gerou um processo de substituição de moradores, por outros de classe média. A demanda por terrenos no Jardim Caiçara foi bastante alta em relação aos loteamentos mais valorizados de Presidente Prudente, principalmente na década de 1970, especificamente entre os anos de 1979 e 1980. (BELTRAO SPOSITO, 1983)

Próximo a esses últimos loteamentos destacados, em direção a Oeste, a partir de 1966 foram se implantando os loteamentos Jardim Aquinópolis, Esplanada, Cinqüentenário, Colina, Morumbi, Icaray, Campo Belo e Petrópolis, com acesso pela Avenida Ciro Bueno, Jardim Marupiara e das Rosas, com acesso pela Pista Sul do Parque do Povo e Rua João Gonçalves Foz. (BELTRÃO SPOSITO, 1983)

Dentre esses, o Jardim Morumbi é o primeiro loteamento fechado de Presidente Prudente e se encontra entre loteamentos voltados a uma clientela de menor poder aquisitivo. O metro quadrado nesse loteamento, mesmo diante dos investimentos realizados, estava, em 1979, na faixa de Cr$ 485,00 em comparação a Cr$ 785,00 na Cidade Universitária, um loteamento de melhor localização mais sem as vantagens de um condomínio fechado. (BELTRÃO SPOSITO, 1983)

Segundo a autora, nas áreas mais antigas, o processo de ocupação foi bastante diversificado. Pressupõe-se que, por tal motivo, a diferenciação entre os preços de terrenos das diversas localizações não era tão grande.

Algumas das áreas loteadas, a partir da década de 1940, as quais eram marcadas pela ocupação de segmentos de diferentes perfis socioeconômicos, viveram um processo de valorização.

A Vila Formosa, por exemplo, estende-se ao longo da Avenida Brasil, estando seu uso ligado ao acesso à rodovia, o que proporciona um aumento dos preços dos lotes e com isso os terrenos internos tornam-se desinteressantes para o uso residencial pelas classes de renda mais alta.

Com a valorização do Jardim Paulista há uma melhora no padrão de ocupação do Parque São Judas Tadeu, considerando o acesso que é dificultado para esse loteamento e a ausência de externalidades positivas.

Apesar do Jardim Paulista ter elevações no preço do m2, no ano de 1970, o Jardim Caiçara e Jardim Bongiovani, com a implantação do Parque do Povo e asfalto, esgoto e iluminação pública (instalados em 1977 e 1981), destacaram-se no crescimento do preço de terrenos.

Na porção sul, ultrapassando a Rodovia Raposo Tavares, que poderia também ser considerada como obstáculo, surgiram loteamentos como: Jardim Alto da Boa Vista em 1979, Chácara do Macuco, e outros de médio e alto padrão. Ou seja, nesse caso o automóvel constitui-se como meio de deslocamento de seus moradores, que podem alcançar as diferentes áreas no interior da cidade com maior rapidez, permitindo-lhes proceder à opção pela moradia nessa área.

Na zona norte, houve uma descontinuidade no tecido urbano, com a formação, por exemplo, do Parque Alexandrina, ocorrendo assim um aumento da apropriação da renda fundiáia por proprietários que possuíam terras intermediárias. (BELTRÃO SPOSITO, 1991)

Determinadas áreas podem ser valorizadas se houver interesse do capital, instalando melhorias, criando imagens, ou seja, a transformação das áreas no interior da cidade depende dos inúmeros interesses que permeiam a produção e reprodução do espaço urbano, ao longo dos anos.

Os mecanismos de especulação imobiliária vão, com a implantação de loteamentos em determinados pontos, favorecer os terrenos intermediários, pois muitas vezes a expansão se dá sem continuidade com o tecido urbano, não pelo fato de não haver ofertas, mas em função dessa lógica de produção territorial ser calcada nos interesses dos agentes desse processo.

Diante da intensa especulação imobiliária ocorre um crescimento diferenciado entre as áreas da cidade. Em Presidente Prudente, como destaca Beltrão Sposito, houve um intenso crescimento na porção oeste:

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[...] foi sobretudo para oeste, que a cidade cresceu ainda mais [...] a partir da localização de dois grandes conjuntos habitacionais - COHAB e CECAP (com cerca de 3000 casas) - que “incentivou”a implantação de inúmeros outros loteamentos da iniciativa privada. A uma distância ainda maior ao longo da Rodovia Alberto Bonfiglioli, outros cinco loteamentos particulares foram comercializados (a W-SW) ... (BELTRÃO SPOSITO, 1991, p. 300)

Na década de 1980, de acordo com a referida autora houve uma retração no processo de

expansão territorial horizontal de Presidente Prudente. O Conjunto Habitacional Ana Jacinta foi implantado, na década de 1990, com 2.500 casas, estando localizado na porção sudoeste, bem distante da área central e ocupado por um segmento de baixo poder aquisitivo. Esse conjunto faz parte de um empreendimento que compreende outros dois, o Mário Amato com 500 casas e CDHU com 104 casas, sendo bastante expressivo o número de residentes.

Nessa área, a infra-estrutura e melhorias urbanas não atendem às necessidades dos moradores que realizam constantes deslocamentos para obtê-las, pois como sintetiza Lima:

A apropriação do espaço acaba sendo uma questão de poder econômico, e apenas os que possuem maior poder aquisitivo se satisfazem quanto a essa apropriação, com os privilégios e usufrutos de uma moradia adequada. Já os de menor poder aquisitivo, [...] são “encaixados” em conjuntos “pré-moldados”. (LIMA, 1980, p. 137)

Outros loteamentos se encontram nas áreas periféricas sem terem recebido ainda toda a infra-

estrutura necessária, como o Jardim Morada do Sol, e alguns loteamentos estão sendo divulgados na mídia com a oferta de infra-estrutura e boas condições de vida, como o Maré Mansa, em desenvolvimento.

Destacamos alguns dos inúmeros loteamentos que foram implantados, ao longo desses 84 anos em Presidente Prudente. Além da expansão territorial urbana mencionada, não podemos deixar de salientar que ocorrem duas formas de expansão, a horizontal, referente aos exemplos acima, e a vertical, e segundo Beltrão Sposito essas formas estão articuladas e fazem parte do mesmo processo, havendo contradições e complementaridades entre elas.

À medida que os loteamentos foram implantados ocorrem modificações no espaço interno da cidade, e essas exercem grande influência na vida dos segmentos de baixo poder aquisitivo, pois diante dessa reestruturação, os equipamentos, infra-estrutura e serviços urbanos não acompanham de forma homogênea esse crescimento territorial urbano.

Percebemos que o grande crescimento territorial que ocorreu até o momento, tanto na forma horizontal quanto na vertical, não atendeu às condições básicas de habitação, em meio a essa ampla extensão, pois os loteamentos favorecem, antes de tudo, a especulação imobiliária e, secundariamente, o oferecimento de moradias, pois “[...] a satisfação das necessidades dos indivíduos (entre as quais ocupa lugar de destaque a habitação) não se constitui parâmetro que orienta o crescimento espacial urbano, pelo menos nas sociedades capitalistas...” (BELTRÃO SPOSITO, 1983, p. 80)

A lógica existente na produção e reprodução da cidade não visa unicamente a servir/abrigar, visto que ainda existem muitos lotes vazios, concomitantes ao déficit habitacional. A expansão territorial incorpora novas áreas em ritmo superior ao do crescimento populacional, com oferta de terrenos sem que as antigas áreas tenham esgotado seu potencial de ocupação.

A expansão territorial incorpora áreas novas, mesmo existindo um grande número de terrenos vazios em áreas cuja ocupação se iniciou em períodos passados. (MELAZZO, 1993). Dessa forma o crescimento da área da cidade, ao mesmo tempo em que deixa “vazios urbanos”, incorpora a área rural que, de acordo com a demanda por habitações ou interesses imobiliários, tem esse caráter modificado, pois diante da demanda potencial por essa mercadoria, ocorre a valorização de áreas que tinham uso de solo rural e preços mais baixos.

Mesmo que o aumento de habitantes não tenha sido tão intenso, a oferta de lotes colocados à venda sempre foi bastante considerável, não havendo uma relação proporcional entre oferta de terrenos e demanda pelo solo urbano.

A influência política que os agentes econômicos exercem em relação ao poder público, faz com que se agravem as disparidades no espaço interno das cidades, mesmo que haja instrumentos e

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profissionais para disciplinar o uso do solo urbano, pois, na prática, na maioria dos casos, não se visa ao atendimento das necessidades e sim aos interesses de setores da sociedade que acabam por determinar a expansão e a configuração do espaço urbano. Nesse sistema, os interesses de uma classe acabam por alterar ou flexibilizar leis concementes ao uso do solo urbano.

Esse processo de implantação de loteamentos propicia aos proprietários fundiários a obtenção da renda, que está associada não somente à posse de uma propriedade, mas também ao que determinadas propriedades representam segundo a localização em que se encontram. Para desenvolver as funções de reprodução da força de trabalho, produção e consumo de mercadorias é preciso comprar ou pagar para que essas funções se efetivem, necessitando-se de uma localização, cujos atrativos e benfeitorias determinarão seu preço.

Os usos desse espaço - residenciais, industriais, comerciais, serviços e lazer - são também ditados pelos interesses dos agentes econômicos, principalmente do setor imobiliário, que têm se apropriado das benfeitorias e infra-estruturas urbanas instaladas pelo poder público, pago pelo coletivo, mas apropriadas individualmente, pois as “[...] decisões sobre a compra e venda dos imóveis e a produção de novos terrenos urbanos passam cada vez mais pelas mãos de segmentos capitalistas que buscam a transformação do uso do solo como instrumento de valorização de seus capitais.” (MELAZZO, 1993, p. 72)

Como resultado do processo de reestruturação da cidade, a expansão urbana cria e recria espaços diferenciados, o que por conseqüência provoca a diferenciação e até segregação socioespacial, como o caso dos condomínios fechados em contraposição aos conjuntos periféricos que, geralmente, são de grande porte e não recebem as atenções necessárias. Nesse sentido:

[...] é a propriedade privada da terra e sua sustentação jurídico-institucional que vai mediar o acesso ao (no caso) espaço urbano no modo de produção que estamos inseridos. Desta forma a procura pelas “melhores” localizações (o que é bastante relativo, tendo em vista o uso a que se queira dar a determinada porção do espaço urbano), limita-se aos segmentos sociais detentores de maior poder de compra e/ou influência junto às esferas institucionais. Há assim, uma tendência de que determinadas parcelas da sociedade exerçam uma espécie de controle que se aproximaria do monopólio ao acesso à terra. (WHJTACKER, 1991, p. 08)

A tendência em permanecer e agravar essas disparidades é grande. No entanto, é preciso

incentivar a sociedade a se conscientizar e tomar posicionamentos para que o exercício da organização e reivindicações em favor dos seus direitos e interesses seja uma constante, pois os outros segmentos de grande influência na organização do espaço estão, a todo o momento estabelecendo alianças e contatos com os agentes econômicos, principalmente com o poder público no sentido de obter vantagens.

Serão apresentadas nos próximos itens, as nossas considerações relativas à multiplicação dos centros, constituição de subcentros e centralidades, diante do processo de reestruturação do espaço urbano que cria e recria novas formas comerciais e de serviços, em nome do consumo. 2 – Multiplicação dos centros, das centralidades e constituição dos subcentros. 2.1- Centros.

Procuraremos apresentar sinteticamente como o centro foi e é considerado no estudo da estrutura urbana, por diferentes autores, dos clássicos aos contemporâneos, buscando visualizar o centro de Presidente Prudente, diante de suas transformações.

Ao retratarmos o centro é preciso entender as diferentes concepções que foram formuladas, ao longo do tempo, e que serviram de bases para as novas reformulações. É preciso considerar o período em que tais formulações foram desenvolvidas, pois exprimem as particularidades de um processo histórico nas suas diferentes etapas e como bem explicita Villaça “[...] nenhuma área é ou não é centro; como fruto de um processo — movimento — torna-se centro. No social, nada é; tudo torna-se ou deixa de ser. Nenhuma área é (ou não é) centro; toma-se ou deixa de ser centro.” (VILLAÇA, 1998, p. 238)

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Johnson (1974) retrata que o centro da cidade moderna apresenta características especiais com relação à ocupação do solo e desempenha funções particulares que o tornam mais conhecido diante das áreas urbanas e salienta que:

En los textos geográficos, particularmente en Estados Unidos, el centro de la ciudad suele denominarse Central Bussines Distric (distrito central de negocios — o centro de negocio), abreviadamente CBD; se le ha definido como aquella área de la ciudad en la que predominan absolutamente la distribución al por menor de bienes y servicios, así como las diversas actividades burocráticas del sector privado. Estas utilizaciones del suelo se encuentran cada vez con mayor frecuencia en otras partes de las ciudades, pero no con el mismo nível de intensidad y sin ocupar el área extensa y compacta que se halla en el centro. (JOHNSON, 1974, p. 153)

Ao destacar o Distrito Central de Negócios, ressalta que o termo área central precisa ser também

considerado como conceito distinto do anterior, sendo que as áreas centrais incluem ruas, nas quais se encontram funções próprias do CBD, além de áreas industriais e residenciais, não sendo fácil a tarefa de distinguir o CBD e área central.

Segundo o autor:

[…] este es el sector de la ciudad al que se puede llegar con mayor facilidad desde el resto del área edificada. Es también la parte más accesible en general para los que viven dentro de la esfera de influencia de la ciudad, especialmente si se desplazan por medio de los transportes públicos. (JOHNSON, l974,p. 155)

Os moradores de menor poder aquisitivo que residem nas áreas periféricas, na maioria das cidades, pagam uma tarifa considerável diante de seu orçamento para se deslocar para a realização de atividades destinadas à sua manutenção. Vale ressaltar que:

A acessibilidade e os fluxos estabelecidos no interior das cidades representam alguns dos processos definidores da reestruturação urbana. Tem-se a constituição de novos pontos, novos eixos de circulação que contribuem para acentuar a fragmentação do espaço no interior das cidades. (MONTESSORO, 1999, p. 141).

O centro da cidade, à medida que o tecido urbano se expande, vai sendo reestruturado,

assumindo novas formas, novos usos. Para Johnson (1974), as características presentes em muitas cidades norteamericanas que contribuíram para uma reordenação do centro, foi o aumento da verticalização para usos comerciais e de serviços; a diminuição de residentes, paralela à crescente concentração de atividades comerciais. Essas características são encontradas em muitas cidades brasileiras de grande e médio porte.

Aliado a essas características tem-se o problema dos congestionamentos gerados pela intensidade de fluxos e pelo aumento do número de automóveis particulares disputando espaço com os meios de transportes públicos, sendo que aqueles levam poucos passageiros em relação ao espaço que ocupam. A indústrias por não serem importantes no centro se deslocam para as áreas mais periféricas em busca de maiores terrenos, ligadas às vias de circulação (JOHNSON, 1974).

Com a ocorrência de novas localizações e desdobramentos, emergem os subcentros que reproduzem as características do centro tradicional, que poderiam, de certa forma, atender aos consumos básicos dos moradores que se encontram mais distantes do centro e que também não possuem veículo próprio. Esses subcentros e desdobramentos, contudo, serão desenvolvidos de acordo com o potencial de consumo, de forma pontual e diversificada, atendendo diferentemente às necessidades, de acordo com a sua constituição e os atrativos de onde se instalam.

Considerando que o centro nunca foi homogêneo e que seu traço marcante é a diversidade de estabelecimentos e funções que o compõem, é possível que se desenvolvam no seu interior, áreas com maiores fluxos diante de determinadas funções que por se agruparem, definem áreas especializadas em serviços ou comércios.

A forma urbana sempre foi, diante das configurações das funções comerciais e de serviços, residenciais e industriais, enfocada nos estudos de estrutura urbana que retratavam as localizações, não considerando ou considerando pouco os processos e os fluxos, hoje destacados no estudo da reestruturação urbana, sendo que:

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[…] las primeras teorías generales sobre la estructura urbana se referían a las ciudades de Estados Unidos, se basaban en las condiciones existentes hace 40 años, y subrayaban las mutuas influencias entre el ambiente urbano y la sociedad urbana en el interior de las diversas regiones de la ciudad. El más famoso de estos “modelos” de áreas sociales urbanas fue expuesto por E. W. Burgess en 1923, y se conoce con e nombre de teoría concéntrica o de las áreas concéntricas. Dicho modelo se basa en la noción de que el desarrollo de la ciudad tiene lugar hacia afuera a partir de su área central, formando una serie de coronas o áreas concéntricas. (JOHNSON, 19’74,p. 231)

Esse modelo de zonas concêntricas explica o uso do solo da cidade por meio de zonas de diferentes idades e características, que se localizam a partir do centro. No caso de Chicago, foram identificadas cinco zonas ordenadas a partir do centro, que são:

1) una zona central interna, el “corazón” de la vida comercial, social, cultural e industrial de la ciudad y foco del transporte urbano, rodeada por 2) una zona de transición con una gran mezcla de usos de suelo y predominio de la edificación residencial el proceso de deterioro progresivo (...), 3) una zona residencial obrera, en la que los inmigrantes de segunda generación constituyen un elemento importante en la estructura de población; 4) una zona residencial de mejor calidad, caracterizada por la vivienda unifamiliar y salpicada con mansiones y grupos de apartamentos de lujo, y 5) una borde, con comunidades suburbanas y satélites, verdaderos dormitórios para la gente que trabaja en el centro de la ciudad. (CHORLEY, 1971, p. 265)

Segundo essa teoria, os trabalhadores vivem próximos ao centro, na área onde o solo é mais caro,

enquanto os segmentos de maior poder aquisitivo residem na periferia, em terrenos mais baratos. Isso se deve ao custo do transporte coletivo, utilizado para o deslocamento casa-trabalho, que nem todos podem pagar, por isso os trabalhadores se instalam ao redor da área de trabalho, enquanto os outros segmentos têm o direito de escolha, por poder pagar pelo deslocamento ao centro da cidade. As considerações de Johnson (1974) a respeito dessa teoria são:

La teoría de Burgess, aunque utilizada ampliamente como marco conceptual para estudiar las áreas urbanas, ha sufrido críticas severas de investigadores posteriores. Muchos de estos ataques han sido algo injustos, ya que se basaban en la interpretación demasiado literal de una teoría que no pretendía ser más que una generalización muy aproximada. Burgess, por ejemplo, suponía que su hipótesis se cumpliría solamente en ausencia de ciertos “factores de oposición”(como, por ejemplo, las características topográficas locales), que podrían dejar sentir su influencia en la localización de las áreas residenciales; suponía asimismo que se registrarían variaciones considerables en el interior de las distintas áreas por él definidas, con lo que se formarían “areas naturales” locales (caracterizadas por los rasgos demográficos, económicos y sociales de sus habitantes) en el marco más amplio de las grandes áreas principales. (JOHNSON, 1974, p. 233)

Segundo Corrêa (1989), nas teorias da Ecologia Urbana houve a tentativa de uma transposição

dos princípios básicos da ecologia vegetal para o urbano, ocorrendo uma competição em razão da luta pela sobrevivência, dominação dos mais adaptados ao meio ambiente e uma sucessão e substituição de um grupo por outro no espaço. O centro é considerado como “órgão” controlador e privilegiado dentro do organismo urbano (como é considerada a cidade, com células, tecidos, numa analogia biológica).

No modelo de Burgess era essencial a noção de centralidade, sendo que o centro dominava a competição em torno dele e à medida que a cidade aumentava, com a presente idéia de hierarquia, a competição e a divisão do trabalho cada vez mais especializada se explicavam pelo processo de centralização e descentralização. A partir desse modelo, ocorrem reformulações que dão origem à:

[…] la teoría de los sectores, propuesta por vez primera hacia 1939 y atribuida… al economista norteamericano H. Hoyt… era que los contrastes en la utilización del suelo originados cerca del centro urbano… se perpetúan al crescer la ciudad. Los sectores de utilización del suelo diferenciados tenían tendencia a crescer a partir del centro, siguiendo a menudo los principales ejes de transporte. (JOHNSON, 1974, p. 234)

Segundo Johnson (1974), a teoria de Hoyt constitui mais um aperfeiçoamento da teoria

concêntrica que uma alteração. Nessa teoria teríamos uma especialização funcional e social da cidade a

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partir de eixos radiocêntricos, considerando os transportes e as indústrias, o que não ocorreu na de Burgess.

Para Corrêa (1989), nessa teoria há uma tendência segregativa dos segmentos de alto status, que se instalam ao longo de um eixo de circulação que corta as melhores áreas da cidade, de onde podem exercer controle sobre seu território.

Complementando com o que nos apresentou Johnson:

Lo cierto es que la gente muy rica puede establecer su residencia donde le apetezca y que, en ciertas circunstancias, es posible que no siga la pauta “normal” que se describe en las teorías concéntrica y sectorial. Los grupos menos acomodados, en cambio, están más limitados por su situación económica, y por ello es más probable que se amolden a una configuración repetitiva de la estructura urbana, basada en la accesibilidad y los atractivos de cada paraje y en él precio de los alquileres. (JOHNSON, 1974, p. 239)

O poder aquisitivo dos moradores é que vai determinar a localização de suas residências diante

das características expressas no meio urbano, e que vão proporcionar diferentes configurações ao longo dos tempos e em diferentes lugares.

Nas breves exposições acima descritas, temos modelos que se aplicariam, principalmente, à realidade de cidades norteamericanas nas primeiras décadas do século XX. Esses modelos eram propostos para explicar a realidade que muitas vezes não condizia com os mesmos, por estar diretamente ligados à morfologia urbana, sem considerar os processos e fluxos estabelecidos. Foram ocorrendo reformulações no sentido de dar explicação à forma urbana, mas que continuavam tentando encaixar a realidade em modelos, não dando ênfase ao processo de produção do espaço por meio do sistema capitalista, que resulta em uma configuração espacial ditada por relações de poder.

Diante de uma nova reformulação foi apresentada a teoria dos núcleos múltiplos, formulada em 1945 pelos geógrafos C. D. Harris y E. Ullman, expressando que “[...] las ciudades tienem una estructura esencialmente celular, en la cual los diferentes tipos de utilización del suelo se han desarrollado alrededor de ciertos puntos de crecimiento, o “núcleos”, situados em el interior del área urbana. (JOHNSON, 1974, p. 240)

Nessa, o CBD está no ponto de acessibilidade máxima, posteriormente estão as atividades que se beneficiam da coesão, no entanto as atividades que se prejudicam mutuamente, como indústrias e áreas residenciais de luxo, não se encontram normalmente próximas. Nessa teoria, ao contrário das duas anteriores, além de um CBD, têm-se vários centros, em uma escala hierárquica, que atendem às necessidades de outras áreas da cidade e leva-se em conta o fato de que a configuração interna das cidades está diretamente ligada às peculiaridades de seus deslocamentos, bem como à ação das forças econômicas e sociais de caráter mais geral. Para Johnson (1974):

Esta teoría tampoco excluye la posibilidad de que se encuentren elementos de las teorías concéntrica y sectorial en algunas ciudades concretas. Quizá sería mejor considerar él enfoque de los núcleos múltiples como una guía orientadora en los estudios sobre la estructura urban, y no como una generalización rígida sobre la forma de las ciudades. (JOHNSON, 1974, p. 241)

Ao redor desses vários centros (subcentros) comerciais se formam distritos residenciais, de tal

modo que as áreas suburbanas das grandes cidades adotam uma configuração policêntrica, independente, em parte pelo menos, das influências do lugar e da história. O resultado final é que a realidade parece consistir no que A. Hawley denominou de ‘‘uma constelação de centros formada por una mescla de áreas internamente homogêneas.” (JOHNSON, 1974)

Nesses estudos, o espaço é tido como palco de ações, mas essas não sendo consideradas no seu âmago, como as determinantes do processo de produção e contínua reprodução do espaço urbano. Um dos exemplos, além dos estudos ecológicos, é o de Pierre George, da Escola Francesa que em seu Livro Geografia Urbana (1983) apresenta idéias representativas dessa escola, considerando o espaço como palco de ações não compreendendo as relações de produção como imbricadas com ele. Uma outra marca desse autor é sua análise que se constitui em avanço em relação às formulações ecológicas, à medida que não desenvolve modelos para neles encaixar a realidade.

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Johnson (1974), em seu “Geografia Urbana”, apresenta uma proposta diferente em relação à Ecologia, fazendo uma caràcterização do centro de acordo com várias denominações dadas à área central, procurando traços comuns entre vários centros. Não adota um modelo, e sim considera as diversas formas de centro, considerando como primordiais três características para explicá-lo, que são: acessibilidade, ausência de moradores e verticalização.

Como podemos perceber nas teorias ou enfoques acima, o centro é sempre analisado com base nas funções que abriga, bem como as que ele expulsa, diante do processo de reestruturação urbana, permanecendo e implantando-se usos. Como vimos, a função residencial, durante muito tempo, esteve localizada nessa área, de forma marcante. Nas cidades norteamericanas, os trabalhadores residiam próximos ao centro, em outras cidades, como Paris (década de 1950), o segmento de alto poder aquisitivo residia nessa área, como em muitas cidades brasileiras.

Com o crescimento do tecido urbano aliado à especulação imobiliária que faz com que o preço do solo seja máximo nessas áreas e, ainda, com o desenvolvimento dos transportes, ocorre uma substituição de usos, de acordo com o poder aquisitivo das diferentes camadas. Essa função não foi totalmente eliminada dessa área, mas diminuiu e também assumiu novas formas, como a verticalização para habitar.

O centro reflete as formas atuais e as do passado, não há um só tipo de centro urbano, há velhas construções e edifícios recentes, há os constituídos de arranha-céus ou de casas térreas, ou mistura de atividades essenciais no andar térreo dos prédios e residências nos outros pavimentos, dependendo da complexidade do fenômeno urbano. (SANTOS, 1959)

O centro urbano é o lugar de vários usos que se atraem/ repelem num processo contínuo (WHITACKER, 1991). Como ressalta esse autor, primeiramente o centro é tido como sede do poder local, do comércio principal, como núcleo lúdico da cidade, como local de residência da elite, estando em um lugar de mais fácil acesso. Com a saturação dessa área diante dos congestionamentos e fluxos de pessoas e de sua popularização, há uma saída desse segmento para áreas mais exclusivas, muitas vezes na periferia onde se localizam condomínios fechados. A acessibilidade, para aqueles que possuem meios de deslocamento, proporciona as escolhas de onde residir e onde consumir, evidenciando-se como uma das dinâmicas segregativas do espaço urbano.

Diante do caráter político e religioso que esse centro possuía, havia uma “necessidade” de uma área que representasse esse poder, ocorrendo uma segregação em relação ao restante de atividades e porções da comunidade. (WHITACKER, 1991)

Uma das funções que caracterizam fortemente essa área, diante de “...todas as atividades

registradas no Centro da cidade, [...] é, sem nenhuma dúvida, o comércio, que ocupa a maior área e alcança a própria zona periférica. (MULLER, 1958, p. 159) Como bem apresentou Beaujeu-Garnier:

Se algumas cidades não são segundo a expressão de HenriPirenne “filhas do comércio” [...] nenhuma, em todo o caso, se pode vangloriar de escapar à sua presença e à sua influência; nenhuma pode passar sem intercâmbio, por vezes criador e motor de crescimento urbano. (BEAUJEUGARNIIER, 198O, p. 2O3)

A função comercial é a mais antiga devido ao papel de encruzilhada de vias vitais de

comunicação (MULLER, 1958). Além do comércio, tem-se a instalação de serviços, que conforme Castells:

[...] se endereçam ao maior número de consumidores ou usuários específicos, e a proximidade espacial não intervém absolutamente na utilização dos serviços oferecidos. É fácil explicar a implantação destas atividades no centro, se vemos na economia de mercado o regulador do esquema espacial urbano. Encontramos aí os estabelecimentos aos quais a centralização oferece um benefício suficiente para compensar o preço elevado do terreno e os problemas de organização derivados da congestão deste espaço. (CASTELLS, 1983, p. 313)

O centro é tido também como núcleo lúdico, não se restringindo apenas ao aspecto diretamente

funcional dos espetáculos e centros de diversão, mas, mais ainda, da sublimação do ambiente urbano por

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meio de escolhas possíveis e uma valorização da disponibilidade de consumo, que é a sua principal característica. (CASTELLS, 1983).

O comércio encontrou, no interior da pequena cidade, um espaço privilegiado pelas possibilidades de acesso, que lhe assegurou o máximo de clientes e lhe permitiu desenvolver-se, mantendo-se no centro, onde pôde pagar os preços relativamente elevados do solo. Com o crescimento urbano, toma-se insuficiente a estrutura mononuclear, multiplicam-se os estabelecimentos comerciais ao longo de grandes eixos de circulação. Aparecem núcleos secundários e diante da acessibilidade, as localizações favoritas correspondem, ou a um cruzamento de grandes vias ou àproximidade de um bairro novo muito povoado (BEAUJEU-GARNIER, 1980). O comércio vai se desenvolvendo, criando a partir do processo de reestruturação urbana novas formas para se apresentar, como vias, eixos de circulação, subcentros e também os shopping centers. Para Müller (1958).

A concentração do comércio varejista em determinadas ruas de bairros afastados ou não, a exemplo do que se registra em outras grandes cidades, nada tem de recente e de extraordinário. O que desejamos focalizar é o aparecimento de uma área, em quase tudo idêntica ao centro da cidade, como a que atualmente existe à Rua Augusta ... Este “pequeno centro” não se limita a atender à freguesia dos bairros que lhe estão próximos; em virtude da alta qualidade de seu comércio e das facilidades no que diz respeito ao estacionamento de automóveis particulares ... recebe a preferência de variada clientela, que muitas vezes procede de bairros afastados, representando, em proporções mais reduzidas, um papel idêntico ao da verdadeira área central das metrópole. (MULLER, 1958, p. 167)

Essas formas de comércio e consumo, não mais restritas ao centro, vêm ocorrendo há muito

tempo, como retrata Muller, já em 1958, em um estudo que realizou sobre a área central da cidade de São Paulo.

Nas cidades de grande porte, a descentralização já vem acontecendo há mais tempo que nas cidades médias, o que pode dar a impressão de que os eixos, vias de especialização, subcentros, sejam formas particulares dessas cidades. Com nos mostra Villaça, “o primeiro subcentro a surgir no Brasil foi o Brás, em São Paulo, na década de 1910; logo em seguida, surgiu o subcentro da Tijuca, na Praça Saens Pefia, no Rio.” (VILLAÇA, 1998, p. 294)

Diante da descentralização e formação de novos núcleos, não há uma satisfação das necessidades dos indivíduos que se encontram próximos a esses, pois não é somente a questão da localização que é considerada, mas também as condições para terem atendidas as suas necessidades.

A área central, na maioria das vezes, reforça sua centralidade à medida que o tecido urbano se estende e novas formas de comércio se apresentam, pois mesmo com a descentralização, é nessa área que permanece uma diversidade e quantidade de estabelecimentos, voltados para o atendimento de toda a cidade, em contraposição às vias especializadas e subcentros que se destinam a uma clientela mais restrita. No

[...] núcleo central, reconhece-se uma maior selecção de produtos e a possibilidade de agrupar as deslocações, mas censura-se os amontoados de gente e congestionamento da circulação. A favor do comércio suburbano conta, eventualmente, a maior proximidade da habitação e os horários mais favoráveis, mas critica-se a falta de variedade, os preços demasiado elevados e a falta de diversificação das actividades. (BEAUIEU-GARNIER, (1980, p. 213)

O papel simbólico e a função comercial, amplamente considerados como traços característicos,

sofrem uma tendência crescente à abertura espacial, à medida que ocorre a descentralização, sendo que “...o velho centro urbano se define cada vez mais por seu papel de gestão e de informação, e os novos centros se caracterizam sobretudo pela criação de meios sociais. (CASTELLS, 1983, p. 320)

Concomitante a essa descentralização e à medida que a função residencial vai desaparecendo dessa área, a expressão “centro de negócios”, em sentido amplo incluindo a gestão pública, política e administrativa, torna-se a mais adequada para expressá-lo (CASTELLS, 1983). As novas áreas articuladas à malha urbana geraram mudanças na estrutura dos espaços intra-urbanos, novos nós de circulação foram se constituindo e novos pontos foram sendo utilizados para abrigar as funções comerciais e de serviços. (MONTESSORO, 1999)

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No centro das cidades brasileiras se localizam os órgãos de administração pública, a igreja matriz, tribunais, distrito financeiro, comércio atacadista e comércio varejista, cinemas e teatros e ao redor estão as zonas residenciais dos segmentos mais rico. Os serviços urbanos se irradiam do centro à periferia. (SINGER, 1980)

Em princípio, como ocorre na maioria das cidades, o centro de Presidente Prudente foi área que concentrava as atividades comerciais que se encontravam distribuídas no quadrilátero, que compreende a Vila Goulart, demarcado pela confluência das avenidas Washington Luiz, Manoel Goulart, Coronel Marcondes e Brasil. Essa área se constituía como nó de circulação, havendo a presença de uma centralidade única, formada pela concentração de usos comerciais e de serviços. A função bancária sempre foi bastante expressiva nessa área, além de hotéis e restaurantes que lá se instalavam (MONTESSORO, 1999). Além desses usos havia, até a década de 1960, a presença ainda significativa do uso residencial.

Na década de 1980 essas avenidas possuíam os usos comerciais e de serviços outrora instalados, além da função residencial que passou a se concentrar nas ruas periféricas ao centro. Foi ocorrendo, ao longo do tempo, a instalação e retirada de usos de acordo com a predominância que se estabelece e que acaba por acirrar a disputa por essas localizações, bem como a intensificação dos fluxos e congestionamentos, poluição sonora, que levou os residentes a buscarem outras áreas.

É importante salientar que a centralidade estará sempre associada aos fluxos que se estabelecem, redefinindo-se à medida que se redefinem os usos, e a partir da reestruturação das cidades que expressa a (re) produção de novos espaços, que retrata o surgimento de áreas comerciais em Presidente Prudente, além do centro, principalmente para o consumo, e novas relações e, diante disso, o conceito de centro precisa ser repensado. O centro é acima de tudo “... o nó de circulação, é o ponto de onde todos se deslocam para a interação dessas atividades aí localizadas com as outras que se realizam no interior da cidade ou fora dela. Assim o centro pode ser qualificado como integrador e dispersor ao mesmo tempo. (BELTRÃO SPOSITO, 1991, p. 06)

Há uma construção diferenciada do que seja o centro da cidade, com base no uso e na apropriação que se estabelece, considerando as diferentes funções e prédios que vão das mansões aos cortiços, dos escritórios de grandes corporações ao despachante policial, do comércio de luxo ao camelô, que demonstram no estudo de seu processo as segregações urbanas e socioespaciais, que estão presentes na produção, reprodução, representação do centro e da centralidade e na hierarquização dos diferentes usos que se faz da cidade (WHITACKER, 1997). Ocorre diante dessa diferenciação várias delimitações e dimensões a respeito dessa área, principalmente na identificação de símbolos tidos como centrais (igreja, praça, calçadão, etc)

A área central concentra qualidades como acessibilidade, uma quase ausência da função residencial e da função industrial, além de possuir uma certa diversidade de estabelecimentos comerciais e de serviços. Para Alves (1999) a acessibilidade ao centro, permite a uma boa parcela dos citadinos seu uso, e mantém o comércio variado com preços atraentes para os de menor poder aquisitivo, que utilizam o transporte coletivo.

Como salienta Villaça:

Nessa sociedade, as diferentes classes sociais têm condições distintas de acessibilidade aos diferentes pontos do espaço urbano. [...] Algumas possuem automóvel, outras não. Algumas podem tomar ônibus, outras são obrigadas a se deslocar a pé. Algumas estão próximas a ruas por onde passam cinco a seis linhas de ônibus; outras estão perto de vias onde passa apenas uma. [...] sendo objeto de disputa entre as classes, o centro se torna mais acessível a uns do que a outros... (VILLAÇA, 1998, p. 243)

No caso do centro de Presidente Prudente, como de outras cidades brasileiras, aos poucos foi

ocorrendo uma certa especialização de usos de solo em algumas vias, devido ao predomínio de um tipo. Ocorre uma certa diferenciação sócio-econômica de algumas áreas, ou pela especialização funcional ou pela clientela que servem. Na avenida Tenente Nicolau Maffei e Barão do Rio Branco, há a presença de várias agências bancárias. Nas imediações dessa área, há também a ocorrência de vias especializadas, como a avenida Washington Luiz onde há uma grande presença de serviços médicos e a Brasil onde há uma grande variedade de estabelecimentos destinados a automóveis.

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Diante da “saída” dos residentes da área central, esse espaço é recriado à medida que outros usos se instalam, sendo importante considerarmos as transformações que ocorrem no seu interior ao longo do tempo, para entendermos a configuração espacial anterior e a presente, que estão diretamente ligadas aos interesses dos vários agentes que promovem a criação/recriação e a renovação de áreas no interior do espaço urbano, e a cidade é um retrato desse processo.

O centro se encontra em constante transformação das formas materiais e das imateriais. (GREZEGORCZYK, 2000). Com essas constantes mudanças, as novas formas comerciais adquirem determinadas expressões de acordo com o porte da cidade. Nas médias, o centro geralmente é único, o que favorece a concentração de atividades, mas ocorre a presença de subcentros, que se articulam com o centro principal e não desempenham um número grande e diversificado de funções, que se definem de acordo com o potencial de consumo das diferentes áreas no interior da cidade. Os espaços da cidade são desiguais, pois a sua heterogeneidade:

[...] não é dada apenas pelos momentos desiguais, pela necessidade de desigualdade para se realizar a produção hegemônica [...] o espaço não é homogêneo porque é globalmente produzido por uma ordem hegemônica. Ele é heterogêneo porque a desigualdade é necessidade para a produção hegemônica do espaço e da sociedade. A heterogeneidade do espaço se dá pelo desenvolvimento desigual e combinado, pela divisão internacional do trabalho, mas também pelas particularidades do lugar, país, do bairro. (WHITACKER, 1997, p. 47)

Diante dessa heterogeneidade ocorre uma participação distinta de cada área no mercado

imobiliário, levando à uma hierarquia no espaço urbano, de acordo com a atração que os imóveis exercem sobre compradores e vendedores, que consideram as suas característiças, “[...] como acessibilidade, preços, amenidades existentes, infra-estrutura, etc, ou, pela ação direta dos agentes empresarialmente organizados que se incubem de levar tais áreas ao mercado. “(MELAZZO, 1993, p. 65). O setor imobiliário tem grande influência nessa hierarquização de áreas, pois quem promove a distribuição perversa dos serviços urbanos não é o Estado, mas o mercado imobiliário (SINGER, 1980)

Levando-se em consideração as características das diferentes áreas e a distância em que se encontram em relação ao centro, onde geralmente estão concentrados os equipamentos urbanos de uso coletivo, percebemos diferentes arranjos que evidenciam que as áreas assumiram e vêm assumindo, ao longo dos tempos, novas conotações, como as periferias que não abrigam somente segmentos de baixo poder aquisitivo, mas também de alto poder aquisitivo que reside em condomínios fechados.

A periferia existe diferentemente para os segmentos, que com seu potencial de consumo atrai a instalação de equipamentos, melhorias, e uma interligação entre as demais áreas que possuem o que essa não tem. Para a periferia rica, a falta de estabelecimentos não é um agravante, pois seus moradores podem ir buscá-los, já que possuem os meios e condições de deslocamentos.

Com a descentralização e a constituição de novos núcleos, ocorre uma melhoria nas áreas em que se instalam, em detrimento de áreas que permanecem sem receber a infra-estrutura adequada, por não se constituir em atrativo e abrigar moradores de baixo poder aquisitivo, como se visualiza nos conjuntos habitacionais periféricos.

A cidade se estende territorialmente, amplia-se a relação entre o centro e a periferia e o centro não consegue mais satisfazer às necessidades da sociedade e do setor produtivo, pela intensidade dos fluxos e pelas distâncias. Torna-se difícil o seu acesso e ele explode, deixando, em outras localidades, parte de suas funções, principalmente no que diz respeito ao setor comercial e de serviços. Mas, também, ele implode com a “[...] deterioração de algumas de suas áreas que perderam as funções ou ainda que, na aparência, ele se deteriore, é por ele que se faz a articulação entre os diversos novos centros ou subcentros, já que nele continua conectado o poder econômico e político. (ALVES, 1999, p. 63) Diante da ocorrência de vários núcleos, o papel do centro principal é reforçado, pois a fragmentação do espaço se apresenta, ressaltando o poder de unificação do centro como articulador do processo. (ALVES, 1999)

Os confrontos gerados pelo uso do espaço central, entre detentores de poder e outros segmentos da sociedade, muitas vezes não são explícitos, pois os primeiros favorecem constantes remodelações no intuito de ampliar ainda mais o valor da área, como por exemplo, os projetos de revitalização que ocorrem em cidades, na maioria de grande porte, como São Paulo.

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Por meio dos programas de revitalização da área central, tão presente nas cidades de grande porte, o centro é enfocado como degradado, deteriorado, e que necessita de uma melhora na forma estrutural. A forma é amplamente enfocada, pelo poder público e privado que visam a melhoria da aparência, no sentido de favorecer investimentos para o setor imobiliário.

Para Frúgoli Júnior (2000), a revitalização de áreas centrais está diretamente associada ao surgimento de subcentros, na medida em que o centro tradicional começa a competir com os demais, do ponto de vista econômico.

Faremos uma exposição sobre a constituição dos subcentros, como uma das formas comerciais que se desenvolvem com o processo de reestruturação urbana e, posteriormente, enfocaremos os subcentros analisados. 2.2- Subcentros

Resultante do processo de expansão urbana, os estabelecimentos comerciais e de serviços vão se instalando no tecido urbano de maneira diferenciada, atraídos por densidade populacional, por vias de circulação intensa e, mais ainda, pelo potencial de mercado. Com relação à expansão do setor terciário que caracteriza esses desdobramentos, Soares (1994) argumenta que:

[...] a expansão do setor terciário se dá não apenas na área de maior concentração comercial da cidade, como também se difunde pelo tecido urbano, junto aos bairros mais populosos e as áreas de concentração da população de maior renda... o comércio popular forma pequenos centros comerciais de bairro, da mesma forma que estruturam-se as áreas comerciais sofisticadas junto aos bairros mais nobres. (SOARES, l994,p. 133)

Tem-se, assim, um reordenamento do espaço, que põe fim à centralidade única, possibilitando a

multicentralidade, que de acordo com a diversidade funcional que se estabelece, gera também a policentralidade.

Há, no entanto, diferentes escalas de centralidade que se articulam em função dos diferentes níveis de especialização funcional e diferenciação e/ou segregação social, havendo interesse dos proprietários fundiários e imobiliáios e empresários de cada área para ampliar sua capacidade de atração. Assim, a ocorrência de diferentes níveis de especialização e importância entre os centros é denominada como multicentralidade. As diferenças locacionais vão propiciar diferentes centralidades e dependendo de suas características e complexidade funcionais, permitir a diferenciação socioeconômica dessas áreas de concentração, segundo seus freqüentadores e consumidores, gerando uma centralidade diversificada ou policentralidade.

Diante da multiplicação de áreas centrais emergem os subcentros o que “[...] é um fenômeno comum nas cidades grandes, mas também está presente em algumas médias, em processo de aglomeração urbana, as quais desempenham funções regionais, como é o caso de Maringá.” (GRZEGORCZYK, 2000,p. 169). Esses possuem uma complexidade funcional reproduzindo as características essenciais do centro tradicional, gerando também centralidades por meio do intercâmbio de mercadorias, serviços, idéias, proporcionando fluxos de pessoas, de transportes, aglomerações e concentrações.

Além dos conjuntos habitacionais das áreas distantes e das vias ou corredores especializados, ocorre em algumas cidades, nas proximidades de escolas o desenvolvimento de subcentros em áreas propícias, como eixos de circulação, parques, shopping-center, clubes, etc. Cada uma dessas áreas de adensamento pode favorecer a ocorrência de centralidades dependendo, porém, de características próprias que podem tornar-se atrativas para o seu desenvolvimento.

Mtiller (1958) faz referência aos subcentros que ocorreram em São Paulo, classificando-os como pequenos centros, áreas onde quase tudo é idêntico ao centro da cidade (no caso de São Paulo a Rua Augusta, Rua Estados Unidos etc). Assim, é nesse sentido que os subcentros ou os pequenos centros vão se desenvolver, para atender à clientela que consumia no centro tradicional e agora já se encontra bem distante deste.

Mesmo com a descentralização dos comércios e serviços, que poderia amenizar as grandes concentrações e distâncias entre a área central e outras áreas, o espaço urbano no seu todo não é plenamente atendido, permanecendo o deslocamento dos moradores das mais distantes áreas para o centro

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principal, pois os subcentros e outros desdobramentos não atendem às necessidades das camadas menos abastadas, principalmente daquelas que se encontram cada vez mais no entorno da área urbana. Os subcentros, como resultado do processo de descentralização inerente ao processo de reestruturação urbana, constituem-se em função das demandas potenciais de algumas áreas. Muitas vezes se desenvolvem de acordo com os atrativos proporcionados por algum tipo equipamento ou pelo poder aquisitivo dos moradores de algumas áreas, e não para facilitar a vida dos moradores das áreas periféricas.

A área central continua, apesar da crescente descentralização, abrigando um grande número de estabelecimentos comerciais e de serviços, principalmente os financeiros e administrativos, o que se atrela a uma crescente popularização favorecida, principalmente, pelo comércio varejista voltado a atingir um mercado consumidor que se utiliza, principalmente, do transporte coletivo.

Desse modo, essa área central que está voltada para uma demanda maior, formada por moradores provenientes de toda a cidade inclusive daqueles atendidos pelo subcentro em destaque, gera uma concentração e desenvolvimento diferentemente proporcional e também funcional em relação aos subcentros, com uma estreita relação entre oferta e procura permeando a configuração espacial, baseada nos diferentes fluxos de circulação, que vão favorecer a acessibilidade. (PEREIRA, 1998).

Em algumas cidades tem-se a constituição de subcentros em áreas residenciais e, principalmente nos conjuntos habitacionais. Esses pequenos centros, assim denominados por Müller (1958), são constituídos por comércio varejista, abarcando uma grande diversidade de estabelecimentos como padarias, açougues, bares, mini-mercados, mercearias, confecções, lanchonetes, farmácias, etc, alguns serviços como consultórios médicos e odontológicos, cabeleireiros. Dependendo de cada formação, temos um maior ou menor número de estabelecimentos, com maior ou menor complexidade, gerando arranjos espaciais nesses subcentros, o que de certa forma os caracteriza.

Em Presidente Prudente vários subcentros se constituíram, como o da COHAB, Conjunto Habitacional caracterizado por grande adensamento populacional e por uma certa distância da área central, favoreceu o desenvolvimento de um subcentro para atender às necessidades imediatas dos moradores que nele residem. Assim, instalaram-se no subcentro da COHAB inúmeros estabelecimentos comerciais e de serviços, como lanchonetes, açougues, padarias, sorveterias, lojas de roupas, de aviamentos, farmácias, papelaria, locadoras, postos de gasolina, etc.

O referido subcentro é bem diversificado, estando mais direcionado às atividades comerciais, principalmente no ramo da alimentação. Devido à expansão constante do tecido urbano, que ultrapassou os limites dessa área, a mesma não se encontra tão periférica como no início da sua formação.

Com a instalação do Conjunto Habitacional Ana Jacinta (1992), que se localiza na porção sudoeste da cidade, resultado da expansão do tecido urbano e do adensamento populacional da área escolhida pelo poder público para a implantação desse conjunto, houve, também nesse setor, a emergência de outro subcentro (o subcentro do Conjunto Habitacional Ana Jacinta será enfocado mais detalhadamente nos próximos capítulos).

O conjunto habitacional encontra-se a aproximadamente 7 Km do centro tradicional, uma distância considerável, e abriga um grande contingente populacional.

Nesses dois subcentros algumas necessidades básicas48 de consumo, de equipamentos e serviços (alimentação: mercearias, mmi-mercados, açougues, padarias, sorveterias; serviços: pequenas oficinas, salões de beleza, imobiliária, agência dos correios) são atendidas, mas as atividades bancárias, o grande comércio varejista, serviços médicos e hospitalares continuam concentrados no centro tradicional. Os moradores continuam se deslocando até ele para satisfazer as demais necessidades.

Já o subcentro do Jardim Bongiovani, que também se formou por características especiais, é bem mais diversificado, pois com a instalação da Universidade do Oeste Paulista (UNOESTE) no loteamento vizinho, Cidade Universitária, houve um desenvolvimento de comércios e serviços para atender a clientela que reside nas suas imediações. Assim, temos não só os estudantes da UNOESTE, como também os moradores que possuem alto poder aquisitivo.

Tais fatores. favoreceram e influenciaram a ocorrência de inúmeros estabelecimentos que, nessa área, foram se edificando, no intuito de atender as necessidades básicas de um mercado consumidor atraente e especial. Nesse sentido, foram se instalando os mais variados tipos de comércio como

48 Consideramos por necessidades básicas: moradia; alimentação; saúde; segurança; educação, renda e lazer.

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papelarias, farmácias, padarias, lanchonetes, mercearias, lojas de confecções e de calçados, joalherias, floriculturas; serviços como correios, bancos, academias, salões de beleza, imobiliárias, despachantes, boates etc. (PEREIRA, 1998)

Com os processos que ocorrem no interior da cidade, reestruturando-a, os deslocamentos são cada vez mais intensos e constantes estabelecendo-se os mais diferentes fluxos entre os moradores das áreas mais periféricas e o centro, para suprir suas necessidades. A especialização funcional das áreas, separando muitas vezes a função residencial da comercial e de serviços. Mas o deslocamento não é facilitado, repercutindo de forma negativa nas condições de vida das populações residentes nas áreas mais distantes do centro. Santos Neto (1991) deixa claro que:

Uma cidade representativa de sociedade de classes mostra que “nem todos têm os mesmos recursos e meios de transporte”, o que leva à conclusão que “o ônus do deslocamento varia de classe para classe”. Se nem todos têm os mesmos meios e recursos para o deslocamento, o centro da cidade (como lugar que deve otimizar os deslocamentos de toda a população) não existe para todos, ou seja, “é centro para uns e não é centro para outros”. (SANTOS NETO, l991,p. 13)

Pereira (1998) afirma que apesar de existirem vários estabelecimentos comerciais e de serviços

como no centro principal, vê-se que a diversidade e/ou sofisticação não acontece nesses subcentros distantes, devido ao tamanho do mercado consumidor e/ou poder aquisitivo de sua clientela que, muitas vezes, não pode pagar por essa sofisticação. Geralmente, os moradores que residem nas áreas polarizadas por um subcentro utilizam-se, predominantemente, do transporte coletivo urbano para seu deslocamento e precisam se locomover até a área central para utilizar os serviços bancários, de escritórios, academias, igrejas, cinemas, pois o “seu” centro não está equipado com esses serviços. (PEREIRA, 1998)

Ocorre uma descentralização de alguns estabelecimentos aliada à centralização de outros, um processo nitidamente contraditório. Nessa lógica de descentralização/centralização percebemos o movimento da realidade espacial urbana, que responde aos interesses do sistema capitalista que a engendra.

Os subcentros possuem relações de complementaridade com o centro tradicional, mas à medida que as empresas deste buscam novas localizações nos subcentros, os impactos sobre ele ocorrem. Com isso, há mudança de moradores da área central e uma deterioração desse núcleo, havendo assim a propagação de projetos de revitalização para que o conteúdo econômico e social dessa área seja recuperado e o setor imobiliário recobre seus lucros.

Segundo Pereira (1998), a área central é uma das regiões mais bem servidas de infra-estrutura e de todos os serviços necessários à manutenção das condições de vida. Encontramos calçamento de ruas, limpeza, água, luz, saneamento básico, praças e os serviços básicos que visam à manutenção das atividades essenciais para o desenvolvimento urbano. Claro que, em alguns centros, o que se encontra é muito mais precariedade, abandono, do que ambientes com características descritas acima. Essas vão variar de acordo com o desenvolvimento econômico de uma cidade atrelado à sua administração.

Percebemos numa breve comparação, diferenciações nas áreas centrais e periféricas, estando estas últimas quase sempre desprovidas dos meios de consumo coletivo (infra-estrutura, serviços e equipamentos urbanos) para a vida urbana. (PEREIRA, 1998) Com relação a essas diferenças, Santos (1990) demonstra claramente a contradição centro-periferia, ao exemplificar o caso de São Paulo que tem na sua área central grande número de investimentos em infra-estrutura, desde o básico (iluminação, água, esgoto) até ensino, equipamentos culturais, de saúde, equipamentos de transportes etc. Em contrapartida, as áreas periféricas de São Paulo não possuem serviços básicos para os moradores que ali residem e não podem pagar por melhorias, vivendo em condições subnormais.

Referindo-se também à periferização, Pereira (1998) destaca que, nas áreas periféricas, a infra-estrutura é criada aos poucos e à medida que se valoriza a localização, os seus proprietáios são forçados a buscar outras áreas ainda mais periféricas, cujo desenvolvimento principalmente com relação à infra-estrutura, favorece as áreas intermediárias entre centro e periferia, os denominados vazios urbanos, que se beneficiam da implantação dessas, gerando ainda mais a especulação imobiliária. O que se tem é o constante processo de reestruturação urbana, ampliando os limites territoriais, em termos de espaço físico, mas esse crescimento não é acompanhado das infra-estruturas e melhorias urbanas necessárias para a manutenção da vida, já que diante dos espaços diferenciados no interior da cidade, deveria haver

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melhores inter-relações entre os indivíduos e as frações que vão se definindo para os diversificados usos, aos quais todos deveriam ter acesso.

A acessibilidade dentro desse espaço segmentado é dificultada para os indivíduos de baixo poder aquisitivo, que necessitam quase que, exclusivamente, do transporte coletivo para realizar esses usos. A configuração espacial que se visualiza, como o processo de expansão urbana, é composta por descontinuidades, espaços segmentados do habitar, do lazer, do consumir, tornando-se cada vez mais necessário promover a acessibilidade, principalmente para os segmentos de baixo poder aquisitivo.

Seria importante favorecer a descentralização de equipamentos, para que os segmentos de menor poder aquisitivo possam adquirir os meios de consumo necessários a sua manutenção, sem grandes deslocamentos que são dispendiosos tanto em tempo quanto em dinheiro.

Assim, a ocorrência de subcentros pode ser uma forma de diminuir as desigualdades socioespaciais, mesmo considerando que é preciso haver mercado potencial para atrair investimentos do setor comercial e de serviços nas diferentes áreas. O poder público ao instalar equipamentos urbanos, investir na infra-estrutura, poderá valorizar essas áreas mais prejudicadas. Consideramos que isso é um processo e que os resultados podem ser obtidos a longo prazo, mas é preciso iniciá-lo. Aliado a isso teria que ocorrer uma reestruturação do transporte coletivo para favorecer a acessibilidade dos que possuem menor poder aquisitivo às diferentes partes da cidade, de modo a adquirir o que não existe na sua área.

Esses moradores, que dependem de transporte coletivo, pelo qual pagam (e para esses o custo é alto) precisam ter reduzido os seus constantes deslocamentos para adquirir serviços de saúde, serviços bancários, de educação e lazer já que ficam, na maioria das vezes, com restrições para a realização do consumo pelo encarecimento do deslocamento ou por falta de acessibilidade.

No próximo item faremos breves considerações a respeito da centralidade, que se redefine, multiplica-se, e se dispersa com a reestruturação do espaço urbano. 2.3. Centralidade.

A centralidade é entendida como processo e o(s) centro(s) como expressão territorial, sendo a centralidade identificada pela diversidade de fluxos e pela fluidez no território. Ela não se localiza em toda a área central, sendo mais visível em alguns pontos, para onde convergem os fluxos materiais e imateriais. No interior do centro podemos encontrar um ou mais pontos que expressam a centralidade, podendo identificar a centralidade passada e a presente, pois ela está em constante movimento. (GRZEGORCZYK, 2000)

Para Frúgoli Júnior (2000), o processo de expansão urbana favorece a descentralização, que dá origem a novas centralidades, mas mesmo assim não há uma perda da importância exercida pelo centro tradicional.

Com a multiplicação e diversificação de áreas comerciais e de serviços, há uma descentralização e uma relocalização de novos centros, concomitante ao desenvolvimento de novas centralidades, que podem ser apreendidas em escalas intraurbana e interurbana.

As novas formas que vão propiciar essas novas centralidades, não somente em cidades de grande porte, mas também nas cidades médias, como shopping-centers, hipermercados, galerias comerciais, subcentros, vias especializadas, são empreendidas pelo setor imobiliário, favorecem o fim da centralidade única e fazem emergir a centralidade múltipla e complexa (BELTRÃO SPOSITO, 2001). Associado a isso está a expansão territorial urbana, com uma descontinuidade da malha urbana, que proporciona uma fragmentação e diferenciação socioespacial, diante dessas redefinições de centralidades. É importante destacar que:

Essa redefinição não pode, no entanto, ser analisada apenas no plano da localização das atividades comerciais e de serviços, como já tem sido destacado por diferentes autores, mas deve ser estudada a partir das relações entre essa localização e os fluxos que ela gera e que a sustentam. Os fluxos permitem a apreensão da centralidade, porque é através dos nódulos de articulação da circulação intra e interurbana que ela se revela. Essa circulação é, evidente, redefinida constantemente pelas mudanças ocorridas na localização territorial das atividades que geram a concentração. (BELTRAO SPOS1TO, 2001, p. 238)

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A centralidade se redefine continuamente, pelos fluxos das pessoas, mercadorias, idéias, informações, não estando associada somente ao que está fixo no espaço, mais ainda pelas apropriações, pelas relações que se estabelecem com ele, no decorrer do tempo.

Na cidade de Presidente Prudente, a redefinição da centralidade intraurbana se deu com a descentralização dos equipamentos comerciais e de serviços, que favoreceu o desenvolvimento de novas áreas centrais, além do quadrilátero definido como centro. Podemos perceber que surgiram, diante da expansão territorial, novas formas comerciais como: subcentros da COHAB, do Jardim Bongiovani, do Conjunto Habitacional Ana Jacinta; vias especializadas como Avenida Washington Luis (serviços médicos), Avenida Brasil (ramo de autopeças); shoppingcenters (Americanas e Prudenshopping), que geram centralidades que se diferenciam entre si e também durante o dia. Elas se redefinem diante dos fluxos, dos horários, da clientela, etc.

Dessa forma, ocorrem centralidades e subcentralidades, pois algumas dessas formas citadas anteriormente, como subcentros, geram fluxos que se originam de parte do território urbano. (BELTRÃO SPOSITO, 2001)

A centralidade é definida e redefinida constantemente diante da produção e reprodução do espaço, que cria e recria formas comerciais, propiciando mudanças espaciais, fluxos na escala intra e interurbana, possibilitado pelo uso intenso dos transportes que amplia a circulação.

Com a descentralização e recentralização das atividades comerciais e de serviços, são criadas e recriadas centralidades a partir das novas formas que se expressam no espaço, portanto há uma centralidade múltipla, pois elas se diferenciam entre si, do ponto de vista funcional, no plano econômico e há uma centralidade polinucleada, que é determinada pelos fluxos gerados e clientela atendida, no plano socioespacial. Além dos fluxos e das diferentes formas comerciais, que definem a centralidade, há variações de consumo e mobilidade no decorrer do tempo, em relação aos espaços de consumo, favorecendo a definição de uma centralidade cambiante. No âmbito das escalas intra e interurbana, a descentralização e recentralização atende clientelas das diferentes partes da cidade e também de cidades da região, gerando uma centralidade complexa, à medida que essas escalas se entrecruzam. (BELTRÃO SPOSITO, 2001)

Para Alves (1999), a centralidade contribui para o reforço da desigualdade espacial, diante das especificidades de funções de cada novo centro, que leva para as periferias pessoas e atividades, que não fazem mais parte dessa forma especializada e funcional. Para a autora, o processo de reprodução espacial tende a funcionalizar os espaços, com normas, limitando os usos e apropriações dos lugares pelos diferentes segmentos da sociedade.

Há a expansão da centralidade, com novas formas comerciais e de serviços, algumas delas especializadas, o que restringe o acesso de todos, enquanto o centro em alguns momentos pode favorecer uma melhor possibilidade de apropriação, por abrigar a diversidade. Temos que ter claro, que essa diversidade não é condição única para permitir a apropriação, sendo necessário possibilitar o acesso, que muitas pessoas não possuem em função da área em que residem e dos custos exigidos para se chegar a esse centro.

Tem-se uma multiplicidade de áreas centrais, que reforça a segmentação e fragmentação do espaço e redefine a centralidade como dispersa em núcleos especializados funcionalmente em contraposição à centralidade tradicional que se caracteriza pela diversidade da área central. 3- Referências bibliográficas. ABREU, Dióres Santos. Formação histórica de uma cidade pioneira paulista: Presidente Prudente. Presidente Prudente: FFCLPP, 1972. ALVES, Glória da Anunciação. O uso do centro da cidade de São Paulo e sua possibilidade de apropriação. São Paulo: FFLCHJUSP, Tese, 1999. BEAUJEU- GUARNIER, Jaqueline. Geografia Urbana. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1980, p. 13-95.

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O URBANO COMO LIBERTAÇÃO – UMA LEITURA SOBRE LEFEBVRE*

Helton Ricardo OURIQUES**

Resumo: Este texto tem por objetivo central discutir o significado do urbano em Henri Lefebvre, um dos maiores pensadores do Século XX. Apresenta o ponto de vista do autor sobre a urbanização da sociedade, sobre o domínio capitalista na cidade e sobre os problemas da vida cotidiana. Discute ainda a sociedade

urbana como possibilidade de emancipação humana. Palavras-chave: Cidade; Urbano; Cotidiano; Revolução. Resumen: Este texto tiene por objetivo central discutir el significado de lo urbano en Henri Lefebvre, uno de los mayores pensadores del siglo XX. Presenta el punto de vista del autor sobre la urbanización de la sociedad, sobre el dominio capitalista en la ciudad y sobre los problemas de la vida cotidiana. Discute además la sociedad urbana como posibilidad de emancipación humana. Palabras llave: Ciudad; Urbano; Cotidiano; Revolución. Sem dúvida, ousadia é uma palavra que pode, de maneira clara, caracterizar o pensamento de Lefebvre. Em sua obra, somos alertados para os perigos da fragmentação e da totalidade, formas distintas de reducionismo e de simplificação. Por isso, foi um crítico de todas as formas de totalitarismos (em especial o político e o científico), mostrando os equívocos dos determinismos históricos, sociológicos e econômicos. A preocupação que perpassa sua obra é o vir-a-ser49. Daí a aposta na sociedade urbana como caminho possível para a instauração do reino da liberdade de Marx.

Iconoclasta de pré-conceitos, Lefebvre nos inquieta e nos faz refletir. Só isso já justifica sua importância, num tempo em que a produção científica caracteriza-se, predominantemente, pela repetição de verdades absolutas. Mas, para além da inquietação metodológica e teórica, há neste autor uma profunda reflexão sobre o sentido da urbanização da sociedade, sobre a miséria da vida cotidiana e sobre o domínio capitalista no espaço urbano. Assim, o objetivo deste texto é apresentar sucintamente essas reflexões, presentes na obra lefebvreviana50.

1. A urbanização da sociedade.

A urbanização da sociedade aparece em Lefebvre como uma tendência, um horizonte possível. Para ele, a sociedade urbana é uma necessidade teórica: “contra o empirismo que constata, contra as extrapolações que se aventuram, contra, enfim, o saber em migalhas pretensamente comestíveis, é uma teoria que se anuncia a partir de uma hipótese teórica” 51

* Texto publicado em 2001 (v.8), produzido para conclusão da disciplina Urbanização e Produção da Cidade, ministrada pela Profa. Dra. Maria Encarnação Beltrão Sposito, no primeiro semestre de 2000. ** Doutor pelo Curso de Pós-Graduação em Geografia da FCT/Unesp de Presidente Prudente. Professor do Departamento de Economia da UFSC. Correio eletrônico: [email protected] 49 É sintomático, aliás, que Lefebvre tenha escrito um livro sobre Hegel, Nietzsche e Marx que, em sua opinião, expressavam o Pensamento do Século XIX. 50 Foge ao limite deste tipo de trabalho um estudo aprofundado do conjunto da obra de Lefebvre. Assim, basearemos este texto em O direito

à cidade, A revolução urbana, A vida cotidiana no mundo moderno e O pensamento marxista e a cidade. 51 Lefebvre, H. A revolução urbana. Belo Horizonte, Ed. da UFMG, 1999, p. 18.

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O percurso que vai da cidade política à cidade industrial, passando pela cidade comercial, é analisado de forma sintética, mas complexa52. Importa aqui reter que a passagem da cidade comercial para a industrial é marcada pela “inflexão do agrário para o urbano”. Estando constituída a cidade industrial, entra-se no que é denominado de zona crítica, isto é, o duplo movimento de implosão – explosão. Sob o domínio da indústria coexistem, de forma conflituosa, várias lógicas: “a da mercadoria (levada ao limite de tentar a organização da produção de acordo com o consumo); a do Estado e da lei; a da organização espacial (planejamento do território e urbanismo); a do objeto; a da vida cotidiana; a que se pretende extrair da linguagem, da informação e da comunicação, etc.” 53.

Mas Lefebvre não deixa de assinalar enfaticamente o denominador comum: a lógica do capital, já que a cidade, “ou o que dela resta, ou o que ela se torna” é o espaço da produção, da realização e da distribuição da mais valia.

O percurso em direção à sociedade urbana é também detalhado em outros termos. Há três tempos ou domínios: rural, industrial e urbano. Cada um destes corresponde, respectivamente, ao predomínio das lógicas da necessidade, do trabalho e da fruição. O rural implica a “orientação, a demarcação, a capacidade de se apossar dos sítios e nomear os lugares” 54. É o tempo da distinção cidade – campo, que corresponde, como destacado no Direito à Cidade, “...à separação entre o trabalho material e o trabalho intelectual, e por conseguinte entre o natural e o espiritual” 55. É o tempo da produção submetida à natureza, ou como diz Lefebvre, de predomínio de períodos de fome e escassez.

Já o industrial é a “substituição das particularidades naturais, ou supostas como tais, por uma homogeneidade metódica e sistematicamente imposta” 56. Ou seja, da racionalidade capitalista que domina a natureza e a cidade. É o espaço – tempo da mais–valia. Mas não só dominação, também produção da natureza e da cidade, produção do espaço do e para o capital. Assim, “em escala mundial, o espaço não é somente descoberto e ocupado, ele é transformado, a tal ponto que sua ‘matéria- prima’, a ‘natureza’, é ameaçada por esta dominação que não é uma apropriação. A urbanização geral é um aspecto desta colossal extensão” 57.

Quanto à era do urbano, Lefebvre adverte que é necessário abandonar o olhar do passado: “sua fonte, sua origem, seu ponto forte, não se encontram mais na empresa. Ele não pode colocar-se senão do ponto de vista do encontro, da simultaneidade, da reunião, ou seja, dos traços específicos da forma urbana” 58. O urbano, em processo de constituição, seria o espaço–tempo da fruição, da superação da vida cotidiana alienada.

Afirmamos “em processo de constituição” porque ainda estamos, no dizer de Lefebvre, no momento em que “todas as condições se reúnem para que exista uma dominação perfeita, para uma exploração apurada das pessoas, ao mesmo tempo como produtores, como consumidores de produtos, como consumidores de espaço” 59. Daí o espaço urbano ser uma “contradição concreta”.

Contradição concreta porque, ao mesmo tempo em que a segregação e as decupagens se inscrevem no urbano, este aponta a possibilidade de um novo humanismo, o “humanismo na, para e pela sociedade urbana”, porque também há encontros, desencontros, desejos que se manifestam no espaço da urbanidade. A leitura dialética que ele faz a favor e contra a rua, a favor e contra o monumento ilustram que o urbano é, ao mesmo tempo “... um campo de tensões altamente complexo; é uma virtualidade, um possível – impossível que atrai para si o realizado, uma presença – ausência sempre renovada, sempre exigente” 60. Neste sentido, a urbanização da sociedade ainda não é a sociedade urbana, que é um objeto virtual, ou objeto possível, que necessita ser entendido como processo e como práxis.

2. Cidade, dominada pelo capital.

52 Ver o primeiro capítulo de A revolução urbana. 53 Idem, p. 43. 54 Idem, p. 41. 55 Lefebvre, H. O direito à cidade. São Paulo, Moraes, 1991, p. 28. 56 Lefebvre, H. A revolução urbana. Belo Horizonte, Ed. da UFMG, 1999, p. 42. 57 Lefebvre, H. O pensamento marxista e a cidade. Póvoa de Varzim, Ulissea, 1972, p. 169. 58 Lefebvre, H. A revolução urbana. Belo Horizonte. Belo Horizonte, Ed. da UFMG, 1999, p. 44. 59 Lefebvre, H. O direito à cidade, p. 26. 60 Lefebvre, H. A revolução urbana, p. 47.

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A cidade, que no passado fora o espaço do lúdico e do uso (em uma palavra: a festa), sob o

domínio do modo de produção capitalista é produzida e reproduzida como lugar de consumo e, ao mesmo tempo, como consumo de lugar, idéia que Lefebvre evidencia em várias passagens de seus livros.

Em O direito à cidade, por exemplo, de início somos alertados para o sentido do patrimônio histórico e arquitetônico dos núcleos urbanos antigos nas cidades modernas: “as qualidades estéticas desses antigos núcleos desempenham um grande papel na sua manutenção. Não contém apenas monumentos, sedes de instituições, mas também espaços apropriados para as festas, para os desfiles, passeios, diversões. O núcleo urbano torna-se, assim, produto de consumo de uma alta qualidade para estrangeiros, turistas, pessoas oriundas da periferia, suburbanos” 61.

Lefebvre insiste que o domínio do valor de troca e a conseqüente disseminação da mercadoria pela industrialização trazem em si a tendência de destruir a cidade e a realidade urbana, já que subordinam o uso aos imperativos da lógica capitalista. Daí ele afirmar que a cidade capitalista criou o centro de consumo.

Neste sentido, a centralidade é inserida no contexto de produção e reprodução das relações de produção, pela mediação do consumo, seja através da circulação de mercadorias (processo de venda), seja pelo consumo do centro urbano enquanto obra: “nesse lugares privilegiados, o consumidor também vem consumir o espaço; o aglomerado dos objetos nas lojas, vitrinas, mostras, torna-se razão e pretexto para a reunião de pessoas; elas vêem, olham, falam, falam-se. E é o lugar do encontro, a partir do aglomerado das coisas. Aquilo que se diz e se escreve é antes de mais nada o mundo da mercadoria, a linguagem das mercadorias, a glória e a extensão do valor de troca” 62.

Em A vida cotidiana no mundo moderno, Lefebvre escreve brilhantemente sobre os múltiplos significados do automóvel na vida urbana. A destacar aqui que o espaço acaba sendo concebido em função das necessidades do automóvel. A livre circulação dos veículos subjuga o ir e vir dos homens na cidade. Em suma, o automóvel conquista a cidade, mas não sem efeitos devastadores: “... no trânsito automobilístico, as pessoas e as coisas se acumulam, se misturam sem se encontrar. É um caso surpreendente de simultaneidade sem troca, ficando cada elemento na sua caixa, cada um bem fechado na sua carapaça. Isso contribui também para deteriorar a vida urbana e criar a psicologia, ou melhor, a psicose do motorista” 63.

O automóvel, expressão máxima do domínio do capital sobre a cidade, impõe–se como prioridade absoluta na produção do espaço. Em nome do sistema viário mais eficiente, mais adequado, “a cidade se defende mal”, no dizer de Lefebvre. As necessidades do trânsito (do circular) substituem as necessidades do imóvel (do habitar). A planificação do cotidiano pelo urbanismo é, na verdade, o urbanismo das necessidades do automóvel. Por isso “... o cotidiano, em larga proporção hoje em dia, é o ruído dos motores, seu uso racional, as exigências da produção e da distribuição dos carros, etc.” 64.

O urbanismo, aliás, é duramente criticado por Lefebvre. Todos os tipos de urbanismo – o dos homens de boa vontade, o dos administradores públicos e o dos promotores de vendas, singularmente descritos em O direito à cidade – expressam uma estratégia global de transformar o espaço urbano em lócus privilegiado da formação, realização e distribuição da mais valia global. O urbanismo é visto como uma superestrutura da sociedade burocrática de consumo dirigido, pois “organiza um setor que parece livre e disponível, aberto à ação racional: o espaço habitado” 65.

O urbanismo, que se pretende sistema, totalidade, não é a ordenação do caos urbano. Para Lefebvre, o urbanismo é o próprio caos, sob uma ordem imposta. A “ilusão urbanística” existe porque o urbanista não compreende o urbano: “ele substitui, tranqüilamente, a práxis por suas representações do espaço, da vida social, dos grupos e de suas relações. Ele não sabe de onde tais representações provém, nem o que elas implicam, ou seja, as lógicas e as estratégias a que servem. Se sabe, isso é imperdoável, e sua cobertura ideológica se rompe, deixando aparecer uma estranha nudez” 66.

61 Lefebvre, H. O direito à cidade, p. 14. 62 Idem, p. 131. 63 Lefebvre, H. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo, Ática, 1991, p. 111. 64 Idem, p. 111. 65 Lefebvre, H. A revolução urbana, p. 150. 66 Idem, p. 141.

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A ilusão urbanística dissimula o sentido fundamental das estratégias capitalistas no espaço urbano: a reprodução das relações de produção. Por isso, Lefebvre insiste na perspectiva da produção do espaço: “o capitalismo parece esgotar-se. Ele encontrou um novo alento na conquista do espaço, em termos triviais, na especulação imobiliária, nas grandes obras (dentro e fora das cidades), na compra e na venda do espaço. Esse é o caminho (imprevisto) da socialização das forças produtivas, da própria produção do espaço” 67.

O urbanismo se constitui e se consolida como uma ideologia do capital, uma estratégia de dominação: “declarar que a cidade se define como rede de circulação e de consumo, como centro de informações e de decisões é uma ideologia absoluta; esta ideologia, que procede de uma redução–extrapolação particularmente arbitrária e perigosa, se oferece como verdade total e dogma, utilizando meios terroristas. Leva ao urbanismo dos canos, da limpeza pública, dos medidores” 68.

Inegavelmente, Lefebvre está muito distante dos planejadores urbanos, mesmo os de esquerda. Oscar Niemeyer, como que se isentando do resultado de sua obra máxima, refere-se a Brasília da seguinte forma: “hoje algumas pessoas criticam Brasília, acusam-na de ser desumana, fria, impessoal. Vazia, em suma. (...) Não temos culpa se ela tornou-se vítima das injustiças da sociedade capitalista” 69. Para os que, como nós, concordam com a análise de Lefebvre sobre o urbanismo, brevemente exposta neste texto, não é possível isentar o arquiteto. A Obra em questão, para além dos monumentos, confirma o predomínio do automóvel e, portanto, da lógica individualista. Ela é o que é porque sua forma original, projetada, planejada e executada racionalmente, definiu seu sentido: expressa as injustiças do capitalismo porque seu urbanismo, enquanto ideologia e prática, é um urbanismo de classe, um urbanismo do capital.

3. O cotidiano: entre a miséria e a emancipação.

A crítica da vida cotidiana efetuada por Lefebvre chama a atenção para o predomínio do valor de troca na cidade, em detrimento do valor de uso (aliás, esse é um argumento - chave em suas análises). No mundo moderno, as ricas subjetividades possíveis do cotidiano tornam-se objeto de uma organização social: “o cotidiano deixou de ser sujeito para se tornar objeto” 70. Há, em várias passagens das obras estudadas, referências a esta colonização do cotidiano.

Em A vida cotidiana no mundo moderno, Lefebvre argumenta que o cotidiano existe como objeto de atuação capitalista: “o cotidiano torna-se objeto de todos os cuidados: domínio da organização, espaço–tempo da auto–regulação voluntária e planificada. Bem cuidado, ele tende a constituir um sistema com um bloqueio próprio (produção–consumo–produção). Ao se delinear as necessidades, procura-se prevê-las; encurrala-se o desejo. A cotidianidade se tornaria assim, a curto prazo, o sistema único, o sistema perfeito...” 71. O cotidiano é visto, portanto, não como um setor à parte, como algo secundário. Lefebvre o coloca no centro das discussões porque é no cotidiano e pelo cotidiano que são produzidas e reproduzidas as relações sociais capitalistas.

Em outra obra, Lefebvre vai conceituar o cotidiano como “...lugar social de uma exploração refinada e de uma passividade cuidadosamente controlada. A cotidianidade não se instaura no seio do urbano como tal, mas na e pela segregação generalizada: a dos momentos da vida, como a das atividades” 72. Essa exploração refinada se inscreve na cidade pela fragmentação dos momentos da vida: um morar periférico – um trabalhar central – um divertir (para os que podem) distante. E a passividade? As grandes avenidas, o predomínio, já comentado, da circulação sobre a reunião, individualizam o cotidiano: eis a cidade do automóvel!73

67 Idem, p. 143. 68 Lefebvre, H. O direito à cidade, p. 43. 69 In: O correio da Unesco. Rio de Janeiro, ano 27, n. 8, agosto de 1999, p. 30. 70 Lefebvre, H. A vida cotidiana no mundo moderno, p. 68. 71 Idem, p. 82. 72 Lefebvre, H. A revolução urbana, p. 129. 73 Ainda quanto ao predomínio da circulação, lembramos aqui que Lefebvre detalha, em O direito à cidade, os significados da “renovação urbana” na Paris da segunda metade do Século XIX. A abertura das avenidas expulsou, segundo ele, o proletariado do centro urbano e da própria cidade. Afinal, depois da Comuna de Paris, a burguesia percebeu que a organização espacial também era importante enquanto estratégia de classe: as barricadas não seriam mais toleradas.

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A vida cotidiana fragmentada é taxativamente retratada como miséria generalizada: “basta abrir os olhos para compreender a vida quotidiana daquele que corre de sua moradia para a estação próxima ou distante, para o metrô superlotado, para o escritório ou para a fábrica, para retomar à tarde o mesmo caminho e voltar para casa a fim de recuperar as forças para o dia seguinte” 74. Essa imagem, a princípio estereotipada, de um cotidiano pautado pela rotina, pela opressão, é surpreendentemente reforçada quando Lefebvre se refere à questão dos lazeres que aparecem como fuga do cotidiano, mas que também fazem parte – são o outro lado – do cotidiano alienado.

