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1 Em fuga da guerra civil: refugiados espanhóis na Figueira da Foz (1936-1939) 1 Irene Vaquinhas Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (FLUC) e Centro de História da Sociedade e da Cultura da Universidade de Coimbra (CHSC) [email protected] 1 Uma primeira versão deste texto encontra-se publicada, em língua espanhola, sob o título Huyendo de la Guerra Civil: los refugiados españoles en Figueira da Foz (1936-1939), in Pensar con la historia desde el siglo XXI, Actas del XII Congreso de la Asociación de Historia Contemporánea, Madrid, Uma Ediciones, 2015, p. 4833-4854 (https://www.uam.es/ss/Satellite/es/1234895325402/1242687568365/UAM_Libro_FA/libro/P ENSAR_CON_LA_HISTORIA_DESDE_EL_SIGLO_XXI.htm.

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Em fuga da guerra civil: refugiados espanhóis na Figueira da Foz (1936-1939)1

Irene Vaquinhas

Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (FLUC) e Centro de História da

Sociedade e da Cultura da Universidade de Coimbra (CHSC)

[email protected]

1 Uma primeira versão deste texto encontra-se publicada, em língua espanhola, sob o título

“Huyendo de la Guerra Civil: los refugiados españoles en Figueira da Foz (1936-1939)”, in

Pensar con la historia desde el siglo XXI, Actas del XII Congreso de la Asociación de

Historia Contemporánea, Madrid, Uma Ediciones, 2015, p. 4833-4854

(https://www.uam.es/ss/Satellite/es/1234895325402/1242687568365/UAM_Libro_FA/libro/P

ENSAR_CON_LA_HISTORIA_DESDE_EL_SIGLO_XXI.htm.

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Resumo: O texto analisa o impacto da Guerra Civil espanhola na cidade da Figueira da Foz,

tomando como base de pesquisa fontes manuscritas disponíveis em arquivos locais (vistos de

estrangeiros, autorizações de residência…), a qual é cruzada com fontes provenientes do

Arquivo Nacional da Torre do Tombo, entre os quais do núcleo da PIDE. Estância balnear, a

cidade é, desde finais do século XIX, destino de veraneantes de nacionalidade espanhola que

aí permaneciam no Verão. O início da guerra civil vem alterar essa situação, reduzindo, por

um lado, o afluxo turístico, com impacto no comércio local que sofre uma acentuada quebra,

mas, por outro, fará aumentar, o número de “refugiados” que, fora da época balnear,

permanecem na cidade. A análise da documentação permite caracterizar o refugiado-tipo, em

termos socioeconómicos e, em alguns casos, também políticos, bem como apreender o papel

como a autarquia local geriu a situação, a qual serviu de balão de ensaio para o acolhimento,

anos mais tarde, de refugiados da 2ª Grande Guerra.

Palavras-chave: Guerra Civil Espanhola; Figueira da Foz;

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Ex.ma

Sra. Presidente da Academia Portuguesa de História, Prof. Doutora Manuela

Mendonça

Ex.mo

Sr. Vice-Presidente da Academia Portuguesa de História, Prof. Doutor João

Luís Cardoso

Ex.ma

Sra. Secretária Geral da Academia Portuguesa de História, Prof. Doutora Maria

de Fátima Reis

Ilustres confrades

Minhas senhoras e meus senhores

É com particular satisfação que tomo, pela primeira vez, a palavra na

Academia Portuguesa de História, instituição científica de grande prestígio, e

agradeço a subida honra de me terem permitido fazer parte.

Introdução

A problemática do estudo dos refugiados espanhóis, durante a guerra civil de

Espanha, tem estado, nos últimos tempos, no centro de um alargado debate sobre a

temática do exílio2

, investindo-se tanto na recuperação de memórias, como na

identificação dos vários perfis de exilados, no conhecimento de questões económicas,

sociais e culturais associadas aos diferentes contextos de exílio, bem como na sua

estreita articulação com a repressão e as oposição políticas.

No caso de Portugal, país onde se fez sentir a presença de espanhóis, os

estudos disponíveis enquadram a questão em análises mais gerais sobre as relações

2 Sobre o tema geral do exílio veja-se, entre outras, as seguintes obras: Fábio Lucas da CRUZ,

“A história e as memórias do exílio brasileiro”, Fronteiras: Revista Catarinense de História

|on line|, Florianópolis, nº 20, 2012, pp. 115-137 http://www.anpuh-

sc.org.br/rev%20front%2020%20vers%20fin/f20%20art_dossie6_exilio_fabio%20cruz.pdf

(06-06-2014: 09.51). No que concerne ao caso específico da guerra civil espanhola, vejam-se,

entre outros, Maëlle MAUGENDRE, Les réfugiées espagnoles en France. (1939-1942). Des

femmes entre assujettissements et resistances, Toulouse, Université Toulouse II Le Mirail,

2013 (thèse doctorat

d´état)http://www.theses.fr/?q=Les+réfugiées+espagnoles+en+France+%281939-

1942%29+Des+femmes+entre+assujettissements+et+résistances (06-06-2014: 09.59);

François GODICHEAU, La guerre d´Espagne, république et révolution en Catalogne (1936-

1939), Paris, Ed. Odile Jacob, 2004; Federica LUZI, “La reinvención de la identidad colectiva

de los descendientes de los regugiados españoles. El antifascism como instrument de

legitimación de la memoria del exilio en Francia y en Europa” (2012), Migraciones y Exilios

nº 13, pp. 33-44 http://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=4418903. O tema do exílio

foi recentemente objecto de um colóquio internacional, realizado na Faculdade de Letras da

Universidade de Coimbra (Março de 2014), subordinado ao título “Oposições e exílios”.

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peninsulares ao tempo da Guerra Civil3 e sobre o impacto desse conflito na política

externa e interna portuguesas, na medida em que este condicionou a crispação

fascizante do Estado Novo, de profundas repercussões sociais e económicas4. Embora

o regime salazarista tenha adoptado relativamente ao conflito espanhol a posição

oficial de não intervenção5, em termos práticos apoiou, “com meios e por vias

diversas os nacionalistas espanhóis”6, tendo, entre outros aspectos, procedido ao

aprisionamento e deportação para Espanha de vários exilados republicanos

espanhóis7. Já a distribuição geográfica de refugiados pelo país, localidades de

acolhimento, modalidades de apoio e eventual sedentarização são completamente

desconhecidos, não se dispondo de estudos sobre estas matérias8.

Nesta comunicação pretende-se analisar a presença espanhola numa cidade da

região centro de Portugal, a praia da Figueira da Foz, conhecida estância balnear.

