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CLASSICAL
AND
BYZANTINE MONOGRAPHS
Edited by
G. GIANGRANDE and H. WHITE
VOL. LXXXIII
. NARRO & J.J. POMER (Edd.)
BESTIARIS I METAMORFOSIS
A LES LITERATURES CLSSIQUES
I LA SEUA TRADICI
ADOLF M. HAKKERT PUBLISHER AMSTERDAM
2015
. NARRO & J.J. POMER (Edd.)
BESTIARIS I METAMORFOSIS
A LES LITERATURES CLSSIQUES
I LA SEUA TRADICI
ADOLF M. HAKKERT - PUBLISHER -AMSTERDAM
2015
ISSN 1381-2955
ISBN 978-90-256-1307-5
3
Heris animalizados e animais heroificados: Homero entre a tradio
pica e o ciclo das antigas epopeias animalescas
Rui Carlos Fonseca
Centro de Estudos Clssicos - Universidade de Lisboa
RESUMO: Na Grcia antiga, era comum os alunos estudarem a grandeza da epopeia
homrica de forma ldica, a partir de breves histrias de animais, figuras que conheciam
da fbula. O primeiro contacto com os poemas de Homero fazia-se, por isso, por acesso
a textos de teor pedaggico que apresentavam animais a comportarem-se como os
valorosos heris da tradio pica. Neste ensaio, pretendo explorar o universo das
chamadas fbulas picas ou epopeias animalescas, estreitando os influxos que esse gnero
recebe do seu modelo. O eixo estrutural de base deste estudo consiste na premissa de que
enquanto na epopeia antiga, na homrica em particular, os heris agem muitas vezes como
bestas ferozes, como mostram vrios smiles, nas narrativas picas animalescas, por outro
lado, os animais so dotados de estatuto herico.
PALAVRAS-CHAVE: Poemas picos, smiles homricos, epopeias animalescas,
estatuto herico, comportamento selvagem.
ABSTRACT: In ancient Greece, it was very common students learn the greatness of
Homeric epic in a playful way, from short stories of animals, characters they already knew
from fable. Thus, the first contact with the poems of Homer was made by reading/
listening texts of pedagogical content that showed animals behaving as mighty heroes of
epic tradition. In this essay, I intent to exploit the universe of the so-called epic fables or
beast epic, tightening the influxes that this mixed gender get from its model. The
structural axis of this study is based on the premise that while in ancient epic, the Homeric
one, heroes often behave like beasts, as many similes show, in beast epic, on the other
hand, animals are provided with heroic status.
KEYWORDS: Epic poems, Homeric similes, Beast epic, heroic status, savage behavior
Introduo
Na histria da literatura grega antiga, a poesia homrica foi, sem dvida, fonte de
possibilidades artsticas inesgotveis, estando, por isso, na gnese de muitos dos gneros
poticos que surgiram na Antiguidade. Tratando-se de um monumento cultural, inscrito
na memria colectiva dos Gregos, Homero moldou a identidade da cultura helnica e
como tal converteu-se na base do sistema educativo. Tornou-se desde cedo objecto de
estudo nas escolas, matria indispensvel na formao das mentes mais jovens.
4
A epopeia homrica, contudo, transforma-se por adaptao ao pblico a que se dirige
e situao imediata que a envolve, assumindo, por isso, diferentes formas e funes: da
recreao pardica inteno mordaz, da poesia imbica arcaica1 aos manuais
gastronmicos2, do teatro poltico3 stira filosfica4, dos exerccios pedaggicos s
histrias de animais.
O pblico infantil, com exigncias de relatos menos graves e mais fantasiosos,
adequados s suas idades, aprendia os valores hericos de que se revestia a tradio pica,
sem escutar contudo os poemas homricos em toda a sua extenso e imponncia. Homero
chegava s crianas sob a forma de literatura infantil, em histrias breves de animais,
figuras que conheciam da fbula e dos objectos com que costumavam brincar, como
defende Bertoln Cebrin (2008: 99). Os alunos iniciavam, assim, o estudo das narrativas
picas, acedendo a composies mistas, formadas pelo cruzamento do gnero da epopeia
com o da fbula a fbula pica ou a epopeia animalesca.
Os cantos homricos
Os cantos homricos descrevem com frequncia confrontos zoolgicos, mediante o
recurso ao smile. Ocupando, no contexto das duas epopeias, uma poro de cerca de 800
versos, a esmagadora maioria dos quais pertencentes Ilada5, o smile interrompe por
breves instantes o assunto herico para tratar de situaes mais familiares ao
ouvinte/leitor, baseando-se por isso em elementos da natureza e do quotidiano. Por norma
associado a episdios blicos e de grande violncia, este ornamento potico, de uso
tradicional na pica grega antiga, permite diversificar o tom pesado da narrativa e
intensificar o efeito emotivo suscitado num ponto fulcral da aco6. Desse modo, a
matria no herica mais comum nos smiles homricos abrange fenmenos naturais
(como a fora dos ventos e das guas do mar), actividades domsticas e artesanais (como
a tecelagem, a caa, a pastorcia, a carpintaria e a construo naval) e o mundo animal.
1 Cf. Margites (sc. VI-V a.C.) e fr.128W de Hipnax (sc. VI a.C.). 2 Cf. de Arqustrato de Gela e de Mtron de Ptane (sc. IV a.C.). 3 Cf. Fr.63 de Hermipo e comdias de Aristfanes (sc. V a.C.). 4 Cf. de Tmon de Fliunte (sc. III a.C.). 5 Bassett (1921: 132) contabiliza cerca de 200 smiles na Ilada e 40 na Odisseia. 6 Sobre as funes e as categorias do smile homrico, vide Bassett (1921: 132-147), Coffey (1957: 113-
132), Webster (1964: 223-239), Podlecki (1971: 81-90), Friedrich (1981: 120-137), Rood (2008: 19-43).
5
Esta ltima categoria contm uma gama alargada de contactos, quase sempre hostis,
de criaturas do cu, da terra e da gua. Os actos de selvajaria envolvem encontros entre
animais de uma mesma espcie e encontros entre animais de espcies diferentes, dentro
e fora dos seus habitats de origem.