Isso aparece com toda a ênfase na reflexão sobre o consumo turístico: “em Veneza, o turista não devora Veneza, mas o discurso sobre Veneza: discursos dos guias (escritos), dos conferencistas (orais), dos gravadores e discos. Ele escuta e olha. O artigo que lhe é fornecido mediante pagamento, a mercadoria, o valor de troca, é o comentário verbal sobre a Praça São Marcos... (...). O valor de uso, a coisa em si (a obra) escapa ao consumo devorador” 75. Findo o tempo da Festa, resta o espetáculo.

O mal–estar causado pela vida cotidiana, que se projeta na fuga do cotidiano, também é capturado pela lógica do valor de troca: “...como não querer fugir do cotidiano? Bem entendido, esse desejo, essa aspiração, essa ruptura e essa fuga são rápida e facilmente recuperáveis: organização do turismo, institucionalização, programação, miragens codificadas, colocação em movimento de vastas migrações controladas” 76.

Assim, mesmo os espaços destinados ao lúdico são, para Lefebvre, simulacros do que ele chama de “espaço livre” dos encontros e jogos. Inclusive os espaços verdes nas cidades modernas são “símbolos cuja presença marca a ausência” 77 e reforçam a vida cotidiana cinzenta e fria (desumana), da cidade produzida pelo capital. Os lazeres entram para a vida cotidiana porque a expansão dos tempos livres, em decorrência da automatização, é captada em benefício da “burguesia dirigente” 78: “se expande os tempos livres, [a burguesia] só o faz subordinando-os à mais–valia através da industrialização e da comercialização desses mesmos tempos e dos espaços que lhes correspondem” 79. Desta forma, se é permitida (e até mesmo incentivada) a evasão através das férias e do turismo é porque já estão colocados os mecanismos lucrativos de apropriação capitalista dos momentos de fuga do cotidiano. Enfim, foge-se do cotidiano apenas para reforçá-lo posteriormente e a própria fuga é um evento cotidiano.

4. Conclusões: o urbano, teatro da revolução.

Pela exposição precedente, poder-se-ia concluir que Lefebvre não vê saídas, pois tudo parece caminhar para a dominação perfeita. Contudo, apesar de toda a miséria e do controle capitalista, a cidade e o cotidiano encerram as possibilidades da revolução. O urbano deve ser realizado como prática social através do exercício do direito à cidade, eis o caminho apontado80.

Há uma insistência, em todos os livros que neste texto foram utilizados, na afirmação de que o primeiro passo é a inversão da dominação do valor de troca sobre o valor de uso: o reino do uso se inscreve como necessidade social para a criação da sociedade urbana. Assim, o direito à cidade “...se manifesta como forma superior dos direitos: direito à liberdade, à individualização na sociedade, ao habitat e ao habitar. O direito à obra (à atividade participante) e o direito à apropriação (bem distinto do direito de propriedade) estão implicados no direito à cidade” 81.

74 Lefebvre, H. O direito à cidade, p. 117 75 Lefebvre, H. A vida cotidiana no mundo moderno. p. 144. 76 Idem, p. 94. 77 Lefebvre, H. A revolução urbana. p. 38. 78 Essa conclusão aparece no último capítulo de O pensamento marxista e a cidade. 79 Lefebvre, H. O pensamento marxista e a cidade, p. 171 80 Em A revolução urbana, Lefebvre assinala a necessidade de se compreender o urbano para além das ciências parcelares. Propõe, inclusive, uma “ciência do urbano”, a ciência de um “novo humanismo”. 81 Lefebvre, H. O direito à cidade, p. 135.

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Especificamente em relação à apropriação, importante papel desempenha a centralidade urbana. Lefebvre destaca que, para além das funções criadas pelo capitalismo (centro de decisões, local de convergência das comunicações e informações), deve-se reafirmar o papel de lugar dos encontros e de vivência do lúdico, porque o verdadeiro projeto é acabar com as separações “...cotidianidade – lazeres ou vida cotidiana–festa. O problema é restituir a festa transformando a vida cotidiana. A cidade foi um espaço ocupado ao mesmo tempo pelo trabalho produtivo, pelas obras, pelas festas. Que ela reencontre essa função para além das funções, na sociedade urbana metamorfoseada” 82.

Portanto, caberia retomar a centralidade83 e recuperar a Festa, restituindo o uso e gozar a cidade (a Obra). O projeto político84 delineado por Lefebvre traduz-se na construção da sociedade urbana, o espaço–tempo da fruição, do uso e do gozo emancipatório da cidade e da Festa, hoje caricaturada em espetáculo. Se é esse o caminho possível, cabe vivenciá-lo na práxis.

5. Referências Bibliográficas.

LEFEBVRE, Henri A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999. 178 p. LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Ática, 1991. 216 p. LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Moraes, 1991.145 p. LEFEBVRE, Henri . O pensamento marxista e a cidade. Póvoa de Varzim: Editora Ulisseia 175 p.

82 Idem, p. 129. 83 A centralidade é fundamental no projeto político de Lefebvre porque, como destacado em A revolução urbana: “não existem lugares de lazer, de festa, de saber, de transmissão oral ou escrita, de invenção, de criação, sem centralidade” (p. 93) 84 Para detalhes sobre as estratégias políticas apontadas por Lefebvre, ver: a) em A vida cotidiana no mundo moderno o capítulo V; b) em O direito à cidade, os capítulos XII, XII e XIV; c) em A revolução urbana, os capítulos VII e IX.

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Á LUZ DO TEMPO: IMAGEM E MEMÓRIA URBANA EM PRESIDENTE PRUDENTE∗∗∗∗

Valéria Cristina Pereira da SILVA∗∗∗∗∗∗∗∗

O tempo é a minha matéria

o tempo presente, os homens presentes,

a vida presente.

(Carlos Drunimond de Andrade, 1967, p. 111..)

Resumo: O presente artigo trata de memória e da imagem da cidade de Presidente Prudente. Esse trabalho da memória vem subsidiado por significativa e necessária discussão de conceitos. A cidade e o tempo descritos de uma memória viva apresentam-se como formas de compreensão e designam uma imagem, um retrato. No caminho das lembranças, nos labirintos do esquecimento a cidade se desenha revelada por aqueles personagens do cotidiano que viveram e construíram este espaço. Palavras-chave: cidade; memória; imagens; tempo; espaço. Resumen: El presente artículo tiene como temática la memoria e imagen de la ciudad de Presidente Prudente. Este trabajo viene subsidiad por una significativa y necesaria discusión de conceptos. La ciudad y el tiempo descriptos a partir de la memoria viva se presentan como formas de comprensión y designan una imagen, un retrato. En el camino de los recuerdos, en los laberintos del vivido la ciudad se presenta revelada por aquellos personajes del cotidiano que vivieron y construyeron este espacio. Palabras-llave: Ciudad; memoria; imagen; tiempo; espacio.

A sensibilidade despertada de uma experiência viva é capaz de trazer poderosas imagens do passado. Contar, narrar é empreender novamente a viagem, é revisitar lugares urbanos convidando outros a o fazerem também. A dimensão simbólica da cidade liga-se aos percursos da memória, das lembranças que fazem da experiência/vivência deste espaço objeto de leiturização, compreensão e transformação textual inteligível. Dos artefatos temporalizados às histórias narradas observa-se um conjunto semântico que forma uma imagem da cidade, essa imagem organiza uma identidade em suma um elo afetivo.

A memória faz-se de lembranças, esquecimentos e recordação num todo complexo e labiríntico, no qual tudo que se trabalha nessas instâncias lhe é matéria inextrincável e latente, inclusive o esquecimento. Os hiatos jamais apresentam uma deficiência, mas sim uma possibilidade de reflexão sobre o discurso, uma potencialidade de construção fisionômica do que foi, sob a ótica de quem ouve atentamente os relatos do expositor. Isento das paixões do tempo vivido, podemos “ver do alto” as amarras da memória na narrativa do memorialista, e assim construir um caminho sólido para interpretar com ferramentas apropriadas todas as propriedades do que é relatado, seja memória oral ou escrita.

Para Bosi (1994), lembrança e recordação são os artifícios da memória que lhe dá movimento, a lembrança pode-se dar espontaneamente, faz emergir à consciência aquilo que guardamos do tempo, as experiências passadas, e que cuidadosamente o nosso inconsciente elege como digno de lembrança, já a recordação se processa através do estímulo, um esforço para trazer à tona fatos que permanecem incontidos no sujeito. Esquecer para tornar possível o relato não é uma atitude deliberada da qual se tem consciência das lacunas. Recordar é esforço para trazer lembranças contidas na memória e esquecer é distinto de omitir ou ocultar. Quando em nossa fala deliberadamente nos esquivamos de expor um fato, não é uma seleção do inconsciente, mas, simplesmente, algo que conscientemente preferimos não relatar. E ainda nos labirintos da memória existe a mimese ou o reconhecimento do homem a partir do que lhe é familiar.

Para compreender e apreendermos amiúde esta dimensão simbólica estabelecida no mundo urbano procuramos delinear os signos urbanos nas imagens que temos da cidade de Presidente Prudente fazendo a ligação com os caminhos da memória.

∗ Texto publicado em 2004 (n. 11 v.2). Faz parte das reflexões desenvolvidas na dissertação de mestrado “Ícones de uma cidade em expansão: imaginário e memória”, defendida na FCT/UNESP, campus de Presidente Prudente, sob a orientação do Prof. Dr. Jayro Gonçaives Melo e com o apoio financeiro da FAPESP. ∗∗ Mestre e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia da Faculdade de Ciências e Tecnologia da UNESP/Presidente Prudente. Atualmente é docente da Universidade Federal do Tocantins, [email protected]

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Presidente Prudente, enquanto expressão da “cidade moderna” numa escala menor, por mais que pareça divorciada dos mitos e símbolos, seja, nos seus mais arrojados artefatos e pujantes equipamentos, na racionalidade do urbanismo, no desenho que favorece a circulação e no pragmatismo exigido pelo movimento acelerado e pela pulsão constante do homem na urbe, este divórcio é apenas aparente, pois, a cidade é um cosmo repleto de “símbolos de transcendência” e mesmo no “caos” urbano estão presentes conteúdos imaginários, arquétipos que se fundem ao novo, mitos, desejos, pesadelos, medos e sonhos em completa e íntima fusão com os novos paradigmas da cidade. O objetivo deste trabalho é abordar as representações da cidade aplicando os conceitos de imaginário e memória, entendendo-os como uma chave para a interpretação das imagens urbanas, suas metáforas, seus laços de resistência, mudança e permanência. Assim, chegamos aos lugares do imaginário social e visualizamos a cidade no espaço e no tempo.

A cidade foi revisitada desde os seus primeiros anos a partir de suas múltiplas memórias: narrativa, visual e material. Também, como depositária de múltiplas experiências guarda em suas paisagens as utopias e os ideais de uma sociedade, além de linhas e formas. O espaço transubstanciado, construído, transluz uma imagem e impõe poeticamente seus signos. Mais do que pedras, a cidade é erguida e solidificada de representações. As imagens do passado com claro “valor de culto” acabam por selar um grau de eternidade já conquistada, na qual a saga da cidade por vezes confunde-se com a saga dos personagens que nela viveram.

E comum no exercício da memória a história familiar confundir-se com a narrativa do surgimento da cidade. Ao mesmo tempo o memorialista fala dos “primórdios” da fundação, suas agruras e sinuosamente, a sublimação da auto-imagem aparece também ao longo de todo o relato, onde tudo é reminiscência.

Logo após a roça queimada, já no ano seguinte, 1918, eu mesmo iniciei os trabalhos, delineando ruas e logradouros públicos, em sendo um só, ainda em plena palhada, tendo apenas como meu auxiliar o preto Antônio Serafim. Entretanto, como eu não podia pessoalnente continuar, pelos trabalhos da lavoura e outros, mesmos da colonização rural já iniciada, deliberei novamente chegar em Assis não só para conseguir mais trabalhadores, e algum engenheiro para prosseguir o serviço ou o delineamento do núcleo, assim como o loteamento rural85 (Cel. Goulart F. P. 1917-1967, p.23)

Neste trecho o fundador narra a primeira infância da cidade e, como um exercício de memória a

narração permite não somente “contar fatos” mas refazer o enredo da conquista, que simboliza a hegemonia individual do conquistador. Em primeira pessoa, com os olhos voltados para o passado, o pioneiro lendário refaz seu mito, mito este mais forte do que o homem real. Seu relato faz vislumbrar o horizonte plástico de uma paisagem tão onírica, quanto histórica, a paisagem urbana que despontava em meio às cinzas e penumbras do sertão. Vida e morte encontram-se no ato dramatizado de penetrar o desconhecido, vencer a natureza hostil e colonizar. Nos interstícios da fala reiteradamente o arquétipo do herói emerge na figura do pioneiro.

Desbravar, abrir caminhos novos significava também impor idéias, valores e obediência ao coronel, construindo relações de poder que ficariam para a posteridade. A figura do coronel representava a antítese e a síntese da liberdade e da cidadania, pois, como afirma Melo (1995) os subordinados só possuíam sua cidadania no chefe e através dele. O mito heróico é incorporado pela História Oficial povoando o imaginário e, assim, a sociedade constrói seu primeiro ícone.

A cidade da memória tem sua existência nas lembranças, assim como o Cel. F. P. Goulart, em cada habitante inscreve-se uma biografia da cidade, narrada mais de uma vez por aqueles personagens que de um modo ou de outro resistem à trama do tempo e não se furtam de “contar” o que passou. Conjunto de vozes a ter por fio o mesmo enredo, polifonia em prosa traduzida numa síntese.

Naquele tempo (duas primeiras décadas do século XX) a cidade era muito pequena, apenas o que é hoje o centro. Nas ruas de terra batida, cheias de tocos de árvores que o fogo não consumira, permaneciam delgados, esguios, espessos por todos os lados, onde as pessoas passavam a pé ou a cavalo,

85Cel. F. P. Goulart. Depoimento publicado em Bandeirante do século XX, fundação de Presidente Prudente narrada pelo fundador 1917-1967.

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GONÇALVES, M. A.; SPOSITO, E. S. Fetiche do Estado e regulamentação do conflito capital trabalho.

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transportando coisas em carroças. Essas foram as ruas da infância de uma cidade presente na lembrança dos atores sociais.

Quando viemos para cá, foi construído um rancho, para abrigar três famílias: família Furlaneto, Vernille e Casatti, sendo que cada um ficou com um pedaço do barracão. Eu tinha quatro anos quando desembarquei na estação em 1919. Nessa época o patrimônio já tinha sido derrubado, mas o fogo não acabou com a madeira, ficou toda madeira grossa que era arrastada para dentro dos quarteirões. Derrubamos a madeira que não queimou para fazer a casa. Como queimou só as folhas e troncos finos, as árvores brotavam novamente e formava a ‘capoeira’. Assim o pessoal ia chegando e ia roçando, juntavam três ou quatro pessoas para limpar e faziam lenha para ter fogo a noite e fazer claro, por que não tinha luz. A cidade era um quadrilátero que abrangia quatro avenidas. Mas a finalidade das famílias que viam para cá, inclusive o meu pai, não era ficar morando na cidade, era abrir sítio para plantar café. Então logo fomos para o sítio, a mata era fechada. Tinha mata baixa: cabreúva, canelão, canela e mata grossa; peróba, ipê, figueira, cedro. Tinha em abundância. Então os animais saiam da mata para comer a plantação de milho, vinha a anta, vinha o veado, por isso o patrimônio ficou chamado de Veado, isso nos primórdios de Presidente Prudente. Aquelas árvores que o fogo não queimou, secaram galhos que finos e empobrecidos, quebravam ao pousar das pombas que vinham ao raiar do dia comer o milho que os animais silvestres deixaram. Da cama de manhã eu me recordo da minha mãe falando para o meu pai: “Olha quebrou mais um galho, e outro galho”. Cada proprietário derrubava o seu mato para plantar café e outras culturas. A propaganda do Goulart era que a terra era boa para plantar café e que aqui não tinha geada! Quando a geada matou o café em 1924, meu pai falou: “Vamos por o Vicente na escola, e aí voltamos para a cidade. V. Furlaneto (Informação Verbal)86.

Muitas vezes a fala perfaz as cruzadas de uma vida difícil, fustigada pelo trágico que bate às

portas do cotidiano em tempos difíceis, mas o desfecho de um pensamento verbalizado compõe um tom dramático de difícil tradução o que nos remete à reflexão sobre a célebre frase de Tobias Monteiro87 no caminho de sua ironia romântica: “se a história não será em grande parte, um romance do historiador”; afirmação que nos faz pensar no próprio quintal. Mas se o fio da memória abre um leque para o lúdico que nos permite romancear sobre o real, ou melhor, ver na realidade o romance, não cometemos com isso nem um grave pecado. Quando cessa a filosofia a poesia tem que começar. Na imaginação está o centro do nosso entendimento88. E assim que buscamos o real nas falas mais singelas de uma infância esquecida e no enredo imaginante que recria o passado subjetivamente. E o que aparentemente é hiato não é mais do que a inteireza nas multiplicações desse mesmo real.

Uma fabulosa memória imaginante a escoar da realidade, para estar nela de volta, o tempo todo, nas sutilezas da narrativa, nos intercursos do pensamento, no qual, uma única cidade permanece, além das duplicidades e das refrações, nas continuidades do sentido de uma teia simbólica.

O papai foi o primeiro carpina da cidade. Ele que fez aqui o primeiro caixão de uma senhora que faleceu para sepultar no terreno que hoje é a rodoviária, o primeiro cemitério de P.Prudente. O velório era o velório comum de fazer a guarda do corpo e depois o sepultamento. Não é como hoje. Naquele tempo não tinha funerária e fazia-se o caixão rústico de madeira. Para alguns era só um lençol. Fazia a cova e descia com o lençol dentro dela. Assim enterravam as pessoas que não tinham condições de comprar o cedro. O transporte do defunto, naquele tempo, era no braço. Quando morria alguém no sítio e ia sepultar na cidade, ia um na frente alguns metros dizendo: “vai as almas, vai as almas, vai as almas” enquanto o pessoal vinha com o cavalo. O cavalo era uma vara e um lençol amarrado nas pontas de um lado e do outro com o falecido dentro, carregado por duas pessoas, uma na frente e outra atrás que traziam do sítio para a cidade desta maneira. Um pegava, cansava, outro pegava, assim funcionava a advertência: “que vai as almas, que vai as almas...”. O pessoal que estava na roça trabalhando ouvia, largava o serviço, pegava e ajudava a carregar um pedaço. Outro lá na frente ajudava carregar mais um pedaço e esse era o recurso de trazer do sítio, vinte quilômetros, dez quilômetros, quinze quilômetros, no lençol, no cobertor, no encerado, porque não tinha condução. V. Furlaneto (Informação Verbal)89.

A descrição da infância foi muito reiterada, na persistência da memória. Cabe salientar que essas imagens descritas da vida urbana são visões da criança observadora que presenciou algum dia tais cenas no passado, submetendo-as aos juízos de valor do adulto, ou melhor, do idoso que é hoje. Já que a maioria

86 Entrevista realizada com o Sr. Vicente Furlaneto no dia 27 de junho de 2001. 87 MONTEIRO, T. apud. Carvalho, 1990. 88 SCHELES, F. apud. SILVA S., 1999. 89 Entrevista realizada com o Sr. Vicente Furlaneto no dia 27 de junho de 2001.

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dos entrevistados relata os anos da infância e adolescência, nessa construção verbal memorativa do espaço tecem-se interessantes mapas mentais a representar os lugares da cidade em que o narrador estabeleceu laços afetivos e identitários. São refeitas, em traço e prosa, as ruas da infância, as nascentes que cortavam a cidade. Os jardins e o próprio relevo ganham suas curvas de nível nesse mapa:

Eu nasci aqui, em 1930, passei a minha infância toda na rua Antônio Prado, hoje Washington Luís, esquina com a Siqueira Campos. Descendo, depois da rua, tinha um Bosque, hoje bairro do bosque, para chegar a até ele era preciso, passar por uma pinguela e atravessar ‘o famoso buracão’ na rua Pedro de Oliveira Costa, em baixo da pinguela passava um monte de água. Depois do colégio Cristo Rei, onde é hoje o correio, não tinha mais nada. Descendo hoje onde é a av. cel. Marcondes tinha outra ponte que dava acesso as terras da família Goulart. A Antônio Prado indo em direção a estação era tudo terra, areia demais, do lado contrário tudo grama onde a gente brincava, tinha um campinho de futebol. A rua era bem acidentada, eu achava interessante aquelas carroças com animal, burros puxando terra de um lado para o outro para nivelar a rua. Depois pavimentou um lado e o outro ticou sem pavimentar. Na área onde hoje é o parque do povo tinha uma fonte de água a ‘esmeralda’ e um bananal de propriedade do Goulart, onde os garotos iam roubar bananas. E tinha pequenos córregos, um cortava ali onde hoje é o Prudenshopping, um que saia, onde hoje é o tênis clube. Essas poças d’ água era uma diversão para a criançada. Botosso (Informação Verbal)90.

O processo de expansão espaço-temporal da cidade se dá, além de múltiplos fatores, por uma

razão coletiva traduzida na soma de esforços individuais que vislumbrara uma nova paisagem no período que vai de 1917 ao fim da década de 20, quando as construções passaram a ganhar novos padrões uma outra cidade de pedra erguia-se, mesclando-se à cidade de madeira que aos poucos ia desaparecendo. Assim a primeira escola, a primeira igreja, uma rua da cidade, presentes na imagem enfumaçada pela névoa do tempo ou envolta pelo que experimentamos como esquecimento, resultam dessas ações e idéias.

Paisagem e memória encontram textualmente no exercício de delinear um percurso temporal. A partir delas é possível fixar um olhar às imagens, procurar uma compreensão, uma dinamicidade e, não apenas restituir o cenário urbano, mas também as suas metáforas.

As primeiras fotografias da cidade foram tiradas, certamente, com o intuito de registrar paisagens, fatos e personagens mais significativos da vida urbana e o que conta nessas imagens é a composição visual significativa da cidade.

Presidente Prudente possui inúmeros desses registros, o que denota a valorização de tal atitude, principalmente considerando que o recurso fotográfico nas três primeiras décadas do século XX, apesar de sua difusão, era ainda bastante oneroso e, portanto, poucas pessoas podiam obtê-lo. Um mundo da representação, a ser desvendado e conhecido inscreve-se literalmente nos percursos da fala e na grafia dos retratos.

As imagens da cidade nos seus primeiros anos revelam que, apesar de todos os esforços para forjar uma paisagem urbana, não se desfrutava de uma vida urbana no seu sentido pleno, pois os costumes e as práticas ainda estavam ligados ao mundo rural. Deste modo animais andavam pelas ruas em meio à construções de madeira. Nas imediações, a vegetação nativa aos poucos cedia lugar a habitações precárias, pastagens, futuros loteamentos e instalações. Essas dificuldades impostas pelo meio rude no princípio do povoamento de Presidente Prudente mobilizavam pessoas a trabalharem no preenchimento das condições básicas de sobrevivência. Assim a casa, a escola, e a igreja eram construídas por dezenas de pessoas, adultos e crianças participantes de mutirões.

Eram construções rústicas, singelas às vezes provisória, apenas para suprir de imediato uma necessidade, mas que traziam consigo o sentido urbano e logo seriam transformadas, como a Igreja Católica que adquiriu expressões e desenhos até chegar a catedral e a multiplicações menores ao longo do tecido e da formação da cidade.

A cidade modificava-se, não apenas ela, nas suas formas materiais, mas na vida social e cultural. A praça continha uma vida social intensa, lugar de sociabilidade por excelência das camadas médias e das elites locais. Havia o footing na Rua Maffei, onde homens e mulheres iam passear e era no coreto da praça, ja demolido, que tocava, todos os domingos, a banda da cidade, regida por seu maestro.

90 Entrevista realizada com o Sr. José Botosso em julho de 2001.

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O cinema era outro ponto de encontro dessa sociedade mais abastada. Exibia um filme por noite e só permitia a entrada se o traje fosse terno e gravata, o longo para as mulheres. Os dois cinemas mais importantes da cidade foram o cine João Gomes e o cine e teatro Phenix, embora houvesse outros entre eles, como o cine Santa Emilia.

Aqui, como em todo o país, a difusão de certos aspectos da cultura norte-americana se fizeram presentes. Assim, era apresentado no cinema principalmente o gênero faroeste:

O primeiro filme de Presidente Prudente foi de vaqueiro no cinema que pertenceu ao Chico Lourenço num barracão de madeira, depois abriu o cine João Gomes onde passavam-se os filmes de Cawboys. Quando passava filmes de romance, a gente falava: “a fita do cine João Gomes não é boa não, é de namorado, lá no Chico Lourenço tem pei-pei. Furlaneto. O cine João Gomes existiu onde até pouco tempo estava instalada as ‘lojas brasileiras’ antes do João Gomes tinha o cine Phênix que era pequeno, mas era bom também. Eu ia toda noite no cinema, cada noite era um filme, não é como hoje que fica uma semana em cartaz. E as pessoas faziam fila para entrar no cine João Gomes que ficava lotado principalmente quando tinha filme do Tarzan. Quando terminava a gente ia para casa. Botosso (Informação Verbal)91.

A missa na catedral era realizada apenas durante o dia em três horários: as seis da manhã, as oito e às dez horas, sendo que a missa das seis era freqüentada pelas pessoas que precisavam desocupar-se logo dos deveres religiosos para trabalhar, a missa das oito era para as crianças e à missa das dez freqüentava a camada mais abastada da sociedade que após o rito litúrgico, saia impecavelmente trajada para um passeio na Maffei. Os homens ilustres da sociedade freqüentavam o “Bar e Confeitaria Cruzeiro do Sul”, conhecido como “senadinho”, onde importantes decisões políticas da cidade eram tomadas.

A maioria dos moradores da cidade que usufruía dos espaços públicos representavam as camadas médias e a elite. Na fala memorializada, comparece que a elite era representada pelos coronéis, grandes cafeicultores, latifundiários e aqueles que detinham o poder político. Boa parte dos políticos pertencia também à classe médica. É interessante ressaltar que na maioria dos casos uma única pessoa reunia mais de um desses papéis. Não raro o coronel era também latifundiário, cafeicultor, negociante de terras e representante político. O médico, como já dissemos, era também político que ora era prefeito, ora deputado e assim por diante. Processo intrincado de individuação a personificar numa mesma pessoa diferentes tipos de capital, inclusive simbólico amadurecido sob a forma de poder, que não se interrompia no seu exercício. A camada média era representada por pequenos fabricantes, industriários e comerciantes; detentores de algum capital que após algumas décadas adquiriram patrimônio razoável impulsionados pelo próprio contexto econômico da época no “auge” do café e ainda alguns profissionais liberais: advogados, dentistas, professores etc. Essas famílias, então, com o tempo passaram a fazer parte, se é que se pode assim chamar, de uma elite mediana que residia na cidade, a maioria com casa própria, possuindo autonomia no seu empreendimento comercial e/ou industrial. Podiam usufruir de considerável acesso a bens e serviços como educação, saúde, e lazer, como também consumo de suprimentos: bens duráveis e não duráveis. Os pobres eram trabalhadores e moradores da zona rural, aqueles que viviam em chácaras e pequenas propriedades, meeiros, arrendatários, colonos dos latifúndios, camaradas ou ainda residentes nas bordas do perímetro urbano, nas suas áreas de transição. Pessoas que pouco vivenciavam os espaços sociais e recreativos da cidade, viviam em habitações precárias de madeiramento de baixo valor como a “tabuinha” e o “sapé”. Não tinham acesso à maioria dos bens e serviços urbanos e encontravam-se numa situação restrita, em condições de sobrevivência.

Quando interrogada a respeito da imagem da pobreza na época, uma das pessoas entrevistadas respondeu significativamente distinguindo de outros ecos a escapar, ainda que em parte, da trama labiríntica da memória. Dizia que os pobres eram os que viviam nos arredores em casas de madeira, tinham o fogão à lenha no quintal e uma alimentação muito precária, comiam apenas angu com feijão e chegavam sujos de lama e descalços, na cidade. Pedintes de esmolas às vezes amarravam seus cavalos na cerca das residências. Pobres eram ainda aqueles que não podiam estudar. Essa representação da miséria não é a de uma convivência amiúde, mas sim de uma observação distante, como algo que não se conhece a fundo, mas se observa como o pitoresco: pessoas despenteadas, mal vestidas e sujas. A pobreza vista da elite tangencia uma visualidade estética que toca apenas a epiderme do problema e não sua ossatura. Não 91 Entrevista realizada com o Sr. José Botosso em julho de 2001.

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se pode negar, contudo, que é uma fala coerente, bastante lúcida, que escapa aos atalhos da memória. E visão opinativa, sem dúvida, mas resultante de observação e retenção de uma imagem. E a memória do vencedor que fala dos vencidos, porque estes não têm fala e nenhuma inscrição. As obras que ajudaram a construir imortalizam outros nomes. A memória dos vencidos é em si mesma inatingível não só porque os personagens morrem mais cedo, mas porque há uma cisão entre a linguagem e o vivido na dor das carências, das ausências e no desprovimento de tudo.

O dado inimaginável da experiência desconstrói o maquinário da linguagem. Surge a impossibilidade de recobrir o real com o verbal. Essa linguagem aprisionada só pode enfrentar o real equipada com a própria imaginação. E apenas com a arte que a intraduzibilidade pode ser desafiada, todavia jamais completamente submetida92. A imagem do vencido só é visitada na imaginação de outrem.

O sentido da memória93 é que ela não é um fim para se chegar ao passado, mas sim um meio de atingí-lo. Distinguem-se dois tipos de memória que, por vezes, se dão dialeticamente: aquela que é pessoal e aquela que é coletiva. Ao pensar na escrita clássica da história, é possível observar que esta tem um grau de comprometimento com a memória coletiva em linha absoluta: demonstra o passado e aponta o futuro, como que ensinando os caminhos de uma memória remotíssima pertencente a uma classe social da qual somente temos as conseqüências; essa memória tenta mostrar-se a nós como se fosse espelho do real. Esta memória é na verdade história; mas há uma outra forma de memória menos finalista, mais explicativa e expositora do tempo. A memória que nasce dentro de cada um de nós e, em vez de nos falar sobre determinada história, remete-nos às origens das coisas que pensamos recordar, que queremos representar. Os seus documentos estão na experiência de quem as relata e nos espaços que ocupamos.

Donatelli Filho (1996) recomenda que tomemos como exemplo o exercício da memória pessoal, a lembrança da cidade onde moramos, a parte mais antiga, as ruas mais velhas, seus prédios, suas igrejas, casas, tudo aquilo que se apresenta aos nossos olhos e tudo que não mais está à nossa disposição pelo olhar. Cada um dos pontos históricos tantas vezes vistos e que passaram a fazer parte da imaginação, as formas do espaço urbano, a sua composição e as mudanças no tempo. A apropriação do lugar não mais ocorre pela ordem cronológica, mas pela retenção das formas construídas no inconsciente. Por isso a apreensão da cidade pode dar-se também através da memória. A cidade memorial é um ponto de inflexão onde se reiteram os laços de identidade com o lugar.

A memória, quando desprovida de sentidos, quando ausente dos sujeitos que se sentem incapacitados de relembrar qualquer coisa que de fato vale ser relembrada, mergulha, como muitos de nós, nos tempos pretéritos, dos monumentos espalhados pela cidade, do mundo interior dos museus94, perplexos, diante de tantas experiências vividas e ao mesmo tempo tão presentes e ausentes de nós. Um dos atributos da memória é permitir que o processo de identidade seja realizado entre iguais. Ela, portanto, não pode ser entendida como um relicário, mas sim como um lugar do imaginário e de reconstrução da nossa condição de seres históricos. Para Decca (1992). se a grande história é memória de documentos acertados para legitimar, muitas vezes, o ilegítimo da opressão e da miséria, a memória se dá como a pequena anti-história particularizada na reflexão e na sensibilidade vivida pelos homens. Ao dizer quem somos e por que somos, estamos em busca de um novo tempo, contado por um outro homem sobre outros pressupostos. Nossa sociedade oferece a todos a possibilidade de ter saudades, memória e experiência de algo que não nos pertence, algo desprovido de sentido, de representação, mas que se apresenta e se legitima pelo consumo.

Nos deteremos ainda na tentativa de estabelecer as linhas intercruzantes e contraditórias que unem e separam história e memória95. É possível dizer que hoje a memória coletiva encontra-se refugiada em lugares pouco visíveis, preservada tenuamente por meio de rituais e celebrações onde alguns grupos a mantém ciosamente resguardada do assalto da história. Neste contexto, memória e história se opõem constantemente96. Como afirma Decca (1992):

92 Ver SILVA, S. M. A literatura de testemunho. Cult Revista Brasileira de literatura, ano 11 nº23, 1999. 93 DONATELLI FILHO, “O sentido da memória”, In: Cidade, Revista do Patrimônio Histórico, 1996. 94 DONATELLI, F., 1996, p. 107. 95 Silva V. Santa Casa de Misericórdia de Trabalho de IC p. 7-20, 1999, mimeo. 96 DECCA, 1992, p. 1 passim.

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[...] a memória é vida sempre guardada pelos grupos vivos e em seu nome abre-se à dialética da lembrança e do esquecimento suscetível de longas latências e súbitas revitalizações. A história é sempre a reconstrução problemática e incompleta daquilo que já nao é mais. A História liga-se em continuidades temporais, exigindo operação intelectual e discurso crítico. No coração da história trabalha-se um criticismo destruidor da memória espontânea a partir dessa crítica identifica-se nela um misto de desilusão frente ao futuro e um estranhamento em relação ao próprio passado capaz de produzir memória histórica que, além de destruir a memória coletiva transformando-a numa espécie de memória artificializada, esvazia também o próprio conteúdo da história. Neste sentido, a memória histórica ressurge ligada à afirmação do Estado, produzida não mais espontaneamente pela experiência social, mas pelas mãos dos historiadores. A história, alcançando a fase epistemológica, desvencilha-se da memória por que deixa de ser lembranças e recordações, signo dos ideais de identidade, para se tornar discurso crítico. A memória, então, persegue a identidade e a história se constrói como inventário das diferenças. A perpetuação da memória, do passado no presente constitui-se, dessa forma, na produção de memória voluntária. (DECCA, 1992, não paginado)

Abreu (1998), ao procurar esclarecer as diferenças fundamentais entre memória e história, afirma

que a memória, seja ela coletiva ou individual, é sempre parcial, descontínua e vulnerável a todas as utilizações e manipulações. A história, por sua vez, busca a objetividade. Nunca conseguirá atingir a objetivação total, mas chega mais perto dela do que a memória.

A história, como a memória, não é neutra. Ao contrário do que pensavam os historiadores do passado, o fato histórico não é dado: o contexto em que o pesquisador se insere influi na forma como ele define e interpreta o fato histórico. Sabemos também que a história pode ser manipulada, e o foi várias vezes no passado. Apesar desses problemas, é incontestável que a história detém inúmeras vantagens sobre a memória, e que deve ser a partir dela, história, que devemos penetrar no difícil campo da memória das cidades, da identidade do lugar. As vantagens da história sobre a memória são inúmeras. A primeira delas é que, ao contrário da memória, a história tem que buscar a “verdade”. Trata-se de uma operação intelectual e laicizante, que segue um método científico, e que é posta à prova continuamente. Por isto, ela, a história está em contínua reconstrução, sendo sempre reinterpretada, o que permite detectar e denunciar as falsas interpretações feitas em seu nome. A história é registro, distanciamento, problematização, crítica, reflexão. A segunda vantagem da história sobre a memória é que a primeira está sempre recuperando e reavaliando os referenciais que contextualizam a segunda. E faz isto exatamente para poder relativizar as memórias. Em outras palavras, a história está sempre pondo em xeque as memórias. Ao contrário desta última, a história precisa dar conta do que foi esquecido. A história precisa iluminar as memórias, ajudando-as a retificar suas omissões e erros. Privilegiar apenas a memória seria afundar no ‘abismo escuro do tempo’. (ABREU, 1998, p. 16)

Ao tentar iluminar esse abismo, a história não consegue atingir o sonho de recuperar o passado tal qual ele foi, um passado sem hiatos ou falhas. Sonho impossível, já que a história é a construção sempre problemática e incompleta do que já não existe. O “passado, como nos diz Abreu (1998) é um país estrangeiro”, impossível de se conhecer plenamente.

A história, enquanto ciência, pode ser a narração metódica de fatos e atos dignos de memória. A memória, dentre diversas definições refere-se à faculdade de lembrar, reter impressões, idéias que podem estar baseadas na experiência vivida.

Para Paoli (1992), a história é concebida como um processo acabado e fechado ao significado social, quando tudo aquilo que constitui o moderno e a modernidade, a constante produção do novo desafia a compreensão e a intervenção na cidade. A história acaba por perder sua identidade nesse caminho. Seria, então, inútil manter algo com pouco significado no presente, além de ser exatamente testemunha de um passado superado. Há, entretanto, uma atitude de gostar do passado, daquilo que foi legado numa identidade que parece estar apenas no sentimento de perda, constituindo-se numa nostalgia de algo que não é mais. É por isto que história, memória, patrimônio, passado, nenhuma dessas palavras têm um sentido único; formam um espaço de sentido múltiplo, onde diferentes versões se contrariam porque derivam de uma cultura plural e conflitante.

Como apontam algumas discussões no Brasil, há uma deslegitimação da memória social constantemente cooptada por “intelectuais” e transformada na “história dos vencedores”. E preciso, porém, “recriar a memória dos que perderam não só o poder, mas também a visibilidade de suas ações, resistências e projetos”. Para Paoli, (1992) a construção de um novo horizonte historiográfico se apóia na

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possibilidade de existência de memórias coletivas. É preciso que experiências silenciadas, suprimidas ou privatizadas reencontrem a dimensão histórica como um direito ao passado, desmontando o significado que a sociedade constrói de si mesma, neste momento em que a produção simbólica está dissociada de sua significação coletiva e, portanto, longe de expressar as experiências sociais. Mas a noção de “patrimônio histórico” deveria evocar essas dimensões múltiplas da cultura como imagens de um passado vivo, acontecimentos e coisas que merecem ser preservadas porque são coletivamente significativas em sua diversidade.

Decca (1992), em sua análise acerca da memória, cidadania e História aponta algumas conclusões norteadoras:

Hoje o cidadão se sente cada vez mais mutilado em seus sentimentos coletivos em relaçao ao passado. A tentativa de resgate de uma memória coletiva espontânea produzida por meio de símbolos, comemorações, livros e monumentos e que conservou lugares apropriados, não por um investimento particular e voluntário, mas por meio de vivências. Numa época onde a memória coletiva foi seqüestrada pela irreversibilidade do tempo histórico, resta redescobrir os lugares onde esta memória coletiva se preservou espontaneamente, em gestos, posturas, hábitos e na sabedoria de nossos silêncios. (DECCA, 1992, não paginado)

É fundamental saber que a história de um lugar é o resultado da ação, num determinado momento e sobre um determinado espaço, de processos que atuam em escalas que são ao mesmo tempo desiguais e combinadas. Assim, a história de um lugar não pode se ater aos processos puramente locais que aí tiveram efeito. Ela precisa relacionar os processos mais gerais, que atuam em escalas mais amplas (regional, nacional, global) da ação humana. Isto não pode ser feito, entretanto, à margem da compreensão das singularidades locais e da sua devida valorização.

Neste sentido, “a perda da memória é um evento escravizador... e o nosso destino depende de nossa capacidade e vontade de recuperar memórias perdidas, ‘ser livre’ exige que sejamos capazes de dar nome ao nosso passado”. (ALVES, 1989, p. 28). A memória resguardada no interior do sujeito retém um passado individualizado, mas que não foge das ligações com o grupo social, do qual o sujeito fez parte. E esse pertencimento é responsável pela construção das suas representações. A representação através da memória subjetiva dotada de imagens interiores, aflora e se manifesta no cotidiano grupal quando os detentores desta, as legam aos seus, disseminando-a na cultura. O indivíduo, ao herdá-la, incuti-lhe novos valores, interiorizando as experiências de outrem, atribuindo-lhe nova roupagem. Nota-se aí, portanto, uma pluralidade no sentido da memória, que se reflete no individual e no coletivo. Para o indivíduo que muito viveu, “relembrar” suas memórias é algo lúdico e inspirador, capaz de gerar completa fluição e cadência de lembranças. O que jazia no inconsciente, agora vem à tona... emerge à consciência nos interstícios da fala. E o esquecimento... um refúgio imperceptível, o que não surge não deixa de existir, apenas não é visível, mas permanece no subterrâneo do espírito.

No interior da memória, então, a lembrança ocupa um lugar especial. Sua função e finalidade, reside no ato de fazer com que as coisas idas não se percam, ligando o passado ao futuro. Um tipo singular de lembrança se encontra nas memórias de velhos, que têm um caráter absoluto da entrega de uma vida inteira, de quem nada resta a não ser lembrar. Ecléia Bosi (1994), em sua tese de livre docência, faz um instigante trabalho sobre memória de velhos e recupera o valor de suas lembranças. Não deixa, porém, de denunciar a forma perversa com que a sociedade capitalista suprime a velhice por mecanismos institucionais e psicológicos, relegando-os ao banimento e à discriminação. Discorrendo sobre a argumentação de Bosi, Chauí97 constata: “que a sociedade ao oprimir a velhice, destrói os apoios da memória e substitui a lembrança pela história oficial celebrativa. Ser velho em nossa sociedade é lutar para continuar sendo homem, é sobreviver” (BOSI, 1994, p.l8).

Destruindo os suportes materiais da memória, a sociedade burguesa bloqueou os caminhos da lembrança, arrancou seus marcos e apagou seus rastros. O pior ocorre, porém, quando as lembranças pessoais e grupais restauram estereótipos oficiais do ideário dominante. Então as lembranças pessoais e grupais são invadidas por outra “história”, por outra memória que rouba das primeiras o sentido, a transparência e a verdade. Bosi escreve que urna lembrança é como um diamante bruto que precisa ser lapidado pelo espírito. Burilar, lapidar, trabalhar o tempo e nele recriá-lo constituindo-o como nosso

97 Ibdem, p. 18-19.

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tempo. Duas memórias são identificadas em seu texto, segundo o qual o passado conserva-se e, além de conservar-se, atua no presente, mas não de forma homogênea. De um lado, o corpo guarda esquemas de comportamento que se valem muitas vezes automaticamente na sua ação sobre as coisas: trata-se da memória-hábito, a memória dos mecanismos motores. De outro lado, ocorrem lembranças independente de quaisquer hábitos: lembranças isoladas, singulares, que constituíram autênticas ressurreições do passado.

Descrevendo a substância social da memória – a matéria lembrada – esta autora mostra-nos que o modo de lembrar é individual tanto quanto social: o grupo transmite, retém e reforça as lembranças, mas o recordador, ao trabalhá-las, vai paulatinamente individualizando a memória comunitária e, no que lembra e como lembra, faz com que fique o que significa.

A lembrança é, sobretudo, a sobrevivência do passado conservando-se no espírito de cada ser humano; aflora à consciência na forma de imagens-lembranças.

Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstituir, repensar com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevivência do passado, “tal como foi”, e que se daria no inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual. Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância, por que nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se, com ela nossas idéias, nossos juízos de realidade e de valor.

A essência da cultura atinge a criança através da fidelidade da memória. Ao lado da história escrita, das datas, da descrição de períodos, há correntes do passado que só desapareceram na aparência e que podem reviver numa rua, numa sala, em certas pessoas, como ilhas efêmeras de um estilo, de uma maneira de pensar, sentir, falar que são resquícios de outras épocas.

A arte de lembrar em muitos aspectos compara-se ao ato criador, ambas ações requerem o esforço e a habilidade de fazer fluir o que encontra-se interiorizado no indivíduo, sua diferença primordial instala-se no fato de que toda criação resulta em dar vida e existência a algo que não existe. A lembrança, porém, já existe. Para trazê-la à superfície é preciso buscá-la no íntimo. Sua figuração se resume nisso. A lembrança ainda pode ser evocada pelo uso de alguns artifícios, que podem surgir deliberadas ou espontaneamente. Isso ocorre com freqüência quando nos surpreendemos regressando ao passado. Ao percorrer, por exemplo, as imagens de uma antiga fotografia, relendo escritos de outro tempo, muitas vezes uma frase, uma palavra ou ainda um objeto que contemplamos constitui-se numa chave para reavivar nossas lembranças. Esta capacidade extraordinária e tão humana de reter o tempo institucionaliza-se e transfere-se dos sujeitos para o espaço a fim de imortalizar as lembranças, perpetuá-las para que as gerações futuras não percam os laços com o passado de sua civilização. Sem memória, o que seria das paisagens demolidas, dos símbolos que dão sentido a um povo, das tradições que fazem a cultura? Uma vida amnésica é destituída de sentido, a própria história sem memória é morta.

A memória pode ainda permanecer e ser preservada através de instituições cujo cerne de preocupações se volta para guardar as reminiscências do passado. Sua importância reside, indiscutivelmente, no seu valor documental que permite remeter-se no tempo e encontrar o sentido daquilo que não mais existe, ao debruçarmos sobre uma pluralidade de experiências vividas, que porém não nos pertencem.

Tais instituições assumem importância numa sociedade que se apresenta cada vez mais mutante e demolidora do passado. O novo surge a cada instante. Nada é permanente. O espaço, então, despersonifica-se, a própria cidade polidamente detentora de memórias, transubstancia-se, deforma-se e empalidece em sua originalidade, quando tomada por uma forma homogeinizante que torna comum o seu espaço, suprimindo a diversidade não só nas formas e no comportamento de seus habitantes.

Donatelli F. (1996), como já vimos, faz ainda uma crítica à memória transformada em nostalgia, como um estado de alienação quando nos remetemos à memória dos homens, um particular momento da existência. A nostalgia, aparentemente, fala de forma delirante ou prazerosa do passado, das cidades, das coisas, mas na verdade, o nostálgico relembra coisas que não lhe pertenceram. Nossa sociedade oferece a todos a possibilidade de ter saudades de experiências que não vivemos, mas que se apresenta e se legitima pelo consumo.

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Apesar da crítica, não se discute a imprescindibilidade das instituições de memória no conjunto da sociedade para compreender sua formação, já que não é possível “tirar do túmulo” aqueles que viveram os fatos históricos, ou seja, aqueles que não mais existem não poderão relatar a história. Assim, restam apenas as instituições de memória para manter vivo o passado. A contemporaneidade, sem a solidez oferecida pela memória no atributo de sua funcionalidade, tornar-se-ia refratária. O elo que nos une ao passado torna-se mais ameno a cada dia em decorrência do desequilíbrio gerado pela voracidade do nosso tempo, em que a única coisa realmente constante é a mudança.

A composição da auto-imagem de um grupo social depende de suas lembranças. São estas que forjam a identidade coletiva, afirmam seus valores, suas glórias, suas crenças fazendo com que o grupo compartilhe de um sentimento comum contribuindo para coesão do mesmo, ainda que esse sentimento coletivo seja uma síntese de individualidades, quando nos remetemos à sociedade moderna.

Pensando na memória urbana, Abreu (1998) nos indica que a valorização do passado das cidades é uma característica comum às sociedades deste final de milênio. Depois de um período que só se cultuava o novo – a justificativa é a necessidade de preservar a “memória urbana”. A valorização do passado, bem como as transformações que vêm ocorrendo no imaginário ocidental marcando o fim do otimismo ilimitado no futuro, constitui-se em período de transição, ou seja, período de perda de concordância de tempos, em que antigos tempos passaram a coexistir e a interagir obrigatoriamente com tempos recém chegados, tempos novos em busca de hegemonia (SANTOS, 1994, p. 45-46 apud. ABREU, 1996, p.5-25).

A constatação de Abreu (1998) é que a sociedade brasileira mudou a forma de se relacionar com as suas memórias. Embora poucas sejam as cidades que ainda apresentem vestígios materiais consideráveis do passado, grande tem sido o esforço para salvar e valorizar o que restou. A “memoria urbana” aparece como elemento essencial na constituição da identidade de um lugar.

Neste contexto, as duas memórias (individual e coletiva), cada qual com suas singularidades, contribuem para recuperar a memória das cidades. A partir da memória individual ou de seus registros é possível enveredar-se pelas lembranças das pessoas e atingir momentos urbanos que já passaram e formas espaciais que já desapareceram. Com a memória individual, porém, deve-se ter um certo cuidado por ser carregada de subjetividade. Mas há também outra memória intersubjetiva, compartilhada, muito mais do que uma simples agregação de memórias subjetivas: a memória de um lugar, de uma cidade, que é a memória coletiva, na qual Abreu recupera a definição de Halbwachs (1990). Segundo ele, memória coletiva é um conjunto de lembranças construídas socialmente e referenciadas a um conjunto que transcende o indivíduo. A memória coletiva envolve as memórias individuais, mas não se confunde com elas. É extremamente dinâmica, devido à fluidez do grupo social e apresenta-se em constante mutação.

Outro ponto importante dos estudos de Halbawchs (1990)98 é que as memórias coletivas se eternizam muito mais em registros, do que em formas materiais inscritas na paisagem. “São estes documentos que, ao transformar a memória coletiva em memória histórica, preservam a memória das cidades e permitem, também, que possamos contextualizar os testemunhos do passado que restaram na paisagem”. E nas instituições de memória (museus, arquivos, bibliotecas etc.) que as memórias das cidades são preservadas, nos documentos. Na visão de Abreu (1998), o fundamental é conscientizar-se de que o resgate da memória das cidades não “pode limitar-se à recuperação de formas materiais herdadas de outros tempos. Há que se tentar dar conta também daquilo que não deixou marcas na paisagem, mas que pode ainda ser recuperado nas instituições de memória”.

Assim, a cidade é um lugar de memória por ser o local da sociabilidade. A vivência na cidade é responsável pela origem de inúmeras memórias coletivas, que atingem sua plenitude quando ancoradas no tempo e no espaço.

Retomando o pensamento de Santos (1994), é traçada a distinção entre a história urbana e a história da cidade, não devendo confundir, e uma vez que a história do urbano seria a história das atividades que se realizam na cidade, não em uma determinada cidade, mas no ambiente urbano de um modo geral. A história da cidade seria a história dos processos sociais que se materializa de forma mais objetiva: a história dos transportes, a história da propriedade, da especulação, da habitação, do urbanismo, da centralidade. Para Abreu (1998), essa distinção é norteadora, mas não é suficiente. Para tratarmos da

98 HALBWACHS, 1990, apud. ABREU, 1998, p. 13.

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complexidade da memória de um lugar há de se trabalhar na recuperação simultânea da historia “no e do lugar”.

A cidade incontestavelmente é lugar da memória em primeira instância, memória solidificada nas formas materiais, herança da criação e da imaginação humana, como também é um conteúdo das memórias individuais e coletivas. Como vimos, a experiência urbana, no sentido de viver a cidade, é matéria da memória. São dignos de lembrança os espaços que fizeram parte de nossa existência e que se confundem com ela. São as memórias do lugar que estão nele, e além dele, estão em nós, na nossa narrativa. Trazê-las à luz é dar movimento à história e reiterar os laços de identidade que dão vida ao grupo social. Mas há que se cuidar para que a cidade seja mesmo o “lugar” e não “túmulo” da memória.

Muitas vezes, a valorização da memória, especialmente a “memória urbana”, ganha uma conotação superficial por parte da população, uma valorização ligada ao pitoresco e até mesmo ao quimérico, à maneira dos nostálgicos. Restituir a memória requer, entretanto, transcender os lugares comuns, encontrar seu sentido e plasticidade para que a memória da cidade permaneça cada vez mais presente e provocadora.

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VIOLÊNCIA MARGINAL: A construção da identidade e o sentido da violência∗∗∗∗.

André Luís ANDRÉ∗∗∗∗∗∗∗∗

Eda GOES∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗

Resumo: Este texto tem como objetivo comunicar algumas das questões que temos investigado a respeito daquilo que entendemos primariamente como violência urbano—marginal, ou seja, violência utilizada pelos grupos incluídos de forma marginal na cidade de São Paulo, seja para resolver conflitos cotidianos, seja para instrumentar formas econômicas incriminadas juridicamente, com vista a otimizar sua capacidade de consumo e suas relações afetivas, mediante a elaboração de uma identidade que se constrói positivamente como marginal. Palavras-chave: Violência; identidade; sistema de trocas simbólicas. Resumen: Este texto tiene como el objetivo comunicar algunos de los asuntos que nosotros hemos estado investigando sobre esto que nosotros entendimos primariamente como violencia urbano-marginal, en otros términos, violencia usó por los grupos incluidos de una forma marginal en la ciudad de Sao Paulo, sea para resolver los conflictos diarios, sea para instrumentar maneras económicas incriminadas jurídicamente, con la vista perfeccionar sus capacidad de consumo y sus relaciones afectuosas, por la elaboración de una identidad que se construye positivamente como marginal. Palabras-llave: Violencia; la identidad; el sistema de cambios simbólicos. 1. Introdução.

Qualquer esforço intelectual que tenha como finalidade entender a violência nos dias atuais exige uma série de redefinições epistemológicas. A elaboração de um novo paradigma se faz necessário (WIEVIORKIA, 1997) para entendermos a violência de forma profunda e adequada, com vista, em última instância, a sua minimização.

Procuramos compreender a violência a partir de diferentes perspectivas que relacionadas fornecem um arcabouço teórico fundamental. Assim, as diversas formas de violência podem ser entendidas, de modo geral, como tudo aquilo que fere o corpo e a psique de pessoas, grupos, classes, populações, nações e etc. (MORAIS, 1985; TAILLE. 2000); como técnica, isto é, como instrumento social através do qual determinados interesses e lógicas podem se realizar (SANTOS, 1996); como ato de um tipo específico de política organizada ou não animadora de novas práticas, discursos e ações (SOARES, 2000); e, por fim, como ação dotada de linguagem e conteúdo nem sempre evidente (BOURDIEU, 1996; PEREIRA; RONDELLI; HOLLHAMMER e HERSCHMANN, 2000; SOARES, 2003).

Isto posto, é inegável que o aumento exponencial da violência e de sua percepção, deixa a realidade em que vivemos ainda mais confusa e confusamente experimentada, de tal maneira que a cisão na totalidade e os desmembramentos abstratos dos fenômenos da realidade devem ser intensos, além de considerar elementos interiores e exteriores às pessoas (SANTOS, 1996; 2000). Neste sentido, no que se refere à análise dos fenômenos sociais na perspectiva da Geografia, a análise da topologia global dos objetos requer a análise daquilo que Hakin Bey (1999) chamou de psicotopologia ou aquilo que Milton Santos (1996) chamou de psicostera.

∗ Texto publicado em 2004 (n. 11 v. 2). Refere-se a um dos resultados da monografia de Bacharelado em Geografia “Vida Bandida! Maginalização, Sistema de Trocas Simbólica e identidade”, apresentada no ano de 2003, no Curso de Geografia da UNESP, FCT – Presidente Prudente, cuja proposta estamos desenvolvendo e ampliando no mestrado. ∗∗ Mestrando em Geografia do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Faculdade de Ciências e Tecnologia da UNESP, campus de Presidente Prudente. ∗∗∗ Professora do Departamento de Geografia e do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Faculdade de Ciências e Tecnologia da UNESP, campus de Presidente Prudente.

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Como fenômeno, que se transformou em um dos principais temas da sociedade globalizada, a violência se tornou estrutural e explícita (IDEM, 2000), não obstante, cada vez menos simbólica (BOURDIEU, 1996), isto é, reconhecida e legitimada, porém, capaz de produzir uma sensação na qual a violência, e o medo que ela inspira, é quase uni estado permanente. No entanto, violências de diferentes tipologias podem ser mais ou menos legitimadas ou repudiadas de acordo com sua natureza, quem são os seus protagonistas e vítimas, qual a força, poder ou potência econômica, política, técnico-científica, temporal e espacial dos que agridem e daqueles que são agredidos.

Pode-se reconhecer ou repudiar diferentes tipologias de violência de acordo com a posição que se ocupa no espaço geográfico, sistema indivisível onde se disputa ou se esvazia poder, se sente e se torna sensível. É neste sentido que equivocadamente Yves Michaud (1998, p.7) define a violência como: “uso da força a margem da legitimidade ou da ilegitimidade desta força”. Primeiro porque as formas de violência institucionalizadas são aquelas que invariavelmente são necessárias para se manter uma determinada ordem dos objetos e de suas respectivas funções, das pessoas e dos seus respectivos papéis; segundo, por mais legítima que possa parecer a violência, isso não a torna menos dolorida no corpo e na psique daquele ou daqueles que a sofrem.

Contudo, não há forma de violência alguma que não seja relativa e internamente coerente, que não tenha sua lógica, seu metabolismo, sua racionalidade e seu conteúdo. Por mais ilógica ou irracional que possa parecer, a violência é sempre um fenômeno racionalizado, seja para o exercício do poder, seja para que se viva ou sobreviva apesar do poder ou dos poderes, seja cuidadosamente calculado por tecnocratas de um Estado beligerante ou de megaempresas, para em um caso extremo deflagrar uma guerra, seja difusa e instintivamente racionalizada por um jovem de um subúrbio qualquer de um país periférico, em uma tentativa quase sempre suicida de sobreviver.

Do ladrão de bancos da periferia da metrópole paulistana, passando pelo traficante varejista dos morros cariocas ou mesmo pelo “homem bomba” palestino, até chegar, não obstante, a uma declaração de guerra ou uma intervenção militar de um Estado contra outro, não há violência desprovida de lógica, por mais absurda que ela venha a ser. Sendo assim, Bourdieu (1996, p.l38) nos diz o seguinte:

os agentes sociais não agem de maneira disparatada, [...] eles não são loucos, [...] eles não fazem coisas sem sentido. [...] há urna razão para os agentes fazerem o que fazem, [...] razão que se deve descobrir para transformar uma série de condutas aparentemente incoerentes, [...] em uma série coerente, em algo que se possa compreender a partir de [...] um conjunto coerente de princípios.

Isto não implica uma justificação ou legitimação de qualquer ação agressiva, já que em si a

violência é sempre causa de sofrimento, dor, degradação, limitação e constrangimento, negação da civilidade, do desenvolvimento pessoal e social, da autonomia e da liberdade.

Entretanto, a descrição, análise, explicação e interpretação de qualquer forma de violência exigem esforços de compreensão de seu conteúdo e significado, natureza e finalidade. Nesta perspectiva, as diversas formas de violência podem ser avaliadas primariamente como violência do poder e violência

não-normal (TOSTOI, 1981). A primeira utilizada para produzir, reproduzir e ampliar poder de pessoas, famílias, grupos, classes, empresas, governos e Estados; violência quase homogênea, potencialmente globalizada, situada no espaço de fluxos, onde o tempo é unificador - atemporal (CASTELLS, 2000), violência vertical aos lugares, geralmente comandada por uma ordem distante (LEFEBVRE, 1991) e consagrada pelos sistemas normativos, sejam as leis, os costumes e/ou as tradições. A violência não-normal, por sua vez, é utilizada como reação ao exercício do poder; violência globalizada, mas não organizada globalmente, extremamente heterogênea, horizontal aos lugares, situada no espaço dos lugares, onde cada vez mais prevalece um tempo sem tempo, isto é, urgente, carregada de elementos pertencentes à ordem próxima, geralmente condenada pelos sistemas normativos, negativizada pela tradição e os costumes e incriminada pelas leis.

Tendo isto como premissa, é mister apresentar algumas das nossas reflexões a respeito daquilo que temos entendido como violência urbano-marginal ou somente violência marginal, tipologia de violência não-normal, que tanto esgarça a sociabilidade urbana em suas relações com as violências dos poderes exercidos no espaço urbano, transformando a cidade — “... berço em que o homem (os seres humanos) se civiliza e civilizar é sinonimo de politizar, de transformar a ‘massa’ em corpo político deliberativo, racional e ético [...] [em que] os cidadãos formam-se a si mesmos (BOOKCHIN, 1999, p.

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16) — em uma não cidade, isto é, um lugar de negação da civilidade e da liberdade, lugar de afirmação dos poderes e da violência em estado cada vez mais puro (SANTOS, 2000), onde a força ideológica se submete à ideologia da força.

O marginal não tem conotação negativa alguma, significa elaborar uma identidade a partir da vivência permanente em um estado de inclusão marginal no espaço urbano (MARTINS, 1997), ou seja, segregado na paisagem urbana e informalmente proibido de utilizar e acessar ou sub-utilizando e acessando de forma residual os recursos que a cidade concentra; possibi1itando que um sentimento de marginalidade seja elemento constitutivo de uma cultura suburbana positiva auto-entendida como marginal (TAILLE. 2000), criando referências, símbolos, papéis e funções, redefinindo valores e estigmas, dando positividade e densidade ao que venha a ser marginal, suas práticas e seus discursos, construindo uma identidade que não é outra coisa senão defensiva (CASTELLS, 2000), racionalizando a violência como instrumento técnico e normativo de circuitos econômicos criminalizados, bem como instrumento político para situações nas quais não há campos de negociação, ou mesmo, onde consensos mínimos se tornam quase impossíveis (ANDI, 2001); afirmando a violência corno mensagem corrente das sociedades contemporâneas, em um momento de crise global e de transição da “dialética da malandragem” para a “dialética da marginalidade” (ROCHA, 2004).

Nesta perspectiva, a investigação a respeito da violência marginal nos força a intercalar diferentes níveis de análise: primeiro, as transfonnações globais do sistema social que tangenciam a economia, a política, a comunicação, a técnica e a ciência, a religiosidade, o tempo e o espaço; segundo, a formação da identidade dos grupos subalternos da cidade de São Paulo diante deste processo de transformações estruturais; e, por último, a coerência da ação violenta e suas relações com tais mudança e tal identidade daí decorrente. Aqui vamos nos ater de forma breve à identidade marginal e a lógica da ação violenta, nos atendo à metrópole paulistana — São Paulo — como universo empírico e utilizando o RAP99 como subsídio (ROCHA; DOMENICH e CASSEANO, 2001), gênero musical utilizado pelos grupos subalternos da metrópole para veicular, expressar e criar suas representações da sociedade, do cotidiano e da vida. 2. Identidade marginal, identidade bandida!

A ação e as construções identitárias que a sustentam devem ser compreendidas como síntese, posição e negação, causa e efeito da convergência de elementos comandados na escala global e elaborados na escala local, onde o corpo — espaço da dor e do prazer (SMITH, 2000) — dispõe de uma centralidade às vezes negligenciada. Sendo assim, o processo de formação de qualquer identidade — “fonte de significado e experiência” (CASTELLS. 2000, p.22), diferenciação, entendimento e auto-entendimento, esconde disputas sutis entre variadas formas de apreender as condições objetivas nas quais tal identidade se assenta. Há na composição da identidade disputas que não se percebe: disputas de habitus (BOURDIEU, 1996), disputas de escolhas, disputas de ações, disputas discursivas, disputas estéticas e disputas de linguagens, de tal maneira que a identidade que se sobressai reivindica, mesmo sem o fazer, o monopólio da representação de determinado modo de vida, hegemonizando outras identidades, habitus, escolhas, visões do cotidiano e da vida, ações, estéticas, discursos e linguagens. Assim, a identidade é tanto objeto de disputas e concorrências endógenas, capaz de desencadear conflitos intragrupos quanto elemento que pode desencadear conflitos intensos entre diferentes grupos sociais e identitários.

A identidade marginal se constitui naquilo que Castells (2000, p.24) chamou de:

...identidade de resistência — criada por atores que se encontram em posições/condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação, construindo, assim, trincheira de resistência e sobrevivência com base em princípios diferentes dos que pemeiam as instituiçõe da sociedade, ou mesmo opostos a estes últimos.

99 Na condução desta pesquisa utilizamos inicialmente 15 músicas, de diferentcs álbuns do grupo de RAP: Racionais MC’s.

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A concorrência de identidades marginais produziu uma personificação universal — Mano –, um personagem comum, elo de ligação das diferentes identidades e papéis internos aos grupos subalternos da cidade, um personagem que vai comportar todos os outros — trabalhador, bandido, sofredor, guerreiro –, mas que em determinadas circunstâncias também vai se submeter a eles. Sendo identidade primária e última, alicerça e comporta diferentes comportamentos, sem cindir o reconhecimento e o pertencimento; embora estes sejam instáveis devido às condições de marginalidade100.

A identidade marginal, em todas suas personificações, vai contar com os seguintes elementos constitutivos: a questão étnica, territorial, a re-significação e o re-ordenamento de valores, solidariedade e rivalidades internas, a oposição ao Estado, particularmente à polícia e ao sistema penitenciário, e aos grupos entendidos como integrados à sociedade; não obstante, há a percepção de uma violência do poder que ao ser instituída tende a se naturalizar, bem como a colocação da figura materna no centro da construção familiar, embora seja esta uma identidade sexista; por fim, ocorre a construção de uma religiosidade compatível com as definições que esta identidade tem construído, isto é, há um processo de marginalização dos ícones religiosos, a imagem e semelhança dos marginais que a constroem.

Castells (IBIDEM. p.76), ao investigar a construção de uma identidade negra nos Estados Unidos, nos ajuda a compreender alguns elementos dessa identidade marginal paulistana, até porque esta última é em vários aspectos verticalizada por aquela. Ele diz o seguinte:

... os guetos do final do milênio vêm desenvolvendo uma nova cultura, composta de aflições, raiva e reação individual contra a exclusão coletiva, em que a negritude importa menos que as situações de exclusão que geram novas formas de vínculos, por exemplo, gangues territoriais, nascidas nas ruas e consolidadas pelo entra-e-sai das prisões. O rap, e não o jazz, é produto dessa nova cultura, que também expressa uma identidade, também está fundada na história negra e na longa tradição [..] de racismo e opressão social, no entanto incorpora novos elementos: a polícia e o sistema penal como instituições centrais, a economia do crime como chão da fábrica, as escolas como área de conflito, as igrejas como redutos de conciliação, famílias madrecêntricas, ambientes depauperados, organização social baseada em gangues, uso da violência como meio de vida.

Esta leitura poder ser feita também para a identidade que vai se fazer na periferia da metrópole

paulistana, todavia, onde ele escreve jazz podemos escrever samba. Assim, neste processo de identificação o corpo vai ser eleito como o lócus das signiticações e

cumprirá a função de distinguir socialmente os grupos marginais dos demais grupos. Como a formação de uma identidade capaz de representar parcelas de gentes, cujas existências são em grande medida semelhantes, uma identidade universal ou básica se encarregará de produzir as ligações intersubjetivas, ao passo que varios personagens adjetivos serão criados para dar conta da heterogeneidade interna.

A identidade primária e universal Mano é completada pelas seguintes identidades adjetivas:

sofredor, sobrevivente, leão, guerreiro, sangue-bom, negro ou nego, preto, vagabundo, ladrão e bandido.

Além destas existem identidades adjetivas para diferenciar moralmente e negativamente os indivíduos internamente: verme, bico, zé povinho e neguinho.

O mano pode ser um trabalhador, um ladrão, um traficante: pode ou não ter os mesmos gostos e rotinas: pode ser negro, branco ou mestiço; o importante é que ele seja um marginal, para ser reconhecido como tal. Marginal do sistema econômico, do sistema político, do sistema técnico-científico-informacional, marginal da e na cidade. Um elemento importante é esta oposição e desconfiança em relação às instituições do Estado, principalmente aquelas encarregadas das funções de coerção e repressão – as polícias e o sistema jurídico-penal, principalmente; há também uma oposição aos grupos relativamente incluídos, cuja representação foi ancorada em torno de um personagem denominado playboy. O playboy é entendido como alguém que transita e tem domínio da esfera pública e da esfera estatal, além do mercado, ele pode ser tanto um político quanto um empresário, um profissional liberal, um funcionário do Estado ou de empresas privadas. No limite, o playboy é alguém que de alguma

100 No início dos anos 1990 havia uma música do grupo de rap da zona sul de São Paulo - Comando DMC -, que dizia que trabalhadores e bandidos deveriam formar uma aliança para combater o preconceito racial e social e a desigualdade. A letra dizia mais ou menos o seguinte: “...trabalhadores, bandidos todos serão aceitos no esquadrão guerrilheiro em defesa do povo preto, não podemos admitir, nem querer acordo, com essa raça de filhos da puta que querem nos ver mortos. Se eles podem agredir nós também podemos, eles tem músculos e armas, e nos também temos (...). Não somos anti-brancos, mas sim anti-racismo, se você é preto não fique parado, pegue seu oitão (revolver calibre 38) deixe carregado, se algum deles te atacar contra-ataque sem medo, puxe, aponte e aperte, manda pro inferno...”

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maneira se beneficia da forma pela qual o sistema social se organiza. Esta organização é nomeada de sistema.

Em seguida, apresentamos trechos das músicas selecionadas que ilustram bem este conjunto de significações:

... Racistas otários [polícia] nos deixem em paz, pois as famílias pobres não agüentam mais.

Pois todos sabem e eles temem, a indiferença por gente carente que se tem. E eles vêem, com toda autoridade e preconceito eterno e de repente o nosso espaço se transforma num verdadeiro infbrno e

reclamar direitos de que forma. Se somos meros cidadãos e eles o sistema e a nossa desinformação é o maior

Problema Mas mesmo assim enfim queremos ser iguais

Racistas otários nos deixem em paz. (...) Justiça, em nome disso, eles são pagos, mas a noção que se tem é limitada e eu sei que a lei é implacável com os oprimidos, tornam bandidos os que eram pessoas de bem.

(...) Então a velha história outra vez se repete, por um sistema falido, como marionetes nós somos movidos e há muito tempo tem sido assim. Nos empurram á incerteza e ao crime entim. Porque aí certamente estão se preparando, com carros e armas nos esperando e os

poderosos bem seguros observando, o rotineiro holocausto urbano... (...) Os poderosos são covardes desleais, espancam nosso povo nas ruas por

motivos banais... (RACISTAS OTÀRIOS)101

Se dit que moleque de rua rouba, o governo, a polícia no Brasil quem não rouba? Ele só não têm diploma pra roubar. Ele não se esconde atrás de uma farda suja. É

tudo uma questão de reflexão irmão, é uma questão de pensar Há, a Polícia sempre dá o mal exemplo, lava minha rua de sangue, leva o ódio pra

dentro, pra dentro, de cada canto da cidade, pra cima dos quatro extremos da simplicidade, a minha liberdade foi roubada, minha dignidade violentada, que

nada. (MÁGICO DE ÓZ)

...Se o barato é louco e o processo é lento.

No momento deixa eu caminhar contra o vento. O que adianta eu ser durão e o coração ser vulnerável

O vento não, ele é suave, mas é frio e implacável. É quente!

Borrou a letra triste do poeta. Correu no rosto pardo do profeta.

Verme sai da reta, a lágrima de um homem vai cair. Este é seu B.O. pra eternidade.

Diz que homem não chora. Tá bom! Falou. Não vai pra grupo irmão.

Aí! Jesus chorou... Porra vagabundo, vou te falar, tô chapando.

Eta mundo bom de acabar. O que fazer quando a fortaleza tremeu e quase tudo ao se redor, melhor, se

corrompeu. Epa! Pera lá! Muita calma ladrão, cadê o espírito imortal do Capão.

Lava o rosto nas águas, sagrada família. Nada como um dia após o outro dia...

(...) Só de pensar em matar, já mato, prefiro ouvir o pastor. (...) Molha a medalha de um vencedor, chora agora, ri depois...

Aí! Jesus chorou. (JESUS CHOROU)

Tô ouvindo alguém gritar me nome parece um mano meu, é voz de homem.

Eu não consigo ver quem me chama, é tipo a voz do Guina. Não, não, não, o Guina tá em cana.

101 Nome da música.

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Será? Ouvi dizer que morreu, sei lá! Última vez que eu o vi, eu lembro até que eu não quis ir, ele foi. Parceria forte aqui era nós dois. Louco, louco, louco e como

era, cheirava pra caralho, vixe, sem miséria. Todo ponta firme. Meu professor no crime, também no sangue frio, não dava boi

prá ninguém. Puta aquele mano era foda. Só moto nervosa, só mina da hora, só roupa da moda.

Deu uma par de blusa pra mim, naquela fita na butique do ltaim. Mas sem essa de sermão, mano, eu também quero ser assim. Vida de ladrão, não é tão ruim. Pensei, entrei no outro assalto

pulei, pronto, aí o Guina deu mó ponto. Pela primeira vez vi o sistema aos meus pés.

Apavorei, desempenho nota dez. Dinheiro na mão, o cofre já tava aberto. O segurança tentou ser mais esperto.

Foi defender o patrimônio do playboy, não vai dar mais pra ser super-herói. Se o seguro vai cobrir foda-se, e daí...

(TO OUVINDO ALGUÚM ME CHAMAR)

No último trecho citado, o personagem da música se refere a um assalto, como momento em que o sistema foi domesticado e submetido. Neste caso, a violência marginal cumpre uma função simbólica de inversão da relação de domínio e de construção da visibilidade, uma quebra temporária de um anonimato mórbido, é quando a violência marginal supera, ao menos de forma circunstancial, a violência do poder. Nota-se que o patrimônio a ser violado não é qualquer um, é o patrimônio de alguém compreendido como oposto, como participante beneficiado e indutor de um sistema de divisão social. Quando o patrimônio a ser violado for dos grupos centrais, ou seja, dos grupos que centralizam os benefícios produzidos pelo sistema social, não obstante, que se encontram nas melhores localizações da cidade, tanto a violência empregada como transgressão da norma que protege o patrimônio serão encaradas, cada vez mais, sem o peso negativo de tempos atrás. Este é um dos fatores que vai dar ao personagem do ladrão um grau de relativização e reconhecimento maior que do traficante, na medida que este último é entendido como alguém que usa e vicia sua própria gente.

Assim, gradativamente o ladrão vai ter sua negatividade sendo transformada em positividade, a tal ponto de ladrão virar conceito positivo e um adjetivo carinhoso, assim como vagabundo e bandido. Estes adjetivos têm sua negatividade dilacerada e passam, ao contrário de outrora, a designar positividade e orgulho. Primeiro, em razão da posição ótima no sistema de trocas simbólico-materiais, de que trataremos mais adiante, e, segundo, em razão do enfrentamento com os grupos centrais da cidade e com as forças policiais.

A seguir trechos de diferentes músicas que apontam para este processo de redefinição de valores e de constituição de identidades:

Você está nas ruas de São Pau lo, onde vagabundo guarda o sentimento na sola do pé. Não é pessimismo não, é assim que é, vivão e vivendo. Querreiro tira chifra, é o

doce veneno. (...) Hei pé de black, vai pensando que tá bom, todo mundo vai ouvir, todo mundo vai saber.

Tem que ser vagabundo, tem que ser vagabundo, tem que ser.. - (VIVÂO E VIVENDO)

... Hoje eu sou ladrão, artigo 157, as cachorras me amam, os playboys se derretem.

Hoje eu sou ladrão, artigo 157, a polícia paga um pau, sou herói, dos pivetes. Nego, São Paulo é selva, e eu conheço a fauna.

Muita calma ladrão, muita calma, eu vejo os ganso desce, e as cachorras subir... (EU SOU 157)

Minha intenção é ruim, esvazia o lugar! Eu tô em cima, eu tô a fim, um dois pra

atirar! Eu sou bem pior do que você tá vendo, preto aqui não tem dó, é cem por cento veneno!

A primeira faz “bum!”, a segunda faz “tá!”. Eu tenho uma missão e não vou parar! Meu estilo é pesado e faz tremer o chão! Minha palavra vale um tiro, eu tenho

muita munição! Na queda ou na ascensão, minha atitude vai além!

Se tem disposição pro mal e pro bem! Talvez eu seja um sádico ou um anjo, um mágico ou juiz, ou réu, um bandido do céu! Malandro ou otário, quase sanguinário!

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franco atirador se for necessário! Revolucionário ou insano, ou marginal! Antigo e moderno, imortal! Fronteira do céu com o inferno! Astral imprevisível,

como um ataque cardíaco do verso! Violentamente pacífico! Verídico! ... Vim pra sabotar seu raciocínio e pra abalar o seu sistema nervoso e sanguíneo!

Pra mim ainda é pouco, dá cachorro louco! Número um guia terrorista da periferia!

Uni-duni-tê, que eu tenho pra você, o rap venenoso ou uma rajada de PT... (CAPÍTULO 4, VERSÍCULO 3)

3. Sistema de trocas simbólicas: o sentido da ação.

Pierre Bourdieu (1996), ao falar de trocas simbólicas, chamou-as de economia dos bens

simbólicos ou economia das coisas sem preço. O sistema de trocas simbólicas é como um jogo, um jogo social, cujos participantes se prendem de tal forma que, presos ao jogo, acreditam quase que incondicionalmente que vale a pena joga-lo, reconhecem o jogo, seus objetivos e alvos, perseguem o jogo, ou melhor, a vitória no jogo, como objetivo primário da própria existência. O futuro deixa de ser um projeto e passa a ser a própria vivência do presente no jogo. As ações não são totalmente calculadas e projetivas, elas vão se inscrever nos instantes do jogo social quase como ações naturais, óbvias, evidentes e certas.

No que tange aos grupos marginais, a marginalidade impede a variedade de sistemas simbólicos, privados dos recursos sociais e de escolhas variadas de desenvolvimento as ações, idéias, condutas e comportamentos tendem a convergir para um único jogo. O que é preocupante, por este jogo relativizar uma sociabilidade na qual o crime e a violência desempenham um papel importante.

Frente a este problema, é relevante utilizar o conceito de ilusio ou investimento, trabalhado pelo próprio Bourdieu (IBIDEM, p. 139-140):

Se (...) você tiver o espírito estruturado de acordo com as estruturas do mundo no qual você está jogando, tudo lhe parecerá evidente e a própria questão de saber se o jogo vale a pena não é nem colocada. Dito de outro modo, os jogos sociais são jogos que se fazem esquecer, como é a illusio é essa relação encantada com um jogo que é produto de uma relação de cumplicidade ontológica entre as estruturas mentais e as estruturas objetivas do espaço social [e geográfico]. (...) a illusio [ou investimento] é estar envolvido, é investir nos alvos que existem em certo jogo, por efeito de concorrência, e que apenas existe para as pessoas que , presas ao jogo, e tendo as disposições para reconhecer os alvos que ai estão em jogo, estão prontas a morrer pelos alvos que inversamente, parecem desprovidos de interesse do ponto de vista daquele que não está preso a este jogo... inversamente, parecem desprovidos de interesse do ponto de vista daquele que não está preso a este jogo...