Como fontes base para este estudo recorreu-se, sobretudo, a documentação disponível

no Arquivo Histórico Municipal desta cidade. Sem a preocupação de exaustividade,

salientam-se, para além da imprensa periódica local, os “Vistos de Estrangeiros”

3 Como afirma Nuno Valério, “o principal tema dos estudos realizados em Portugal sobre

Espanha é tradicionalmente o das relações políticas entre os dois países”, Nuno VALÉRIO,

“Estudos sobre Espanha em Portugal na última década do século XX”, La mirada del otro.

Percepciones luso-españolas desde la história, coord. Hipolito de la TORRE GÓMEZ;

Antonio José TELO, Mérida, Junta de Extremadura, 2001, p. 205. 4 A este propósito vejam-se, entre outros, César OLIVEIRA, “Guerra Civil de Espanha”,

Dicionário de História do Estado Novo, Fernando ROSAS; J. M. Brandão de BRITO (dir.),

Vol. I, Lisboa, Círculo de Leitores, 1996, p. 410; Fernando ROSAS (coord.), Portugal e a

Guerra Civil de Espanha. Colóquio Internacional (1998), Lisboa, Edições Colibri – Instituto

de História Contemporânea da FCSH da UNL; Hipólito TORRE GÓMEZ, “Salazar y la II

República Española (1931-1936)”, in Mercedes GUTIÉRREZ SÁNCHEZ; Diego

PALACIOS CEREZALES (eds), Conflicto político. Democracia y dictadura. Portugal y

España en la década de 1930, Madrid, Centro de Estudios Politicos y Sociales, 2007, p. 287-

304. 5 Como bem observa Hipólito de la Torre Gómez, as relações peninsulares, entre 1910 e

1936, “se caracterizaron por unos rasgos de tensión, algunas veces manifesta, casi siempre

soterrada y hasta camuflada en palavras de amistad”, Hipólito TORRE GÓMEZ, “Salazar y la

II República Española (1931-1936)”, in Mercedes GUTIÉRREZ SÁNCHEZ; Diego

PALACIOS CEREZALES (eds), Conflicto político..., p. 301. 6 César OLIVEIRA, art. cit., p. 411. Sobre o mesmo assunto, veja-se também Luís Nuno

RODRIGUES, “Portugal e a Guerra Civil de Espanha”, Memória de Portugal. O milénio

português, Roberto CARNEIRO (coordenação geral de), Artur Teodoro de MATOS

(coordenação científica de), Lisboa, Círculo de Leitores, 2001, p. 504. 7 A designação “republicano” implicava uma certa homogeneização ideológica embora, em

rigor, contemplasse uma diversidade política significativa, polarizada entre socialistas,

republicanos, anarquistas e comunistas. 8 O mesmo se passa em França, como bem assinala Rose DUROUX (“Vincent Parello, “Des

réfugiés espagnols de la guerre civile dans le département de l’Hérault (1937-1939)”, Cahiers

de civilisation espagnole contemporaine [Online], 8 | 2012: http://ccec.revues.org/3798.

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(1935-1936); o “Registo de Estrangeiros residentes no concelho da Figueira da Foz

(1937-1938)” e os “Vistos de Autorização de Residência (1930-1945)”. A título

complementar, utilizaram-se também fontes do Arquivo Nacional da Torre do

Tombo, de Lisboa, sobretudo pertencentes aos núcleos do Ministério do Interior, do

Arquivo Salazar e dos Serviços Centrais da PIDE. Já os registos memorialistas são

escassos na localidade, se bem que o acolhimento de espanhóis na praia da Figueira

da Foz, fugidos à guerra civil, tenha inspirado o consagrado romance de Jorge de

Sena: Sinais de fogo9. Todavia, o estudo substancial desta temática exigiria uma

investigação mais vasta do que a realizada, enquadrada na análise da globalidade da

presença espanhola em Portugal e do desenrolar da dura ofensiva policial contra os

“vermelhos” que atravessaram a fronteira.

A Figueira da Foz na rota do exílio: de “praia peninsular” a “porto de

abrigo”

Graças à sua localização geográfica privilegiada na região centro de Portugal e

a particulares condições climatéricas, a Figueira da Foz tornou-se, a partir de meados

do século XIX, num dos mais concorridos locais de veraneio do país. Atraindo um

número crescente de forasteiros, a então vila tornar-se-ia, a partir de meados do século

XIX, numa das "praias da moda"10

. A sua conversão a cidade e, muito em especial, a

abertura, na década de 1880, de troços de caminho de ferro que permitiam a ligação a

linhas ferroviárias espanholas, bem como a disponibilização de comboios

especialmente fretados para a praia da Figueira, nos meses de Julho e Agosto, tanto

pela Companhia Real dos Caminhos de Ferro de Portugal como pela congénere

espanhola Compañia del Ferrocarril de Salamanca a la Frontera Portuguesa (S. F. P.),

reflectiram-se no aumento do afluxo de veraneantes, os quais rondariam o número de

20-21 mil, por ano, na transição do século XIX para o século XX11

. De entre estes,

9 Jorge de SENA, Sinais de Fogo (Romance), 4ª Edição, Lisboa, Edições 70, 1984. Este

romance foi escrito na década de 1960. 10

Sobre a Figueira da Foz como praia peninsular, veja-se, entre outros, Irene VAQUINHAS,

O Casino da Figueira. Sua evolução histórica desde o Teatro-Circo à actualidade (1884-

1978), 2ª edição, Coimbra, Palimage, 2013, p. 55-64. 11

No contexto de promoção de um turismo de tipo popular, extensivo a várias localidades, a

Companhia S.F.P. organizava viajens de ida e volta à praia da Figueira, mais precisamente,

“viaje de recreo a la hermosa playa y ciudad” ao preço "económico" de onze pesetas, válido

por um período de 14 dias. Iniciando o seu percurso em Salamanca, o comboio "especial",

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destacam-se, sobretudo, os provenientes do país vizinho, tanto das regiões fronteiriças

de Badajoz, de Salamanca, de Cáceres, de Zamora, bem como de Valladolid, de

Madrid, de Ávila e de Toledo12

.

Segundo a imprensa do tempo, a cidade transformava-se, durante a época

balnear, “numa nesga de Espanha”, de que beneficiavam tanto o comércio como as

indústrias locais, a hotelaria, o aluguer de casas ou as atividades recreativas,

reconhecendo-se, por volta dos anos 1930, que um dos fatores dessa afluência residia

no câmbio favorável da peseta relativamente ao escudo13

. Pela sua sazonalidade,

dizia-se, então, que os espanhóis (em particular as espanholas pela sua alegria

esfuziante) estavam para a Figueira como as andorinhas para a primavera: “marcavam

a abertura oficial da época” balnear14

, começando a chegar à cidade “pelas abas do

São João” (finais de Junho), tendo os muitos anos de convívio consolidado uma

estreita familiaridade15

.

