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Ipy’a pe ukwa katu te’e - Ele sabe por si mesmo. Uma etnografia do saber-fazer cotidiano e ritual na formação da pessoa Ka’apor

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Ipy’a pe ukwa katu te’e - Ele sabe por si mesmo.

Uma etnografia do saber-fazer cotidiano e ritual

na formação da pessoa Ka’apor

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Concepção do projeto gráfico de capa José Maria Mendes de Andrade Fotos: José Maria Mendes de Andrade Fotos dos Ka’apor inclusos na capa Acima da esquerda para a direita 1. Kunjã coando massa de mani’ok em urupẽ. 2. Xa’i dançando com herayr anga no Akaju re kwer em Paraku’y renda. 3. Kunjantãi torrando massa de mani’ok na chapa para feitura da u’i. Ao centro 4. Sawa’e tecendo Panakũ. 5. Sawa’e e Kunjã armando arapuca para aprisionar pássaros. 6. Sawa’e ensinando ta’yr a tecer Panakũ. Abaixo da esquerda para a direita 7. Kunjã assando pira. 8. Te’õ mexendo u’i em reservatório de madeira. 9. �u’i limpando chapa de torrar u’i. 10. Tawe cavando buraco para plantação de mani’ok. 11. Sawa’e girando o torno ou prensa de massa de mani’ok molhada. 12. Kurumĩ retirando hymbo da mani’ok. 13. Sawa’e sobre a prensa de massa de mani’ok. 14. Mi’i tecendo Panakũ.

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Universidade Federal do Pará

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Departamento de Antropologia

Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais

Área de Concentração: Antropologia

Ipy’a pe ukwa katu te’e – Ele sabe por si mesmo.

Uma etnografia do saber-fazer cotidiano e ritual na formação da pessoa Ka’apor

José Maria Mendes de Andrade

Belém – Pará

Novembro - 2009

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Ipy’a pe ukwa katu te’e – Ele sabe por si mesmo.

Uma etnografia do saber-fazer cotidiano e ritual na formação da pessoa Ka’apor

José Maria Mendes de Andrade

Dissertação apresentada ao Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Pará sob a orientação do Prof.º Dr. Flávio Leonel Abreu da Silveira, como requisito para a obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais – Área de Concentração Antropologia.

Belém - Pará

Novembro - 2009

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Dados Internacionais de Catalogação – na - Publicação (CIP) (Biblioteca de Pós-Graduação do IFCH/UFPA, Belém-PA)

Andrade, José Maria Mendes Ipy’a pe ukwa katu te’e - ele sabe por si mesmo: uma etnografia do saber-fazer cotidiano e ritual na formação da pessoa Ka’apor / José Maria Mendes de Andrade; orientador, Flávio Leonel Abreu da Silveira. - 2010 Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Pará, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Belém, 2010. 1. Índios da América do Sul. 2. Índios - Usos e costumes. 3. Índios - Socialização. 4. Índios - Identidade étnica. 5. Etnologia. I. Título.

CDD - 22. ed. 980.41

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Ipy’a pe ukwa katu te’e – Ele sabe por si mesmo.

Uma etnografia do saber-fazer cotidiano e ritual na formação da pessoa Ka’apor

José Maria Mendes de Andrade

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Pará sob a orientação do Prof.º Dr.º Flávio Leonel Abreu da Silveira, como requisito para a obtenção do título de mestre em Ciências Sociais – Área de Concentração: Antropologia.

Banca:

Prof.º Dr.º Flávio Leonel Abreu da Silveira (Orientador) _________________

Prof.ª Dr.ª Rosa Helena Dias da Silva (Examinadora) _________________

Prof.ª Dr.ª Maria Angélica Motta-Maués (Examinadora) _________________

Prof.º Dr.º Raymundo Heraldo Maués (Examinador Suplente) _________________

Belém - Pará

Novembro - 2009

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Ipy’a pe ukwa katu te’e – Ele sabe por si mesmo.