Neste sentido, os grupos marginais criaram cotidianamente um sistema de trocas simbólico-

materiais, nos quais os elementos a serem trocados são de um lado valores abstratos – poder, prestígio, reconhecimento, status etc. – atados ao corpo de determinadas mercadorias – carros, motos, jóias, roupas etc. – que configuram uma espécie de capital simbólico-estético-material e, ao mesmo tempo, um potencial afetivo, sensual e sexual, que também vai se configurar num capital simbólico-estético, objetivado no corpo, na estética do corpo.

Neste sistema, aos gêneros – masculino e feminino – cabem funções quase que determinadas, ao masculino cabe acumular capital simbólico-estético-material, através do consumo de mercadorias e usá-lo na troca pelo potencial afetivo, sensual e sexual feminino. Ao feminino, cabe trocar seu potencial afetivo, sensual e sexual, expresso na estética do corpo, pelo capital simbólico-estético-material associado ao consumo e ao uso de determinadas mercadorias reconhecidas como portadoras e símbolos de valores abstratos. Talvez isto explique, em certa medida, o maior envolvimento dos homens com o crime e a violência se comparado ao envolvimento das mulheres.

A passagem a seguir evidencia alguns destes elementos:

Quem não quer brilhar, quem não mostra quem ninguém quer ser coadjuvante de ninguém.

Quantos caras bom no auge se afundaram, por fama, e tá tirando dez de havaiana.

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E quem não quer chegar de Honda preto em banco de couro, e ter a caminhada escrita em letra de ouro.

A mulher mais linda, sensual e atraente, a pele cor da noite, lisa e reluzente. Andar com quem é mais leal e verdadeiro, na vida ou na morte o mais nobre

guerreiro. O riso da criança mais triste e carente, ouro, diamante, relógio e corrente.

Ver minha coroa onde eu sempre quis por, de turbante, chofer, uma madame nagô. Sofrer pra que mais se o mundo jaz do maligno, morrer como homem e ter

um velório digno. Eu nunca tive bicicleta ou video-gsme, agora eu quem o mundo igual cidadão

Kane... (DA PONTE PRÁ CÁ)

Elementos importantes de serem destacados a partir da passagem acima são as relações

fetichizadas entre reconhecimento social e acúmulo de objetos. Quanto mais mercadoria se acumula, mais se acumula capital simbólico-estético e, logo, se superdimensionam as possibilidades de relações afetivas, sensuais e sexuais. Neste sentido, quanto mais consumidor, mais se acumula capital simbólico-estético que garanta status, poder, prestígio, reconhecimento e relações afetivas.

Assim, diferentes valores abstratos ganham corpo em objetos de consumo, o que vai dar ao consumidor maiores e melhores, segundo tal lógica, relações afetivas, sensuais e sexuais. As novas estratégias de produção de mercadorias, cuja publicidade é essencial para se produzir a disposição da necessidade, isto é, o consumidor, intervem diretamente nas formas de apreensão das mercadorias e do consumo, produzindo um hiperhedonismo, que se satisfaz a partir do ato de aquisição, acúmulo e uso público de determinados objetos. O que vai incidir diretamente na auto-estima, amplificando de forma concreta e imaginária a beleza da estética pessoal, funcionando como instrumento de atração, reconhecido e coisificado em objetos de consumo.

As mercadorias vão trazer consigo um valor estético embutido, principalmente, via mecanismos publicitários. Ao serem consumidas, reproduziram o capital econômico preso a elas, não obstante, farão o consumidor acumular capital estético de feições, sobretudo, não-materiais, mas que exercem funções práticas e imediatas. Ao acumular mercadorias, se acumulará prestígio, poder, status, reconhecimento e, entre outras coisas, valorização pessoal, uma espécie de fama e visibilidade que, ao menos no interior das comunidades, no lugar de reprodução social – o bairro - quebrará a morbidez do anonimato, da insignificância e da indiferença. A acumulação material se equivalerá a uma acumulação simbólica, da qual dependem a auto-estima, o reconhecimento, formas de poder, prestígios, status, afirmação pessoal e as relações afetivas.

As modificações do sistema social, que impôs maiores dificuldades ao trabalho e ao trabalhador, precarizando diversas formas de realização do trabalho, não obstante, impôs à produção de bens e serviços o uso extensivo da publicidade e da propaganda, como fatores de produção, essenciais à circulação e a agregação de valor; diminuiu nas apreensões da realidade das populações urbano-

marginais de São Paulo, o capital simbólico associado ao trabalho e aumentaram o capital simbólico associado ao consumo. Há, não somente entre as populações marginais, um processo de supervalorização do consumo e do consumidor e uma superdesvalorização do trabalho e do trabalhador.

O ponto crítico deste processo é que as condições reais de consumo destas populações em uma situação de marginalidade e daquelas que estão passando pelo processo de marginalização são extremamente restritas e residuais. As condições e os ganhos do trabalho das populações marginais limitam as suas possibilidades de consumo, assim, seu capital simbólico-estético padece de atrofiação, de tal maneira que o crime serve como um meio de otimizar relativamente as condições de consumo e do consumidor, o que vai garantir aos indivíduos envolvidos em práticas legisladas como crimes maior capital simbólico e estético em relação ao trabalhador, portanto, melhores condições de consumo. Em outras palavras, traficantes e ladrões, por exemplo, no interior dos grupos marginais, vão centralizar capital simbólico-estético em razão das suas condições de consumo se mostrarem melhores que as condições de consumo dos trabalhadores, dos subtrabalhadores e dos desempregados. Portanto, o crime possibilita a compra de mercadorias essenciais e mercadorias que coisificam valores abstratos. Viver ou tentar viver do trabalho significa situar-se em posição inferior dentro deste sistema de trocas simbólico-

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materiais. Assim, paulatinamente o crime e a violência, bem como os indivíduos envolvidos em práticas criminosas, vão revertendo a negatividade que sempre lhes foram atribuídas.

As passagens a seguir são reveladoras, neste sentido:

Eu sei como é que é, é foda parceiro, é a maldade na cabeça o tia inteiro. Nada de roupa, nada de carro, sem emprego, não tem ibope, não tem rolê sem dinheiro.

Sendo assim, sem chance, sem mulher, você sabe muito bem o que ela quer. Encontre uma de caráter se você puder! É embaçado ou não é?

Ninguém é mais que ninguém, absolutamente! Aqui quem fala é mais um sobrevivente...

(FORMULA MÁGICA DA PAZ)

... Imigina nóis de Andi ou de Citroen, indo aqui, indo ali, só pam, de vai e vem. (...) Firmeza! Não é questão de luxo, não é questão de cor, questão que fartura, alega o sofredor.

Não é questão de presa, nem cor, a idéia é essa. Miséria traz tristeza, e vice-versa.

Inconscientemente, vem na minha mente inteira, uma loja de tênis, o olhar do

parceiro, feliz de poder comprar, o azul, o vermelho, o balcã, o esteiro, o estoque, o modelo. Não importa, dinheiro é truta, e abre as porta...

(V. L. PARTE II)

Na segunda a Patrícia, terça a Marcela, quarta a Raissa. Quinta a Daniela, sexta a Elisangela, sábado a Rosangela, domingo, a matinê4, 16 o nome é Angela.

Tenho a lista com as características e os nomes. — Qual é a fonte parceiro?

— Isso não é segredo. Colo de moto, lá ligado, tenho dinheiro. As cachorras fica tudo ouriçada quando chego, ponho pânico, peço champanhe no gelo

(...) Fico ali olhando, sentado, filmando, elas fazem de tudo pra chamar sua atenção, passa, taca na cara, na pretensão... (ESTILO CACHORRO)

Nota-se que há na primeira passagem uma relação em cadeia entre a falta de dinheiro, de objetos

de consumo, de trabalho e de mulher. Na segunda passagem há, por sua vez, a valorização da condição de consumidor e a valorização do uso público da mercadoria, no caso carros de empresas multinacionais. É impressionante como as marcas do capital globalizado intervém de forma constante na alimentação deste sistema de trocas, cujas melhores condições de sustentação estão ligadas às atividades que envolvam o crime e a violência.

É mister observar que, embora haja uma associação direta entre mercadoria, valores abstratos: status, poder, prestigio etc., e potencial afetivo-sensual-sexual, há uma recusa da lógica do preço e do cálculo estritamente racional, o que impede que este sistema de trocas particular seja reduzido à economia das trocas econômicas, e a troca, em si, seja definitivamente encarada como prostituição. É necessário que a troca seja mistificada, de forma que sua explicitação seja sempre ambígua. “Dizer do que se trata, declarar a verdade da troca ou como dizemos, à vezes, ‘quanto custou’, [...] é anular a troca” (BOURDIEU, 1996, p.168). Essa é uma relação que não pode se introduzir um preço, mesmo que ele exista implicitamente ou esteja explícito.

A verdade objetiva da troca exige um esforço de construção dissimulatória para impedir que a verdade sobre aquilo que se troca venha à tona. Uma alquimia simbólica, como disse Bourdieu (IBIDEM), que faz com que haja um duplipensar (ORWELL, 1984) sobre o sistema de trocas simbólico-

materiais capaz de ao mesmo tempo ser apreendia como uma troca de algo por algo, tangível e factível, isto é, de uma forma extrema, troca de objetos de consumo, de um lado, pelo corpo, de outro, exigindo assim o cálculo racional, o preço e a explicitação; ela também não é apreendida totalmente como tal, de maneira que a troca não é apreendida como troca, por isto, não tem preço ou cálculo, e, assim, não tem que ser explicada, por que não existe.

Interesse e desinteresse convivem na mesma atitude, porém. ambos os lados se mostram desinteressados em relação à troca, associando o interesse com o outro lado. Assim, vai se produzindo uma conotação negativa principalmente da mulher interessada, sem se produzir a mesma representação do homem interessado, seja ele bandido ou trabalhador, vai prevalecer a representação de desinteresse,

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enquanto em relação à mulher, a representação a priori vai ser sempre de interessada, de tal maneira que a representação positiva de mulher, será da mulher desinteressada pela troca, embora isto não implique em uma disputa menos acirrada por capita- simbólico-estético do gênero masculino.

Dito isto, é importante notar que a violência para os grupos subalternos da cidade, particularmente os mais jovens, cumpri uma função central de possibilitar uma otimização do consumo e das relações afetivas e sexuais, produzindo uma nova forma de pertencimento, o que intercala um metabolismo próximo com um metabolismo distante e ao mesmo tempo fornece um sentido e uma finalidade para a violência, de modo a produzir sua positivização, juntamente com a positivização do crime, e a construção de uma identidade que anime esta lógica, uma identidade marginal, extremamente densa, que comportará,, por que não, uma identidade bandida! 4. Referências bibliográficas. ANDI. Balas Perdidas: Um olhar sobre o comportamento da impressa brasileira quando a criança e o adolescente estão na pauta da violência. Brasília, DF. 2001. BOOKCHIN, Murray. Municipalismo Libertário. São Paulo: Editora Imaginário, 1999. BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas: sobre a teoria da ação social. Campinas: Papirus, 1996. CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade. 2ed. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2000. LEFEBVRE, Henri. O direito à Cidade. São Paulo: Editora Moraes, 1991. MICHAUD, Yves. La violência. Madri: Acento Editorial, 1998. MORAIS, Régis. O que é violência? São Paulo: Brasiliense, 1985. ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1984. PEREIRA, C. A M.; RONDELLI, E; SCHOLLHAMMER, K. M; HERSCHMANN, M. (orgs) Linguagens da Violência. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. ROCHA, Janaina; DOMENICH, Mirella e CASSEANO, Patrícia. HIP HOP: A periferia Grita. São Paulo, SP: Perseu Abramo, 2001. SANTOS, Milton. A natureza do espaço: Técnica, e tempo. Razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1996. ______________. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. São Paulo - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000. SMITH, Neil. Contornos de uma política espacializada: veículos dos sem-teto e produção de escala geográfica. In: ARANTES, A. A (org). O espaço da diferença. Campinas, SP: Papirus, 2000. SOARES, Luís Eduardo. Uma interpretação do Brasil para contextualizar a violência. In: PEREIRA, C. A M.; RONDELLI, E; SCHOLLHAMMER, K. M; HERSCHMANN, M. (orgs) Linguagens da Violência. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. p.23-46. __________________. Novas políticas de segurança pública. Revista Estudos Avançados, São Paulo. v.17, n.43, janeiro/abril, 2003, p.75-96. TAILLE, Yves de La. Violência: Falta de limites ou valor? Uma análise psicológica. In: In: ABRAMO, H. W; FREITAS, M. F. e SPOSITO, M. P. (Orgs). Juventude em Debate. São Paulo: Cortez – Ação Educativa, 2000, p.110-134. TOSTOI, Leon. A violência das Leis. In: WOODCOCK, G (org). Os grandes escritos anarquistas. Porto Alegre: L & PM, 1981, p.106-7. WIEVIORKA, M. O novo paradigma da violência. Tempo Social. Revista de Sociologia. São Paulo, v. 9. n 1 p 5-42m maio 1997.

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AOS “VADIOS”, O TRABALHO: CONSIDERAÇÕES EM TORNO DE REPRESENTAÇÕES SOBRE O TRABALHO

E A VADIAGEM NO BRASIL∗∗∗∗

Jones Dari GOETTERT∗∗∗∗∗∗∗∗

“No primeiro dia tudo parece bem.

No segundo dia já não sei o que fazer. No terceiro dia quase enlouqueço.

No quarto dia vou visitar meus colegas. No quinto dia começo a esperar, num tempo

que quase não passa, o fim de minhas férias.” (José, motorista)

Resumo: Discorremos aqui sobre como no Brasil, durante os últimos 500 anos, foram construídas representações de trabalhadores e vadios. Representações que atenderam interesses e projetos das elites econômicas, desde a substituição do índio pelo negro, do escravo e do nacional pelo imigrante e, hoje, do “incômodo” desnecessário econômico. Palavras-chave: trabalhadores; vadios; representações. Resumen: En nuestro ensayo discutimos como se construyeron las representaciones de trabajadores y vagabundos en Brasil, durante los últimos 500 años. Estas representaciones atendían a intereses y proyectos de las elites económicas, y van desde la substitución del indio por el negro, del escravo y del nacional por el inmigrante y, hoy, hasta del “incómodo” desnecesario económico. Palabras-llave: trabajadores; vagabundos; representaciones. 1. Introdução.

A liberdade preconizada pelo trabalho é um dos sustentáculos das relações de produção e de trabalho, no capitalismo. A ideologia em torno da primazia do trabalho como condição sine qua non de ascensão sócio-econômica, é um dos aspectos de maior relevância na construção de mulheres e homens subordinados à lógica da submissão e exploração de seus corpos e mentes. As representações sobre os “não-trabalhadores”, construídas ao longo dos últimos cinco séculos no Brasil, refletem o quanto o ideal do trabalho é importante na manutenção do status quo dos donos dos meios de produção, dos que comandam o trabalho sem, necessariamente, trabalhar.

Vadios, vagabundos, indolentes e preguiçosos, são alguns dos adjetivos empregados àqueles que se encontram “fora” do mundo do trabalho. Representações construídas e reconstruídas continuamente como garantia de manutenção do ícone-trabalho. Representações que figuram no imaginário social brasileiro e que tiveram sua origem já no contato entre europeus e índios a partir do século XVI. Representações que, também, sofreram mudanças na medida que novas relações de trabalho e novos trabalhadores foram necessários, e outros desnecessários, na reprodução das relações de poder que sustentam as bases material e simbólica para a opulência de poucos e a desclassificação social de muitos.

Analisar, sucintamente, como representações de “não-trabalhadores” e “trabalhadores” foram construídas no Brasil, é o objetivo central deste texto. Também, em decorrência do objetivo primeiro e principal, verificar como tais representações sofreram mudanças na medida que certos sujeitos passaram a ser destituídos de um lugar central, substituídos por outros que apresentavam um “melhor perfil” nas novas conjunturas econômicas; arriscaremos lançar algumas hipóteses da necessidade ideológica da construção de representações, de trabalhadores e de não-trabalhadores, como garantia da manutenção de

∗ Texto publicado em 2002, n. 9, v. 2 A produção deste texto tem por base a disciplina “História Social do Trabalho no Brasil” ministrada pela prof’. Dra. Eda Maria Góes, no primeiro semestre de 2001, junto ao Programa de Pós-Graduação em Geografia, FCT-UNESP. ∗∗ Doutorando junto ao Programa de Pós-Graduação em Geografia — FCT/UNESP. E-mail: [email protected]. Atualmente é professor da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).

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um mundo dicotomizado e, portanto, passível de separação entre os “bons” e os “maus”. Por fim, apresentaremos uma breve trajetória dos “desclassificados sociais” do período colonial aos “excluídos desnecessários” contemporâneos, demonstrando possíveis continuidades e descontinuidades.

É, ainda, buscar demonstrar que no Brasil, fundamentalmente, as representações sobre as suas gentes conservam as marcas da sociedade colonial escravista. Como enfatizou Marilena Chaui (2000, p. 89),

As diferenças e assimetrias são sempre transformadas em desigualdades que reforçam a relação mando-obediência. O outro jamais é reconhecido como sujeito nem como sujeito de direitos, jamais é reconhecido como subjetividade nem como alteridade.

2. Projetos e representações.

As representações, enquanto componente estrutural da ideologia dominante, participam organicamente dos mecanismos de construção e reconstrução de concepções e práticas que sustentam os projetos dos dominadores (dos ricos, pois é assim que os trabalhadores melhor definem as mulheres e homens burgueses). Como parte da realidade e inseparável dela, as representações articulam-se no todo social para justificarprojetos e aliciar possíveis sujeitos dissonantes dos interesses hegemônicos. As representações em torno do trabalho, dos trabalhadores e dos nãotrabalhadores, participaram e participam da história brasileira como componentes ideológicos para a manutenção da dicotomização dos que trabalham e dos que “não-trabalham”, dos responsáveis pela riqueza colonial e nacional e dos “vadios irresponsáveis”, dilapidadores dos bens da Coroa Portuguesa e da Nação Brasileira102.

É, portanto, a necessária construção de representações para a manutenção do mundo da propriedade privada dos meios de produção, mas também da produção daí decorrente, através do trabalho. Produzir trabalhadores e vadios, homens bons e homens maus, desde a chegada dos europeus no território por eles denominado Brasil, possibilitou a sustentação de braços para o trabalho de extração do pau-brasil, de produção do açúcar, da exploração de metais preciosos, da produção de café e cacau, do desenvolvimento da indústria, da ocupação de “espaços vazios”, da construção de obras públicas... A sustentação de uma gama de mulheres e homens que “se negaram” à vadiagem e fizeram de seu trabalho o fundamento do Brasil Gigante.

Marilena Chaui (2000) enfatizou que a representação do Brasil Gigante, como um dom de Deus e da Natureza, com um povo pacífico, ordeiro, generoso, alegre e sensual mesmo que sofredor, de um país sem preconceitos, acolhedor de todos que nele desejam trabalhar, e de contrastes regionais, por isso plural econômico e culturalmente, participa do “mito fundador do Brasil”. O mito que, em seu sentido antropológico, apresenta-se como uma narrativa no sentido de uma “solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos em nível da realidade”; já em seu sentido psicanalítico, o mito é tido como “impulso à repetição de algo imaginário, que cria um bloqueio à percepção da realidade e impede lidar com ela” (CHAUI, 2000, p. 8-9).

O mito como produtor de valores, idéias, comportamentos e práticas, também é produtor de representações. Representações que participam do conjunto de idéias que sustentam tanto o pensar quanto o fazer a realidade. Representações que participam da construção e efetivação das idéias que são interiorizadas e aceitas como verdades supra-realidade, universais e incontestáveis.

102 A idéia de Nação Brasileira que é dada pela ‘forte prescnça de uma representação homogênea que os brasileiros possuem do país e de si mesmos”, é acentuado por Marilena Chaui; a autora ainda observa: “Essa representação permite, em certos momentos, crer na unidade, na identidade e na indivisibilidade da nação e do povo brasileiros, e, em outros momentos, conceber a divisão social e a divisão política sob a forma dos amigos da nação e dos inimigos a combater, combate que engendrará ou conservará a unidade, a identidade e a indivisibilidade nacionais” (CHAUI, 2000, p. 7-8). A presença de uma representaça homogênea poderia, num primeiro momento, estar em contradição com as representações dicotomizantes também presentes e construídas; no entanto, essa contradição é apenas aparente na medida que as suas construções atendem aos mesmos Interesses mas eni circunstâncias diferentes. A representação homogênea se coloca quando busca-se a unidade nacional frente a um “inimigo” externo ou quando da necessidade da sustentação do mito do desenvolvimento econômico (discutido por FURTADO, 1996) e do progresso. Já as representaçôes dicotomizantes são acentuadas como componente ideológico interno justificadoras do status quo de certos grupos, e como pressão para a obediência e a submissão à lógica capitalista e, por sua vez, à sua representação do trabalho e de trabalhadores.

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As representações, como surgidas magicamente sem autor e sem filiação, inserem-se no jogo das construções de concepções e práticas que se espraiam, de uma ou de outra forma, em toda sociedade. A partir destas mesmas representações são as mulheres e homens classificados, assumindo como centralidade o trabalho e, em decorrência, a classificação dos trabalhadores e dos não-trabalhadores, dos capazes e dos incapazes, dos esforçados e dos indolentes. Concepções e práticas que acabaram por engendrar os mecanismos de sustentação de projetos dos portugueses, dos senhores de engenho, dos caçadores e traficantes de escravos, dos mineradores, dos fazendeiros de café, de soja, dos industriais e banqueiros, enfim, dos que tiveram (e têm), na força de seus valores e idéias, as práticas para a acumulação ampliada e contínua de capital, propiciada pelo trabalho de outrem.

Marx (1983) já colocara, no século XIX, que um “poder estranho” e “invisível” penetra sobre as mulheres e homens, trabalhadores ou não, quando no sistema da propriedade privada cada

[...] homem especula sobre a criação de uma nova necessidade no outro a fim de obrigá-lo a um novo sacrifício, colocá-lo sob nova dependência, e induzi-lo a um novo tipo de prazer e, em conseqüência, à ruína econômica. Todos procuram estabelecer um poder estranho sobre os outros, para com isso encontrar a satisfação de suas próprias necessidades egoístas [...]. (MARX, 1983, p. 127).

Este estranhamento, no entanto, também reflete a força de representações que escamoteiam o poder e asseguram a “aceitação” do sacrifício. Uma “aceitação” do trabalho que Marx, em outro momento, observava:

O trabalhador só se sente consigo mesmo fora do trabalho, enquanto no trabalho se sente fora de si. Ele está em casa quando não trabalha, quando trabalha não está em casa. Seu trabalho, por isso, não é voluntário, mas constrangido, étrabalho forçado. Por isso, não é a satisfação de uma necessidade, mas apenas um meio de satisfazer necessidades exteriores a ele mesmo. A estranheza do trabalho revela sua forma pura no fato de que, desde que não exista nenhuma coerção física ou outra qualquer, foge-se dele como se fosse uma peste (GRUPO KRISIS, 1999, p. 29).

Representações que ligadas ao trabalho (centralidade do sacrifício103), constróem e reconstróem,

simultaneamente, o amor e o ódio, inseparáveis no capitalismo. Ambos constituem o que poderia ser definido como os dois lados de uma mesma moeda: a necessidade que os capitalistas têm, a partir do trabalho de outros em produzir, circular e consumir mercadorias para a obtenção do lucro e, por outro lado, a necessidade posta para os despossuídos dos meios de produção em trabalhar, “dignificando-se” e acreditando em sua possível transformação em dono, senhor e patrão.

Nesses termos, as mulheres e homens livres para o trabalho, não-escravos e não-servos da gleba, devem amá-lo até para suportarem, dia-a-dia, o peso da rotinização, da alienação e da remuneração aviltante e precária. Mas, o amor pelo trabalho esvai-se quando o corpo começa a sofrer o desgaste de jornadas prolongadas diante da ordem, das circulares internas, dos chefes carrancudos e do tempo que não passa. Já o ódio pelo trabalho é superado quando a preguiça, a indolência, a culpabilidade e o fracasso são atributos indispensáveis ao desempregado, ao sem-trabalho.

Negócio e ócio, trabalho e não-trabalho, trabalhador e preguiçoso, esforçado e indolente, empreendedor e “sem-visão”... Dicotomias de um mundo do trabalho que reflete a necessidade de um mundo-todo que precisa ser dicotomizado continuamente, como garantia de sua própria reprodução. A dicotomia trabalho/ócio é parte de um mundo dicotomizado. Em outras palavras, as mulheres e homens dicotomizados e dicotomizantes são condição para a legitimação de concepções e práticas que buscam a reprodução das relações capitalistas. A atribuição a uns — representações – de trabalhadores e a outros de inaptos para o trabalho, parece ser um dos elementos de suporte da alienação que reina sobre as mulheres e homens do Trabalho (na relação com o Capital). Condição primordial para um certo equilíbrio entre o amor e o ódio ao trabalho pelos trabalhadores.

103 A enfase na centralidade do trabalho se opõe, portanto, à perspectiva apontada por Claus Offe (1989), principalmente pela sua ressalta que o “trabalho foi deslocado de seu status dc fato vital central e óbvio” para os trabalhadores. Por Outro lado, mesmo com a reestruturação produtiva capitalista que se desenvolve desde os anos 1970, reduzindo drasticamente os postos de trabalho (o que levou o GRUPO KRISIS [1999] a ressaltar que o trabalho não mais passava de um “defunto’), ainda entendemos que o trabalho, em sua complexidadcs material e simbólica, continua exercendo uma centralidade expressiva nas relações humanas.

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Fica explícita, nas representações dicotômicas entre trabalhador e não-trabalhador (ou mais trabalhador e menos trabalhador, esforçado e indolente), a ênfase na diferença. São diferentes os que trabalham dos que não trabalham; são diferentes os que se esforçam no trabalho e os que “enrolam”, “matam” e sabotam o serviço! É em nome das diferenças que a superioridade e inferioridade entre ambos é reforçada. As representações, assim, agem como um componente fundamental na aceitação da própria condição de trabalhador, ao mesmo tempo que impossibilitam a percepção do jogo no qual o trabalhador está inserido.

Para tanto, a definição de representação dada por Pierre Bourdieu apud Galetti (1999, p. 2) é lapidar:

[ ...] as representações como atos de percepção e de apreciação, de conhecimento e de reconhecimento em que os agentes investem os seus interesses e os seus pressupostos, e, em cuja elaboração, está em jogo o monopólio de fazer ver e fazer crer, de dar a conhecer e de fazer reconhecer. Trata-se, portanto, de considerar que as representações podem contribuir para produzir aquilo por elas descrito ou designado quer dizer: a realidade objetiva.

No monopólio de “fazer ver e fazer crer, de dar a conhecer e de fazer reconhecer”, as

representações têm papel importante na instituição das relações, como já apontado por Marx e Engels (1984, p. 7): “Até aqui, os homens têm sempre criado representações falsas sobre si próprios, e daquilo que são ou devem ser. Segundo as suas representações de Deus, do homem normal, etc., têm instituído as suas relações”.

Representações do “homem normal”: a normalidade conferida às mulheres e homens que se enquadram nos perfis preconizados diante das necessidades capitalistas. A normalidade que têm o amor, a dedicação e o empenho pelo trabalho como pontos de destaque nos sujeitos que “aceitam” desempenhar o papel a eles conferido por Deus, como condição, também, de acesso à “vida eterna”.

O “homem normal”, portanto, é aquele que se insere no mundo do trabalho do Capital e “aceita” as condições ali colocadas. O “anormal”, inversamente, tem sua representação centrada na vadiagem, na preguiça e na indolência. Não raras vezes, entretanto, o “anormal” também difere do trabalhador por diferenças étnicas, regionais, culturais, econômicas e políticas. O branco trabalhador e o índio indolente, o imigrante trabalhador e o negro inapto para o trabalho assalariado, e o gaúcho empreendedor e o nordestino acomodado, exemplificam representações de normais e “anormais”.

Se as “idéias de uma época sempre foram as idéias da classe dominante”, sendo estas idéias, sob o capitalismo, “produto das relações burguesas de produção e propriedade” (MARX e ENGELS, 1998, p. 26 e 24), as representações (hegemônicas) de uma época também são as representações das elites. As representações de si e do mundo, dos outros e das relações que são estabelecidas, devem ser, sobretudo, compreendidas à luz das relações e atividades reais. Pois,

Os homens são os produtores das suas representaçoes. idéias etc., mas os homens reais, os homens que realizam, tais como se encontram condicionados por um determinado desenvolvimento das suas forças produtivas e do intercâmbio que a estas corresponde até às suas formações mais avançadas (MARX e ENGELS, 1984, p. 22).

Portanto, as representações fazem parte da real. No ato de perceber e de apreciar, de conhecer e

de reconhecer, os interesses, idéias, valores, concepções, práticas e representações, participam das relações materiais e simbólicas construídas e reconstruídas. 3. Ìndios e negros.

A terra brasilis, definindo no próprio nome o tom da colonização (de pau-brasil, produto

altamente comercializável na Europa pela extração de matéria corante empregada na tinturaria), passava a reproduzir uma das máximas de Pero Vaz de Caminha: “aqui, em se plantando, tudo dá”, podendo ser reposta em aqui, em se trabalhando, tudo se consegue. Para a extração do pau-brasil foi necessário o trabalho de alguém. O índio foi a escolha. Não porque era considerado um trabalhador, mas porque

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despojado de alma e o único a ser submetido, naqueles termos, ao trabalho pesado: “É graça aliás à presença relativamente numerosa de tribos nativas no litoral brasileiro que foi possível dar à indústria [do pau-brasil] um desenvolvimento apreciável” (PRADO JÚNIOR, 1998, p. 25).

Mesmo com a atuação fundamental do índio na extração do pau-brasil, a construção de sua imagem diante do europeu não retirou a pecha de diferente e inferior que, na centralidade do trabalho na terra brasilis, foi a vadiagem a sua primeira representação:

Aos olhos dos recém-chegados, aquela indiada louçã, de encher os olhos só pelo prazer de vê-los, aos homens e às mulheres, com seus corpos em flor, tinha um defeito capital: eram vadios, vivendo uma vida

inútil e sem prestança. Que é que produziam? Nada. Que é que amealhavam? Nada. Viviam suas fúteis vidas fartas, como se neste mundo só lhes coubesse viver (RIBEIRO, 1995, p. 45, grifos nossos).

Cabe ressaltar que a questão não se ateve apenas ao trabalho (e até pelo contrário), mas às concepções, práticas e modos de vida dos europeus e dos índios. É aqui que parece haver a necessidade de construção da representação da diferença como pressuposto fundamental na relação entre “superiores” e “inferiores”104 A representação e atribuição de vadios aos índios estava associada ao seu “estágio” de “desenvolvimento civilizatório” (hoje “tecnológico”!) e não à possível negação do trabalho na extração do pau-brasil ou mesmo em outras atividades. O sentido do trabalho, para os europeus, estava centrado na possibilidade empreendedora dos povos. Em outras palavras, a “vadiagem” dos índios relacionava-se a sua “incapacidade” de progresso e evolução, nos termos europeus.

Mas, também, outro aspecto deve ser considerado, o da universalidade das idéias, representações, concepções e práticas, acarretando a inibição do diferente. Este aspecto está centrado na constante “necessidade” de afirmação de povos sobre outros. Para os europeus, e aqui em especial para os portugueses, a universalidade apresentava um componente importante que era o catolicismo (do grego katholikós, universal). A universalidade entendida e pretendida como verdadeira foi a do conquistador. Por isso, o fato do índio ser o principal trabalhador na extração do pau-brasil não o retirava de sua condição de diferente, neste caso de vadio, justamente porque o centro das concepções e práticas indígenas diferia substancialmente do centro das concepções e práticas do português.

É importante lembrar que o período de expansão ultramarina européia e a expansão comercial, estão associadas ao início da construção do que se afirmaria, mais tarde, como modernidade, com anseio à universalidade. Como apontou Nascimento (2000, p. 62-63), a

[...] sociedade moderna é concebida como uma sociedade aberta, de grande mobilidade social, em que os indivíduos se constituem como personagens centrais. Movida pela racionalidade, tendo a ciência como a forma de saber central, seu sistema econômico é naturalmente vocacionado àuniversalidade, expulsando a idéia de exterioridade.

Assim, projetando-se à universalidade e “expulsando a idéia de exterioridade”, os europeus

tinham nas suas concepções e práticas, e nas representações, a exclusividade do “fazer ver e do fazer pensar, de dar a conhecer e de fazer reconhecer”. As representações, no entanto, também são constantemente ressignificadas e repostas: se a “vadiagem” atribuída ao índio fora uma constante mesmo durante as atividades de exploração do pau-brasil, essa representação foi intensificada quando o trabalho indígena perde a centralidade no próprio centro dinâmico da economia colonial. Do pau-brasil à produção da cana-de-açúcar, a base da força de trabalho sofreu mudanças com a substituição progressiva da mão-de-obra indígena pela mão-de-obra escrava africana.

A representação do índio inapto para ao trabalho se acentuou justamente quando outro interesse se colocou em cena: o tráfico e a comercialização do negro. Mas e o negro, era apto ao trabalho? Possuía o negro uma pré-disposição maior que o índio para o trabalho nos canaviais, nos engenhos? É certo que as concepções e práticas de índios e negros eram diferentes... Mas deve-se considerar que os negros aprisionados para a escravidão se assemelhavam em muito aos índios; e o argumento de que muitas das tribos africanas já desenvolviam a escravidão é simplista para explicar a preferência pelos africanos. O

104 Citando Meneses, Eduardo Yázigi (200], p. 48), aponta que “o semelhante é inofensivo, inócuo. E o diferente que encerra risco, perturba. Assim, a diferença está na base de todas as classificações, discriminações, hierarquizações sociais. Em outras palavras, não se precisam as diferenças apenas para fins de conhecimento, mas para fundamentar defesas e privilégios”.

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argumento principal é de natureza econômica: a dificuldade crescente de aprisionamento de índios e a formidável lucratividade do tráfico do negro passou a ser o definidor para a opção desse novo sujeito para o trabalho. Ou seja, como ressalta Novais (1993), a escravidão colonial, do negro, deve ser entendida a partir do tráfico negreiro, como engrenagem ao sistema mercantilista de colonização por se colocar como um importante setor do comércio colonial.

Segundo Kowarick (1987), como prática altamente lucrativa o tráfico negreiro era um poderoso fator de acumulação primitiva. Portanto,

[...] como modalidade de exploração do trabalho engrenada plena e unicamente ao processo de acumulação primitiva, o trabalho cativo toma-se elemento de fundamental importância na trajetória que leva ao avanço do capitalismo europeu (KOWARICK, 1987, p. 23).

A substituição do trabalho do índio pelo trabalho negro, calcada também sobre as representações depreciativas sobre o primeiro, teve seu embasamento prático fincado sobre interesses econômicos advindos do próprio tráfico inter-continental de escravos. Portanto, a

[...] adoção do trabalho escravo se deveu, nesse contexto, ànecessidade de maximizar os lucros através, por um lado, da superexploração de uma forma de trabalho compulsório limite — pois eram apropriados o trabalho e o trabalhador – e, por outro, às grandes vantagens comerciais que advinham do tráfico (SOUZA, 1990, p. 61).

É nesses termos que se deve considerar a presença do escravo negro no Brasil, e como ele

participou da construção ou não das representações das diferenças que acabaram realçando a questão do trabalhador e do “vadio”.

Diferentemente do índio, o negro era traficado e chegava ao Brasil “despossuído” de sua humanidade. O negro não era nem trabalhador nem vadio: era escravo. Ao escravo não era possibilitado o “entrar e sair” do mundo do conquistado; ele nascia escravo e se formava dentro desse mundo ao ser embarcado nos navios do tráfico na costa africana. Portanto, a lentidão, o boicote e a sabotagem no trabalho derivavam de sua condição de cativo que estava em oposição à liberdade, e não a concepções e práticas que necessariamente destoassem das dos conquistadores. Isso não quer dizer que suas concepções e práticas eram as mesmas dos europeus; muito pelo contrário. E que seu mundo é “destroçado” pela sua condição de “coisa”, de mercadoria. A representação de “coisa”, como construção dos traficantes e dos senhores no engenho, não lhe possibilitava transitar entre dois mundos, como os índios. Escravo e longe de sua terra de origem, o negro refletia no banzo105 o “roubo” de sua alma.

Pelo menos até a substituição do escravo pelo “trabalhador livre”, pelo imigrante, na segunda metade do século XIX, representar e designar o negro como “preguiçoso”, “indolente” e “vadio”, fazia pouco sentido. Porque o negro era obrigado ao trabalho, diferente dos trabalhadores “livres” europeus que trabalhavam induzidos pela necessidade e ideologia do trabalho. E se, mesmo assim, os senhores e os feitores tinham no negro, além de escravo, também um vagabundo, porque resistia ao trabalho, isso deve ser compreendido à luz das relações escravistas: a compulsoriedade do trabalho, de um lado, e as práticas de resistência, de outro. Segundo Nascimento (2001, p. 43-44)

[...] o negro era vagabundo para o senhor de escravos se não produzisse o quanto este desejava, sendo que no odioso regime de escravidão, principalmente no eito, uma das formas de resistência era, obviamente, procurar se trabalhar o menos possível, ou mesmo não trabalhar, quando a vigilância e a repressão arrefecessem por quaisquer motivos.

A representação do “negro indolente” e pouco afeito ao trabalho começou a figurar no Brasil (ou

no mínimo a se intensificar) quando o próprio sistema escravista entrou .em crise (que se estendeu até o último quartel do século XIX), quando o tripé monocultura, latifúndio e escravidão entrou em colapso106. Segundo Martins (1990, p. 28), 105 “Banzo, saudade de negro, saudade de tudo aquilo que desejava ver e não via, da terra natal, da mãe Africa. O negro escravo definhava, com a alma apertada na goela, querendo evadir-se à procura das longínquas vivências costumeiras. De banzo, morria” (SILVEIRA. 1998, p. 35). 106 A “crise do antigo sistema colonial”, segundo Fernando A. Novais (1993).

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A dupla função da escravatura, como fonte de trabalho e como fonte de capital para o fazendeiro, suscitava, na conjuntura de expansão do crédito e dos cafezais, o problema de como resolver a contradição que nela se encerrava. Objetivamente falando, a solução inevitável seria a abolição da escravatura. Com a demanda crescente de trabalho escravo e conseqüente elevação do preço do cativo, os fazendeiros teriam que imobilizar parcelas crescentes de seus rendimentos monetários sob a forma de renda capitalizada, pagando aos traficantes de negros um tributo que crescia desproporcionalmente mais do que a produtividade do trabalho.

Era preciso, assim, substituir o escravo por outra força de trabalho em que era desnecessária a

antecipação de capital107. Para tanto foi preciso, também, a construção de representações que justificassem a substituição

do trabalho escravo pelo trabalho livre assalariado. Concomitantemente à necessidade de formação de um conjunto de trabalhadores “livres” que possibilitasse a “libertação” do escravo, representações dos negros eram construídas ou reforçadas, participando como componente ideológico indispensável às mudanças nas relações de trabalho. A condição de escravo e “coisa”, neste momento, passou a pesar fortemente como argumento para a construção das representações que o fizeram “livre”, mas também dispensável.

A condição de escravo retirava do negro uma possível condição de trabalhador, na representação de trabalho como enobrecimento dos sujeitos nele envolvidos. De sujeito indispensável para o trabalho durante mais de três séculos, o negro escravo passou a ser representado justamente por práticas que assumiu nesse longo tempo enquanto resistência à compulsoriedade do trabalho: o negro é lento no trabalho, indolente, sabotador e mais afeito à festa. Desprovido de hábitos de disciplina ao trabalho, pouco afeito ao mando e à ordem (já que a desobediência e as fugas eram constantes), o negro escravo passa a ser representado como atrasado e inapto para o trabalho livre.

Segundo Naxara (1998, p. 50),

[...] a superação da escravidão implicava a substituição completa do trabalhador, O escravo, da forma como era visto e na situação em que se encontrava, não correspondia ao ideal do trabalhador livre e não tinha condições para preencher o espaço que viria a se abrir com a abolição — faltavam-lhe requisitos básicos: mentalidade e preparo para o exercício do trabalho livre e da cidadania.

É importante registrar, no entanto, que as representações sobre o negro também deconeram da

resistência frente à escravidão, como as revoltas, os assassinatos de senhores e o abandono da produção. Esse último aspecto demonstra que a abolição da escravidão no Brasil, se obedeceu a imperativos econômicos endógenos e exógenos, também foi resultado da luta de negros e abolicionistas.

A pretensa recusa ao trabalho, ou melhor, a um tipo específico de trabalho por parte do negro, ex-escravo, de subordinação a um senhor, a um patrão, foi e é um dos elementos ainda presentes na representação sobre o negro na atualidade. O maior envolvimento do negro pela festa (“Bahia é o estado mais festeiro do Brasil!”), samba, música, dança e futebol, é constantemente ressaltado para exprimir a menor propensão do negro ao trabalho. São ressignificadas, portanto, representações que envolvem os negros, geralmente trabalhadores e pobres, nas tramas de poder político, econômico e ideológico que justificam a “superioridade” e a “inferioridade”, o “trabalho” e a “indolência 4. “Desclassificados sociais”, nacionais e “excluídos desnecessários”.

As mulheres e homens do período colonial e imperial brasileiro não eram apenas escravos, índios, senhores de engenho, funcionários púbicos e comerciantes. Havia uma camada bastante numerosa de pobres, mendigos, “vagabundos”, prisioneiros... Eram os “desclassificados sociais” que tinham como principal demérito a “apatia” pelo trabalho. Se a representação sobre os índios referentes à vadiagem foi um componente importante (não fundamental) para a sua substituição pelo escravo africano, aos

107 As percepções do Brasil e da escravidão, construídas próximas à 1888, denunciavam o “peso” dos negros para o país: “obedecendo-se a uma impressão global, verifica-se que a gente preta é um pêso para o Brasil, formando a escravidão uma verdadeira chagam ainda pior para os senhores do que para os próprios escravos; e isso mais se nota atualmente [1882], nas vésperas de ser extinta” (BINZER, 1982: 121).

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“desclassificados sociais” a representação de vadios teve como função o contraponto aos “homens bons”, livres e proprietários. O fato de não estarem subordinados à compulsoriedade do trabalho, não habilitava os “desclassificados sociais” à igualdade frente aos senhores de escravos, comerciantes e governantes. Portanto, dentre as gentes do período escravocrata, os “desclassificados sociais”108 também desempenharam o papel de “inferiores”, como garantia e segurança da “superioridade” dos “homens bons”, trabalhadores, sobre a indolência e a preguiça.

A vadiagem é uma instituição que remonta à Idade Média109. Durante séculos o pobre foi o “pobre de Cristo”, “o coitadinho que merecia ajuda e com o qual a população das vilas convivia sem escândalo” (SOUZA, 1990, p. 51). Por outro lado, o trabalho era concebido como sofrimento e dor ao mesmo tempo que depurava os pecados para que se alcançasse o paraíso: “O desprezo que o cristianismo tem pelo corpo, pela carne, locus do prazer e da sensualidade, é que leva à idéia de que ‘o trabalho dignifica o homem’. O corpo está sempre à mercê da sedução demoníaca por isso é preciso mortificá-lo” (GONÇALVES, 1998, p. 109).

Entretanto, com as grandes transformações no final do período medieval (convulsões, urbanização, comércio), as representações sobre a pobreza e a vadiagem tomaram novos contornos, sendo necessário combatê-las. O trabalho passava a ser alardeado como o salvador das “pessoas boas” contra o perigo dos “homens maus”: “o trabalho obrigatório para todo homem pobre válido, integrante não mais da legião dos “coitadinhos de Cristo”, mas da “classe perigosa” que começava a assombrar as cidades e os burgos no outono da Idade Média” (SOUZA, 1990, p. 54).

A burguesia, além da transformação das relações materiais, necessitava da construção de um novo conjunto de idéias. A concepção de trabalho, nessa construção, foi um dos pilares da ideologia burguesa. A crítica ao ócio aristocrático toma grande vulto a partir dos séculos XV eXVI:

À burguesia mercantil não interessava o ócio. Ao contrário, é da negação do ócio, do negócio, que ela vive: a preocupação de ampliar seus negócios impele a burguesia a se interessar pelo conhecimento das técnicas que tornem possível aumentar a gama de produtos que comercializa no mercado. A preocupação com a produtividade, sinônimo de eficácia do trabalho no universo burguês, expresso pelo mais (e não pelo melhor) que se produz numa determinada unidade de tempo, vai ser consagrada, sobretudo com a Revolução industrial dos séculos XVIII e XIX (GONÇALVES, l998,p. 110).

Com isso, o trabalho passou a se tornar um conceito positivo. Por outro lado, no Brasil,

Partindo-se da análise da estrutura econômica da colônia, pode-se constatar que havia condições favoráveis à proliferação de desclassificados: nas suas linhas gerais, tratava-se de uma colônia de exploração voltada para a produção de gêneros tropicais cuja comercialização favorecesse ao máximo a acumulação de capital nos centros hegemônicos europeus. Uma economia de bases tão frágeis, tão precárias, centrada na grande propriedade agrícola e na exploração em larga escala, estava fadada a arrastar consigo um grande número de indivíduos, constantemente afetados pelas flutuações e incertezas do mercado internacional. Ao mesmo tempo, impedia que os desprovidos de cabedal tivessem acesso às fontes geradoras de riqueza” (SOUZA, l99O,p. 61-62).

Os “desclassificados sociais”, portanto, faziam parte da própria estrutura do antigo sistema

colonial. Diferente de parte das Treze Colônias inglesas, em especial as do nordeste norte-americano, o Brasil, enquanto colônia de exploração, impossibilitava (e até proibia) o desenvolvimento de outras atividades desconectadas dos interesses dos senhores, dos comerciantes e da Coroa Portuguesa.

No entanto, ficaram as mulheres e homens não participantes da economia central colonial à revelia dos interesses das elites:

108 Segundo Caio Prado Jtínior, “A população livre, mas pobre, não encontrava lugar algum naquele sistema que se reduzia ao binômio “senhor e escravo”. Quem não fosse escravo e não pudesse ser senhor, era um elemento desajustado, que não se podia entrosar normalmente no organismo econômico e social do país” (PRADO JR., 1998, p. 198). 109 “Aliás, a detenção do vadio — uma instituição que vinha da Idade Média — projetou-se no Brasil até a Constituição de 1988, quando foi derrubada a contravenção definida como “vadiagem”, que dava à polícia o direito de detenção de qualquer pessoa por ao menos 24 horas” (LESSA, 2000, p. 13).

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A camada dos desclassificados ocupou todo o”vacuo imenso” que se abriu entre os extremos da escala social, categorias “nitidamente definidas e entrosadas na obra da colonização”. Ao contrário dos senhores e dos escravos, essa camada não possuía estrutura social configurada, caracterizando-se pela fluidez, pela instabilidade, pelo trabalho esporádico, incerto e aleatório. Ocupou as funções que o escravo não podia desempenhar, ou por ser antieconômico desviar mão-de-obra da produção, ou por colocar em risco a condição servil: funções de supervisão (o feitor), de defesa e policiamento (capitão-do-mato, milícias e ordenanças), e funções complementares à produção (desmatamento, preparo do solo para o plantio) (SOUZA, 1990, p. 63).

Também de acordo com Kowarick (1987), antes da abolição da escravidão, os “nacionais”

[trabalhadores pobres e livres] estiveram presentes onde o cativo, pelos riscos de fuga ou perigos inerentes a certas atividades, era pouco utilizado, tais como transportes, abertura e conservação de estradas, obras públicas. Faziam também o desmatamento e cumpriam a tarefa de desbravamento do vasto território. Os “nacionais” também trabalharam na implantação de ferrovias, em atividades de subsistência, em guerras e sublevações, como executores da violência na conquista e manutenção das propriedades e repressão aos escravos. Era, portanto, “mão-de-obra acessória” (KOWARICK, 1987, p.lO9-llO).

É nos “desclassificados sociais” que a representação da vadiagem no período colonial assumiu sua centralidade. Não-escravos, pobres: vadios. Entretanto, “vadios” que foram continuamente dirigidos para “atividades esporádicas” nas quais a utilização do escravo era inviável. Atividades secundárias, mesmo que importantes, mas que, mesmo assim, impediram o reconhecimento dos sujeitos participantes como trabalhadores, justamente por não estarem diretamente ligadas à produção do mais-trabalho capaz de ser expropriado, também diretamente, pelas elites econômicas.

Fora da centralidade das atividades altamente lucrativas restava o lugar dos “desclassificados sociais”, os trabalhadores-”vadios” de atividades secundárias. Foram eles aproveitados nas bandeiras e entradas que entravam pelo mato (sertão, interior), na construção e manutenção dos presídios, no trabalho em obras públicas, nos corpos de guarda pessoal e de polícia privada, nas expedições para a expansão territorial e frentes de povoamento e nas milícias coloniais (SOUZA, 1990). Uma mão-de-obra alternativa à escrava, uma espécie de exército de reserva da escravidão:

Era assim que a vadiagem, a desclassificação social, se atrelava a um novo contexto, no qual a utilidade ganhava destaque mas convivia também com o ônus”. [...] O ônus eventualmente representado pelos desclassificados convertia-se, através do castigo

110, em trabalho, e portanto, em utilidade (SOUZA, 1990, p.

73 e 74).

Com a independência política do Brasil em 1822, a estrutura econômica-social permaneceu praticamente inalterada. O latifúndio, a monocultura e a escravidão persistiram, alinhados, até o fim do século XIX. O latifúndio se manteve e, a partir do final do século XVIII e início do século XIX, o café começava a despontar como um produto importante e com grande aceitação, principalmente para os mercados europeus. Internamente o eixo econômico também se transferia territorialmente: das decadentes regiões nordeste – açucareiro — e mineira, as minas gerais — mineração – para o Vale do Paraíba, Rio de Janeiro e São Paulo, onde se proliferavam as plantações de café. O desenvolvimento da atividade cafeeira foi parte, de acordo com Prado Júnior (1998), do renascimento agrícola iniciado em fins do século XVIII, e que tomaria vulto considerável no século seguinte. A mão-de-obra utilizada, até 1888, continuou sendo a do escravo negro, priorizando, semelhante ao nordeste, apenas uma cultura.

Persistiram, assim, as relações entre senhores e escravos, entre traficantes e negros, entre fazendeiros e comerciantes... E persistiram existindo os “desclassificados sociais”111. Agora brasileiros:

110 A multiplicação dos pobres e livres no interior da cidade escravagista engendrou um sistema ampliado de controle social. A polícia foi conferido o direito de controlar a vadiagem, ou seja, foi-lhe concedida autoridade para vigiar a livre circulação na cidade — uso imenso do poder sobre o pobre urbano. Quem não tivesse residência e meio de subsistência comprovados podia, ao arbítrio da autoridade policial, ser colocado em trabalhos forçados por exemplo, em obras públicas. Os melhoramentos urbanos no Rio do século XIX e as primeiras estradas cafeeiras (da Polícia e do Comércio) foram construídas com “vadios” arregimentados à força” (LESSA, 2000, p. 12-13). 111 Às vésperas da independência, no final do século XVIII, “a população residente no Brasil atingia quase 3 milhões de habitantes, dos quais quase a metade era formada por livres e libertos: indivíduos de várias origens sociais, cujo traço comum residia na sua desclassificação em relação às necessidades da grande propriedade agroexportadora” (KOWARICK, 1987, p. 28).

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os nacionais112

. Não há dúvidas que a maior parte deles, senão todos, assistiram “bestializados”113 a proclamação da independência. Independência que provocou, desde o seu início, a problematização da continuação ou não do regime escravocrata, motivada tanto por questões externas (pressão inglesa, Revolução Industrial) e questões internas (preço do escravo, fugas, rebeliões, movimento abolicionista). Um problema que se avolumou e se colocou claramente para os fazendeiros e para o Estado com o ato inglês “Bill Aberdeen”, que declarou lícito o apresamento de qualquer embarcação empregada no tráfico africano, e a Lei Eusébio de Queirós de 1850 aprovada pelo Parlamento brasileiro, que declarava ilegal o tráfico negreiro.

Colocou-se para os fazendeiros de café e para o Estado brasileiro, de maneira mais incisiva na segunda metade do século XIX, a questão da substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre; em outras palavras, do trabalhador compulsório para o trabalhador livre assalariado. As motivações que levaram à substituição foram apontadas no tópico anterior, mas vale ressaltar que o alto custo do escravo, principalmente com a necessária antecipação de capital para a sua compra, juntamente com o movimento abolicionista e a pressão internacional, foram condicionantes importantes.

Mas sem escravos, era preciso encontrar uma solução que assegurasse a disponibilidade de mão-de-obra. Seriam, agora, os nacionais? Não:

Marginalizados desde os tempos coloniais, os livres e libertos tendem a não passar pela “escola do trabalho”, sendo freqüentemente transformados em itinerantes que vagueiam pelos campos e cidades, vistos pelos senhores como a encarnação de uma corja inútil que prefere a vagabundagem, o vício ou o crime à disciplina do trabalho”, ao mesmo tempo que, para os nacionais pobres, todo trabalho manual era considerado coisa de escravo, em deconência, aviltante e repugnante. (KOWARICK, 1987, p. 47-48).

Não poderiam ser eles, portanto, os “escolhidos” para comporem o elemento humano no qual estava se construindo a idéia de nação: o povo brasileiro.

Era necessário um novo sujeito para fazer progredir o Brasil; era preciso investir no

branqueamento do povo brasileiro; era, para isso, imprescindível o trabalho de alguém de fora. O imigrante foi o escolhido uma vez que para o desenvolvimento do “progresso” impulsionado pelo imaginário existente, esses trabalhadores viriam disciplinados:

o trabalhador ideal — aquele que reunia em si, enquanto agente coletivo, de forma acabada, todas as qualidades do bom trabalhador — sóbrio e morigerado. Elemento capaz de, por si só, promover a recuperação da decadente raça brasileira nos mais diversos aspectos: sangue novo, raça superior (branca), civilizado, disciplinado, trabalhador, poupador, ambicioso... No extremo oposto desse imaginário, como contrapartida, estava o brasileiro — vadio, indisciplinado, mestiço, racialmente inferior. Foi, portanto, da depreciação do brasileiro como tipo social que emergiu a valorização do imigrante (NAXARA, 1998, p. 63).

Parte dos imigrantes foram deslocados para a formação de colônias agrícolas no sul do país,

principalmente alemães e italianos. Parte dos imigrantes ingressaram em atividades industriais e urbanas. Mas, a maior parte deles foi dirigida para as grandes fazendas de café do sudeste, com destaque para São Paulo. No entanto, cabe ressaltar que as relações de produção e de trabalho nas fazendas de café que se desenvolveram com a introdução da mão-de-obra imigrante não foram tipicamente capitalistas. O “regime de colonato” envolvia uma complexa gama de relações entre a família do imigrante e o fazendeiro de café, desde o endividamento progressivo junto ao armazém da fazenda até o desenvolvimento de atividades complementares pelo imigrante e sua família, como a produção de alimentos para a subsistência (MARTINS, 1990). Não deixaram de ocorrer, no entanto, conflitos de interesses entre fazendeiros e imigrantes.

Esses conflitos, por sua vez, foram importantes para a reconstrução, pelo menos parcial, das representações sobre os imigrantes:

112 “Nos documentos do século XIX e início do XX usou-se o termo nacional quando se pretendeu falar da população pobre, (mal)nascida no Brasil, em geral mestiça, pertencente ou egressa da escravidão” (NAXARA, 1998, p. 15). 113 Um paralelo a “Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi”, em que José Murilo de Carvalho (1987) discutiu a relação entre o povo de Rio de Janeiro e a proclamação da República, em 1898.

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A construção mítica e romantizada do imigrante como trabalhador ideal quebrou-se sob o impacto das relações efetivas de trabalho e do choque e distância existentes entre os desejos e interesses de imigrantes e fazendeiros. Foi utilizada de forma ambígua, dependendo do ponto de vista que interessava defender (NAXARA, 1998, p. 67).

Por outro lado, ocorreu a necessidade da “produção ideológica da noção de trabalho” para o

imigrante; segundo José de Souza Martins:

A autonomia do trabalhador, preconizada no que tenho chamado de ideologia do trabalho, embora fosse ideologicamente mobilizada pelos setores mais conspÍcuos da burguesia cafeeira, era sabotada na prática. (...) A idéia é a de que os imigrantes deveriam cultivar as principais virtudes consagradas da ética capitalista (MARTINS, 1990, p. 129-130).

Mesmo com a primazia dos imigrantes frente aos nacionais, depois da abolição da escravidão os últimos tiveram papel importante enquanto mão-de-obra. Segundo Kowarick (1987), os nacionais foram mais absorvidos pelas áreas de economia estagnada, em tarefas mais árduas e de menor remuneração como o desbravamento e preparo da terra. Assim, foram incorporados às tarefas produtivas onde não acorreram imigrantes: lá trabalhou e, como por encanto, de um momento para outro, deixou de ser “vadio”. Também em atividades acessórias e residuais na indústria o trabalhador nacional teve importante participação114. Portanto, mesmo “vadio”, trabalhou!

Assim, tanto foram produzidas representações sobre os nacionais (os vadios) quanto para os imigrantes (os trabalhadores). Mas, já no início do século XX tais representações começaram a sofrer significativas mudanças. Três condicionantes podem ser apontadas para compreendê-las: (1) a primeira guerra mundial que passou a dificultar a entrada de estrangeiros no Brasil; (2) os conflitos tanto nas fazendas de café como na indústria nascente entre empregados e patrões, motivados principalmente por imigrantes que traziam da Europa concepções político-ideológicas anarquistas e socialistas; e (3), a necessidade crescente para a indústria tanto de mão-de-obra quanto da formação de um ‘‘exército industrial de reserva”.

De acordo com Kowarick (987), quando começa a cair o número de imigrantes principalmente em decorrência da primeira guerra mundial (1914-1918), a propalada vadiagem do nacional passou a se mostrar inconseqüente. Nesse momento, houve empenho do discurso dominante para recuperar o ‘‘braço nacional’’ (o nordestino atingido pelas secas, por exemplo), com apelo ao espírito de “comunhão brasileira” acima dos regionalismos antinacionais. Assim,

‘estava sendo minada a secular percepção segundo a qual os nacionais eram vadios, corja inútil imprestável para o trabalho disciplinado’, pois, ‘tradicionalmente estigmatizado de apático, preguiçoso ou vagabundo, o braço pátrio poderia e deveria ser regenerado, pois sua indolência era conseqüência do abandono a que fora relegado’, dando mostra de sua bravura na Amazônia como o ‘sertanejo do Norte’ (KOWARICK, 1987, p. 120-124).

Por outro lado, características positivas sobre os nacionais começam a ser produzidas,

principalmente em contraposição às práticas e concepções do movimento operário nascente no Brasil:

Sua desambição [do nacional] passa a ser encarada com parcimônia de alguém que se contenta com pouco, não busca lucro fácil, e, sobretudo, não reivindica; a inconstância traduz-se enquanto versatilidade e aptidão para aprender novas tarefas, e o espírito de indisciplina metamorfoseia-se em brio e dignidade (KOWARICK, 1987, p. 124).

A indolência, por sua vez, não é mais atribuída à preguiça ou àvadiagem, mas à falta de

oportunidades de trabalho.

114 No Rio de Janeiro a participação de trabalhadores nacionais na indtistria foi bem mais expressiva que em São Paulo. Talvez isso tenha contribuído para a produção, no imaginário social brasileiro, das representações do carioca mais afeito à malandragem, ao samba, ao bar e à festa.

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Mas, nem todos os nacionais foram “aproveitados” como mão-de-obra para a indústria ou outras atividades urbanas. Nem todos os paulistas e cariocas, por exemplo, mudaram suas representações sobre as mulheres e homens nordestinos, “nortistas”, mestiços, mulatos, caboclos e caipiras. Nem todas as representações preconceituosas sobre os trabalhadores pobres foram rompidas, como ignorantes e preguiçosos. No entanto, tiveram, durante todo o século XX, participação importante na expansão da produção agropecuária ou não, nas sucessivas frentes de expansão para o oeste paulista, norte e oeste paranaenses, para o Mato Grosso e para a Região Norte do Brasil. Tiveram papel importante na indústria da construção civil das grandes cidades ou no corte de cana de açúcar nas regiões produtoras, como Ribeirão Preto (SP), por exemplo.

Com os apontamentos até aqui levantados sobre os índios, negros, “desclassificados sociais” e sobre os nacionais, , tentamos demonstrar a construção e reconstrução de representações de “não-trabalhadores”, tidos como vadios, e, por extensão, imbuídos de um espírito e prática da preguiça, da “vida mansa”, da “folga” e da falta de arrojo e iniciativa. Por outro lado, entretanto, esses mesmos “vadios” foram participantes importantes na produção das riquezas coloniais (até 1822) e nacionais, sem perder, no entanto, a representação de indolentes e inferiores frente aos “desafios” que a lógica central do trabalho (capitalista) apresentava.

Tais representações continuaram presentes em todo o século XX. Da representação do imigrante europeu e asiático como superiores sobre o negro, índios e nacionias, à representação da superioridade dos “profissionais qualificados” sobre a “incompetência” dos milhões de brasileiros desempregados do mercado formal de trabalho, tais representações espraiaram-se vertiginosamente sobre os lugares e mulheres e homens do Brasil. Representações que, em escalas diversas, construíram preconceitos e imagens que colaboram, ainda, na valoração de certos grupos e classes sobre outros.

Paulistas e cariocas, gaúchos e nordestinos, brancos e negros, brancos e índios, brasileiros e paraguaios, brasileiros e hispânicos115, sulistas e nortistas, empregados e desempregados, médicos e catadores de papelão, “trabalhadores limpos” e trabalhadores braçais, competentes e incompetentes, qualificados e não-qualificados... Oposições que são sustentáculos de representações sobre as mulheres e homens trabalhadores e sobre as mulheres e homens “pouco afeitos” ao trabalho, e que, pelas condições de sobrevivência nas quais se inserem, foram incapazes, por herança genética, cultural ou regional, ou por determinismos climáticos como o calor dos trópicos116, de subirem e vencerem na vida.

Mas sobrevivem. Muito mais que mendigar e roubar, os “desclassificados sociais” de hoje inserem-se em atividades às mais variadas possíveis. Desde a prostituta pobre (e para os pobres) ao biscateiro, as mulheres e homens “sem qualificação” e destituídos de postos no mercado de trabalho formal participam no desenvolvimento de inúmeras às atividades. De “vadios”, “incompetentes” e “desqualificados”, buscam sem a possibilidade de escolha, nas atividades mais degradantes possíveis, alcançarem o status de trabalhador tão importante numa sociedade que despreza e rechaça a preguiça117.

Já para os mendigos, as representações atuais construídas os retiram da própria condição de mulheres e homens, criando a “dessemelhança entre os seres humanos” (BUARQUE, 2000, p. 8). Os mendigos nas ruas “Não são homens ou mulheres efetivamente, pois não são assim representados pelos que vão às compras ou ao trabalho” (NASCIMENTO, 2000, p. 56). Destituídos da condição de humanos, os moradores das ruas formam uma “nova”camada (social?!) que os distancia não apenas do mercado

115 Teresa Sales, discutindo a identidade étnica entre imigrantes brasileiros na região de Boston, nos Estados Unidos, observou que “Ao afirmar sua marca identitária como povo trabalhador, o imigrante brasileiro de certo modo reproduz lá fora o que, um século atrás, era aqui no Brasil imputado como marca também do imigrante estrangeiro (o italiano, o japonês, etc.), em contraposição ao brasileiro nativo, aqui tido então por aqueles imigrantes estrangeiros como um povo preguiçoso. Nos Estados Unidos o brasileiro também arranjou o seu alter ego

preguiçoso. Não o americano, com o qual sua alteridade se estabelece em uma posição subordinada no trabalho e que contribui para reforçar sua marca de povo trabalhador. Mas o Hispânico.” (...)“Em alguns poucos casos esse estereótipo de não trabalhar e viver do Welfare é também imputado aos negros americanos’ (SALES, 1999, p. 41). 116 Segundo a percepção de lna Von Binzer, cm 1882, “O norte-americano respeita o trabalho e o trabalhador (...) O brasileiro, menos perspicaz e também mais orgulhoso, embora menos culto, despreza o trabalho e o trabalhador. (...) diz Smarda as mesmas coisas que acabo de afirmar: ‘Nos trópicos ninguém trabalha com prazer “ (BINZER, 1982, p. 122). 117 “‘ Em “O direito à preguiça”, Paul Lafargue enfatizou: “o proletariado, a grande classe que abrange todos os produtores das nações civilizadas, a classe que, ao se emancipar, emancipará a humanidade do trabalho servil e fará do animal humano um ser livre o proletariado, traindo seus instintos, desconhecendo sua missão histórica, deixou-se perverter pelo dogma do trabalho. Duro e terrível foi seu castigo. Todas as misérias individuais e sociais nasceram de sua paixão pelo trabalho” (LAFARGUE, 2000, p. 67).

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formal de trabalho e em decorrência de direitos assegurados pela legislação trabalhista e previdência social, como também da linha limite entre a “civilização” e a “barbárie”118.

A distância social, econômica, política e cultural, é um elemento importante para a reprodução da segregação espacial. “Tender a segregar é um processo em andamento, alimentado pela estigmatização do ‘estar na rua’ e por uma neo-satanização da pobreza em geral e da população de rua em especial” (LESSA, 2000, p. 17). O estigma119 sobre o outro, o diferente, constitui-se numa construção de repulsa a características representadas como anormais pela maioria da sociedade. Na sociedade do trabalho, qualquer atitude desviante sofre a construção de representações que dificultam a sua vivência e aceitação no meio social. Assim, o indivíduo excluído não é simplesmente quem é rejeitado física, geográfica ou materialmente, ele não apenas é excluído da troca material e simbólica, como também (e principalmente) ocupa um espaço negativo na representação social dominante” (TOSTA, 2000, p. 204).

Parte da mais recente reestruturação produtiva do modo de produção capitalista, da ideologia do mercado pleno, do Estado Mínimo e nas políticas neoliberais, os “excluídos” também são representados como inúteis e perigosos. Portanto, para a compreensão do fenômeno da nova exclusão social é necessário, hoje, introduzir a dimensão da representação social: “Os grupos sociais sujeitos à exclusão social sofrem uma mutação na forma como a sociedade os representa. Deslocam-se de uma representação da diferença, de diversidade, para uma de dessemelhança” (NASCIMENTO, 2000, p. 68).

A representação de “dessemelhança” é decorrente, sobretudo, da reestruturação produtiva capitalista que ao gerar uma drástica diminuição de postos de trabalho (informatização, robotização, flexibilização do trabalho, etc.), também criou um abismo praticamente intransponível entre os tecnologicamente desqualificados e os reduzidos postos de trabalho que são abertos. Decorre disso que, se os excluídos do mercado formal de trabalho de décadas passadas tinham oportunidades, por mínimas que fossem, de conseguir um emprego, atualmente essas oportunidades são muito reduzidas (até porque a distância entre um analfabeto e o posto de trabalho de maior exigência de qualificação era extremamente menor que atualmente). Não é por acaso, portanto, que os excluídos de hoje “possam” ser, cotidianamente, eliminados por grupos de extermínio, por grupos neo-nazistas ou mesmo pelos filhos da classe média-alta, que incendeiam “corpos” deitados nos pontos de ônibus porque “apenas pensavam que eram mendigos”120.

Assim, se pobreza e segregação são elementos constantes na história, como colocou Marcel Bursztyn,

sempre houve um certo elo orgânico entre os mundos da riqueza e da pobreza: o trabalho e a inevitável interdependência entre os dois lados. Mas os tempos atuais estão mostrando uma nova realidade: a separação, pela crise do mundo do trabalho, entre os mundos da riqueza e da pobreza que se vai tornando excluída (BURSZTYN, 2000, p. 36).

Se os “desclassificados sociais” do Brasil-Colônia apresentavam-se como um “exército de

reserva da escravidão”, hoje um maior número de pessoas se transforma de exército de reserva em lixo industrial121, das quais decorrem novas representação social e exclusão:

A nova exclusão social constitui-se de grupos sociais que se tornam, em primeiro lugar, desnecessários economicamente. Perdem qualquer função produtiva, ou se inserem de forma marginal no processo produtivo, e passam a se constituir em um peso econômico para a sociedade (dos que trabalham e/ou têm renda) e para os governos (NASCIMENTO, 2000, p. 69-70).

118 “Por mais diferentes que fossem, culturalmente, quando aqui se encontraram há 500 anos, os portugueses e os índios tinham mais em comum, do ponto de vista das condições de vida, do que um rico em relação aos moradores de rua da mesma cidade” (BUARQUE, 2000, p. 9). 119 Estigma: “a situação do indivíduo que está inabilitado para a aceitação social plena” (GOFFMANN, 1988, p. 7).

120 A violência e a exclusão social nos grandes centros urbanos estão fortalecendo processos de subjetivação que produzem juízes e autores como sujeitos necessários à “limpeza” do corpo social “enfermo”: “Enfermo” que são competentemente construídos para serem percebidos como ameaçadores e perigosos através de identidades que lhes são conferidas. Identidades modeladas de tal jeito que suas formas de sentir, viver e agir são tornadas homogêneas e vistas como negativas, menores e desqualificadas” (COIMBRA, 1999, p. 12). 121 De acordo com Viviane Forrester. : “Uma quantidade importante de seres humanos já não é mais necessária ao pequeno número que molda a economia e detém o poder. Segundo a lógica reinante, uma multidão de seres humanos encontra-se assim sem razão razoável para viver neste mundo, onde, entretanto, eles encontraram a vida” (FORRESTER, 1997, p. 27).

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Mas, discriminados e representados socialmente como bandidos e perigosos, os sem-trabalho e moradores de rua, também incompetentes e preguiçosos por estarem em tal situação, participam dos projetos das classes dominantes ao possibilitarem a visualização e os resultados da uma “vida sem esforço”, “sem dedicação” e “sem visão moderna”, para aqueles que acreditam no trabalho como bem supremo. Discriminação e representação sociais que, no entanto, encobrem um elemento já estruturalmente presente: a exclusão econômica absoluta. O “excluído moderno” já constitui-se como “um grupo social que se torna economicamente desnecessário, politicamente incômodo e socialmente ameaçador, podendo, portanto, ser fisicamente eliminado. É este último aspecto que funda a nova exclusão social” (NASCIMENTO, 2000, p. 81).

E, atualmente, pela eliminação física “ainda” ser politicamente incorreta, os “desclassificados sociais” sobrevivem. Sobrevivem movidos pelos reflexos da ideologia da centralidade do trabalho, com a esperança de ingressarem, um dia quem sabe, no mercado formal. E ter um emprego. Mas, como colocou Forrester (1997, p. 11),

Um desempregado, hoje, não é mais objeto de uma marginalização provisória, ocasional, que atinge apenas alguns setores; agora, ele está às voltas com uma implosão geral, com um fenômeno comparável a tempestades, ciclones e tomados, que não visam ninguém em particular, mas aos quais ninguém pode resistir. Ele é objeto de uma lógica planetária que supõe a supressão daquilo que se chama trabalho; vale dizer, empregos.

Aos “vadios “, o trabalho, atualmente, parece ter perdido o sentido... Velhas e novas relações

materiais e simbólicas participam do velho-novo “mundo do trabalho”. Velhas e novas representações rodeiam as mentes e os corações... Mas eles estão aí. Os “desclassificados sociais”, mais do que nunca, estão tão próximos e ao mesmo tempo tão distantes, como o lixo produzido diariamente e levado para junto dos ratos, urubus, mosquitos e gentes - para bem longe dos “trabalhadores”, “puros” e “dedicados” à construção e edificação do Brasil Gigante.

5. Considerações finais: as diferenças, a igualdade e o poder. 5.1. Sobre as diferenças.

As representações construídas e reconstruídas por e sobre as mulheres e homens, inseridos nas relações de produção e de trabalho, lidaram e lidam com a questão das diferenças. São diferentes índios e europeus, negros e brancos, gaúchos e nordestinos, vadios e trabalhadores, competentes e incompetentes... Foi sobre diferenças que representações depreciativas, preconceituosas e discriminatórias foram construídas. Foi sobre diferenças que idéias, valores, concepções, práticas e projetos foram erigidos em nome da ordem, do progresso e do bem-estar para “todos”. Foi sobre diferenças que as classes dominantes mantiveram o poder da construção de representações sobre o “outro”. Foi sobre diferenças que parcela dos dominados foram representados como vadios, preguiçosos, pouco afeitos ao trabalho, indolentes, perigosos e inúteis, dos “desclassificados sociais” aos “economicamente desnecessários”.

A ênfase nas diferenças, constantemente, foi obra dos dominadores122. Hodierna, a defesa das diferenças é uma luta das esquerdas123! A questão é: a ênfase da diferença não roubaria perigosamente a cena da igualdade e, por

extensão, como acentuado por Pierucci (1999, p. 54), “quem pode garantir que, em meio a essa pós-moderna celebração das diferenças, as pulsões de rejeição e de agressão não venham a se sentir autorizadas a aflorar, crispadas de vontade de exclusão e profilaxia”? 122 Como acentuou Antônio Flávio Pierucci, “a pavilhão da defesa das diferenças, hoje empunhado à esquerda com ares de recém-chegada inocência pelos “novos” movimentos sociais (o das mulheres, o dos negros. o dos índios, o dos homossexuais, os das minorias étnicas ou linguísticas ou regionais etc.), foi na origem — e permanece fundamentalmente — o grande signo/desígnio das direitas, velhas ou novas, extremas ou moderadas. Pois, funcionando no registro da evidência, as diferenças explicam as desigualdades de fato e reclamam a desigualdade (legítima) de direito” (PIERUCCI, 1999, p. 19). 123 E aqui, por esquerda, entende-se como “aquele que pretende, acima de qualquer coisa, libertar seus semelhantes das cadeias a eles impostas pelos privilégios de raça, casta, classe etc.” (COFRANACESCO, apud BOBBIO, 1995, p. 81).

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Qual o sentido que a defesa das diferenças pelos setores e movimentos sociais progressistas apontam, em superação da histórica “defesa das diferenças” construída pelos dominadores?

Sem pretensão à solução da questão, talvez um dos grandes desafios para os que lutam pela transformação da realidade, seja justamente realçar as diferenças como condição de igualdade. Em outras palavras, se fazer igual nas diferenças e se fazer diverso na unidade.

5.2. Sobre a igualdade.

Octavio Souza (1994), a partir um viés psicanalítico, diz que o exotismo e o racismo resultam de nossa incapacidade para lidar não com o diferente, mas com o igual. Tendo por base o “estranhamento familiar” elaborado por Freud, o autor ressalta a “angústia da castração” como um componente importante para a construção no outro (o estranho, o eu-outro) da “suposição de um outro não-castrado, ou seja, de um outro que não encontra limites para seu arbítrio, que pode dispor de minha virilidade para sua própria fruição”. A definição do outro como exótico seria a tentativa de dominar a familiaridade íntima daquilo que não se quer reconhecer em sim mesmo (cf. SOUZA, 1994, p. 132e 136).

Já o racismo, ao lado do exotismo, é a outra modalidade de domínio sobre o estranho que o outro representa. O racismo sempre existiu ao lado das diferenças. Mas, com o advento da Revolução Francesa e o ímpeto da exigência de igualdade, o racismo se exacerba porque as diferenças, até então explicitadas pelo nascimento e condição social, passam a ser definidas pela relação que o eu estabelece com o outro,

entre um “superior” e um “inferior”. Ou seja, enquanto as diferenças se colocavam pela própria dinâmica sócio-econômica, como entre senhores feudais e servos, o racismo não precisava ser construído; mas quando é proclamada a igualdade entre todos, práticas e concepções racistas assumem nova tessitura, no sentido de que “há no racismo o projeto de se tornar outro pelo igualamento da própria diferença que se pretende anular” (cf. SOUZA, 1994, p. 140).

Na mesma direção, e também sob o prisma psicanalítico, Chnaiderman (1996, p. 85) contesta o freqüente entendimento de que o racismo resulta da impossibilidade de lidar com a diversidade. Para a autora, o racismo provém justamente do contrário, ou seja, da incapacidade em “ver o diferente tornar-se o mesmo”. Ressalta ainda, nesse sentido, que a “diferença protege a identidade” e que a “diferença é tranqüilizadora”: “É no momento que se tem medo de perder a identidade, de uma perda de contorno próprio, que se precisa definir algo de diferente no outro”.

Referindo-se a Octavio Souza, também Chnaiderman (1996, p. 90) destaca a “angústia da castração”, ressaltando que “o racismo e o exotismo estancam a angústia, pois são modos de dizer o que é mais íntimo em cada um de nós, sem assumi-lo como nosso. No racismo, odiamos o que está em nós atribuindo-o ao estrangeiro”, ao outro.

Mesmo com o risco de simplificação, arriscamos a construção de uma hipótese relacionando as posições dos autores acima e as questões que levantamos sobre as representações construídas de trabalhadores e de não-trabalhadores. A produção e a reprodução atuais de representações sobre as mulheres e homens fora do mercado formal de trabalho, na condição de subempregados ou desempregados, como “vadios” e “inúteis”, resultaria da incapacidade de apreendê-los como iguais; a necessidade dos “trabalhadores” apontarem diferenças sobre os “não-trabalhadores” aparece como mecanismo confortante para a aceitação de sua própria condição, uma vez que a exacerbação dessas diferenças é também tranqüilizante para aquilo que se é. Por outro lado, pela “angústia de castração” que impede ser o que o outro é, um não-castrado, as representações sobre os “não-trabalhadores” refletem o que no mais íntimo (familiar) dos “trabalhadores” se coloca mas que não é assumido como tal; em outras palavras, o desejo de “preguiça”, de “vadiagem” e do ficar à toa que permeia o âmago dos “trabalhadores”, é negado e transposto para o outro (como inferior e menor), pois o trabalho ocupa a referência central na construção de mulheres e homens “dignos”. 5.3. Sobre o poder.

A produção e a reprodução de representações encerram relações de poder: quem pode e quem não pode ser “digno”, através do trabalho...