São muitos os testemunhos de apreço pela comunidade do país vizinho, sendo

os próprios espectáculos organizados em função dos gostos desse público específico,

tanto em termos musicais como quanto à selecção das programações artísticas. A

título exemplificativo, refira-se que, todos os anos, por volta do dia 15 do mês de

Agosto, o “Grande Casino Peninsular da Figueira da Foz”, considerado ao tempo a

“sala de visitas” da cidade, realizava uma festa em honra dos “nossos amáveis

hóspedes da nação vizinha”, ora designada por “grande festival”, ora por “verbena

andaluza”16

, a qual se manteria desde a década de 1890 até aos anos 1940. A

confluência sazonal de um número significativo de espanhóis na cidade, avaliado em

cerca de cinco mil nos anos Trinta17

, determinaria a disponibilização, pelo menos

desde 1936, de um vice-consulado de Espanha, cargo exercido por Alberto Malafaia,

designado por "El Botijo", saía nos dias 1 e 14 de Agosto, sendo a sua partida do cais descrita

como um "pitoresco espectáculo" e "cosa de no perder", "Veraneo Popular. A Figueira En El

Botijo", El Adelanto, 15 de Agosto de 1908. 12

Irene VAQUINHAS (2013), ob. cit., p. 57. 13

Alberto MALAFAIA (1936), A Figueira nas suas relações turísticas com a Espanha,

Figueira da Foz: Tip. e Pap. Figueirense. 14

Irene VAQUINHAS, ob. cit., p. 409. 15

Entre os “hóspedes” ilustres da praia da Figueira da Foz, nos finais do século XIX, figurava

o pensador e filósofo Miguel de Unamuno (1864-1936), uma das figuras mais representativas

da “geração de 1898” (O Figueirense, 20 de Janeiro de 1968). 16

Sobre o assunto, veja-se Irene VAQUINHAS, ob. cit., p. 407-414. 17

Anabela da Silva Marques BOM, Figueira da Foz revisitada. Expressões de sociabilidade

numa cidade à beira-mar (1920-1940), Coimbra, FLUC, 2008 (Dissertação de mestrado), p.

29.

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7

funcionário dos Serviços Municipalizados18

, cuja qualidade dos serviços prestados

será reconhecida pelo general Francisco Franco, tendo-lhe sido atribuída a Cruz de

Oficial de la Orden de lo Merito Civil, em 195819

.

É, por conseguinte, na cidade-praia da Figueira da Foz, com tradição no

acolhimento sazonal de veraneantes espanhóis20

, que se vão abrigar alguns naturais do

país vizinho, fugidos à guerra civil, em busca de segurança.

O trágico verão de 1936: a ambiguidade do enquadramento jurídico-legal

dos espanhóis na cidade

O início da guerra civil, a 18 de Julho de 193621

, teve um impacto imediato na

localidade, ao reduzir o número de veraneantes do país vizinho. A imprensa alude a

essa situação logo a partir de finais do mês de Julho, mencionando “|...| a falta de

famílias espanholas |...| devido aos acontecimentos que o leitor conhece”22

, ou seja, a

“tentativa de pronunciamento militar de generais e oficiais superiores das Forças

Armadas contra o poder republicano legitimamente constituído desde as eleições de

16 de Fevereiro de 1936 que deram a vitória à Frente Popular”23

. Os jornais locais

referem igualmente os impedimentos colocados, em Espanha, à saída de homens

válidos, mobilizados para o conflito24

, fazendo inflectir o número de turistas da nação

vizinha, o que “representou um duro golpe na actividade balnear figueirense, do qual

não pareceu conseguir recuperar”25

. Nos anos a seguir, até ao termo do conflito, no

mês de Abril de 1939, a situação ir-se-á agravar, chegando alguns articulistas da

imprensa a afirmarem que “D. Época não resistiu. Morreu D. Época Balnear”26

,

reportando-se à contracção significativa de veraneantes espanhóis e às suas

18

Rui CASCÃO, Monografia da freguesia de São Julião da Figueira da Foz, Figueira da

Foz: Junta de freguesia de São Julião da Figueira da Foz, 2009, p. 157. 19

Agradeço muito reconhecidamente aos familiares de Alberto Malafaia, em particular à

filha, Sra. D. Maria Luísa Nunes Malafaia e à neta, Sra. Dra. Teresa Malafaia, as

informações disponibilizadas e o acesso a fotografias pessoais. 20

Nos anos 1940, as suas características de cidade-balnear, habilitada a receber levas sazonais

de forasteiros, convertem-na numa das escolhas oficiais para “zona de residência fixa de

refugiados” de países do centro da Europa, em fuga do Holocausto. 21

César OLIVEIRA, art. cit. , p. 410. 22

O Figueirense, 29 de Julho de 1936. 23

César OLIVEIRA, art. cit., p. 410. 24

O Figueirense, 13 de Junho de 1937. 25

Carlos Manuel de Freitas Almeida NUNES, Figueira da Foz (1930-1960). Apontamentos

sobre o turismo balnear, Coimbra, FLUC, 2009 (dissertação de mestrado), p. 107. 26

O Figueirense, 30 de Setembro de 1939.

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consequências no comércio local, bem expressivas nas estatísticas de consumo da

localidade, nos meses de Julho a Setembro nos anos de 1937 a 1939, as quais revelam

uma acentuada quebra27

.

Em Abril de 1937, o Grande Casino Peninsular da Figueira da Foz fecha as

suas portas, adensando ainda mais a situação28

. A mobilização do comércio local

junto da empresa proprietária (ao tempo a Confederação da União Fabril, do

empresário Alfredo da Silva), bem como das instâncias políticas, possibilitará a sua

reabertura, no ano de 1938, mas sem a concessão de jogo que só será reposta a 26 de

Junho de 193929

.

Porém, se a guerra civil reduziu o número de veraneantes do país vizinho que

anualmente, nos meses de Julho e Agosto, procuravam a estância balnear, por outro

lado, fez elevar o número de vistos concedidos a estrangeiros30

, pela Administração

do Concelho, no trágico Verão de 1936, o qual triplica, relativamente ao ano anterior

de 1935, passando de 86 para 262 (Quadro I).

Quadro I

Nacionalidade dos estrangeiros na Figueira da Foz segundo os vistos concedidos

(1935-1936)

1935 % 1936 % Total %

Alemanha 3 3.49 4 1.53 7 2.01

Bélgica 6 6.98 6 2.29 12 3.45

Brasil 10 11.6 13 4.96 23 6.61

Espanha 36 41.9 213 81.3 249 71.6

Filipinas 0 1 0.38 1 0.29

França 23 26.7 14 5.34 37 10.6

Itália 2 2.33 2 0.76 4 1.15

Polónia 4 4.65 3 1.15 7 2.01

Suíssa 1 1.16 3 1.15 4 1.15

Portugal 1 1.16 3 1.15 4 1.15

TOTAL 86 99.97 262 100.01 348 100.02

Fonte: AHFF, Vistos de Estrangeiros (1935-1936).