Da minha leitura da pica homrica, contabilizo um total de 55 smiles que apresentam
contactos entre animais, contactos que implicam uma relao de oposio, quer se trate
de uma cena de perseguio, quer se trate de uma cena de luta efectiva (ver Anexo). Estes
55 smiles esto distribudos de forma desproporcional em dois grandes grupos: os smiles
homricos que descrevem confrontos entre animais da mesma espcie (dois smiles
apenas) e os smiles homricos que descrevem confrontos entre animais de espcies
diferentes (os restantes 53). Desta organizao em duas partes desiguais, facilmente se
verifica uma preferncia por realidades antagnicas, ou seja, Homero coloca frente a
frente, na esmagadora maioria das vezes, animais de naturezas e caractersticas diversas.
O segundo grupo subdivide-se, por sua vez, em outras duas categorias, de dimenses
igualmente assimtricas: os smiles homricos que descrevem confrontos entre animais
dentro do seu habitat natural so 49 e os que descrevem confrontos entre animais fora do
seu habitat natural so apenas 4. Este ltimo conjunto formado por smiles que
apresentam seres do cu (grous, vespas, guia) a atacar seres terrestres (homens, lebre e
cordeiro). Apesar de ter uma menor representatividade no universo homrico, esta
categoria com animais, que transpem as fronteiras dos seus territrios de origem, que
acaba por ser privilegiada nas epopeias animalescas. Nascido do cruzamento entre a pica
e a fbula, o novo gnero baseia-se sobretudo no encontro inesperado entre animais de
origens diversas, de modo a fazer-se realar o choque entre classes zoolgicas.
As disputas entre animais no seu prprio elemento natural ocorrem com maior
frequncia na poesia homrica: 1 smile descreve um encontro no mar (o golfinho devora
outros peixes); 40 smiles descrevem as lutas entre seres terrestres (o leo o animal
blico por excelncia, que surge na grande maioria dos casos, em 25 dos 40, quer como
o animal que ataca e persegue, quer como o animal que atacado e perseguido); por fim,
8 smiles descrevem ataques de aves de rapina contra uma ave menor ou mesmo, com
mais frequncia, contra bandos de aves gregrias (o falco, a guia e o abutre surgem
como aves atacantes; as pombas, os gansos, os grous e os estorninhos aparecem como
aves perseguidas).
6
Epopeias animalescas
Os heris das epopeias homricas comportam-se frequentemente como animais
selvagens, em confronto com outros da mesma espcie ou de espcies diferentes. O poeta
pretendia com tais comparaes engrandecer o carcter herico de um guerreiro, numa
determinada situao ou episdio de maior intensidade emotiva, ao mesmo tempo que
variava o tom da narrativa, evitando que o relato soasse montono. As personagens das
epopeias animalescas, as feras, imitavam, por correlao temtica, comportamentos
humanos hericos: "As much as men could behave like animals in the Homeric epic, in
the beast epics there is an inversion and animals behave like men" (Bertoln Cebrin 2008:
103).
Estas lutas de animais que imitam o agir herico constituam um mtodo didctico para
que os alunos apreendessem, num esprito divertido, normas tradicionais de conduta. Deste
tipo de composies o nico exemplar sobrevivente foi a Batracomiomaquia, atribuda
na Antiguidade a Homero, que estudos mais recentes datam, porm, do perodo
helenstico7. Apesar da exiguidade das epopeias animalescas, especialmente dirigidas,
segundo Bertoln Cebrin (2008: 95-118), a um pblico infantil em idade escolar,
algumas fontes antigas preservam, contudo, dados sobre a existncia de outros poemas
zoolgicos. Conhecem-se ttulos de outros trs textos que relatariam guerras entre animais
Aracnomaquia, Geranomaquia e Psaromaquia8. Sobreviveu tambm uma
Galeomiomaquia num fragmento textual, preservado num papiro dos sculos II-I a.C.
com cerca de 40 hexmetros, muitos dos quais truncados.
Das circunstncias que envolvem a produo das narrativas animalescas, compostas
no metro pico, e dos conflitos blicos que as caracterizam, quase nada se sabe e os dados
disponveis sobre o assunto no passam de conjecturas ou de meras hipteses de
explicao. Os trs ttulos, o fragmento e o poema sobrevivente admitem, talvez, pensar
na existncia de um ciclo de antigas epopeias animalescas, produzidas e divulgadas para
efeitos recreativos e escolares. O enredo deste conjunto de poemas surgiria de encontros
7 Herwerden (1882: 163-177); Fusillo (1988: 42); Leopardi (1998: 23-24 e 26); Torn Teixid (1999: 12;
2007: 230); Possebon (2003: 42); West (2003: 229); Gutzwiller (2007: 133); Gonzlez Delgado (2008: 34). 8 "
" (Pseudo-Herdoto, Vita
Homeri 24 [West 2003: 264 e 382]).
" : , , , ,
, , , , , ,
, , , , , , " (Suda, "").
7
fortuitos entre animais de diferentes espcies, a considerar o exemplo do rato Psicrpax
na Batracomiomaquia: ao fugir de uma doninha, o ser terrestre revela, em conversa com
uma r, temer o perigo das aves, mas por afogamento, devido ao aparecimento de uma
hidra, que o murdeo perde a vida.
A histria de cada epopeia animalesca desenvolver-se-ia a partir das relaes
estabelecidas entre personagens da fbula, resultando inevitavelmente num combate (de
ratos e rs, na Batracomiomaquia, de ratos e doninhas, na Galeomiomaquia). O evento
blico parece constituir a marca caracterstica deste tipo de poemas (o elemento -
na formao dos ttulos referidos aponta nesse sentido). As aventuras e as peripcias de
outros seres, relatadas margem do episdio central de luta, representariam aluses a
histrias celebradas noutras composies da mesma natureza, semelhana do que
acontece com as epopeias homricas9.
As cinco obras aqui em discusso no seriam, creio, produtos isolados, mas peas
inseridas num ciclo temtico, de encontros entre animalejos que actuavam como heris
numa guerra pica. Tais eplios estabeleceriam, portanto, relaes de interdependncia
alusiva. Nesse sentido, paradigmtica a caada que uma doninha faz contra o rato-
protagonista no comeo da Batracomiomaquia (verso 9): a perseguio funciona como
pretexto para a paragem junto ao lago e para o encontro com a r10. O tema adquire maior
substncia na Galeomiomaquia, desenvolvendo-se neste contexto como causa directa das
hostilidades entre os ratos e as doninhas. Na mesma linha de pensamento, a referncia ao
temor, no verso 49, que o rato sente pela ave de rapina traduziria nova insero no ciclo
temtico das epopeias animalescas, num vnculo mais prximo da tradio das
ornitomaquias11.