Uma etnografia do saber-fazer cotidiano e ritual na formação da pessoa Ka’apor

José Maria Mendes de Andrade

Resumo Em nossa sociedade, a origem dos saberes está geralmente associada a espaços institucionais, à existência da escola, sendo o conhecimento associado a ela. Um saber orientado por uma racionalidade centrada em um caráter científico e tecnológico de construção do saber, vinculado a uma razão estritamente instrumental. Associado a uma lógica que invalida outros processos, possibilidades que possam erigir os saberes, desconsiderando as relações e os sujeitos que os constroem com seus projetos societários. As sociedades indígenas apresentam formas de conceber, reconhecer os saberes e o ser que os produzem: saberes assentados em parâmetros epistemológicos fundamentados em suas cosmologias; situados numa ordem do sensível que transcende a razão meramente instrumental. Na passagem de minha trajetória pessoal visando a formação de antropólogo, realizei uma experiência etnográfica na perspectiva de compreender os princípios que determinam a concepção e/ou constituição da pessoa na sociedade Ka’apor. Orientado por etnografias da perspectiva das sociedades ameríndias acerca da natureza do ser nestas sociedades e fundamentado no ponto de vista Ka’apor sobre si e o mundo, realizei uma etnografia do saber-fazer cotidiano e ritual a partir das formas de sociação e de sociabilidade Ka’apor, reconhecendo-as como espaços legítimos e reveladores de marcadores simbólicos e sociais que constitui a pessoa nesta sociedade. Palavras-chave: etnografia – saber-fazer – cotidiano – ritual – pessoa – Ka’apor

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Sumário

Agradecimentos i

Abreviaturas iii

Índice de Mapas iv

Índice de Quadros iv

Índice de Imagens e Ilustrações v

Pe rupi awa ta, o caminho que percorri 7

I - Ko ramo ihẽ ke jumu’e watahar rehe, ele vai caminhando,

fazendo o caminho

Jande rehe Kamarar uhyk uwyr, como ele chegou até nós 13

Parana aha oho, ele atravessou o rio Gurupi 17

Pe rupi jahik ta jaho, por aí a gente chega lá 24

II – Ja sa katu ehe rym, pra entender é preciso conhecer

�gã uhem py rahã, quando eles apareceram pela primeira vez 37

Awa je’ēha, sobre a língua Ka’apor 39

Yman te, há muito tempo 44

Mukatu Pejot, no tempo do contato 47

Ka’apor ta heta, os Ka’apor são muitos 55

Ka’apor ta henda, o lugar dos Ka’apor 59

Jaxer, estamos em perigo 65

Jumu’eha renda, o lugar do estudo 66

III - Ipy’a pe ukwa katu te’e ixo, ele sabe por si mesmo

Hape, no caminho dele 75

Warahy ‘ar, o sol em cima 82

Mija ame’ẽ tekoha pe ta irer re muĩ ta my, é quando se dá nome na “aldeia” 95

Jumusarai ha jamujã ta, preparar a festa do “batizado” 96

Jumusarai ha arahã, no dia da festa 98

Jumusarai ha parahã, depois da festa 101

Ipy’a pe ukwa katu te’e ixo, ele sabe por si mesmo 102

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IV - A’e jumu’e Ka’apor wã tekoha pe, ele aprende a ser Ka’apor na

“aldeia”

Ihe re te ipo ke mu’e mujã há rehe, o corpo ensina a fazer 111

A’e jumu’e w eixo tĩ, ele está sempre aprendendo 114

A’e jumu’e Ka’apor wã tekoha pe, ele aprende a ser Ka’apor na “aldeia” 132

Awa jumu’e Kawĩ uha petym, a gente aprende também na festa do caju 141

Jumu’e ha Ka’apor namõ, o que ele aprendeu com Ka’apor 146

Glossário

Referências

1 - Obras de Referência

2 - Bibliografias Citada

3 - Material Áudio-visual

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Agradecimentos

À força que impulsionou e me amparou neste “ritual” de passagem acadêmico, me

concedendo saberes praticados para serem colocados a serviço da vida, Deus.