27

O Figueirense, 1 de Novembro de 1939. 28

Irene VAQUINHAS, ob. cit., p. 175-177. 29

Irene VAQUINHAS, “Alfredo da Silva e o “Grande Casino Peninsular da Figueira da Foz:

aspectos económicos (1930-1937)”, Actas do Colóquio Internacional A Industrialização em

Portugal no século XX. O caso do Barreiro, coordenação de Miguel Figueira de Faria e José

Amado Mendes, Lisboa, EDIUAL – Universidade Autónoma Editora, S. A., 2010, p. 137-

153. 30

AHMFF, Vistos de Estrangeiros, 1935-1936. Esta fonte documental é constituída por doze

folhas que coligem informações subordinadas aos seguintes itens: “documento”, “nome”,

“profissão”, “morada”, “naturalidade”, “nacionalidade” e “data do visto”, não estando, porém,

todos os campos preenchidos.

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A maior parte dos vistos são concedidos a espanhóis (71,6%) e, cerca de

metade (54,9%), emitidos a partir dos limites finais da época balnear (meses de

Setembro, Outubro e Novembro), fora do tradicional período de veraneio da “colónia

do país vizinho”, como se referia na imprensa local (Quadro II).

Quadro II

Repartição mensal da concessão de vistos a espanhóis na Figueira da Foz (1935-

1936)

1935 1936 %

Janeiro 23 10.8

Fevereiro 0

Março 1 0.47

Abril 2 0.94

Maio 8 3.76

Junho 26 12.2

Julho 5 10 4.69

Agosto 16 26 12.2

Setembro 2 95 44.6

Outubro 18 8.45

Novembro 4 1.88

Dezembro

Sem

indicação 14

TOTAL 37 213 99.99

Fonte: AHMFF, Vistos de Estrangeiros (1935-1936).

Em termos administrativos, cabia aos governos civis e às administrações dos

concelhos a concessão de vistos (por um período de trinta dias) e de autorizações de

residência (por seis meses). Contudo, as convulsões políticas das primeiras décadas

do século XX e as profundas alterações da conjuntura internacional, fazendo subir

vertiginosamente o número de refugiados e de apátridas, vão ditar alterações

significativas quanto às condições mediante as quais os estrangeiros podiam transpor

as fronteiras e entrar em Portugal31

, avançando-se para uma jurisprudência preventiva.

Sucede-se um conjunto de medidas tendentes, por um lado, “a proteger a mão de obra

nacional perante os invasores estrangeiros” e, por outro, a “evitar a entrada de

31

Sobre o assunto veja-se Susana CHALANTE, “O discurso do Estado salazarista perante o

“indesejável” (1933-1939)”, Análise Social, vol. XLVI (198), 2011, pp. 41-63,

http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1309942602C0oPL0ev9En12LV7.pdf.

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10

“indesejáveis” no país, ou seja, “polacos, russos, portadores de passaportes Nansen e

apátridas”32

.

A pressão da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE) na definição

de uma política rigorosa de vistos, bem evidente nas notas manuscritas apensas à

correspondência dirigida ao ministro das Finanças33

, determinaria a promulgação,

pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros, da circular interna de Março de 1936, “a

qual se destinava a facilitar a visita de viajantes recomendáveis e a evitar o ingresso

dos indesejáveis”, procurando-se impedir a entrada de imigrantes e promover o

ingresso de turistas34

. Esta decisão vai ter consequências no tratamento a dar pelas

autoridades aos refugiados, oscilando-se entre a ajuda humanitária e a vigilância e/ou

repressão aos militantes políticos. A partir do ano de 1937, a PVDE vê os seus

poderes aumentados como “força autónoma na admissão de estrangeiros em

Portugal”35

.

Com o início da Guerra Civil, o Estado Novo “endurece a sua polícia de

fronteiras”36

, embora os naturais de Espanha nunca tenham sido, de uma maneira

geral, encarados como uma ameaça, nem as razões políticas e militares que presidem

ao seu êxodo os colocam no quadro jurídico das migrações económicas. Estes

constituem mesmo, nos Anos Trinta, a maior comunidade estrangeira em Portugal. As

estatísticas oficiais apontam para valores superiores a 50% relativamente à totalidade

de estrangeiros residentes no país (Quadro III).

Quadro III

A presença de espanhóis residentes em Portugal relativamente à totalidade de

estrangeiros (Anos 1934 a 1938)

Anos Espanhóis Estrangeiros %

1934 12542 21436 58,5

1935 8875 18329 48,4

1936 16107 26742 60,2

1937 12445 22904 54,3

32

Susana CHALANTE, art. cit., p. 47-52. 33

ANTT, Arquivo Salazar, Legislação relativa aos estrangeiros em Portugal: NE – 1, cx. 392,

pt. 22. 34

Susana CHALANTE, art. cit., p. 53. 35

Ansgar SCHAEFER, Portugal e os refugiados judeus provenientes do território alemão

(1933-1940). Coimbra: Imprensa da Universidade, 2014, p. 76. 36

Irene Flunser PIMENTEL, “Refugiados”, Dicionário de História do Estado Novo, ROSAS,

Fernando; BRITO, J. M. Brandão de (dir.), Vol. II, Lisboa, Círculo de Leitores, 1996, p. 824.

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11

1938 11192 21572 51,9

Fonte: Anuários Estatísticos |...|

A comunidade espanhola estava sobretudo fixada nas cidades de Lisboa e do

Porto, registando-se, no distrito de Coimbra37

, números relativamente baixos de

residentes naturais de Espanha, embora se observe um acréscimo significativo no ano

de 1936 relativamente ao anterior, o que vai ao encontro das informações já referidas

e relativas aos vistos de estrangeiros (Quadro IV).

Quadro IV

Residentes espanhóis no distrito de Coimbra (Anos 1934 a 1938)

Anos SM SF Total

1934 94 45 139

1935 61 73 134

1936 86 236 322

1937 110 157 267

1938 96 101 197

TOTAL 447 612 1059

Fonte: Anuários Estatísticos |...|

A situação particular da Figueira da Foz nas rotas do turismo ibérico nas

primeiras décadas do século XX associado à tradição de veraneio por famílias

espanholas vai permitir converter a cidade em local de acolhimento temporário e, em

particular, de placa de circulação de populações em trânsito. As próprias instituições

citadinas, habituadas à sua presença familiar, acusam alguma hesitação na forma de

os classificar, nunca identificando os espanhóis como refugiados e/ou exilados,

sempre como turistas, eventualmente “acidentais” ou “forçados”. A imprensa local

traduz este ponto de vista, ao afirmar “Nós os figueirenses acostumamo-nos a

considerar os espanhóis como pessoas da nossa privança íntima” e quando chegavam,

“saudamos |...| como se apenas estivessem estado ausentes durante os meses de

inverno38

. A identificação é completamente distinta daquela que será reservada aos

37

Circunscrição administrativa na qual se integra o concelho da Figueira da Foz. 38

O Figueirense de 18 de Março de 1937.