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Esse poder, no entanto, se coloca para além do Estado e se espraia por todos as plagas, mentes e corpos de mulheres e homens. Não é apenas o poder de Estado, instrumentalizado política, jurídica e militarmente, que define, julga, reprime, aprisiona e mata os que “não querem” trabalhar. Cada olhar, na rua ou em casa, é um potencial julgador sobre os que “teimam” em se manter na preguiça. Segundo Foucault (1996, p. 161-2), o “indivíduo, com suas características, sua identidade, fixado a si mesmo, é o produto de uma relação de poder que se exerce sobre corpos, multiplicidades, movimentos, desejos, forças”.

Assim, se o poder é uma relação, as representações sobre os “trabalhadores” e os “não-trabalhadores” também dependem da forma que cada um estabelece suas relações com o Estado, com a classe dominante, com as mulheres e homens do mundo do trabalho; mas, também, com as mulheres e homens despojados, porque parte das relações capitalistas, das possibilidades de venderem, formalmente, sua força de trabalho.

Enfim, persistindo as atuais estruturas e microfísicas de poder, encampadas também pelas representações que quotidianamente realçamos, a concepção dicotomizada entre trabalho e ócio e entre “trabalhadores” e “vadios”, continuará tão vívida quanto a angústia que permeia o corpo e a mente do trabalhador no seu quinto dia de férias, quando já não lhe é possível “saborear a vida” para além das oito horas diárias de trabalho. 6. Referências Bibliográficas. BINZER, I.V. Os meus romanos: alegrias e tristezas de uma educadora alemã no Brasil. Tradução de Alice Rossi e Luisita da Gama Cerqueira. 3.ed. São Paulo: Paz e Terra, 1982. BOBBIO, N. Direita e esquerda. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: EdUNESP, 1995. BUARQUE, C. Apresentação — Olhar a (da) rua. In: BURSZTYN, M. (Org.). No meio da rua. Rio de Janeiro: Garamond, 2000, pp. 7-10. BURSZTYN, M. Da pobreza à miséria, da miséria à exclusão — o caso das populações de rua. In: BURSZTYN, M. (Org.). No meio da rua. Rio de Janeiro: Garamond. 2000, pp. 27-55. CARVALHO, J.M. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. CHAUI, M. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abrarno, 2000. CHNAIDERMAN, M. Racismo: o estranhamento familiar: uma abordagem psicanalítica. In: SCHWARTZ, L. & QUEIROZ, R.S. (Org.). Raça e diversidade. São Paulo: Edusp, 1996, pp. 83-95. COIMBRA, C.M.B. (Coord.). Violência e exclusão social. Estudos e Pesquisas 5. Niterói: EdUFF, 1999. FORRESTER, V. O horror econômico. Tradução de Álvaro Lorencino.São Paulo: EdUNESP: 1997. FOUCAULT, M. Microfisica do poder. Tradução de Roberto Machado. 12.ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1996. FRANCO, M.S.C. Homens livres na ordem escravocrata. 3.ed. São Paulo: Kairós, 1983. FURTADO, C. O mito do desenvolvimento econômico. São Paulo: Paz e Terra (Coleção Leitura), 1996. GALETTI, L.S.G. O poder das imagens: o lugar de Mato Grosso no mapa da civilização. Cuiabá — MT: Departamento de HistóriallCHS/UFMT, 1999. GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4.ed. Rio de Janeiro: LTC, 1988. GONÇALVES, C.W.P. Os (des)caminhos do meio ambiente. 6.ed. São Paulo: Contexto, 1998. GONÇALVES, L.A.0& SILVA, P.B.G. O jogo das diferenças: o multiculturalismo e seus contextos. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. Grupo KRISIS. Manifesto contra o trabalho. Tradução de Heinz Dieter Heidemann. Cadernos do LABUR n0 2. São Paulo: Departamento de GeografiaJFFLCH/USP, 1999. KOWARICK, L. Trabalho e vadiagem: a origem do trabalho livre no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1987.

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FETICHE DO ESTADO E A REGULAMENTAÇÃO DO CONFLITO CAPITAL TRABALHO*

Marcelino Andrade GONÇALVES** Eliseu Savério SPÓSITO***

Resumo: Neste artigo discutiremos as questões relativas ao Estado no capitalismo, sua utilização enquanto instrumento de dominação, a institucionalização dos conflitos de classe e da relação capital trabalho e a questão da informalidade no trabalho e na economia. Procuramos discutir os aspectos teóricos relativos ao entendimento do papel do Estado, buscando construir um referencial teórico conceitual. Palavras-chave: Estado; Luta de Classe; Mercado; Trabalho. Resumen: En este artículo discutiremos las cuestiones relativas al Estado en el capitalismo, su utilización como instrumento de dominación, la industrialización de los conflictos de clase y de la relación capital trabajo y la cuestión de la informalidad en el trabajo y en la economía. Buscamos discutir los aspectos teóricos relativos al entendimiento del papel del Estado, buscando construir un referencial teórico conceptual. Palabras-llave: Estado; Lucha de Clases; Mercado; Trabajo. 1. O Estado enquanto fruto da institucionalização do conflito entre as classes.

A forma como está organizada a sociedade capitalista para a produção tem, no que se entende ou

se faz entender, enquanto Estado, um elemento imprescindível para o controle e manipulação das contradições intrínsecas ao movimento de reprodução do capital, que tendo como base a exploração do trabalho, resulta no embate político e ideológico entre as classes envolvidas e que cumprem papéis antagônicos neste movimento.

Os processos de construção de uma idéia socialmente aceita e amplamente reproduzida a respeito de como seria a atuação, quais seriam os papéis a serem representados pelo Estado e, fundamentalmente, quais as características relevantes para a sua identificação, são ações que dentro do movimento mais amplo da luta de classes, mostram-se como instrumentos de dominação e camuflagem dos conflitos.

As divergências políticas e ideológicas entre as classes, que têm base nas contradições existentes entre o capital e o trabalho, e tendo nas diferentes formas de inserção dos elementos sociais no processo produtivo, uma das formas de expressão desta contradição, já que aqueles que produzem, não necessariamente se apropriam desta produção, geram os mais diversos conflitos, que são movidos pelos diferentes interesses econômicos, políticos e sociais que caracterizam múltipla e diferencialmente as várias camadas sociais no capitalismo.

É no constante conflito entre as diferentes classes que se produz e reproduz o movimento que transforma a sociedade, de maneira a criar e recriar as condições para a superação e geração de novos conflitos, propiciando o surgimento do que aqui entendemos como Estado, não enquanto instituição regularizada vista como uma organização rígida e composta por diversas facções institucionais comandadas pela burocracia, que levam a entender o Estado enquanto um “elemento” que paira sobre a sociedade. Buscamos firmar aqui o Estado como sendo a manifestação do próprio conflito de classes existente na sociedade. Como afirma Lênin, 1983:

* Texto publicado em 2001 (v.8). Resultado das reflexões realizadas no segundo capítulo da dissertação de mestrado defendida pelo primeiro autor em dezembro de 2000. ** Graduado em Geografia na FCT/Unesp de Presidente Prudente, Mestre e Doutor pelo Curso de Pós-Graduação em Geografia da FCT/Unesp de Presidente Prudente. Professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) *** Professor doutor do Curso de Pós-Graduação em Geografia da FCT/Unesp de Presidente Prudente. 57

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O Estado é o produto e a manifestação do antagonismo inconciliável das classes. O Estado aparece onde e na medida em que os antagonismos de classe não podem objetivamente ser conciliados. E reciprocamente, a existência do Estado prova que as contradições de classe são inconciliáveis.(p.9)

Nas palavras de Engels (1960):

Mas para que esses antagonismos, essas classes com interesses econômicos colidentes não se devorem e não consumam a sociedade numa luta estéril, faz-se necessário um poder colocado aparentemente acima da sociedade, chamado a amortizar o choque e a mantê-lo dentro dos limites da ”ordem“. Este poder, nascido da sociedade, mas posto acima dela se distanciando cada vez mais, é o Estado. (p.160)

O Estado é então produtor e produto, é o conflito em si, gerado nas diversas formas de embate político e ideológico que permeiam todo tipo de organização social, que é política por essência. As organizações de grupos sociais demonstram diferentes maneiras existentes de confronto entre as classes, figurando como forma política de se impor enquanto força que pode conservar ou dar um novo direcionamento ao movimento da sociedade.

Os grupos sociais que buscam uma participação política efetiva e consciente no conflito entre as classes, originam-se como produto do próprio conflito, buscando marcar posição e reivindicar direitos, ou protestar contra o que consideram usurpação à sua coletividade, que pode ser constituída e ter como elemento de identificação sua condição frente àqueles a que enxergam enquanto sendo os seus algozes.

Contudo, não podemos considerar a participação de um determinado indivíduo em um grupo político como sendo previamente definida pela inserção na classe social da qual este faz parte, pois, sabemos ser comum - aí temos que entender todo o processo de dominação e alienação presente como instrumento de dominação na organização da sociedade capitalista para a produção - a identificação ideológica de grande parcela da classe dominada, sobretudo a que vive do trabalho, com o projeto político da classe dominante, que se resume na manutenção da atual configuração da sociedade.

Dentre os elementos que contribuem para a não identificação do trabalhador, com a sua classe, está a distinção que alguns fazem de si, enquanto diferente de outro trabalhador, tendo como base desta diferenciação a sua inserção no processo produtivo, que estabelece um grau de importância diferenciado, de acordo com o posto ocupado e as habilidades técnicas necessárias para o desempenho da função.

Esta condição é reforçada no estabelecimento da divisão social e técnica do trabalho, que leva o trabalhador a se reconhecer enquanto diferente a partir da sua inserção, enquanto mão de obra no processo produtivo, ficando a partir desta compreensão impossibilitado de se reconhecer em outro trabalhador que possa, por exemplo, estar ocupando um espaço ao lado do seu na planta fabril, mas desenvolvendo outras funções.

É neste contexto conflitante no interior das classes, em que as armas da dominação se revelam eficazes em alguns momentos, e fomentadoras de manifestações contrárias em outros, deixando transparecer as contradições presentes neste processo, em que o Estado passa a ser utilizado pela classe dominante enquanto instrumento de dominação, passando a partir da institucionalização e da burocratização das ações políticas e governamentais a coordenar e mistificar os conflitos sociais.

O Estado passa então da sua condição de produto do conflito social, a figurar enquanto a instituição que paira sobre toda a sociedade, passando a imagem de uma instituição imparcial, sem compromisso, ou comprometimento com nenhuma das classes e que, estando nesta condição, poderá mediar e resolver, através de suas intervenções, os conflitos entre as classes existentes.

Assim, o governo, as instituições (Ministérios, Secretarias, etc.) a burocracia, passam a ser vistos como sendo a personificação do próprio Estado. As ações burocráticas e institucionais são entendidas, por grande parte da sociedade, como sendo ações do Estado, que figura como o “senhor” de todas as coisas e isento às influências da classe dominante, escondendo atrás desta máscara de imparcialidade o seu comprometimento ideológico e político, o que o firma por vezes como um interventor a colaborar com a classe subjugada sócio-economicamente. Nas palavras de Bihr (1999):

Em toda sociedade dividida em classes, a unidade social toma necessariamente a forma de um poder de Estado formalmente distinto da própria sociedade. Do ponto de vista de todas as classes, o poder estatal aparece, então, como única forma de domínio de uma evolução social que escapa ao controle coletivo precisamente porque a sociedade encontra-se dividida em classes rivais. E do ponto de vista das classes

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dominadas, esse mesmo Estado aparece, então, com freqüência, como recurso supremo contra o excesso de seus próprios dominadores.(p.31)

O Estado institucional entendido enquanto algo separado da sociedade, esconde na verdade o seu

comprometimento ideológico com a classe dominante, pois os que ocupam estas instituições - funcionários de alto escalão, ministros, burocratas e mesmo os governantes eleitos nos moldes da democracia burguesa - entendidas como Estado, são em sua maioria pertencentes à classe que domina as relações sociais e de produção.

Esta forma de Estado, baseada na ideologia liberal, funciona como escape para o não confronto direto das classes. Todo conflito que surge, nos mais diversos níveis, é resolvido no campo institucional, aparecendo o Estado neste momento enquanto elemento conciliador das partes.

Como exemplo desta condição, temos as negociações realizadas entre os trabalhadores e os patrões, para a resolução de impasses que dizem respeito a condições de salário e de produção, sobretudo no ramo industrial, em que se monta um fórum de discussão, em que o Estado, representado pela figura do governo, aparece para mediar a discussão e resolver a questão “sem prejuízo para nenhum dos lados”, conduzindo todo o processo conflituoso de forma a alcançar o que seria melhor a todos.

No entanto, não se discute nesta ação, a inclinação política e ideológica do governo, no sentido de colaborar com os empresários capitalistas, já que em sua maioria os governantes, representando o Estado, tiveram as suas campanhas eleitorais financiadas pelo capital.

Os conflitos entre as classes transferidos para o campo institucional, reconhecido como sendo o Estado, encontrando-se ele mesmo fora deste conflito, tendem a perder o seu caráter de luta de classes para serem entendidos enquanto uma disputa política meramente burocrática, envolvendo apenas alguns atores da sociedade, seja parcela de trabalhadores ou de patrões, que têm no governo o seu mediador imparcial.

A burocratização e a institucionalização do Estado leva à compreensão, por parte da sociedade, que só aqueles atores políticos que se encontram institucionalmente ligados e reconhecidos legalmente por este mesmo Estado podem fazer um movimento reivindicativo, atuando desta forma dentro do âmbito que se entende enquanto sendo ordeiro e democrático.

Qualquer ação de organização da classe dominada que venha a enfrentar a classe dominante, e não tenha o respaldo legal do Estado instituído passa a ser entendida como sendo contra a ordem, portanto, ilegal. Os sindicatos, partidos políticos etc., para serem reconhecidos e poderem exercer o seu poder de reivindicação têm necessariamente que manter vínculos institucionais com as instâncias governamentais entendidas como sendo o Estado instituído, sendo as demais formas de organização, de cunho popular e não institucional, desprezadas pela classe dominante e pelas instâncias burocráticas, minimizando o poder de intervenção política destas organizações frente ao aparato burocrático do Estado.

Os movimentos sociais que não são institucionalizados tendem a não ser reconhecidos pelo governo, que buscará de todas as formas colocar as potencialidades da máquina governamental para extirpação daqueles que incomodarem a “ordem vigente”.

A criação do aparato jurídico e militar, para que haja manutenção da segurança e da ordem, funciona como um “braço” deste Estado para que “todo” indivíduo da sociedade possa ter assegurado o seu direito de realizar plenamente as funções estabelecidas dentro do modo capitalista de produção.

Todo o aparato jurídico, leis, aparentemente imparciais e iguais para todos, e a polícia estão nas ruas para coibir qualquer ato que venha a prejudicar o bom andamento do processo de reprodução do capital. Em resposta a uma greve, ou outro movimento reivindicatório que cause distúrbio, o Estado, entendido enquanto imparcial, colocará todo o seu efetivo policial nas ruas para manter a ordem à base da repressão, sendo o aparato jurídico posto em alerta para posterior ação, no que diz respeito aos trâmites jurídicos para a condenação “justa” daqueles que promovem a desordem. Segundo Marx & Engels (1996):

Como o Estado é a forma na qual os indivíduos de uma classe dominante fazem valer seus interesses comuns e na qual se resume toda a sociedade civil de uma época, segue-se que todas as instituições comuns são mediadas pelo Estado e adquirem através dele uma forma política. Daí a ilusão de que a lei se baseia na vontade e, mais ainda, na vontade destacada da base real – na vontade livre.(p.98)

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Mais uma vez o Estado, enquanto instituição, irá servir de instrumento para manter a ordem de acordo com os preceitos da classe dominante, repreendendo aqueles que se insurgem contra as condições postas, sem mostrar verdadeiramente quem está por trás das ações repressoras do que se entende enquanto Estado.

O Estado, enquanto ser onipotente e imparcial, é como vimos, um instrumento de dominação, negando o que é realmente, ou seja, produto das contradições existentes entre as classes. [Lênin (1983); Engels (1960); Bihr (1999)].

Em cada momento histórico há uma predominância de determinada definição, teoricamente baseada, para a compreensão do que vem a ser o Estado e de qual deve ser o seu papel. No entanto, do laissez-faire, passando pelo Welfare State até o Estado neoliberal, todas estas formas negam o Estado do conflito e se desenvolvem como instrumento da classe dominante, que busca uma otimização da produção através do controle do processo e das forças produtivas, visando a reprodução desta forma de organização social e do capital.

Apesar de toda a mistificação em torno do Estado situando-o exteriormente aos conflitos sociais, suas ações têm sido a de procurar otimizar as relações produtivas em busca de uma melhor expansão/reprodução do capital, mesmo que por algumas vezes tenha sido mais ou menos complacente, dependendo do momento político que a sociedade atravessa, em colaborar com as leis mercadológicas.

Mesmo quando o Estado é posto fora do jogo mercadológico, deixa transparecer as contradições em suas ações. Com a efervescência da ideologia neoliberal que assistimos em todo mundo, pautada nas novas formas de reprodução do capital global e no crescimento da importância do capital financeiro para a economia mundial, os governos elaboram cada vez mais os discursos que fundamentam a necessidade do Estado instituído retirar-se das esferas econômicas, deixando o caminho livre para que o mercado trace os seus projetos e resolva os seus eventuais problemas livremente.

A contradição que se coloca aqui é a de que o Estado, mesmo entendido enquanto um interventor, o que já o coloca na qualidade de externo diante das relações econômicas, sempre teve as suas ações voltadas para o benefício do capital.

No Brasil, a ampla inserção do Estado na construção e instalação das indústrias de base, principalmente no ramo da metalurgia, demonstra o quanto foi útil o (Estado) que agora é tido como um entrave. Como afirma Cignolli (1984): “O Estado brasileiro começa sua intervenção sistemática e direta

no processo de acumulação a partir de 1930”.(p.13) Quando foi necessária uma série de grandiosos investimentos econômicos para a construção de

uma base industrial sólida, o “Estado”, na figura das instâncias burocrático-econômicas, foi chamado a intervir como financiador das instalações da indústria de base, que agora, em pleno processo de privatização, são “postas” à venda para que a iniciativa privada possa administrar estas empresas para alcançar maior lucratividade, obedecendo às regras do mercado, sem os entraves das negociações e intervenções políticas que permeavam a relação das estatais com o mercado.

Para o fortalecimento deste discurso e para a implementação das ações que tornam efetivo o Estado mínimo, os que se encontram em posição de dominação procuram fortalecer a tese de que, neste contexto, o Estado poderá desenvolver o seu “verdadeiro papel”, o de solucionar os problemas sociais.

Assim, o Estado liberal deixa ao sabor do mercado a criação e solução dos problemas econômicos e sociais que por “ventura” surgirem, pois sendo estes problemas endógenos ao mercado encontrarão solução dentro do seu próprio movimento.

Na verdade, este discurso esconde em suas entrelinhas uma estratégia para a estruturação de toda a sociedade baseada nos preceitos da ideologia liberal, que prega que todos os atores econômicos concorrem, em igualdade de condições no mercado capitalista, sendo que os mais fortes alcançarão o sucesso e, portanto, um status diferenciado no interior da sociedade. Neste sentido Braga (1997) diz que:

Através da crise e da estratégia neoliberal, o capital responde às condições e contradições atuantes nesse fim de século. Ao idolatrar o mercado, demonizar o Estado, exaltar a empresa privada, sacralizar o individualismo ultra-egoísta e transformar o ‘darwinismo social de mercado’ em algo desejável e eficaz do ponto de vista econômico, o neoliberalismo como projeto hegemônico resume e compõe o senso comum de nossa época. (p.224)

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A realidade nega o discurso do Estado liberal, mesmo colocando-se “fora” dos movimentos do mercado, para atender à nova estruturação do poder dominante, o Estado é constantemente chamado a intervir no movimento da economia, comprando ou vendendo dólar, emprestando dinheiro a bancos falidos, uma prática corriqueira no Brasil, que demonstra que a saída do Estado do mercado restringe-se à venda do patrimônio público à iniciativa privada e a abertura de caminhos políticos que permitam a retirada dos entraves, leia-se aqui direitos, que impedem uma exploração mais avassaladora do capital sobre o trabalho nas novas circunstâncias em que se encontra a economia capitalista.

Estas ações denunciam também a utilização do Estado enquanto instrumento de dominação da classe dominante, que de posse das instâncias políticas e burocráticas, entendidas como sendo o Estado, fazem e desfazem regras que possibilitem a reprodução da sua dominação no movimento das classes.

Apesar do discurso que preza pelo social, o Estado neoliberal tem deixado cada vez mais à míngua a maioria da população, fato que não ocorre só no Brasil, e que atinge grande parcela dos que vivem do trabalho no mundo, pondo fim a um número cada vez maior dos direitos conquistados durante décadas pelos trabalhadores, produzindo o esfacelamento do Estado do Bem Estar Social, provocando a diluição da capacidade organizativa e reivindicatória dos trabalhadores.

Na atual conjuntura, a capacidade de organização da sociedade civil, frente as políticas liberais, não tem alcançado efetivamente os seus propósitos de resistência e imposição da vontade dos que estão sendo massacrados pela nova “ordem mundial”.

Atualmente, as formas de organização da sociedade civil para a reivindicação, seja no sindicato ou em outras entidades, encontram-se em crise, desmobilizadas pela falta de participação efetiva, não encontrando respaldo para as suas ações em suas bases sociais. Este fato denota a vitória momentânea da política liberal, sobre os movimentos sociais, que há décadas vêm sendo tragados pela máquina burocrática do Estado.

A perda de poder político das classes dominadas, dentro do campo institucional, reflete mais uma das estratégias da classe dominante pautadas nas políticas liberais, que ao mesmo tempo em que reconhecem como democráticas somente as reivindicações realizadas e debatidas dentro de instâncias institucionalizadas, associações e sindicatos, realizam políticas de desmantelamento destas instâncias.

O abandono, por parte do Estado, das políticas sociais que encontravam respaldo nas teorias keynesianas, tem suas raízes fincadas não só no fortalecimento da ideologia liberal de mercado, mas também na nova forma de organização e reestruturação produtiva, que surge no Japão e se expande pelo planeta, como sendo a resposta para uma melhor reprodução do capital, superando na ótica capitalista, a produção baseada no fordismo.

A acumulação flexível e o toyotismo trazem grandes mudanças para as formas de inserção e utilização do trabalho no processo produtivo, o que leva a um redimensionamento da utilização da força de trabalho pelo capital, diminuindo a capacidade do trabalhador negociar frente ao capital em sua condição de mercadoria.

Atrelada ao liberalismo, a acumulação flexível torna-se um instrumento potencializador da exploração do capital sobre o trabalho, dando à luta entre as classes um contorno ainda mais desigual, que torna ainda mais difícil a organização dos trabalhadores em torno de movimentos que visem a ampliação ou mesmo a manutenção das conquistas sociais. Como afirma Antunes (1998):

Novos processos de trabalho emergem, onde o cronômetro e a produção em série e de massa são ‘substituídos’ pela flexibilização da produção, pela ‘especialização flexível, por novos padrões de busca de produtividade, por novas formas de adequação da produção a lógica do mercado (...) O toyotismo penetra, mescla ou mesmo substitui o padrão fordista dominante, em várias partes do capitalismo globalizado. (...) Direitos e conquistas históricas dos trabalhadores são substituídos e eliminados do mundo da produção.(p.16)

Para explicação deste momento de crise para grande parte da sociedade, a classe dominante produz um discurso que tende a ser hegemônico, do ponto de vista da explicação sobre o porquê dos problemas socioeconômicos que atingem grande parte da população. Elege o mercado global como o grande culpado pelas deficiências políticas e econômicas que causam as mazelas sociais e afirma que o Estado nacional perde poder e autonomia, na era do capital mundial.

Pautada no discurso da globalização, a classe dominante procura estabelecer uma lógica explicativa a respeito da miséria do povo, e organizar o que resta de energia nos explorados da nação para

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a utilização na reprodução do capital. Para tanto, necessita juntar um esforço nacional para que a nação possa concorrer na economia mundial. De acordo com Brunhoff (1991), o Estado mobiliza as energias dos cidadãos para participarem da guerra econômica, na qual devem desempenhar um papel excelente, a fim de levar o país a desenvolver um grande papel frente a outros e conquistar um lugar de destaque na economia mundial.

No Brasil este discurso, falsamente nacionalista, tem sido invocado pelo atual presidente Fernando Henrique Cardoso, de forma a mostrar ao povo a importância do sacrifício, sem lembrar que o sacrifício é realizado sempre pelos mesmos, para a ascensão econômica do país no âmbito econômico mundial. Quaisquer tentativas de crítica às políticas deste governo serão também combatidas com o discurso do nacional. A prática é a de desqualificar as críticas feitas a seu governo, por “parcos opositores”, colocando os últimos como inimigos do povo, que não querem ver o Brasil dar certo.

É neste contexto que as políticas liberais são implantadas, levando sobretudo a cortes nos gastos do governo com os serviços básicos que servem a classe trabalhadora, os desempregados e outros tantos excluídos das relações produtivas e de consumo, que são chamados a realizar sacrifícios em prol da nação brasileira.

A resposta do governo brasileiro para combater o crescente número de excluídos, frutos da lógica excludente do capital, e atualmente atribuída ao desemprego, tem sido a de elaborar políticas que expõem a classe trabalhadora mais ainda aos ditames espoliativos do mercado, o que se pode constatar com a implantação do projeto de lei que permite um contrato especial de trabalho, visando a redução de encargos e custos da demissão, levando ao barateamento da força de trabalho, que se dará acima de tudo com cortes expressivos nos direitos dos trabalhadores.

O barateamento da força de trabalho, conseguido através do não pagamento dos impostos, especialmente aqueles que retornariam como benefícios aos trabalhadores, permitem aos empregadores o aumento da exploração do trabalho sem que necessariamente haja aumento de gastos.

É interessante pensarmos que se instala uma modalidade de relação contratual de trabalho, e que por ser formal e com aval do Estado foge à informalidade, mas coloca o trabalhador numa condição de não poder ter acesso ou reivindicar os direitos trabalhistas, tal qual os que se encontram na informalidade.

As novas formas de contrato de trabalho estimuladas pelo governo como política de criação de empregos, que permitem trabalhos temporários ou que dispensam o empregador de pagar os encargos, levam a uma precarização das condições de sobrevivência dos que vivem da venda da força de trabalho.

Este pode ser considerado apenas um dos exemplos que permitem enxergar a face real do Estado como participante do jogo do mercado e instrumento utilizado para a coação das classes dominadas, de maneira a camuflar as agruras e a exploração dos que vivem da venda da força de trabalho, fazendo tudo isto parecer uma condição natural, gerada pelo movimento do mercado.

2. O Estado e a regulamentação do processo produtivo.

O Estado, utilizado pela classe dominante, enquanto instrumento potencializador da reprodução das condições antagônicas existentes entre as classes sociais no modo capitalista de produção, demonstra a sua força de intervenção, à medida que institucionaliza e impõe regras (Leis) que servem como parâmetros para a definição da atuação de todo indivíduo na sociedade, resguardando, intrinsecamente as regras, a condição de vantagem àqueles que dominam as relações políticas e econômicas do arranjo social em questão. Engels (1960), afirma que:

(...) o primeiro sintoma da formação do Estado consiste na destruição dos laços gentílicos, dividindo os membros de cada gens em privilegiados e não privilegiados, e dividindo estes últimos em duas classes, segundo seus ofícios, e opondo-as uma à outra. (p.104)

A partir da instituição de uma determinada lei que passa a regrar determinado ato, o Estado,

enquanto instituição burocrática ocupada por membros a serviço dos que se encontram na hegemonia, define de acordo com esta lei, o que é e o que não é lícito aos membros desta mesma sociedade.

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O Estado, visto como algo à parte da sociedade e com poderes de intervenção na forma de organização no contexto social, estende este regramento desde o ato de um indivíduo para com um outro indivíduo, como um contrato de trabalho, até as relações mais amplas entre as instâncias políticas administrativas existentes e determinadas parcelas da sociedade. Sociedade que, entendida pelo viés interpretativo burguês liberal, é formada por indivíduos iguais entre si e perante a Lei, sem levar em consideração, logicamente, as diferenças das condições econômicas, políticas e sociais existentes e que são acobertadas pela institucionalização das formas de organização das classes e pela burocratização dos conflitos presentes nas relações da sociedade de classes.

Desta forma, a classe dominante, de posse do instrumental institucional, burocrático e administrativo, reconhecido por ampla parcela da sociedade como sendo o Estado, interfere na organização do modo de produzir da sociedade capitalista, funcionando como instrumento de regulação das condições de produção e reprodução do capital, determinando, muitas vezes, através da regulamentação, o modo sob o qual as relações de produção entre a classe detentora do capital e a desprovida dos meios de produção serão conduzidas no processo produtivo, a fim de permitir a exploração do trabalho desta última, garantindo neste processo a reprodução ampliada do capital, e ainda, a continuação deste movimento que propiciará que estas relações continuem a ser produzidas e reproduzidas.

A regulamentação e a classificação do capital e do trabalho de acordo com o setor produtivo em que estão empregados, (primário, secundário, terciário e também intra-setores) têm nas instâncias político-burocráticas, um agente permanente de reforço e de controle da divisão social do trabalho.

Estabelecendo formalizações para o desempenho das atividades produtivas, tanto para o capital como para o trabalho, e garantindo neste movimento a supremacia do capital sobre o trabalho, se estabelecem quais os deveres a serem cumpridos pelos atores que compõem o processo produtivo, como por exemplo, o pagamento de impostos, todo esse processo regrado e controlado pelas instâncias que compõem o que se considera do ponto de vista burguês, o Estado.

Nesta relação de “iguais”, segundo o discurso da classe dominante, mediada por um “Estado” que se encontra “fora” do conflito social, o trabalhador “consegue” a formalização da venda da sua força de trabalho, o que o obriga ao pagamento de impostos enquanto dever, tendo como contrapartida, enquanto direito à “garantia” do oferecimento de alguns serviços básicos como de saúde, alimentação, moradia e de educação, que se configuram como sendo de péssima qualidade, e que têm por fim garantir minimamente a sua reprodução enquanto força-de-trabalho.

Por sua vez, os capitalistas, ao repassarem, através de impostos, uma parte da mais valia usurpada no processo produtivo, sustentam toda a estrutura política institucional do quadro burocrático que compõe o “Estado”, garantindo desta forma a manutenção deste e a sua própria reprodução enquanto classe dominante e, sobretudo, as condições para a reprodução ampliada do capital (Marx e Engels 1996).

Concomitantemente há o trabalho ideológico que procura fortalecer um antagonismo entre sociedade e Estado, camuflando todas as contradições existentes dentro do movimento desta mesma sociedade transferindo muitas vezes a responsabilidade das mazelas sociais e econômicas a este ser etéreo denominado Estado, instaurando uma lógica interpretativa em que de um lado encontra-se a sociedade civil e de outro o aparato político, jurídico institucional visto como independente.

A partir desta ótica, o Estado passa a ser responsabilizado pelo desenvolvimento sócio-econômico da sociedade capitalista, deliberando-se a ele o poder e a responsabilidade das regulamentações das relações sociais de produção no mercado capitalista. Assim, os efeitos perversos deste processo, como a miséria, ou o trabalho e a economia informal, por exemplo, serão deslocados do campo das contradições existentes entre as classes, para o campo da incapacidade governamental do Estado.

Desta maneira, todas as diferenças e problemas que atingem a maior parcela da sociedade no capitalismo aparentam não ser gerados no movimento de produção e reprodução do capital e na diferença de inserção das classes neste movimento, passam paradoxalmente a ser atribuídos em uma relação conflituosa entre sociedade e Estado. É neste sentido que Gonzales (1989), responsabiliza o Estado pelo não desenvolvimento da economia e pela existência da informalidade. Segundo Gonzales (1989):

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Há efetivamente um segmento que apresenta um perfil nitidamente capitalista ao qual o Estado obstaculiza o desenvolvimento. Mas há outra parcela do setor informal que não é tipicamente capitalista e a quem o Estado também coloca óbices na medida em que não consegue gerar uma política demográfica, de emprego e renda compatíveis com a absorção desse contingente em condições normais de subsistência, ou seja, empregada nas atividades formais.(p.18)

Os atores econômicos produtivos que fogem a esta formalização, fugindo ao pagamento dos

tributos, estão inseridos, segundo a lógica da regulamentação do mercado instituída pelas instâncias administrativas e comandadas pela classe dominante, em uma economia informal.

Produz-se, então, a partir do item regulamentação das atividades econômicas, pensada e executada pelas instituições que compõem o poder reconhecido enquanto tal, uma realidade que se divide em economia formalizada e não formalizada, incluindo-se neste rol as relações de trabalho, marginalizando todos trabalhadores que se encontram à margem da regra estabelecida, deixando-os à margem dos “benefícios” que podem ser conseguidos através da institucionalização da venda de sua força de trabalho.

Mas, ao contrário do que se imagina, mesmo à margem do institucionalizado, o emprego e outras atividades produtivas acabam sofrendo influências e sendo controlados de alguma forma, pelas instâncias administrativas que compõem a estrutura da organização econômica e política burguesa e que não restringe o seu domínio somente às relações econômicas, sendo abrangente a todas as relações postas na sociedade.

Neste sentido, estas relações de produção e de emprego, vistas à margem da perspectiva da regulamentação, compõem o movimento da economia capitalista, pois, mesmo não regulamentadas, as relações econômicas informais, seja de produção, de consumo ou de circulação de mercadorias garantem a reprodução do capital, já que, os vários ramos de emprego e de produção informal encontram-se interligados, no movimento de produção circulação e consumo, com os ramos formalizados da economia.

O fato é que não se vive em um mundo à parte quando se está inserido, empregado, em uma atividade não formalizada, como somos levados a crer quando entendemos as relações existentes no processo produtivo somente a partir da regulação institucional.

Se algumas atividades econômicas, ou relações de trabalho não se encontram institucionalizadas, não significa que não estão participando do processo social de produção e de reprodução ampliada do capital. A prova maior desta situação é a sua própria existência, que se coloca como fato inegável da sua vinculação a esta forma social de organização para a produção.

Institucionalizar e legalizar as atividades econômicas revela somente o quanto o Estado dominado por determinada classe, pode ser instituído de poder de intervenção na sociedade, e logicamente na forma como esta se encontra organizada para a produção, para beneficiá-la frente as outras classes que compõem a sociedade, pois precisamente o papel do Estado é “institucionalizar” a

regra do jogo (Oliveira 1988, p.16). A criação das leis trabalhistas brasileiras, por exemplo, que hoje são parâmetros para pensarmos

o trabalho informal, revelam este caráter manipulatório das instituições e leis pensadas e implantadas pelo Estado.

Quando no ato de sua criação as leis do trabalho serviram, mais do que para apaziguar a relação conflituosa existente entre a classe trabalhadora e o capital, para compor um novo cenário dominado por uma nova forma de acumulação pautada no capital industrial e que necessitava da implantação de certas modificações. Segundo Oliveira (1988):

O decisivo é que as leis trabalhistas fazem parte de um conjunto de medidas destinadas a instaurar um novo modelo de acumulação. Para tanto, a população em geral, e especialmente a população que afluía a cidades, necessitava ser transformada em ‘exército de reserva’. (p.16).

A institucionalização das relações de trabalho, viabilizada pelas forças sociais, políticas e

econômicas que comandavam o Estado na década de 1930, colocam-nos a caminho de pensar as conexões existentes entre as transformações no processo produtivo capitalista, em seus diversos níveis, e as mudanças do desempenho do papel do Estado neste processo.

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As transformações nas relações de produção no Brasil obedecem à lógica do capital industrial multinacional, assim, a institucionalização das relações de trabalho foi umas das formas da economia brasileira construir a sua versão, cheia de especificidades, de um modelo de processo de produção fordista, que permitia uma nova configuração das relações entre o capital e o trabalho, que se pauta na institucionalização dos direitos e satisfação de algumas das reivindicações dos trabalhadores e numa falsa supervisão desta relação capital x trabalho pelo Estado. Como afirma Bihr (1999):

Assim será toda a ambivalência da legalização do proletariado que o compromisso fordista tornará possível: o Estado proporcionará satisfação ou sustentação de algumas de suas reivindicações na exata medida em que isso lhe permitir melhor integrá-lo na sociedade civil e política e, portanto, melhor controlá-lo.(p.38)

A cada mudança no modo de acumulação, há sem dúvida uma reorganização da classe

dominante no seu sentido institucional, transformando o papel e as características do Estado, que irá de acordo com as novas tendências e rumos apontados pelo objetivo da classe social dominante firmar, negar ou mesmo transformar as regras que institucionalizam todas as relações sociais, sendo as que dizem respeito às relações de produção e de trabalho evidentemente reformuladas neste ínterim.

Como um dos exemplos do que afirmamos podemos remeter a um fato histórico que mostra claramente esta situação. No Brasil, após os anos de 1930, momento em que se começa a passagem de um modelo econômico ligado a agro-exportação para um modelo centrado na economia industrial urbana, a manipulação do Estado enquanto instrumento que poderia favorecer a um projeto econômico diferente do que até então estava em vigor. Oliveira (1988) afirma que:

A revolução de 1930 marca o fim de um ciclo e o inicio de outro na economia brasileira: o fim da hegemonia agrário-exportadora e o inicio da predominância da estrutura produtiva de base urbano industrial. (...) a nova correlação de forças sociais, a reformulação do aparelho e da ação estatal, a regulamentação dos fatores, entre os quais o trabalho ou o preço do trabalho, têm o significado, de um lado, de destruição das regras do jogo segundo as quais a economia se inclinava para as atividades agrário-exportadoras e, de outro, de criação das condições institucionais para as expansão das atividades ligadas ao mercado interno. Trata-se, em suma, de introduzir um novo modo de acumulação, qualitativa e quantitativamente distinto (...). (p.14)

Oliveira (1988) demonstra em sua obra esta inclinação do Estado brasileiro para o favorecimento

do capital industrial, ressaltando todas as políticas implantadas em nível estatal de incentivo a indústria e de desincentivo à produção agrícola exportadora.

O que queremos salientar é a vinculação direta entre o modelo de acumulação, a forma de organização da produção, o Estado e a institucionalização das atividades econômicas e de trabalho, sendo que a forma como se deu até hoje a exploração do trabalho no capitalismo, poderá ter sido em alguns momentos maior ou menor, guardando uma proporção direta entre a resistência e a organização dos trabalhadores, e as manobras políticas e ideológicas da classe dominante visando a institucionalização do conflito, de forma a trazer para o seu campo de legalidades as formas de atuação dos trabalhadores.

A maneira como as transformações no processo produtivo e as respectivas mudanças no âmbito do Estado estão interligados, conserva especificidades de acordo com o momento histórico e sua abrangência territorial, o que permite que o Estado no modo capitalista de produção tome as mais diversas configurações, obedecendo a especificidades políticas e econômicas locais, combinando-as com as transformações globais, sem contudo perder o seu caráter de potencializador das condições de reprodução do capital.

Assim como todo aparato técnico, político–ideológico e institucional foi pensado pela classe dominante para obedecer aos ditames do fordismo, e isso implicou no remodelamento das formas de exploração do trabalho, com o surgimento de um Estado “comprometido” com o bem estar social do trabalhador, hoje, diante da expansão do capital que se globaliza e coloca as economias, principalmente dos países mais pobres, à mercê do capital financeiro, das novas tecnologias e formas de gestão e organização da produção, que permitem maior exploração qualitativa do potencial da força de trabalho, esta mesma classe se vê obrigada a reestruturar todo este aparato, inclusive o institucional, dando novas características ao Estado.

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Desta forma, a retomada do liberalismo não se dá logicamente somente nas bases produtivas, com relação ao uso de tecnologia, de trabalho e de gestão do processo produtivo, remete-se também às formas de organização política do Estado, lhe atribuindo novas funções, retirando-lhe outras, de maneira a ajustar os seus aparelhos para melhor condução de todo o processo de reprodução do modo capitalista de produção.

Isso implica em uma nova forma de relação, não só entre capital e trabalho, mas também entre os aparelhos do Estado e os trabalhadores. Desta maneira passamos a entender melhor a utilização do Estado enquanto instrumento pela classe dominante, e a perceber donde vêm as forças que têm trabalhado para romper e desmontar o antigo modelo fordista, que tem como uma de suas características a institucionalização da força de trabalho e a construção de um aparato estatal que, sobretudo nos países de economia avançada, foi definido como o Estado bem estar social e que atualmente se mostra em plena decadência, dando sinais de rompimento com o modelo anterior. De acordo com Bihr (1999):

Ruptura de caráter histórico: se, durante três décadas inteiras, o fordismo constituíra a base socioeconômica de seu poder político, é doravante em sua destruição que a classe dominante aposta para garantir a sua salvaguarda. O que para ela, significa reconhecer que a crise aberta alguns anos antes não é uma simples flexão conjuntural, mas uma crise estrutural, cuja saída supõe um remanejamento total do modo de produção.(p.76-77)

Este remanejamento apontado por Bihr (1999), implica, sobretudo em estabelecer uma nova

relação entre o capital e o trabalho, nova nas formas como se dão as relações e as combinações dos determinantes do processo produtivo, mas permanecendo a mesma no objetivo final, que é o da reprodução ampliada do capital.

Esse remanejamento do modo de produção implica num rearranjo dos processos pelos quais se dá a exploração do trabalho, implicando na desestruturação das formas até então vigentes de organização dos trabalhadores, no desmonte do aparato institucional que garantia à classe trabalhadora direitos conquistados outrora através das lutas organizadas e, que agora são interpretados como entraves para o desempenho do processo de reprodução do capital.

Essa ofensiva sobre a classe que vive da venda da sua força de trabalho toma dimensões gigantescas em todo mundo capitalista, agindo com maior vileza nos países pobres, subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, eufemismo que procura esconder a situação de miserabilidade permanente de grande parte da população mundial.

É nestes países em que grande parte da população é miserável, que os efeitos da nova ordem do capital se mostram maiores pois, se nos países de economia desenvolvida os trabalhadores ainda podem contar com o que resta do Estado providência, tendo por exemplo direito a um seguro desemprego decente e por um período relativamente considerável, nos países subdesenvolvidos este modelo de Estado nem chegou a vigorar plenamente, estando a classe trabalhadora exposta com maior vulnerabilidade às novas investidas do capital, tornando maior o número de pessoas que se vêem obrigadas pelo desemprego e pela falta da assistência do Estado, a buscar outras formas de ocupação, seja atuando como autônomo, como subempregado ou buscando trabalho na informalidade, formas de ocupação que aprofundam ainda mais as condições, que muitas vezes já eram ruins, de sobrevivência do trabalhador. Pochmann (1999) afirma que:

A geração de ocupações com baixa qualidade (atípica, irregular, parcial), que no padrão sistêmico de

integração social estaria associada à exclusão relativa do modelo geral de emprego regular e de boa

qualidade, surge como exemplo de incorporação economicamente possível. Desta forma, distanciam-se as

possibilidades de estabelecimento de um patamar de cidadania desejada.(p.21)

Assim, é de acordo com lógica da reestruturação produtiva capitalista, que discutimos no

capítulo anterior, que se gera um número crescente de desempregados, e que combinada a nova configuração tomada pelo Estado, que tem no liberalismo econômico a base ideológica e política para realização e implantação de seus projetos, que se configura o novo contexto social de exploração do trabalho, que segundo Bihr (1999) gera de um lado um conjunto de trabalhadores estáveis, com um bom salário e provida de seus direitos institucionais e, de outro, um outro conjunto de trabalhadores excluídos

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do mercado de trabalho, composto por idosos, jovens e trabalhadores sem qualificação, salientando que esta exclusão por vezes não se faz temporariamente, tornando-se para muitos definitiva.

Bihr (1999) chama a atenção também para um terceiro conjunto que se formaria entre os incluídos e os excluídos do mercado de trabalho, que seria segundo o autor, uma massa flutuante de

trabalhadores instáveis e que se comporia das seguintes categorias: a) proletários das empresas que

atuam por contratação (terceirização) e por encomenda; b) os trabalhadores em tempo parcial; c)

trabalhadores temporários d) os estagiários; e por último o que o autor classificou como sendo o cúmulo da instabilidade, ou seja: d) os trabalhadores da economia subterrânea, que são subcontratados em relação à economia oficial.

A informalidade, descrita anteriormente por Bihr (1999) como o estágio máximo de precarização do trabalho, colabora também para a instabilidade geral da classe trabalhadora, pois permite que haja uma pressão maior sobre os direitos daqueles trabalhadores que se encontram regularmente empregados, e o seu aumento contribui ainda para o esvaziamento das formas de organização convencionais dos trabalhadores, principalmente a sindical.

3. A informalidade como elemento da precarização das condições de trabalho e de desarticulação das formas de organização e representação institucionais dos trabalhadores.

As atuais transformações na organização para a produção no capitalismo, não se restringem às

formas de exploração do trabalho diretamente no processo produtivo, se estendem a todas as esferas, (econômicas, sociais e políticas) que constituem o mundo do trabalho.

Com a reestruturação capitalista, combinada à ofensiva das políticas estatais neoliberais, tem-se um movimento acelerado de transformações no processo produtivo, que como vimos leva à criação de novas maneiras de utilização e exploração do trabalho e uma diversificação crescente no que diz respeito à divisão do trabalho, levando a um acirramento das fragmentações entre as formas de emprego ou de ocupação existentes.

Uma fragmentação que, como apresentou Bihr (1999), vai além dos que têm e dos que não têm emprego, e que faz surgir uma ampla gama de trabalhadores que estão empregados ou ocupados precariamente em atividades insalubres, com grande quantidade de horas de trabalho por dia, mal remunerados e sem contrato formal.

Estas diversas ocupações e empregos classificados como precários124, e que têm a informalidade como um agravante, tem aumentado como vimos não só no Brasil, mas em todo o mundo capitalista, sendo estas formas de ocupação a alternativa apresentadas pelo atual contexto econômico e social para uma parcela considerável da classe trabalhadora, para que possa garantir sua sobrevivência e fugir a situação de desemprego.

Desta forma, torna-se crescente o número de trabalhadores na informalidade, o que colabora para a degradação das condições de trabalho daqueles que continuam formalmente empregados.

Os que estão formalmente empregados passam, neste contexto de aumento do trabalho informal, a sofrer pressões sobre os seus salários e seus direitos trabalhistas, cuja existência passa a ser denunciada

como obstáculo à expansão do emprego formal. ((Singer ,1998, p.46)). Seja como autônomo, temporário, parcial ou em tempo integral sem a carteira assinada, é cada

vez mais comum encontrar pessoas que estão ou conhecem alguém trabalhando nesta situação, lembrando que as formas de emprego ou ocupação informais não se restringem atualmente aos trabalhadores com pouca formação técnica, podendo-se encontrar vários profissionais altamente capacitados prestando serviço em tempo parcial ou integral sem no entanto estabelecer um contrato formal com os seus empregadores. Como afirma Singer (1998):

(...) a crescente informalização das relações de trabalho está agora golpeando trabalhadores qualificados e antigos empregados com grau universitário. As longas jornadas de trabalho praticadas por trabalhadores informais resulta em demissões e crescimento do número de desempregados, avolumando as fileiras dos

124 Sobre precarização do trabalho ver, Ramalho (1997); Boito Jr. (1999); Alves (1999), entre outros.

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trabalhadores informais. Não há dúvida de que a exclusão alimenta a exploração e a exploração (particularmente do trabalhador informal) alimenta a exclusão. (p.73)

Todo esse movimento contínuo, descrito por Singer (1998), em que exclusão e informalização se

alimentam mutuamente, centrando-se na maior exploração do trabalho, tem outros determinantes que não estão restritos à situação de informalidade do trabalhador, mas perpassam por outras determinações que além de econômicas são também de ordem política.

O fenômeno crescente da informalização do trabalho, longe de ser visto como uma anormalidade pelas forças econômicas e políticas dominantes, são vistos, até pelos discursos oficiais, como perfeitamente viável a nova ordem estabelecida para a organização e participação dos atores econômicos no mercado capitalista.

Pautados em pressupostos liberais, os governos têm procurado justificar a aceitação do crescimento contínuo do trabalho informal e a sua política de desregulamentação do mercado de trabalho, como forma de evitar o aumento do desemprego, que de outra maneira só poderia ser conseguido com o crescimento econômico. Segundo Cattani (1996) o pensamento neoliberal dominante entende desta forma o problema do desemprego:

O desemprego aparece como uma questão inquietante, mas solucionável com a retomada do crescimento econômico e com a eliminação das regulamentações e proteções criadas artificialmente pelos sindicatos. (p.63)

Neste sentido, os pronunciamentos e as atitudes tomadas pelo governo brasileiro tem sido o de

estimular a informalidade e a precarização do trabalho. Esse fato pode ser constatado se analisarmos os projetos que visem modificações nas leis que regem os contratos de trabalho, ou que permitem que haja contratos de trabalho que fujam aos princípios da legislação, estimulando desta maneira a ampliação das condições para o aproveitamento, exploração, do trabalhador na informalidade. Como nos diz Boito Jr. (1999):

Uma forma importante que os governos neoliberais encontraram para avançar na desregulamentação do mercado de trabalho foi tolerar e até estimular a desregulamentação ilegal, e muitas vezes oculta, praticada pelos capitalistas. Na década de 1990, os governos liberais estimularam os empregadores a contratar trabalhadores sem carteira assinada, ao permitirem a piora da historicamente precária fiscalização das delegacias Regionais de Trabalho e ao estigmatizarem os direitos sociais e a legislação trabalhista. (p.94)

Desta forma, torna-se evidente o desmonte do já insuficiente aparato institucional que garante

proteção ao trabalhador frente as “intempéries” do mercado e das investidas extremas de espoliação dos empregadores.

Esta situação demonstra o poder de influência da classe dominante sobre os aparelhos do Estado, que se reconfiguram, modificando a legislação ou mesmo desobedecendo-a, para melhor colaborar com o atual contexto organizativo do capital, o mesmo Estado que em outros momentos procura mostrar-se como mediador ou imparcial frente ao confronto capital x trabalho corrobora sem disfarce a sua vinculação com capital.

E é neste contexto, de crescimento do desemprego, do trabalho informal, da desregulamentação e desmantelamento do aparato institucional que garantia alguns direitos básicos à classe trabalhadora, que se mostra o desgaste e a fragilidade das suas atuais formas de organização, que são em sua maior parte sindicatos que organizam, representam e defendem os direitos de determinada categoria125.

Combinada a terceirização ao desemprego, o trabalho informal torna-se um elemento corrosivo da base sob a qual se assenta a legitimidade e representação dos sindicatos, que por serem reconhecidamente institucionais trabalham dentro de normas que não permitem, ou não tornam interessante, organizar os trabalhadores que estão fora do mercado de trabalho formal, seja pelo desemprego ou pela informalidade. 125 Atualmente os sindicatos têm lutado muito mais para a manutenção do emprego do que por melhorias nas condições de trabalho e de salário, como acontece atualmente com os metalúrgicos do ABC. Há uma preocupação maior em reintegrar o desempregado ao mercado de trabalho, e não um projeto de organização dos trabalhadores para o enfrentamento da atual política econômica. Sobre este assunto ver, Boito Jr. (1999)

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Como instituição os sindicatos estão fracionados para representar as diferentes categorias, organizando, em tese, estes trabalhadores, também legalmente contratados como uma força conjunta frente ao capital. Logicamente temos que considerar a fragmentação existente entre os sindicatos instituídos de acordo com a categoria de trabalho, pois como sabemos os sindicatos acabam por representar um fragmento da classe trabalhadora, uma categoria específica e não a todos os trabalhadores, esta fragmentação faz com que os problemas enfrentados por determinada categoria que cumpre sua função na divisão social do trabalho, pareça não dizer respeito a outras categorias de trabalhadores. De acordo com Antunes (1998):

Os sindicatos operam um intenso caminho de institucionalização e de crescente distanciamento dos movimentos autônomos de classe. Distanciam-se da ação, desenvolvida pelo sindicalismo classista e pelos movimentos sociais anticapitalistas, que visam o controle social da produção, ação esta tão intensa em décadas anteriores, e subordinam-se à participação dentro da ordem. Tramam seus movimentos dentro dos valores fornecidos pela sociabilidade do mercado e do capital. (p.35)

E por estar organizado política e estruturalmente desta forma fragmentada e institucionalizada

que, segundo Bihr (1999) privilegia a dimensão de categoria e profissional, é que os sindicatos perdem atualmente o seu poder de representação, com o aumento do desemprego e da informalidade do trabalho tem uma diminuição considerável de sua base de representação, já que os desempregados e os trabalhadores informais estão fora da sua área de atuação legal. Singer (1998), ao tratar do aumento da informalidade e seus efeitos sobre os sindicatos afirma que:

Obviamente, isto tem um efeito desmoralizante sobre os sindicatos, cuja representatividade é corroída à medida que sua pretensão de falar pelo mundo do trabalho ou ao menos de sua parcela majoritária torna-se crescentemente insustentável. (p.49)

A diminuição da participação dos trabalhadores nos sindicatos, pelos motivos aqui apontados,

somada à insegurança no emprego gerada pela reestruturação produtiva, que tem no avanço tecnológico uma maneira de poupar quantitativamente a força de trabalho, leva junto com o enfraquecimento da entidade representativa, a maior exposição de algumas categorias de trabalhadores às investidas dos capitalistas no sentido de diminuir o custo do trabalho, sobretudo no que diz respeito aos direitos trabalhistas conquistados através da luta organizada.

As ações dos sindicatos mais organizados não demonstram que haverá mudança em curto prazo na forma de pensar e organizar os trabalhadores no novo contexto social capitalista, sobretudo, porque se limitam a promover programas educacionais que visam a requalificação do trabalhador para a busca de novos empregos, que não são suficientes para todos.

Os trabalhadores requalificados, que agora sabem realizar outra atividade profissional e que mesmo assim não encontram empregos, são estimulados a realizar o seu próprio empreendimento, seguindo a orientação da livre iniciativa, montando um pequeno negócio, seja uma confeitaria, oficina, etc.; acabam por afastar-se ainda mais das formas organizativas dos trabalhadores individualizando-se enquanto pequeno empreendedor, que deixou de ser empregado, buscando quase sempre refúgio na informalidade para ter condições de desempenhar suas atividades.

Ao invés de conseguir com a integração dos trabalhadores ao sindicato, com os programas de requalificação, o que se consegue é uma maior fragmentação dos trabalhadores em suas tentativas individualistas de ascensão no mercado capitalista, ascensão que para a maioria é apenas um sonho a ser perseguido, e que se revela na verdade no pesadelo do trabalho precarizado e informal.

Assim, os programas de requalificação, financiados com dinheiro do governo, colaboram para o esvaziamento dos sindicatos e desarticulação da capacidade de organização dos trabalhadores, o que leva a um enfraquecimento crescente do poder reivindicatório dos trabalhadores formalmente empregados e sindicalizados [Antunes (1998); Bihr (1999)], além do que, mais do que promover a capacitação dos trabalhadores estes programas tornam-se fonte de renda para os sindicatos, substituindo a sua antiga fonte, dos filiados.

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GONÇALVES, M. A.; SPOSITO, E. S. Fetiche do Estado e regulamentação do conflito capital trabalho.

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O aumento dos trabalhadores informais, a desindicalização, além de colocar os trabalhadores formais como privilegiados, como vimos anteriormente, levam a uma luta corporativa dos sindicatos na defesa das suas respectivas categorias para manterem os seus direitos (Antunes, 1998,1999).

Diante do novo contexto econômico e social que envolve os trabalhadores e é claro os sindicatos, vários estudiosos têm apontado a necessidade de repensar as formas vigentes de atuação e organização do

sindicato vertical126, apontando para a necessidade de reestruturar os sindicatos, de forma a fugir do

modelo fordista de sindicalismo, buscando a participação e a organização dos trabalhadores que se encontram excluídos das organizações representativas, sendo esta uma das formas de estabelecer uma nova forma de organização que possa fortalecer a classe trabalhadora. Como afirma Bihr (1999):

Somente um sindicalismo com estruturas “horizontais”, que privilegia a dimensão interprofissional, é adequado para organizar ao mesmo tempo trabalhadores permanentes, instáveis e desempregados. (p.101)

Como afirma Antunes (1998), uma forma de sindicalismo mais horizontalizado, que

privilegiasse as esferas intercategoriais e interprofissionais, que abrangesse alem dos trabalhadores estáveis, também os temporários, precários, parciais e os informais, seria o caminho para evitar a extinção dos sindicatos enquanto órgão representativo dos trabalhadores.

4. Referências Bibliográficas. ALVES, G. Trabalho e mundialização do capital: a nova degradação do trabalho na era da

globalização. Londrina: Praxis, 1999. ANTUNES, R. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do

trabalho. Campinas, Cortez, 1998. BIHR, A. Da grande noite à alternativa. São Paulo: Boitempo, 1998. BOITO JR., A. Política neoliberal e sindicalismo no Brasil. São Paulo: Xamã, 1999. BRAGA, RUY. A restauração do capital: um estudo sobre a crise contemporânea. São Paulo: Xamã,

1996. BRUNHOFF, S. de. A hora do mercado: crítica do liberalismo. São Paulo: UNESP, 1991. CATTANI, A.D. Trabalho e autonomia: Petrópolis: Vozes, 1996. CIGNOLLI, A. Estado e força de trabalho: introdução a política social no Brasil. São Paulo:

Brasiliense, 1985. ENGELS, F. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Rio de Janeiro: Vitória, 1960. ENGELS F. ; KAUTTSKY, K. O socialismo jurídico. São Paulo: Ensaio, 1991(Cadernos Ensaio). GONZALES, B.C.R. A pequena empresa e o setor informal: uma análise das barreiras existentes ao

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LÊNIN, V.I. O Estado e a revolução. São Paulo: Hucitec, 1983. MARX, K; ENGELS, F. A ideologia alemã (l - Feuerbach). São Paulo: Hucitec, 1996. OLIVEIRA, F. de. A economia brasileira: crítica à razão dualista. Petrópolis,: Vozes, 1988. POCHMANN, M. O trabalho sob fogo cruzado: exclusão, desemprego e precarização no final do

século. São Paulo: Contexto, 1999. SINGER, P. Globalização e desemprego: diagnóstico e alternativas. São Paulo: Contexto, 1998.

126 Sobre este assunto ver: Antunes (1998); Bihr (1999) Boito Jr. (1999), entre outros.

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A CRISE DO CONTRATO SOCIAL DA MODERNIDADE: O CASO DA “REFORMA AGRÁRIA” DO BANCO MUNDIAL*

Eraldo da Silva RAMOS FILHO∗∗∗∗∗∗∗∗

Resumo: Neste artigo interpreto a reforma agrária do Banco Mundial enquanto uma política de caráter neoliberal e compensatória. Para tanto, busco suas vinculações com a figura de linguagem criada por Santos (1998) para erosão dos valores, a fragmentação da sociedade e o estabelecimento do consenso pela lógica do capital e da racionalidade do mercado, em curso na sociedade contemporânea. Apresento os fundamentos desta espécie de “reforma agrária”, os fundamentos e formas de implementação no Brasil, em dois períodos de governo. Palavras-chave: Reforma Agrária, Mercado, Conflito. Resumén: En este artículo interpreto la "reforma agraria" del Banco Mundial mientras una política de carácter neoliberal y compensatória. Para tanto, busco sus vinculaciones con la figura de lenguaje creada por Santos (1998) para erosión de los valores, la fragmentación de la sociedad y el establecimiento del consenso por la lógica del capital y de la racionalidad del mercado, en marcha en la sociedad contemporánea. Presento los fundamentos de esta espécie de “reforma agraria”, los fundamentos y formas de implementación en Brasil, en dos períodos de gobierno. Palabras-llave: Reforma Agrária, Mercado, Conflicto. 1. A crise do contrato social da modernidade.

Atualmente vivenciamos um processo de globalização multidimensional, cuja face hegemônica é a globalização econômico-financeira que, ao mesmo tempo, determina e usufrui da compressão espaço-tempo. Relações hegemônicas e contra-hegemônicas são construídas e se confrontam cotidianamente, quer no local, quer no global.

O sociólogo português Boaventura de Souza Santos (1998) construiu uma metáfora analítica para a racionalidade social e política da modernidade ocidental: o mundo contemporâneo vivencia a crise do contrato social da modernidade.

A contratualização perpassa uma multidimensionalidade que inclui interações políticas, econômicas, sociais e culturais, cuja legitimação se estabelece pela tensão existente entre inclusão e exclusão. É, portanto no campo de lutas pela inclusão e exclusão que o contrato se refaz permanentemente.

Esta crise, em curso há mais de uma década, pode ser identificada a partir de distintos indicadores, como no processo de erosão geral dos valores resultante em uma crescente fragmentação da sociedade que passa a estabelecer apartheids em múltiplas dimensões: econômicas, políticas, sociais e culturais. Verifica-se a perda de sentido da luta pelo bem comum e por alternativas de bem comum.

Apesar da permanência dos valores da modernidade (liberdade, igualdade, autonomia, subjetividade, justiça, solidariedade) e as contradições entre eles, seus significados são dissimulados e novos sentidos atribuídos, agora, com tantos significados distintos quantos forem os grupos sociais. Este excesso de sentido leva a uma paralisia da eficácia e a uma neutralização.

Para Santos, o processo de compressão espaço-tempo condiciona uma turbulência das escalas nas quais estamos habituados a identificar os fenômenos, os conflitos e as relações. “Como cada um destes é produto da escala em que observamos, a turbulência nas escalas cria estranhamento, desfamiliarização, surpresa, perplexidade e indivisibilização”. (1998, p.19)

* Texto publicado em 2005 (n.12 v.1), resultante de trabalho final apresentado à disciplina História Social do Trabalho no Brasil, ministrada pela Profª Drª Eda Maria Góes e cursada pelo autor durante o segundo semestre de 2004 no Programa de Pós-Graduação em Geografia da FCT/UNESP. ∗∗ Mestre em Geografia pela Universidade Federal de Sergipe, Doutorando em Geografia pela Universidade Estadual Paulista (FCT/UNESP). Atualmente é professor Assistente Colégio de Aplicação (CODAP) da Universidade Federal de Sergipe (UFS), Pesquisador do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária (NERA), Correio eletrônico: [email protected]

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A cooptação do conhecimento científico pelos interesses da dinâmica do capital, a perda de centralidade do Estado e a turbulência das escalas têm conduzido a um cenário de ofuscamento das alternativas, propagação da impotência e passividade. A estabilidade escalar parece existir apenas na esfera do mercado e do consumo.

Apesar da crise, a contratualização se faz corriqueira na sociedade contemporânea. Fala-se em contratualização das relações sociais, trabalhistas, das relações políticas do Estado com as organizações sociais, etc.

Tal contratualização apresenta três características centrais. A primeira condiz com uma “contratualização liberal individualista, moldada na idéia do contrato social de direito civil entre indivíduos e não na idéia do contrato social entre agregações coletivas de interesses sociais divergentes” (Ibid., p. 22).

A segunda característica ressalta a instabilidade da contratualização, uma vez que, a qualquer momento esta pode ser denunciada por uma das partes.

E, por fim, a contratualização atual nega a existência do conflito e a luta como componentes estruturais do poder. Afirma a passividade e o consenso. Um exemplo emblemático é o Consenso de Washington, no qual os países capitalistas centrais definiram as diretrizes globais de “desenvolvimento” das nações periféricas. Estas, por sua vez, têm de seguir o receituário proposto de forma acrítica sob pena de serem excluídas dos programas de “ajuste”.

O contrato social da modernidade é falso, já que não resulta da discussão e sim da imposição unilateral do membro mais forte, que busca sub-julgar o membro mais fraco. A crise do contrato social reflete-se portanto no predomínio dos processos de exclusão em detrimento dos de inclusão.

A exclusão tem se dado tanto pelo confisco dos direitos de cidadania considerados inalienáveis anteriormente (pós-contratualismo), quanto no bloqueio de acesso à cidadania aos sujeitos (SADER, 1988) que eram antes candidatos à cidadania e esperançosos de conseguí-la (pré-contratualismo).

Estas formas de exclusão são balizadas por quatro principais formas de consensos. Primeiramente a do consenso econômico neoliberal assentado na liberalização dos mercados financeiros, desregulamentação, privatizações, redução do Estado e dos gastos sociais, redução do déficit público, fortalecimento do poder econômico das corporações e bancos transnacionais, fragilização da organização da sociedade. Enfim o que está em jogo é concretização do controle dos Estados Nacionais pelo Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial e Organização Mundial do Comércio.

O Estado fraco é o segundo consenso. O terceiro consenso é o democrático liberal e “consiste na promoção internacional de concepções minimalistas de democracia como condição de acesso dos Estados nacionais aos recursos financeiros internacionais” (SANTOS, 1998, p. 27).

Por fim, o último consenso é derivado dos outros supracitados. O consenso do primado do direito e dos tribunais prioriza a propriedade privada em detrimento do público, as relações mercantis e o setor privado. Busca uma operacionalização segura, previsível, garantida contra violação unilateral. Para tanto, transforma-se o quadro jurídico e os tribunais, e a contratualização passa a buscar a individualização com vista a possibilitar maior controle.

É, portanto, neste contexto de crise do contrato social da modernidade que se situam as transformações recentes na política de desenvolvimento rural para as nações da Ásia, África, América Latina e, em particular, o Brasil. 2. A “Reforma Agrária” do Banco Mundial.

Os últimos 15 anos têm sido marcados por uma mudança de postura do Banco Mundial frente às políticas de terras. Após os ajustes estruturais, imposição de medidas neoliberais de todo o tipo e financiamento de infra-estrutura e megaprojetos, a instituição passou a enfatizar a questão da terra como estratégia de desenvolvimento rural. Nesta política setorial a reforma agrária tornou-se central, expressão de certa forma proibida em muitos países há vinte anos, que precisa ser melhor situada nos programas do Banco.

Esta mudança de postura deriva de pelo menos três motivos. O primeiro diz respeito à observação do resultado de um conjunto de pesquisas realizadas pelos think thanks (BOURDIEU, 2001)

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do órgão que apontaram que nas nações onde a distribuição da terra é muito desigual há um retardamento nas taxas de crescimento econômico. E como este, é a menina dos olhos do Banco Mundial, as políticas voltaram-se para ações que pudessem promover alguma desconcentração deste bem, afim de contribuir nesse sentido.

Outra motivação diz respeito aos baixos investimentos realizados no meio rural nos já referidos continentes, logo, nada mais oportuno que promover programas voltados para a atração de investimentos privados para essas áreas rurais que se articulem, direta ou indiretamente, com a preocupação anterior.

Por fim, outra preocupação, meramente retórica, é com a redução da pobreza (e não com sua eliminação).

A fim de contextualizar a reforma agrária do Banco Mundial, tomei como referência o estudo de Rosset (2004) para primeiramente discorrer sobre o receituário que tem sido imposto a diferentes países, seguindo uma mesma seqüência de políticas setoriais rurais.

O primeiro conjunto de políticas visa conhecer a posse das terras, organizar os negócios, reduzir o caos para que em um futuro próximo possa entrar em operação o mercado de terras. O Banco denomina tais projetos de “administração da terra” e em diferentes países podem ser chamados de titulação, registro ou mapeamento.

Existem países cujos projetos de “administração da terra” estão em andamento ou renovando os acordos, outros discutem sua implantação, há ainda aqueles que já tiveram tais projetos.

A defesa (questionável) é a de que sem a existência de um mercado de terras não haverá transferência de terras para os mais pobres, nem investimentos nas áreas rurais. Para o Banco, os produtores precisam da garantia dos empréstimos da mesma forma que os investidores precisam da garantia dos pagamentos. Portanto, é importante a segurança do direito de propriedade, a fim de que a terra seja a ofertada como garantia e/ou estímulo nas operações financeiras.

Com a “administração da terra” é possível fazer um balanço da sua oferta e procura. Tal medida dá suporte a uma segunda política que é a de privatização de terras públicas e comunais, implementada sob a forma de concessões a corporações que se comprometem a realizar investimentos nas áreas rurais e/ou realizar um tipo de “reforma agrária” orientada pelo Banco.

Um exemplo desastroso dessa política tem sido a privatização das terras comunais no México, mediante a implantação do Programa de Certificação dos Direitos Agrários e Titulação da Habitação Urbana (Procede) – programa recomendado pelo Banco -, que tem permitido a titulação individual dos ejidos (grandes propriedades comunais herdadas da Revolução Mexicana).

A terceira política se soma às duas primeiras e institui o direito legal de vender, alugar, arrendar ou hipotecar as terras como garantia de empréstimo. Como os títulos da terra passam a ser alienáveis, caso o camponês não consiga pagar os empréstimos pode perder a terra.

A terra pode ainda servir como moeda em um empreendimento, no qual os capitalistas entram com os investimentos e o camponês com a terra. No caso do fracasso do empreendimento todos perdem. O capitalista o montante investido e o camponês a terra.

Com este tipo de posse, frente aos períodos de alta dos preços da terra ou de baixas da safra os camponeses podem vender suas terras. Ocorre que ao vender este bem, tão logo o dinheiro acaba, ficam sem a terra e sem emprego, portanto mais empobrecidos.

O problema da política não reside em titular as terras, mas no contexto de uma política macroeconômica neoliberal que, ao abrir as economias nacionais, traz prejuízos para os produtores locais com a redução dos preços dos gêneros agrícolas.

De fato, a noção de mercado de terras como meio de reduzir a pobreza é muito curioso. O Banco Mundial diz que se o mercado de terras funciona, então é possível as pessoas pobres adquirirem a terra. Infelizmente, como todos sabemos, o mercado não responde às necessidades do povo; o mercado responde ao dinheiro. O funcionamento do mercado de terras pode, portanto, em muitos casos, gerar uma clara transferência de terras de pessoas pobres para grandes e ricos fazendeiros, porque os pobres freqüentemente não têm recursos financeiros para participar do mercado de terras. (ROSSET, 2004, p. 21)

Formado o mercado de terras forjam-se, agora, as condições necessárias para a implementação

de uma política geral de crédito: os chamados “bancos da terra” ou “fundos de terras”. Estes, por sua vez,

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consistem em fundos estimulados pelo Banco Mundial e outros doadores nos países onde se verifica uma má distribuição fundiária, e, portanto, dificuldade de crescimento econômico.

Uma vez realizados os financiamentos, os países credores devem criar (ao longo do tempo) seus próprios fundos creditícios com a finalidade de conceder créditos fundiários aos sujeitos sociais que demandam terras, para que estes possam comprá-la no mercado já em funcionamento.

Este modelo de endividamento externo para compra e venda de terras foi denominado pelo Banco de “reforma agrária dirigida pelo mercado”. Após duras críticas e questionamentos de como a reforma agrária pode ser dirigida pelo mercado, o Banco passou a chamá-lo de “reforma agrária assistida pelo mercado”. Com a continuidade das contestações e controvérsias a nomenclatura tornou a mudar (porém sem alterar o conteúdo) para “reforma agrária negociada”, “reforma agrária baseada na comunidade”.

Esta política de “reforma agrária” neoliberal busca a resolução do conflito histórico entre sem-terra e latifundiários em países que a a concentração fundiária é exacerbada.

Segundo o Banco a “reforma agrária tradicional”, via desapropriação, não é possível no momento atual porque as elites econômicas resistem à reforma e isso gera muito conflito. O objetivo não é incomodar as elites mediante as medidas desapropriatórias, mas sim comprar as terras daqueles que estão dispostos a vendê-las pelo preço que pedirem.

Por outro lado,

Os “beneficiários” desse programa adquirem uma pesada dívida com crédito usado para comprar a terra. O tamanho dessa dívida é baseado no preço pelo qual a terra é vendida. Uma função desses programas em diversos países é determinar o seu preço. O próprio modelo enseja corrupção, com funcionários do governo em conluio com latifundiários; de fato esse tipo de corrupção é implacável (...) Observamos que a terra comprada por pessoas pobres não é apenas de má qualidade, mas também superavaliada. Em alguns casos, esses programas têm contribuído para uma tremenda inflação no preço da terra. Então, é provavelmente seguro dizer que a “reforma agrária de mercado” tem sido mais benéfica para os latifundiários, que podem vender terras de pouca qualidade a altos preços. (ROSSET, 2004, p. 23)

Tal pacote de políticas de “desenvolvimento” já se encontra em curso em diferentes países, com

roupagens e impactos variados. Na África, podemos citar os casos da África do Sul e Zimbábue, na Ásia, está implantado na Indonésia, Tailândia e Índia, e, por fim, na América Latina, evidencia-se o caso da Guatemala, do México, da Colômbia e do Brasil, exemplo que abordarei em seguida. 3. A “Reforma Agrária” do Banco Mundial no Brasil.

No final da década de 1990, o governo Fernando Henrique Cardoso implantou uma política

agrária denominada de Novo Mundo Rural na qual a ideologia do Banco tornou-se mais evidente. A partir deste período, ocorre no campo brasileiro a alteração da postura do Estado brasileiro frente à questão agrária. Em virtude do seu ajustamento à lógica neoliberal verifica-se a concretização da internacionalização das políticas públicas para o campo mediante: a difusão da concepção de alívio da pobreza rural, da substituição da questão agrária pelas políticas de desenvolvimento rural, do fortalecimento do agricultor familiar e negação da existência do camponês, assim como a implementação da reforma agrária de mercado.

As ações políticas no campo brasileiro transparecem a estratégia territorial, cuja meta é responder quantitativamente à inserção subalternizada e dependente do Brasil no capitalismo monopolista. Para manter uma balança comercial favorável transforma-se a “a agricultura em um negócio rentável regulado pelo lucro e pelo mercado mundial” (OLIVEIRA, 2004, p. 13).

Valorizam-se as ações do agronegócio, nega-se a gravidade da concentração fundiária, ignora-se a manutenção do rentismo fundiário no Brasil e relega-se parcela significativa das populações rurais (e urbanas) a cenários mórbidos de exclusão, pobreza e miséria (PAUGAM, 1999).

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Outra característica marcante foi o franco processo de tentativa de despolitização da luta camponesa e seus respectivos movimentos sociais. Ações sistemáticas foram conduzidas em três dimensões distintas e interligadas: a legal, a político-científico-ideológica e a midiabilidade.

Na dimensão legal, buscou-se a desmobilização dos movimentos sociais mediante a promulgação de leis e medidas provisórias na maioria das vezes controversas, a exemplo da introdução da MP n° 2.109-49 de 23 de fevereiro de 2001, que instituiu a exclusão da reforma agrária dos trabalhadores que ocuparam terras ou dos assentados de reforma agrária que apoiaram tal ato de desobediência civil, e proibiu, por pelo menos dois anos, a realização de vistoria em propriedades rurais que sofreram processo de ocupação. Dentre outros instrumentos legais.

Na dimensão político-científico-ideológica, o governo Cardoso dispôs de uma importante rede de cientistas que deu suporte teórico e ideológico a projetos concebidos para o desenvolvimento no campo brasileiro. Este pensamento com forte influência da concepção de desenvolvimento existente em instituições internacionais como o Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial, ao mesmo tempo em que se constituiu em paradigma na academia, transformou-se em políticas públicas.

Neste sentido, foram extintas linhas de créditos voltadas para o pequeno produtor da reforma agrária, a exemplo do Programa de Crédito Especial para a Reforma Agrária (PROCERA) e sua substituição pelo por linhas de crédito mais seletivas a exemplo do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF). Outra política que vale destacar, por evidenciar esta intencionalidade de controlar a mobilização popular por terras, foi a criação do engodo do Acesso Direto à Terra (a reforma agrária pelo correio).

Este programa na data do seu lançamento não conseguiu garantir nem os cadastramentos das famílias em diferentes municípios brasileiros, e, até o fim daquele governo, não se ouviu notícia (ou boato) de sequer uma família que tenha entrado na terra por este programa.

Para o governo FHC a questão agrária não é econômica ou política, mas sim uma política de compensação social. Este tipo de política não altera a realidade. Apenas implementa ações paliativas que não alteram os problemas da sociedade, apenas os maquiam, e, através da propaganda, apresenta para a sociedade a falsa resolução de um problema. Neste processo os problemas sociais tendem a se agravarem ao longo do tempo.

Refuta-se então, o reconhecimento da existência de uma classe social camponesa. Para dar sustentação a esta postura constrói-se, teoricamente, o discurso e a prática política governamental com a centralidade e o fortalecimento da agricultura familiar nas políticas implementadas nos programas de desenvolvimento do capitalismo na agricultura.

cria mecanismos de sustentação política, científica e ideológica para, de um lado, afirmar e apresentar as propostas e entendimento do governo no tocante ao desenvolvimento do capitalismo na agricultura brasileira e, de outro lado apresentar o atraso das relações baseadas na reivindicação dos movimentos camponeses em lutar pela democratização do acesso à terra e em denunciar a viciosa estrutura agrária brasileira. (FELICIANO, 2003, p.07)

A terceira dimensão é a da midiabilidade, compreendida aqui como a capacidade de um

determinado ator ou grupo de atores formar um campo social dominado pela mídia. Com uma massiva e dispendiosa campanha publicitária, o governo FHC buscou confundir a

opinião pública, induzindo-a a condenação dos trabalhadores organizados nos movimentos sociais em confronto (com o Estado, latifundiários e judiciário), manipulou informações para se propagar a idéia de novo rural ideal. Para elevar o mérito do Novo Mundo Rural, o governo pagou campanha publicitária em horário nobre cujo slogan era: Pra quê pular a cerca se a porteira está aberta?

A análise do campo a partir do conceito da agricultura familiar demonstra a forte influência de um paradigma que tem emergido nos últimos anos. Uma importante referência é o trabalho de Abramovay (1998) no qual o camponês é um produtor familiar voltado basicamente à subsistência, com pouca integração em mercados incompletos, portanto, a expressão do atraso.

Já o agricultor familiar, apresenta, dentre outras características, uma espécie de produção familiar cuja integração ao mercado é plena, mediante uma organização empresarial e mediação estatal, utilização de pacotes tecnológicos modernos e detentor de uma capacidade de inovação.

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RAMOS FILHO, E. S. A crise do contrato social da modernidade: o caso da “Reforma Agrária” do Banco Mundial.

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Mas, segundo Lopes (1999, p.14)

a transformação do assentado em agricultor familiar, como propõe o governo não passa de mero sofisma. Do ponto de vista conceitual é uma tremenda tolice essa afirmação, pois o assentado já é um agricultor familiar, na medida em que essa noção está ligada à natureza do trabalho agrícola baseado na utilização, pelo agricultor, da força de trabalho dos membros da família. Ora, a quase totalidade dos assentados toca seus lotes com a ajuda da esposa e dos filhos em idade ativa, da mesma forma que o fazem os pequenos agricultores dispersos pelo interior do Brasil.