Aos meus pais, Nadir Cordeiro Mendes e José Torquato Mastop de Andrade, que com as suas

ciências, tiveram paciência e buscaram compreender o que esse momento representa para

minha formação humana e profissional.

Aos Ka’apor, que intermediaram e possibilitaram meu enriquecimento pessoal e profissional;

que com seus saberes e práticas me ensinaram a aprender a aprender; e o pelo diálogo nos

tornamos mais pessoa.

Aos amigos-missionários e missionárias do Cimi do Pará e Maranhão pelo incentivo, por

oportunizar momentos de aprendizado junto aos Ka’apor; pelo apoio logístico e; pelo

compartilhar nas atividades e lutas em defesa dos povos indígenas. Minha gratidão aos

“amigos da pastoral” dos municípios de Nova Olinda do Maranhão e Zé Doca, pelo apoio

incansável às atividades que se desdobraram em ações políticas para a melhoria das condições

de vida dos Ka’apor.

Aos camaradas e companheiras do movimento social, sobretudo, os movimentos sociais do

campo (Via Campesina Pará), pelo apoio logístico e pela mística militante de incentivo aos

momentos de desânimo no curso.

Aos amigos do Laboratório de Antropologia: Rosangela, Paulo Roberto, Marina, Marcelo

Rocha, Max, Rosana, Ana, pela amizade, auxílio e apoio no desenvolvimento para a

conclusão da dissertação.

Aos colegas da turma do mestrado (Ângela, Eliane, Ivana, Jonh, Keila, Ricardo e Socorro) e

do doutorado (Ariadne, Luciene, Márcia e Vanda) pelos diálogos e ensinamentos no exercício

das disciplinas e desenvolvimento da dissertação.

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Aos colegas do Mestrado em Direitos Humanos: Almires Guarani, pelas palavras e atitudes

sábias acerca do ser indígena, durante os estudos e incursões nas aldeias dos parentes;

Wladirson Rony, pelos ricos diálogos e ensinamentos no fazer antropologia filosófica; e

Rosane Kaigang, pelos diálogos pertinentes acerca da educação indígena.

Ao amigo-mestre, Gilmar Matta, pela amizade durante esses anos de estudo e diálogos

etnológicos no sentido de compartilhar sonhos e ideais em um fazer Antropologia

comprometida com os povos indígenas.

Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS),

especialmente, aos professores do Laboratório de Antropologia que, no decorrer do curso

compartilharam conhecimentos e experiências acerca da formação antropológica.

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), por ter

concedido bolsa de pesquisa no ano de 2008, no sentido de ajudar nas despesas com

deslocamento ao campo de pesquisa.

A Profa. Jane Beltrão, pela co-orientação e por esses anos de incentivo aos estudos na área da

Etnologia e formação de antropólogo, continuidade dos estudos no mestrado, e apoio logístico

na pesquisa de campo pela ocasião da ausência da bolsa de pesquisa.

Ao Prof. Flávio Leonel Abreu da Silveira, pelo aceite, compreensão e compromisso na

orientação em meio às circunstâncias e dificuldades encontradas para o exercício nesta

função; pelo incentivo e motivação durante os momentos de desânimo e; atenção até a reta

final para a conclusão deste trabalho.