9 A Odisseia, por exemplo, refere-se aos sacrifcios que Ulisses ter de realizar em honra de Posdon, aps
o regresso a taca (cantos 11 e 23), episdio que viria relatado na Telegonia. Fmio canta entre os
pretendentes, no palcio de Ulisses, o desafortunado regresso dos Aqueus depois da guerra (Odisseia 1),
tema tratado nos Nostoi. Demdoco, por outro lado, conta sumariamente a histria do cavalo de madeira
(Odisseia 8), matria que viria desenvolvida na Pequena Ilada e na Ilioupersis. A Ilada tambm se serve
da tradio do ciclo troiano: termina com a vitria de Aquiles sobre Heitor, antecipando contudo, quer
atravs das palavras de Ttis, quer atravs das palavras do prprio cavalo, Xanto, a sujeio do chefe dos
Mirmdones ao mesmo destino a sua morte vem descrita na Etipida. 10 A inimizade entre o rato e a doninha ainda retomada, embora sem consequncias significativas na aco
batracomiomaquiana, nos versos 51-52 e 113-114. "In the Batrachomyomachia 127 there is an allusion to
a shield made out of a ferret skin. Although not necessarily, this could be an indication that the poems were
not created in isolation, but that they took each other into account. (Bertoln Cebrin 2008: 112) 11 Fusillo (1988: 34) prefere, contudo, pensar os textos zoolgicos gregos como escolha deliberada de um
erudito, mostrando maior resistncia a encar-los enquanto herana de uma tradio perdida.
8
Ornitomaquias
A Geranomaquia, ou a Batalha dos Grous, e a Psaromaquia, ou a Batalha dos
Estorninhos, sobreviveram como obras de contedo incgnito, delas apenas se
conhecendo os ttulos, que vm enunciados, nas fontes antigas, entre outras produes
atribudas por conveno a Homero. Da dependncia da poesia homrica poder-se-o,
talvez, extrair algumas consideraes de relevo, no para a reconstruo das narrativas
perdidas, mas ao menos para a melhor compreenso dos eixos temticos que as
norteavam.
No contexto das ornitomaquias descritas nos smiles homricos, a guia () e o
falco ( ou ) encontram-se no grupo dos principais predadores dos cus,
enquanto os grous () e os estorninhos (), por norma, tentam escapar
perseguio das aves de rapina. No episdio da aristeia de Ptroclo, o filho de Mencio
lana-se enfurecido contra os Lcios, assim como o falco veloz que afugenta gralhas e
estorninhos (Il. XVI 581-585). E nos combates travados pela posse do cadver do
Menecida, os Aqueus retrocedem apavorados perante o avano arrojado de Heitor e
Eneias, tal como os bandos de aves pequenas, estorninhos ou gralhas, batem em retirada
ao verem o ataque iminente do falco (Il. XVII 755-759). Na sucesso dos smiles que
antecedem o catlogo das naus, um deles descreve os soldados em marcha para a guerra
como as muitas raas de pssaros, gansos ou grous ou cisnes, que voam pela pradaria (Il.
II 459-466). Os mesmos grupos de aves so atacados pela guia no smile em que se exalta
a fora do ataque de Heitor contra as naus dos Aqueus (Il. XV 690-694). Por fim, o smile
de Il. III 1-7, a abrir o canto terceiro com a marcha dos Troianos, mostra os grous, numa
posio ofensiva atpica, a voarem contra os Pigmeus. Trata-se de um smile de excepo
na epopeia blica, uma vez que o nico a inverter os papis habitualmente atribudos
aos bandos de aves gregrias: os grous adoptam aqui a posio reservada s aves de rapina
(Muellner 1990: 77)12. precisamente este smile mais afastado dos padres, que
costumam reger as ornitomaquias homricas, que tem sido considerado como ponto de
12 Muellner explica o contedo atpico do smile dos grous na abertura de Ilada 3, por associao figura
no herica de Pris, em destaque nesse mesmo canto, ele que luta como um danarino no duelo contra
Menelau, acabando por ser resgatado do campo de batalha para o leito amoroso onde o espera Helena:
"Otherwise passive, sociable birds find themselves in an unaccustomed role, in an unaccustomed locale:
shrieking high above the river-plains, they descend like predators upon the Pigmies. The simile likens them
to the Trojan host, but Paris is the sole representative of the Trojan host in the narrative that follows. So the
simile is intended to reflect upon him. Paris, though dressed like a fighter, is in fact a dancer trying to fight,
a man who confounds the lists of war with the locus amoenus of seduction" (Muellner 1990: 90).
9
partida para a histria blica contada na Geranomaquia (Ludwich 1896: 9; Bliquez 1977:
11; Wlke 1978: 99; Fusillo 1988: 33-34; Leopardi 1998: 29; Bertoln Cebrin 2008:
112).
A investida dos grous sobre os povos de anes, aproveitado de um contexto blico da
Ilada para a criao de uma epopeia animalesca, autorizar a conceber os combates
zoolgicos entre membros de castas diferentes. Assim, uma narrativa sobre a batalha dos
grous no celebraria necessariamente o encontro hostil dentro do bando, mas antes o
confronto dos grous contra uma espcie diferente de aves ou, em alternativa, contra um
grupo de animais de um outro elemento natural (da terra ou da gua).
muito provvel, pois, que a tradio da pica animalesca manifestasse o gosto pelo
paradoxo, relatando num estilo grandioso um assunto menor: o choque entre feras
incompatveis por natureza, ou seja, que apresentavam caractersticas anatmicas e
comportamentais destoantes. O processo de construo da Batracomiomaquia, por
exemplo, funda-se a todos os nveis, afirma Fusillo (1988: 35-36), na contaminao entre
opostos, ao conjugar gneros literrios, a fbula e a epopeia, em aberta dissonncia.
E ser talvez exagerado denominar por feras os agentes implicados nestes confrontos,
se se tiver em conta que tais composies, inspiradas nos smiles homricos, seleccionam
os animais menos notveis e os menos possantes do amplo universo zoolgico da Ilada
e da Odisseia. Deixando de parte as bestas mais ferozes, como o leo, o animal herico
por excelncia, aquele que excede todos os outros na impetuosidade dos ataques
(Friedrich 1981: 120-121), o ciclo dos poemas animalescos trataria por eleio de seres
menores e menos representados no modelo srio. Quanto s ornitomaquias, os dois ttulos
sobreviventes sugerem aces em torno de aves que nos smiles homricos se encontram
habitualmente atormentadas por outras que lhes so superiores, como a guia e o falco.