Outro mecanismo de tentativa de despolitização da luta camponesa foi a criação da Reforma

Agrária de Mercado. Foi iniciada a partir da implantação do Projeto-Piloto Cédula da Terra - PCT, nos estados do Maranhão, Ceará, Pernambuco, Bahia e Minas Gerais. Na verdade consistia em uma ampliação de uma ação local do Ceará (o Projeto São José – Reforma Agrária Solidária) e foi instituído pelo empréstimo n° 4.147BR, no valor de US$ 90.000.000 contraído pelo Brasil em 1998.

Mesmo diante da contestação do Fórum Nacional pela Reforma Agrária e pela Justiça no Campo, que entregou ao Painel de Inspeção do Banco Mundial documento constando questionamentos e denúncias, o governo conseguiu a época do término do projeto (2002) superar a meta programada e instalar mais de 14 mil famílias.

Com a Lei Complementar nº 93, de 4 de fevereiro de 1998, e, mediante a garantia de US$ 1.000.000.000,00 pelo Bird e contrapartida do governo brasileiro de mais US$ 1.000.000.000,00, foi criado o Programa Fundo de Terras e da Reforma Agrária – Banco da Terra.

Com a garantia de mais cerca de US$ 200.000.000,00, resultante de novo acordo com o Banco Mundial, o governo criou em 2001 outro programa: o Crédito Fundiário de Combate à Pobreza Rural – CFCP, cuja contrapartida está prevista em US$ 200.000.000,00, recursos originários do Fundo de Terras – Banco da Terra/Ministério do Desenvolvimento Agrário. O programa abrange os estados do Nordeste, do Sul, Sudeste, Mato Grosso, Goiás e Tocantins.

As condições de financiamento pouco diferem dos programas anteriores. O Crédito Fundiário foi criado com o objetivo de substituir o Banco da Terra, tendo em vista a forte oposição que este projeto recebeu de vários setores da sociedade.

O Banco Mundial, tendo por pressupostos:

1) a importância da propriedade familiar em termos de eficiência e eqüidade; 2) a necessidade de promover os mercados para facilitar a transferência de terras para usuários mais eficientes; 3) a necessidade de uma distribuição igualitária de bens e uma reforma agrária redistributiva. (DEININGER; BISWANGER, apud SAUER 2001, p. 01)

Reconhece que a resolução da questão agrária e o acesso à terra são importantes passos para o

desenvolvimento econômico e redução da pobreza: formula, portanto; o mercado de terras com o intuito de criar uma alternativa à reforma agrária tradicional (conceito adotado por alguns estudiosos para esvaziar o caráter punitivo da reforma agrária prevista na Constituição Federal de 1988 e na Lei 8.629 de 25/02/1993).

Segundo esta agência financeira e o governo brasileiro, a reforma agrária de mercado: a) é capaz de substituir o confronto por uma atitude colaborativa dos grandes proprietários de terra com a reforma agrária; b) elimina a burocracia e disputas judiciais típicas dos processos desapropriatórios por interesse social, e agiliza a realização da reforma agrária; c) estimula o mercado de terras através da compra e venda; d) apresenta um menor custo que a via tradicional possibilitando ampliação da abrangência do programa.

Já Navarro (1998, p.14) em estudo sobre o Projeto-piloto Cédula da Terra – PCT, afirma haver

...a possibilidade de uma completa transparência [grifo meu] em toda a via processual do PCT, pois os beneficiários em tese, são os maiores interessados em reduzir preços, examinar cuidadosamente a potencialidade produtiva do imóvel a ser adquirido, etc”.

Esta argumentação não se sustenta, uma vez que o mercado é um espaço do capital. E como tal,

as relações não são totalmente transparentes ou equânimes. Estas se apresentam, sempre mais favoráveis

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para os fortes. Portanto, os beneficiários, camponeses pobres e com reduzido acesso à informação dificilmente dispõem das condições ótimas para negociar com os proprietários a terra.

É evidente a concepção ideológica do Banco acerca da questão agrária brasileira e das soluções constitucionais previstas. A propositura de uma solução sem conflitos (ou seja, não coercitiva para os proprietários), desconsidera o caráter histórico da concentração fundiária no país e a legitimidade da organização dos movimentos sociais representativos das trabalhadoras e trabalhadores do campo brasileiro.

A partir do momento em que a reforma agrária passa a ser regulada pela lei da oferta e da procura de terras, o Estado brasileiro dilui o seu estratégico poder de comandar o processo de democratização da propriedade fundiária. Transfere para os proprietários a autonomia de determinar a escala, o preço, o espaço e o tempo da reforma agrária. Enquanto isso, ao Estado cabe apenas o papel de financiar, conceder assistência técnica e avaliar os projetos criados.

Nos três programas, há ainda a previsão legal de transferência de poderes do governo federal para a esfera local, mediante o estabelecimento de acordos com os governos estaduais, transferindo para estes a atribuição de implementação dos programas. Este conjunto de ações, explicitam a obviedade da estratégia de desfederalização das ações políticas de reforma agrária.

Concordo com Sauer (2001), que a questão central da reforma agrária reside na perspectiva de ruptura com a lógica rentista e não produtiva da propriedade da terra, que tem sustentado o latifúndio em nosso país e penalizado o conjunto da população brasileira desde, pelo menos, a Lei de Terras de 1850.

Martins (2000, p. 24-25) corrobora com este entendimento tendo em vista que, “justamente o pagamento da própria terra em dinheiro, mesmo a prazo, reafirma o caráter rentista do sistema econômico, base institucional do latifúndio improdutivo, e tem sido rima das principais bandeiras do latifúndio da América Latina.”

Outra questão relevante diz respeito à defesa pelo Estado de que os camponeses “beneficiados” teriam garantido sua inserção no mercado. Primeiro, é importante observar que a trajetória histórica dos produtores familiares no Brasil, muitas das vezes, buscou conciliar produção de excedentes com relações de trabalho não-capitalistas. Contraditoriamente, as relações do mercado sempre os excluíram.

A produção para o mercado não necessariamente resgata a cidadania, mas sim força o camponês às exigências do mercado. Contribui, para a desintegração da autonomia camponesa de determinar o ritmo de sua produção, obriga-o à lógica de produção em larga escala e de acordo com elevados padrões de qualidade definidos externamente. A fim de alcançar isto, o camponês torna-se refém dos pacotes tecnológicos como já ocorre com o processo de integração dos camponeses em diversas partes do Brasil, em particular no oeste catarinense, onde camponeses têm seu território monopolizado pela Sadia.

Estudos recentes têm mostrado que as regras de financiamento da terra desencadeiam um nefasto processo de escravização do camponês à dívida, uma vez que além dos elevados juros há uma relação inversa de evolução entre a dívida contraída (crescente) e a produtividade da terra (decrescente).

A fim de dissimular as diversas críticas formuladas pelos diferentes segmentos sociais, pautadas principalmente na concepção de que a reforma agrária de mercado iria substituir a “reforma agrária tradicional”, o governo liberou a compra apenas para as propriedades produtivas e com área de no máximo 15 módulos fiscais.

Tal medida, ao mesmo tempo em que limita o financiamento para a compra de imóveis fora das exigências da Reforma Agrária gera, contraditoriamente, outros problemas como a tendência a um processo de minifundização, e evidencia a ineficiência do Crédito Fundiário quanto à capacidade de promover alterações na estrutura fundiária, mesmo que no plano local, considerando que o programa ao mobilizar associações para aquisição de terras com um pequeno número de componentes impossibilita a aquisição de grandes áreas. 4. Considerações finais.

Recentemente a sociedade brasileira elegeu, com cerca de 53 milhões, de um total de 83 milhões de votos, o primeiro presidente da República oriundo da classe trabalhadora. A eleição do Luis Inácio Lula da Silva expressou o anseio por transformações na condução político-ideológica vigentes no país.

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RAMOS FILHO, E. S. A crise do contrato social da modernidade: o caso da “Reforma Agrária” do Banco Mundial.

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No campo, em março de 2004, somente após forte pressão popular, o governo Lula publicou seu Plano Nacional de Reforma Agrária – Paz, produção e qualidade de vida no meio rural (PNRA) que, contraditoriamente, prevê o assentamento até 2006, de 400 mil famílias via reforma agrária e 130 mil famílias via Crédito Fundiário de Combate à Pobreza Rural (CFCPR).

Neste governo, este programa serve como uma espécie de guarda chuva para novas versões da Cédula da Terra e Banco da Terra. O primeiro foi substituído pelo Combate à Pobreza (CPR) e o segundo denomina-se hoje Consolidação da Agricultura Familiar (CAF). Um outro programa existe no contexto do CFCPR: o Nossa Primeira Terra, que atende jovens de 18 a 24 anos.

A reforma agrária de mercado do Banco Mundial prossegue no governo Lula como componente das políticas agrárias do Estado brasileiro. A meta de famílias a serem assentadas no CFCPR representa 32,5% do efetivo de famílias previstas paras assentamento via desapropriação. Representa, também, cerca de 25% do total de famílias previstas para assentamento no período.

Faz-se necessário enfatizar que o governo Lula não só incorporou este modelo de desenvolvimento rural, como também o está ampliando. Se compararmos com o governo Cardoso, que de 1995 a 2002, assentou cerca de 338.191 famílias através da desapropriação, e 39 mil famílias via os quatro programas da reforma agrária de mercado, constatamos que este montante representa apenas 12% das famílias assentadas via desapropriação.

Além disso, o governo Lula já aprovou junto ao Banco Mundial novos empréstimos, a juros de mercado internacional, com a finalidade de viabilizar mais duas etapas do Crédito Fundiário no Brasil.

...se efetivamente executadas, o programa seria concluído apenas em 2012 – portanto teria uma década de duração – e financiaria a compra de terras por 250 mil famílias. (PEREIRA, 2004, p. 209)

Este contexto me obriga a resgatar a defesa do Santos (2002) do contrato social da modernidade.

A incorporação deste mecanismo liberal de redistribuição de terras, evidencia a força de cooptação da política, do conhecimento científico, e até mesmo de parcelas da sociedade em uma dada nação pelo capital.

Indubitavelmente, a adesão do governo Lula e de importantes movimentos sociais brasileiros como a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) e da Federação dos Agricultores da Agricultura Familiar – Brasil (FETRAF – Brasil) a este tipo de mecanismo, representa uma derrota aos intelectuais (BOURDIEU, 2001), aos movimentos sociais anti-globalização e contra as políticas do Banco Mundial.

Neste governo, sob o discurso de que a reforma agrária é um mecanismo complementar de (uma suposta) distribuição de terras o Estado brasileiro assume a sua minimização ao aceitar e promover a desfederalização da reforma agrária. Contudo, esta opção reside na contramão da distribuição da riqueza.

O consenso de que o mecanismo de reforma agrária de mercado é eficaz na distribuição de riqueza e pacificação do campo é facilmente contestado ao olharmos o quantitativo recorde de ocupações no ano de 2004.

As ocupações de terras (organizadas pelo MST, MPA, Via Campesina e outros movimentos sociais) continuam como principal acesso à terra para campesinato brasileiro e denunciam a permanência do latifúndio improdutivo no Brasil.

A centralidade da reforma agrária não deve residir no mercado porque o mercado é um território do capital. E neste território não há espaço para a reprodução do campesinato, apenas há espaço para a reprodução do capital.

A luta por terras situa-se no bojo da luta de classes, é o principal mecanismo de acesso e permanência dos camponeses na terra, no Brasil contemporâneo. A figura de linguagem Crise do Contrato Social da Modernidade, no caso da reflexão aqui desenvolvida, materializa-se no impasse criado pela reforma agrária de mercado quando contribui para agravar a questão agrária, assim como sua permanência no atual governo, que contrariando suas ações se auto-intitula popular.

Portanto, enquanto o campo estiver marcado pela desigualdade social e pelo latifúndio, e este se mantiver concentrando também o território econômico e político, é fundamental compreender o

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campesinato como uma classe social (THOMPSON, 2001) que tem resistido historicamente, sob diferentes formas (assentados, posseiros, rendeiros, etc) à sua destruição.

Compreender o campo a partir da ótica do campesinato é vislumbrar o futuro como uma possibilidade de superação. 5. Referências bibliográficas. ABRAMOVAY, R. Paradigmas do capitalismo agrário em questão. 2 ed. São Paulo/Campinas: Hucitec/Editora da Unicamp, 1998. BOURDIEU, P. Por um conhecimento engajado. In: Contrafogos II: por um movimento social europeu. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. FELICIANO, C. A. O movimento camponês rebelde no governo FHC. In: Anais..., 2003, São Paulo, O campo no século XXI: território de vida de luta e de construção da justiça social. São Paulo: USP, FFLCH, DGEO, Laboratório de Geografia Agrária, 2003, p. 1-15. FERNANDES, B.M.; LEAL, G.M. Contribuições teóricas para a pesquisa em geografia agrária. 2002, Disponível em: <http://www.abrareformaagraria. org.br/artigo132.doc> Acesso em 04 de abr. 2004. _______. Questão agrária, pesquisa e MST. São Paulo, Cortez, 2001. LOPES, E. S. A. Comentário sobre a “Nova Reforma Agrária” do governo FHC. Candeeiro, Aracaju, ano 2, v.3, p.12-17, outubro de 1999. MARQUES, M. I. M. A atualidade do conceito de Camponês. In: Anais..., 2002, João Pessoa, Por uma Geografia Nova na construção do Brasil. João Pessoa: AGB, 2002, p. 1-9. MARTINS. M. D. (org.). O Banco Mundial e a Terra: ofensiva e resisitência na América Latina, África e Ásia. São Paulo: Viramundo, 2004. MARTINS, J. de S. Reforma agrária: o impossível diálogo. São Paulo: Edusp, 2000a. _____Os camponeses e a política no Brasil: as lutas sociais no campo e seu lugar no processo político . 5 ed. Petrópolis: Vozes, 1995. _____Expropriação e violência: a questão política no campo. 3 ed. São Paulo: Hucitec, 1991. MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO. Banco da Terra. Disponível em:< http://www.bancodaterra.gov.br/bt1.htm#bt1> Acesso em: 29 mar. 2002. MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO. (2003 – 2006). Plano nacional de reforma agrária: paz, produção e qualidade de vida no meio rural. Brasília: Nov. 2003. NAVARRO, Z. O projeto-piloto “Cédula da Terra” – comentário sobre as condiçoes sociais e político-institucionais de seu desenvolvimento recente. 1998, Disponível em: <http:// www.nead.org.br> Acesso em: 04 de abr. 2004. OLIVEIRA, A. U. de. Barbárie e modernidade: o agronegócio e as transformações no campo. In: Agricultura brasileira: tendência, pespectivas e correlação de forças sociais. Brasília: Via Campesina, 2004. (Caderno de formação). PAUGAM, S. O debate em torno de um conceito: pobreza, exclusão e desqualificação social. In: VÉRAS, M. B., SPOSATI, A. e KOWARICK, L. Por uma sociologia da exclusão social: o debate com Serge Paugam. São Paulo: EDUC, 1999, p. 115-133. PEREIRA, J. M. M. O modelo de reforma agrária de mercado do Banco Mundial em questão: o debate internacional e o caso brasileiro. Teoria, luta política e balanço de resultados. Rio de Janeiro, 2004. 282. Dissertação. (Mestrado em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade) – Curso de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. RAMOS FILHO, E. da S. “Pra não fazer do cidadão pacato um cidadão revoltado”: MST e novas territorialidades na Usina Santa Clara. Aracaju, 2002. 162 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Núcleo de Pós Graduação em Geografia, Universidade Federal de Sergipe, Aracaju. ROSSET, P. O bom, o mal e o feio: a política fundiária do Banco Mundial. In: MARTINS. M. D. (org.). O Banco Mundial e a Terra: ofensiva e resistência na América Latina, África e Ásia. São Paulo: Viramundo, 2004, p.16-24.

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O MST E A FORMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA DE CLASSE TRABALHADORA: IDEOLOGIA127 POLÍTICA OU REALIDADE CAMPONESA*?

Rosemeire Aparecida de ALMEIDA **

Resumo: Este artigo analisa o desencontro existente entre a prática do MST e a teoria interpretativa desta prática. Dito de outra maneira, como a influência de intelectuais, como Moraes (1986), na interpretação da prática do MST produziu teorias que acabaram por negar os sujeitos da luta, ou seja, a condição de classe sui generis do campesinato. Na verdade, o estranhamento não é entre base e liderança, mas, sim, da prática com a teoria da prática que é produzida pelos intelectuais que, de diferentes maneiras, caminham com o MST. É essa teoria que tem dado características de Organização ao Movimento Social e tem feito do sonho camponês da terra de trabalho, a luta pela transformação do capitalismo.

Palavras chave: MST; Classe Camponesa; Teoria-Prática.

Resumen: Este artículo analisa el desencuentro existente entre la práctica del MST (Movimento Sem Terra) y la teoría interpretativa de esta práctica. Dicho de otra manera, como la influencia de intelectuales, como Moraes (1986), en la interpretación de la práctica del MST que acabaron por desdecir los sujetos de la lucha, o sea la condición de clase sui generis del campesinato. En realidad, el raro no es entre base y lideranza, sigo que de la práctica con la teoría de la práctica que es producida por los intelectuales que, de diferentes maneras caminan con el MST. Es esa teoría que ha dado características de organización al Movimientos sociales y ha hecho del sueño campesino de la tierra de trabajo, la lucha por la transformación del capitalismo. Palabras-llaves: MST; Clase Campesina; Teoría-Práctica. 1. Introdução.

[...] os intelectuais sonham amiúde com uma classe que seja como uma motocicleta cujo assento esteja vazio. Saltando sobre ele, assumem a direção, pois têm a verdadeira teoria. Esta é uma ilusão característica, é a “falsa consciência” da burguesia intelectual. Mas quando semelhantes conceitos dominam a inteira intelligentsia, podemos falar em “falsa consciência”? Ao contrário, tais conceitos terminam por ser muito cômodos para ela. (THOMPSON, 1998, p. 106)

Neste artigo o interesse em discutir a “formação da consciência política” e seu processo subjacente, de “elevar o nível de consciência da massa”, ou melhor, o que vem a ser isso, advém da importância que essa reflexão tem nos escritos do MST e na forma como esta discussão intervém nos (des)caminhos dos sem terra de modo mais amplo.

Acreditamos que a discussão que cerca o processo de formação da consciência dos sem terra do MST faz parte de uma prática de distinção mais apurada, mais elaborada, que faz do boné, da bandeira, das músicas e palavras de ordem o suporte visível. Na verdade, é uma classificação que se

127 De acordo com Chauí (1994a), o discurso ideológico procura ocultar o real pela confusão entre o pensar, o dizer e o ser. Contudo, como mostra Löwy (2002), essa concepção marxista do termo em que ideologia tem uma conotação pejorativa não é a única existente “Para Lênin, existe uma ideologia burguesa e uma ideologia proletária. [...] Ideologia deixa de ter o sentido crítico, pejorativo, negativo, que tem em Marx, e passa a designar simplesmente qualquer doutrina sobre a realidade social que tenha vínculo com uma posição de classe” (p.12). Cumpre destacar que o uso do termo ideologia para o MST aproxima-se desta concepção leninista, logo, nos seus escritos, o emprego recorrente de expressões como: “concepção político-ideológica do Movimento” ou “ideologia do Movimento”. Entretanto, para nós, “A definição de ideologia [...] como uma forma de pensamento orientada para a reprodução da ordem estabelecida nos parece a mais apropriada porque ela conserva a dimensão crítica que o termo tinha em sua origem (Marx)”. (LÖWY, 1987, p. 11) * Artigo publicado em 2005 (n.12 v.1), e representa parte da Tese intitulada “Identidade, Distinção e Territorialização: o processo de (re)criação camponesa no Mato Grosso do Sul”, defendida junto ao Programa de Pós Graduação em Geografia da FCT/UNESP de Presidente Prudente em 2003. ** Professora Adjunto do curso de Geografia - DCH/CPTL/UFMS. E-mail [email protected] . Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia de Presidente Prudente.

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ALMEIDA, R. A. O MST e a formação da consciência de classe trabalhadora: ideologia política ou realidade camponesa?

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constrói na perspectiva de dar um sentido de classe para si aos sem terra. A questão, então, é discutirmos com qual pressuposto de classe a teoria do Movimento128 trabalha.

A análise da produção teórica do e para o MST129 é, a nosso ver, reveladora do obstinado empenho de trazer os camponeses para uma ideologia política da classe trabalhadora com vistas à transformação da sociedade130. Por que falarmos em ideologia política? Porque, caso seja verdade, mesmo que de forma parcial essa afirmativa, todo o esforço da transição com vistas a classe para si é equivocado por ignorar a visão de mundo do campesinato, por imputar-lhe um ideário político de classe que não corresponde à sua realidade de classe.

2. A prática do MST e a teoria interpretativa desta prática.

Voltando no tempo a análise da produção teórica do MST, podemos dizer que a primeira fase é representada por Clodomir de Moraes, que elaborou um verdadeiro manual dessa ideologia missionária, em 1986, no qual enumerou os vícios do campesinato e sua defasagem em relação ao operariado. Embora o próprio Movimento considere parte de suas idéias superadas pelo radicalismo contido, principalmente na metodologia do chamado “Laboratório Experimental”, ainda encontramos comumente, nas explicações sobre o fracasso dos grupos coletivos nos assentamentos, a alusão aos vícios do campesinato como o responsável pelo insucesso, fato que podemos perceber na fala de Ferrari131.

É difícil pra cabeça do camponês essa discussão que o Movimento puxa da questão do coletivo. Quando você pega essa questão do trabalho coletivo é pior que tudo, pior porque ele vem de uma história de individualismo, que ele faz tudo sozinho, ele domina a produção e toda a cadeia de produção lá no sítio dele. E tem uma outra coisa que é da própria sociedade, ela acaba meio que formando uma cultura, impondo sobre as pessoas que você não pode confiar em ninguém, você não pode acreditar em ninguém, é você e você. Então veja só, na cabeça do camponês que sai lá de uma origem individualista e essa coisa toda [de coletivo] ele não entende, ele não consegue fazer essa ligação da terra com o projeto. Pegar o dinheiro, por exemplo, e botar em comum para que alguém coordene e aplique. Olha só então, tem alguns bloqueios o camponês.

Passada essa fase mais contundente de ojeriza e de negação do campesinato, nota-se um novo

momento na produção teórica do MST, o de reconhecimento e “tolerância” com relação ao camponês. Contudo, este camponês aparece como fração de classe e, assim, fala-se em camponês, nunca em classe camponesa. Desse modo, o campesinato passa a ser entendido como fração da classe trabalhadora, o que na essência não muda muito o papel clássico dado a ele pelos intérpretes de Marx, o seu desaparecimento enquanto classe camponesa132. 128Agora, ao tratar das contradições Movimento/organização, não estaremos nos referindo ao Movimento como um todo, mas aos desencontros da prática coma teoria da prática, ou seja, dos desencontros entre a base, a liderança e os assessores. No entanto, nem sempre é possível fazer a identificação do interlocutor porque muitos textos aparecem tendo como referência de autoria o MST. Por esta razão, em certos momentos de nossa análise, somos levados à atribuir ao Movimento como um todo a responsabilidade pela teoria. 129Objetivando fazer a crítica ao pesquisador que em nome da imparcialidade não assume nenhum compromisso com o objeto de estudo e, por conseguinte, com os resultados da pesquisa, Fernandes (2001, p. 17), sugere o termo pesquisador-militante para identificar aqueles que, ao contrário dos primeiros, têm compromisso com a realidade estudada. Portanto, para o pesquisador-militante, “a ciência tem como significado a perspectiva da transformação das realidades estudadas, bem como da sociedade. Desse modo, há um intenso compromisso com as pessoas que são os sujeitos de seu objeto de pesquisa [...]”. Nessa perspectiva, os teóricos do MST, dentre eles Fernandes, seriam pesquisador-militantes. 130 Acreditamos que essa premissa, embora tenha sido mais acentuada no primeiro período, ainda é válida para o momento atual, na medida em que o Movimento, apesar de reconhecer a especificidade camponesa, continua a negar-lhe o status de classe camponesa, como veremos nas discussões que se seguem. Ainda neste sentido, vale destacar que uma das tarefas do SCA-MST é desenvolver uma consciência nacional a partir dos interesses da classe trabalhadora: “Precisamos desenvolver a consciência de nação e de pátria a partir dos interesses da classe trabalhadora” (MST, 1998a, p. 18). 131 Liderança estadual do MST/MS, presidente da COOPRESUL e assentado no grupo coletivo do projeto Sul Bonito, em Itaquiraí-MS, 2000. 132 Caldart (2000), por exemplo, ao propor que a história da formação do Sem Terra produz uma pedagogia, um modo de produzir gente, um novo sujeito social que tem na dimensão cultural sua principal dinâmica, sua identidade, fala num novo sujeito social, uma forma nova de campesinato, um “novo estrato da classe trabalhadora”. O que fica evidenciado na análise de Caldart é que sua pertinente e engajada interpretação da identidade Sem Terra acaba não cumprindo o papel de expor esse novo sujeito social, sua real diferenciação – que é de ação, de experiência, de consciência, de utopia, limitando-o a uma nova fração da classe trabalhadora, retirando dele a sua contemporaneidade, a sua contradição de classe camponesa. No entanto, se discordamos em parte de sua análise, por outro lado, acreditamos, assim como a autora, que “os sem-terra não surgiram como sujeitos prontos [...] Sua gênese é anterior ao movimento e sua constituição é um processo que continua se desenvolvendo ainda hoje [...]. (p. 63).

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Quando afirmamos que, nos anos de 1990, houve uma tolerância maior por parte do Movimento acerca do comportamento do campesinato, isso significa dizer que houve uma flexibilização quanto à forma de se chegar à sua “conscientização política”. Situação que fica exemplificada na “lição” apresentada por Bogo:

[...] Pregar o coletivismo pelo simples fato de que é a propriedade social da terra que fará o avanço da consciência e do caráter da ideologia dos camponeses não é correto, se as condições para o desenvolvimento não estão criadas e se há resistências por parte dos camponeses à organização do trabalho coletivo. Buscam-se, neste caso, passos intermediários que levem ao objetivo desejado por caminhos menos conflituosos, e que garantam a unidade interna da comunidade e organização. (BOGO, 1999, p. 138, grifo nosso)

Bogo (1999) ao falar em “passos intermediários”, evidencia que a obstinada tarefa de fazer

avançar a consciência do campesinato não foi abandonada, na verdade, o que ocorre é a opção por um caminho menos conflituoso133.

O final dos anos 1990, como parte desta “tolerância” em relação ao campesinato, assiste a uma significativa mudança em relação ao entendimento da matriz produtiva do camponês134. Todavia, se parece haver uma aceitação da singularidade, no marco do comportamento econômico do campesinato, por outro lado, em termos do debate político e do papel de classe destes sujeitos, não se observa avanço135, uma vez que o campesinato é entendido como uma parte da classe trabalhadora. Situação que, no limite, produz uma interpretação frágil da realidade camponesa.

Esse paradoxo não resolvido, o da negação da diferença de classe do campesinato e recente valorização do habitus

136 econômico do camponês, pode ser depreendido através da recente discussão das “comunidades de resistência137”, quando a contradição do imbricamento Movimento-organização aparece na fala dos militantes, na medida que, ora eles denunciam a conhecida concepção dos vícios do campesinato e da necessidade de superá-los por meio da formação da consciência político-organizativa, ora destacam a retomada dos valores do homem do campo centrados na família, trabalho, terra, comunidade e religião. Neste sentido, o relato de Santos138 é revelador:

Nós estamos mudando hoje as nossas táticas de recuperação de alimentos, de matar boi, porque a gente percebeu que essa tática esta furada porque não nos trás o apoio da sociedade. A forma como a gente trabalha

133 É, talvez, esta lógica da tolerância que explique a contradição presente nos escritos do Movimento quando, ao destacar o respeito pelas manifestações culturais do povo, em seguida, enfatiza a necessidade de superação “[...] deve-se compreender e respeitar as manifestações culturais que estão no dia-a-dia do povo, em seus hábitos, em seus costumes, em suas tradições. E através deles, apreender e depois superá-los” (MST, 2001, p. 119, grifo nosso). 134 Quando afirmamos que no final da década de 1990 houve uma (re)interpretação da prática produtiva do camponês no sentido da valorização da chamada economia familiar, expressa sobretudo na teoria das comunidades de resistência, temos como referência a postura expressa no início da década de 1990 que insistia no necessário desenvolvimento das forças produtivas e, portanto, na opção pelo processo de modernização dos assentamentos, como evidencia Stédile (1990): “De vez em quando nós temos atritos com alguns agrônomos e com alguns setores da Igreja mais basistas, que ainda confundem desenvolvimento com capitalismo. [...] Nós optamos e defendemos por desenvolver ao máximo o processo de mecanização, de tecnologia e da agroindústria. Se pudermos comprar o último modelo de trator, nós compramos. [...] É a única maneira de se desenvolver enquanto assentamento e se colocar como uma contraposição ao modelo da burguesia. Mesmo o processo de produção integrada é possível. [...] A diferença é que o resultado do frango fica para nós [...]”. (p. 08) 135 Segundo Stédile o termo camponês sempre foi elitizado, expressão que teve seu uso restrito ao espaço da academia, sem possuir, portanto, muito lastro entre os trabalhadores rurais. Desse modo, não faria sentido, por carecer de legitimação, usá-lo para representar o Movimento Sem Terra (STÉDILE; FERNANDES, 1999). Esta argumentação de Stédile deixa, no mínimo, dúvidas históricas, visto que, em 1950, as Ligas Camponesas tiveram ampla aceitação no campo nordestino. E, mais, embora o conceito de camponês tenha sido importado pelo partido comunista na década de 1950, o seu uso ainda hoje no Brasil se explica pelo efeito de unidade que carrega, ou seja, é o único capaz de dar visibilidade à classe, ao contrário de trabalhador que é genérico. Por outro lado, não podemos esquecer que falar em classe camponesa é apenas uma estenografia conceitual, porque é no trabalho empírico que demonstramos e definimos quem são os camponeses. Lembramos também que o mesmo vale para o proletário, ou seja, nossos trabalhadores urbanos dificilmente se identificam como proletariado, trata-se também de uma estenografia conceitual. 136O conceito de habitus segundo Pierre Bourdieu “O poder simbólico”, 2000. 137 As comunidades de resistência são para Carvalho (2000) a possibilidade de recuperação da autonomia do pequeno produtor rural familiar (fração de classe social) por meio da produção de sua subsistência, bem como da reativação dos laços culturais baseadas nas relações comunitárias. Nas palavras do autor; “As comunidades de resistência poderão tornar-se um meio para a retomada da identidade cultural do pequeno produtor rural familiar, alicerce para qualquer ação de rompimento da tendência à anomia para a qual caminha essa fração de classe social. Os núcleos de base dos assentamentos de reforma agrária e daquelas comunidades sob a hegemonia do MPA poderão iniciar essa mobilização político – ideológica de resgate da identidade cultural da pequena propriedade rural familiar” (CARVALHO, 2000, p. 03, grifo nosso). 138 Liderança do setor de educação do MST/MS. Assentada no projeto Andalúcia/Nioaque-MS. Nov/2000.

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é difícil para o camponês, ele é um pouco acomodado. A gente percebe assim que temos uma dificuldade de fazer ele ter uma consciência organizativa, você consegue criar uma consciência crítica nele, de você mostrar o problema e ver, ele consegue ser crítico. Ele critica o governo e tudo mais, mas na hora de mostrar que tem que se organizar pra mudar a situação ai nós não consegue dar esse passo junto com eles. Na produção é a mesma coisa, a gente não pode ficar plantando só o algodão e criando umas vaquinhas, nós temos que ter linha de produção definida, nós temos que pensar grande, só assim a gente consegue avançar. Esta é uma das coisas que eu vejo assim que é onde as pessoas acabam se afastando, não enfrenta. Uma outra coisa que a gente esta levando minimamente seria a questão da saúde, da saúde preventiva, de voltar a usar as ervas medicinais, de voltar a ter prevenção. Então, essa é uma das coisas que a gente está trabalhando, a farmácia viva, as plantas medicinais e a prevenção, outra coisa é essa questão de produzir alimentos que possa garantir a sobrevivência no lote.

É, portanto, neste cenário onde o camponês não tem lugar político, econômico, social e cultural

assegurado pela sua singularidade de classe e condição que a discussão de uma “Revolução Cultural” é inserida pelo MST como alternativa de superação da crise do cooperativismo que, em “função de um desvio economicista, teria gerado aspirações pequeno burguesas de acumulação no seio da base assentada” (CARVALHO, 2000, p. 05).

Portanto, a tarefa da “Revolução Cultural” é construir “um homem novo eivado de valores éticos, sociais que reafirmassem a solidariedade e a convivência social democrática”.

A cooperação desenvolvida nos assentamentos de reforma agrária teve como propósito não apenas viabilizar economicamente a pequena produção rural familiar, mas, sobretudo, construir um homem novo eivado de valores éticos e sociais que reafirmassem a solidariedade e a convivência social democrática. Entretanto, talvez a partir de um desvio economicista, o cooperativismo (principal produto da cooperação) pode ter contribuído para gerar um produtor com aspirações pequeno burguesas de acumulações a partir de uma suposta inserção no mercado capitalista oligopolizado de produtos agropecuários. (CARVALHO, 2000, p. 05, grifo nosso)

Entrementes, embora considere outros aspectos das relações sociais que não apenas o

econômico, a referida “Revolução Cultural” não supera na essência a fase anterior, a dos Laboratórios Experimentais, de Clodomir de Moraes, porque contém o germe do preconceito com referência ao modo de vida camponês, conforme se verifica na fala de Bogo (2001) quando invoca a ciência no campo como meio de libertar o camponês da ignorância: “Nós precisamos fazer o que está sendo feito aqui, discutir a Reforma Agrária e levar a ciência para o campo. Nós não podemos acreditar que a ignorância leve a gente à libertação”. Perdendo com isso a possibilidade de desvendar o habitus de classe do campesinato e, conseqüentemente, a potencialidade contida nele.

Nós acreditamos que a reforma agrária é mais do que isso que está sendo feito porque nós precisamos fazer uma coisa que no movimento [MST] a gente discute muito, nós precisamos fazer uma revolução cultural e não só uma reforma agrária. Temos que fazer uma revolução na cultura, no jeito de se pensar as coisas, de fazer as coisas, de desenvolver as atividades. Nós precisamos fazer uma junção da força dos braços com a força da cabeça, o camponês não pode acreditar que ele só tem braços pra trabalhar porque ele recebeu uma cabeça que não é só pra levar chapéu e carregar os olhos pra ver onde tem cobra pra não pisar em cima. Nós precisamos acreditar que é possível colocar na nossa memória idéias que sejam resgate de velhas idéias e complemento com idéias novas. Nós precisamos fazer o que está sendo feito aqui, discutir a reforma agrária e levar a ciência para o campo. Nós não podemos acreditar que a ignorância leve a gente à libertação; então quando a gente pressiona o governo e diz que um médico tem que ser assentado junto com um sem-terra, que um advogado tem que ser assentado junto com um sem-terra, o agrônomo, o economista, administrador de empresas tem que ser assentado, o governo diz que não, que está fora dos critérios de assentamento. Ora ele quer que a gente faça uma reforma agrária de quê?. (BOGO139, 2001)

Ainda neste sentido, a “Revolução Cultural” almejada pelo Movimento é compreendida como o

primeiro passo para a construção de um “camponês de novo tipo”, aquele que é capaz de resistir aos aspectos alienantes da cultura camponesa, bem como aos aspectos ingênuos que prejudicam a formação da consciência política. Partindo do pressuposto de que ele possui um estilo de vida mais afeto ao isolamento, à relação intrínseca com a natureza, ele tenderia a desenvolver uma explicação mistificada da vida, daí oriunda a necessidade de uma ação política programada visando retirá-lo desse ostracismo. No

139 BOGO, Ademar. Seminário realizado em Maringá/PR, em 18/07/01. (Transcrição ad literam retirada da gravação da palestra).

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texto intitulado “A formação ideológica dos camponeses”, Bogo é taxativo a respeito das dificuldades do camponês em função de sua “natureza complexa-ingênua”.

[...] mas a cultura camponesa produzida através das relações, mais com a natureza do que com as pessoas, vem assumir características muito particulares que estão vinculadas ao mito, à superstição, à tradição, à contemplação e ao raciocínio associativo, caracterizando assim a formação do caráter do camponês através de aspectos espontâneos. Ao contrário do operário que estabelece relações de produção através da programação do trabalho. Desta forma é que se deve estabelecer uma relação no processo de formação política, que “transforme essa natureza” complexa-ingênua, em uma natureza “descomplexa”, “desmitificada”, a partir de novos referenciais e padrões de vida e de convivência. Isto somente será possível através de uma organização política e social que atue, conscientemente, sobre a realidade humana, social e natural. (BOGO, 1998, p. 05, grifo nosso)

É por isso que freqüentemente a interpretação da conquista da propriedade da terra, por exemplo,

apresenta-se como limitadora da consciência camponesa, como depreendemos nos escritos de Bogo.

Sabemos que a propriedade privada da terra é um fator determinante que facilita e empurra os camponeses para o isolamento. Isto é prejudicial para a formação da consciência de classes. (BOGO, 1999, p. 137)

Em outros momentos, o trabalho coletivo, a divisão de tarefas e a cooperação agrícola são

apregoados como o caminho de superação do individualismo camponês e, por conseguinte, de elevação do nível de consciência. Assim, acredita-se que a participação nestas atividades coletivas...

[...] contribuirá para que o individuo dê os primeiros passos na formação de uma nova consciência social a partir da prática de novos hábitos e valores e, posteriormente, através da organicidade e de sua própria participação, adquira a consciência política, fazendo com que se empenhe, agora não mais para transformar os aspectos da realidade que o cerca, mas de toda a realidade que concentra injustiças e opressões dos seres humanos. (BOGO, 1999, p. 137-138)

Essas proposições acerca da tarefa de formar ou elevar a consciência do campesinato nos

remete às seguintes indagações: quem são os camponeses? Quais são suas particularidades em termos de classe social? Teriam os camponeses e os operários o mesmo lugar e as mesmas possibilidades de consciência do processo de desenvolvimento do capital?

Inicialmente, colocamos que nosso pressuposto explicativo do descompasso, ou melhor, do desencontro da teoria de organização social em relação à prática de movimento social do MST, se faz em virtude de uma confusão entre as possibilidades históricas da classe operária e da classe camponesa, ou melhor, uma tendência em incutir no campesinato, por meio da teoria da organização social, uma consciência política típica do operariado. Por que falarmos na construção de uma teoria de organização social? A resposta vem das próprias preocupações das lideranças do MST que, a partir de 1986, passaram a defender a construção de princípios organizativos como forma de continuidade do movimento de massas. Deste modo, em 1995, os textos do MST, já com mais clareza, começam a discutir a estratégia de luta enquanto movimento social e organização social:

Não podemos criar uma estrutura burocratizada que atrapalhe o movimento de massas. [...] Mas não podemos deixar tudo solto pois a falta de organização transformaria o MST em apenas um movimento agitador, mobilizador que atenderia apenas necessidades imediatas. [...] o futuro da reforma agrária e da luta pela terra, depende de construirmos uma organização duradoura [...]. (MST, 1995, p. 08)

Como desdobramento dessa premissa, ou seja, da necessidade de ser uma organização com

característica “popular, sindical e política” e, portanto, perene, nasceram, segundo Stédile; Fernandes (1999), os seguintes princípios organizativos: direção coletiva; divisão de tarefas; disciplina; estudo; formação de quadros; luta de massas; e, vinculação com a base. É interessante resgatar que essa polêmica sobre a questão de ser ou não um movimento social é um fato que comparece com freqüência nos escritos do MST, tanto que Stédile; Fernandes (1999, p. 44) não se furtaram de tratar a problemática na perspectiva de admitir que as referências que temos de movimento social são insuficientes para pensar o MST:

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Acredito que quando o professor José de Souza Martins diz que nos transformamos num ‘partido’ camponês, embora discorde da expressão, acho que ele pode estar influenciado pelo fato de que, como movimento social, aplicamos esses princípios organizativos. Na minha opinião esses princípios não tem natureza partidária. Têm natureza de organização social. Talvez aí sim coubesse uma polêmica: até que ponto o MST deixou de ser apenas um movimento social de massas para ser também uma organização social e política. No fundo queremos ser mais que um movimento de massas. [...].

Entretanto, entendemos que a questão não se resume na leitura que pode ser entendida como

maquineísta do tipo movimento social versus organização social, mas nas conseqüências do desencontro da prática de movimento social que tem como cerne a luta pela terra e da teoria de organização social que tem como centro a luta pela transformação social140. Logo, esta questão é ambígua, porque ela não comparece de forma estanque, na verdade, há momentos de imbricamento dessas lógicas, o que impede leituras dicotômicas como a apresentada por Navarro (2002a, p. 195) que assim adverte quando faz análise do MST:

O foco central deste capítulo dirige-se, quase exclusivamente, à organização e seu corpo diretivo, sua história, estratégias de ação e seu repertório de escolhas e decisões ao longo do período analisado, mas não aos sem-terra sob sua órbita, inclusive porque, como se argumentará, muitas vezes é significativa a distância entre a base social e a agenda discursiva e as formas de ação social escolhidas pela direção [...]. (Grifo nosso)

Por conseguinte, a existência desta ambigüidade e os momentos de reconhecimento por parte

do MST, ao contrário do que concebe Navarro (2002) ao discutir a problemática como se ela fosse totalmente estranha ao Movimento, é a responsável pela produção de tensões na própria base de sustentação do MST, como há tempos já se anunciava: “Ainda não conseguimos superar a contradição entre promover o desenvolvimento econômico dos nossos assentamentos e contribuir no avanço da luta do MST pela Reforma Agrária” (MST, 1993b, p. 50).

A existência deste conflito no seio do Movimento fortalece a idéia de que o MST tem uma estrutura descentralizada141, concepção inversa, portanto, à de Navarro (2002a) que entende o MST como uma cúpula que dita e controla a massa.

Por outro lado, isso não descarta a preocupação e a necessidade da crítica, principalmente porque, embora o Movimento afirme a constância do conflito: “Sempre haverá uma tensão (contradição) entre as duas faces do SCA142: fazer a luta política e ser uma empresa econômica”. (MST, 1998a, p. 12), tem havido uma certa predominância da face da empresa econômica, ou melhor, da sua teoria que, na essência, faz a negação política dos sujeitos da luta, ou seja, da sua utopia da terra prometida como morada da vida143.

A lógica da empresa econômica, produto da teoria da organização social, não considera o projeto camponês centrado na família, no trabalho e na terra e na sua potencialidade anticapitalista, porque acredita que “Os assentamentos devem buscar uma cooperação que traga desenvolvimento econômico e social, desenvolvendo valores humanistas e socialistas. A cooperação que buscamos deve estar vinculada a um projeto estratégico, que vise a mudança da sociedade”(MST, 1998a, p. 22).

Concepção inquietante, porque não é nova, é reiterada, daí a idéia de que ela tem predominado, visto que já foi apresentada em 1991, quando lideranças do MST escrevem que a cooperativa:

Quando organizada entre pequenos agricultores, pequenos proprietários ou assentados, pode ser um fator, não só de desenvolvimento econômico e social da comunidade, mas para enfrentar e diminuir os níveis de exploração que o pequeno agricultor sofre no modo de produção capitalista, e assentar as condições para o

140 Nesta direção, vale destacar a postura do SCA no tocante à sua missão político-ideológica: “Nós do MST/SCA entendemos que a cooperação agrícola, sem dúvidas vai contribuir para o desenvolvimento das forças produtivas na tarefa de acumularmos forças, tanto econômica como política, para a luta pela transformação da sociedade que, só assim vamos buscar resolver os problemas econômicos, políticos e sociais do conjunto da classe trabalhadora”. (MST, 1994, p.73) 141 Neste sentido, destacamos a entrevista do prof. Ariovaldo Umbelino de Oliveira no jornal “O Estado de São Paulo”. http://www.estado.com.br/editoriais/2003/03/09/pol017.html 142 Tendo em vista os últimos acontecimentos, como a decisão por parte do MST de retirar de pauta o Sistema Cooperativista dos Assentados (SCA) substituindo-o pelo Setor de Produção, Cooperação e Meio Ambiente, podemos deduzir a proporção do conflito entre essas diferentes lógicas (luta pela terra e luta na terra) e, mais, a inversão do até então predomínio da lógica da empresa econômica (luta na terra). 143 Paráfrase de B. Heredia “A morada da vida”, 1979.

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desenvolvimento de formas superiores de produção socialista, que advirão no modo de produção socialista, quando a classe trabalhadora tiver sob seu controle o Estado e as leis do país. (GÖRGEN; STEDILE (org.), 1991, p. 147, grifo nosso)

No entanto, insistimos que essa predominância da teoria da organização social à qual nos

referimos não pode ser concebida como absoluta, algo que não produz seu contrário enquanto condição do que é ambíguo, já que, nos assentamentos, como se discute no capítulo seguinte, tem prevalecido a utopia do movimento social, da luta pela terra de trabalho, que muitas vezes se dá, não como negação do MST, mas como afirmação da força daqueles que são efetivamente o MST.

Neste sentido, não podemos minimizar o impacto que essa situação traz para o futuro do MST, ou melhor, para a classe camponesa, porque ela anuncia uma discrepância em relação à prática e à teoria interpretativa de sua própria prática ou, nas palavras de Martins, “a prática que eles têm é mais rica do que o entendimento que eles têm da sua prática” (2000c, p. 22).

É também no sentido de dar visibilidade a esta deformação da esquerda brasileira e, portanto, da assessoria que presta aos movimentos sociais que lutam por terra, que Martins (2000b, p. 159) escreve:

Em nossa tradição de esquerda, que é muito frágil, difundiu-se a suposição equivocada, e nem um pouco marxista, de que só o operário faz a História e de que a fábrica é o cenário privilegiado da ação operária e da revolução. A consciência verdadeira seria, assim, a consciência operária. Isso é relativamente verdadeiro só em termos filosóficos. [...] Mas o próprio Marx já havia demonstrado, cientificamente, que há uma enorme distância entre o sujeito filosófico e o sujeito da revolução. Por quê? Porque entre um e outro se interpõem as mediações [...].

Atualmente são muitos os Movimentos e centrais sindicais envolvidas na luta pela terra no

Brasil, no entanto, é mister ressaltar que principalmente no acampamento as distinções são marcantes, isto é, de acordo com o Movimento ou Sindicato o acampamento terá conteúdo e significado diferente, embora a forma seja a mesma. O relato que transcrevemos a seguir, da liderança do MST, aponta para o significado do acampamento para o Movimento/organização:

O acampamento não deve ficar parado, é igual água quando fica parada, muito parada, você sabe o que é que vira, né? Então não pode ficar muito tempo sem ser assentado, mas também tem que ter um período, uma espécie de laboratório onde pudesse trabalhar o processo organizativo, da conscientização, da valorização do ser humano, dos objetivos, das estratégias do MST que é conquistar a Reforma Agrária, a transformação social. (BATISTA144)

O resultado desta diferenciação de conteúdo é o fato de que não há acampamentos mistos, ou

seja, não foi encontrado, nem relatado, nenhuma experiência de acampamento que mantenha, no plano interno, sem-terra ligados a mais de um movimento ou organização, há evidentemente um controle territorial, uma relação de poder diretamente relacionada com o território e que tem na distinção, na hierarquia, seu marco. Esclarecedor desta realidade é o depoimento do Sr. Paula145.

O MST não tem restrição a nenhuma organização, ele quer conversar com todas, estamos abertos a qualquer debate no sentido de avançar. Mas no acampamento não há possibilidade de ter mais de uma organização, quando isso acontece vem o racha, cada grupo vai para um lado, não é possível mais de uma liderança.

Portanto, o acampamento expressa o lugar do poder e da luta pelo poder. Poder no sentido de

legitimidade, de crença naqueles que o representam, situação que é produzida no campo, leia-se, no acampamento a partir de condições sociais específicas. Logo, a separação dos acampamentos é parte destas condições sociais de garantia do poder simbólico e de reafirmação da distinção, funcionando como proteção contra todo tipo de abalo do poder, ou melhor, da confiança que as interferências podem suscitar.

O acampamento do MST vale-se de uma tendência histórica de parte do campesinato, qual seja, viver na liminaridade e, por isso, nos momentos transitórios, criar communitas como forma de

144 Liderança – Direção estadual do MST – Dez/2001. 145 Militante – MST/Assentado no projeto São Luis - Dez/2001.

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luta e resistência, para engendrar um processo de “formação da consciência política” que tem, no trabalho coletivo, na divisão de tarefas, na formação das cooperativas o cenário por excelência. Contudo, por ser ideológico, ou seja, fruto de uma distinção imposta, embora fomentada muitas vezes desde os tempos do acampamento, não tem conseguido romper os limites da condição camponesa: o confronto da terra de trabalho (propriedade camponesa) versus a terra de negócio (propriedade capitalista).

Deste modo, no sentido de buscar a “formação da consciência”, a ocupação de terra tem para as lideranças do MST um conteúdo pedagógico que faz dela a principal forma de luta, aquela que prepara o sujeito para mudanças mais profundas: “as formas superiores de produção”. Para Caldart (2000), o processo educativo da ocupação tem três dimensões: a primeira é formar o sujeito para a contestação social; a segunda dimensão relaciona-se à formação da consciência de classe a partir do enfrentamento com o latifúndio; e, por fim, o reencontro com a vida, o desejo de enraizamento.

A ocupação pode ser considerada a essência do MST porque é com ela que se inicia a organização das pessoas para participar da luta pela terra (STÉDILE, 1997). Nela está contida o que talvez se possa chamar de matriz organizativa do MST e, por isto, se constitui também como uma matriz educativa das mais importantes. Começa pela construção do conceito de ocupar em oposição ao de invadir. (CALDART, 2000, p. 209, grifo da autora)

Quando anteriormente afirmamos que a ocupação e o acampamento são para o MST

momentos indissociáveis para a “formação da consciência”, estamos nos referindo à dimensão pedagógica da luta pela terra, isto é, ao objetivo de construir um novo homem eivado de valores humanitários e fortalecido na utopia da terra coletiva, anticapitalista, socialista.

Por conseguinte, na análise de Caldart (2000) acerca do acampamento, há um destaque importante para a solidariedade como cimento na construção de uma ética comunitária rumo a uma ética coletiva. Todavia, esse tipo de pressuposto revela uma concepção evolutiva da luta, ou seja, o acampamento seria um estágio, daí o caráter transitório, onde as pessoas devem evoluir para formas mais plenas de participação e atuação política.

Para a autora, ao contrário do que muitos afirmam, não é necessariamente a pobreza, a falta de opção que faz o sujeito participar do MST e fazer ocupações e acampamentos, mas, a escolha moral. Para tanto, propõe a seguinte reflexão:

[...] embora continue sendo verdade que o ser social determina a consciência (Marx), o processo histórico real nunca prescindiu de escolhas morais, afinal de contas as únicas capazes de formatar, em cada tempo e em cada espaço social, a própria luta de classes [...]. Participar do MST foi e continua sendo para cada trabalhador e trabalhadora sem-terra uma escolha, condicionada por uma circunstância social, esta sim, não escolhida. (CALDART, 2000, p. 40, grifo da autora)

Esta reflexão exposta por Caldart (2000) é uma tentativa de buscar uma ponte entre os

determinismos sociais e as escolhas do indivíduo, suas vontades, utopias e profecias. Segundo a autora, para que essas “escolhas” se tornem conscientes, perpétuas, é preciso um trabalho de formação das pessoas, tarefa do MST, no sentido de “ajudá-las a perceber conscientemente, a que pressionam as novas circunstâncias que criaram através da sua participação na luta, e na sua identificação como Sem Terra” (p. 40), cuja reflexão reforça o caráter educativo-evolutivo do acampamento como lugar de formação de pessoas conscientes.

Essa dimensão pedagógica é por Caldart (2000, p.116-119) resumida em cinco grandes aprendizagens, a saber:

- passagem de uma ética do indivíduo a uma ética comunitária que poderá se desdobrar em uma ética do coletivo.

- valorização como pessoa através da vivência em uma organização coletiva aprendendo a ser cidadão por meio da participação.

- construção de novas relações interpessoais que representam uma revolução cultural. - Compreensão de que faz parte da história e, portanto, é também protagonista do fazer

história.

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- Aprendizado da vida em movimento, do processo, em contraposição à lógica da estabilidade.

Para a autora, o processo de socialização do Sem Terra ou de re-socialização tem no acampamento o seu espaço privilegiado de existência.

[...] o acampamento traz para nossa reflexão o sentido pedagógico do cotidiano da organização e da vida em comum das famílias sem-terra debaixo de lonas em situação de extrema precariedade material e, ao mesmo tempo, de muita riqueza humana, seja antes ou depois de um a ocupação de terra. Um sentido que nos remete ao processo através do qual um conjunto de famílias que mal se conhece, e que, na maioria das vezes, porta costumes e heranças culturais tão diversas entre si, acaba por reconhecer-se em uma história de vida comum, e em sentimentos compartilhados de medo, de dor, de fome, de frio, mas também de convívios fraternos e de pequenas alegrias nascidas da esperança de uma vida melhor, que aos poucos lhe identifica como grupo: o acampamento como espaço social de formação identitária de uma identidade em luta (SCHMITT, 1992, p. 32), e que se descobre com uma nova perspectiva de futuro. (CALDART, 2000, p. 114, grifo da autora)

Assim, entendemos que a busca pela formação da identidade Sem Terra se faz através da

distinção, leia-se classificação. Há por parte do Movimento uma preocupação em formar uma comunidade coesa, leia-se com consciência de classe, onde a identidade revele seu par contrário, a distinção. Sendo assim, a ocupação e o acampamento são o campo privilegiado desta transição. Conseqüentemente, ser Sem Terra do MST contém um significado social que se insere na lógica da distinção, distinção de classe para si. A questão, portanto, passa a ser: qual classe, camponesa ou trabalhadora-operária?

É, portanto, inseridos nessa lógica indagativa, que ousamos querer entender o que subjaz na seguinte e recorrente afirmativa do MST: “Transformar a ideologia do camponês: substituir o ‘meu’ pelo ‘nosso’ e mudar o jeito artesão de trabalhar e enxergar o mundo” (MST, 1998a, p. 13). A resposta nos leva à compreensão de que esta ideologia missionária tem suas raízes no preconceito em relação ao campesinato e, mais, na crença de que seu destino é a descamponisação. Daí a necessidade de transformar sua consciência artesanal numa “consciência organizativa de proletariado rural” como se pode depreender nessa análise do comportamento do campesinato feita pela CONCRAB – Confederação Nacional das Cooperativas da Reforma Agrária do Brasil. Ainda que a citação seja um pouco longa, se justifica por trazer elementos significativos dos desencontros da teoria com a prática do MST.

[...] o camponês, no caso, está acostumado a trabalhar sozinho [...]. Porém essa ideologia artesanal pode ser substituída aos poucos pela ideologia obreira, característica de um processo produtivo socialmente dividido [...]. Como até hoje temos poucos mecanismos para resolver estes problemas, temos que trabalhar muito a consciência, e sabemos que vamos ter extrema dificuldade em construir cooperativas com ideologia artesã de camponês. Temos que ir transformando a consciência dos associados numa consciência organizativa de proletário rural e isto só vai se dar num processo permanente que temos de ir implementando [...]. Mas o pior é que mantendo esta consciência de artesão, ajuda manter uma relação de patrão e empregado na cooperativa. Nossos companheiros guardam resquícios de amor à propriedade privada e ainda não se sentem donos da cooperativa [...]. [...] Portanto é preciso que as direções das CPAs e do MST, tenham mais claro estas questões e temos que trabalhar a consciência de nossos companheiros [...]”. (MST, 1994, p. 48-49)

Retomando a análise de Caldart, afirmamos que a mesma corrobora no sentido de

entendermos que há uma diversidade na forma-conteúdo acampamento, questionadora da idéia de modelo, uma vez que essa diferença deve-se, no caso do MST, à revelação de habitus específicos do campesinato e à manifestação de um projeto político-ideológico das lideranças de transformação social. Isto significa dizer que o acampamento cumpre papel diferenciado de acordo com a bandeira de luta responsável pela sua organização, porque a trajetória de formação do MST e conseqüentemente o papel que as ocupações-acampamentos têm na sua história de luta pela terra e no ideário de “transformação da sociedade” são os maiores indicadores do conteúdo diferenciador, bem como de sua história de oposição à estrutura. No sentido de darmos os contornos deste projeto político-ideológico das lideranças, transcrevemos o relato que se segue:

Então lutar por terra é uma coisa, lutar pela Reforma Agrária é outro sentido, eu estou querendo dizer que muita gente, que inclusive foi assentada por outras organizações, só luta pela terra, chegou na terra acabou a

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luta. Então eu acho que o que difere nós [MST] em relação a outras organizações, além do método de trabalho, de organização, de princípio, são os objetivos, é a estratégia, a onde a gente quer chegar. O Movimento Sem Terra é aquele movimento que difere porque luta pela terra, que é um dos pontos centrais, mas luta também pela reforma agrária, luta pela transformação da sociedade é onde o pessoal fala: ‘como é que o Movimento Sem Terra está contribuindo nas lutas lá com o pessoal do MAB, junto com outras organizações, ajudando o pessoal dos correios, os professores a fazer determinada manifestação’, é por causa do nosso caráter de organização de massa, temos caráter político porque o nosso objetivo é a transformação da sociedade, é isso que difere nós de outra organização porque lutar por terra é uma coisa, é só juntar um grupo aí e fazer a luta, agora você continuar esse processo organizando o povo, criando consciência, é outro. (BATISTA146)

No caso dos Sindicatos da Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Mato Grosso do Sul –

FETAGRI/MS, por exemplo, o acampamento tem sido utilizado como mecanismo de cadastro e pressão, sem a necessária presença/convívio das famílias na área do suposto conflito e, nesta prática, não há liminaridade. Desse modo, não se trata de questionamento da ordem, de oposição à estrutura, apenas de inclusão.

Outro exemplo são os sindicatos do Departamento dos Trabalhadores Rurais de Mato Grosso do Sul da Central Única dos Trabalhadores – DETR-MS/CUT, embora procurem criar um espaço de socialização política por meio do trabalho de mobilização com vistas à ocupação de terras e formação de acampamentos, eles têm ficado presos ao ideário da modernização da produção e aos limites territoriais do sindicato, o que tem gerado ações menores e localizadas, marcadas pelo isolamento. Não conseguindo assim propor à classe camponesa nada além da conquista da terra e algumas tentativas de trabalho coletivo nos assentamentos, com o ideário da agricultura familiar e todo o corolário do preconceito em relação ao campesinato já tão bem conhecido147. Por conseguinte, a maior bandeira de luta tem sido a disputa, nos marcos da institucionalidade, pelo controle dos STRs, bem como a tentativa de criação da Federação da Agricultura Familiar no Mato Grosso do Sul, com franca oposição à FETAGRI/MS.

Para Stédile; Fernandes (1999), a ocupação de terras é a essência do MST, pois ela permite criar a unidade em torno da luta, o que também se aplica ao acampamento148: “Passar pelo calvário de um acampamento cria um sentimento de comunidade, de aliança. Por isso é que não dá certo ocupação só com homem” (p. 115).

Percebe-se que, na fala de Stédile, não há separação entre ocupação e acampamento, uma vez que são formas imbricadas as quais se completam e têm na família o centro aglutinador, ou melhor, o laço social genérico de solidariedade que permite o trabalho organizativo.

É também por causa desta força aglutinadora das ocupações, bem como do seu caráter de enfrentamento ao status quo, que o governo vem tomando medidas coercivas, como a Medida Provisória 2109-52149, que visa criminalizar os sem-terra, ao mesmo tempo em que incentiva as organizações que

146 Liderança – Direção Estadual do MST – Dez/2001. 147 Parte significativa das lideranças entrevistadas da DTR-MS/CUT apresentaram uma história de vida que tem nas CEBs o espaço privilegiado de socialização. Como parte destas reflexões, destacamos que o principal assentamento da CUT no Estado “Terra Solidária” (nome sugestivo do ideário religioso) reflete um esforço conjunto desta entidade, juntamente com a COAAMS, na implantação do projeto da terra coletiva. Com efeito, o principal articulador da COAAMS (ex-agente da CTP no Estado), ao discorrer sobre o projeto ‘Terra Solidária” e o futuro da agricultura, afirma: “Hoje a pequena propriedade está sujeita à extinção porque o processo de globalização da agricultura faz com que os produtos da cesta básica sejam desvalorizados. [...] Hoje há a necessidade de que esse produto produzido no assentamento seja industrializado na própria propriedade para que seja agregado valor para que aquilo que no capitalismo fica na indústria possa ficar com o agricultor. Se os agricultores ainda persistirem naquela agricultura que chamaríamos de primária, que é a produção de alimentos, a agricultura familiar não vai, a pequena propriedade vai ser extinta, as famílias não conseguem sobreviver”. (RODRIGUÊS, Fev/2001) 148 Eliane S. Rapchan no artigo “De nomes e categorias: seguindo as trilhas da identidade entre os sem-terra”. Campinas: Cidadania. GEMDEC, nº 02, julho de 1994, define o acampamento como uma condição emergencial que objetiva a negociação com o Estado e a mobilização da opinião pública e acrescenta que “o acampamento significa também o ápice da unidade do grupo, que é ritualizada e reafirmada através das celebrações e festas religiosas, vigílias, caminhadas e manifestações públicas” (p. 73). 149 Em 24 de maio de 2001, o Governo Federal editou a medida provisória 2109-52 que beneficia o imóvel rural objeto de ocupação com a não desapropriação por dois anos, bem como exclui do Programa de Reforma Agrária do Governo Federal às pessoas que forem identificadas participando de ocupação.

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optam pela negociação via Reforma Agrária de mercado (Banco da Terra) e o cadastro pelos correios150, como é o caso da FETAGRI151.

Na luta pela terra, a construção do espaço de socialização política é, para Fernandes (2001), um processo de formação política que permite às pessoas a “construção da consciência de seus direitos, em busca da superação da condição de expropriadas e exploradas” (p. 56) que, por sua vez, insere-se “numa perspectiva de transformação da sociedade” (p. 46).

Ainda para Fernandes (1994), a construção e a conquista deste espaço de socialização política é parte fundamental no processo de formação do MST e se inicia numa fase anterior à ocupação e ao acampamento. Para o autor, este espaço de socialização política possui uma multidimensionalidade em constante interação: o espaço comunicativo; o espaço interativo, e o espaço de luta e resistência.

O espaço comunicativo é a primeira dimensão do espaço de socialização política, seu conteúdo é definido, segundo Fernandes (1996), pelas ações políticas dos sujeitos. A comunicação é entendida como uma “atividade da organização social que se realiza como experiência de tempo/espaço”, que pode ser, portanto, o da igreja, o do sindicato, etc., em que é elaborada uma forma de linguagem, isto é, matrizes discursivas que espelham as idéias construídas no processo de luta.

Como desdobramento deste primeiro momento, é construída a segunda dimensão: o espaço interativo. Este espaço constitui um estágio mais avançado da luta, pois possui um determinado conteúdo, oriundo das experiências acumuladas. Por sua vez, “é fundamental entender que o espaço interativo não é o espaço consenso, é um espaço político e, portanto de enfrentamento das lutas e das idéias” (FERNANDES, 1996, p. 174).

A terceira dimensão do espaço de socialização política, o espaço da luta e resistência, “é a manifestação pública dos sujeitos e de seus objetivos” (FERNANDES, 1996, p. 177).

Para Fernandes, é nesta terceira dimensão que ocorre a territorialização da luta e a demonstração da forma de organização do Movimento: “O acampamento é na sua concretude o espaço de luta e resistência, é quando os trabalhadores partem para o enfrentamento direto com o Estado e com os latifundiários” (FERNANDES, 1996, p. 178).

Ainda segundo Fernandes (1998, p. 43-44), é a ocupação e o acampamento, espaço de luta e resistência, que permitem a territorialização do MST.

A ocupação é a condição da territorialização. [...] Este processo dimensionado cria uma série de necessidades. Durante o período de acampamento surgem novas necessidades, como por exemplo: cuidar da educação das crianças, que por estarem em uma situação de transição, não tem escola [...]. Como agora essa população faz parte de uma forma de organização social, construindo uma práxis, surge também o interesse pelo seu próprio desenvolvimento social.

Embora possamos dizer que tanto nos estudos de Fernandes (1998; 2001) como de Caldart

(2000) há uma preocupação com os espaços pedagógicos de formação da consciência e identidade sem-terra, existem diferenças, digamos, temporais e geográficas em suas interpretações. Enquanto Caldart privilegia o tempo da ocupação e do acampamento como primordiais na formação destes novos sujeitos, para Fernandes esse processo inicia-se anteriormente, no próprio trabalho de base que antecede as ocupações e acampamentos, sendo, por sua vez, parte da dimensionalidade do espaço de socialização política152.

Contudo, o ponto central na análise desses pensadores da prática do MST, é a posição homóloga em relação à existência de um espaço e de um processo em andamento de formação da

150 Até o dia 31/10/2001, segundo dados do INCRA/MS, 31,7 mil famílias já tinham se inscrito, pelo correio, para a Reforma Agrária; destas, apenas 229 famílias foram assentadas. 151 A Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Mato Grosso do Sul-FETAGRI/MS é a única organização representativa dos trabalhadores rurais que faz parte do conselho curador do Banco da Terra no Estado do Mato Grosso do Sul. O programa Banco da Terra, em agosto de 2000, já contava com 12 mil famílias aguardando financiamento (JORNAL CORREIO DO ESTADO, 12/08/2000). 152 Em 1999, Stédile faz referência à mudança que estava em curso na “metodologia” de trabalho do MST em algumas regiões. Desse modo, ao lado do tradicional trabalho prévio de organização de base típico dos primórdios do MST, com reuniões envolvendo pequenos grupos de famílias, nascia uma outra forma de trabalho, a organização de massa que, por meio da discussão em amplas assembléias, tinha por objetivo atingir um número maior de famílias. Essa mudança desloca para a ocupação/acampamento o trabalho de base propriamente dito. Parece ser, portanto, neste primeiro contexto, do trabalho de base anterior as ocupações, em que Fernandes (1998) discute o espaço de socialização política com suas três dimensões.

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consciência de classe do campesinato. Por sua vez, o grande entrave parece surgir quando os autores dão os contornos dessa classe: ela é fração da classe trabalhadora, como se pode depreender de suas falas:

Minha hipótese é a de que, dadas as condições históricas de nosso tempo, e o modo como estão vivenciando e conduzindo sua luta e organização, os sem-terra do MST representam hoje este novo sujeito social, ou este novo estrato da classe trabalhadora [...]. (CALDART, 2000, p. 30) Ter terra é o primeiro passo. Dessa condição nascem outras necessidades [...] E, evidentemente, essas lutas estão representadas em uma luta mais ampla pelo poder, que não é só dos sem-terra, mas de toda a classe trabalhadora. (FERNANDES, 2001, p. 39)

O propósito aqui, portanto, não é questionar a existência deste espaço pedagógico, mas, o ideário

interpretativo dessas experiências, ou melhor, os seus significados para o futuro histórico do campesinato como, por exemplo, o fato de este ser considerado uma fração da classe trabalhadora, tendo com isso sua singularidade, inclusive de consciência, diluída na categoria genérica de trabalhador.

Ainda a respeito deste questionamento, vale também destacar o pensamento de outro importante teórico do Movimento: Horácio M. Carvalho. O referido pensador, se por um lado não faz referências ao sem terra como classe trabalhadora, por outro, corrobora na assertiva de que os sem terra são uma fração de classe quando afirma “Sou levado a supor que os pequenos produtores rurais familiares (neles compreendidos os assentados) estão vivenciando a mais grave crise estrutural da sua história como fração de classe social” (2000, p. 03). Neste mesmo texto, o autor esclarece a classe à qual os “pequenos produtores rurais familiares” pertencem: são “fração da classe burguesia rural”. Concepção cara ao autor, porque gera em seus escritos um paradoxo, visto que, ao mesmo tempo em que reconhece a contribuição camponesa na luta pela terra, atribui a ela um destino pequeno burguês muito próximo da vertente leninista.

Esses setores político-ideologicamente atrasados das classes populares no campo, em particular aqueles que pertencem à fração pequenos produtores rurais familiares, tem como base de indução dos seus comportamentos sociais conservadores, por vezes reacionários, não apenas a cooptação política que lhes remete para a situação de estar sempre ao lado dos governos não importando o seu caráter de classe, mas determinações econômicas que de certa forma facilitam essa adesão à direita. Essas determinações econômicas são de duas ordens: a primeira poderia ser denominada de tendência histórica dominante do pequeno produtor rural familiar de transformar-se num pequeno burguês a partir dos processos gradativos (quando ocorrem) de acumulação; a segunda, a dependência das políticas públicas compensatórias, logo, dos governos. (CARVALHO, 2000, p. 02, grifo nosso)

Segundo Carvalho (2002, p. 07), a solução para a tendência conservadora desta “fração de

classe”, bem como para a crise econômica em que o capitalismo a lançou na atualidade, é o desenvolvimento da consciência crítica na busca de caminhos para superar as causas estruturais da opressão capitalista.

[...] seria necessário que os pequenos produtores rurais readquirissem novas esperanças e vislumbrassem uma nova utopia. Seria fundamental, então, que a reafirmação da identidade social camponesa fosse revivificada não pela volta à comunidade camponesa utópica pré-capitalista, mas segundo outros referenciais sociais capazes de constituírem uma ou várias identidades comunitárias de resistência ativa à exclusão social e de superação do modelo econômico e social vigente. Seria necessário que os novos referenciais sociais desse campesinato renovado, e inserido de maneira diferente da atual na economia capitalista, lhes permitissem desenvolver níveis mais complexos de consciência para que esta não comece nem acabe na vizinhança. Eis o objetivo último da Comunidade de Resistência e de Superação – CRS.

Em virtude dos rumos que este Artigo vem tomando, mister se faz salientar que, na luta pela

terra, embora haja muitos sujeitos envolvidos, destaca-se indubitavelmente o MST como um novo sujeito social. Esta dimensão de novo sujeito social se expressa tanto pelo caráter de sujeito coletivo que dá visibilidade ao Movimento Social153 como pelo processo de formação do sujeito enquanto ser individual. 153 Para José de Souza Martins o MST não é um Movimento Social justamente porque não esgota seus objetivos. Para este autor, o MST tornou-se uma organização com burocracia própria, perdendo sua novidade e criatividade, bem como a capacidade de afirmação do poder da

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É, portanto, o reconhecimento da importância do MST na história recente da luta pela terra no Brasil que nos motiva a pensá-lo a partir de dois prismas: o primeiro refere-se às práticas do movimento social, ou seja, dos homens e mulheres que cotidianamente fazem a luta; o segundo refere-se ao trabalho intelectual e interpretativo que tem orientado teoricamente seu futuro histórico. Enfim, os desencontros entre esta prática e a teoria dessa prática. Queremos assim descartar qualquer vestígio de neutralidade e, mais, marcamos nosso lugar: ao lado daqueles que fazem e também daqueles que acreditam na importância histórica da luta pela terra no Brasil.

A forma como é apresentado o problema da formação da consciência nos cadernos do MST é sintomática da incorporação de uma ideologia política estranha ao campesinato. Tais fontes se aproximam de manuais no sentido de querer resolver o insolúvel problema que persegue o processo de formação da consciência em Lênin: a consciência da Base é suficiente para pensar e organizar a luta ou somente é consciência suficiente para delegar estas funções para a Direção, a vanguarda154?

Mesmo que o povo não tenha consciência disso, o que vai resolver seus problemas é a transformação da sociedade. [...] Hoje o povo não sabe a força que tem. Por isso, para começar um trabalho, é preciso de alguém ou de um grupo [trabalhadores ou não] que anime o povo a sair da humilhação e da ilusão em que vive. (MST, 1987, p. 09)

Esse dilema também é percebido, por exemplo, na cartilha “Vamos organizar a Base”, de

1995, que apresenta diferentes níveis de formação a compor a organização social do MST, os quais materializam as instâncias de decisão e de poder da estrutura organizativa e refletem as linhas políticas do Movimento:

- A Direção: núcleo dirigente responsável pela coordenação do movimento de massa. Deve ser local, estadual e Nacional.

- Os Militantes: dão organicidade ao movimento de massa e são o elo entre a direção e a base. - A Base: os trabalhadores que se identificam com a organização, ou seja, com o MST. - A Massa: todos os trabalhadores que dão representatividade ao Movimento e que podem ou

não se mobilizar. Em relação ao destino da Massa, o caderno explica “a massa não vai sem direção”.

Tem gente que fala da massa com pena, por desprezo ou tática. A finalidade de nossa militância é despertar a massa e organiza-la. É verdade que o fermento põe a massa em movimento, porque a massa não vai sem direção. Mas é ela que faz a mudança. Por isso, a massa que é a maioria deve ser sempre a parcela mais importante das nossas atividades. (MST, 1987, p. 11-12)

Contudo, admitimos que a análise destes materiais elaborados pela direção e assessores do

MST se torna complexa na medida em que encontramos uma diversidade no discurso em relação ao saber do povo, ou seja, parece não existir uma linha teórica única, há momentos, por exemplo, de verdadeira canonização deste saber popular: “É preciso estar sempre no meio do povo. O povo nos ensina. O povo nos educa”. Em outros, a massa precisa “elevar seu nível de consciência”.

A massa não é ignorante. Ela pode ser desinformada e desmobilizada ou servir como massa de manobra de espertalhões. Mas isto não significa que não possa assimilar conhecimentos e elevar seu nível de consciência”. (MST, 1989b, p. 29)

Em outro trecho, percebe-se também o papel determinante da vanguarda na definição do

papel político da massa.

sociedade em face do Estado. Para entender o desencontro entre a prática e a ideologia dessa prática nos movimentos sociais e organizações populares, o autor trabalha com o conceito de anomia. A respeito, ver: MARTINS, J. S. “As mudanças nas relações entre a sociedade e o estado e a tendência a anomia nos movimentos sociais e nas organizações populares”. In: Reforma Agrária: o impossível diálogo. São Paulo: USP. 2000a, p. 73-85. Consideramos, porém, que o debate não está encerrado e que é possível pensarmos no MST como o marco de mudanças no conceito de novos movimentos sociais, em que pese, não uma idéia de “aparelhismo” dos movimentos sociais, mas que, diante do crescimento quantitativo e qualitativo das lutas, o surgimento de formas organizativas, que entendemos serem diferentes da concepção de organização social porque não traz perda do caráter autônomo e criativo, possa ser compreendido como um elemento a mais a ser considerado na conceituação destes movimentos. 154 Para o MST “Dirigente de vanguarda é aquele que multiplica muitos companheiros iguais a ele” (MST, 1987, p. 12).

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Muitas vezes as aspirações do Dirigente não são as mesmas aspirações da massa. Neste caso, é preciso desenvolver um trabalho ideológico para fazer com que as aspirações da massa adquiram um caráter político e revolucionário. (MST, 1989b, p. 23)

Entretanto, acreditamos que, para encontrar a raiz dos desencontros do MST, é necessário

buscar com maior nitidez as concepções políticas que influenciaram e influenciam sua construção desde o seu nascedouro. Neste sentido, a contribuição dada por Clodomir de Moraes155 é o marco principal, especificamente no período de 1986 a 1990, não só pela construção de uma “teoria da organização” (ou teoria da cooperação agrícola), mas fundamentalmente pela concepção política da luta pela terra e do lugar político do campesinato neste processo, bem como pelo fato de ter introduzido na concepção das lideranças do movimento social, características de organização social.

Para corroborarmos essa assertiva destacamos que Clodomir de Moraes foi o idealizador do cooperativismo no MST, por meio dos Laboratórios de Campo. Em seu texto “Elementos sobre a teoria da organização no campo”, publicado pelo MST, em 1986, o autor descreve os “vícios do campesinato” como conseqüência de sua produção econômica como trabalhador individual. “O processo produtivo individual (unifamiliar) que o camponês desenvolve, determina a visão personalista como uma das características de seu universo cultural e das superestruturas sociais que abarca” (MORAES, 1986, p. 13-14).

Conseqüentemente, para superação destas atitudes isolacionistas, propõe que o camponês seja estimulado a participar de grupos, cooperativas.

O texto apresenta também uma leitura da agricultura pelo viés da industrialização do campo e da diferenciação social do campesinato, dividindo assim os “produtores” em quatro extratos: o artesão-camponês; o assalariado; o semi-assalariado; e, o lúmpen. O primeiro (o artesão camponês) figura como o resquício a ser superado na luta pela conscientização política.

O centro das preocupações de Clodomir de Moraes é a consciência de classe e, por isso, seus esforços procuram provar que o amadurecimento da consciência de classe do campesinato depende do desenvolvimento das forças produtivas, ou seja, da apoteose do desenvolvimento industrial que tem nas teses de Kautsky e Lênin156 seu sustentáculo teórico. Preocupação que, por sua vez, não passou desapercebida pelo MST, como mostra Stédile; Fernandes:

[...] o método do Clodomir teve uma grande utilidade ao nos abrir para essa questão da consciência do camponês. Ele trouxe um conhecimento científico sobre isso. O seu livro sobre a teoria da organização mostrou com clareza como a organização do trabalho influencia na formação da consciência do camponês. (STÉDILE; FERNANDES 1999, p. 100, grifo nosso)

155 O papel de assessor dos movimentos socais desempenhado por Clodomir de Moraes não se restringiu ao MST como evidencia a fala de um membro da CPT/MS que vivenciou ativamente o período das primeiras ocupações de terras, organização de acampamentos e assentamentos no Mato Grosso do Sul. “Quando a gente era da Pastoral da Terra nacional eu recebi um livro “Comportamento do campesinato na América Central”, do sociólogo Clodomir de Moraes, nós fizemos alguns estudos deste livro, ele nos ajudou muito. Este sociólogo tem muitas reflexões onde ele mostra que o camponês tem dificuldade no processo coletivo. Aí ele faz a comparação com o operário de fábrica. Um operário na fábrica de calçados sabe intelectualmente, culturalmente que ele depende do outro para construir um sapato. [...] Na agricultura familiar, o camponês domina todo o processo desde o começo até o fim. Então intelectualmente, culturalmente está na cabeça do camponês que ele é uma pessoa única, que não depende do outro. Isso faz com que ele se torne uma pessoa diria individualista porque não depende do outro para produzir, para viver na pequena propriedade. Então pra quê Associação, pra quê Cooperativa, pra quê coletivo se eu sei fazer tudo. [...] (RODRIGUÊS - ex-agente da CPT da Diocese de Dourados e membro da COAAMS). Comunicação pessoal, Fev/2001). 156 Os estudos de K. Kautsky materializados na obra clássica “A questão agrária” e de V. I. Lênin “O desenvolvimento do capitalismo na Rússia” foram concebidos num contexto de amplas discussões a respeito das propostas de transformação da sociedade alemã e russa e, particularmente, do papel reservado à agricultura e ao campesinato nesse processo. De forma geral podemos afirmar que o eixo condutor destas obras fundamenta-se na concepção de que o desenvolvimento capitalista não poderia comportar outras classes além da burguesia e do proletariado, opondo-se assim à teoria da reprodução do trabalho familiar camponês. Desse modo, para os autores, a desintegração do campesinato era uma conseqüência necessária e inevitável para que o capitalismo pudesse se desenvolver via mercado e divisão do trabalho, abrindo caminho para a revolução socialista. Pode-se dizer que tais concepções têm igualmente influenciado outros teóricos do MST como nos deixa a entender a exposição de idéias no livro “Assentamentos – a resposta econômica da reforma agrária”: “O principio da divisão do trabalho já foi desenvolvido no modo de produção capitalista, e vem se desenvolvendo desde o século XVIII. [...] E essa tendência continua cada vez mais veloz. Na agricultura, essa divisão do trabalho, apesar de ser mais lenta do que na indústria, também se desenvolve permanentemente” (GÖRGEN; STEDILE (org.), 1991, p. 140).