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12

refugiados judeus, inclusive ao nível da memória local39

, já que a cidade da Figueira

da Foz será, a partir de Junho de 1940, uma das estâncias balneares escolhidas para

“residência fixa” de judeus fugidos ao Holocausto40

.

A vaga de vistos de 1935 e 1936 e o cordial acolhimento subsequente traduz, à

sua maneira, os vínculos privilegiados da localidade com nacionais espanhóis,

estabelecidos desde os finais do século XIX, o que singulariza esta situação no quadro

de outros países/regiões de acolhimento caracterizados, em alguns casos, por

recepções violentas aos refugiados41

.

O “turista forçado espanhol”: sua caracterização socioeconómica e esboço

de perfil político

A análise dos Vistos (de permanência) permite verificar que a sua solicitação é

feita sobretudo por civis, maioritariamente do sexo feminino, mais precisamente

71,5% do número total de naturais de Espanha a quem foram concedidos42

(Quadro

V).

Quadro V

Vistos concedidos a espanhóis: repartição por sexo (1935-1936)

SF SM TOTAL

1935 24 12 36

1936 154 59 213

TOTAL 178 71 249

Fonte: AHFF, Vistos de Estrangeiros (1935-1936).

A integração dos recém-chegados não causou qualquer perturbação no

quotidiano urbano. Tal como em período de veraneio, a lista das moradas referidas às

autoridades indica a sua distribuição por toda a cidade, tanto residindo em hotéis e

pensões (Hotel Portugal, Hotel Aliança, Hotel Central, Hotel Reis, Pensão Demétrio,

39

Algumas recolhas orais feitas nos meses de Abril, Maio e Junho de 2014, na Figueira da

Foz, permitiram confirmar esta acepção na memória local: os espanhóis não são identificados

como refugiados e/ou exilados, designação que é exclusivamente reservada aos estrangeiros

que afluíram à cidade, nos anos 1940, em fuga do holocausto. 40

PIMENTEL, Irene Flunser, Judeus em Portugal durante a II Grande Guerra. Em fuga de

Hitler e do Holocausto, Lisboa, A esfera dos livros, 2006, pp. 127-134. 41

É o caso concreto das refugiadas espanholas acolhidas em França, MAUGENDRE, Maelle,

ob. cit., p. 37. 42

A percentagem de vistos concedidos a homens, nestes anos de 1935 e 1936, é de 28,5%.

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Pensão Albertina, Pensão Beirense...) como, sobretudo, em habitações, sendo difícil

saber se se trata de casas arrendadas ou de quartos alugados em casas particulares.

A importância adquirida pela cidade na oferta turística estival facilitou a

recepção, disponibilizando-se um parque habitacional preparado para o efeito. Aliás,

tudo leva a crer que a forma como as autoridades locais geriram esta situação servirá

de balão de ensaio para o acolhimento dos refugiados da 2ª Grande Guerra, em

número significativamente superior, os quais serão canalizados para “residências

fixas”, em estâncias balneares e termais do território nacional. Na cidade da Figueira

da Foz, serão precisamente instalados nos mesmos locais, como o demonstram as

moradas indicadas nos Vistos de autorização de residência de estrangeiros, dos anos

194043

.

Embora a documentação não seja muito explícita nesta matéria, as moradas

indicadas nas listas nominativas de vistos apontam para grupos de pessoas residindo

no mesmo local, provavelmente da mesma família, muitas delas acompanhadas por

“serventes”, ou seja, pela criadagem em geral (criados, chauffeurs, cozinheiras), mas

sem os elementos masculinos, cabeças de casal. Muitos dos homens que constam das

listas (27,7%, no ano de 1936), identificam-se ora como jubilados ou reformados,

presumivelmente com idades superiores a 50/60 anos, ora como estudantes, sendo por

conseguinte jovens. Em qualquer das circunstâncias, isentos da mobilização militar.

As fontes parecem apontar para o acolhimento na cidade de agregados domésticos em

fuga, encabeçados por elementos femininos.

A partir das profissões indicadas é possível apreender a procedência social dos

indivíduos que se abrigaram na cidade. Por questões metodológicas, as profissões

identificadas foram agrupadas em categorias socioprofissionais (Quadro VI)44

.

Quadro VI

Repartição por grupos socioprofissionais dos espanhóis a quem foram concedidos

vistos de permanência (1935-1936)

Homens Mulheres

Profissões Liberais 22.5 1.1

Professores / Estudantes 21.1 1.1

Domésticas 75.7

43

Irene VAQUINHAS, “Alô! Alô! Bairro Novo” – A Figueira da Foz sob o impacto das

guerras

(1936-1945) (texto em publicação). 44

A listagem das profissões consta de Anexo.

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Funcionários 9.86

Proprietários 2.82 0.55

Comerciantes e industriais 12.7

Profissões oficinais 5.63 0.55

Agricultores 1.41

Serventes e criados 9.86 20.4

Sem identificação 14.1 0.55

Fonte: AHFF, Vistos de Estrangeiros (1935-1936).

Quanto à origem social dos elementos masculinos, as profissões elencadas

enquadram-se na classe média ou média alta, destacando-se profissionais liberais

(médicos, advogados, juízes...), com 22.5%, bem como docentes e estudantes

(21,1%), a que se segue, também com alguma representatividade numérica (12,7%)

comerciantes e industriais, entre outras profissões referidas. Do lado feminino, a

maior parte das mulheres identifica-se como doméstica (75,7%), uma qualificação

transversal a toda a sociedade, independentemente da situação económica, não sendo,

por conseguinte, esclarecedora. A quota parte de criados e serventes também é

relativamente elevada (20,4% e 9,86% respectivamente de mulheres e de homens). A

importância numérica de grupos sociais tanto de topo como de base inferior,

sugerindo desigualdade social e económica, parece demonstrar, como atrás se indicou,

a transferência para a cidade de agregados domésticos, acompanhados dos respectivos

serviçais.