Por outro lado, as batalhas que tm como cenrio os ambientes terrestre e aquoso,
celebradas na Galeomiomaquia e na Batracomiomaquia, apresentam-se originais na
escolha dos agentes belicosos, uma vez que as doninhas, os ratos e as rs no povoam as
narrativas homricas. So, portanto, os animalejos, de preferncia s feras, as criaturas da
fbula que fazem guerras maneira pica.
Galeomiomaquia
10
A Guerra entre as Doninhas e os Ratos, temtica e estruturalmente muito prxima da
Guerra entre as Rs e os Ratos, comea com a invocao tradicional Musa pica
seguida do objecto do poema animalesco, a guerra que sobreveio aos roedores: "
] [] [] []" (Galeo. 1)13. Um mensageiro informa
sobre a morte de Trixo, o melhor entre os ratos a roubar comida (Galeo. 4) e o primeiro
a perder a vida na luta contra uma doninha (Galeo. 6). Ao receber a notcia, a esposa
lamenta a sua dor, chorando copiosamente (Galeo. 15-16), numa verso animalizada do
episdio ilidico em que a esposa de Protesilau deplora em casa, com as faces dilaceradas,
a morte do marido, o primeiro a ser morto por um dos Drdanos em Tria:
. (Il. II 700-702)
.
,
] {} (Galeo. 6-8)
Numa mudana repentina de cenrio, os deuses surgem entretanto a banquetearem-se
no Olimpo (Galeo. 19). Entre eles, destaca-se a figura de Hermes, que deixa a morada
celeste para voar at junto dos ratos a quem parece auxiliar na empresa blica (Galeo. 20-
24). "Hermes involvement with the mice", prope Schibli (1983: 4), "may stem in part
from his capacity as the god of thieves; mice were notorious little thieves". Vendo que
vrios elementos da raa dos murdeos se renem perto de um terreno vitcola, uma
doninha receia, em solilquio, a iminncia de um ataque e resolve preparar-se para a
contenda (Galeo. 24-31). Depois de uma lacuna entre os versos 32-50, o texto mostra
vestgios do que teria sido um catlogo dos ratos (pardia ao catlogo das naus da Ilada).
O papiro termina com a cena da assembleia, na qual uma figura respeitvel, um ancio,
hbil no conselho como Nestor, " , ["
(Galeo. 56), iria comear a discursar. Do enredo blico, porm, nada mais se conhece,
uma vez que apenas ficaram conservados estes cerca de 40 versos. "As the papyrus is a
palimpsest", informa Schibli (1983: 1), "irregular remnants of the old writing impede the
decipherment of the present writing.
13 Sigo, para as citaes e referncias ao texto da Galeomiomaquia ou a Guerra entre as Doninhas e os
Ratos, a edio de West (2003).
11
A poro textual sobrevivente contm topoi convencionais da tradio pica (e.g.: a
invocao Musa, o discurso de um mensageiro, o lamento pela morte de um heri
afamado, a interveno divina, a assembleia de soldados), assim como expresses e
frmulas homricas (" [] [", Galeo. 13; " "
Galeo. 55)14. A manipulao do material de Homero na elaborao destas epopeias de
animais constitua uma forma pedaggica dirigida a um pblico escolar mais jovem, que
assim estabelecia, defende Bertoln Cebrin, um primeiro contacto com as narrativas
homricas. Existe, porm, uma forte tendncia para se datar a Galeomiomaquia (de que
no se encontram quaisquer referncias antes do sculo II a.C.) da poca helenstica
(Schibli 1983: 7 e 11). Com esta datao, o poema assume-se por conseguinte, a par da
Batracomiomaquia, como produo sofisticada, concebida por um poeta erudito, que a
reveste de uma complexa rede de aluses pardicas, a maior parte das quais s
reconhecida por uma classe restrita de letrados.
Mesmo que o gnero da epopeia animalesca tivesse dois pblicos, com idades e nveis
de instruo distantes um do outro, o sistema educativo na Antiguidade, garante
Gutzwiller (2007: 133), prepararia os seus formandos a apreciarem as inter-relaes com
a poesia homrica. No contexto da cultura grega, desde a idade arcaica helenstica,
Homero tornou-se o poeta consagrado pela tradio, a fonte onde muitos outros autores e
artistas das mais diversificadas reas vo beber, o modelo a partir do qual emergem
formas e gneros, inclusive a literatura pardica grega, cujo principal representante a
Batracomiomaquia.
Batracomiomaquia
14 " ": Il. II 336; III 96; III 455; X 219; X 233; XIV 109; XIX 76; XXIII 889; Od. II
157; III 330; XI 342; XVII 151; XVII 369; XX 350; XXIV 442; XXIV 451 (cf. variantes: Il. VII 170; X
241; Od. IV 773; VII 185; VIII 25; XIV 459; XV 304; XV 439; XVI 394; XVIII 412; XX 244; XXII 131;
XXII 247; XXIV 422).
" ": Il. I 201; II 7; IV 69; IV 92; IV 203; IV 284; IV 312; IV 337; IV 369; V 123;
V 242; V 713; V 871; VII 356; VIII 101; VIII 351; X 163; X 191; XI 815; XII 365; XIII 94; XIII 462; XIII
480; XIII 750; XIV 2; XIV 138; XIV 356; XV 35; XV 48; XV 89; XV 145; XV 157; XVI 6; XVI 537; XVI
829; XVII 74; XVII 219; XVIII 72; XVIII 169; XIX 20; XIX 341; XX 331; XX 448; XXI 73; XXI 368;
XXI 409; XXI 419; XXII 81; XXII 215; XXII 228; XXIII 557; XXIII 601; XXIII 625; XXIV 517; Od. I
122; II 269; II 362; IV 25; IV 76; IV 550; V 117; V 172; VII 236; VIII 346; VIII 407; VIII 442; VIII 460;
X 265; X 324; X 377; X 418; X 430; X 482; XI 56; XI 154; XI 209; XI 396; XI 472; XI 616; XII 296; XIII
58; XIII 227; XIII 253; XIII 290; XIV 114; XV 208; XV 259; XVI 7; XVI 22; XVI 180; XVII 40; XVII
396; XVII 459; XVII 543; XVII 552; XVII 591; XVIII 9; XVIII 104; XVIII 388; XIX 3; XX 198; XXII
100; XXII 150; XXII 311; XXII 343; XXII 366; XXII 410; XXII 436; XXIII 34; XXIII 112; XXIV 372;
XXIV 399; XXIV 494.