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A crise do Sistema Cooperativista do MST pode ser considerada o ápice do questionamento da teoria do cooperativismo agrícola e da apoteose do desenvolvimento das forças produtivas apregoado por Clodomir de Moraes como o caminho para o desenvolvimento da luta política. Pensamento que, por sua vez, apesar de relativamente revisado no final dos anos de 1990, como demonstra a citação anterior de Stédile (1999), foi a mola mestra, por muito tempo, da ação oficial do MST, como se pode depreender desta outra fala de Stédile (1990, p. 08):

Todos os casos de assentamentos que têm uma boa produção, uma alta produtividade e um crescimento econômico são coletivos. A política oficial do movimento é estimular o máximo a cooperação agrícola [...] É muito difícil conseguir que um camponês atrasado politicamente adira à cooperação agrícola. Com a cooperação agrícola há crescimento econômico nos assentamentos, e o resultado em vez de vir pelo aburguesamento, como muita gente poderia pensar, com o trabalho político, ele rende em militância. É mais fácil pegar militantes dos assentamentos que vão se dedicar em tempo integral às atividades políticas. Eles não dependem mais da roça porque o coletivo garante a produção.

No sentido do questionamento deste pensamento que enxerga o trabalho político, o

amadurecimento organizativo como resultado do desenvolvimento das forças produtivas, via cooperação agrícola, o trabalho de Fabrini (2002, p. 12) pode ser considerado um marco de interpretação, uma vez que o autor, ao tratar dos avanços e recuos do cooperativismo agrícola do MST, no caso específico da COAGRI – Cooperativa de Trabalhadores Rurais e Reforma Agrária do Centro Oeste do Paraná Ltda – vê com preocupação a priorização econômica da cooperativa, e afirma:

A rapidez com que a COAGRI se construiu e expandiu enquanto empresa econômica, capaz de realizar importante intervenção no espaço, foi a mesma com que se distanciou da base de sustentação, refletindo no enfraquecimento e desmantelamento de parte dos núcleos de produção.

Sobre este pensamento único em defesa da cooperativa como caminho da organicidade do

MST, vale diferenciar a posição de Carvalho (1999) que se inscreve neste quadro diversificado de influências até certo ponto paradoxais que o Movimento encerra. Desse modo, a posição do MST não é um bloco monolítico, logo é possível encontrarmos nos seus escritos teses antagônicas. Como exemplo, recorremos as criticas de Carvalho (1999, p. 33) que, de forma lúcida e oportuna, escreve: “Minha suspeita é de que o MST ainda não conseguiu desenvolver ou decidir sobre uma teoria que fundamentasse o papel que os núcleos de base desempenhariam para o próprio movimento social”. Num outro momento, sentencia:

A contradição interna principal deveu-se, então, ao fato de que as demais formas possíveis de cooperação historicamente vivenciadas pelos trabalhadores rurais assentados foram literalmente ignoradas. [...] O discurso sobre a organicidade, preocupação constante nesse período e, em 1999, alcançando o nível do fetichismo [...] Ademais, nenhum dos documentos deu conta das experiências históricas concretas de cooperação entre os trabalhadores rurais, nos diversos planos sociais das suas existências, nem a elas referiram-se, numa preocupante omissão sobre a experiência histórica popular no campo. (CARVALHO, 1999, p. 30-34-35)

Observações que, de certa forma, se aproximam da situação, posteriormente, analisada por

Fabrini (2002) que, ao desmistificar o papel da cooperativa como o instrumento por excelência de intervenção social e política, descobre outros espaços de luta e resistência construídos pelos assentados. Portanto, a formação de núcleos e grupos de assentados (muitos não vinculados à cooperativa e ao MST) se destaca como o elemento novo a ser considerado nesta análise que procura superar o pensamento apoteótico do primado da economia e da dissolução do sócio-cultural.

Contudo, Fabrini (2002), ao propor que o amadurecimento da consciência de classe do campesinato se faz no processo de luta e resistência, e que esta luta não depende do desenvolvimento das forças produtivas, não questiona o papel que o MST, enquanto organização social, vem se atribuindo neste processo de “amadurecimento da consciência de classe do campesinato”, como também não discute a ideologia política de transformação social apregoada pelo MST.

É neste ponto que a crítica atinge a raiz, porque, Clodomir de Moraes, ao materializar a sua “teoria da organização no campo”, imprimiu não só um modelo de cooperativismo ao MST (agora em

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crise), mas uma concepção política de que o campesinato não possui lugar na história, ou seja, uma concepção da superioridade do operariado e da necessária aliança operário-camponesa a conduzi-lo à libertação.

Por outro lado, ao descobrir o espaço cotidiano da política no assentamento Fabrini (2002), permite-nos inverter o papel da “teoria da organização no campo” que foi concebida de “cima para baixo” e, conseqüentemente, daqueles que vêem na existência da vanguarda157 política o caminho inexorável do fazer política.

Com efeito, a crítica ao pensamento de Clodomir de Moraes tem sido feita pela metade, como se pode observar nesta reflexão de Stédile; Fernandes (1999, p. 99): “não deu certo [o método do Clodomir] porque, em primeiro lugar, o método é muito ortodoxo, muito rígido na sua aplicação. Em segundo, porque ele não é um processo, é muito estanque”. A questão não é ser mais ou menos rígido, coercivo, o problema está em negar a potencialidade da classe camponesa, em imputá-la um individualismo que desconhece a tradição dos trabalhadores rurais voltada para a comunidade familiar e para os laços de vizinhança e tão bem estudada por Antonio Candido, em “Parceiros do Rio Bonito”, na década de 1950.

O mutirão, por exemplo, é uma forma de solidariedade das mais antigas existentes no campo brasileiro e, segundo Candido (1982), é elemento integrante da sociabilidade do grupo, constituindo um dos pontos importantes da vida cultural, em que a “obrigação bilateral” é entendida como questão a decidir a unidade do grupo, se inscrevendo como um valor mais de ordem moral do que econômica. Neste sentido, o pagamento do serviço prestado não é em dinheiro, de acordo com o que explica o autor:

Geralmente os vizinhos são convocados e o beneficiário lhes oferece alimento e uma festa, que encerra o trabalho. Mas não há remuneração direta de espécie alguma, a não ser a obrigação moral em que fica o beneficiário de corresponder aos chamados eventuais dos que o auxiliaram. (CANDIDO, 1982, p. 62)

Pensamos que essa crítica por inteiro está por fazer e torna-se urgente, porque pode lançar

luzes sobre a teoria da organização social do MST a qual tem se apresentado, por vezes, limitada em relação à sua prática, vivenciada cotidianamente pelos homens e mulheres que enriquecem e oxigenam o movimento social para além da teoria de organização social de parte de suas lideranças e assessores.

O MST, em sua teoria da organização, entende que deve ter uma dupla estrutura: ser um movimento de massas amplo, mas, dentro deste, ter uma estrutura organizativa que dê sustentação ao movimento, transformando-se assim numa ‘organização de massas’. Esta organização é para melhor assimilar as idéias e pô-las em prática. Daí a constituição das instâncias, dos setores, dos núcleos. (BOGO apud CALDART, 2000, p. 87)

Como parte deste paradoxo de ser Movimento Social e Organização Social, afloram outros

como a dificuldade de aceitar a existência do campesinato enquanto classe, passando a entendê-lo como uma fração da classe trabalhadora. Logo, sua linguagem e sua mística são reveladoras muitas vezes deste contra-senso que coloca em choque a teoria da Organização Social e a prática do Movimento Social que, em tese, é o confronto da prática com a teoria da prática. Confronto que existe

157 Nesta discussão acerca da necessidade da vanguarda, isto é, da necessidade de uma elite política, intelectual, enfim, da consciência do exterior que possa orientar e dar direção ao movimento político, bem como a conscientização dos membros do grupo, dentre os marxistas clássicos, Lênin foi o maior representante. Sua tese a respeito do vanguardismo aparece, em especial, na obra “Que Fazer?”, referência importante para as lideranças do MST como se pode notar, por exemplo, nas citações textuais de Lênin no livro do MST “Construindo o caminho” (2001). Vale lembrar que nesta obra “Que Fazer?” (1978), Lênin denúncia aqueles que defendem o espontaneísmo das massas, o basismo que impede o avanço da luta política sentenciando que “a elevação da atividade da massa operária será possível unicamente se não nos limitarmos à ‘agitação política no terreno econômico’ (p. 55), propõe assim que as “revelações” políticas sejam feitas em todos os aspectos, já que só elas podem formar a consciência política da massa. Portanto, para o autor, “a consciência política de classe não pode ser levada ao operário senão do exterior, isto é, do exterior da luta econômica, do exterior da esfera das relações entre operários e patrões” (p. 62). Logo, a imensa maioria dos reveladores, a vanguarda, “deveria pertencer a outras classes sociais” (p.70), pois a “luta espontânea do proletariado não se transformará em uma verdadeira ‘luta de classes’ do proletariado enquanto não for dirigida por uma forte organização de revolucionários”. (p.104) Para Lênin, “as massas jamais aprenderão a conduzir a luta política, enquanto não ajudarmos a formar dirigentes para essa luta”. (p. 125)

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porque a teoria tem sido construída a partir de concepções que não admitem a (re)criação camponesa como um processo autônomo de luta e resistência.

Possivelmente, a permanência deste paradoxo explique porque a letra do Hino do MST, feito em 1989 por Bogo, um de seus símbolos mais importantes na conformação da mística camponesa, traga em seus versos quanto à luta pela construção da pátria livre, a expressão “operária camponesa”. Não seria de se esperar de um movimento que cotidianamente se constrói na luta pela terra uma proposta de aliança camponesa operária? O que está implícito nesta frase é apenas um problema semântico ou os camponeses não seriam capazes de conduzir a luta? E, mais, qual luta: pela posse da terra ou por transformações sociais? Quais são os referenciais teóricos (e as evidências práticas) explicativos desta crença política no poder da classe operária na condução do processo?

Desta maneira, a questão central ainda está por ser respondida: a luta do campesinato pode ter como referência uma consciência de classe trabalhadora própria do confronto capital versus trabalho? 3. Considerações finais.

Procurando seguir o caminho destas indagações e nos apoiando nas contribuições de Oliveira (1981, 1991) e Martins (1981, 1991, 2000 e 2002), lançaremos alguns pontos que consideramos fundamentais para a compreensão das diferenças de classe de camponeses e operários na tentativa de contribuir para a elucidação de alguns equívocos teóricos que tem acompanhado a interpretação da prática do MST.

O pressuposto inicial é o de que as experiências de vida e as posições sociais dos indivíduos no espaço social geram diferentes visões de mundo158, portanto, habitus específicos a nortear projetos históricos também distintos.

Desse modo, tentando buscar este conjunto de relações sociais que estão na base da formação do campesinato no desenvolvimento do capitalismo brasileiro, destacamos que o camponês se insere na divisão do trabalho, ou seja, na realização do modo capitalista de produção pela sujeição da renda da terra, pois o que o ele vende no mercado não é seu trabalho enquanto mercadoria, mas o produto do seu trabalho, ao contrário do operário que vive uma sujeição real de seu trabalho ao capital (OLIVEIRA, 1991).

Assim sua reprodução, em tese, não é mediada pelo mercado, ou seja, por ser proprietário, ele assegura a independência de seu trabalho, porque seu produto é produto acabado e porque, mesmo quando integrado à agroindústria, preserva a terra e o saber necessário à produção. É por isso que Martins (2002a) afirma que “o camponês se situa no mundo através de seu produto”, ou seja, seu trabalho não aparece separado do seu produto, seu trabalho não aparece como relação de trabalho; existe, portanto, um ocultamento na relação com o mercado. Questão fundamental porque de diversas formas este ocultamento acaba por determinar a constituição de sua consciência que, na maioria das vezes, não tem clareza dos fundamentos econômicos e sociais de sua condição dúplice: é proprietário de terra e trabalhador. É uma consciência ambivalente, mística em que o dinheiro e a mercadoria aparecem como forças do mal a atravessar sua vida e, muitas vezes, determinar seu perecimento como classe.

Por outro lado, se o centro de suas relações imediatas não é o mercado, no que consiste a essência de suas relações sociais? A essência, o centro como explica Martins (2002a), é a família porque, embora ele seja um trabalhador responsável único pela produção, ele não se manifesta como indivíduo, mas como um corpo familiar de pertencimento natural e afetivo que vê na vizinhança, na comunidade, no bairro sua “comunidade de destino159”. É por isso também que, embora tenha consciência do processo antagônico com o capital, sua consciência é ambígua160 por não ser

158 Extraímos o termo “visão de mundo” de Löwy (2002). A respeito do conceito, ele diz: “Visões sociais de mundo seriam, portanto, todos aqueles conjuntos estruturados de valores, representações, idéias e orientações cognitivas. Conjuntos esses unificados por uma perspectiva determinada, por um ponto de vista social, de classes sociais determinadas”. (p. 13) 159 Ecléa Bosi (1981) utiliza-se do termo comunidade de destino para referir-se ao processo irreversível de pertencimento ao destino de um grupo. 160 Segundo Chauí (1994a), a ambiguidade não é falha, defeito, mas a forma de existência dos objetos da percepção e da cultura, constituídos, não de elementos separados, mas de dimensões simultâneas. Situação que, por sua vez, faz com que tenhamos uma consciência trágica

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mediatizada por relações de mercado. Sua exploração não é vivida de maneira cotidiana e permanente, ou seja, em cada momento do processo de trabalho como a do operário.

O empresário capitalista da agricultura, ao colher os frutos da terra, antes de lançá-los ao mercado, calcula a estrutura das despesas que fez para produzir e acrescenta ainda a taxa de lucro, equivalente, pelo menos, ao lucro médio do sistema capitalista. Já o camponês produz e vende, mas não discrimina os custos de sua produção basicamente porque o seu “salário” não ganhou consistência própria no processo de produção e não se desprendeu dos outros custos. Logo, ele sabe que seu trabalho tem que ser pago, mas não sabe, nem pode saber, quanto (MARTINS, 2003).

Desse modo, ele não sabe exatamente onde “é enganado, lesado, de onde está saindo sua contribuição como produtor de mais-valia”. Na maioria das vezes, sua compreensão da alienação capitalista, como já dissemos, acontece de outra forma, é uma modalidade de consciência mística em que não é rara a figura do demônio aparecer relacionada ao mundo da mercadoria como evidencia Martins (2003).

Portanto, a percepção da realidade por parte do camponês é fruto da sua condição de classe, o que o faz se situar no mercado por meio de seu produto e não de seu trabalho, ter seu trabalho oculto no seu produto. Por isso Martins afirma que a “consciência camponesa faz um contorno ‘por fora’ da realidade imediata para perceber o poder alienador da mercadoria e do dinheiro, seu equivalente geral” (2002a, p. 74). Situação que o difere como “pessoa e consciência do operário”.

Todavia, quando sua reprodução é ameaçada pela expropriação, quando a exploração do seu trabalho se evidencia na venda de produtos e pagamentos de juros, o campesinato, ou melhor, a parte diretamente atingida deste campesinato se coloca de forma antagônica ao capital. No entanto, este antagonismo se apresenta no plano da resistência mística/ambígua e não da transformação social pelas razões ditas anteriormente. Isso significa dizer que o conflito do camponês com o capital ocorre em dois momentos: na luta pela posse da terra quando se vê na situação de expropriação (definitiva ou em processo) e na luta contra a transferência de renda que se dá na depreciação de seus produtos no mercado, no pagamento de juros bancários e na compra de máquinas e insumos.

Entrementes, o mais importante destes conflitos do campesinato, em virtude de nosso interesse e das diferentes interpretações, é o da luta pela terra, que se difere completamente da luta entre o capital e o trabalho e da possível resolução das contradições que estão na sua base (leia-se transformação social). Essa diferenciação ocorre porque...

[...] ela não propõe a superação do capitalismo, mas a sua humanização, o estabelecimento de freios ao concentracionismo na propriedade da riqueza social e à sua privatização sem limites. Ela propõe o confronto entre a propriedade privada e a propriedade capitalista. (MARTINS, 2002a, p. 89)

Todavia, embora a luta camponesa pela terra não vise diretamente a superação do capitalismo,

como Martins a princípio admite na citação, por outro lado, ele mesmo reconhece sua potencialidade quando explica que somente ela é portadora de um caráter anticapitalista, porque a classe camponesa é a única que pode visualizar por meio da expropriação, da liminaridade, ainda que de forma trágica, a expansão e a acumulação capitalista na sua totalidade e desumanidade. Portanto,

[...] o anticapitalismo do lavrador é expressão concreta das suas condições de classe. Seria um absurdo exigir dele, senão em nome de uma postura autoritária, que pense como um operário de fábrica, que desenvolva uma concepção proletária da transformação da sociedade. (MARTINS, 1991, p. 19)

Logo, as lutas camponesas, mesmo se fazendo por meio de uma consciência ambígua,

costumam trazer componentes radicais como o questionamento da propriedade capitalista pela visão globalizante que possuem. Este é o limite de sua consciência, mas também sua potencialidade. Esta situação lembra a discussão de Bourdieu (2000) acerca da classe real, ou seja, o fato de a classe com maior potencial de mobilização ser sempre uma probabilidade.

“aquela que descobre a diferença entre o que é e o que poderia ser e que por isso mesmo transgride a ordem estabelecida, mas não chega a constituir uma outra existência social. [...] Diz sim e diz não ao mesmo tempo [...]. Mas justamente porque essa consciência diz não, a prática da cultura popular pode tomar a forma de resistência e introduzir a “desordem” na ordem, abrir brechas, caminhar pelos poros e interstícios da sociedade brasileira”. (p. 178, grifo da autora)

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Portanto, podemos dizer que a classe camponesa embora exista como dado objetivo (classe no papel), sua consciência de classe é uma potencialidade, não como derivação da consciência operária moldada no confronto capital versus trabalho, mas na contradição camponesa que no limite pode fazer de sua resistência contra a expropriação uma luta anticapitalista.

Assim, podemos dizer que a consciência política esperada dos camponeses, ou seja, aquela fundada na superação da contradição entre o caráter social do trabalho e o caráter privado da apropriação dos resultados do trabalho, ou seja, a superação da contradição capital versus trabalho e da exploração do trabalho que nela se funda, não é possível, é, portanto, ideológica.

E essa impossibilidade se deve ao diferente vinculo social que o camponês tem com o capital e com o capitalismo, porque o seu trabalho não aparece separado do produto resultante dele, como é o caso do operário. Diferente porque a sujeição é da renda e não diretamente do seu trabalho, porque seu trabalho aparece como trabalho da família e não como trabalho social explorado.

Superar essas diferentes possibilidades históricas e sociais por meio de esquemas explicativos que buscam, depois da conquista da terra, continuar a luta “quebrando” o isolamento das famílias assentadas, estimulando o trabalho coletivo, desenvolvendo as “forças produtivas”, é equivocado porque funda-se em uma visão e posição de mundo que não é camponesa.

Estariam os camponeses, enquanto totalidade, irremediavelmente confinados a uma sociabilidade marcada pela distinção ou é possível falarmos da identidade de classe e, em caso afirmativo, quais seriam os elementos e relações identificatórias em curso? É possível uma aliança camponesa-operária?

Enfim, se por um lado a discussão de tais questões tem se colocado como opção teórica, por outro é a realidade quem decide a importância delas, neste sentido estamos seguros do caminho tomado, qual seja, de não nos eximirmos em reconhecer a pertinência delas.

A aliança política entre trabalhadores assalariados e camponeses não pode mais ser pensada na perspectiva da hegemonia política pura e simples dos primeiros sobre os segundos, e muito menos no sentido inverso. Ela deve nascer da compreensão de suas diferenças, e do direito mútuo de cultivá-las. (OLIVEIRA, 1994, p. 22)

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FRONTEIRA: NATUREZA E CULTURA∗∗∗∗

Celso Donizete LOCATEL∗∗∗∗∗∗∗∗ Resumo: O objetivo central deste trabalho é buscar compreender dois momentos distintos do processo de expansão da fronteira, quais sejam, a expansão da fronteira demográfica, que se amplia com o deslocamento da frente de expansão, e da fronteira econômica, que se alarga com a frente pioneira,

buscando entender os processos e as relações que aí se estabelecem, para entender as concepções de natureza e cultura aí existentes. Para essa análise, considerou-se como recorte o processo de ocupação da região de Jales, onde os vários momentos do processo de incorporação da região à economia de mercado apresentam muitos elementos ilustrativos dos conflitos existentes na fronteira, assim como dos vários elementos que a compõe. Pode-se verificar também que a produção da natureza está diretamente associada com a lógica do sistema cultural de cada grupo e com a percepção que estes tem de si e da própria natureza, o que nos remete a considerar que não se pode conceber a existência de culturas superiores e inferiores. Contudo, o que predomina nas relações na fronteira é uma visão dualista, tanto da natureza, entendendo-a como natureza exterior e natureza universal, como também de natureza e cultura. Palavras-chave: Fronteira; Frente de Expansão; Frente Pioneira; Natureza e Cultura. Resumen: El objetivo central de este trabajo es buscar comprender dos momentos distíntos del proceso de expansión de la frontera, que son: la expansión de la frontera demográfica, que se amplia con el desplazamiento del frente de expansión, y de la frontera económica, que se amplía con el frente pionero;

buscando entender los procesos y las relaciones que se establecen, para comprender las concepciones de naturaleza y cultura existentes. Para este análisis, se consideró como recorte el proceso de ocupación de la región de Jales, donde los varios momentos del proceso de incorporación de la región a la economía de mercado presentan muchos elementos ilustrativos de los conflictos existentes en la frontera, así como de los varios elementos que la compone. También es posible verificar que la producción de la naturaleza está directamente asociada con la lógica del sistema cultural de cada grupo y con la percepción que estos tienen de sí y de la propia naturaleza, lo que nos lleva a considerar que no se puede concebir la existencia de culturas superiores e inferiores. Sin embargo, lo que predomina en las relaciones en la frontera es una visión dualista, tanto de la naturaleza, entendiéndola como naturaleza exterior y naturaleza universal, como también de naturaleza y cultura. Palabras-llave: Frontera; Frente de Expansión; Frente Pionera; Naturaleza y Cultura. 1. Introdução.

A discussão sobre fronteira, considerando seus diferentes momentos históricos, já foi bastante abordada em várias áreas do conhecimento, mas sempre apresenta novas dimensões dependendo de quem a analisa, de quem a viveu, ou ainda vive, e de quem escreve.

Neste trabalho buscar-se-á entender os dois momentos distintos do processo de expansão da fronteira: a expansão da fronteira demográfica — frente de expansão — e a da fronteira econômica — frente pioneira — na região de Jales (SP), procurando aprofundar o entendimento de sua processualidade e as relações que nela se estabelecem, nas várias fases de que é constituída, assim como as concepções de natureza e cultura aí existentes.

De imediato, as frentes e a fronteira remetem o pesquisador e o próprio leitor à noção de relação. E as relações, aqui, também nortearão o trabalho, pois são elas que dão razão e sustentação a qualquer conceito e a qualquer sentido à existência dos seres humanos, sabendo-se disso ou não.

∗ Publicado inicialmente em 2002 (n.9, v.2). Texto produzido a partir de algumas reflexões realizadas nos Seminários de Doutorado. Agradeço as observações e críticas feitas por Jones Dari Goetter e pelo Prof. Dr. Antonio Nivaldo Hespanhol. ∗∗ Doutorando em Geografia pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Ciências e Tecnologia FCT/UNESP Presidente Prudente (SP). Membro do GEDRA. E-mali. ceí[email protected]

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A fronteira é um singular; um lugar ímpar onde “tudo está para acontecer”, mas onde se colocam ao mesmo tempo o medo e a insegurança dos que lá vivem e a esperança e o sonho dos que para lá se deslocam. A fronteira por si só é nada: são as relações específicas que se dão num dado espaço que possibilitam o surgimento/formação de um espaço particular, o qual possibilita a construção do conceito em que particularidades e singularidades fazem dela um espaço diferente dos demais que apenas pode ser entendida como tal na relação que estabelece com a não-fronteira.

Na fronteira, até então o lugar de relações características do modo de produção primitivo, desenvolvido pelos povos indígenas, passa a ser o espaço onde se encontram os diferentes: índios e civilizados; grandes proprietários de terras e posseiros pobres.

Para Martins, a fronteira é

um lugar de descoberta do outro e de desencontro (...) Não só o desencontro e o conflito decorrentes das diferentes concepções de vida e visão de mundo de cada um desses grupos humanos. O desencontro na fronteira é o desencontro de temporalidades históricas, pois cada um desses grupos está situado diversamente no tempo da História (1997, p. 150 e 151).

O encontro e o desencontro são relações. Ambas extremamente diferentes e por isso antagônicas, mas não completamente excludentes, ao contrário, contraditórias. As relações do/no encontro podem desencadear as relações do/no desencontro, sendo o contrário também verdadeiro. Mas, tanto o encontro como o desencontro são apenas “novas” relações que se estabelecem entre grupos sociais e culturais com relações não-iguais.

Na fronteira, as relações do encontro e do desencontro são propiciadas por duas frentes: frente

de expansão e frente pioneira. Ambas, como seus modos de ser e de viver no espaço novo e, com relações diferentes, senão direta, mas camuflada, com modos de ser e de viver dos que ali primeiro estiveram, os índios. Ambas, nesse sentido, expressam relações diferentes de um mesmo processo.

O encontro e o desencontro são gerados por haver, na fronteira, grupos culturais distintos, os quais possuem uma concepção de natureza e uma forma de produzi-la muito diferentes, o que leva ao antagonismo e aos, não raros, confrontos.

Para buscar novos elementos para tornar essa discussão mais substancial proceder-se-á com a análise da incorporação da região de Jales às fronteiras demográfica (do chamado mundo civilizado) e econômica. 2. Fronteira: chegada das frentes e violência.

O processo de ocupação da MRG de Jales161, localizada no Noroeste do Estado de São Paulo é marcado por um período de mais de um século de predominância de relações características da frente de

expansão, ou seja, de predomínio de uma economia de excedente, sem que tenham ocorrido alterações significativas na organização espacial.

Na região, somente em momento bem posterior é que o processo de ocupação tipicamente capitalista determinará acentuadas transformações na organização e no processo de produção, com a fundação de inúmeras cidades e, em seguida, a criação de novos municípios para facilitar a reprodução ampliada do capital, com a integração dessa área à economia de mercado.

A partir de meados do século XIX, a cultura do café ganha importância na economia nacional; o café transforma-se no principal produto de exportação e a cafeicultura torna-se, um fator dinamizador do processo de povoamento do Estado de São Paulo.

A expansão da cafeicultura e a conseqüente ocupação de novas zonas foram acompanhadas de perto pela implantação das estradas de ferro.

A primeira etapa do processo de ocupação capitalista da Microrregião Geográfica de Jales deu-se no século XIX, com a chegada de um pequeno contingente demográfico que se deslocou, principalmente, 161 A Microrregião Geográfica de Jales abrange uma área de 3.473Km2, sendo constituída por 23 municípios, quais sejam: Aparecida d’Oeste, Aspásia, Dirce Reis, Dolcinópolis, Jales, Marinópolis, Mesópolis, Nova Canaã Paulista, Palmeira d’Oeste, Paranapuã, Pontalinda, Populina, Rubinéia, Santa Albertina, Santa Clara d’Oeste, Santa Fé do Sul, Santa Rita d’Oeste, Santa Salete, Santana da Ponte Pensa, São Francisco, Três Fronteiras, Urânia e Vitória Brasil.

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das Minas Gerais. Os fatores condicionantes desse processo migratório foram, por um lado, a crise da mineração, e, por outro, o comércio de gado entre Mato Grosso e São Paulo, a Guerra do Paraguai, a disponibilidade de terras e a expansão da cafeicultura pelo Planalto Ocidental Paulista.

Sobre esse deslocamento da população das Minas Gerais, Monbeig (1984) destaca que

a maioria desses imigrantes [fixaram-se] nos municípios onde o café já estava solidamente implantado; outros, porém, tinham ocupado regiões mais longínquas, onde poderiam mais facilmente continuar a viver, conforme seus hábitos de criadores, acostumados aos grandes espaços (MONBEIG, l984,p.l33).

Ainda, como fator influente nesse processo migratório, não só para essa região, como para todo o

Oeste Paulista e também o Norte do Paraná, foram as mudanças na política de distribuição de terras. Com a extinção do regime de sesmarias, em 1822, até 1850, quando foi promulgada a Lei de

Terras, não havia legislação que regulamentasse o acesso à terra, o que provocou a ampliação do estabelecimento de posses. Na segunda metade do século XIX, com o enfraquecimento do regime de trabalho cativo, houve uma intensificação na apropriação (ilícita) da terra pelos grandes fazendeiros, que as registravam, quando necessário e possível, como sendo anterior à promulgação da Lei, aproveitando-se da brecha deixada pela legislação.

Considerando os mecanismos de apropriação da terra, Ribeiro sustenta que

cada sociedade define propriedade de acordo com cultura, poder, força política vigente, O direito de propriedade da terra, em muitas épocas e em várias culturas, foi transitivo, parcial, acordado com outros direitos complementares. É, portanto, completamente diferente do direito pleno descrito para o campo brasileiro que generalizou-se no século XX, quando a terra passou a ser expressão da vontade do seu dono e equivalente de ativo financeiro (1997, p. 14).

Esse quadro se consolidou, no século XX, como resultado do impacto causado pela Lei de

Terras, de 1850, que servia como anteparo estabilizador para o controle fundiário. Conseqüentemente, no final do século XIX, na lavoura de café, no Estado de São Paulo, a terra tomou-se “cativa”, o que possibilitou a abolição da escravatura. A abolição da escravatura só se concretizou quando a propriedade privada da terra era negociada com freqüência e sua mercantilização assegurava o controle dos cafeicultores sobre os não-proprietários, que se tornariam trabalhadores conforme aponta Martins (1979) e Silva (1980).

Assim, não se pode apontar um único fator para o processo de ocupação da região de Jales. Há que se considerar o contexto sócio-econômico e político para se entender o processo de espacialização da frente de expansão no século passado.

As terras sobre as quais está a microrregião de Jales, corresponde aproximadamente à área da imensa gleba denominada Fazenda “São José da Ponte Pensa”, com 503.360 hectares. Segundo consta dos altos de uma Ação Ordinária de Reivindicação de Posse, que correu na comarca de Votuporanga, movida em 1943 por supostos herdeiros, esta área pertenceu, primeiramente, em forma de posse a um único fazendeiro de Minas Gerais, que supostamente teria estabelecido essa posse por volta de 1830, logo, antes da promulgação da Lei de Terras.

Diante da dimensão da gleba empossada, o fazendeiro, através de “contratos” de agregamento, introduz na área algumas famílias e ex-escravos que construíam algumas benfeitorias e cultivavam pequenas roças de subsistência, garantindo ao então posseiro o direito sobre a terra, que voltou para seu Estado de origem em 1876 e nunca legalizou a posse da fazenda.

Desde o estabelecimento da posse até por volta de 1920, essa área servia apenas para a produção de subsistência para os agregados e para os pequenos posseiros, que acabaram se estabelecendo na região no decorrer de quase um século.

Outro aspecto que merece ser salientado, que é resultante da ocupação de áreas de fronteiras, é a violência.

O processo de ocupação/incorporação à produção mercantil das terras da região de Jales não se deu de forma diferente de todo o Oeste. A violência marcou o processo de incorporação dessas terras ao mercado. Nesse sentido, Azevedo referindo-se a ocupação da Noroeste, ressalta que

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para que se imprimisse o cunho do trabalho e da ocupação direta das vastas regiões inabitadas (...), a tarefa inicial do desbravador, auxiliado e estimulado pela via férrea, na sua obra de colonização teria que exprimir-se por uma violenta posse da terra, e consistia por alargar por esses páramos o domínio da ação individual, multiplicando as apropriações novas no incomensurável campo das riquezas apropriáveis; generalizando extensivamente o direito de propriedade, antes de decompô-lo pelos métodos intensivos... (1958, p. 96-7 apud BORGES, 1997, p37).

O processo de ocupação de todo o Oeste Paulista, inclusive da região de Jales, foi marcado por

um processo extremamente violento, que coloca em conflitos, na fronteira, dois tempos históricos diferentes, já no momento da chegada da frente de expansão, como enfatiza Martins (1997).

Antes da chegada da frente de expansão, a região era ocupada por vários grupos indígenas de língua Kaingáng. Os indígenas desapareceram rapidamente ao contato com o “colonizador”, quer pelo contágio de patologias, quer no conflito armado, que provocou o extermínio de grupos inteiros.

Especificamente sobre a região não há registros de confrontos entre índios e a população da frente de expansão. O registro mais próximo desse conflito é apontado por Ribeiro (1970) na região de Araçatuba, durante a construção da E. F. Noroeste do Brasil.

Em 1905 ocorreu o primeiro ataque (que foi registrado) dos índios (...) contra a turma de um agrimensor. (...) nos anos seguintes, contra as turmas da estrada e contra agrimensores (...). Uma comissão de sindicância criada para estudar os conflitos verificou que quase todos êsses ataques resultaram em menos de quinze mortos de civilizados. Em contraposição, nessa época, foram realizadas diversas chacinas que levaram a morte à aldeias inteiras dos Kaingáng, reavivando o ódio e dando lugar a novas represálias (RIBEIRO, 1970, p. 120-130).

Assim, os primeiros a sofrerem com a expansão do modo de produção capitalista foram as

populações “nativas”, que tiveram seus direitos e sua integridade física e moral violadas, ao serem expropriados para que se estabelecesse o modo de vida ditado pela frente de expansão.

Na região Noroeste do Estado de São Paulo, mesmo não havendo registros oficiais do conflito entre os “brancos” e indígenas, no momento da ocupação, o processo de expulsão da população nativa não foi diferente das demais regiões. Recentemente, descobriu-se na região um cemitério indígena, este sítio arqueológico comprova a presença desse povo antes da expansão capitalista.

Para Martins,

a fronteira, a frente de expansão da sociedade nacional sobre territórios ocupados por povos indígenas, é um cenário altamente conflitivo de humanidades que não forjam no seu encontro o Homem e o humano idílicos da tradição filosófica e das aspirações dos humanistas. A fronteira é, sobretudo, no que se refere aos diferentes grupos dos chamados civilizados que se situam ‘do lado de cá’, um cenário de intolerância, ambição e morte. É, também, lugar da elaboração de uma residual concepção de esperança, atravessada pelo milenarismo da espera no advento do tempo novo, um tempo de redenção, justiça, alegria e fartura. O tempo dós justos. Já no âmbito dos diversos grupos étnicos que estão ‘do outro lado’, e no âmbito das respectivas concepções do espaço e do homem, a fronteira é, na verdade, ponto limite de territórios que se definem continuamente, disputados de diferentes modos por diferentes grupos humanos. Na fronteira, o chamado branco e civilizado é relativo e sua ênfase nos elementos materiais da vida e na luta pela terra também o é (1997,p. 11-12).

Martins (1975) afirma que a frente de expansão compreende a faixa entre a fronteira

demográfica e a fronteira econômica — que no Brasil não coincidem; embora sendo povoadora, não chega a constituir-se uma frente pioneira, porque sua organização produtiva não está estruturada a partir de relações com o mercado.

Por outro lado, a economia dessa faixa não pode ser classificada como economia natural, pois dela saem produtos que assumem valor de troca na economia de mercado. Trata-se de uma economia de excedente, cujos participantes dedicam-se principalmente à própria subsistência e secundariamente à troca do produto que pode ser obtido com os fatores que excedem as suas necessidades. (MARTINS, 1975, p. 45).

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Outro aspecto observado por este autor é o fato da frente de expansão ser formada por uma população não incluída na fronteira econômica. Neste sentido, tem lugar e tempo o conflito e a austeridade, sendo secundária a dimensão econômica.

No entanto, a frente de expansão pode ser constituída por uma grande diversidade de atores, de atividades econômicas e de relações sociais específicas: “há uma espécie de burguesia de fronteira que muitas vezes toma a iniciativa pela expansão desses modos marginais de produção e desproporcional distribuição de mercadorias trazidas de fora” (MARTINS, 1997, p. 192).

Já nas primeiras décadas do século XX, inicia-se um intenso processo de transformação na organização do espaço nessa região, através da “indústria da grilagem”. As duas primeiras décadas deste século são marcadas pela disputa pela posse da terra, envolvendo posseiros, grileiros e o Estado. Este processo de transformação da posse da terra em propriedade capitalista, foi desencadeado pela expansão da cafeicultura e a conseqüente valorização das terras nas chamadas “zonas novas”, conforme aponta Muramatsu (1984).

Em 1914, o Estado, através do poder judiciário, legaliza a posse da terra nessa região com o reconhecimento jurídico de dois grileiros como sendo herdeiros de Patrício Lopes de Souza - o fazendeiro mineiro que havia estabelecido posse da área no século passado. Os dois novos personagens que surgiram do nada na história do lugar eram empresários bem sucedidos - um farmacêutico em Araçatuba e o outro advogado em São José do Rio Preto - e em 1912, cada um deles entrou, em suas respectivas cidades, com uma ação ordinária reivindicando a posse da terra usando o argumento de que eram herdeiros legítimos de Patrício. Quando tomaram ciência de que corriam paralelamente os processos, os dois, por serem falsários, fizeram um acordo retirando as ações individuais e fundaram uma sociedade denominada Gloria & Furquim que, em 1914, entra na justiça reivindicando a posse da fazenda, apresentando os dois como sendo sobrinhos netos do Mineiro.

Portanto, feita a legalização das terras dentro das normas estabelecidas pelo Estado, isto é, feita a transformação da posse em propriedade privada da terra, a Ponte Pensa estava pronta e livre para ser adquirida por quem quer que fosse, agora porém mediante compra. Bastava para isso a apresentação de capital para efetuar a compra, porém um bom capital, diga-se de passagem. Mas também, além de um bom capital, a possibilidade de aquisição destas terras contou com a influência que a burguesia cafeeira dispunha para movimentar a máquina do Estado em seu próprio benefício (MURAMATSU, 1984: 20).

A partir da década de 30, além do processo de legalização de títulos da terra e sua posterior

comercialização pelos grileiros, a região foi marcada por inúmeros conflitos envolvendo posseiros, grileiros, arrendatários e fazendeiros e, também, por movimento messiânico.

Com a retomada da construção da ferrovia Alta Araraquarense, na década de 1930 (parada em São José do Rio Preto desde 1912/1910) e a expansão da cafeicultura, que começou a ser desenvolvida na região em 1942, há uma valorização das terras. Assim, ocorre a transformação das terras em mercadoria. Os posseiros e antigos agregados, que são componentes da frente de expansão, vão sendo desalojados para dar lugar aos novos proprietários, introduzidos pelo capital através das companhias de colonização e por grandes fazendeiros que começaram a retalhar e vender suas terras, com títulos duvidosos, em pequenos lotes.

Dessa forma, temos a chegada da frente pioneira e a transformação da terra de trabalho em terra de negócio. Para Martins (1997) a concepção de frente pioneira imprime uma falsa idéia de que na fronteira se cria o novo, uma nova sociedade baseada no mercado e na contratualidade das relações sociais. A frente pioneira não representa apenas o deslocamento da população para áreas do território desocupadas, mas uma situação espacial e social que desencadeia um processo de reestruturação do modo de vida e mudanças sociais.

Uma vez efetuada a expulsão do posseiro mediante processo de grilagem, a terra tornou-se livre e pronta para ser transformada em negócio lucrativo. Isto é, passou a ser uma mercadoria com trânsito aberto para ser comprada e vendida. A partir da década de vinte, mas principalmente a partir da crise de 1929, a terra passou a ser o centro de intensa especulação promovida por negociantes e grandes companhias de colonização particulares, nacionais e estrangeiras. Tanto nas zonas velhas, onde o retalhamento intensivo das antigas fazendas de café, como nas zonas novas, o negócio com a compra e venda de terras foi uma das mais espetaculares fontes de lucro que conheceu a sociedade brasileira (MURAMATSU, 1984: 28).

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Para os fazendeiros, o retalhamento e a venda de parte de suas terras foi a saída encontrada para

salvar seus capitais. Esse processo foi mediado pelas companhias de colonização e por investidores de outros setores que adquiriam as terras e as revendiam, com o pagamento parcelado, para ex-colonos do café os quais se dedicavam, como trabalho familiar, ao cultivo de gêneros alimentícios e a um produto de maior valor comercial - o algodão ou o café - o que lhes garantia a subsistência e o pagamento das parcelas referentes à compra da terra.

Nesse sentido, a terra foi, na década de 1940, a principal mercadoria comercializada nessa região, que era vendida à pequenos cultivadores diretos, originando uma estrutura fundiária desconcentrada que se tomou uma das principais características da região.

Assim, na década de 1950, esgota-se a área de fronteira na região de Jales com a incorporação de toda a terra ao modo de produção capitalista, ou seja, toda a área foi inserida ao processo de reprodução ampliada do capital.

Para Martins,

o tempo da reprodução do capital é o tempo da contradição; não só contradição de interesses opostos, como os das classes sociais, mas temporalidades desencontradas e, portanto, realidades sociais que se desenvolvem em ritmos diferentes, ainda que a partir das mesmas condições básicas. (...) As forças produtivas desenvolvem mais depressa do que as relações sociais; no capitalismo, a produção é social, mas a apropriação dos resultados da produção é privada. Essa contradição fundamental anuncia o descompasso histórico entre o progresso material e o progresso social (1997, p. 94).

Dessa forma pode-se destacar que, tanto a frente de expansão quanto a frente pioneira fazem

parte de um mesmo processo, porém apresentam relações extremamente diferentes. Fundamentalmente, esse processo tem como elemento central a necessidade de incorporação de novos espaços, destinando-os à reprodução ampliada do capital. Este, por sua vez, não elimina as formas e as relações anteriormente colocadas e sim, conserva-as e até as reproduz, mantendo os interesses e as relações tipicamente capitalistas como hegemônicas.

Ao mesmo tempo em que a frente pioneira definiu sua hegemonia, coexistiram as relações sociais (e de produção) da frente de expansão e até as anteriores, contraditoriamente. Por isso, a relação entre ambas as frentes deve ser entendida como contraditória e não etapista.

A frente de expansão é essencialmente um mundo criado pelo modo como se dá a inserção dos trabalhadores rurais, que produzem diretamente seus meios de vida, no processo de reprodução ampliada do capital. Nesse mundo, apesar da determinação capitalista de suas relações sociais, as concepções e valores precedem, na vida de seus membros, os interesses econômicos e a eles se sobrepõem (MARTINS, 1997,p. 186).

Na frente pioneira, tem-se a expansão do capital, com a apropriação privada da terra, recriando,

no terreno, os mecanismos da sua reprodução ampliada: infra-estrutura e mercado de força de trabalho. Mesmo na frente de expansão tendo-se relações mercantilistas, ainda não é possível extrair delas a renda capitalista da terra, pois a distância e as relações nela estabelecidas tomam-se um empecilho, de acordo com MARTINS (1997).

Esse processo de expansão da fronteira, com toda a sua particularidade, é marcado por relações de encontro e desencontro que demonstram o antagonismo existente na fronteira entre as frentes de

expansão e pioneira; nele se expressa as diferenças de um mesmo processo, as quais podem ser observadas na ocupação da Região Noroeste, assim como em todo o Oeste Paulista. 3. Natureza e cultura na fronteira.

O processo de expansão da fronteira coloca em contato realidades distintas e os homens, nela inseridos, diante de um mundo desconhecido, que lhes causa medo e insegurança, reagem contra o novo. Isso os coloca em posição de defesa, ou seja, o que é externo àsua realidade, ou lhe é desconhecido, é hostil.

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Dessa forma, para os componentes das frentes a natureza deveria ser dominada e transformada, quase como se fosse uma tarefa divina, pois esta seria a única forma de sobreviverem e estabelecerem um equilíbrio harmonioso entre o homem e a natureza, já que esta última, no seu estado selvagem era hostil e até agressiva. Sendo assim, o domínio do homem sobre a natureza através da aplicação de técnicas, sejam elas quais forem, é concebido como benéfico162

A natureza externa, na fronteira, é vista como o reino dos objetos e dos processos que existem fora da sociedade, assim ela é vista como primitiva. A natureza primitiva e selvagem é a matéria-prima da qual a sociedade é construída, a fronteira que o capitalismo tem que dominar para apropriar-se. Dessa forma concebe-se a natureza como algo que está esperando para ser internalizada no processo de produção social. Por outro lado, nas áreas de fronteira, a natureza é também concebida como universal, pois a natureza humana, na qual está implícito que os seres humanos e seus comportamentos, inclusive o anseio de dominar a natureza selvagem, são tão naturais quanto os aspectos dito externo163.

No entanto, aí reside um ponto importante a ser explorado que é a inserção da população indígena nessa concepção de natureza. Para os que chegavam na fronteira, principalmente os componentes da frente pioneira, o indígena era visto como selvagem. Logo este era classificado como parte da natureza exterior, o que o colocava na condição de algo que deveria ser dominado, subjugado e até eliminado, se fosse necessário, pois este elemento da natureza selvagem representava uma ameaça ao estabelecimento do equilíbrio harmonioso entre o homem “civilizado” e a natureza.

Essa concepção do indígena, no processo de incorporação do Noroeste Paulista e da região de Jales à economia de mercado é a mesma descrita por Smith na ocupação do Oeste dos EUA. O autor enfatiza que “o sertão é a antítese da civilização; ele é estéril, até mesmo sinistro, não tanto por ser a morada do selvagem, mas por ser seu habitat ‘natural’. O natural e o selvagem era uma coisa só; eles eram obstáculos a serem vencidos na marcha do progresso e da civilização” (SMITH, 1988. p. 37).

Essa percepção, na região de Jales, esteve tão arraigada no imaginário coletivo da época que, Monbeig (1952), em seu trabalho “Pionniers et Planteurs de São Paulo”

164, analisando os impactos da

crise de 1929 sobre a economia cafeeira, refere-se a região situada àoeste de São José do Rio Preto como far west.

A oposição e até repúdio é próprio da fronteira, onde diferentes “tempos” e diferentes culturas se encontram. Assim, essa visão de natureza hostil, nela incluída a população indígena, tinha sua função social, que era de legitimar o ataque à natureza. “A hostilidade da natureza exterior justificava sua dominação e a moralidade espiritual da natureza universal fornecia [fornece] um modelo para o comportamento social” (SMITH, 1988, p. 48).

O conceito de natureza um produto social, que em conexão com o tratamento da natureza na área da fronteira, tem uma função social e política. Da mesma forma, ainda que de maneira mais obscura que no período de ocupação da região de Jales, “o conceito moderno de natureza tem uma função semelhante. (...). Seja ou não hostil, o fato de exterioridade da natureza é o bastante para legitimar a dominação da natureza, de fato este próprio processo de subjugação veio a ser tratado como ‘natural”’ (SMITH, 1988, p.45).

Para esse autor, o contraditório dualismo da natureza, hoje é menos importante que a função ideológica da concepção universal. Assim,

a função escamoteada da concepção universal hoje é atribuir a certos comportamentos sociais o status de eventos naturais, pelos quais se quer significar que tais comportamentos e características são normais, dados por Deus, imutáveis. A competição, o lucro, a guerra, a propriedade privada, o erotismo, o heterosexualismo, o racismo, a existência de ricos e despossuídos, ou de ‘caciques e índios’ — a lista é infinita — tudo isso é considerado natural. A natureza e não a história humana é considerada responsável; o capitalismo é tratado não como historicamente contingente mas como produto inevitável e universal da natureza (...). O capitalismo é natural e lutar contra ele é lutar contra a natureza humana (SMITH, 1988, p. 46).

162 Esta concepção dc domínio da natureza pelo homem está diretamente associada à Bacon. SMITH ressalta que ‘a concepção de natureza trazida por Bacon é explicitamente exterior à sociedade humana; ela é um objeto a ser dominado e manipulado” (1988, p. 30). 163 Para SMITH, “em contradição à concepção exterior da natureza, a concepção universal inclui o humano com o não-humano” (1988, p. 28). Para o autor esse dualismo conceitual da natureza não é absoluto, pois, por mais contraditório que essa concepção de natureza possa parecer, as mesmas são freqüentemente confundidas na prática e dificilmente poderão ser separadas. Para ele, as raízes históricas desse dualismo estão diretamente relacionadas à Kant e, em menor proporção, a tradição intelectual judaico-cristã. 164 Publicado em Língua Portuguesa com o Título “Pioneiros e Fazendeiros de São Paulo”, São Paulo, Hucitec, 1984.

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Assim, devastação de recursos naturais, destruição de comunidades indígenas e comunidades

“tradicionais” são legitimadas, pois a dominação de culturas inferiores e de povos não-civilizados — como os indígenas — ou menos civilizados — como os posseiros da frente de expansão — são inevitáveis na expansão do modo de produção capitalista, sendo assim, são processos naturais.

Isso nos remete ao conceito de cultura, que aqui só será reforçado que não existe inferioridade entre culturas, o que existe são diferenças. As tentativas de apontar sistemas culturais lógicos (superiores) e sistemas pré-lógicos (inferiores) não possuem qualquer confirmação empírica. “Todo sistema de cultura tem sua própria lógica e não passa de ato primário de etnocentrismo tentar transferir a lógica de um sistema para outro” (LARAIA, 1989, p. 90). O autor destaca ainda que existem tendências a considerar lógico os elementos da própria cultura, enquanto que os demais apresentam um alto grau de irracionalidade e acrescenta que “a coerência de um hábito cultural somente pode ser analisado a partir do sistema a que pertence” (LARAIA, 1989, p. 90).

A legitimidade atríbuída à destruição da cultura indígena (e também da sociedade e dos próprios índios) apóia-se na tendência de se atribuir às chamadas “sociedades simples” um caráter de estabilidade. No entanto, essa é uma visão totalmente falsa, pois o homem organizado em sociedade, seja ela qual for, tem a capacidade de refletir sobre seus próprios hábitos e modificá-los, da mesma forma, pode-se fazer com os problemas relacionados ao seu habitat, o que imprime um caráter dinâmico a todas as culturas e conseqüentemente na produção da natureza165.

Dessa forma, a floresta encontrada na região de Jales, ao contrário do que se imaginava na época de sua ocupação, apresentava-se bastante antropogenizada. Pode-se afirmar isso se baseando nas descrições dos naturalistas que estudaram essa região e em afirmações como as de Monbeig (1984), que aponta os índios como verdadeiros pioneiros (no sentido restrito da palavra), pois foram os primeiros a queimar a mata e a aproveitar o solo para suas culturas. Assim, pode-se afirmar que a natureza da região, há 150 anos, antes da ocupação pelos componentes da frente de expansão, já era pouco natural (no sentido de não ter havida ação humana), pois a concentração artificial de certas espécies vegetais poder ter influído na distribuição de espécies animais que tinham nelas suas fontes de alimentos. Diante disso, pode-se considerar a floresta existente, no momento da ocupação pela frente de expansão, como produto social resultado da manipulação muito antiga da fauna e da flora, logo, produto de uma cultura166.

Sobre os grupos indígenas dessa região pouco se sabe. Monbeig (1984), ressalta que

quase sempre violentos foram os contatos que mantiveram com os brancos e pouco sabemos sobre a localização dos principais grupos e seus gêneros de vida (...) Muito má foi a fama deixada pelos caingangues. Sem armamento, com grandes arcos de pontas freqüentemente revestidas de ferra, asseguravam a supremacia como caçadores. Em seus acampamentos, sempre se encontravam quartos de animais e pedaços de peixes. Bem sabiam os sertanejos reconhecer um desses abrigos de caça, como os caingangues os construíam, para ficar à espreita. Viviam em clareiras abertas junto dos riachos, onde dispersavam suas cabanas, distantes de vinte a cem metros umas das outras, ligadas por veredas bem conservadas. (...) Encontraram os exploradores choças abandonadas, vestígios de culturas e nada mais. Entretanto, a construção de agrupamentos de habitações relativamente importantes, o estabelecimento de caminhos em bom estado de conservação indicam certa estabilidade do habitat (1984, p. 130).

Assim o que se verifica é a existência de uma natureza antropogênica, ou seja, uma natureza

produzida. Este componente antropogênico da natureza, que foi totalmente desconsiderado pelos que chegavam na fronteira, tornou-se o pivô de confrontos sangrentos que levaram a extinção do humano na natureza exterior. A esse respeito Monbeig (1984) descreve que

a penetração primeira chocou-se com uma rude oposição. Ficavam os índios à espreita dos desbravadores, aproveitando-se da desatenção destes para atacá-los, apoderar-se de suas armas e utensílios, carregando tudo que podiam encontrar em suas pobres casas. Eram assinaladas essas razias por atrozes morticínios, a

165 Ver DESCOLA, Philippe. Ecologia e Cosmologia. Versão sintetizada e revista das conferências Lourat, Collàge de France, 4 e 11 de abril de 1996. Tradução de Maria da Graça Leal. 166 Para SMITH, “a idéia da produção da natureza é paradoxal, a ponto de parecer absurda, se julgada pela aparência superficial da natureza (...). A natureza geralmente é vista como sendo precisamente aquilo que não pode ser produzido; é a antítese da atividades produtiva humana. Em sua aparência mais imediata, a paisagem natural apresenta-se a nós como substratum material da vida diária (...) esse substratum material torna-se cada vez mais o produto social” (SMITH, 1988, p. 67).

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flechadas e facada. Por seu turno, respondiam os pioneiros aos ataques dos índios com igual brutalidade. Especializavam-se alguns dentre eles na organização de expedições punitivas, as dadas. Esses caçadores de índios, os bugreiros, eram conhecidos em todo o sertão, pois se deslocavam de bom grado de um desbravamento para outro, a fim de empreender uma dada (MONBEIG, 1984,p. 131).

Essa oposição foi tão forte que se tomou um dos elementos que frearam a expansão da fronteira econômica até o início do século XX, pois impedia o avanço da construção de vias de transporte e, foi somente com a organização de expedições “militares” (fortemente armadas), para proteger os trabalhadores, que esses empreendimentos avançaram, conforme destaca Monbeig (1984). Com essas ofensivas, tem-se o declínio definitivo dos indígenas, que sucumbiram aos ataques armados e também às epidemias contraídas no contato com os civilizados.

Portanto, a marcha pioneira moderna (expansão da fronteira econômica) pois fim à obra de dizimação indígena, iniciada na época colonial. Nada restou dos antigos habitantes, a não ser de forma indireta.

Contudo, alguns elementos da cultura indígena foram incorporados à cultura das frentes, como a técnica de agricultura de queimadas. Outro elemento que merece ser destacado é que a produção da natureza pela ação antrópica indígena (antropogenização da floresta) facilitou a penetração do colonizador, que se utilizou dos campos e trilhas resultantes das atividades das tribos. Dessa forma pode-se estabelecer estreitas relações entre o povoamento “moderno” incluído na fronteira e o precedente, externo à fronteira, ou ainda, do povoamento externo à natureza selvagem e o que dela faz parte.

Outro aspecto da cultura indígena que foi recuperado é a língua que, segundo Monbeig (1984), se materializa na ressurreição erudita pelo batismo com nomes Tupis das cidades novas, de fazendas e riachos, nas áreas de fronteira

167, como por exemplo as cidades de Paranapuã e Nova Canaã, na região de

Jales. Isso demonstra o que representava o índio para o habitante da chamada frente pioneira: “uma recordação que entrou no domínio da legenda” (MONBEIG, 1984, p. 132).

4. Algumas considerações finais.

Na rápida análise aqui desenvolvida sobre natureza e cultura na fronteira, utilizando como exemplo empírico o processo de incorporação da região de Jales à economia de mercado, é possível perceber que a produção da natureza é um produto social, o que revela o esvaziamento do dualismo natureza/cultura.

Assim, não se pode confundir produção da natureza com domínio sobre a natureza. Também não se pode considerar a produção da natureza como a complementação do domínio sobre ela, mas sim algo qualitativamente diferente168.

Smith (1988, p. 104) ressalta que “a questão não é se ou em que extensão a natureza é controlada; esta é uma questão colocada na linguagem dicotômica da primeira e segunda natureza, do domínio ou não domínio (...) sobre a natureza. A questão realmente é como produzimos e quem controla esta produção”.

O que é facilmente verificável é que a produção da natureza está diretamente associada com a lógica do sistema cultural de cada grupo e com a percepção que estes tem de si e da própria natureza, o que nos remete a considerar que não se pode conceber a existência de culturas superiores e inferiores.

Contudo, o que predomina nas relações na fronteira é uma visão dualista, tanto da natureza, entendendo-a como natureza exterior e natureza universal, como também de natureza e cultura.

Para se entender as relações que se estabelecem na fronteira, é necessário se ultrapassar esse dualismo e partir da premissa de que “existindo por si próprias ou definidas do exterior, produzidas pelo homem ou somente por ele percebidas, materiais ou imateriais, as entidades que constituem nosso universo só possuem um sentido e uma identidade através das relações que instituem enquanto tais” (DESCOLA, 1996).

167 Entende-se que os indígenas e a natureza “intocada” só farão parte da fronteira a partir da chegada das frentes, que proporcionará os encontros e desencontros, pois até então esses elementos são esternos a ela. 168 Ver SMITH, N. Desenvolvimento desigual. Rio de Janeiro, Bertand Brasil, 1988.

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Considerando que a fronteira ainda está aberta, pois o processo de expansão do modo de produção capitalista ainda está longe de se completar no Brasil e que é constituída por períodos temporais específicos – o da frente de expansão e o da frente pioneira — ainda ocorrerá muitos momentos de encontros e desencontros. Para Martins, a fronteira só se fecha “quando a História passa a nossa história, a histórica da nossa diversidade e pluralidade, e nós já não somos nós mesmos porque somos antropofagicamente nós e o outro que devoramos ou nos devorou” (1997,p. 151).

A fronteira, que poderia ser um momento único de descoberta do homem, é marcada por momentos trágicos de destruição e morte. Contudo, na fronteira, ou nas fronteiras ainda abertas, tudo está para ser construído na relação de vida que pode ser estabelecida com o outro e não na relação de destruição que até então se constituiu. 5. Referências bibliográficas. BORGES, Maria Stela Lemos. Terra: ponto de partida, ponto de chegada: identidade e luta pela terra. São Paulo: Editora Anita, 1997. DESCOLA, Phulippe. Ecologia e Cosmologia. Versão sintetizada e revista das conferências Lourat, Collêge de France, 4 e 11 de abril de 1996. Tradução de Maria da Graça Leal. LARAIA, Roque de Barros. Cultura um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Zahar, 1989. LOCATEL, Celso D. O desenvolvimento da fruticultura e a dinâmica da agropecuária na região de Jales — SP. Presidente Prudente: UNESP/ FCT, 2000. (Dissertação de Mestrado). MARTINS, José de Souza. Capitalismo e Tradicionalismo: estudos sobre as contradições da sociedade agrária no Brasil. São Paulo: Pioneira, 1975. MARTINS, José de Souza. Expropriação e Violência no Campo. São Paulo: Hucitec, 1980. ______________________. Fronteira: a degradação do outro nos confins do humano. São Paulo: Hucitec, 1997. 213 p. ______________________. O Cativeiro da Terra. São Paulo: Hucitec, 1979. _______________________. O problema da migração no limiar do Terceiro Milênio. In: O fenômeno migratório no limiar do 3º milênio. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 19-34. MONBEIG, Pierre. Pioneiros e Fazendeiros de São Paulo. São Paulo: Hucitec, 1984. 392 p. MURAMATSU, Luis N. As Revoltas do Capim (Movimentos Sociais-Agrários no Oeste Paulista - 1959-1970). Dissertação de Mestrado em Sociologia. São Paulo: USP, 1984. RIBEIRO, Darcy. Os Índios e a Civilização (A Integração das Populações Indígenas no Brasil Moderno). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. RIBEIRO, Eduardo Magalhães, et. al. História Rural e Questão Agrária. Lavras: UFLAIFAEPE, 1997. SMITH, Neil. Desenvolvimento desigual. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 1988.

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RURALIDADE NOS TERRITÓRIOS: O EXEMPLO DO ESTADO DO PARANÁ∗∗∗∗

Diânice Oriane SILVA∗∗∗∗∗∗∗∗

Rosângela Ap. de Medeiros HESPANHOL∗∗∗

Resumo: O presente artigo traz algumas reflexões acerca da ruralidade no Brasil e, em particular, no território paranaense. Procura evidenciar a pertinência de se considerar o território como recorte analítico e operacional para o planejamento de ações, públicas e/ou privadas, direcionadas ao desenvolvimento. Nesse contexto, o artigo foi estruturado em três partes. Na primeira, se procurou destacar alguns pontos do debate sobre o território e de como essa dimensão analítica está relacionado intrinsicamente com o mundo rural. O espaço rural é discutido na segunda parte, em que se tenta articular uma análise entre território, ruralidade e desenvolvimento. Na terceira parte, se apresenta uma proposta para o reconhecimento de espaços rurais no estado do Paraná.

Palavras-chave: ruralidade; desenvolvimento; território paranaense.

Resumen: El presente artículo presenta algunas reflexiones sobre la ruralidad en Brasil y, en particular, en el territorio paranaense. Objetiva evidenciar la pertinencia de considerar el territorio como recorte analítico y operacional para la planificación. En ese contexto, el artículo fue estructurado en tres partes. En la primera, se procuró destacar algunos puntos del debate sobre el territorio y de como esa dimensión analítica está relacionada intrínsicamente con el mundo rural. El espacio rural es discutido en la segunda parte, en la cual se trata de articular un análisis entre territorio, ruralidad y desarrollo. En la tercera parte se presenta una propuesta para el reconocimiento de espacios rurales en el Estado de Paraná. Palabras-llave: ruralidad; desarrollo; territorio paranaense.

1. Algumas reflexões sobre a ruralidade.

A partir da segunda metade do século XX, a agricultura passou por intensas mudanças em virtude da adoção do pacote tecnológico da Revolução Verde, estimulada pelo Estado brasileiro. Iniciou-se, assim, um processo de tecnificação, com a utilização de insumos, corretivos, defensivos e maquinários agrícolas.

Essa mudança na base técnica da agricultura ocasionou inúmeras alterações de ordem econômica, social e ambiental, tendo repercussões diretas, tanto no meio rural como no urbano.

Nesse contexto, a ruralidade, entendida como uma construção social específica no conjunto societário enfatiza a importância de se estar tratando de um modo de ser e um modo de viver mediado por uma maneira singular de inserção nos processos sociais e no processo histórico, como assinala Martins (2000).

Essa singularidade está presente nos estudos atuais de Ferreira e Jean (1999, p.67), quando afirmam que

[...] le rural et l’urbain constitueraient deux ‘types idéaux’ de formes territoriales de la vie sociale, porteurs des singularités malgré la croissante interpénétration des deux mondes [...]

∗ Texto publicado 2005 (n.12 v.1) ∗∗ Doutoranda em Geografia pela FCT/UNESP, Campus de Pres. Prudente e membro do Grupo de Estudos Dinâmica Regional e Agropecuária – GEDRA. ∗∗∗ Docente dos Cursos de Graduação e de Pós-Graduação em Geografia da FCT/UNESP de Pres. Prudente e coordenadora do GEDRA.

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Wanderley (1999) também observa que, a ruralidade/ o rural devem ser conhecidos nos seus termos e não em relação à cidade, apreendida como sua referência espacial, dela dependendo política, econômica e socialmente.

Entretanto, a relação rural-urbano no âmbito da modernidade tem sido sistematicamente tensionada por um tipo de concepção que valoriza positivamente o urbano como o lócus privilegiado de realização do que é moderno e do progresso, e negativamente o rural, como o locus do que é tradicional e do que é atrasado.

Não resta dúvida de que a maior parte das populações rurais tem vivido intensos processos de transformação tanto na base produtiva como na organização social, porém, tal processo ultrapassa o meio social rural e estende-se ao conjunto da sociedade.

1. 1. O rural como categoria de análise.

O mundo da modernidade tem se surpreendido pela manutenção, pela permanência, pela

capacidade de transformação e de mudanças no mundo tradicional, neste caso entendido como o rural. Sistematicamente tem-se anunciado o fim do rural, pois se vêem nele vários atributos, econômicos, sociais e culturais, à margem da lógica capitalista, como que guardando resquícios de uma ‘velha ordem’.

Nas duas últimas décadas do século XX, intensificaram-se os questionamentos sobre as transformações recentes ocorridas no meio rural. Nesse sentido, verifica-se que há duas perspectivas: de um lado, aquela que encontra cada vez mais indícios do desaparecimento das populações rurais e, portanto, da sujeição desse espaço social à hegemonia do processo de industrialização e de urbanização; e de outro, observando os mesmos processos, constata que o mundo rural não se reduz à homogeneização da sociedade contemporânea, ao contrário, as particularidades dos modos de vida que se desenrolam nesse espaço social – o rural - permitem que sejam observadas e constatadas as permanências, as reconstruções, as emergências de processos sociais e ambientais que dão especificidade a esta forma sócio-espacial que é a ruralidade.

Esse trabalho se alinha de acordo com essa segunda perspectiva, que identifica as transformações profundas por que passa a sociedade no período atual, mas entende que o rural não se ‘perde’ nesse processo, ao contrário, reafirma sua importância e particularidade. Nos dizeres de Wanderley (2000), as diferenças espaciais e sociais das sociedades modernas apontam não para o fim do mundo rural, mas para a emergência de uma nova ruralidade.

Desde os anos de 1980, a emergência de uma nova ruralidade vem sendo debatida tanto em âmbito nacional como internacional. Nesse sentido, vários estudiosos têm elencado os elementos que permitem repensar a importância, as especificidades e as particularidades do mundo rural. Neste contexto é que se observou o surgimento de alguns termos que procuram dar conta dessas mudanças, tais como: a emergência de uma nova ruralidade, o renascimento do rural, a ruralidade contemporânea, a valorização do meio rural, a resignificação do rural, etc.

Assistiu-se, assim, a partir dos anos de 1990, ao que se poderia chamar de uma ‘redescoberta’ do rural enquanto categoria de análise passível de intervenções e interpretações. O debate sobre o tema reacendeu “velhas” discussões e trouxe novos parâmetros para se pensar as antigas e as novas questões do rural.

Dentre as inúmeras análises realizadas, pode-se perceber que a dimensão territorial do rural tomou proporções significativas.

Mas, por que essa ‘redescoberta’ do rural? No Brasil, o rural emerge não de um fato isolado, mas sim de uma conjuntura economicamente recessiva e do acirramento das lutas sociais. Internacionalmente, a reordenação jurídica, econômica e social posta em curso pela consolidação da União Européia constituiu-se num fórum privilegiado para as análises e propostas de desenvolvimento do rural. De um modo geral, pode-se dizer que o rural ganhou novas atribuições e significados no contexto de crise do modelo produtivista.

A reflexão sobre o desenvolvimento, de uma maneira ou de outra, foi permeada pela questão da escala – global, nacional, regional, local. Esse olhar sobre o desenvolvimento acabou por mostrar a existência de uma economia de base agrícola dinâmica concomitante à percepção de uma diversificação nas funções do espaço rural.

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No que tange ao mundo rural, outras funções se desenvolveram, contribuindo para que as pequenas localidades, identificadas com o modo de vida rural, fossem valorizadas, como, por exemplo, com a ênfase na questão ambiental. A busca de alternativas menos agressivas, em termos ambientais, de crescimento econômico e a construção do conceito de desenvolvimento sustentável acabaram por lançar um olhar para experiências que pudessem ser modelos alternativos de produção, consumo e qualidade de vida.

Paralelamente, a economia agrícola, particularmente a norte-americana, detentora de uma tecnologia cada vez mais sofisticada, intensifica a produção e introduz importantes modificações na organização do trabalho. Do ponto de vista teórico, o que acontece na economia agrícola norte-americana apresenta rebatimentos que se fazem presentes, particularmente quanto às características do part-time e da pluriatividade, como enfatiza Schneider (2003). Esses conceitos que, apesar de terem sido elaborados em outro momento histórico, tornam-se centrais na definição dos territórios, baseados na interpretação das atividades rurais e nos seus desdobramentos em termos econômicos, sociais, ambientais, culturais e políticos.

A observação e a análise do rural migram do enfoque puramente setorial para o territorial. E não é por acaso que essas categorias de análise estarão recorrentemente sendo objeto de considerações teórica. O território assume um papel crescente como recurso analítico e como unidade de planejamento e intervenção, substituindo, gradativamente, a região.

O movimento que o capital engendra, respaldado por uma tecnologia de informação e comunicação nunca vista antes, coloca de maneira avassaladora o global. Para o capital não há fronteiras físicas, e as fronteiras políticas, depois da queda do muro de Berlim, nunca mais foram as mesmas. Porém, em um aparente paradoxo, é nesse contexto que o espaço local ganha destaque.

Diante desse movimento complexo, o local – recorte espacial de média e pequena dimensão – que apresenta um padrão de desenvolvimento, coloca-se em evidência. Não se deve esquecer que o local ganhou destaque na medida em que, no contexto de ineficácia das políticas estatais macroeconômicas e de desregulamentação, em que certos espaços, dentro dos países, tiveram uma inserção e um crescimento distintos de outros.

A escala territorial passou então para o primeiro plano, em que o espaço local encontrou fervorosos defensores e detratores, porque, como bem colocou Vainer (2001/2002, p. 12), do “ponto de vista do pensamento social e político, desde o grande debate que aconteceu e acompanhou a I Guerra Mundial, a questão da escala de ação nunca se havia colocado com tanta centralidade”.

Em meio às transformações em curso, um fato tornou-se evidente, sobretudo nos países desenvolvidos europeus: o rural ganhou outras funções, outros papéis, enfim outras conotações (MARTINS, 2000; JOLLIVET, 1998).

O enfoque territorial permite pensar o desenvolvimento para além dos centros urbanos, onde os pequenos municípios são estrelas de uma constelação. Procurar entender as motivações e os processos que levaram a essa perspectiva analítica é poder refletir sobre o futuro, seja ele nas aglomerações urbanas, seja no espaço rural.

O território, seja ele qual for, não é uma entidade que paira independente sobre a sociedade, mas um espaço em que as relações sociais são conferidas historicamente.

Nesse sentido, deve-se levar em conta que não existe neutralidade no emprego da categoria território. Este, visto como o espaço da concentração e da harmonia, passou a ser a alternativa neoliberal na utilização de categorias analíticas que se contrapunham às categorias marxistas, especialmente aquelas relativas ao conflito capital/trabalho. Mais ainda, não são poucos os autores que fazem a apologia da categoria território, como a instância capaz de se superpor aos Estados Nacionais – entendendo isso como uma ‘virtude’.

Essa idéia de território pode ser mais adequada à noção de um território em mudança, de um território em processo. Se o tomarmos a partir de seu conteúdo, uma forma-conteúdo, o território tem de ser visto como algo que está em processo. E ele é muito importante, pois é o quadro da vida de todos nós, na sua dimensão global, na sua dimensão nacional, nas suas dimensões intermediárias e na sua dimensão local. Por conseguinte, Santos (1999) ressalta que é o território que constitui o traço de união entre o passado e o futuro imediatos.

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A idéia de território expressa na abordagem de Santos (1999) permeou a elaboração desse artigo. O ponto motivador desse trabalho foi justamente compreender o papel do rural no território e na sociedade contemporânea, particularmente a paranaense.

Essas observações sobre alguns dos elementos presentes na discussão do território, mesmo sendo parciais, abrem a possibilidade de avançar teórica e metodologicamente na compreensão do rural, que esta inserido em uma economia globalizada.

Nesse sentido, buscou-se dimensionar o rural tendo em vista sua participação no(s) território(s) e no desenvolvimento. 2. Agricultores familiares: parcela importante e significativa da população rural.

Desenvolve-se, na atualidade, importantes pesquisas que tentam compreender a importância e o

significado da agricultura e dos agricultores no meio rural. Isso por que, parte significativa da diversificação econômica e da pluriatividade têm sua origem nas famílias agrícolas. A pluriatividade não se constitui num processo de abandono da agricultura e do meio rural. Freqüentemente, a pluriatividade expressa a adoção de uma estratégia familiar, quando as condições o permitem, para garantir a permanência no meio rural e os vínculos mais estreitos com o patrimônio familiar.

Para Wanderley (2001), as famílias, pluriativas ou não, são depositárias de uma cultura, cuja reprodução é necessária para a dinamização técnico-econômica, ambiental e sociocultural do meio rural. Da mesma forma, o ‘lugar’ da família, isto é, o patrimônio fundiário familiar, se constitui num elemento de referência e de convergência, mesmo quando a família é pluriativa e seus membros vivem em locais diferentes. Daí, a importância do patrimônio fundiário familiar e das estratégias para constituí-lo e reproduzí-lo, sobretudo em um processo que valorize a identidade territorial.

Dentre os processos sociais em curso, há um que vem sendo desenvolvido por um segmento específico de agricultores familiares: a adoção do sistema produtivo da agricultura orgânica. Esta adoção que se traduz para os agricultores tradicionais num processo de conversão produtiva, para a maioria dos agricultores neorurais é o início de sua trajetória na agricultura. Entretanto, esta é uma estratégia que tem permitido a viabilização de um projeto de vida no meio social rural.

Ao enfocarmos em nossa análise a produção familiar, enfatizamos que esta sempre foi vista à margem, secundária perante o latifúndio, como unidade precária, de subsistência, etc., e que, a grande propriedade “que recebeu o estímulo social expresso na política agrícola, que procurou modernizá-la e assegurar sua reprodução” (WANDERLEY, 2001, p. 38).

Desta forma, constata-se que a agricultura familiar sempre ocupou um lugar secundário na sociedade brasileira, como enfatiza Wanderley (2001, p.38), constituindo-se “[...] historicamente como um setor ‘bloqueado’, impossibilitado de desenvolver suas potencialidades enquanto forma social específica de produção”.

Porém, essa forma de descaso dos sucessivos governos em relação à produção familiar, trouxe graves conseqüências sociais para o país, refletindo-se por meio da expansão de movimentos sociais pela terra.

De acordo com Hespanhol (2000), a agricultura familiar na década de 1990 passou a ser um dos temas centrais da questão agrária brasileira, não apenas nos meios acadêmicos como também governamentais, pelo papel desempenhado por tais produtores para o desenvolvimento do país.

Entre os vários aspectos abordados referentes à agricultura familiar no período, ganharam expressividade os relacionados à inserção social e econômica dessas explorações familiares; a pluriatividade das unidades produtivas; os impactos decorrentes das políticas públicas destinadas a tais produtores, em especial o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF); a questão do desenvolvimento local; as organizações sociais como associações e cooperativas; e as estratégias de reprodução social dessa categoria de produtores rurais.

Diante do exposto, pode-se dizer que as diversidades espacial, ambiental, populacional e cultural são variáveis importantes na compreensão dessa categoria de análise. Essa diversidade ganha forma e função no espaço-tempo (SANTOS, 1993; 1999), nascendo aí os territórios.

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Os territórios operados como unidades de planejamento voltadas para a promoção do crescimento econômico e do desenvolvimento social reconhecem a diversidade como condição do desenvolvimento.

Assume-se que a noção de território tomada não como panacéia, trás em si a possibilidade de considerar a desigualdade, seja econômica, seja cultural.

Ao se ter claro que a categoria território possibilita intervenções que promovam o desenvolvimento, no sentido de eqüidade e cidadania, é possível superar o modismo ‘localista’.

A idéia de território contribui para uma ação conseqüente voltada para o desenvolvimento, mas é preciso compreender o papel do rural no território, percebendo que o “espaço local é, por excelência, o lugar da convergência entre o rural e o urbano; um programa de desenvolvimento local não substitui o desenvolvimento rural, mas o incorpora como parte integrante” (WANDERLEY, 2001, p. 52). Reconhecer que o mundo rural é o repositório de um modo de ser, é reconhecer que

[...] As populações rurais, mais do que instrumentos da produção agrícola, são autoras e consumidoras de um modo de vida que é também um poderoso referencial de compreensão das irracionalidades e contradições que há fora do mundo real. (MARTINS, 2000, p. 64)

O desafio da promoção do desenvolvimento no território deve levar em conta a totalidade da

realidade. Essa totalidade significa contemplar o particular: a realidade local subsiste, convivendo com os elementos do mundo globalizado.

O rural, assim entendido, deixa de ser o espaço, por excelência da produção agrícola. Alarga-se sua compreensão, envolvendo também as pequenas e médias cidades. O modo de ser rural se faz presente no campo e na cidade e passa a ser denominado ruralidade.

O conceito de ruralidade está em construção e permite um emprego sintonizado com pressupostos do desenvolvimento.

A ruralidade, tal qual o território, representa a oportunidade de incluir, ampliar, absorver o que tem se mantido fora, alargando horizontes, não naturalmente, mas dependentemente da decisão política a ser tomada.