Quanto aos motivos da fuga, é difícil saber se decorreu da destabilização e da

violência provocada pelo conflito ou se resultou de perseguições políticas, entre os

quais o massacre de Badajoz, ocorrido em Agosto de 1936, em consequência da

repressão exercida pelas forças franquistas sobre civis e militares defensores da 2ª

República45

. Embora os dados não permitam conclusões seguras, nos Vistos em que

se referem as naturalidades dos solicitantes, predominam as províncias de

Extremadura e Castela e Leão, mais precisamente as localidades de Badajoz, Caceres,

Valencia de Alcantara, Orense, Salamanca e Zamora (em particular Morales del

Vino), respectivamente. Contudo, como bem assinala António Pedro Vicente, “em

45

António Pedro VICENTE, “O cerco à embaixada da República Espanhola em Lisboa (Maio

a Outubro de 1936)”, Portugal e a Guerra Civil de Espanha. Colóquio Internacional (1998),

Lisboa, Edições Colibri – Instituto de História Contemporânea da FCSH da UNL, 2011, p.

15-17.

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15

Portugal |se refugiaram| grande número de espanhóis de ambos os bandos”46

,

afirmação comprovada por vários documentos. A título exemplificativo, refira-se o

pedido de exílio no nosso país solicitado por D. Ramona Menendez de Luarca, viúva

de Collantes, para si e sua família, por terem sido expulsas “pelos vermelhos” da sua

casa de “Trubia”, nas Astúrias47

.

O confronto da lista nominativa dos vistos com a documentação dos serviços

centrais da PIDE permitiu detectar três casos (2 homens e 1 mulher) associados a

forças de esquerda, embora a documentação não identifique as ideologias professadas,

e que o regime político estadonovista expulsará de Portugal. É o caso do

comissionista José Herrera Borrego (1881-?), do advogado Pedro Gutierrez Lopez

(1901-?) e da procuradora Mercedes Gutierrez Clemente (1875-?)48

. O primeiro foi

feito prisioneiro pela inspecção de Coimbra, em 26 de Janeiro de 1937, tendo dado

entrada nos calabouços da Polícia de Segurança Pública daquela cidade, onde se

manteve até ter sido expulso do país, pela fronteira de Vilar Formoso, dois meses

depois, a 30 de Março49

. Quanto ao advogado Pedro Gutierrez Lopez, será preso para

averiguações em Coimbra, em 7 de Julho de 1937, colocado em regime de

incomunicabilidade e expulso do país, por via marítima, em 12 de Agosto do

supracitado ano. À data da prisão ambos residiam na Figueira da Foz (Rua da

República e Travessa do Circo, respectivamente)50

, embora as moradas que constam

no seu processo da PIDE não corresponda à dos Vistos. Quanto à procuradora

Mercedes Gutierrez Clemente foi presa em 11 de Julho de 1937, pela Delegação do

Porto da PVDE, no Grande Hotel de Espinho, onde então residia. Foi conduzida para

Coimbra, colocada em regime de incomunicabilidade e expulsa do país pelo porto de

Lisboa em 12 de Agosto do mesmo ano51

. A documentação dos Vistos permite ainda

verificar que, nos casos referidos, a morada indicada é partilhada por outras pessoas, o

que sugere a sua deslocação para a Figueira com o agregado familiar.

Da lista dos vistos consta também o deputado Luiz Bardají López (1880-

1942), advogado, político, membro do Partido Republicano Radical, tendo sido

46

António Pedro VICENTE, art. cit., p. 11. 47

No pedido formulado, solicitam “embarca-las para porto de França ou de Portugal” (ANTT,

Arquivo Salazar, Ne-91, Cx 372, pt 1). 48

ANTT, PIDE, Serviços Centrais, Registo Geral de Presos: liv. 30, registo nº 5920; liv. 37,

registo nº 7374; liv. 38, registo nº 7440. 49

ANTT, PIDE, Serviços Centrais, Registo Geral de Presos: liv. 30, registo nº 5920. 50

ANTT, PIDE, Serviços Centrais, Registo Geral de Presos: liv. 37, registo nº 7374. 51

ANTT, PIDE, Serviços Centrais, Registo Geral de Presos: liv. 38, registo nº 7440.

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ministro da Instrução Pública e Belas Artes durante a 2ª República espanhola (de 29

de Outubro a 14 de Dezembro de 1935)52

. Natural de Terragona, residia na cidade de

Badajoz. Foi na “su querida localidade lusa de Figueira da Foz” que a Guerra Civil o

surpreendeu53

. Residia, então, na Rua Cândido dos Reis. Da lista de vistos constam

outras pessoas com idêntico apelido (familiares?) mas em outra morada. Desta

individualidade nada consta nos ficheiros da PIDE54

.

A consulta de arquivos em Espanha, em particular o Centro Documental de la

Memoria Historica, em Salamanca, poderá esclarecer o destino destes refugiados e

saber se a extradição terminou em julgamento e/ou fuzilamento pelo regime

franquista55

.

No período de Maio a Outubro de 1936, Claudio Sánchez-Albornoz foi

embaixador de Espanha em Portugal, tendo-se esforçado por evitar “a entrega de

refugiados na fronteira por parte da PVDE, para que seguidamente pudessem partir

para França ou serem repatriados para as zonas republicanas”56

. Porém, a captura dos

referidos refugiados figueirense fez-se em período posterior aquelas balizas

temporais. Já em outros pontos do país, como demonstra alguma documentação

disponível no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, realizaram-se “batidas” para

capturar «comunistas» e «vermelhos» que se encontravam escondidos em “lugarejos

mais distantes”, seja “nas furnas, em plena montanha” de Castro Laboreiro, concelho

de Melgaço, ou junto à fronteira, em Barrancos, vila do distrito de Beja, entre outras

localidades57

.

A passagem da fronteira no ano de 1936 representa, para algumas centenas de

espanhóis, um meio temporário de se colocarem ao abrigo dos acontecimentos

militares do seu país, independentemente da sua posição política. Poucos irão

permanecer na cidade da Figueira da Foz, nos anos imediatamente a seguir, como o

parece indicar os Registos de Estrangeiros (Quadro VII).

52

- http://es.wikipedia.org/wiki/Luis_Bardaj%C3%AD_López (10-09-2013; 15.04). 53

Antonio BARDAJÍ LÓPEZ, “Luis Bardají López (1880-1942)”. In Abogados del Estado.

Revista de la Associación, Año 2, nº 6, Julio-Septiembre 2004, p. 23 (http://www.asoc-

abogadosdelestado.es/pdfs/revista_7.pdf. Acedido: 28-02-2016; 17.31). 54

Em outros pontos do país realizaram-se batidas para captura de “comunistas” e

“vermelhos”, como ocorreu em Castro Laboreiro e Melgaço (ANTT, Ministério do Interior,

Gabinete do Ministro, Mç 481 (pt 8/3). 55

Foram solicitadas informações a este arquivo mas, até à data, não foram enviados quaisquer

dados. 56

António Pedro VICENTE, art. cit., p. 15. 57

ANTT, Ministério do Interior, Gabinete do Ministro, Mç 461 (pt. 8/3); Arquivo Salazar NE

91, Cx. 372, pt. 1.