12
O mais conhecido poema pardico que nos chegou da Antiguidade grega, a
Batracomiomaquia ou a Guerra entre as Rs e os Ratos, considerada a obra inaugural do
gnero heri-cmico, herdou a mesma notoriedade do modelo pico de que provm. Esta
breve composio animalesca, de autoria e datao incertas e com uma transmisso
textual problemtica15, celebra as errncias de um heri, que desencadearo a guerra entre
dois exrcitos de origens muito diferentes, os ratos (seres terrestres) e as rs (habitantes
do lago).
Na histria que hoje se conhece, com uma extenso aproximada de trezentos versos,
varivel entre as edies modernas, o poeta pardico imortaliza nos versos graves da
epopeia o combate animalesco, " , " (Batrac.
4), que compara aos feitos dos Gigantes (Batrac. 7). As Musas, como prprio do canto
pico (de cujos recursos a poesia pardica parte, tomando porm uma orientao
divergente), no deixam de ser evocadas, no incio da narrativa, para inspirao do tema
e divulgao da fama entre os mortais. A aco beligerante, que se anuncia gigantesca,
desenrola-se numa sequncia linear, desde as suas origens (o encontro fatal entre
Psicrpax, o prncipe roedor, e Fisgnato, o soberano das rs) at ao desenlace (a fuga dos
ratos devido interveno do exrcito dos caranguejos, que permite a vitria ranina).
O enredo batracomiomaquiano progride em trs momentos bsicos, cada um dos quais
com extenso aproximada de cem versos: as causas, a preparao e a execuo da guerra.
O encontro acidental entre os dois membros da realeza resulta na morte do ser terrestre
em meio aqutico. Essa desgraa motiva a vingana por parte das duas populaes
animalescas, que, em conclio e por unanimidade, decidem enfrentar com armas os seus
adversrios. Os confrontos blicos, observados de longe pelos deuses olmpicos,
sucedem-se junto ao lago, durante um s dia, com ganhos e perdas, avanos e retrocessos
de ambos os lados, at ocasio em que os deuses se intrometem, enviando um terceiro
conjunto de tropas, que fazem dispersar os combatentes16.
15 No volume 60 da revista Humanitas, Delfim Ferreira Leo publica uma recenso onde apresenta uma
apreciao crtica traduo portuguesa da Batracomiomaquia, a cargo de Rodolfo Lopes (2008). No texto
da recenso, o autor refere-se s problemticas contextuais dessa epopeia heri-cmica como pardia
grande questo homrica: "Na seco seguinte, o A. dedica um espao relativamente amplo ao problema
da "Datao e autoria" (pp. 20-27), que, no sendo to complexo quanto a famosa questo homrica, no
deixa, ainda assim, de parodiar de certa forma, tambm a esse nvel, uma das maiores dificuldades que tm
acompanhado a Ilada e a Odisseia, quase desde a sua origem. (Leo 2008: 329). 16 A narrativa cabe numa estrutura lgica, organizada por trades, aspecto desenvolvido exausto por
Esteban Santos (1991: 57-71).
13
O momento culminante desta epopeia animalesca ocupado pela sucesso dos
encontros entre guerreiros no campo de batalha. A guerra entre os dois exrcitos decorre
por sries de combates individuais (um combatente enfrenta um adversrio), mostrando,
perto do desfecho, imagens panormicas da refrega, com a descrio de ataques em larga
escala. As sequncias blicas batracomiomaquianas constituem o clmax do poema, em
grande parte devido ao facto de reunirem e aproveitarem muitos dos topoi da tradio
pica, sobretudo os ilidicos, como as diversas formas de atacar, golpear, fugir, cair e
morrer em batalha. So frequentes, neste conflito animalesco, tal como na Ilada, as
investidas aleatrias contra oponentes, os combates por vingana, os combates para
tomada e despojo de cadveres, as lutas em torno de camaradas cados, as aristeiai de
heris, os arremessos de lanas e de pedregulhos, os golpes em rgos vitais de onde o
sangue escorre para tingir as guas de prpura.
A Ilada celebra uma campanha militar executada por muitos, mas que decidida por
poucos17. Esses poucos so os heris de excelncia, aqueles que, seduzidos pelo encanto
da morte por causa do renome que a guerra proporciona a quem a ela se entrega
incondicionalmente, primam pela valentia, desejando morrer jovens, mas gloriosos;
aqueles que, amados e auxiliados pelos deuses, influenciam de forma significativa o curso
dos eventos no campo de batalha, pelejando, quer massacrando oponentes, quer por eles
sendo atingidos. De entre os heris homricos, estes so os .
Tambm os exrcitos animalescos da Batracomiomaquia so formados por guerreiros
valorosos e excelentes, destemidos no combate, a ter em conta a apresentao inicial que
deles feita, pois enquanto dos ratos se diz, logo no promio, terem marchado
(Batrac. 6) contra as rs, estas, no lhes sendo inferiores em primazia
blica, so qualificadas como (Batrac. 143)18. Alm desta caracterizao
colectiva dos exrcitos, os guerreiros animalescos tambm so enobrecidos
individualmente: a doninha uma caadora temvel e uma fera (Batrac. 51); a r
Orignio sozinha entre a turba randea (Batrac. 257); e Meridrpax, o rato-
heri, aparece como guerreiro (Batrac. 281), temido at pelos deuses. Atena
chega mesmo a reconhecer o estatuto herico dos animalejos ao design-los como
17 "The Iliad presents a world in which a battle of many may be decided by few, and in which it is only a
few who base a claim to power on participating in battles fought by many. (Wees 1988: 23) 18 " " (Batrac. 143). com estas palavras que Embasquitro conclui
a declarao de guerra contra as rs: exorta para a luta as que, de entre aquelas reunidas, forem as melhores.
14
"destemidos no combate", (Batrac. 195), epteto que aplicado aos exrcitos
dos Msios e dos Mirmdones (Il. XIII 5 e XVI 272).