3. Ao encontro dos territórios: o rural paranaense.

As mudanças na estrutura produtiva do Norte do Estado do Paraná, instauradas a partir da década de 1970, provocaram transformações, desencadeadas por um intenso movimento do capital urbano-industrial no campo.

Tais mudanças interferiram na base técnica da produção agropecuária em virtude: da introdução de novos cultivos; da expansão dos complexos agroindustriais; do sistema cooperativo agrícola e de crédito; das alterações nas relações sociais de produção, com a expansão do trabalho assalariado no campo – os bóias-frias; da concentração da propriedade fundiária; e, dos novos mecanismos de circulação.

São estes alguns dos elementos necessários ao entendimento da expansão das relações de produção capitalista no campo, submetendo a produção agropecuária à lógica de produção e reprodução do capital industrial.

Nesta seção, propõe-se lançar um olhar sobre o Estado do Paraná, observando a questão da ruralidade. Como o território conforma-se no tempo, sua dimensão é histórica. No entanto, a diversidade econômica e social presente na sociedade paranaense propicia o reconhecimento de territórios construídos, cujo processo histórico imprimiu uma marca, e territórios por construir, onde as identidades culturais encontram-se dispersas.

Abramovay (2000, p. 02) faz importantes discussões sobre a ruralidade ao afirmar que

[...] o meio rural inclui o que no Brasil chamamos de ‘cidades’ – em proporções que variam segundo diferentes definições, abrindo caminho para que se enxergue a existência daquilo que, entre nós, é considerado uma contradição nos termos: cidades rurais.

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As ruralidades são uma das formas complexas de modificação do espaço, fruto de uma expansão capitalista e, podem ser observadas nas cidades. Destaca-se, por exemplo, o modo de vida das pessoas que realizam pequenos cultivos agrícolas no interior das cidades e pela atividade eminentemente agrícola praticado por moradores residentes no espaço urbano, como ressaltou Wanderley (2001). Esses tipos de ruralidades são comumente encontrados nas cidades do norte do Paraná.

O território quando conformado historicamente, possui maior visibilidade. O que leva o planejamento público ou privado, e mesmo a sociedade, a reconhecê-lo em suas particularidades. O território histórico, além de legítimo, é legitimado pela ação pública quando o reconhece. Por outro lado, os espaços ainda por se fazerem territórios devem ser também objeto da ação pública. Para tanto, o planejamento deverá incentivar e fortalecer as manifestações que o particularizam, mesmo que de forma incipiente.

A cultura é indissociável de um sentimento de pertencimento (WANDERLEY, 2001). O agir humano cristaliza-se na identidade com o lugar em que vive – criando uma relação com o território. O território permite recortes analíticos, horizontais e verticais. Passando para o plano concreto, há situações em que o território ultrapassa os limites estaduais, como por exemplo, os parques e reservas.

Os consórcios municipais constituem exemplos de um planejamento para além do município, visando maior racionalidade de recursos humanos e financeiros no desenvolvimento de políticas pontuais, um arranjo arbitrário e que, não necessariamente, abrange um território em sua totalidade.

Desta forma, está-se admitindo duas situações distintas como referência e/ou construção dos territórios paranaenses: uma baseada em territórios históricos (reconhece-se o território e legitima-o para a ação pública), e outra em que, na ausência de uma condição histórica, criam-se territórios a partir de critérios preestabelecidos (construção de territórios para ação pública).

Faz sentido pensar o rural no território quando se percebe que a sociedade paranaense reconhece determinados espaços como culturalmente diferenciados. Como exemplos, podem ser citados o litoral; o Vale do Ribeira; o caminho dos tropeiros; o sudoeste. Esse reconhecimento tem a ver com o processo de ocupação do território; tem a ver com sua história.

Se, por um lado, o reconhecimento dos aspectos históricos, sociais e políticos, que conformam o patrimônio cultural de um território, dependem de diagnóstico específico, por outro lado, podem se estabelecer procedimentos de reconhecimento territorial anteriores ao do patrimônio cultural. É possível uma aproximação dos territórios a partir das estatísticas oficiais, que permitem organizar o espaço paranaense segundo os critérios definidos.

Para dimensionar o rural paranaense serão utilizados os dados do Censo Demográfico 2000 – IBGE, na qual os dados foram desagregados por município, e as variáveis utilizadas foram população e ocupação.

Adotou-se como critério para a definição dos espaços rurais, municípios cuja população total é de até 20 mil habitantes. Esse corte tem sido utilizado por vários organismos. No Brasil, Martine; Garcia (1987), entre outros, propõem considerar como cidades as aglomerações superiores a 20 mil habitantes. Entende-se que esse limite abrange e capta uma realidade essencialmente rural de um número expressivo de municípios paranaense. Agrega-se ao critério de tamanho da população e densidade demográfica.

Nesse caso, adotou-se o critério proposto por Veiga (2002) para definir municípios de pequeno porte. Essa medida é conferida pela densidade demográfica inferior a 80 habitantes por km2. Complementarmente, adotou-se também como critério a variável população economicamente ativa (PEA) ocupada na agropecuária e ocupações industriais de base agrícola.

Nesse estudo, foram excluídas da análise as aglomerações urbanas, por entender-se que estas possuem uma dinâmica particular. O rural das aglomerações urbanas deve ser analisado por uma metodologia que possa captar as suas especificidades.

O Estado do Paraná possui sete aglomerações (Cascavel, Curitiba, Foz do Iguaçu, Litoral, Londrina, Maringá e Ponta Grossa), envolvendo 47 municípios e abrigando 50,3% da população paranaense.

Em termos populacionais, há o predomínio de pequenos municípios e baixa densidade demográfica. Nos dois casos analisados (população total e densidade demográfica), o número de municípios é expressivo. Dos 352 municípios que estão fora das aglomerações urbanas, 302 possuem

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população total com até 20 mil habitantes, e 345 apresentam densidade demográfica inferior a 80 hab./km2. Em percentuais, isso equivale a 86,8% e 98,0 %, respectivamente.

Se aplicarmos as duas condições para o total dos municípios do estado – exceto aglomerações urbanas, população total até 20 mil e densidade demográfica inferior a 80 hab/km2, chega-se a um total de 300 municípios, representando 85,0% do total.

Mesmo não tendo sido privilegiado nessa análise, considerou-se pertinente investigar a variável ocupação pela importância que a economia agrícola possui no Paraná, como também por ter sido o setor que mais liberou mão-de-obra nos últimos 30 anos. Adotou-se como critério, o fato de mais de 50% da PEA (População Economicamente Ativa) ser ocupada na agropecuária ou em indústrias de base agrícola.

No Estado do Paraná, 188 municípios preenchem essa condição. Ao constatar que mais de 53% da PEA está vinculada produtivamente à agropecuária ou às atividades derivadas, o rural paranaense torna-se ainda mais significativo. Chama-se a atenção para o fato de que a variável ocupação difere dos critérios adotados anteriormente por ser um indicador clássico nas análises que privilegiam os setores econômicos para identificar áreas rurais.

O resultado apresentado mostra que, mesmo nessa condição, o rural que daí emerge tem representatividade espacial, estando presente em 58,2% dos municípios paranaenses.

Seria imprudente não reconhecer que, no Paraná, o rural não só é presente, como possui expressividade. Admitindo que as variáveis utilizadas – população total, densidade demográfica e ocupação – são capazes de mostrar uma realidade impregnada pelo rural, tem-se um Estado espacialmente rural.

4. Considerações finais.

Esse texto procurou trazer para a discussão a pertinência da dimensão territorial no planejamento e na promoção do desenvolvimento.

No caso do Estado do Paraná, o espaço rural integra os territórios de forma preponderante. Reconhecer, na prática, a expressividade do espaço rural é trazer essa dimensão para o plano operacional, incorporando-a nas análises, nos programas e nos projetos governamentais e não-governamentais. Entende-se que o binômio território e ruralidade são dimensões fundamentais para se pensar o desenvolvimento.

Por sua característica de convergência, a dimensão territorial do espaço possibilita diversas leituras e apropriações. Por isso, a importância de não deixar escapar a idéia de totalidade, para que se possa construir oportunidades e conquistar o desenvolvimento.

Este trabalho não tem a pretensão de esgotar um assunto tão complexo e desafiador quanto o do papel do rural para e no desenvolvimento. Mas, se ele for capaz de suscitar indagações, então terá cumprido seu objetivo de ser um ponto de reflexão, porque, ao chegar aqui, se tem a impressão de estar apenas começando. 5. Referências Bibliográficas. ABRAMOVAY, R. Funções e medidas da ruralidade no desenvolvimento contemporâneo. Rio de Janeiro: IPEA, 2000. FERREIRA, A. D. D.; JEAN, B. La reconstruction de lá ruralité: une approche entre le Quebéc, Canada et le Paraná. [s.l.], 1999. HESPANHOL, R. A. de M. Produção Familiar: perspectivas de análise e inserção na microrregião geográfica de Presidente Prudente – SP. 2000. Tese (Doutorado em Geografia) – Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro. IBGE. Censo Demográfico 2000: características da população e dos domicílios – resultados do universo. Rio de Janeiro, 2001. IBGE. Censo Demográfico 2000: microdados da amostra – Paraná. Rio de Janeiro, 2002. CD-ROOM.

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PARADOXOS DA TECNIFICAÇAÇÃO AGRÍCOLA NO NORTE DO PARANÁ∗∗∗∗

Eliane Tomiasi PAULINO∗∗∗∗∗∗∗∗

Resumo: Diante das mudanças recentes no campo e da ampla e genérica utilização do conceito de modernização para explicá-las, uma reflexão mais cuidadosa não deixa de ser pertinente, sobretudo porque nos dias atuais, moderno é uma terminologia sagaz, cujo brilho pode ocultar sua face mais obscura, a exemplo dos desdobramentos desse processo no Brasil. É nesse bojo que outro conceito, o de camponês, quase acaba por ser banido e, como num passe de mágica, no plano analítico, os seres sociais a que se refere. Esse curso dos fatos acaba por explicitar uma falsa dualidade: o moderno contra o ultrapassado. Fiel à advertência de Shanin de que o preço da utilização dos modelos é a eterna vigilância, ao referirmo-nos ao teor desse debate, temos o propósito de refletir sobre a necessidade de se distinguir incorporação de tecnologia com modernização das relações de produção. Assim, é a explicitação dos paradoxos que esse mesmo processo produziu no Norte do Paraná, uma das áreas de maior índice de tecnificação do país, que se constitui a tônica desse trabalho. Palavras-Chave: Norte do Paraná; agricultura; modernização da base técnica; concentração do uso da terra; recriação camponesa.

Resumen: Delante de los cambios recientes en el campo y de la amplia y genérica utilización del concepto de modernización para explicarlas, una reflexión más cuidadosa no deja de ser pertinente, sobre todo porque los días actuales, moderno es una terminología astuta, cuyo brillo puede ocultar su faz más obscura, a ejemplo de los desdoblamientos de ese proceso en Brasil. Es en ese contexto que otro concepto, el de campesino, casi acaba por ser banido y, como en un pase de mágica, en el plan analítico, los seres sociales la que se refiere. Ese curso de los hechos acaba por explicitar una falsa dualidad: el moderno contra lo ultrapasado. Fiel a la advertencia de Shanin de que el precio de la utilización de los modelos es la eterna vigilancia, al nos refiramos al contenido de ese debate, tenemos el propósito de reflejar sobre la necesidad de distinguirse incorporación de tecnología con modernización de las relaciones de producción. Así, es la explicitacion de las paradojas que ese mismo proceso produjo en el Norte de Paraná, una de las áreas de mayor índice de tecnificación del país, que se constituye la esencia de ese trabajo.

Palabras-llave: Norte de Paraná; agricultura; modernización de la base técnica; concentración del uso de la tierra; recriacion campesina.

1. Introdução. Diante do estágio monopolista do modo capitalista de produção, profundas mudanças são

verificadas nas relações de trabalho e nas relações de produção. No que se refere ao campo, a transição do patamar técnico pautado no predomínio da força física para aquele que se sustenta a partir do uso intenso de máquinas e insumos industriais implica um radical rearranjo territorial em que os termos do acesso e da exploração econômica da terra são profundamente alterados.

No Brasil, a rapidez e a intensidade com que as máquinas foram ocupando posições no cenário até então dominado pelo trabalho braçal não produziu apenas sobressaltos nos milhões de trabalhadores que repentinamente se viram obrigados a migrar, seja para os centros urbanos, seja para as áreas de fronteira.

Provocou também mudanças no conteúdo das interpretações sobre esses mesmos fenômenos, o que nos leva a fazer uma breve reflexão sobre os fundamentos teóricos contidos em algumas dessas análises para, posteriormente, analisarmos os desdobramentos dessas mudanças no Norte do Paraná.

∗ Artigo publicado em 2005 (n.12 v.1). ∗∗ Professora Adjunta do Depto. de Geociências da Universidade Estadual de Londrina. E-mail: [email protected]

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2. Modernização como sinônimo de tecnificação: fundamentos teóricos.

As mudanças que afetaram o campo brasileiro desde a segunda metade do século XX

representaram um importante desafio aos cientistas, visto que em poucos anos um enorme contingente populacional deslocou-se para as cidades. Se por um lado, avolumaram-se dúvidas e esforços no sentido de apreender as dimensões desse fenômeno nos centros urbanos, não menos inquietos ficaram aqueles envolvidos com os estudos agrários, o que fomentou um grande debate acerca do conteúdo e dos rumos dessas mudanças.

Em linhas gerais, pode-se afirmar que ganharam visibilidade os fundamentos teórico-metodológicos que acabaram por conferir centralidade ao conteúdo técnico do processo que avançava a passos largos na agricultura, levando à disseminação da idéia de modernização da agricultura a partir de uma perspectiva generalizante. É esse contexto que nos remete às considerações de Martins acerca do tema ao qual está atrelada a referida noção de modernização.

O tema da modernidade está profundamente comprometido com o do progresso [...]. e ainda é confundido, por alguns, com o tema do moderno em oposição ao tradicional [...]. Essa interpretação de fundo positivista reinstaura o escalonamento do processo histórico, relegando ao passado e ao residual aquilo que supostamente não faria parte do tempo da modernidade [...]. Seriam manifestações anômalas e vencidas de uma sociabilidade extinta pela crescente e inevitável difusão da modernidade que decorreria do desenvolvimento econômico e da globalização. (MARTINS, 2000, p. 17-18)

Assim, ainda que importantes diferenças teórico-metodológicas tenham se evidenciado, a

compreensão ofuscada pelas inovações técnicas na agricultura reforçou a noção de transformação profunda na estrutura agrária, ressaltando o pressuposto da eficiência produtiva desse padrão produtivo. Em outras palavras, projetou-se, no campo analítico, a racionalidade produtiva centrada na intensa utilização de máquinas, insumos e técnicas de manejo, em tese, passível de incorporação somente pelas grandes propriedades.

Some-se a isso a compreensão de que o aprofundamento das trocas comerciais orientado por esse padrão produtivo imporia a racionalidade de mercado entre os camponeses, deflagrando a fragilização dos laços socioculturais ancorados nas relações pessoais.

As sociedades camponesas são incompatíveis com o ambiente econômico onde imperam relações claramente mercantis. Tão logo os mecanismos de preços adquiram a função de arbitrar as decisões referentes à produção, de funcionar como princípio alocativo do trabalho social, a reciprocidade e a personalização dos laços sociais perderão inteiramente o lugar, levando consigo o próprio caráter burguês da organização social. (ABRAMOVAY, 1990, p. 124)

Portanto, o autor supõe que, ao serem alteradas as bases técnicas, uma classe social (os

camponeses) desapareceria, dando lugar a uma nova categoria social (os agricultores profissionais), implicitamente integrantes da pequena burguesia. De certo modo, essa compreensão provoca uma associação automática entre incorporação de tecnologia e exploração empresarial na agricultura, lançando suspeição sobre a viabilidade da exploração familiar de elevada participação de mão-de-obra e baixa capacidade de investimento, corroborando assim a tese de desaparecimento do campesinato.

Não se quer aqui negar a existência desse processo, mas a suposta dimensão que o mesmo teria assumido não corresponde aos fatos, senão vejamos.

[...] sob certas condições, os camponeses não se dissolvem, nem se diferenciam em empresários capitalistas e trabalhadores assalariados e tampouco são simplesmente pauperizados. Eles persistem, ao mesmo tempo que se transformam e se vinculam gradualmente à economia capitalista circundante, que pervade suas vidas. Os camponeses continuam a existir, correspondendo a unidades agrícolas diferentes, em estrutura e tamanho, do clássico estabelecimento rural familiar camponês. (SHANIN, 1980, p. 58)

Como se pode observar, divergências profundas são explicitadas na compreensão do destino dos

camponeses na sociedade capitalista, razão pela qual Oliveira (1986) cunha o conceito de monopolização do território para explicar a recriação contraditória do campesinato pelo modo capitalista de produção De

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acordo com esse autor, o capitalismo “além de redefinir antigas relações, subordinando-as à sua produção, engendra relações não-capitalistas igual e contraditoriamente necessárias à sua reprodução” (OLIVEIRA, 1986, p. 67).

Sabe-se, porém que as raízes desse debate estão nos clássicos, particularmente Kautsky (1980) e Lênin (1982) que, ao se debruçarem sobre as mudanças que atingiram a agricultura nas últimas décadas do século XIX, ante a penetração do capitalismo no campo, preconizaram o desaparecimento do campesinato. Para eles, haveria uma incompatibilização entre as condições produtivas características da agricultura de base familiar e local com as novas demandas impostas por um modo de produção que tinha, cada vez mais, a necessidade de operar em escala planetária.

Em outras palavras, esses autores assinalaram a destruição inexorável das condições de reprodução econômica centrada no controle dos meios de produção e da força de trabalho familiar, em face da emergência de uma racionalidade técnica particularmente compatível com a divisão entre trabalho intelectual e trabalho braçal. Por excelência, sobreviveriam tão somente os produtores dotados de capacidade financeira e visão empresarial que permitisse operar com uma lógica de mercado abrangente.

De acordo com a tese da diferenciação social de Lênin, aos camponeses haveria apenas dois caminhos: enriquecer, alçando a condição burguesa, ou perder os meios de produção próprios, proletarizando-se enfim. Portanto, a possibilidade de permanecer como classe detentora tanto da força de trabalho quanto dos meios de produção não estava prevista nos seus esquemas teóricos.

Contudo, é importante lembrar que esse arcabouço não se instituiu por unanimidade, haja vista os apontamentos de Chayanov, contemporâneo desses pensadores

[...] podemos ver com toda claridad que no hay que esperar necessariamente que el desarrollo de la influencia capitalista y la concentracion en la agricultura desenboquen en la creación y el desarrollo de latifúndios. Con Mayor probabilidad había que esperar que el capitalismo comercial y financiero establezca una dictadura económica sobre considerables setores de la agricultura, la cual permacería como antes en lo relativo a producción, compuesta de empresas familiares de explotación agrícola en pequeña escala sujeitas en su organización interna a las leyes del balance entre trabajo y consumo. (CHAYANOV, 1974, p. 42)

Como se pode observar, Chayanov foi o que melhor elucidou tal desfecho, pois mais de um

século se passou e a agricultura camponesa continua presente tanto nos países pobres quanto nos países ricos, embora seja marcante a monopolização do território camponês pelo capital. É por isso que Shanin (1980, p. 57), adverte que

O capitalismo ‘juvenil’ e otimista do século XIX influenciou muito a visão marxista clássica. Era visto como agressivo, dominador e supereficaz em sua capacidade de se expandir. Como o dedo de Midas que transforma em ouro tudo o que toca, o capitalismo também transforma em capitalismo tudo o que toca. A terra é o limite. À luz do que realmente encontramos hoje, tudo isso parece um grande exagero. É indubitável a capacidade dos centros capitalistas de explorar todos e tudo à sua volta; mas sua capacidade ou sua necessidade (em termos de maximização de lucros) de transformar tudo ao redor à sua semelhança não o é. Os camponeses são um exemplo.

Portanto, a análise do campo brasileiro a partir da ótica do desaparecimento do campesinato está

vinculada à matriz teórica clássica que, diga-se de passagem, foi gerada em um contexto de relevantes impasses políticos envolvendo a nascente social democracia: a promessa de superação do capitalismo com a outorga do papel revolucionário ao proletariado.

Lembremos que o suposto papel revolucionário do proletariado deriva da compreensão de que essa classe, em tese, teria como tarefa histórica a condução da luta rumo ao socialismo, pela própria experiência de despojamento dos meios de produção e inserção no universo do trabalho socializado, condições essas que os camponeses não haviam experimentado.

E o fato destes ainda preservarem os meios de produção, notadamente a terra, fez com que Lênin lhes atribuísse o rótulo de “pequenos agraristas”, em virtude do entendimento de que a posse desse meio de produção conduziria a um alinhamento de interesses com os grandes proprietários fundiários, o que obviamente criaria obstáculos para o processo revolucionário.

Kautsky, embora não concordasse com essa homogeneização, ao analisar o gradiente de forças políticas, os colocava em patamar pouco honroso, dada a compreensão de sua inferioridade, tanto no que

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tange a falta das experiências “libertadoras” provocadas pelo processo de proletarização, quanto pela sua interdição à “redenção técnica”, nos termos apontados por Shanin, dada a sua suposta falta de inteligência para operar máquinas, incorporar insumos, bem como novas formas de manejo agrícola.

Contudo, é preciso salientar que, naquele momento, o desaparecimento do campesinato, enquanto classe, e a sua conversão em massa capaz de tornar os conflitos entre capital e trabalho incontornáveis, a ponto de superação do modo capitalista de produção fazia sentido, já que os camponeses, majoritários na sociedade industrial nascente, deveriam passar por uma conversão de classe que favorecesse o acirramento das contradições entre capital e trabalho. É por isso que Martins (1995), já advertira que a tese do desaparecimento do campesinato deriva de um cenário que institui uma questão mais política do que teórica.

Entre nós, a questão política, tardia em relação ao cenário clássico, emerge exatamente com as ligas camponesas, a dos sujeitos que a vanguarda política de meados do século XX procurou relegar o papel de coadjuvante no projeto de transformação política da sociedade. E o fez, ao preconizar a política de alianças que redefiniu o pacto de poder e soldou o modelo rentista ancorado na aliança terra-capital.

Essa aliança é uma demonstração da capacidade que a oligarquia teve de brecar o anseio por democratização da propriedade, ao cooptar os setores burgueses para a investida naquilo que Caio Prado Jr.(1981) já classificava de terra de negócios. A constituição de gigantescos patrimônios fundiários pelos representantes dos setores mais dinâmicos da sociedade, como o industrial e o financeiro, foi tomada como a saída moderna para o problema do latifúndio, já que esses novos agentes reuniam todas as condições para fazer a propriedade prosperar.

Esse é o contexto dessa concepção de modernização. Genérico na aplicação em vários estudos agrários, e sedutor em seu significado, passou a ser empregado como saída honrosa para uma leitura amena das contradições do campo e da cidade e, mais que isso, como panacéia, sugerindo a morte redentora do latifúndio, com sua suposta conversão em empresa rural moderna.1

Considerando que os conceitos não refletem frivolidades lingüísticas, tampouco são neutros em sua significação, como já advertira Shanin (1980, p. 76), nosso propósito é o de refletir sobre os paradoxos da aludida modernização, partindo da necessária distinção entre a esfera técnica e a das relações de produção que, ao fim, nos permitirá evidenciar o quanto é frágil a concepção que deriva dessa visão generalizante de modernização como sinônimo de eficiência produtiva a cargo de empresários da agricultura. Não fosse o seu alcance político, poder-se-ia creditá-la a um equívoco derivado da construção de um arcabouço teórico alheio às evidências da realidade.

É evidente que a amplitude do processo de tecnificação pelo qual vem passando a agricultura é inquestionável, visto que em menos de meio século, os agricultores brasileiros vivenciaram mudanças espetaculares nas formas de produzir no campo. Contudo, alguns conceitos elaborados para elucidar esse processo mais mascaram do que descortinam as contradições que estão em seu bojo.

Por isso, faz-se necessário assinalar, de antemão, que a propalada modernização da agricultura não coincide com a significação de que está impregnada, como já advertiu Martins (2000). Trata-se, sim, de uma modernização parcial, afeita em particular às técnicas empregadas na produção, já que do ponto de vista das relações de trabalho, pouco se tem a comemorar. É justamente do aprofundamento desse novo patamar técnico que emerge, por exemplo, a lógica do trabalho temporário, que submete os trabalhadores a ocupações precárias, regidas pelos ciclos de demanda por mão-de-obra nas lavouras.

3. Tecnificação agrícola e concentração do uso da terra.

É sabido que a emergência do patamar técnico baseado na intensa utilização de máquinas e agroquímicos representou a expulsão de milhões de trabalhadores, criando a separação entre população agrícola e população rural (Santos, 1993), já que uma parcela significativa da população urbana continuou vinculada às atividades no campo, ao sabor das necessidades pontuais por mão-de-obra. Daí a necessária

1 Sobre essa abordagem, confira as obras de Francisco Graziano Neto

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cautela ao se falar de modernização, já que esse é um tema cuja significação clássica remete às conquistas materiais que definitivamente os trabalhadores desterritorializados não puderam experimentar.

Máquinas modernas, arsenal químico e manipulações genéticas a serviço da produtividade convivem lado a lado com a precarização das condições de trabalho, pela sua própria capacidade de aprofundar o descompasso entre oferta e demanda por mão-de-obra. O efeito nefasto desse novo patamar técnico não tem afetado apenas os vendedores da força de trabalho, mas também os trabalhadores que outrora tinham nos termos de concessão de uso da terra, via parceria ou arrendamento, a possibilidade de se reproduzirem de forma autônoma.

No Norte do Paraná, área delimitada para esse estudo, as marcas desse processo são indeléveis, sobretudo se considerarmos que nas três últimas décadas, apenas um terço dos estabelecimentos agrícolas resistiram. Paradoxalmente, o último Censo Agropecuário (1995/96), revelou que nada menos que 87% dos estabelecimentos possuem área inferior a 50 hectares e 81% dos estabelecimentos no Estado são explorados exclusivamente pela família, o que contesta a tese da proletarização indiscriminada no período.

Outro equívoco diz respeito ao suposto impacto da agricultura tecnificada na estrutura fundiária, em termos de concentração da propriedade. Lembremos que o Brasil ocupa a posição de segundo país com maior concentração fundiária no planeta, ficando atrás apenas do Paraguai. Portanto, não se trata de uma situação conjuntural, mas sim um mecanismo estrutural de interdição ao acesso democrático à terra, cujas características se alteraram ao longo da história.

O salto exacerbado na concentração fundiária em compasso com a expansão da tecnificação, apontado pelo IBGE, sobretudo a partir dos dados censitários de 1970, explica-se principalmente pela mudança nas formas de exploração da terra. Como se sabe, após a escravidão e, particularmente, na cafeicultura, foram utilizadas formas alternativas de suprimento de mão-de-obra para a agricultura comercial, sobressaindo-se diferentes modalidades de parceria. Na prática, essas formas de parceria representavam a fragmentação da grande propriedade em uma sucessão de unidades menores cultivadas pelas famílias que ali viviam e ali desenvolviam, em concurso com a lavoura comercial do proprietário, as atividades de subsistência.

Ocorre que para o sistema censitário brasileiro, são contabilizadas as unidades econômicas, o que faz com que cada unidade a cargo de uma família seja tomada como um estabelecimento, mesmo que essa família tenha apenas a permissão de uso, regulada por diferentes formas de contrato, seja de arrendamento, parceria etc.

Obviamente, isso escamoteia a concentração fundiária, pois uma única propriedade pode gerar inúmeros estabelecimentos, característica essa que foi marcante enquanto prevaleceu o padrão produtivo centrado na utilização intensiva de mão-de-obra.

Foi a emergência do pacote tecnológico dos anos de 1960 que permitiu aos grandes proprietários concentrar a exploração da terra, dispensando a maior parte das famílias, senão todas, que residiam na propriedade. Portanto, o caráter jurídico da propriedade pouco foi afetado, sobressaindo-se a expulsão dos trabalhadores que cultivavam as grandes propriedades que experimentaram a conversão técnica .

Não queremos aqui negar o processo de expropriação, que pressupõe a perda da propriedade, mas sim ponderar que esse foi um fenômeno secundário, fato que os próprios dados comprovam. Mesmo com a concentração do uso da terra oportunizada pela redução da demanda por mão-de-obra, o que reduziu a diferença entre número de estabelecimentos e número de propriedades, os pequenos estabelecimentos são, em termos numéricos, dominantes no país.

São esses indicadores que nos alertam sobre a necessária atenção às relações de produção e à compreensão dos interstícios da modernização da base técnica, pois essa, ao invés de banir do campo a exploração camponesa, conforme previam alguns teóricos, produziu, contraditoriamente, a sua recriação. É essa realidade que desautoriza visões simplificadoras, implícitas na própria noção de modernização como sinônimo de eficiência produtiva derivada da separação entre capital e trabalho.

Do mesmo modo, impõe-se a necessidade de refletir sobre a face perversa desse que foi um processo de redefinição das condições técnicas de produção, o único elemento que nos permite contrapor modernização e atraso no campo, já que em termos sociais e ambientais, pouco se tem a comemorar. Enquanto insumos e máquinas sofisticadas incorporaram-se à produção, milhões de pessoas foram empurradas para os centros urbanos em situação de ocupação pior do que dantes. A produtividade

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explodiu, mas a fome é um dos marcos dessa “modernização”, já que oferta de alimentos não significa necessariamente acesso aos mesmos. Como a precarização do trabalho tem sido marcante, até mesmo pela desproporção entre demanda e oferta de mão-de-obra, muitos estão impedidos de se colocar como consumidores, razão pela qual o aumento exponencial da produtividade agrícola não encurta a distância entre alimentos no mercado e na mesa dos mais pobres.

Portanto, a solução do drama da fome, cotidianamente vivenciado por milhões de seres humanos, não passa pelo aumento da produção, mas pela existência de renda para comprá-los. Como o mercado é o mediador de todas as necessidades humanas, inclusive as básicas, em situações de boas safras, muitos agricultores são arruinados, pois os preços recebidos pela produção caem em relação inversamente proporcional ao aumento da oferta. Por essa razão, produtores, empresas privadas e até Estados-Nações, em determinadas situações, envidam esforços para controlar a oferta de alimentos.

Obviamente, essa racionalidade própria do moderno e de suas derivações, condiciona direitos fundamentais da humanidade às conveniências do mercado, semeando indagações e incertezas fundamentais quanto ao devir. Contudo, resta o fato de que o futuro é fruto da construção cotidiana empreendida pelo conjunto de ações concretas da sociedade, o que impõe a necessidade de apostar na reflexão e na crítica como caminhos para a construção de outro modelo civilizatório.

É por essa razão que julgamos necessário assinalar os limites do termo modernização da agricultura, ainda que ele esteja sendo acionado para analisar os impactos nefastos das mudanças técnicas. Por carregar um significado que se opõe aos impactos ambientais e sociais daí decorrentes, seria mais prudente evitar a generalização, frisando que trata de um processo restrito à base técnica.

Em outras palavras, não há modernização da agricultura, mas modernização da base técnica da agricultura, e fazer essa distinção é operar com a desmistificação, pois que os conceitos são instrumentos políticos de apreensão da realidade. Considerando que a sociedade está dividida em classes, falar de modernização no campo como sinônimo de incorporação de tecnologia é reforçar, mesmo que inadvertidamente, a camuflagem da realidade, a serviço daqueles que se beneficiam desse processo.

4. Campesinato e tecnificação agrícola.

Tendo refletido sobre os apontamentos que nos permitem identificar os liames teórico-metodológicos que conduziram a uma espécie de supressão conceitual do campesinato do território capitalista, locus privilegiado das inversões tecnológicas, daí o uso do termo modernização, reflitamos sobre os desdobramentos concretos dessa mudança técnica.

E se o fazemos, é justamente por termos a convicção de que nesses tempos de fome zero2, as lutas políticas definirão o devir, daí a necessidade de explicitação de processos cuja compreensão permite a conversão do indivíduo em cidadão e, quiçá, em sujeito da história. E nesse sentido, é oportuno volver a Marx, que tão lucidamente lembrou que a história não se repete, a não ser como farsa.

O caso da fome seria, a nosso ver, um desses exemplos, já que é lugar comum atribuir o fenômeno à escassez de alimentos, conforme já salientamos anteriormente. Trata-se de uma compreensão que transcende o que poderíamos tomar como equívoco, por estar pautada em pressupostos que auxiliam a manutenção do status quo.

Vimos que disponibilidade de alimentos não pode ser tomada como sinônimo de acesso aos mesmos, ainda que a interpretação destacada assim o indique. Daí a necessidade de empreender reflexões que não apenas acentuem tais diferenças, mas que também explicitem a íntima conexão que torna a fome um dos desdobramentos da mudança da base técnica da agricultura.

Com efeito, o termo modernização invariavelmente nos remete a um ideário arrebatador, como se tal processo definisse o limiar de um novo tempo. Quando incorporado ao arcabouço conceitual vinculado à questão agrária, por vezes, o mesmo se presta a definir uma posição que o coloca do lado oposto do arcaico, leia-se antiquado e carente de intervenção renovadora. É a distância entre o significado

2 Como da retórica aos fatos há uma longa distância, o sentido é figurativo, pelos próprios desdobramentos desse programa do Governo Lula que, mesmo na perspectiva assistencialista, não logrou resultados dignos de nota.

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do termo e as expressões concretas do processo que o define e é por ele definido, que torna salutar a identificação do viés teórico-metodológico contido nas diferentes abordagens que o contemplam.

Daí a necessidade de frisar que o termo modernização é adequado para indicar os processos ligados exclusivamente à base técnica da produção, excluindo-se, portanto, as relações de produção. Esse é um contraponto necessário, diante das condições de vida e de trabalho que foram sendo precarizadas no mesmo ritmo da tecnificação. Desse modo, a falta de precisão conceitual produz uma lacuna, mas que não se define por acaso; antes, acusa uma estratégia política de encobrimento das contradições fundamentais decorrentes do referido processo.

No Norte do Paraná, área estudada, conforme mostra a figura 1, as inovações tecnológicas na agricultura tomaram impulso por volta de 1960 e se consolidaram a partir da década seguinte. Analisar os interstícios dessa passagem não deixa de ser oportuno, sobretudo porque a idéia genérica de modernização dificulta a implantação, e mesmo legitimação, perante a sociedade, de projetos de intervenção, leia-se projetos de assentamento e ou de apoio à agricultura camponesa. De fato, soa como incongruente àqueles que desconhecem a realidade do campo e daqueles que ao campo querem retornar, o investimento público em um projeto fadado ao fracasso, quando a referência é a sustentabilidade econômica pautada na incorporação de tecnologia de ponta.

As análises subseqüentes objetivam expor as mudanças ocorridas nessa região a partir da “revolução verde”, resultado do uso de insumos químicos e máquinas, até mesmo para advertir que, mesmo que de forma restrita, dadas as limitações monetárias, a classe camponesa integrou-se a esse processo. Ao fazê-lo, evidenciamos que o campo não se resume aos empreendimentos modernizados e tipicamente capitalistas, o que reforça a necessidade de se pensar em políticas públicas adequadas a essa classe que se reproduz no campo a partir de parâmetros sociais, culturais e econômicos distintos. (Figura 1)

E buscando resguardar a precisão conceitual, faz-se necessário lembrar que os camponeses são entendidos como os sujeitos pertencentes a uma classe sui gêneris do capitalismo, por ser a única que, ao acionar os meios de produção com o próprio trabalho, garante a sua reprodução autônoma, ainda que subordinada às estratégias de extração de renda impostas por agentes que intermedeiam a relação produção-consumo final.

Dito isso, salientamos que o caráter contraditório do modo capitalista de produção se manifesta em uma situação aparentemente paradoxal no campo: a proletarização oriunda da concentração de terras e de capitais e a recriação do campesinato. Conforme evidenciam os dados, a passagem do patamar técnico pautado na intensiva utilização de mão-de-obra para o atual não representou a eliminação dessa classe. Não obstante, o processo de recriação do campesinato, manifestado no conjunto de estratégias

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empreendidas com vistas à manutenção de sua condição de autonomia articulada pelo controle da terra e pela dimensão familiar do trabalho, se deu em um contexto de redefinições, mesmo porque muitos camponeses alçaram à condição de proprietários após anos de trabalho nas lavouras comerciais de café, seja no Estado de São Paulo, seja na própria região.

Considerando que o princípio de sua reprodução social é a autonomia do trabalho advinda do acesso à terra, analisar as condições de acesso e exploração econômica é primordial. Em outras palavras, apesar de vivenciarmos um momento de extrema projeção da ordem financeirizada, a qual reclama mais liquidez imediata e menos capital imobilizado, a terra ainda se mantém no centro da questão agrária, seja como fundamento da reprodução camponesa, seja como meio de extração da mais-valia, sendo pertinente, portanto, evidenciar como se articulam a terra de trabalho e a terra de negócios na área estudada.

Outrossim, analisar mais a fundo a dinâmica envolvendo a estrutura fundiária é uma forma de apresentar um contraponto às vozes que se levantam em torno da idéia de que a propriedade da terra não é mais o centro da questão agrária. Claro está que essa interpretação deriva de uma opção teórico-metodológica, a qual transfere às mudanças tecnológicas o eixo de explicação dos processos em curso no campo. Deliberadamente, ou não, indicam uma opção velada pelo abandono da discussão acerca de uma chaga estrutural da sociedade brasileira: a concentração da terra.

Não queremos com isso atribuir uma importância menor às mudanças ocorridas no campo, já que a modernização da base técnica proporcionou, indubitavelmente, extraordinário aumento da produtividade; contudo, esse não é um pretexto plausível para a desconsideração do custo socioambiental equivalente. Daí a pertinência em deslocar o foco de análise, destituindo a técnica da centralidade explicativa dos processos sociais, em favor das relações sociais.

É desejável, pois, situar a tecnificação no contexto do amplo projeto de redefinição das bases de acumulação capitalista que, ao final da Segunda Guerra Mundial, teve na agricultura uma das fronteiras a serem exploradas para a expansão de mercados de produtos industrializados. Não se pode desconsiderar também a sua capacidade conjuntural de absorver o aparato obsoleto produzido para a guerra, desde as máquinas até os agentes químicos. O impacto das mudanças daí advindas, em países que não tinham ingressado no estágio técnico que as produziu, cresceu ao ritmo de sua incorporação: no Brasil, cerca de duas décadas foram suficientes para empurrar para os centros urbanos algo em torno de 30 milhões de pessoas, afora os outros milhões de migrantes que se dirigiram para as regiões de fronteira agrícola.

Isso sem mencionar a característica absolutamente predatória da agricultura “modernizada”, que só fez potencializar os rastros de degradação ambiental próprios da lógica extrativa: solos empobrecidos e contaminados, rios assoreados e envenenados, nascentes comprometidas, fauna e flora nativa feridas de morte.

Não se trata, portanto, de meros detalhes, a serem abordados em separado ou como desdobramento secundário do padrão produtivo denominado moderno, de aparência inovadora. Antes, são questões de suma importância para se analisar o processo em sua complexidade, evitando simplificações que não contribuem para a superação das mazelas geradas em seu interior. Passemos à análise dos dados censitários publicados pelo IBGE.

5. As mudanças técnicas e a substituição de culturas no norte do Paraná.

As análises subseqüentes sobre as mudanças no campo norte paranaense estão pautadas nos dados censitários dos 33 municípios indicados na figura 2. Do ponto de vista das características físicas, há dois aspectos distintos: a região estudada praticamente se divide ao meio, no sentido Norte-Sul, visto que na porção Norte há a predominância dos solos derivados do arenito caiuá; ao passo que na porção Sul os solos de origem basáltica são dominantes.

Destacamos também que enquanto nos domínios do arenito a pecuária extensiva foi tomada como a atividade substitutiva do café, e se mantém predominante até os dias atuais, nos solos basálticos, conhecidos como terra roxa, foram as lavouras mecanizadas que tomaram o lugar dos extensos cafezais. Contudo, para efeito desse estudo, os dados foram computados tomando por base o conjunto regional.

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Escala 1:650.000

Na área em questão, duas situações apontadas pelos dados censitários de 1950 a 1995/96,

merecem destaque: o aumento numérico dos estabelecimentos no período de 1950 a 1970 e, a partir de então, o início do processo de concentração do uso da terra, conforme se poderá observar na Figura 3.

Embora a divisão político-administrativa tenha sofrido mudanças no período analisado, em virtude dos desmembramentos de municípios, observamos que o número dos estabelecimentos registrado pelo IBGE em 1950 era de 7.722, sendo que 82% deles possuíam área de até 50 hectares. Em 1970, esse número já havia saltado para 30.738, dos quais 87% apresentavam área de até 50 hectares. Lembremos, no entanto, que esse notável aumento numérico indica a fragmentação da exploração econômica, que em 1970 registra o ápice.

Essa ressalva se faz necessária, por estarmos lidando com a categoria estabelecimento, a qual não supõe a propriedade jurídica das terras, mas a sua unidade econômico-administrativa. Dessa maneira, esses dados devem ser tomados apenas como referência para se avaliar os índices de concentração do uso, sendo insuficientes para o detalhamento da concentração fundiária real, já que o desmembramento produtivo, via parceria, arrendamento e outras formas de cessão temporária, aparecem estatisticamente como fragmentação que, na realidade, não toca na estrutura da propriedade.

Não obstante, analisar a estrutura fundiária do Norte do Paraná sem mencionar a atuação da Companhia de Terras Norte do Paraná (CTNP) seria um ato falho. A CTNP era uma empresa inglesa, que obteve diretamente do governo do Estado a concessão de 1.089.000 hectares de terras devolutas que, somados à aquisição de terras particulares, lhe rendeu um patrimônio fundiário de 1.321.499 hectares, dos quais comercializou 24%, entre 1925 e 1944, enquanto atuou na região.

Qualquer análise que se faça sobre a questão agrária paranaense requer ao menos uma breve menção sobre os termos dessa concessão, por se tratar de ilustrativo ato lesivo perpetrado pelo Estado contra o patrimônio público, em favor de estrangeiros. Segundo Joffily (1985, p. 81), essas terras, consideradas as mais férteis do Brasil, custaram aos ingleses o equivalente a cinco quilos de feijão por hectare, sendo que apenas 20% (um quilo de feijão) foi pago à vista, pairando dúvidas quanto à arrecadação do restante, conforme indicam vários documentos.

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Some-se a isso o auspicioso aparato institucional sob o seu entorno: além de ter sido uma das únicas empresas estrangeiras que não foram atingidas pelos decretos de nacionalização do Governo Vargas; nas áreas sob seu domínio, não foram aplicadas as medidas vigentes de contenção dos estoques de café, que impediam a ampliação das lavouras. Além disso, gozou da total isenção de impostos territoriais, enquanto as terras estiveram em seu poder.

Medidas duvidosas, sobretudo se considerarmos que, aos compradores, em geral trabalhadores que conseguiram juntar um pecúlio trabalhando juntamente com a família nas fazendas de café do Estado de São Paulo, o peso da renda capitalizada foi esmagador: segundo Mombeig (1984), em menos de seis anos, os preços cobrados pela companhia na comercialização das terras já haviam subido cerca de vinte vezes.

Compreender, portanto, a multiplicação dos estabelecimentos, via demarcação de lotes pequenos no entorno dos núcleos urbanos e propriedades maiores nas áreas mais distantes, nos permite vislumbrar que a CTNP, a exemplo das demais colonizadoras, se manteve fiel aos princípios da especulação imobiliária, condicionando a comercialização dos estoques à valorização progressiva, própria da expansão do povoamento e da utilização produtiva das áreas já comercializadas.

Cumpre destacar que desde o início do povoamento até o final dos anos 1960, a cultura comercial absolutamente dominante na região foi a cafeeira, a qual reclamava enorme quantidade de braços. Enquanto as pequenas propriedades eram exploradas quase que exclusivamente pela família, as médias e grandes propriedades tinham nas relações de parceria o principal suprimento de mão-de-obra.

Como se sabe, a parceria era uma alternativa ao assalariamento, visto que a moradia e o acesso à terra para a produção de subsistência e comercialização de excedentes diminuía os custos com a reprodução da mão-de-obra, logo, permitia a tais proprietários a redução no dispêndio monetário para a manutenção das lavouras.

Do ponto de vista dos dados estatísticos, cada lote explorado por parceiros aparece representado como estabelecimento, fazendo com que a real concentração das terras fique oculta. Não obstante, essa fragmentação do uso da terra foi decisiva para a recriação do campesinato no Norte do Paraná. Mesmo desconsiderando aqueles cuja posse precária foi banida pela erradicação do café, levando-os à proletarização, a produção de gêneros de subsistência e comercialização de excedentes, somados aos rendimentos monetários oriundos da lavoura cafeeira, permitiram a muitos parceiros a constituição de uma pecúnia capaz de assegurar a compra de um pequeno lote de terra.

É importante lembrar que esses pertencem à segunda leva de trabalhadores convertidos em proprietários, pois na fase de povoamento, a maior parte daqueles que adquiriram pequenos sítios o fizeram em virtude de terem vivenciado condições similares de vida e trabalho na cafeicultura do Estado de São Paulo É importante lembrar que, nos dados censitários, em geral essas pequenas propriedades foram contabilizadas como estabelecimentos, por se constituírem também em unidades econômicas a cargo das respectivas famílias.

A importância numérica da pequena propriedade na região, somada à significativa fragmentação de grandes propriedades em forma de estabelecimentos menores, é registrada pelo Censo Agrícola de 1970, momento em que se constata o auge da divisão econômica das terras. Porém, ao mesmo tempo em que se registra esse número recorde de estabelecimentos, ganha destaque o aumento daqueles com mais de 50 hectares.

Isso é o reflexo da decadência da cafeicultura que se insinua já no início da década de 1960, momento em que a expansão das pastagens começa a tomar vulto, o que na seqüência se repetirá com as culturas mecanizadas. Como se pode inferir, a concentração no uso da terra se deve justamente à substituição do café por atividades de baixa demanda por mão-de-obra, o que torna desnecessário a permanência de várias famílias nas propriedades maiores.

Como se pode verificar na Figura 3, o início da curva descendente no número dos pequenos estabelecimentos é destacado pelo Censo Agropecuário de 1975, momento em que, na região estudada, 10 031 estabelecimentos com até 50 hectares, ou seja, 37%, desaparecem. Ao mesmo tempo, se verifica o crescimento numérico dos estabelecimentos maiores, indicando a expulsão progressiva daqueles que detinham a posse precária da terra, via de regra parceiros. (Figura 3)

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Figura 3 - Número de Estabelecimentos

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1950 1960 1970 1975 1980 1985 1995/96

Até 50 ha. 50 - 100 ha. 100 - 1.000 ha. Acima 1.000 ha. Fonte: IBGE – Censos Agrícola e Agropecuários

Evidentemente, a variação numérica expressa na figura veio acompanhada de uma significativa transferência de área para os demais estratos, reflexo direto do processo de expulsão camponesa derivado da erradicação do café. Desde então, os estabelecimentos com área de 100 a 1 000 hectares apresentaram um crescimento extraordinário: em termos de área, registraram um incremento de 123.704 hectares; em termos numéricos, surgiram 553 novos estabelecimentos. Percentualmente, isso representa uma variação positiva de 36% no que se refere à área açambarcada e 41% em relação ao número de estabelecimentos.

Como se pode verificar, houve também uma variação positiva entre os estabelecimentos com área de 50 a 100 hectares. Nesse período, surgiram 319 novos estabelecimentos incorporando 22.913 hectares, o que representa um incremento de 25% tanto no número de estabelecimentos quanto de área ocupada.

Quanto aos estabelecimentos com mais de 1 000 hectares, o estrato por excelência dos latifúndios, a concentração foi retomada, em especial no período de 1985 a 1995/96, havendo um incremento de 5.633 hectares, apesar do desaparecimento de nove estabelecimentos. Considerando que esse crescimento se fez às expensas do estrato onde estão agrupados os menores estabelecimentos, julgamos conveniente detalhar esses dados, a partir dos anos 1970, momento em que a expansão das culturas mecanizadas se intensifica de forma marcante no Norte do Paraná. (Figura 4)

Figura 4 - Área dos Estabelecimentos

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100000150000200000250000300000350000400000450000500000

1950 1960 1970 1975 1980 1985 1995/96

Até 50 ha. 50 - 100 ha. 100 - 1.000 ha. Acima 1.000 ha.

Fonte: IBGE – Censos Agrícola e Agropecuários

Os levantamentos censitários nos dão indícios de quão severo foi o processo de desagregação envolvendo os estabelecimentos com até 50 hectares diante da tecnificação. Não obstante, nesse estrato de área, os dados revelam uma relação inversamente proporcional de resistência ao desaparecimento. Em

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outras palavras, quanto menores os estabelecimentos, mais vulneráveis eles têm se mostrado desde então. Considerando os 33 municípios pesquisados, deixaram de existir nada menos que 14.945 estabelecimentos, ou seja, a proporção se aproxima de dois estabelecimentos extintos para cada um existente na atualidade.

Outro indicativo que julgamos importante assinalar é o entendimento comum que se tem na região de que a expulsão em massa dos camponeses teria sido provocada pela grande geada que arrasou os cafezais em 1975. Como vimos, a principal causa está nas mudanças técnicas desencadeadas no início da década de 1960, e que se reflete nos dados de 1970, momento em que os estabelecimentos com até 20 hectares já tinham sido reduzidos pela metade. Por isso, não se sustenta a tese de que o clima pouco propício tenha sido responsável pela migração em massa ocorrida no período.

Assim, é oportuno conferir não apenas a variação numérica dos pequenos estabelecimentos, mas também o respectivo comportamento em termos de área perdida para os estabelecimentos maiores, o que nos permite vislumbrar como a concentração do uso da terra se manifestou nesse período. (Figura 5)

Fonte: IBGE – Censos Agrícola e Agropecuários

Como já advertimos, a vulnerabilidade dos estabelecimentos está diretamente relacionada ao seu tamanho, sendo os menores os mais afetados no período. Notemos que o estrato de área de até 10 hectares foi o que registrou, em termos percentuais, a maior transferência de área, chegando em meados dos anos noventa com apenas 31% da área ocupada no início da década de 1970. O estrato intermediário conseguiu manter 42% da área e, por fim, os estabelecimentos entre 20 e 50 hectares chegaram aos meados dos anos 1990 com 72% da área ocupada no início da década de 1970. Portanto, o corte analítico na casa dos 50 hectares deve-se justamente ao fato desses terem sido marcados por uma desestruturação severa, sendo a respectiva área incorporada pelos demais estratos.

Lembramos, no entanto, que esses dados não podem ser tomados como expressão de uma realidade homogênea, pois são referentes à média regional, o que certamente camufla o comportamento específico de cada município, mesmo porque há padrões diferenciados de ocupação do solo, os quais se delinearam exatamente no momento em que houve a substituição do café. Assim, na região do basalto, prevaleceram as lavouras mecanizadas, ao passo que, no arenito, foi a pecuária a sua principal substituta.

Na região arenítica, merece destaque a lógica de implantação dessa atividade, baseada na cessão temporária da terra para cultivo, em troca da formação das pastagens. Em outras palavras, a fragmentação no uso da terra foi bastante intensa no período que antecedeu a consolidação da pecuária, pois a fim de obterem a formação praticamente gratuita das pastagens, os proprietários concederam o direito de os camponeses sem terra explorarem-na por um determinado período.

À medida que as pastagens formadas foram se expandindo, as áreas disponíveis para tal prática foram se tornando mais escassas, até o ciclo de formação se fechar. A partir de então, as possibilidades de reprodução autônoma nesses termos se mostraram cada vez mais limitadas na região.

O mesmo se aplica àqueles que atuavam como parceiros nos cafezais que foram substituídos pelas lavouras mecanizadas: o alijamento da terra impôs a migração em massa desses trabalhadores, seja em direção às cidades, seja em direção à Amazônia, notadamente ao Estado de Rondônia que, naquele momento, apresentava-se como saída para os excluídos das terras paranaenses. Isso torna pertinente apresentar os dados sobre a condição dos produtores, os quais conferem visibilidade à questão do acesso precário à terra, uma alternativa de reprodução camponesa largamente utilizada em resposta ao elevado índice de concentração fundiária que antecede o padrão tecnificado na agricultura, ao lado da pecuária extensiva. (Figura 6)

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Figura 6 - Condição do Produtor

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1950 1960 1970 1975 1980 1985 1995/96

Proprietário (%) Arrendatário (%) Parceiro (%) Ocupante (%)

Fonte: IBGE – Censos Agrícola e Agropecuários

Conforme evidencia a figura, os parceiros foram os maiores atingidos pelas mudanças no campo norte-paranaense, em virtude da desativação da lavoura cafeeira em favor da expansão da pecuária, de um lado, e das lavouras mecanizadas, de outro.

Paradoxalmente, o aumento do número de rendeiros e ocupantes chama a atenção, o que confirma o fato de que a classe camponesa, por vezes, se reproduz à revelia da apropriação capitalista da terra, seja através da recusa em pagar renda, ignorando o peso da propriedade privada, seja submetendo-se ao pagamento da renda para assegurar a sua autonomia.

Nas áreas de implantação da pecuária, isso tem relação com a prática de formação das pastagens, o que denuncia a estratégia dos proprietários de atuarem em uma atividade tanto de investimentos quanto de riscos baixos. Por outro lado, há que se considerar os efeitos da mecanização nas áreas de implantação das culturas temporárias, igualmente perversa aos produtores que não detinham a propriedade da terra, ou não possuíam renda suficiente para enfrentar a emergente matriz tecnificada para a agricultura.

Nesse contexto, o descarte maciço de trabalhadores é explicado, de um lado, pelas novas tecnologias agrícolas, baseadas na intensa utilização de máquinas e insumos e, de outro, pela implantação da pecuária extensiva. Aliás, a predominância da pecuária extensiva foi tão nociva para a região do arenito, a ponto dos sindicatos patronais, cooperativas e até mesmo o poder público implantarem nos últimos anos bolsas de arrendamento envolvendo tais propriedades, como forma de recuperação ambiental e econômica da região.

É importante lembrar que a bolsa de arrendamento tem prosperado em virtude da existência de empresários agrícolas desejosos de ampliar suas culturas temporárias na região, especialmente soja e milho. Sabendo-se que o cultivo dessas terras demanda investimentos em fertilização e conservação, o incentivo à elevação da produtividade das terras semi-ociosas tem por objetivo mitigar os efeitos da degradação dos solos, resultado direto da pecuária extensiva, sem tocar na estrutura do latifúndio.

Em uma conjuntura em que crescem as pressões dos trabalhadores sem terra, que buscam não somente aquelas que foram apropriadas ilegalmente, mas também as que se mantém improdutivas, não resta dúvida de que o arrendamento nesses termos surge como arma eficaz de contenção das ocupações.

Essa é uma das expressões da luta de classes que, no caso em tela, se manifesta nos esforços dos camponeses em conquistar e ou permanecer na terra. Entre avanços e recuos, isso tem se concretizado, visto que a presença camponesa é expressiva na área estudada, lado a lado com as duas lógicas dominantes, a do padrão de racionalidade atrelado ao modelo tecnicista da agricultura mercantil de larga escala e a da propriedade especulativa da terra encoberta pelas pastagens degradadas.

A título de exemplo, destacamos que dos 33 municípios estudados, em 12 deles a presença numérica dos estabelecimentos com até 50 hectares, classificados como pequenos, corresponde a mais de 80% de todas as unidades produtivas. Se considerarmos a participação percentual desses na casa de 70%, chegamos a 25 municípios nessa situação.

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Não obstante, é amplamente reconhecido que as grandes propriedades3 são as que menos geram postos de trabalho, além de darem a menor contribuição, em termos proporcionais, para a produção global. De acordo com o Censo Agropecuário 1995/96, tomados os estabelecimentos em escala nacional, aqueles com mais de 1 000 hectares responderam com apenas 4% dos empregos no campo, com 5% da produção de leite, com 21% do rebanho bovino e com os mesmos 21% da produção em valor.

Isso seria até aceitável, não fosse a área sob seu controle: 45,1% das terras estão concentradas por esses estabelecimentos. E pensar que alguns nos querem fazer crer que a escala, leia-se o tamanho da propriedade, é um dos pressupostos da tecnificação, e que essa teria redimido a grande propriedade, agora elevada à nobre condição de produzir com eficiência! Os dados, contudo, evidenciam que, em sua maioria, elas estão aquém até mesmo dos desígnios da Constituição, que reza o cumprimento da função social da terra.

No que se refere ao Paraná, é necessário lembrar que esse é um dos estados brasileiros em que a concentração fundiária é menor. Basta considerar que os pequenos estabelecimentos ocupam 36% das terras, embora respondam por 41% do rebanho bovino e por 84% dos postos de trabalho na agricultura.

Cumpre salientar que no Norte do Paraná, berço da modernização da base técnica, a desagregação sofrida pelos pequenos estabelecimentos se refletiu na geração de postos de trabalho, fato comprovado por uma curva descendente de ocupações, que contrasta com uma curva ascendente quando se analisa aqueles com mais de 100 hectares. É o que demonstra a figura 7.

Figura 7 - Empregos gerados

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Até 50 ha. 50 - 100 ha. Acima 100 ha.

Fonte: IBGE - Censos Agropecuários

Considerando os dados de 1970, momento a partir do qual o processo de tecnificação se intensificou, os pequenos estabelecimentos respondiam por 87% das ocupações no campo, dispondo de 37% das terras. Lembramos que essa relação é compatível com o padrão produtivo da época, eminentemente centrado na fragmentação do uso da terra e nos cultivos baseados no uso intensivo de mão-de-obra, a exemplo do café.

Na década de 1990, apesar do índice de ocupação cair para 57%, o que indica que os pequenos estabelecimentos estão ocupando menos pessoas que há trinta anos, esses continuam sendo os espaços por excelência de geração de postos de trabalho. Isso sem entrar no mérito da proporcionalidade em termos de área ocupada, em relação aos médios e grandes estabelecimentos.

Como vimos, houve notável concentração fundiária nesse período, caindo a participação dos pequenos estabelecimentos para 21% das terras, ao mesmo tempo em que os estabelecimentos com mais de 100 hectares passaram a abocanhar o índice histórico de 67% das mesmas.

Concluímos, assim, que a curva descendente das ocupações dos pequenos estabelecimentos não pode ser considerada em separado do processo de eliminação a que estiveram submetidos nada menos que

3 Reafirmamos que essa expressão evidencia que a categoria estabelecimento atua no sentido de camuflar a concentração fundiária, já que uma unidade jurídica (propriedade) pode dar origem a várias unidades econômico-administrativas (estabelecimentos).

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dois terços desses estabelecimentos. Assim, é evidente que isso se refletiu no seu potencial de geração de postos de trabalho.

Por outro lado, observamos que os estabelecimentos no estrato intermediário praticamente mantiveram estáveis os níveis de ocupação, manifestado em ligeiro crescimento numérico. Com isso, ficam evidentes os efeitos da tecnificação, já que o número de ocupações não acompanhou o aumento numérico dos estabelecimentos, bem como a respectiva área ocupada.

Outrossim, constatamos que os estabelecimentos com mais de 100 hectares, cujo crescimento no número de postos de trabalho é evidente, foram também aqueles em que se processou uma concentração extraordinária, razão direta do aumento na proporção de empregos.

Não obstante, contribuiu para esse crescimento de postos de trabalho, a expansão da cana-de-açúcar, uma cultura que ocupa grande número de trabalhadores; entretanto, trata-se de ocupações temporárias e, sobretudo, precárias, majoritariamente durante a colheita. A título de esclarecimento, entre 1970 e 2001, a área cultivada com cana aumentou em quase sete vezes, passando de 13.370 para 87.079 hectares.

Enfim, ponderamos que todas essas mudanças se inscrevem na lógica desse modo de produção, eminentemente poupador de mão-de-obra, e que se expressa na alteração verificada no padrão produtivo. E se isso ocorre, é de esperar que nos estabelecimentos camponeses, a agricultura igualmente necessite de menos mão-de-obra dada a intensificação das técnicas, guardadas as devidas proporções.

Isso não implica acatar a idéia de que esse é um processo homogêneo, mas sim reafirmar a sua hegemonia, ainda que desdobrada em dinâmicas próprias, de acordo com a organização interna das diferentes formas de produzir no campo. Assim, fica evidente que o impacto do processo foi de tal ordem que implicou no desaparecimento da maior parte daqueles que tinham acesso precário à terra, bem como daqueles que não conseguiram se organizar internamente, de modo a se adequarem às mudanças. Mas, como vimos, isso não representou o desaparecimento do campesinato.

Portanto, lembramos que a classe camponesa é tão dinâmica quanto o é a realidade circundante, sendo a sua capacidade de adequar-se às novas conjunturas a condição para sua perpetuação enquanto classe. Nesse sentido, apesar das mudanças ocorridas nas estruturas produtivas, a propriedade camponesa continua sendo, de longe, aquela que apresenta o maior índice de ocupação produtiva, conforme indica a figura 8.

Figura 8 - Valor da Produção em 1995/96

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Até 50 ha. 50-100 ha. 100-200 ha. 200-500 ha. 500-1000 ha. Ac.1000 ha.

Valor produção (%) Área ocupada (%)

Fonte: IBGE – Censo Agropecuário 1995/96

A figura indica que na área estudada, os estabelecimentos com até 50 hectares são os únicos em que a relação entre terra disponível e ocupações é inversamente proporcional, sendo que, quanto maior o estabelecimento, menor o número de trabalhadores ocupados. Em outras palavras, ainda que se considere todos os empregos permanentes e temporários dos estabelecimentos com mais de 50 hectares, esses representam apenas 74% do número de trabalhadores ocupados nos primeiros.

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6. Considerações finais.

Cremos ter demonstrado que a importância dos pequenos estabelecimentos, quanto à magnitude da força de trabalho ocupada, não se limita às áreas “tradicionais” 4, ocorrendo também naquelas de maior índice de tecnificação. Essa é a resposta do campo àqueles que se apegam ao ideário simplista de que a saída para o Brasil, que tem na produção agrícola um dos pilares de sustentação da balança de pagamentos, se resume à agricultura de larga escala.

Notamos que a propriedade pequena não se destaca apenas do ponto de vista da inclusão social, com a inigualável capacidade de gerar empregos e renda. Ela é também aquela que supera, em termos de produtividade, as médias e, sobretudo, as grandes propriedades.

Já frisamos que a relação entre quantidade de terra disponível e força-de-trabalho é inversamente proporcional. Essa variável assume importância singular para que se possa identificar as unidades camponesas, pois um dos elementos que a diferenciam das unidades capitalistas é o trabalho familiar e não a medida pura e simples de terra.

E nesse sentido, os dados do Censo Agropecuário 1995/96 indicam uma inversão no padrão delineado nos anos 1970. Pela primeira vez desde então, há o registro de aumento da participação da família nos trabalhos agrícolas.

Esse é um dado de certa forma surpreendente para essa que é uma das áreas brasileiras de maior índice de tecnificação, o que nos permite concluir que a classe camponesa também participa desse processo de “modernização”, ainda que em uma situação de subordinação aos ditames mais gerais da lógica mercantil.

É nessa relação de subordinação que a renda camponesa é confiscada, e isso ocorre nas diferentes etapas produtivas. Tanto pode ocorrer no momento da produção, quando os camponeses se apresentam como consumidores dos maquinários e insumos, ou ainda como usuários do sistema financeiro, através das operações de crédito para investimento ou custeio da produção. Por último, é consumada quando sua produção é colocada no mercado, momento em que seu poder de barganha se mostra mais frágil, dada a interposição de verdadeiros oligopólios.

Todavia, não se pode inferir que todas as unidades produtivas onde há trabalho familiar são camponesas, sendo necessário definir critérios para essa classificação. Assim, destacamos a necessidade de desvendar a lógica interna da mesma, seus traços mais gerais no que tange às relações sociais envolvidas na reprodução da família, não apenas do ponto de vista econômico, mas também social, cultural e político.

Nesse sentido, verifica-se a presença marcante do trabalho familiar, mesmo em áreas de intensa modernização. Na área pesquisada, todos os municípios da porção centro-sul, onde estão os maiores índices de produção/produtividade, apresentam uma participação dessa modalidade de trabalho acima da casa dos 60 pontos, salvo o município de Arapongas, onde a participação da mão-de-obra familiar é de 55%.

É por essa razão que os indicativos de aumento do assalariamento em relação ao trabalho familiar, verificados sobretudo na década de 1970, não devem ser tomados como expansão da capacidade de gerar empregos das unidades capitalistas. Como vimos, há dois fatores a serem considerados: em primeiro lugar, refletem a diminuição do número de membros da família ocupados naquele momento, em virtude do banimento do acesso precário à terra nas formas descritas. Em segundo lugar, indicam que as atividades monocultoras baseadas no assalariamento precário, a exemplo da cana-de-açúcar, sofreram enorme expansão nesse período.

Com isso, pode-se inferir que, passado o maior impacto da substituição das técnicas, novamente os camponeses vão recriando estratégias de se manterem na terra. Já vimos que a região é uma das mais tecnificadas do país, evidenciando a presença incontestável da exploração capitalista. Porém, antes de desaparecer, o trabalho familiar, proporcionalmente, está apresentando uma ligeira recuperação, chegando próximo aos índices verificados em 1975. Para nós, esse é o dado inequívoco de que a reprodução camponesa é um elemento do capitalismo e não uma excrescência ou resíduo, exteriores à sua ordem. 4 Tradicionais no sentido de enclaves policultores, tidos como atrasados, passíveis de serem resgatados pela agricultura moderna, leia-se tecnificada.

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PAULINO, E. T. Paradoxos da tecnificação agrícola do Norte do Paraná.

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Entretanto, a lógica dos camponeses não é a mesma dos capitalistas. Sendo o lucro o fundamento da exploração capitalista, sempre que essa possibilidade estiver ameaçada, seus agentes se retiram, buscando outras oportunidades de investimento.

O mesmo não se dá com as unidades camponesas que, por terem como fundamento a remuneração do trabalho e não do capital, continuam a produzir, no limite, em condições completamente desfavoráveis, a fim de garantirem minimamente a sobrevivência. Portanto, as propriedades pequenas são as que mais se defrontam com condições adversas: na área estudada, os pequenos estabelecimentos são os únicos onde a relação quantidade de terras e valor da produção é inversamente proporcional, apontando assim o caráter inequívoco da produtividade superior nesse estrato de área.

Tomando-se a média regional, os estabelecimentos com até 50 hectares respondem com 33% da produção em valor, ou seja, com um terço de toda a produção agropecuária regional, apesar de ocuparem cerca de um quinto das terras. É isso que compromete a tese de que a “modernização” no campo não comporta a classe camponesa.

Assim, é importante advertir que essa classe se reproduz tanto em bases tradicionais, imersas em um círculo de miserabilidade, como incorporando tecnologia. Conforme nos alertou Chayanov (1974), ao incorporar melhorias técnicas na produção, a família camponesa consegue reduzir a penosidade do trabalho, logo, conquista maior bem estar. É isso que se torna visível nas áreas onde os camponeses são mais “fortes”. 5

São esses paradoxos que justificam esforços de desvendamento dos interstícios da modernização da base técnica da agricultura. Ignorá-los é operar com uma lógica analítica contrária a um dos princípios básicos da dialética: a noção de contradição.

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5 Terminologia utilizada pelos próprios camponeses quando se referem aos pares de maior renda, que possuem mais terra e dispõem de melhores maquinários e instalações. Isso significa que estão mais fortalecidos economicamente, mas nem por isso se tornaram capitalistas.

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ESTUDO DE ILHAS DE CALOR EM PRESIDENTE PRUDENTE/SP A PARTIR DE TRANSECTOS MOVEIS∗∗∗∗

Simone Scatoion Menotti VIANA∗∗∗∗∗∗∗∗

Carlos Eduardo Secchi CAMARGO∗∗∗∗∗∗∗∗ Margarete Cristiane de Costa Trindade AMORIM∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗

João Lima SANT’ANNA NETO∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗ Resumo: Este trabalho tem por objetivo investigar as diferenças térmicas intra-urbanas em Presidente Prudente/SP, com o propósito de identificar a geração de ilhas de calor noturnas, em dias representativos do inverno. Para se obter os perfis e mapas térmicos foram coletados os dados de temperatura com termômetros digitais, em 80 pontos, utilizando dois transectos que seguem os eixos principais da cidade. Os resultados das análises e dos registros mostraram a complexidade de fatores que contribuem na formação da ilha de calor e, sobretudo, a intensidade da mesma, como às características do tempo dominante, a densidade de construções, o relevo e a presença de vegetação. A máxima amplitude térmica intra-urbana chegou a 8,50C, considerada de intensidade muito forte. Palavras-chave: Clima urbano; ilha de calor; temperatura. Resumen: Este trabajo objetiva investigar las diferencias térmicas intraurbana en Presidente Prudente/SP, con el propósito de identificar la formación de las islas de calor nocturnas, en días representativos del invierno. Para obtener los perfiles y mapas térmicos se colectaran los datos de la temperatura con termómetros digitáis en 80 puntos, según dos transectos que siguen los ejos fundamentales de la ciudad. Los resultados del análisis y los registros efectuados muestran la complejidad de factores que contribuyen a la formación de la isla de calor y, sobre todo, a la intensidad de la misma, como las características del tiempo dominantes, la densidad de las construcciones, la topografía y presencia de la vegetación. La máxima amplitud térmica intraurbana llega a 8,50C, considerada de intensidad muy fuerte. Palabras-llave: Clima urbano; isla de calor; temperatura. 1. Introdução.

Estudos evidenciam que a urbanização e conseqüentemente a concentração da população vem provocando diferenças no balanço de energia entre áreas urbanas e rurais, implicando em modificações substanciais nas paisagens originais, fazendo com que as cidades gerem suas próprias condições ambientais.

O clima urbano é específico para cada espaço urbanizado, constituindo uma área que mantém relações com o ambiente regional em que se insere. De acordo com a síntese Landsberg tem-se o seguinte:

a) o clima urbano é modificação substancial de um clima local, não sendo possível ainda decidir sobre o ponto de concentração populacional ou densidade de edificações em que essa notável mudança principia; b) admite-se que o desenvolvimento urbano tende a acentuar ou eliminar as diferenças causadas pela posição ou sítio; c) da comparação entre a cidade e o circundante, emergiram os seguintes fatos fundamentais: 1) a cidade modifica o clima através de alterações em superfície; 2) a cidade produz um aumento de calor, complementada por modificações na ventilação, na umidade e até nas precipitações, que tendem a ser mais acentuadas; 3) a maior influência manifesta-se através da alteração na própria composição da atmosfera, atingindo condições adversas na maioria dos casos. A poluição atmosférica representa, no presente, o

∗ Texto publicado em 2004 (n.11 v.1). ∗∗ Mestrandos do Programa de Pós-Graduação em Geografia pela Faculdade de Ciências e Tecnologia da UNESP – Campus de Presidente Prudente. E-mails: [email protected]; [email protected]. ∗∗∗ Professores do curso de Graduação e Pós-Graduação em Geografia da FCT/UNESP de Presidente Prudente – SP. Emails: [email protected]; [email protected].

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problema básico da climatologia das modernas cidades industrializadas. (LANDSBERG apud MONTEIRO, 1976, p.57)

A cidade modifica o balanço energético, o balaço hidrológico, o relevo e algumas características

da atmosfera. O modo em que o Homem vive interfere de forma significativa no sistema urbano, recriando-o. O processo de urbanização ocasiona transformações na natureza da superfície e na atmosfera, afetando o funcionamento dos componentes climáticos (AMORIM, 2000, p.25).

O balanço de energia urbano varia de uma cidade para outra e depende de diversos fatores, tais como: tipo e cor dos materiais utilizados nas edificações, densidades de construções, verticalização, presença de áreas verdes e arborização nas ruas e fundos de quintais, etc.

O armazenamento de calor no espaço construído associado à pequena perda de calor por evaporação, não faz com que o balanço final entre as perdas e os ganhos no ambiente sejam nulas, criando condições para a formação de ‘ilhas de calor’ [...]. (AMORIM, 2000, p.28)

O fenômeno ilha de calor é formado através das diferenças do balanço de energia entre a cidade

e o campo, sendo uma anomalia térmica, com dimensões horizontais, verticais e temporais. Suas características estão relacionadas com a natureza da cidade (tamanho, densidade de construções, uso do solo) e com as influências externas (clima, tempo e estações) (OKE, 1982, p.7).

A máxima intensidade da ilha de calor é observada sob condições de tempo atmosférico ideal: céu claro e ventos fracos. Horizontalmente há diminuição da temperatura do ar e aumento da umidade relativa à medida que há a aproximação com o campo.

As cidades têm uma atmosfera mais instável o que ocasiona diminuição na velocidade do vento em relação ao campo. Assim a tendência do ar, sob condições atmosféricas estáveis, é circular do campo: menos quente, alta pressão — em direção ao centro; mais quente, baixa pressão (AMORIM, 2000).

A relevância de estudos desta natureza está em viabilizar maior conhecimento sobre o comportamento urbano, principalmente no que se refere às mudanças térmicas associadas ao uso e ocupação do solo. As características urbanas associadas aos tipos e graus de adensamento e uso que recobrem o solo tem a capacidade de modificar o comportamento dos elementos climáticos que compõem a sua atmosfera local. O tipo de uso e ocupação do solo pode ainda ter seu efeito maximizado de acordo com o relevo existente no sítio urbano.

Neste sentido, como afirma Monteiro (1990), é necessário adentrar a cidade e identificar os aspectos dos diferentes dinamismos da vida urbana, como: tráfego de veículos automotores, concentração de aparelhos de ar condicionado, remoção da cobertura vegetal, canalização de córregos, adensamento de construções. Por fim, a cidade deve ser estudada não puramente só, e sim, inseri-la em seu entorno, articulando o urbano, o suburbano e o rural (MONTEIRO, 1990).

Cabe ao Geógrafo, realizar estudos desta natureza, que se referem à qualidade ambiental necessária para o desenvolvimento da vida humana, colaborando na solução dos problemas enfrentados pelo meio urbano. Neste sentido, a cidade deve ser vista não apenas como um mero “conjunto de edificações”, mas sim, como um fato geográfico que envolve relações físicas, socioeconômicas e políticas, que são estabelecidas e que se desenvolvem neste meio puramente humano.

Este trabalho teve como objetivos: investigar as variações térmicas intra-urbana em Presidente Prudente/SP, a fim de identificar a geração de ilhas de calor em dias representativos do inverno; verificar as diferenças existentes na temperatura em diferenciados usos e tipos de ocupação do solo; e, compreender os mecanismos geradores do tempo e como estes podem interferir de maneira direta nos fenômenos climáticos urbanos.

Esta pesquisa foi desenvolvida através da compreensão da dinâmica climática regional, da análise do desenvolvimento e evolução do uso e ocupação do solo na cidade Presidente Prudente/SP e da investigação do clima urbano.

Para se realizar um estudo de clima urbano é necessário uma estrutura teórica capaz de abordar tanto os fatores mais amplos e complexos como os mais simples e restritos. A conjuntura teórica estabelece uma análise que envolva o tempo e o espaço, de forma que estes sejam flexíveis, pois este contexto teórico deve ser capaz de nortear a investigação em qualquer cidade do globo. Por isso é

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importante uma abertura a todas as escalas de tratamento espacial e temporal e aos diferentes graus de complexidade urbana.

Como método de análise foram utilizadas as propostas de Monteiro (1976; 1990), que formalizam uma estrutura teórica e metodológica para a compreensão do clima urbano, através do Sistema Clima Urbano (S. C. U.).

Nos estudos de clima urbano Monteiro (1976), sugere a adoção de três subsistemas: termodinâmico, físico-químico e hidrometeórico. Nesta pesquisa foi trabalhado o S.C.U., dando ênfase ao subsistema termodinâmico que compreende o conforto térmico a partir do estudo do comportamento da temperatura, nas suas variações diurnas e sazonais sob o espaço local.

Para se compreender o espaço local, considerou-se os condicionantes geoecológicos e urbanos, ou seja, relevo, estrutura, funções e atividades. Desta forma, a análise desses atributos associado aos elementos de construção da cidade (concreto, asfalto, vidro, a cor das edificações, etc), compõem o embasamento necessário para a seleção dos pontos de observação e coleta de dados.

Para o levantamento de campo foram realizadas coletas de dados móveis. A coleta de dados móveis consiste na escolha de itinerários urbanos, que levem em conta os atributos acima mencionados, ou seja, os pontos foram selecionados a partir do relevo, declividade e hidrologia, sendo estes associados ao uso e ocupação do solo. Estes itinerários foram individualizados em dois transectos, que atravessaram a malha urbana simultaneamente e em um determinado ponto se cruzaram.

Cada transecto teve uma duração máxima de 35 minutos, e o veículo se deslocou a uma velocidade baixa (20 Km/h). Este método permitiu obter perfis e mapas do comportamento da temperatura intra-urbana, em três dias representativos do inverno em Presidente Prudente (21, 22 e 23 de julho de 2003). Os transectos foram realizados durante a madrugada com início às 5h00 e a noite com início às 20h00.

Esta metodologia já vem sendo utilizada em diversos trabalhos e tem se mostrado eficiente, como se observou nos trabalhos realizados por Pitton (1997) em cidades médias (Rio Claro e Araras) e pequenas (Cordeirópolis e Santa Gertrudes) no Estado de São Paulo e Amorim (2002), em Presidente Prudente. Na literatura internacional esta metodologia foi muito utilizada, como, por exemplo, nos trabalhos realizados por Gómez et al (1993), Oke (1982), entre outros.

Ao término dos trabalhos de campo os dados foram digitados e organizados em tabelas, na planilha eletrônica Excel, no qual foram realizados os cálculos estatísticos e quantitativos, que auxiliaram na análise da variação térmica intra-urbana.

Com a utilização do Software de interpolação de dados Surfer for Windows, os dados de temperatura do ar foram espacializados por meio da geração de isoterrnas para melhor visualização dos resultados obtidos, o que permitiu construir um perfil das condições térmicas intra-urbana para três dias representativos do inverno.

Para melhor compreensão do comportamento da temperatura foi realizada uma análise dos sistemas atmosféricos através de cartas sinóticas de superfície disponibilizadas no site da marinha do Brasil (www.mar.mil.br). 2. Caracterização do uso e ocupação do solo em Presidente Prudente/SP.