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Quadro VII

Nº de estrangeiros na Figueira da Foz (1935-1938)

Anos Nº

1935 86

1936 262

1937 77

1938 78

Fonte: AHFF, Vistos de Estrangeiros (1935-1936); Registo de Estrangeiros residentes

no concelho da Figueira da Foz (1937-1938).

Nos anos de 1937 e 1938, de entre os estrangeiros residentes na cidade e/ou no

concelho, os naturais de Espanha mantinham-se como grupo dominante (33.3%)58

,

sendo as restantes nacionalidades constituídas por franceses (21,2%), brasileiros

(18,6%) e belgas (7,69%), muitos deles trabalhando em empresas da região, como a

fábrica de vidros da Fontela (Vila Verde) ou em sondagens para a construção de

infraestruturas materiais, como pontes (caso das pontes de Maiorca). Já quanto aos

brasileiros, são sobretudo estudantes, provavelmente luso-descendentes (Quadro

VIII).

Quadro VIII

Estrangeiros na Figueira da Foz, por ordem decrescente do seu número

(1937-1938)

Países SM SF

TOT

AL %

Espanha 24 28 52 33.3

França 20 13 33 21.2

Brasil 23 6 29 18.6

Bélgica 6 6 12 7.69

Alemanha 2 4 6 3.85

Suíssa 4 1 5 3.21

Polónia 4 4

2.56

Portugal 4 4 2.56

Argentina 2 1 3 1.92

Luso-

Americano 1 1 2 1.28

58

Ao tempo da 2ª Grande Guerra, nos anos 1940, a análise de alguns “vistos de autorização

de residência de estrangeiros”, que, por circunstâncias desconhecidas, permaneceram na

documentação camarária, continua a confirmar a presença dominante dos espanhóis entre os

estrangeiros residentes na cidade. Refira-se que, ao tempo, os vistos já não eram passados

pelas instituições municipais. Sobre o assunto, vd., Irene VAQUINHAS, “Alô! Alô! Bairro

Novo....

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Checoslováqui

a 1 1 0.64

China 1 1 0.64

Colômbia 1 1 0.64

Cuba 1 1 0.64

Itália 1 1 0.64

Suécia 1 1 0.64

Total 86 70 156 100

Fonte: AHFF, Registo de Estrangeiros residentes no concelho da Figueira da Foz

(1937-1938)

Justificava também a passagem de estrangeiros pela cidade, a existência de

várias casas de espetáculos, sendo frequente, pelo menos durante a época balnear,

digressões de artistas, a título individual ou enquadrados em companhias

profissionais.

O papel da imprensa local e da autarquia no apoio aos “nacionalistas”

espanhóis

O evoluir da situação política em Espanha é acompanhado com apreensão pela

imprensa local, não obstante a publicação de notícias estar sujeita ao controlo prévio

da censura. Embora se lamente “com tristeza e piedade a chacina cruel de irmãos

contra irmãos – fogueira fratricida alimentada com achas de estranhas gentes, que vão

alimentando o fogo |...|”59

, jornais da localidade, em especial O Figueirense,

expressam solidariedade para com as tropas nacionalistas, cujos sucessos militares

vão sendo mencionados, aludindo-se também a iniciativas realizadas na própria

cidade da Figueira da Foz em seu apoio.

Antes de deflagrar o conflito, é dado destaque ao assassinato de José Calvo

Sotelo (1893-1936), líder político da Renovacion Española, cuja morte iria precipitar

o rumo dos acontecimentos60

. Sob o título “O terrorismo em Espanha”, a “anarquia do

país vizinho” é comparada à instabilidade política e social da I República, “quando os

governos eram fracos e os desordeiros audaciosos”, o que justifica implicitamente a

restauração da ordem pela ditadura militar. Na imprensa manifesta-se “repulsa por tão

59

O Figueirense, de 1 de Janeiro de 1938. 60

O Figueirense, de 16 e 19 de Julho de 1936.

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brutal atentado” e anuncia-se a realização na Figueira de uma missa “por alma do

extinto” mandada rezar pela colónia espanhola aí temporariamente residente61

.

Gravura nº I

Foto da missa mandada rezar por alma de Calvo Sotelo (igreja matriz da

Figueira da Foz), pela “colónia espanhola” temporariamente residente na Figueira da

Foz (Julho de 1936)

Fonte: Arquivo Fotográfico Municipal da Figueira da Foz

Sob o repto de que “|temos| o dever de lhes suavizar as agruras da hora

presente”62

, a sociedade civil é instada, pela imprensa periódica local, a mobilizar-se

no sentido de apoiar as forças nacionalistas espanholas. No mês imediato ao deflagrar

da Guerra Civil, a 30 de Agosto de 1936, realiza-se, no Grande Casino Peninsular da

Figueira da Foz, uma “festa de caridade”, intitulada “Noite da Beneficência

Espanhola”63

, destinada a angariar verbas em favor das vítimas do conflito armado.

Trata-se de uma iniciativa que vem na linha de continuidade de outras semelhantes

em homenagem da colónia espanhola em período estival. O “intervencionismo ativo”

da empresa é claro ao manifestar “a sua solidariedade com aqueles que em Espanha

combatem o comunismo e evitam que ele salte a nossa fronteira |…|”, como se

explicita na documentação. Festas de idêntico teor se realizam em outros círculos

recreativos da cidade.

Todavia, a Guerra civil, ao reduzir o aluxo de veraneantes espanhóis durante a

época balnear vai obrigar a reconverter a orgânica dos espetáculos de algumas casas

de recreio da cidade, como é o caso do Grande Casino Peninsular. Desde finais do

século XIX que o dia 15 de Agosto era consagrado a uma festa dedicada à colónia

espanhola. A partir do ano de 1939, essa tradicional festa deixa de integrar a

programação do “Peninsular”, passando a ser substituída pela “Festa à Portuguesa”,

mais adequada à campanha de “reaportuguesamento de Portugal”, defendida pelo

regime político. Aliás, Oliveira Salazar dera a deixa para essa campanha, bem

explorada por António Ferro, ao afirmar que “este esforço é homenagem ao espírito

61

O Figueirense, de 19 de Julho de 1936. No Arquivo Fotográfico Municipal da Figueira da

Foz encontram-se algumas fotografias da missa realizada, na igreja matriz da Figueira da Foz,

por alma de Calvo Sotelo (AFMFF, Casa Havanesa, Caixa 35, Álbum 31-07-1936 a 15-10-

1939). 62

O Figueirense, 18 de Março de 1937. 63

O Figueirense, 29 e 30 de Agosto de 1936; Irene VAQUINHAS, ob. cit., p. 412-414.

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criador da raça lusitana e ao seu poder de iniciativa |...|”64

. Não desaparecerão,

contudo, as festas com as artistas espanholas, as quais constituíam uma atração

tradicional do casino.