Alm da valentia na guerra, os combatentes animalescos so detentores de uma origem
aristocrtica que tambm os faz elevar ao estatuto de heris homricos. Maria de Ftima
Silva afirma que a "celebridade de um heri passa tambm pelo registo que, dos seus
antepassados, a poesia consagrou; logo a genealogia que enobrece e responsabiliza cada
heri consta de um curriculum" (Silva 2005: 37). No encontro inicial entre Psicrpax e
Fisgnato, cada um procura diminuir a honra do outro, alegando pertencer a uma classe
ancestral mais ilustre, como nos dois duelos homricos tomados como modelo: o duelo
entre Glauco e Diomedes e o duelo entre Eneias e Aquiles19.
O vencedor desta disputa pela , aquele que possui um percurso genealgico mais
longo, o prncipe roedor. Ainda que a vitria blica seja outorgada s rs, uma vez que
contam no fim com o auxlio do soberano olmpico, o poeta pardico apresenta, como
contraponto, a derrota ranina no mbito da linhagem e da excelncia na guerra. S
aparentemente a dose de informao declarada pelos dois membros da nobreza sobre a
ascendncia de que provm proporcional. Na verdade, ambos revelam a identidade dos
respectivos progenitores (tanto o nome do pai, como o nome da me) e a terra natal:
Fisgnato filho de Peleu e de Hidromedusa, tendo sido concebido junto s margens do
Eridano (Batrac. 19-20 dois versos); Psicrpax filho de Troxartes e de Licmila, tendo
nascido em Calibe (Batrac. 27-30 quatro versos). A apresentao mais extensa do
roedor deve-se ao ornamento estilstico, ou seja, ao uso de eptetos, que falta na
apresentao do batrquio. Troxartes aclamado como " " e Licmila
anunciada como " ", facto que permite fazer recuar a
linhagem real destes seres terrestres at terceira gerao (filho, pai e av: Psicrpax,
Troxartes e Pternotrocles), quando a dos seres aquticos contempla apenas duas (filho e
pai: Fisgnato e Peleu). A famlia com razes mais remotas a que detm maior valor
honorfico e essa a de Psicrpax20.
19 Brandt (1888: 6-7), Ludwich (1896: 329), Glei (1984: 123), Bernab Pajares (1988: 322), Fusillo (1988:
92-93), Camerotto (1992: 23), Torn Teixid (1999: 330), Possebon (2003: 95-96), Sens (2006: 235-238). 20 Trs so os combatentes do exrcito dos roedores cuja ascendncia paterna divulgada no poema: o
prncipe (Psicrpax, filho do magnnimo Troxartes, Batrac. 28), o arauto guerreiro (Embasquitro, filho do
magnnimo Tirglifo, Batrac. 137) e o rato-heri (Meridrpax, filho do irrepreensvel Cnison, Batrac.
261). Depois de Fisgnato, nenhum outro nome de combatentes randeos vem acompanhado pelo anncio
da estirpe a que pertence, ausncia essa que constitui sinal, como no episdio de Tersites, de uma condio
social inferior. Foroso , contudo, esclarecer que os nomes de duas rs combatentes, e
, so construdos maneira de patronmicos, por integrarem na sua formao morfolgica o
sufixo -. Cf. Torn Teixid (1999: 41), sobre o uso semntico e literrio deste sufixo.
15
O prncipe dos ratos e o soberano das rs pertencem ambos a estirpes nobres, como
acabei de demonstrar. No entanto, estes dois animais so oriundos de meios diferentes.
Sendo a Batracomiomaquia uma epopeia animalesca, funda-se no conflito entre seres de
naturezas incompatveis: um vive em ambiente terrestre, o outro no recinto do lago.
Quando Fisgnato convida o estrangeiro para um banquete no palcio aqutico, Psicrpax
estranha o convite, lembrando as diferenas que existem entre as origens a que cada um
deles pertence. O roedor enfatiza que ratos e rs no se alimentam dos mesmos produtos,
pois enquanto os primeiros se deliciam com iguarias, como po, torta, presunto, figos,
queijo, bolo-de-mel (Batrac. 34-41), os segundos alimentam-se de verduras, como nabos,
couves, abboras, alhos verdes e aipos (Batrac. 53-55).
Na verdade, as rs alimentam-se de insectos e no de vegetais (segundo a Histria dos
Animais VIII 626a), mas o poeta pardico pretende contrastar dois tipos de refeio, uma
exuberante, conseguida por furto, e outra modesta, retirada directamente do habitat
natural. A diferena gastronmica sintomtica do contraste entre os dois protagonistas
desta epopeia animalesca.
Apesar da desconfiana inicial, Psicrpax acaba por aceitar a oferta de hospitalidade
no palcio das rs, o que d origem ao relato de um acontecimento indito: o passeio do
rato sobre as guas do lago, s costas do seu anfitrio. O rato, que nunca se tinha
aventurado num ambiente aqutico, acaba por morrer afogado, antes de chegar ao seu
destino. A morte deste prncipe motiva depois a guerra entre ratos e rs.
Em torno do enredo principal e deste par protagonista formado por um ser terrestre e
um ser aqutico, vo surgindo referncias a contactos com outros animais, o que nos leva
a pensar que a Batracomiomaquia no seria o nico texto do seu gnero, mas uma
composio ligada a outras, que pertenceriam a um mesmo ciclo de epopeias sobre
animais.
A histria abre com as aventuras, j em estado avanado, de um rato, mostrando-o a
escapulir-se perseguio de uma doninha. No deixa de ser curioso notar que a
Batracomiomaquia apresenta como par protagonista, como alis o prprio ttulo indica,
um rato e uma r, mas abre com um par bem mais tradicional, o rato e a doninha, o que
leva a pensar na ligao deste poema com outros do mesmo gnero que circulariam na
Antiguidade. Poder-se- pensar tambm que a estratgia de o poeta pardico apresentar
16
o rato-protagonista a meio das suas peripcias no seno uma forma de imitao da
pica homrica, da Odisseia em particular, cuja aco comea por norma in medias res21.