O uso e a ocupação do solo são alguns dos principais aspectos do planejamento urbano. Tal planejamento trata da forma como se organiza a cidade segundo a aplicação de instrumentos legais de controle destes aspectos. Para isso, consideram-se diversos fatores que influem mais diretamente nesta questão como a densidade populacional, a densidade das construções e a destinação da terra. Segundo Silva (1997) estes instrumentos legais são englobados por instituições e institutos jurídicos sob o conceito de zoneamento do solo, sendo um instrumento legal do poder público para controlar o uso da terra, as densidades de população, a localização, a dimensão das construções e seus tipos específicos em prol do bem estar geral.

Silva (1997) afirma que o zoneamento consiste na repartição do território municipal à vista da destinação da terra, uso do solo ou das características arquitetônicas. No que diz respeito ao aspecto da destinação da terra, o município se dividirá em zona urbana, zonas urbanizáveis, zonas de expansão

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urbana e zona rural, definindo assim as qualificações urbanísticas do solo, que se destina aos principais usos como o uso residencial, o uso industrial, o uso comercial, o uso de serviços, o uso institucional, o uso viário e o uso especial.

Ainda segundo este autor, em uma cidade desordenada esses usos desenvolvem-se promiscuamente, com grande prejuízo ao bem estar da população. Isto explica por que o urbanismo propõe “zonificar” os aglomerados urbanos, conjuntamente com o campo, estabelecendo zonas de uso mais ou menos separadas. Portanto, o planejamento urbanístico é de suma importância para o crescimento e desenvolvimento das cidades com um uso e ocupação do solo ordenado, a fim de que estas não se tornem conglomerados com altas densidades populacionais e de construções.

O processo de crescimento que vem ocorrendo em Presidente Prudente nas últimas décadas, deu à cidade uma configuração urbana característica das principais cidades médias brasileiras. Esta configuração se mostra a favor da expansão urbana a qualquer custo, baseada na especulação imobiliária que ocorre em áreas consideradas o eixo de expansão. No caso de Presidente Prudente, este eixo leva a cidade, a sua população e seus problemas, para a porção oeste, devido ao relevo favorável, com colinas amplas e levemente convexizadas, o que facilita a implantação de loteamentos. Estes empreendimentos, geralmente, se localizam nas vertentes dos principais córregos da cidade.

A cidade, no início de sua história, se estabeleceu no espigão divisor de águas localizado onde hoje é a Estação Ferroviária e suas proximidades. A porção leste a cidade pouco se expandiu e atualmente conta com apenas alguns bairros, em sua maioria, formados no início da história do município. A zona leste não foi alvo de grande interesse da especulação imobiliária devido, dentre outros fatores, à configuração do relevo, com terrenos irregulares. Este fator dificulta a implantação de loteamentos, pois, a terraplenagem, uma das primeiras fases de um empreendimento como este, é onerosa e despende de muito tempo em terrenos como os existentes na zona leste da cidade.

Outro fator que concentrou o adensamento urbano da cidade a oeste, tbi detinido por Jacohs (2000) como as zonas de fronteiras. Segundo esta autora, zona de fronteira é o perímetro de um uso territorial único de grande proporção.

Estas áreas geralmente criam bairros decadentes e, por conseqüência, uma fronteira social. No caso da zona leste da cidade de Presidente Prudente, os bairros situados “do outro lado da linha”, ficaram marginalizados social e economicamente. Isso ocorre por um problema básico, pois as fronteiras costumam configurar a cidade de maneira a gerar becos sem saída para a maioria das pessoas que utilizam as ruas, formando “hiatos” de usos em suas redondezas. Dcsta forma, quanto mais estéril essa área simplificada se torna para empreendimentos econômicos, menor será a quantidade de usuários, e mais improdutivo será o próprio lugar, gerando um processo de desconstrução ou deterioração da área.

Estes fatores fizeram com que a cidade de Presidente Prudente viesse a possuir basicamente seis tipos de ocupação do solo. De acordo com Amorim (2000) esta classificação consiste em:

� Áreas densamente construídas com vegetação esparsa; � Áreas densamente construídas com vegetação arbórea; � Áreas densamente construídas sem vegetação; � Construções esparsas com gramado e vegetação esparsa; � Construções esparsas e gramados; � Vegetação esparsa e gramado. O eixo que se estende do centro da mancha urbana em direção a zona leste, tem como

característica de ocupação principal, áreas densamente construídas com vegetação arbórea e com vegetação esparsa.

Esta caracterização engloba bairros como, a Vila Marcondes e Furquim, Vila Maristela e centro da cidade, que são locais que possuem destinações distintas como o comércio e o uso residencial. Esta área também abriga alguns pontos de áreas densamente construídas e sem vegetação, tratando-se de bairros loteados mais recentemenle com construções acima de cinco pavimentos. As construções possuem sua superfície completamente impermeabilizada formando o quintal e a garagem dos prédios que somados as calçadas e ao asfalto deixam a água sem lugar para infiltrar.

A alta densidade de construções e pouca de vegetação é típica de bairros mais novos, em sua maioria. Conjuntos Habitacionais presentes na região sudoeste da cidade, como, por exemplo, o Conjunto

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BORSATO, V. A.; SOUZA FILHO, E. E. Ação antrópica, alterações nos geossistemas, variabilidade climática: contribuição ao problema.

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Habitacional Ana Jacinta, e na parte norte e nordeste em bairros como o Conjunto Habitacional Brasil Novo, Parque São Matheus e Jardim Barcelona.

A porção oeste da cidade é caracterizada basicamente por áreas com construções esparsas com gramado e vegetação esparsa, possui bairros de diversas épocas, desde os recentes, como, por exemplo, os Jardins Petrópolis e Campo Belo, até alguns um pouco mais antigos como o Jardim Monte Alto e Parque Cedral. Esta área da cidade possui alguns focos de solos nu, o que caracteriza áreas a espera de serem loteadas, além da própria caracterização geral do bairro, que é de construções esparsas, ou seja, com a existência de muitos terrenos vazios. 3. Caracterização dos transectos. 3.1. Transecto 1:

O transecto 1 foi constituído de modo a cortar a cidade de sul a norte pela Avenida Coronel José

Soares Marcondes e depois pela Avenida Ademar de Barros, seguindo em direção a Linha Férrea até a Estrada Municipal Masaharu Akaki (Figura 1).

O transecto inicia-se no Jardim Higienópolis, passando pelo Centro da Cidade e chegando ao final no Jardim Alexandrina. Neste percurso, privilegiaram-se diversos tipos de uso e ocupação do solo, disposição das vertentes e diferentes altitudes. Quanto ao tipo de ocupação do solo têm-se as seguintes características:

� Área de construções esparsas com gramado e vegetação arbórea esparsa; � Área mista, com construções esparsas com gramado e vegetação arbórea esparsa, com área

densamente construída e sem vegetação e ainda há presença de edificações com mais de quatro pavimentos;

� Área mista, com construções esparsas e vegetação densa; � Área densamente construída e com vegetação esparsa; � Área densamente construída e com vegetação arbórea e há presença de edificações com

mais de quatro pavimentos; � Área densamente construída e com vegetação esparsa e há presença de edificações com

mais de quatro pavimentos; � Área mista, com vegetação esparsas e gramado, área densamente construída e com

vegetação arbórea e solo nu; � Vegetação esparsa e gramado; � Área mista, com vegetação esparsa e de gramado, construções esparsas com gramado e

vegetação esparsas, área densamente construída e com vegetação arbórea e sem vegetação. O transecto seguiu esta seqüência apresentada, e a maior parte do percurso tem como

característica principal a alta densidade de construções e a presença de vegetação arbórea. No centro da cidade, além da alta densidade de construções, há edificações acima de quatro pavimentos, e a vegetação arbórea é esparsa. Quanto as vertentes, predominam as voltadas para sul e para o norte, íngremes e retilíneas.

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Figura 1 – Presidente Prudente: Localização dos Transectos – 2003. 3.2. Transecto 2:

O transecto 2 cortou a malha urbana de leste para oeste. Iniciando-se em uma Estrada Vicinal, passando pelas Avenidas Tancredo Neves, Brasil, Manoel Goulart e por fim pela Avenida Ana Jacinta, até proximo ao Balneário da Amizade. (Figura 1

Este transecto, assim como o transecto 1, privilegiou a passagem por áreas de diferentes ocupações do solo, assim como vertentes e altitudes diferenciadas. Quanto ao tipo de uso e ocupação do solo têm-se as seguintes características:

� Área mista, com construções esparsas e gramado e dcnsamente construída e sem vegetação; � Area mista, densamente construída e com vegetação arbórea e área densamente construída

com vegetação esparsa; � Vegetação densa e vegetação esparsa e gramado; � Area densamente construída e com vegetação arbórea; � Arca mista, densamente construída com vegetação arbórea e área densamente construída

com vegetação esparsa; � Área densamente construída com vegetação arbórea; � Área mista, com construções csparsas com gramado e vegetação csparsa, e vegetação

esparsa e gramado; � Área mista, com vegetação densa e vegetação esparsa e gramado; � Área mista, com construções esparsas e com gramado, e vegetação esparsa; � Vegetação esparsa e gramado: � Área mista, densamente construída e com vegetação arbórea, e vegetação densa; � Área densamente construída com vegetação arbórea; � Construções esparsas com gramado e vegetação esparsa. No transecto 2, não há um tipo de ocupação do solo mais evidente como no transecto 1 sendo,

portanto, mais heterogêneo que o transecto 1. Assim, neste transecto. na parte leste tem-se a predominância de areas construídas, ora com vegetação arbórea, ora sem vegetação. Na parte oeste da

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cidade, predomina as áreas de construções esparsas, ora como gramado e ora com gramado e vegetação esparsa.

As vertentes que predominam são as voltadas para oeste e leste e convexizadas. Há um destaque maior aos de fundos dc vale do que no transecto 1, devido a maior presença de corpos d´água, embora alguns canalizados.

4. Análise dos sistemas atmosféricos atuantes

De acordo com Barrios e Santa’Anna Neto (1996), os sistemas atmoféricos que atingem O Estado de São Paulo são os de origem Tropical, Polar e Frontal.

Os sistemas tropicais se individualizam na massa de ar Tropical atlântica (mTa), na massa Tropical atlântica continentalizada (mTac), na massa Tropical continental (mTc) e na massa Equatorial continental (mEc), esta última quase não tem influências em nossa região, embora não se descarta sua presença no verão.

A massa Tropical atlântica origina-se no anticiclone do atlântico e atua durante o ano todo sobre o território paulista, trazendo estabilidade de tempo no inverno, em decorrência de subsidencia superior nesta célula de alta pressão dinâmica e instabilidade na parte inferior, no verão. Devido sua origem marítima, apresentam umidade relativa mais ou menos alta, em superfície, pressões relativamente elevadas e constantes, e ventos. geralmente, de leste e nordeste.

A massa Tropical atlântica continentalizada origina-se a partir das modificações que sofre ao adentrar sobre o continente. Como resultado têm-se temperaturas mais elevadas, umidade relativa baixa e pressões em ligeiro declínio. Esta atua com mais intensidade no Estado de São Paulo durante a aproximação de uma frente fria.

A massa Equatorial Continental se origina na Planície Amazônica, apresenta umidade relativa e temperatura do ar elevadas e atua no Extremo Oeste Paulista durante o verão atraída pelo) sistema depressionário do interior do continente e ventos de noroeste.

Os Sistemas Polares se caracterizam pela atuação da massa Polar atlântica e pela massa Polar velha.

A massa Polar atlântica se origina no Anticiclone Polar Atlântico, apresenta ventos de SSE ou SW, temperatura baixa e grande amplitude térmica associada, geralmente, à pressão atmosférica em elevação. Essa massa atua mais intensamente, no inverno.

A massa Polar velha é o ar polar enfraquecido, com temperatura em ascensão e pressão atmosférica em ligeiro declínio. Os ventos são provenientes de E e NE. Esta se encontra entre uma frente em frontólise nas baixas latitudes e nova frontogênese no rio da Prata.

Os Sistemas Frontológicos se caracterizam a partir da Frente Polar e da Frente Polar Reflexa. A Frente polar é gerada a partir da descontinuidade provocada pelo choque entre os sistemas

tropicais e polares. Esta se apresenta mais vigorosamente no inverno, pois as condições de frontogênese são mais freqüentes. Embora o fênomeno possa ser sentido em todo o Estado de São Paulo durante o ano todo.

A Frente Polar Reflexa define-se a partir da separação entre o ar polar modificado (Pv) proveniente de um avanço anterior e o ar tropical marítimo (Ta). Esta Irente apresenta uma melhor definição no litoral.

A Frente Polar Atlântica tem grande papel na gênese das chuvas, assim ficando a região sujeita a constantes invasões de perturbações frontais, mesmo na primavera e no verão, quando as chuvas são mais frequentes e intensas, acarretando em um período úmido.

Os sistemas estabilizadores de tempo no outono e no inverno provocam diminuição das chuvas, tornando este período mais seco.

De acordo com as cartas sinóticas de superfície da marinha do Brasil (www.mar.mil.br), os sistemas atmosféricos que atuaram nos dias de coleta da temperatura foram os seguintes:

No 20/07/03 — 00h00 — havia a presença de uma frente fria se deslocando para o oceano e a atuação de uma massa de ar Tropical atlântica (mTa) sobre o estado de São Paulo.

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Dia 20/07/03 — 12h00 — uma nova frente fria se aproximou no sul do país, fazendo com que a (mTa) recuasse, proporcionando a atuação da massa Tropical continental.

Dia 21/07/03 — 00h00 — a frente adentrou o sul do país fazendo com que a massa Tropical atlântica se intensificasse sobre o estado de São Paulo.

Dia 21/07/03 — 12h00 a frente fria começou a se deslocar para o oceano e um ramo passou a ser quente sobre o continente. A massa Tropical atlântica continuou atuando sobre o estado de São Paulo.

Dia 22/07/03 — 00h00 — a frente se aproximou do Estado de São Paulo e o oeste paulista continuou sob atuação da Tropical atlântica.

Dia 22/07/03 — 12h00 – a frente se deslocou para o oceano e a massa de ar Polar atlântica passou a atuar no oeste paulista. Observa-se uma nova frente fria no sul do país.

Dia 23/0703 — 00h00 — a frente fria se deslocou para o oceano e a Polar atlântica começou a perder intensidade sobre o Estado de São Paulo.

Dia 23/07/03 12h00 — uma nova frente se deslocou no sul do continente e a Polar velha atuou sobre São Paulo. 5. Análise espacial da temperatura. 5.1. Caracterização da temperatura do ar às 5h00.

Neste horário, nos três dias pesquisados, houve a configuração de uma ilha de calor bem definida na área central da cidade, além de se observar temperaturas elevadas nas porções norte, sul e oeste. A amplitude térmica entre os pontos no dia 22/07/03 foi de 8,50C, caracterizando a ilha de calor como de alta magnitude sob a atuação da massa de ar Tropical atlântica (Figuras 2, 3 e 4).

Neste horário definiu-se uma ilha de frescor localizada na zona leste. Esta ilha de frescor se formou em função de estar em um fundo de vale, além de se tratar de uma área com construções, mas com a presença de vegetação arbórea e gramado.

A temperatura máxima encontrada nos dias de levantamento de campo às 5h00 foi de 21,50C (22/07/03) e a temperatura mínima foi de 120C (21 e 22/07/03).

Figura 2 – Presidente Prudente: Temperatura do ar (0C) – 21/07/2003 – 5:00h.

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Figura 3 – Presidente Prudente: Temperatura do ar (0C) — 22/07/2003 — 5:00h.

Figura 4 — Presidente Prudente: Temperatura do ar (0C) – 23/07/2003 — 5:00h. 5.2. Caracterização da temperatura do ar ás 20h00

Neste horário a ilha de calor ficou ainda mais definida do que às 5h00, configurando-se na área central da cidade e adjacências (Figuras 5, 6 e 7). Quanto a sua magnitude, pode ser classificada como alta, atingindo 8,50C de amplitude térmica entre os pontos. Essa máxima intensidade foi encontrada nos dias 22, sob atuação da Tropical atlântica e no dia 23, sob atuação da Polar enfraquecida.

As ilhas de frescor se configuram na zona leste, como às 5h00, e outra na zona oeste, ambas localizadas em áreas de fundo dc vale e com vegetação arbórea e gramado. No dia 22, cabe salientar, a formação de uma ilha de frescor localizada na zona norte. O uso e a ocupação do solo são muito parecidos com os observados na zona leste e oeste, onde também se observou ilha de frescor.

As ilhas de frescor tiveram sua melhor configuração sob a atuação da Tropical Atlântica, que proporcionou maior amplitude térmica entre os pontos, assim maximizando os efeitos ocasionados pelo usoo e ocupação e tipo do relevo urbano.

A temperatura do ar máxima observada neste horário nos dias de levantamento de campo foi de 270C (22/07/03) e a mínima foi de 18,50C, encontrada nos três dias de pesquisa.

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Figura 5 — Presidente Prudente: Temperatura do ar(0C) —21/07/2003 — 20:00h.

Figura 6 — Presidente Prudente: Temperatura do ar (0C) — 22/07/2003 — 20:00h.

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Figura 7 — Presidente Prudente: Temperatura do ar (0C)— 23/07/2003 – 20:00h. As tabelas 1 e 2 apresentam os dados de temperatura obtidos nos transectos sul/norte e

leste/oeste, durante os dias 21, 22, 23 de julho de 2003. Tabela 1 – Dados de temperatura – Transecto 1 – Sul/Norte

Dia 21/07/2003 22/07/2003 23/07/2003 Horário Horário Horário

Pontos 5h00 20h00 5h00 20h00 5h00 20h00 Higienópolis 18.7 23.0 21.1 23.5 19.7 25.1 Placa 18.8 25.9 19.9 25.9 19.6 25.5 Brasilit 18.7 25.7 19.9 26.3 19.5 25.3 Churrascaria 18.7 26.0 20.0 26.7 19.5 25.5 Unimed 18.9 25.7 20.3 26.9 19.8 25.4 Hotel 18.8 25.1 20.3 26.8 19.7 25.1 Parque povo 18.9 25.1 20.3 26.5 19.8 25.3 Parque povo 18.8 24.9 20.2 25.9 19.7 25.1 Athia 19.3 24.9 20.3 26.3 19.6 25.1 Rei da Esfiha 19.1 24.9 20.4 26.5 19.5 25.2 Merc. Avenida 19.2 25.1 20.6 26.7 19.6 25.4 INPS 18.6 24.9 20.5 26.7 19.5 24.8 Santa Casa 20.3 25.9 21.2 26.9 20.4 25.9 Combel 20.3 25.9 21.1 27.2 20.5 26.1 PUM 20.5 25.7 21.1 27.3 20.3 25.9 Embratel 20.3 25.4 20.9 26.9 20.0 25.9 Jhorei 20.3 25.7 21.1 26.9 20.2 26.5 Catedral 20.0 25.9 21.1 26.7 20.3 26.6 CNA 19.9 26.3 21.5 27.0 20.1 26.5 Disk Água 19.9 25.7 21.3 26.9 19.9 26.5 Solução 19.9 25.5 21.1 27.1 19.8 26.3 Café 19.5 25.3 20.8 26.5 19.7 25.6 APEA 19.2 25.1 20.7 25.7 19.5 25.1 Microlins 18.7 24.7 20.3 24.7 19.0 25.0 M. Aquático 18.7 24.7 21.1 24.8 19.8 25.1 Corretora 18.6 25.0 20.1 25.0 18.9 25.4 Avenida (A.B.) 18.5 25.1 20.3 24.9 19.1 25.2 Igreja 18.4 25.0 20.3 25.1 19.0 25.3 S/M 17.8 25.1 20.4 25.1 18.7 25.2 Padaria 18.1 24.9 20.1 25.2 18.7 25.1 Pare 17.4 25.1 19.6 24.1 18.3 25.1 Petro Oil 17.1 25.1 19.1 23.8 17.9 24.7 Prudenbase 17.4 24.6 18.8 23.3 17.7 24.4 Posto BR 17.7 24.5 18.9 23.1 17.9 24.3 L. Férrea 17.7 24.4 19.0 22.7 18.0 24.4 Posto ZN 17.5 24.9 18.9 22.0 17.9 24.3 Super Útil 18.1 24.5 18.7 20.9 17.8 24.1 Brasil Novo 18.0 24.7 19.3 22.0 18.5 24.6 Posto Alex. 17.7 23.3 18.5 20.7 17.5 23.5 UTI lanche 17.7 24.4 18.7 22.5 17.9 24.3 Tabela 2 – Dados de temperatura – Transecto 2 – Leste/Oeste.

Dia 21/07/2003 22/07/2003 23/07/2003 Horário Horário Horário

Pontos 5h00 20h00 5h00 20h00 5h00 20h00 Vicinal 15.9 22.7 16.9 22.1 16.3 22.7 Caiuá 16.4 23.3 17.1 22.9 16.5 23.1 NG Funilaria 15.9 22.4 16.9 22.9 16.7 23.2

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Verde 14.7 21.5 16.3 21.7 15.5 20.2 ADPM 13.5 20.0 14.3 19.4 13.4 18.7 Ipanema 12.3 18.5 13.3 18.7 12.1 19.6 Rot. Abílio 13.0 19.4 13.8 19.4 12.5 20.8 Maçonaria 13.6 20.3 14.4 20.3 13.1 20.9 Divulg. Lumi 14.4 21.1 15.6 21.0 14.3 22.4 Sampa Motos 15.8 22.7 17.1 23.0 16.3 23.9 Av. Brasil 16.9 23.3 18.2 23.8 17.1 24.8 Rodoviária 18.3 24.3 19.3 26.1 18.3 25.1 Tokio 18.6 24.5 19.6 26.8 18.7 25.5 Bingo Oeste 19.1 24.9 19.9 27.1 19.0 25.5 Chelleme 18.7 24.7 20.2 26.6 19.0 25.5 R: J. Nabuco 19.0 25.0 20.3 26.1 19.3 25.5 Escr. Garcia 19.7 25.5 20.7 26.4 19.7 26.0 Super P. P. 20.1 26.0 21.1 26.9 20.6 26.7 P. Itatiaia 20.3 26.7 21.7 26.5 20.5 26.3 Padaria SP 19.9 26.3 21.9 26.2 20.4 26.3 Gela Itália 19.5 25.7 21.9 25.7 20.3

25.9

Rot. Goulart 18.4 23.7 21.3 23.6 19.8 24.3 Holos 17.5 22.7 20.9 22.8 19.6 23.3 Senac 17.1 22.1 18.7 22.2 19.0 23.2 Museu 16.9 22.2 17.9 22.1 18.3 22.7 Av. A. Jacinta 15.7 21.1 16.9 20.7 17.7 21.5 Touro 15.5 19.9 18.0 19.4 17.7 20.5 Lumiset 16.3 20.3 18.8 19.9 18.2 21.4 Fama equip. 16.8 21.3 19.4 21.1 18.4 22.3 P. Bela Vista 17.5 22.1 19.6 21.9 18.7 22.7 Aumideq 17.9 22.9 19.7 22.7 18.7 23.7 Praça A. J. 16.9 20.9 18.5 21.5 18.4 22.4 Casa 17.1 20.7 18.7 20.7 18.4 21.6 Baselar 17.9 22.5 19.7 22.9 18.7 23.3 Baby Beef 18.3 23.4 19.9 23.9 18.7 23.9 Açougue 18.8 23.9 20.0 24.9 19.1 24.4 Igreja 19.1 23.9 19.8 24.1 19.1 24.6 Minas Gás 19.3 22.7 19.1 23.7 19.2 24.4 Pedrok 18.9 22.3 18.7 22.9 19.3 23.8 Final 18.8 22.1 18.9 23.1 19.4 22.7 Fonte: Pesquisa de campo. 6. Considerações finais.

Como se observou nesta pesquisa, a cidade pode criar seu próprio ambiente climático, resultando em conforto ou desconforto térmico para a população. A ilha de calor é, cada vez mais, uma expressão da capacidade do homem em mudar o ambiente e de criar, se não prevenir, uma situação séria de desconforto térmico e ambiental (YAMASHITA, 1996 apud PINHO, 2000). O clima urbano, particularmente a ilha de calor, tem se revelado muito importante do ponto de vista sócio-ambiental, por causa da tendência crescente das pessoas irem viver em áreas urbanas.

De acordo com Oke (1978), a ilha de calor urbana é causada através de distorção no equilíbrio de energia nas áreas construídas que são o resultado da capacidade de armazenamento de calor nos materiais usados nos edifícios e ruas, e nas alterações na difusão de calor introduzida pelo espaço urbano e uso de solo. A característica mais significante da ilha de calor é sua intensidade, entendida como a diferença entre o máximo da temperatura urbana e o mínimo da temperatura rural.

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Esta característica está relacionada diretamente aos fatores diversos que contribuem à formação da ilha de calor, tais como, os fatores naturais (situação sinótica, relevo e a presença de superfícies com vegetação e/ou água) ou propriamente urbanos (morfologia urbana e atividades antropogênicas).

As atividades antropogênicas, como tráfego de veículos e o uso de ar condicionado e aquecedores, são grandes consumidores de energia e que geram o aumento de calor na cidade. Este calor é somado aos materiais urbanos aquecidos durante o dia, através da radiação solar, e é retido entre os edifícios pelas reflexões múltiplas entre eles, assim reduzindo a interface com a atmosfera. O calor acumulado durante o dia é devolvido em parte durante a noite. As áreas verdes reduzidas e a impermeabilização do solo nas áreas urbanas também contribuem para a intensificação da ilha de calor, porque há diminuição no processo de evapotranspiração, assim não há o resfriamento por evaporação na cidade (HIDORE et ai, 1993 apud PINHO, 2000).

E ainda, a formação e principalmente a intensidade das ilhas de calor estão relacionadas às condições sinóticas atuantes, que irão estabelecer o tipo de cobertura do céu, a velocidade e direção do vento e as precipitações. Assim, por exemplo: a ausência de ventos ou brisas leves dificulta a dispersão do calor urbano, fazendo com que aumente a intensidade da ilha de calor; por outro lado, se o vento sopra, a turbulência faz com que o calor seja removido da cidade e, por conseguinte, as variações de temperatura entre o urbano e o rural são menores. As nuvens reduzem a recepção e a devolução da radiação e moderam a intensidade da ilha de calor urbana (Hidore e Oliver 1993 apud Pinho 2000).

Desta forma, nesta pesquisa, a partir dos transectos móveis realizados durante a noite (20h00) e madrugada (5h00) em três dias do inverno, foi possível identificar diferenças térmicas intra-urbana na cidade de Presidente Prudente/SP.

As anomalias encontradas são frutos do tipo de uso e ocupação do solo e também estão associadas ao relevo. Os sistemas atmosféricos serviram como maximizadores dos fenômenos térmicos encontrados.

Às 5h00, a ilha de calor que se forma é conseqüência do calor armazenado do dia anterior nas construções e ruas, que ainda continua a ser emitido para a atmosfera por estas superfícies. Embora, neste horário haja uma certa homogeneização nas temperaturas, as ilhas de frescor da zona norte e oeste formadas durante o resfriamento noturno tendem a diminuírem ou desaparecem durante a madrugada.

Às 20h00, a ilha de calor que se forma na área central é conseqüência do acúmulo de calor nas construções e asfalto que começa a ser devolvido para atmosfera posteriormente ao pôr-do-sol, e ainda, é conseqüência do grande fluxo de veículos automotores que trafegam pela cidade neste horário.

Assim, o aquecimento do ar, também pode ser provocado pela liberação de gás carbônico que forma uma cúpula de gás e impede os movimentos ascendentes de ar para a atmosfera, desta forma fazendo com que o calor fique confinado na camada mais próxima da superficie. E também, o efeito da ilha é maximizado pela rapidez com que os fundos de vale da zona leste, oeste e norte se resfriam, demonstrando que o relevo é importante na configuração das ilhas de calor.

Quanto aos sistemas atmosféricos, sob a atuação da Tropical Atlântica e da massa de ar Polar velha, observou-se a formação de ilhas de calor de alta magnitude, atingindo a amplitude de 8,50C.

Desta forma, esta pesquisa chegou aos seguintes resultados: as áreas urbanas com grande concentração de construções, asfalto, grande volume de tráfego de veículos e com vegetação esparsa ou ausente, localizadas em áreas de topo, adquirem elevadas temperaturas, a partir do pôr-do-sol e seus efeitos se estendem até a madrugada, atingindo as temperaturas mínimas.

As áreas urbanas com pouca densidade de construções, vegetação densa, esparsas ou gramados e localizadas em fundos de vale tendem a se resfriarem mais rapidamente.

Assim, observou-se que existem diferenças térmicas intra-urbana e que algumas áreas têm capacidade de armazenar e devolver o calor mais lentamente formando ilhas de calor, e que outras áreas têm o comportamento inverso e podem resfriar-se mais rapidamente formando ilhas de frescor. Desta forma, tanto as ilhas de calor como as ilhas de frescor são conseqüência dos usos e ocupações do solo, do relevo (topo ou fundo de vale) e dos sistemas atmosféricos, que podem agir como maximizadores ou diminuidores da magnitude do fenômeno.

As ilhas de calor afetam o conforto e a saúde dos habitantes urbanos, e assim deveriam ser mais estudas em nosso país. O Brasil necessita de estudos deste caráter, que envolvam as condições do ambiente habitado e que dêem a devida atenção para a necessidade de se prevenir este fenômeno. O

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planejamento urbano deveria levar em conta a densidade de construção, a distribuição e impacto das emissões de calor provocadas por estas e ainda, dar devida importância a permanecia de corpos d’água e a preservação e criação de áreas verdes, para reduzir o desenvolvimento de ilhas de calor urbanas. 7. Referências bibliográficas. AMORIM, M.C.C.T. O clima urbano de Presidente Prudente/SP. São Paulo, 2000. 378p. Tese (Doutorado em Geografia) - FFLCH - USP. AMORIM, M.C.C.T. Características noturnas da temperatura em Presidente Prudente/SP. In: V SIMPÓSIO BRASILEIRO DE CLIMATOLOGIA GEOGRÁFICA, 2002, Curitiba. CD ROM. Curitiba: UFPR, 2002. p. 752-760. BARRIOS, N.A.Z., SANT’ANNA NETO, J.L. A circulação atmosférica no extremo oeste paulista. Boletim Climatológico, Presidente Prudente, v.1, n.l, p.8-9, março 1996. GOMEZ, A. L. et al. El clima de las ciudades españolas. Madrid: Ediciones Cátedra, 1993. 268p. JACOBS, J. Trad. ROSA, C. S.M. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 5l0p. LOMBARDO, M.A. Ilha de Calor nas metrópoles: O exemplo de São Paulo. São Paulo: Hucitec, 1985. 244p. MONTEIRO, C.A de F. Teoria e clima urbano. 25. São Paulo: IGEOG/USP, 1976. 181p. (Série Teses e Monografias, 25). MONTEIRO, C.A de F. Por um suporte teórico e prático para estimular estudos geográficos do clima urbano no Brasil. Geosul, Êlorianópolis,v.5, n.9, p.7-l9, 1990. MONTEIRO, C.A de F. Adentrar a cidade para tomar-lhe a temperatura. Geosul, Florianópolis, v.5, n.9, p. 61-79, 1990. MONTEIRO, C.A de F. A cidade como processo derivados ambiental e estrutura geradora de um ‘Clima Urbano”. Geosul, Florianópolis, v.5, n.9, p. 80-114, 1990. OKE, T.R. Boundary Layer Climate London, Methuem & LTD. A. Halsted Press Book, John Wiley & Sons, New York, 1978. p. 240-267. OKE, T.R. The energetic basis of the urban heat island. Quarterly Journal of the Royal Meteorological Society, v.108, n. 455, p. l-24, jan. 1982. PINHO, 0.S. ORGAZ, M. D. M. The urban heat island is a small cityin coastal Portugal. Int J Biometeorol. N044. 2000. p. 198-203 PITTON, S.E.C. As cidades como indicadores de alterações térmicas. São Paulo, 1997. 272p. Tese (Doutorado em Geografia Física) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 2 ed. rev. at. 2ª tiragem. São Paulo: Malheiros Editores, 1997. SPOSITO, E.S. Presidente Prudente na linha do tempo. In: Conjuntura Prudente 97. Presidente Prudente: FCT/UNESP, 1997.

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AÇÃO ANTRÓPICA, ALTERAÇÕES NOS GEOSSISTEMAS, VARIABILIDADE CLIMÁTICA:

CONTRIBUIÇÃO AO PROBLEMA∗∗∗∗.

Victor Assunção BORSATO∗∗∗∗∗∗∗∗ Edvard Elias SOUZA FILHO∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗

Resumo: Este artigo aborda as preocupantes alterações nos atributos naturais dos geossistemas a partir das intervenções mais intensas na busca dos recursos naturais para satisfazer a crescente demanda comandada pelos sistemas socioeconômicos em curso. Procurou-se fazer uma comparação na velocidade de ocupação e alterações comandadas pelo homem na zona temperada e na tropical da Terra e, conseqüentemente, as alterações que esses geossistemas apresentam em função da posição astronômica e do equilíbrio térmico. Assim como as respostas que possam desencadear na dinâmica geral da atmosfera — a entropia e as suas conseqüências no clima. Propõe-se uma discussão que considera uma nova razão para um novo conhecimento do fenômeno climático, frente as eminentes variabilidades desencadeadas a partir das ações antropogenéticas. Palavras-chave: Geossistema; clima; ação antrópica; entropia. Resumen: Este artículo aborda las preocupantes alteraciones en los atributos naturales de los geosistemas a partir de las intervenciones mas intensas en la busca de los recursos naturales para satisfacer la creciente demanda comandada por los sistemas socioeconómicos en curso. Se busca comparar la velocidad de ocupación y alteraciones comandadas por el hombre en la zona templada y en la tropical de la tierra y consecuentemente las alteraciones que esos geosistemas presentan en función de la posición astronómica y del equilibrio térmico así como las respuestas que puedan desencadenar a la dinámica general de la atmósfera – entropia, y las consecuencias en el clima. Se propone una discusión que considere una nueva razón para un nuevo conocimiento del fenómeno climático, frente a las eminentes variabilidades desencadenas a partir de las acciones antropogénicas. Palabras llave: geosistema; clima; acción antropica; entropia. 1. Introdução.

Os problemas decorrentes da gestão de procedimentos concernentes à renovação dos recursos naturais, à conservação e à preservação do meio ambiente são preocupantes. A mídia, de uma forma geral, tem enfocado as grandes preocupações do momento. Como, por exemplo, o efeito estufa, as chuvas ácidas e, principalmente, as mudanças climáticas, embora essas questões deveriam receber maior atenção dos órgãos governamentais e, principalmente, dos países que mais contribuem com tais alterações do meio ambiente.

Procurou-se, sem aprofundar na problemática, questionar alguns conceitos; como a entropia, a troca de energia entre os geossistemas e mesmo entre a superfície e a atmosfera; e esta e o espaço e a dinâmica natural. Embora se sabe que os ritmos dinâmicos dos sistemas sofrem intervenções e alterações antropogênicas em determinados componentes, os quais, com as alterações nos inputs, desencadeiam impactos. Ao mesmo tempo, a natureza procura reestabelecer o equilíbrio entre os componentes. Dependendo do grau ou da intensidade das modificações no meio natural, os desequilíbrios são inevitáveis. Na busca de restabelecer sua dinâmica habitual. As respostas que o meio nos dá é através de modificações na dinâmica climática ou geomorfogênese até atingir um novo equilíbrio e, às vezes, não

∗ Texto publicado em 2004 (n.11 v. 2). ∗∗ Professor da FAFIMAN. ∗∗∗ Professor da Universidade Estadual de Maringá – PR.

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desejáveis. A evolução, ou seja, o tempo necessário para reestabelecer a nova dinâmica depende do grau de intervenção e também do nível de fragilidade do geossistema.

Hoje, com todo o arsenal tecnológico disponível, não há como aumentar a produção de bens sem explorar os recursos naturais. As intervenções nos componentes dos geossistemas são tanto maiores quanto maior o potencial de recursos disponíveis. Há uma crescente taxa de transferência de recursos entre as grandes regiões da Terra. Hoje, informações e mercadorias circulam o planeta, considerando-se os fluxos de matéria e energia, ou seja, o input e output dentro de um geossistema como fator de equilíbrio; considerando também os princípios da termodinâmica. Haverá, como conseqüência das trocas desequilíbrios, principalmente, considerando os recursos provenientes da biomassa, tanto na área onde os recursos foram explorados quanto onde estão sendo destinados. Questiona-se, também se o homem poderá utilizar e desenvolver tecnologia capaz de controlar os inputs e outpus nos geossistemas?

A evolução da sociedade e as alterações nos ambientes evidenciam o jogo da estrutura social, particular a cada momento histórico, que incide no espaço geográfico diferencialmente. Os estudos climáticos têm, na grande maioria deles, priorizado o estudo de casos ou abordado uma escala local, principalmente ao se tratar de alterações nos padrões habituais. Neste artigo, pretende-se a partir de um enfoque local, analisar e questionar o comportamento climático regional e global; abordando os princípios básicos dos geossistemas, frentes às alterações comandadas pela ação do homem, na cobertura vegetal. 2. A relação homem-meio natural.

A partir da Revolução Industrial, as alterações na paisagem aceleram-se em níveis cada vez mais sofisticados e intensos. As indústrias ampliaram suas áreas de influências a partir da Europa e atravessaram os oceanos. Hoje constituem o símbolo da paisagem antrópica.

A partir da produção em série, o desenvolvimento tecnológico, mais cedo ou mais tarde, envolveu os mais diversos segmentos tecnológicos e permitiram, através dos meios científicos, não só o aumento populacional, como também uma maior longevidade do homem. A tecnologia médica curativa e preventiva reduziu drasticamente a mortalidade para depois conscientizar a população das necessidades da redução da natalidade. Fatores que alteraram significativamente o ritmo demográfico humano.

A transição demográfica se caracteriza pelas três fases: na primeira, a natalidade e a mortalidade são altas; na segunda, a mortalidade cai, e a natalidade permanece alta; e na terceira fase, a natalidade e mortalidade são baixas. Os Países mais desenvolvidos alcançaram a terceira fase. Os demais, em sua grande maioria ainda estão longe de completar a transição demográfica e, continuam registrando crescimento acelerado de sua população.

O desenvolvimento tecnológico e o sistema capitalista possibilitaram, a cada ser humano, um aumento no consumo de energia per capta. Embora seja sabido que as desigualdades entre os povos se acentuaram com o advento da Revolução Industrial, seja em sua primeira fase (Capitalismo Concorrencial), na Segunda (Capitalismo Monopolista), ou na atual, monopolista e globalizada.

Nos Países do Norte, a população adquiriu um padrão de consumo elevadíssimo, principalmente, estadunidenses e europeus; enquanto a grande maioria da população dos Países do Sul vive com uma baixa renda monetária e baixo de consumo de energia per capita. Mesmo não levando em consideração o tamanho das desigualdades na distribuição da riqueza.

Dessa forma, percebe-se que os recursos naturais são cada vez mais intensamente explorados para atender as necessidades consumistas da população do planeta. Seja em razão da elevação do consumo, seja pelo aumento populacional. Hoje são mais de seis bilhões de seres humanos considerando-se o que cada indivíduo estadunidense consome em média, os recursos naturais disponíveis, principalmente os não renováveis, seriam exauridos em poucos anos, e as conseqüências ambientais colocariam em risco a própria existência da vida humana no planeta. Embora o desejo de uma grande parcela da população seja o estilo de vida norte-americano.

Por essa razão, o mundo começa a se organizar em defesa da qualidade de vida e de um meio ambiente saudável com perspectiva de garantir meios de sobrevivência para as gerações futuras. E o grupo dos que defendem o desenvolvimento sustentável para o planeta é cada vez maior.

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Os Países do Norte desenvolveram a indústria clássica. De certa forma, ao longo do tempo, puderam equilibrar o desenvolvimento tecnológico com o social e reduziram as desigualdades internas, proporcionando melhores condições de vida à população. Enquanto nos Países do Sul há uma ampliação das desigualdades sociais por conta do empobrecimento da população, consubstanciadas pelo modelo desenvolvimentista adotado, que por sua vez, está fundamentado na importação de tecnologia desenvolvida em países cujas necessidades de uso de mão-de-obra estão centradas no setor terciário da economia.

O modelo desenvolvimentista promoveu a saída da população do campo que engrossou o contingente de mão-de-obra, não qualificada, nos centros urbanos: fomentando a criação de cidades informais e ampliando os cinturões de pobreza que caracterizam as grandes cidades em todos os países subdesenvolvidos.

A explosão urbana é um fenômeno mundial, mas é nos países subdesenvolvidos que os problemas de infra-estrutura se agravam. Embora seja ainda um processo em curso, verifica-se que as maiores aglomerações urbanas do mundo crescem em ritmo acelerado nos países subdesenvolvidos.

O crescimento urbano é uma agressão ao meio ambiente por si. Visto que, além da remoção da vegetação natural, modifica a superfície do terreno, impermeabiliza vastas áreas, contamina o solo, subsolo, o ar, as água subterrâneas e superficiais, além de alterar o mesoclima. As “ilhas de calor” verificadas, principalmente nas grandes metrópoles, são mais um exemplo de alterações ambientais que se manifestam em função da metropolização da sociedade contemporânea.

O mesmo modelo desenvolvimentista fomentou a expansão de fronteiras agrícolas. A demanda de madeira dizima áreas florestais e amplia o impacto ao meio ambiente. As práticas econômicas predatórias mais agressivas se iniciaram pela Zona Temperada da Terra e hoje atuam principalmente nas áreas de baixa latitude, provocando o desmatamento de vastas áreas de florestas equatoriais.

Considerando-se que na região tropical a energia absorvida é maior que a irradiada, a transferência de calor que se dá entre as zonas da Terra, seja por condução, convecção ou advecção segue a dinâmica da circulação geral da atmosfera terrestre. Alterações no balanço de energia, seja através da irradiação terrestre ou da radiação solar, alterarão sua própria dinâmica.

A princípio, sabe-se que o desmatamento, além dos inúmeros “traumas” ao ecossistema, modifica totalmente o balanço de energia local, o qual comanda a dinâmica atmosférica. A porcentagem de energia refletida, em relação à incidente, é alterada. Assim como as condições de umidade atmosférica. Se as considerações de Varejão-Silva (2000) forem levadas em conta, o desmatamento da Faixa Equatorial poderá modificar por completo a dinâmica atmosférica.

Os mecanismos responsáveis pela transferência meridional de calor para áreas com balanço de radiação negativo são as correntes aéreas (transporte de calor sensível e latente) e, em segundo plano, as oceânicas (transporte de calor sensível). O transporte de calor latente, em direção aos pólos, está associado a mudanças de fase de água, comprovando-se assim, mais uma vez, sua importância para a energia do sistema superfície-atmosfera.

Os estudos geológicos demonstram os efeitos das alterações ou mudanças climáticas sobre a

paleogeografia e paleoecologia. O crescimento acelerado da população humana, a mecanização da agricultura e a urbanização vêm sendo acompanhados por um processo de degradação ambiental jamais dimensionados em tempos Modernos na superficie do planeta. Esta degradação pode levar às modificações climáticas que podem ameaçar a nossa própria existência.

3. A relação do homem com o meio e as mudanças climáticas.

Os trabalhos cujo enfoque está centrado no clima urbano são conclusivos em mostrar as diferenças térmicas verificadas nos grandes centros urbanos com relação à periferia ou ao entorno. MENDONÇA (2001) estudou o clima urbano de Londrina, cidade do norte do Estado do Paraná, e constatou importantes anomalias em inúmeros elementos do clima, principalmente diferenças térmicas entre a superfície urbana e o seu entorno rural.

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O mesmo raciocínio pode ser feito para as diferenças entre uma área florestada em comparação com o seu entorna agrícola. Por ora, não foi encontrado estudo que aborda as diferenças de comportamento dos elementos climáticos entre área com vegetação natural e área ocupada pela agricultura moderna em regiões tropicais. A sensibilidade humana, neste caso, pode dar-nos uma resposta, pois é fácil perceber as diferenças de temperatura e umidade entre uma área florestada e a área vizinha em dias quentes ou numa manhã fria.

Para diversos autores, o total de radiação solar que é interceptada pela Terra e a que retorna ao espaço direta ou indiretamente se equivalem (VAREJÃO-SILVA, 2000). Contudo, mesmo considerando que o balanço radiativo médio planetário se verifica um equilíbrio, as alterações antrópicas, em dadas regiões do globo, implementarão a recepção das radiações solares, ou seja, um solo arado, uma via pavimentada, as edificações urbanas, uma plantação em fileira, entre outros exemplos, absorvem a energia solar em quantidade e intensidade diferentemente de uma região natural e coberta por uma floresta tropical.

O acréscimo de energia pode vir a ser dissipado, mas até que as trocas se processam (sejam através das convecções atmosféricas, sejam através das correntes marinhas ou outras). Este acréscimo tenderá a dinamizar o sistema e flutuações climáticas poderão se manifestar em qualquer parte do planeta, ou mesmo uma manifestação de tendência climática.

Como o clima é um dos componentes integrante de um geossistema, é muito dificil caracterizar alterações nos padrões habituais. Sant’Anna Neto (1995) estudou as chuvas no Estado de São Paulo e evidenciou que elas não sofreram grandes atterações em valores anuais, mas sofreram uma diminuição nos dias com registros de precipitações. Isso caracteriza que as chuvas se tornaram mais intensas em cada episódio.

Os fenômenos EL NIÑO e LA NIÑA têm se manifestado em intervalo de tempo cada vez menor e intensidade maior. Embora o intervalo de tempo em que o fenômeno tem sido sistematicamente acompanhado seja muito reduzido para conclusões definitivas. Para Monteiro (1999), o fenômeno EL NIÑO é uma manifestação ou conseqüência direta da flutuação da energia solar e é conseqüência direta da flutuação de nossa fonte primária de energia. A atividade solar é extremante variada, a partir das manchas solares. Fenômeno esse que tem uma influência direta na emissão da radiação solar e, sobretudo na recepção pelo planeta Terra. Como a circulação geral segue uma dinâmica ditada pela energia proveniente da irradiação terrestre, é claro que alterações na intensidade de energia liberada pela superfície da Terra alteram a dinâmica habitual.

Para Monteiro (1999), qualquer abordagem da atmosfera, seja ela meteorológica ou geográfica, há que se partir dos fenômenos básicos. Assim, o ponto de partida é a compreensão dos mecanismos das trocas de energia entre o Sol e a Terra. Por isso, é necessário compreender os mecanismos das formas de transmissão de energia. Para Ross (1992), o entendimento do relevo e sua dinâmica passam obrigatoriamente pela compreensão do funcionamento e da inter-relação entre os demais componentes naturais (águas, solos, clima e cobertura vegetal). Observa-se que, para o entendimento do clima ou qualquer outro componente natural, é necessária a compreensão do funcionamento da inter-relação entre os componentes do meio, ou seja, uma investigação geossistêmica. Para melhor entender a concepção geossistêmica e todo o debate dela provindo, deve destacar o que afirmou Sotchava (1978) sobre o Geossistema. Em condições normais, deve-se estudar não os componentes da natureza, mas as conexões entre eles; não se deve restringir à morfologia da paisagem e suas divisões, mas, de preferência, projetar-se para o estudo de sua dinâmica, estrutura funcional, conexões, (SOTCHAVA, 1978).

O princípio básico do estudo de sistemas é o da conectividade. Pode-se compreender um sistema como um conjunto de elementos com um circuito de ligações entre esses elementos; e um conjunto de ligações entre o sistema e seu ambiente, isto é, cada sistema se compõe de subsistemas, e todos são partes de um sistema maior, onde cada um deles é autônomo e ao mesmo tempo aberto e integrado ao meio, ou seja, existe uma inter-relação direta com o meio.

4. Os geossistemas e a ação do homem.

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Os sistemas Ambientais Físicos, ou Geossistemas seriam a representação da organização espacial resultante da interação dos componentes físicos da natureza (sistemas). Aí, incluídos clima, topografia, rochas, águas, vegetação e solos. Dentre outros, podendo ou não estar todos esses componentes presentes. Bertrand (1971) dá ao Geossistema uma conotação uma pouco diferente de Sotchava (1978). Para ele, o Geossistema é uma unidade, um nível taxonômico na categorização da paisagem: zona, domínio, região, “geossistema”, geofaces, geótopo.

O geossistema é certamente um sistema natural, com dinâmica e mecanismos próprios, interconectados ao sistema global. Mas o ser humano jamais pode ser apenas um figurante em sua análise. O homem é parte integrante da natureza, de sua evolução e transformação e, portanto, faz parte do geossistema.

A ação antrópica faz parte do geossistema, embora ela possa afetar seu equilíbrio ou até mesmo sua dinâmica. Assim como o fazem as modificações naturais. A energia “consumida” e ou “transformada” com a ação antrópica poderá ser liberada do meio em forma de calor, no clima, na erosão dos solos, ventos ou mesmo nas geomorfogêneses ou podogêneses. A troca permanente de energia e matéria adquire proporções e ritmo muito mais intenso que aquele que normalmente a natureza imprime. Cada uma dessas formas de energia liberada ao meio desencadeará ações e reações, e a unidade geossistêmica procurará restabelecer o equilíbrio.

Neste ponto, é oportuno empregar os conceitos de Unidades Ecodinâmicas preconizadas por Tricart (1977), sobre o prisma da Teoria de Sistemas que parte do pressuposto de que, na natureza, as trocas de energia e matéria se processam através de relações de equilíbrio dinâmico. A intervenção humana tem alterado constantemente esse equilíbrio. Diante disto, Tricart (1977) definiu que os ambientes, quando estão em equilíbrio dinâmico, são estáveis; quando em desequilíbrios, são instáveis.

Para que esses conceitos pudessem ser utilizados, ROSS (1990) ampliou-os, estabelecendo as Unidades Ecodinâmicas Instáveis ou de Instabilidades Emergentes em vários graus, desde Instabilidade Muito Fraca e Muito Forte. Ampliou-o para as Unidades Ecodinâmicas Estáveis; que, apesar de estarem em equilíbrio dinâmico, apresentam instabilidade potencial em diferentes graus, tais como: as Instabilidades Emergenciais, ou seja, de Muito fraca a Muito forte.

Claro que para o procedimento operacional, para a análise empírica da fragilidade dos ambientes naturais, são necessários estudos básicos de todos os elementos e suas variáveis no espaço e no tempo para se chegar a um diagnóstico das diferentes categorias hierárquicas da fragilidade dos ambientes naturais.

Quanto à sua área (geossistema), ela deverá variar de acordo com o objetivo a alcançar. Nunca poderá ser conceitualmente predeterminada. Cabe ao pesquisador encontrar seus limites sempre lembrando que o espaço deve ser considerado como uma totalidade. A prática, porém, exige que ele seja dividido em partes para sua melhor análise. Essas partes só terão sentido quando consideradas suas inter-relações. Por um lado, é importante não esquecer que, em suas delimitação, deverão ser encontrados aspectos homogêneos. Quanto maior a área menor a chance de encontrá-los. Por outro lado, geossisternas muito pequenos correm o risco de ter um caráter muito significativamente verticalizado, mais afeito ao estudo biológico, restringindo a inter-relação de seus componentes.

Bertrand (1971), ao estudar a paisagem, classificou-a em dois níveis: as unidades superiores (zona domínio, região natural) e as unidades inferiores (geossistema, geofáces e geótopo). Veja as considerações de Bertrand para a caracterização dos geossistemas:

Geossistema corresponde a dados ecológicos relativamente estáveis. Ele resulta da combinação de fatores geomorfológicos (natureza das rochas e dos mantos superficiais, valor do declive, dinâmica das vertentes...), climáticos (precipitações, temperatura...) e hidrológicos (lençóis freáticos epidérmicos e nascentes, pH das águas, tempo de ressecamento dos solos...). E o potencial ecológico. Ele estuda por si mesmo e não sob aspecto limitado de um simples lugar (...). Pode-se admitir que existe, na escala considerada, uma sorte de “Contínuo” ecológico no interior dum mesmo geossistema, enquanto a passagem de um geossistema a outro é marcada por uma descontinuidade de ordem ecológica.

Para ele, o geossistema está em estado de climax quando há um equilíbrio entre o potencial

ecológico e a exploração biológica. Como o potencial ecológico e a exploração biológica são dados instáveis, que variam no tempo e no espaço, são comuns geossistemas em desequilíbrio bioclimáticos.

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Bertrand (1971) classificou os geossistemas pautado na teoria de bioresistasia de H. Erhart apud Bertrand (1971). Agrupando em dois conjuntos dinâmicos: os geossistemas em bioestásia e os em resistásia — nos geossistemas em bioestasia, a intervenção antrópica pode provocar uma dinâmica regressiva sem nunca comprometer o equilíbrio. Já os geossistemas em resistásia, a mobilidade dos componentes leva a uma crise geomorfológica suficiente e capaz de modificar o modelado do relevo.

Na abordagem de Bertrand (1971), é evidente a sua preocupação em analisar as alterações na paisagem. Sem, contudo, se preocupar com o desequilíbrio e suas conseqüências ambientais. Ao analisar os exemplos citados pelo autor, constata-se, pelos componentes naturais citados, que foram estudos efetuados em território europeu, onde o clima predominante é o temperado, cujas características são muito diferentes daquelas apresentadas pelos climas tropicais.

Novos conceitos foram inseridos à Geografia Física principalmente se analisar a paisagem como um geossistema, devido à massa organizada, à presença de energia livre e à existência de atividades antrópicas. As preocupações com o meio ambiente se ampliam a cada dia. Talvez, com a intensificação das ações antrópicas, os desequilíbrios têm nos dado respostas indesejáveis, tais como as mudanças climáticas (...).

No campo da análise ambiental, o problema que desperta a atenção dos estudiosos é o fato de que os componentes dos geossistemas serem governados por leis naturais. Seus componentes estão inter-relacionados pelo fluxo de massa e ou energia. A paisagem tem sido ocupada e transformada pelo homem. A sociedade humana tornou-se o principal agente nos processos naturais. Ela cria geossistemas sócio-econômicos, com a finalidade da utilização racional da paisagem e de seus recursos naturais. Desse modo, o homem tenta controlar e ajustar os geossistemas e, desta forma, manter as bases naturais e energéticas a um nível que permita a satisfação e a segurança das necessidades da sociedade humana.

O homem pode até controlar a entrada e saída de massa de um geossisterna. A energia que entra no sistema, se não “for utilizada”, potencialmente se agregará a outros componentes do geossisterna ou ainda poderá ser liberada ao “componente global”, ou seja, é dissipada pelo balanço global.

De fato, o sistema tecnológico tem necessidade de energia extraída. A construção de uma estrada, os meios de transportes, uma cidade, uma indústria, (...) necessitam de energia extraída e “consumida/transformada” para que sejam construídas ou movidas. Exaurindo-se os recursos como o petróleo, o metano e o carvão, o sistema tecnológico atual deverá converter-se e modificar-se, sob pena de muitos dos atuais processos produtivos desaparecerem.

Para esta abordagem, as idéias reunidas por Christofoletti (1990) contribuíram para a discussão. Salienta o autor que, ao se abordar os sistemas em Geografia Física, os geógrafos devem focalizar os geossistemas, sem olvidar os controles exercidos pelas atividades antrópicas, que podem contabilizar como inputs dc energia e matéria inferidas nas características, na dinâmica e transformação dos sistemas.

O objetivo não é chegar a um modelo de geossistema onde haja um equilíbrio, embora ao se proceder a um estudo de impactos ambientais o pesquisador deverá considerar estar ciente do entrosamento aninhado entre os vários níveis da concepção hierárquica da organização espacial e avaliar adequadamente, em cada escala, a significância da ação exercida pelos fatores físicos e sócio-econômicos. Não se devem considerar os componentes do quadro natural por si mesmo, mas investigar as unidades resultantes da interação e as conexões existentes nesse conjunto. Essa concepção evidencia que o conjunto resultante não é apenas a composição da somatória das suas partes, mas características que só o todo possui.

Para Christofoletti (1990), toda atividade antrópica exercida na superfície terrestre age sobre a dinâmica e características de um determinado geossistema e, por fluxos de energia, sobre os aspectos de cada elemento particular. Nos estudos dos geossistemas, deve-se integrar os inputs energéticos dos processos pluviométricos e dos processos geodinâmicos. Para exemplificar, citamos as mudanças e as transformações na dinâmica e na expressividade espacial físicogeográficas.

Em tempos atuais, contamos com uma rede mundial de microcomputadores, com o imageamento contínuo da superfície da Terra e com os mais diversos sistemas de monitoramento de dados. Com todo esse arsenal tecnológico, as possibilidades de aplicabilidade nos estudos das possíveis alterações nos componentes dos sistemas são satisfatórias. As imagens de satélites nos fornecem dados da superfície seqüenciais possibilitando a análise de um contínuo evolutivo.

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Para uma compreensão a respeito de Geossistema e seus componentes, é necessário voltar-se ao objetivo, pois ele direcionará a resposta. Seus elementos devem ser considerados de acordo com o seu valor num dado momento histórico, o clima, a hidrografia, o solo, a vegetação e, sobretudo, o componente antrópico. Todos devem ser considerados na análise.

Os componentes necessariamente considerados deixam de ter características próprias. O que fundamenta a análise é o caráter da inter-relação, causas e evolução dos componentes e dos fluxos de energia que propulsionam os geossistemas. A energia liberada ou acrescida é uma resposta a qualquer alteração que se processa extra ou intra geossitêmica.

As ações antrópicas modernas têm dinamizado os geossistema a tal ponto que as inter-relações entre os componentes têm gerado fluxos de energia não assimilados pelos componentes; gerando, dessa forma, desequilíbrios. Podem ser considerados também, que a energia excedente está sendo disponihilizada ao meio ambiente global, e o aquecimento geral da atmosfera pode ser uma das conseqüências.

5. As alterações nos geossistemas e o clima.

Como o clima é o componente dos geossistemas que mais transcendem os seus limites, tem sido o objeto de maior preocupação de inúmeras instituições ligadas ao meio ambiente. Os Propósitos da Convenção Sobre Mudança do Clima (C&T Brasil 2003), exemplificam esta preocupaçao:

1. “Efeitos negativos da mudança do clima” significam as mudanças no meio ambiente físico ou biota resultantes da mudança do clima que tenham efeitos deletérios significativos sobre a composição, resistência ou produtividade de ecossistemas naturais e administrados, sobre o funcionamento de sistemas socioeconômicos ou sobre a saúde e o bem-estar humano. 2. “Mudança do clima” significa uma mudança de clima que possa ser direta ou indiretamente atribuída à atividade humana que altere a composição da atmosfera mundial e que se some áquela provocada pela variabilidade climática natural observada ao longo de períodos comparáveis. 3. “Sistema climático” significa a totalidade da atmosfera, hidrosfera, biosfera e geosfera e suas interações. 4. “Emissões” significam a liberação de gases de efeito estufa e/ou seus precursores na atmosfera numa área específica e num período determinado. 5. “Gases de efeito estufa” significam os constituintes gasosos da atmosfera, naturais e antrópicas, que absorvem e reemitem radiação infravermclha. 6. “Organização regional de integração econômica” significa uma organização constituída de Estados soberanos de uma determinada região que tem competência em relação a assuntos regidos por esta Convenção ou seus protocolos, e que foi devidamente autorizada, em conformidade com seus procedimentos internos, a assinar, ratificar, aceitar, aprovar os mesmos ou a eles aderir. 7. “Reservatórios” significam um componente ou componentes do sistema climático no qual fica armazenado um gás de efeito estufa ou um precursor de um gás de efeito estufa. 8. “Sumidouro” significa qualquer processo, atividade ou mecanismo que remova um gás de efeito estufa, um aerossol ou um precursor de um gás de efeito estufa da atmosfera. 9. “Fonte” significa qualquer processo ou atividade que libere um gás de efeito estufa, um aerossol ou um precursor de gás de efeito estufa na atmosfera. (C&T Brasil 2003)

Os objetivos estabelecidos pela Convenção sobre Mudança do Clima também reforçam a idéia de que o clima é um componente do sistema terrestre a responder às agressões antropogênicas e natural, e que as eventuais modificações nos demais componentes são conseqüências.

Por essa razão, justifica-se a preocupação em abordar as idéias de Sotchava (1978), que considera as conexões e não os componentes em si e por si. Ou seja, devem ser consideradas as inter-relações assim como também as interações que, quando alteradas, poderão desencadear fluxos de energia que, em condições dinâmicas habituais, eram potencialmente engendradas pelos próprios geossistemas.

A energia liberada e acumulada no sistema global comanda a dinâmica do sistema planetário, ou seja, as trocas de energia (calor) entre as zonas da Terra. As correntes oceânicas, os ventos alísios e contra-alísios, os ciclones extratropicais, as correntes convectivas. são exemplos, entre outros, de como a energia disponibilizada no meio é consumida”.

A ação antrópica está acrescentando ou redirecionando a energia nos geossistemas que, por sua vez, está liberando ao meio essa energia. Assim, as alterações climáticas globais, parecem ser as

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conseqüências mais significativas neste momento histórico. O objetivo principal da Convenção Sobre Mudanças do Clima, além de reforçar a idéia de que o clima é o componente do sistema que, neste momento, mais preocupa as autoridades governamentais (C&T Brasil 2003).

O objetivo final desta Convenção (Convenção Sobre Mudanças do Clima) e de quaisquer instrumentos jurídicos com ela relacionados que adotem a Conferência das Partes é o de alcançar, em conformidade com as disposições pertinentes desta Convenção, a estabilização das concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera num nível que impeça uma interferência antrópica perigosa no sistema climático. Esse nível deverá ser alcançado num prazo suficiente que permita aos ecossistemas adaptarem-se naturalmente à mudança do clima, que assegure que a produção de alimentos não seja ameaçada e que permita ao desenvolvimento econômico prosseguir de maneira sustentável. (C&T Brasil 2003).

Há um grande questionamento a respeito de ser possível a redução da emissão de gases de efeito estufa na atmosfera. E duvidoso que seja possível a produção de bens e alimentos em quantidade e qualidade suficiente para garantir o mínimo de qualidade de vida para uma população crescente sem que os geossistemas sejam modificados. E para finalizar, em uma utilização sustentável pode ser implementada em um geossistema em resistásia.

O homem precisa, necessariamente, conhecer profundamente as interações que se processam no interior dos geossistemas para, a partir de então, poder atuar de forma sustentável e sem agravar a degradação do meio. 6. Abordagem geográfica sobre as alterações no meio físico.

Diante das idéias expostas, um conceito que deverá ganhar corpo neste princípio deste século é o da entropia, aplicado aos sistemas terrestre. Sem pretensões de aprofundar na questão, parece oportuno, principalmente diante das intensas agressões que o meio ambiente vem sofrendo.

Ao se analisarem as degradações ambientais, como resultado do estado de energia disponível no meio, ou seja, o estado de desordem em que a energia se encontra que é medida por uma quantidade conhecida por entropia. Para a Física, quanto maior é o estado de desorganização, tanto maior é a entropia, quanto menos intensa for a desorganização, menor é a entropia. É essa a preocupação: seis bilhões de seres humanos “consumindo” energia e aumentando a energia, essa transformada a partir da agropecuária, da queda d’água, da combustão dos combustíveis fósseis e da energia retirada do átomo.

Aparentemente a dissipação da energia tende a provocar um aumento da entropia. O componente que responde quase que simultaneamente é o clima, que, por sua vez, causará “desordem” nos demais componentes. Um exemplo disso é a possibilidade de mudanças climáticas derivadas do aumento de CO2

na atmosfera. A variabilidade climática, por se tratar de parâmetro possível de ser mensurado, é um dado muito interessante e possível de ser investigado, inclusive à grandeza de um geossistema.

Se numa dada região for constatado que a amplitude térmica anual teve alterações, os dias com registros de precipitações diminuíram, as chuvas se tornaram mais intensas em cada episódio, a velocidade do vento aumentou em determinados meses, admite-se a ocorrência de tornado pela primeira vez no sul do Brasil; a temperatura no verão está mais alta, a umidade relativa do ar também se mostra alterada, é possível que tais modificações desencadeiam fluxos de energia que afetam outros elementos do geossistema, e aumenta o estado de desorganização, ou seja, aumentam a entropia do sistema. Como causa ou como conseqüência, as alterações no clima são cada vez mais evidentes e as alterações manifestadas ou desencadeadas são motivos de preocupação de pesquisadores e autoridades.

7. Abordagem geográfica sobre as alterações no meio físico, a busca de um novo paradigma.

Com todo o desenvolvimento tecnológico disponibilizado, a geografia não conseguiu dar conta satisfatoriamente. Embora a climatologia brasileira se desenvolveu bastante a partir da rica e vasta produção de Monteiro, que introduziu, no Brasil, a Climatologia Moderna.

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BORSATO, V. A.; SOUZA FILHO, E. E. Ação antrópica, alterações nos geossistemas, variabilidade climática: contribuição ao problema.

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Para Sant’Anna Neto (2002), por uma Geografia do Clima, considera-se que o paradigma perseguido pela climatologia brasileira, a partir de Monteiro através da análise rítmica, em 40 anos no Brasil, produziu um grande volume de trabalhos, agora, aliado ao desenvolvimento computacional entre outras ferramentas tecnológicas, possibilitou, pela primeira vez na história, de se obter uma visão da Terra em escala planetária, como um planeta orgânico. Começou-se a perceber que o clima, mais do que um fato, é uma teoria, que, longe de funcionar de acordo com uma causalidade linear herdada da concepção mecanicista de um universo regulado como um relógio, “... se expressa num quadro conjuntivo ou sincrônico à escala planetária, num raciocínio ao qual ainda não estamos acostumados”. Sant’Anna Neto (2002) considera que:

As concepções aceitas até hoje não são mais suficientemente esclarecedoras para a explicação de um universo “caótico” e “desordenado”. As novas revelações a respeito das teorias do caos e da catástrofe podem, ao que tudo indica, ser capazes de trazer à tona antigos problemas de ordem conceitual que foram incapazes de explicar, em toda a sua magnitude, o complexo funcionamento dos fenômenos atmosféricos e permitir, sob novas perspectivas, a compreensão da dinâmica climática completamente inimaginável sob as amarras metodológicas de uma ciência que ainda procede de modo simplista e que anda tão necessitada de reformulações teóricas condizentes com estes novos espíritos científicos. Neste final de século, acrescenta o autor, nenhuma postura investigadora parece ser mais acertada do que a busca de uma nova razão para um novo conhecimento. Todo o esforço realizado nas últimas décadas, nos vários campos da ciência, tem provocado inevitáveis reformulações teóricas, que têm convergido em uma tendência universal de busca de uma concepção transdisciplinar, que exige uma postura mais radical para a compreensão do que Monteiro (1991) chama de “imensa desordem das verdades estabelecidas”.

Sant’Anna Neto (2002), ao considerar uma Geografia do Clima, propôs um novo paradigma,

Geografia do Clima, também preocupado com as respostas que poderão se desencadear com o avanço na conquista e na ocupação do território. Veja as considerações do autor:

Neste contexto, à medida que o modo de produção capitalista avança na conquista e na ocupação do território, primordialmente como um substrato para a produção agrícola e criação de rebanhos e, posteriormente, erguendo cidades, expandindo o comércio, extraindo recursos naturais e instalando indústrias, ou seja, ao se apropriar da superfície terrestre, este se constitui no principal agente produtor do ambiente. Como este ambiente é “vivo” e regulado por processos e dinâmicas próprias, responde às alterações impostas pelo sistema, resultando em níveis de produção dos ambientes, naturais e sociais, dos mais variados.(...), a análise geográfica do clima que se tem praticado se sustenta a partir do tripé ritmo

climático — ação antrópica – impacto ambiental. A análise episódica comparece como fundamento básico no desenvolvimento da Climatologia Geográfica que tenta dar conta da explicação, da gênese e dos processos de natureza atmosférica intervenientes no espaço antropizado. Entretanto, esta análise não tem sido suficientemente esclarecedora dos mecanismos de feedback, nem das projeções futuras que deveriam ser incorporadas nas propostas de gestão e monitoramento dos fenômenos atmosféricos.

As questões ambientais têm despertado preocupações em todos os seguimentos científicos. As

diversas áreas de pesquisas tem direcionado atenções aos problemas relativos ao meio ambiente. Na Geografia, as preocupações são ainda maiores, principalmente se considerá-la como uma ciência que procura dar explicações à organização do espaço e, para isso, considera o homem como o agente principal. Se o nível de desenvolvimento econômico e tecnológico de uma sociedade transforma o ambiente, não há dúvida de que também o clima é influenciado. Pois o clima pode ser considerado um regulador da produção agrícola além de um importante componente da qualidade de vida das populações.

Parece razoável, neste momento, em que o desenvolvimento tecnológico nos possibilita, através da informática e do sensoriamento remoto, considerando que as informações veiculam em escala planetária e podem ser obtidas e analisadas em tempo real, procurar investigar dentro da análise rítmica um novo paradigma: o “estado de entropia dos geossistemas terrestres”. Para tanto, é necessária a utilização das técnicas geoprocessuais.

As ciências exatas, tais como a Física, a Estatística e a Meteorologia, podem, já que apresentam um arsenal metodológico capaz de realizar operações que envolvem elementos complexos, auxiliar e configurar uma metodologia capaz de “estimar” (mensurar) o estado de entropia, ou seja, em função da intensidade das alterações causadas pelo homem, categorizar o estado de entropia. Por outro lado, a

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resposta pode estar no geoprocessamento, ferramenta cuja aplicação se amplia a cada dia. Não é exclusiva de uma determinada área, está disponível a todos os pesquisadores e planejadores do meio físico.

O número de pesquisadores que utilizam o Sistema de Informação Geográfica (SIG) é cada vez maior, e o campo de atuação se amplia. Novas tecnologias são disponibilizadas. A parcela da população a ter acesso às ferramentas computacionais também se amplia. Ao que parece imutável é a consciência de uma parcela da população; de um lado os grandes empresários que na busca do lucro selvagem e irracional e do outro os consumidores e não consumidores desprovidos de conhecimentos não se conscientizam sobre as questões das alterações que se processam no meio natural em função dos desequilíbrios causados pela ação antrópica.

8. Considerações finais.

A transformação da fonte de energia fóssil em unidades caloríficas mais a redução da biomassa do planeta, além da transposição da biomassa, ou seja, gêneros agrícolas produzidos na zona tropical, são transportados e consumidos na temperada, considerando a biomassa como energia potencial e que se encontrava em equilíbrio, principalmente anterior ao desenvolvimento tecnológico recente, pós Revolução Industrial, são parâmetros a ser considerados.

Com a globalização econômica e o desenvolvimento tecnológico, a climatologia tem buscado explicações para uma análise geográfica profunda. Embora não se tenha evoluído o suficiente para predizer as respostas que poderão ser desencadeadas com as alterações que se procedem no meio natural a partir da energia potencializada nos geossistemas. Parece prudente que se busquem novas metodologias e fórmulas que sejam capazes de explicar como as ações praticadas se refletem no estados da entropia do sistema terrestre. A partir do momento que a entropia for “mensurada”, os caminhos ficarão acessíveis. Enquanto não se tem essa metodologia, os esforços terão que ser canalizado para a conscientização da população, seja através da educação formal ou informal. E a partir do momento em que a grande maioria da população estiver consciente do problema, medidas mitigadoras minimizarão os impactos que advirão de mudanças climáticas, ou quem sabe, minimizarão os impactos no meio natural de tal forma que a entropia seja minimizada e as características climáticas permanecerão estáveis. 9. Referências Bibliográficas. BERTRAND, G. Paisagem e Geografia Física Global: esboço metodológico. In: Caderno de Ciências da Terra. São Paulo: IGEOG-USP,n. 13, 1971. BRASIL. Convenção sobre mudança do clima — O Brasil e a Convenção - Quadro das Nações Unidas - Editado e traduzido pelo Ministério da Ciência e Tecnologia com o apoio do Ministério das Relações Exteriores da República Federativa do Brasil; C& T Brasil 2003, disponível on line www.ana.gov.br. Consultado em abril de 2003. CHRISTOFOLETTI, A. A aplicação da abordagem em sistema na Geografia Física. Revista Brasileira de Geografia. IBGE, v, 52, n 2, p. 21-35, 1990. LOMBARDO, M. A. Mudanças Climáticas: Considerações sobre Globalização e Meio Ambiente. In: Boletim Climatológico. (Faculdade de Ciências e Tecnologia, UNESP) Presidente Prudente, SP. Ano 01, N0 02. Campus de Presidente Prudente. 1996. MENDONÇA. F. O clima urbano de cidade de porte médio e pequeno: aspecto teórico metodológico e estudo de caso, In. SANT’ANNA NETO, J. L., e ZAVATINI, J. A. (Org.). Variabilidade e Mudanças Climáticas. Maringá: Eduem, 2000. MONTEIRO, C. A. de F., Cadernos Geográficos. Universidade federal de Santa Catarina. Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Departamento de Geociências, n. 1 (maio 1999), Florianópolis; imprensa universitária. 1999. ROSS, J, L, S. O registro cartográfico dos fatos geomorfológicos e a questão da taxonomia do relevo. In: Revista do Departamento de Geografia. São Paulo, FELCH-USP, n. 8, 1994.

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SANTANNA NETO, J. L., e ZAVATINI, J. A. (Org.). Variabilidade e Mudanças Climáticas. Implicações ambientais e socioeconômicas. In: SANTANNA NETO, J. L (org). As chuvas no Estado de São Paulo: a variabilidade pluvial nos últimos 100 anos. Maringá: Eduem, 2000. ________. Por uma Geografia do Clima: Antecedentes históricos, paradigmas contemporâneos e uma nova razão para um novo conhecimento. Laboratório de Climatologia. Departamento de Geografia da FCT/IINESP. Grupo de Pesquisa “Climatologia Geográfica” (CNPq), 2002. SOTCHAVA, V. B. Por uma Teoria de Classificação de Geossistemas de Vida Terrestre. Universidade de São Paulo, Instituto de Geografia “14 Biogeografia”. 1978. TRICART, J. Ecodinâmica. Rio de Janeiro: FIBGE/SUPREN, 1977. VAREJÃO-SILVA, M. A. Meteorologia e Climatologia - Brasília: INMET, Gráfica e Editora Stilo, 2000.

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NORMAS EDITORIAIS

Revista Formação é uma publicação semestral do Programa de Pós-graduação em Geografia da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista, desde 2002. Publica textos, prioritária, mas não exclusivamente, de autoria de alunos de Pós-Graduação em Geografia da FCT/UNESP. A autoria pode ser individual, em parceria com: outros pós-graduandos, professor responsável pela disciplina que suscitou o artigo ou em parceria com o orientador. Em se tratando de artigo derivado de pesquisa em andamento, desde que não comprometa o caráter de ineditismo da dissertação ou tese a ser defendida. 1 – Todos os textos enviados a esta revista devem ser inéditos e redigidos em português, inglês, francês ou espanhol, desde que corresponda ao idioma original do(s) autor(es). As formas de textos são: ARTIGOS - Relacionados à temática da revista e apresentados em forma de revisão de literatura, ensaios ou resultados de pesquisa. ENTREVISTAS – Realizadas com professores e/ou pesquisadores da Geografia e/ou áreas afins, que abordem temática de relevância para os objetivos da Revista. RESENHAS - Resenhas críticas de livros, artigos, teses e dissertações. PROVAS – Melhores provas realizadas pelos candidatos ao exame de seleção do Programa de Pós-graduação em Geografia da FCT/UNESP, no semestre de lançamento da Revista. RESUMO DE DISSERTAÇÕES E TESES – Resumo de dissertações e teses defendidas no Programa de Pós-Graduação em Geografia da FCT/UNESP. 2 - Os textos devem ser apresentados com extensão mínima de 20 e máxima de 40 páginas, enquanto as resenhas deverão conter, no máximo, 10 páginas. A formatação deve seguir espaço simples, em folhas de papel branco, formato A-5 (148 x 210 mm), impresso em uma só face, sem rasuras e/ou emendas, e enviados em três vias impressas, sendo uma identificada e duas sem qualquer identificação. Devem ser acompanhadas de versão em disquete (de 3,5") ou CD, compostos em Word for Windows, utilizando-se a fonte Times New Roman, tamanho 12, margens esquerda e superior 2,0, direita e inferior 1,0. 3 - O cabeçalho deve conter o título (e subtítulo, se houver), em fonte Times New Roman tamanho 12 e negrito, maiúscula e centralizada. Deve haver um espaço de uma linha entre o título e o(s) nome(s) do(s) autor(es), que devem estar em Times New Roman tamanho 12 e negrito. O(s) sobrenome(s) do(s) autor(es) do texto deverá ser grafado em maiúsculo. No caso dos artigos o texto deverá indicar a origem do texto (se resultante de disciplinas, resultados de pesquisa, etc.) na primeira página, utilizando-se de nota de rodapé indicada por asterisco. As informações devem estar em fonte Times New Roman tamanho 9. O mesmo procedimento deve ser adotado para a identificação do(s) autor (es), neste caso, informando o endereço eletrônico e filiação institucional. No caso de mais de um autor, deve-se pular uma linha entre eles. 4 - O texto deve ser acompanhado de resumos em português e espanhol, nesta ordem, com no mínimo 10 e no máximo 15 linhas cada um, em espaço simples. Deve haver uma relação de 3 palavras-chave que identifiquem o conteúdo do texto. Os títulos Resumo e Resumén devem estar em fonte Times New Roman tamanho 12 e negrito, logo no início do texto. O resumo deve ser formatado em fonte Times New Roman tamanho 12. Na linha abaixo de cada resumo devem vir as respectivas palavras-chave. As palavras Palavras-chave e Palabras-clave devem estar em fonte Times New Roman tamanho 12 e negrito, logo no início da linha. As palavras-chave devem estar em fonte Times New Roman tamanho 12 e separadas por ponto e vírgula. 5 - Duas linhas abaixo dos resumos deve começar o texto. A estrutura do texto deve ser dividida em partes numeradas, a começar pela Introdução, e com subtítulos, que devem estar em minúsculo, fonte Times New Roman 12 e negrito. Para cada novo subtítulo deve ser dado um espaço de uma linha do texto. É essencial conter introdução e conclusão ou considerações finais. 6 - As notas de rodapé devem ser evitadas e não deverão ser usadas para referências bibliográficas. Esse recurso pode ser utilizado quando extremamente necessário e, nesse caso, cada nota deve ter em torno de 3 linhas e o comando “inserir notas” sempre evitado. Palavras em destaque deverão vir em negrito e não sublinhadas. Não se deve paginar os textos.

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