A guerra civil tem também impacto na cidade. Constitui-se, com a

colaboração da autarquia, uma “comissão de auxílio ao exército nacionalista

espanhol” e que tinha como objetivo angariar contributos. Em Março de 1937 é

enviado para Espanha “um comboio de auxílio”, com donativos em dinheiro e em

géneros (feijão, milho, vinho, roupas), oferecidos pela população do concelho da

Figueira da Foz, em particular pelas freguesias rurais65

. A listagem de doadores e dos

respetivos donativos é publicada na imprensa, permitindo captar a importância central

dos professores primários nessa mobilização, cativando os alunos e respetivas

famílias para as ofertas. De igual forma, a imprensa publica o agradecimento feito

pelo General Francisco Franco, no qual afirma o seguinte: “Me comunica el Sr.

Comandante Militar de Cáceres la entrega que, en nombre de la Comissión de Auxilio

al Ejército Nacionalista de España, le hizo Vd. Juntamente con otros vocales de dicha

comissión, de un esplêndido donativo de medicamentos, ropas y comestibles |...| mi

sentido agradecimento por esta prueba de adhesión que nos dan nuestros hermanos

portugueses de Figueira da Foz |...|”66

.

A assinatura do tratado de Amizade e Não Agressão com Espanha, entre

Espanha e Portugal, a 17 de Março de 1939, bem como a vitória das forças chefiadas

pelo General Franco, a 1 de Abril de 1939, seriam saudadas com muito entusiasmo

pela autarquia figueirense. No telegrama de felicitações enviado ao Embaixador de

Espanha, em Lisboa, afirmava-se que “conta a Figueira da Foz numerosos bons

amigos em toda a Espanha |...|”, pelo que a autarquia se congratulava com a vitória,

“traduzindo assim o contentamento e a simpatia desta cidade”67

.

Seguir-se-iam, de imediato, acções de propaganda, promovidas sobretudo

pelas instâncias oficiais com a Comissão Municipal de Turismo à cabeça, destinadas

64

Paulo PINA, Portugal. O Turismo no século XX, Lisboa, Lucidus Publicações Lda., 1988,

p. 151. 65

O Figueirense, 18 de Março de 1937. 66

O Figueirense, 5 de Março de 1937. 67

A.H.F.F., Livro de Actas da Câmara Municipal do Concelho da Figueira da Foz, sessão

ordinária de 22 de Março (fl. 79v-80) e de 29 de Março (fl. 86) de 1939. No ano seguinte, em

1940, aquele tratado seria reforçado por um protocolo adicional, no qual se mencionava “a

paz dos povos” e se condenava “a Guerra como instrumento de expansão e de conquista” (O

Figueirense, 14 de Agosto de 1940).

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a cativar o tradicional veraneante espanhol. Com essa finalidade, foi oficiado o

governo de Espanha, através da embaixada em Lisboa, no sentido de ser permitida “a

saída dos espanhóis que desejem vir às praias portuguesas retemperar a saúde, e

também facilidades necessárias de dinheiro e documentação”. Seria também

convidado “a vir passar um mês à Figueira como seu hóspede”, o escritor teatral,

Joaquín Alvarez Quintero (1873-1944), em reconhecimento dos rasgados elogios que

fizera à praia68

. Nos anos quarenta, algumas das suas peças, entre as quais “Génio

Alegre”, escrita em parceria com o seu irmão Serafín, são muito representadas por

grupos cénicos de coletividades locais.

A completar o esforço da autarquia, eram publicados, na imprensa local,

relatos memorialistas de cidadãos espanhóis sobre os “Veranos de Figueira” ou sobre

“Las noches del Casino Peninsular”69

, com o objetivo de “reconquistar” os turistas do

país vizinho. Entre outros testemunhos que se poderiam citar, refira-se o caso de

Maria del Pilar Goenaga que afirmaria, num pequeno depoimento, que “las noches

del casino del Casino Peninsular, con sus fiestas maravillosas con ese gusto refinado

de sarao, acudia toda la colonia española sabiendo demonstrar con su presencia el

homenage de gratitude por los bailes que en su honor eran dado”70

.

A posição assumida pelo município figueirense de apoio manifesto às forças

nacionalistas espanholas é claramente estratégica, tendo o objetivo de cativar o seu

tradicional veraneante, sendo mais efusiva do que a própria posição oficial do Estado

português relativamente a Espanha. Porém, numa localidade com fortes tradições

liberais e republicanas, como é o caso da Figueira da Foz, não é possível, com base

na documentação oficial consultada, esclarecer devidamente se a cidade serviu de

refúgio temporário para resistentes espanhóis da Frente Popular, como sugere a

ficção literária de Jorge de Sena. A ser assim, os órgãos do poder local limitavam-se

a manter as aparências junto das instâncias políticas oficiais.

Conclusão

O escritor Jorge de Sena situa a trama do seu romance Sinais de Fogo na

Figueira da Foz, durante o período da guerra civil espanhola. No seu livro, evoca o

68

O Figueirense de 22 e 29 de Abril de 1939. 69

O Figueirense de 28 de Agosto de 1940. 70

O Figueirense, 28 de Agosto de 1940. Esta mesma autora se congratularia com algumas

ações levadas a cabo por Francisco Franco ou pela sua família no sentido da beneficência

(“Aguinaldo, Nochebuena del Soldado”, O Figueirense de 7 de Janeiro de 1939).

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ambiente da cidade, nesse período de convulsão no país vizinho, ao escrever que “As

ruas iluminadas fracamente, e vazias de gente, eram tristes”71

. O enredo do seu

romance inclui o acolhimento clandestino a republicanos, perseguidos politicamente,

e que, quando se encontravam, “levanta|vam| o braço e diz|iam| uns para os outros

“Arriba España”72

.

Com efeito, a cidade da Figueira da Foz converteu-se, no trágico Verão de

1936, em local de destino temporário de espanhóis, fugidos à Guerra Civil, embora

seja difícil, saber-se com rigor, se eram nacionalistas ou republicanos, não obstante

alguns casos inequívocos de pertença às forças republicanas. A vigilância apertada do

governo português sobre clandestinos e acções conspirativas conduzirá à sua entrega

na fronteira ou o seu encaminhamento para Espanha, por via marítima.

A cidade ressentiu-se profundamente do impacto da guerra civil espanhola.

Por motivos de índole política, mas, acima de tudo, económicos, ao perder o seu

tradicional cliente estival: o veraneante espanhol. A vida balnear “intensíssima” e que

lhe conferia cosmopolitismo ressentiu-se dessa perda, perdendo o estatuto de principal

atracção turística da região centro de Portugal, convertendo-se, cada vez mais, numa

“cidade-aldeia” como a qualificou Cristina Torres.

71

Jorge de SENA, ob. cit., p. 114. 72

Ob. cit., p. 106.

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