A doninha no vem apenas mencionada no incio da narrativa, como meio de fazer o
rato chegar junto do lago. Entre o menu requintado dos murdeos e a ementa mais frugal
dos randeos, o estrangeiro de apetite voraz relata algumas aventuras por que passou,
procurando exaltar as suas qualidades blicas e identificando a doninha como um dos
seus principais inimigos (Batrac. 48-50, 51-52). Troxartes, o pai de Psicrpax, lamenta-
se por j ter perdido um outro filho na sequncia da perseguio por uma odiosa doninha,
(Batrac. 113-114). Por fim, na cena da investidura das armas, os ratos
vestem couraas feitas a partir da pele esfolada de uma doninha (Batrac. 127-128). Estes
cinco excertos aludem a contactos entre ratos e doninhas, anteriores aco
batracomiomaquiana. Tais referncias inscrevem este poema no ciclo das antigas
epopeias animalescas.
Alm dos ratos, das rs e das doninhas, outros animais povoam a aco deste poema:
o aor identificado como um dos inimigos do rato (, Batrac. 49), cuja fama o
prprio se vangloria de ser conhecida por homens, deuses e at pelas aves (
, Batrac. 26); o afogamento do rato nas guas do lago deve-se ao aparecimento
repentino de uma hidra (, Batrac. 82); as rs armam-se para a guerra protegendo-se
com elmos feitos a partir de finas conchas de caracol ( , Batrac.
165); a deusa Atena queixa-se de ter ficado com dores de cabea por causa do coaxar
barulhento das rs, no tendo conseguido dormir durante a noite e por isso ficou acordada
at o galo cantar (, Batrac. 192); so os mosquitos que sopram as grandes
trompetas para anunciar o comeo da guerra entre rs e ratos (, Batrac. 199); e
os caranguejos formam o terceiro exrcito do poema, massacrando os ratos e oferecendo
a vitria s rs (, Batrac. 294-299). Tal como os poemas homricos contm
smiles que equiparam os heris a feras selvagens, tambm este poema animalesco
contm um smile que, por outro lado, compara animais de pequeno porte a homens e
deuses. Os versos 78-81 formam um smile pela negativa, fazendo meno ao mito do
rapto de Europa por Zeus. Neste smile, o rato ocupa o lugar da jovem donzela e a r
desempenha a mesma funo de Zeus metamorfoseado em touro (, Batrac. 79).
21 Sobre a figura anti-odisseica de Psicrpax, vide Fonseca (2010: 45-50) e o Captulo 5 de Epopeia e
Pardia na Literatura Grega Antiga: Recursos Pardicos e Imitao Homrica na Batracomiomaquia
(2013: 171-190).
17
desta maneira, por meio do smile utilizado para descrever o passeio aqutico, que um
animal de grande porte surge na aco deste eplio.
A Batracomiomaquia centra-se na guerra de um s dia entre os ratos e as rs, mas a
aco inclui tambm outros animalejos, que no aparecem to regularmente ou no
chegam a ser sequer mencionados na pica homrica, como a doninha, o aor, o caracol,
o galo, os mosquitos, os caranguejos e o touro (o nico animal de grande porte aqui
referido). Esta epopeia animalesca , portanto, elaborada como um verdadeiro lugar de
encontros zoolgicos: ao mesmo tempo que celebra a aco principal, relata tambm
episdios marginais que envolvem outras criaturas. Tais episdios pertenceriam talvez ao
enredo de outros poemas do mesmo gnero, que, como as antigas epopeias, formariam
um ciclo de histrias interligadas umas nas outras pelo tema.
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19
Anexo
I. SMILES HOMRICOS DE CONFRONTOS ENTRE ANIMAIS DA MESMA ESPCIE
1 Il. XVI 428-
430
Luta de abutres Luta entre Ptroclo e Sarpdon
2 Il. XVI 756-
761
Luta de dois lees Luta entre Heitor e Ptroclo em torno do corpo de
Cebrones
II. SMILES HOMRICOS DE CONFRONTOS ENTRE ANIMAIS DE ESPCIES DIFERENTES
1. Smiles homricos de confrontos entre animais dentro do seu habitat natural
a) No mar
3 Il. XXI 22-26 Golfinho devora outros peixes Troianos caem nas correntes do rio Xanto
b) Na terra
4 Il. III 21-29 Leo devora carcaa de veado ou
cabra e atacado por ces e mancebos
Menelau regozija-se ao ver Pris. Preparao para
o duelo entre Pris e Menelau
5 Il. V 134-143 Leo ataca o curral das ovelhas mas
ferido por um pastor
Diomedes entre os Troianos
6 Il. V 161-164 Leo salta para o meio dos bois e
ataca vitela ou vaca
Aristeia de Diomedes
7 Il. V 554-560 Dois lees arrebatam vacas e ovelhas,
mas so abatidos pelos homens
Crton e Orsloco mortos por Eneias
8 Il. VIII 338-
342
Galgo persegue leo ou javali
Heitor pressiona os Aqueus
9 Il. X 360-364 Dois galgos perseguem uma cora ou
lebre
Ulisses e Diomedes perseguem Dlon
10 Il. X 485-488 Leo atira-se contra rebanhos de
cabras ou ovelhas
Diomedes lana-se contra os Trcios (Doloneia)
11 Il. XI 170-178 Leo afugenta as vacas e devora-lhes
o sangue e as vsceras
Aristeia de Agammnon
12 Il. XI 292-295 Galgos atiados contra javali ou leo
Heitor atia os Troianos contra os Aqueus
13 Il. XI 323-327 Dois javalis atiram-se contra os ces
de caa
Diomedes e Ulisses lutam contra os Troianos
14 Il. XI 414-420 Ces cercam um javali
Troianos cercam Ulisses
15 Il. XI 473-484 Chacais volta de um veado ferido
devoram-no. So depois afugentados
pelo leo que fica com a presa
Ulisses contra os Troianos
20
16 Il. XI 548-557 Ces e lavradores escorraam um leo
do estbulo, no o deixando levar
uma vaca
jax cede aos Troianos
17 Il. XII 41-50 Ces e caadores cercam um leo ou
javali
Heitor entre os companheiros
18 Il. XII 143-154 Javalis aguentam a investida de
homens e ces
Polipetes e Leonteu aguentam a investida e
protegem as muralhas
19 Il. XII 290-293 Leo contra gado bovino
Sarpdon contra os Argivos
20 Il. XII 298-308 Leo ataca rebanhos guardados por
ces
Sarpdon contra a muralha
21 Il. XIII 101-
106
Coras so presas de chacais,
panteras ou lobas
Troianos no resistem aos Aqueus
22 Il. XIII 198-
202
Lees arrebataram uma cabra aos
ces
Ajantes levam mbrio
23 Il. XIII 470-
479
Javali aguenta a chusma de homens e
ces
Idomeneu aguenta a investida de Eneias e incita
os companheiros para a luta
24 Il. XV 271-280 Veado ou bode perseguido por ces
ou homens. Surge depois o leo que
pe os homens e os ces em fuga
Os Dnaos amedrontam-se ao verem Heitor nas
fileiras de soldados
25
Il. XV 323-327
Bois ou ovelhas atacados por feras
selvagens
Fuga dos Aqueus
26 Il. XV 579-583 Co lana-se contra um gamo
Ataque de Antloco
27 Il. XV 585-590 Fera selvagem mata um co entre a
manada de bois
Fuga de Antloco
28 Il. XV 630-640 Leo lana-se contra bois, devora
uma vitela e faz dispersar as vacas
Heitor coloca os Aqueus em fuga
29 Il. XVI 155-
165
Lobos mataram um veado nas
montanhas
Mirmdones avanam para a guerra liderados por
Ptroclo
30 Il. XVI 352-
357
Lobos atacam cordeiros ou cabritos
Aqueus atacam Troianos
31 Il. XVI 487-
491
Leo mata um touro no meio dos bois Ptroclo mata Sarpdon
32 Il. XVI 823-
828
Leo luta e vence um javali
Ptroclo vencido por Heitor
33 Il. XVII 61-69 Leo captura uma vaca e cercado
por ces e pastores
Troianos contra Menelau
34 Il. XVII 108-
113
Leo escorraado do estbulo por
ces e homens
Menelau afasta-se do cadver de Ptroclo
35 Il. XVII 281-
287
Javali dispersa ces e mancebos que o
atacavam
jax entre os Troianos
21
36 Il. XVII 540-
542
Leo que devorou um boi
Automedonte despoja um cadver das armas
37 Il. XVII 656-
667
Leo perseguido por ces e homens
por querer arrebatar uma vaca
Menelau parte contrariado de junto do corpo de
Ptroclo
38 Il. XVII 725-
734
Ces atiram-se contra um javali, mas
depois amedrontam-se
Troianos e Ajantes lutam pelo corpo de Ptroclo
39 Il. XX 164-175 Homens atacam um leo
Aquiles o leo ao avanar contra Eneias
40 Il. XXII 189-
193
Co persegue um gamo
Aquiles persegue Heitor
41 Il. XXIV 41-45 Leo atira-se aos rebanhos para
arrebatar uma refeio
Carcter de Aquiles: s quer saber de selvajarias
42 Od. VI 130-
136
Leo ataca vacas ou ovelhas ou coras Ulisses prestes a aparecer s donzelas de Esquria
43 Od. XXII 401-
406
Leo acaba de comer um boi Ulisses acaba de chacinar os pretendentes
c) No cu
44 Il. XIII 62-65 Falco persegue outra ave Ataque de Posdon na guerra
45 Il. XV 237-238 Falco matador de pombas Voo de Apolo
46 Il. XV 690-694 guia ataca gansos ou grous ou cisnes Ataque de Heitor
47 Il. XVI 581-
585
Falco afugenta gralhas e estorninhos Ptroclo contra os Lcios
48 Il. XVII 755-
759
Falco ataca gralhas e estorninhos Heitor e Eneias atacam os Aqueus
49 Il. XXI 493-
496
Pomba foge de um falco Teomaquia: rtemis foge de Hera
50 Il. XXII 139-
144
Falco ataca uma pomba Aquiles persegue Heitor
51 Od. XXII 302-
309
Abutres lanam-se sobre os pssaros Massacre dos pretendentes
2. Smiles homricos de confrontos entre animais fora do seu habitat natural
52 Il. III 1-9 Grous (aves) atacam os Pigmeus
Grito de guerra dos Troianos
53 Il. XVI 259-
267
Rapazes atormentam ninhos das
vespas, e estas voam contra viandante
insciente
Mirmdones avanam para a guerra liderados por
Ptroclo
54 Il. XVII 673-
681
A guia (predador dos cus) ataca um
animal terrestre, uma lebre
Menelau procura de Antloco no campo de
batalha
22
55 Il. XXII 306-
311
A guia (predador dos cus) lana-se
contra um animal terrestre, um
cordeiro ou uma lebre
Heitor contra Aquiles
284
285
ndex
Presentaci del volum 1-2
Heris animalizados e animais heroificados: Homero entre a tradio pica e o ciclo das
antigas epopeias animalescas
Rui Carlos Fonseca 3 - 22
Les metamorfosis de Circe: genitiu objectiu o subjectiu?
Amparo Gasent 23 - 36
Les descripcions d'animals a la novella d'Aquilles Taci: ms enll d'unes pauses?
Roser Homar 37 - 50
51 - 70
Realitat i fantasia en els textos animalstics catalans medievals
Llcia Martn Pascual 71 - 92
Marinela Garcia Sempere
libes, ratapinyades i altres voltils: algunes metamorfosis a la tradici popular grega
Rubn J. Montas 93 - 107
Les versions franaises mdivales du Physiologos et la description de la licorne
ngel Narro 109 - 120
La fauna indoeuropea. Sobre els noms del llop i el camell en ie.
Carles Padilla Carmona 121 - 133
Monstres mitolgics en alguns fragments de Comdia Mitjana i Nova
Jordi Prez Asensio 135 - 145
Les metamorfosis de Tegenes i Cariclea i el bestiari de les Etipiques
Juan Jos Pomer Monferrer 147 - 164
Fantasa, magia y metamorfosis en el Policisne de Boecia de Juan de Silva (1602)
Luis Pomer Monferrer 165 - 174
El actor animalizado en las culturas parateatrales victorianas
Ignacio Ramos Gay 175 - 187
Paradoxografia i cientifisme a la Histria dels animals de Claudi Eli
Jordi Redondo 189 - 206
Bsties als oracles herodoteus
Carmen Snchez Maas 207 - 219
286
La frontera entre realidad y ficcin en el folclore ruso
Natalia Ilina Solovieva 221 - 238
Et in tali bestia Mahomat Iherusalem est profectus las figuras del Burq y los ngeles
en el viaje nocturno del Profeta
Katarzyna K. Starczewska 239 - 252
Literatura, histria i llegenda. Una ullada al mite de la cacera salvatge
Josep Llus Teodoro Peris 253 - 271
La presncia d'animals en els Himnes Homrics, entre el smbol i el relat
Ramon Torn Teixid 273 - 282