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Abreviaturas

AIS Agente Indígena de Saúde

AISAN Agente Indígena de Saneamento

APIKRG Associação do Povo Indígena Kaapor do Rio Gurupi

CASAI Casa de Saúde Indígena

CESE Coordenadoria Ecumênica de Serviços

CEB Câmara de Educação Básica

CNE Conselho Nacional de Educação

CIMI Conselho Indigenista Missionário

FUNAI Fundação Nacional do Índio

FUNASA Fundação Nacional de Saúde

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

ISA Instituto Socioambiental

LALI Laboratório de Línguas Indígenas

LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educação

MINC Ministério da Cultura

MPEG Museu Paraense Emílio Goeldi

SECULT Secretaria Estadual de Cultura

SEDUC Secretaria Estadual de Educação

SEMEC Secretaria Municipal de Educação

SIL Sociedade Internacional de Lingüística

SPI Serviço de Proteção ao Índio

UnB Universidade de Brasília

iii

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Índice de Mapas

1. Mapa da área Ka’apor e do Rio Gurupi em 1949 p. 49

2. Mapa de localização de Grupos Locais por Etnias p. 62

Índice de Quadros

1. População atual por Etnias na Terra Indígena Alto Turiaçu p. 56

2. População atual Ka’apor na Terra Indígena Alto Turiaçu p. 57

3. Área da Terra Indígena nos municípios da região do Gurupi p. 63

4. Categorias de idade Ka’apor por fontes históricas e etnográficas p. 83

5. Cultura Material Ka’apor de uso pessoal, doméstico e ritual p. 137/138

6. Cultura material confeccionada por pais e filhos para uso ritual p.142

iv

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Índice de Imagens e Ilustrações

1. Imagem de canoas às margens do Rio Turiaçu, “Aldeia” Bacurizeiro p. 06

2. Imagem de Sawa’e (homem) e Ta’yr (filho dele) a caminhar em trilha na mata

para caçar e coletar frutos

p. 11

3. Imagem do Rio Gurupi no período de inverno, direção nascente – foz p. 17

4. Imagem de entrada da “Aldeia” Capitão Mira p. 23

5. Imagem de área central e Casa de Rituais, “Aldeia” Xie pihu renda p. 35

6. Imagem do Rio Gurupi no trecho da travessia Pará-Maranhão (Paragominas) p. 60

7. Imagem da casa na “Aldeia” Capitão Mira p. 66

8. Imagem da casa na “Aldeia” Xié pihu renda p. 66

9. Imagem do Posto de Saúde da “Aldeia” Xié pihu renda p. 68

10. Imagem da Casa do forno da “Aldeia” Capitão Mira p. 68

11. Imagem de Tamũi (velho) Ka’apor da “Aldeia” Piquizeiro p. 72

12. Imagem de Ta’yn (meninos e meninas entre 02 a 03 anos); Kurumĩ ra’yr

(menino por volta dos 08 anos) e Kunjantãi ra’yr (menina por volta dos 08 anos)

das “Aldeias” Xié pihu renda e Ximbo renda

p. 86

13. Imagem de Kurumĩ (menino de 12 anos) da “Aldeia” Capitão Mira e

Kunjantãi (menina de aproximadamente 12 ou 13 anos) da “Aldeia” Ximbo renda

p. 87

14. Imagem de Ta’yn nuhu (menino-rapaz) da “Aldeia” Capitão Mira p. 88

15. Imagem de jai ramõ te (menina-moça entre 13 e 15 anos) da “Aldeia”

Piquizeiro

p. 89

16. Imagem de sawa’e (homem adulto) das “Aldeias” Piquizeiro e Xié pihu

renda e kunjã (mulheres adultas, mães) das “Aldeias” Ximbo renda e Xié pihu

renda

p. 90

17. Imagem de tamũi (homem idoso) da “Aldeia” Capitão Mira e A’i ( mulher

idosa) da “Aldeia” Piquizeiro

p. 91

18. Imagem de ipái anga (tio materno) segurando o herayr anga (menino que

receberá nome) no Akaju rekwer (festa do caju) na “Aldeia” Paraku’y renda

p. 93

19. Imagem de Kunjã (mulher) da “Aldeia” Mirawy renda peneirando massa de

mandioca; Sawa’e (homem) da “Aldeia” Xié pihu renda mexendo a farinha

torrada; Sawa’e da “Aldeia” Xié pihu renda na prensa de massa de mandioca;

Kunjã da “Aldeia” Xié pihu renda peneirando massa de mandioca; Sawa’e da

v

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“Aldeia” Mirawy renda na prensa de massa de mandioca e Jai ramõ te (menina-

moça) da “Aldeia” Xié pihu renda torrando massa de mandioca na chapa

p. 103

20. Imagem de família da “Aldeia” Capitão Mira armando arapucas p. 108

21. Imagem de família da “Aldeia” Capitão Mira em pescaria e caçadas ás

margens do Rio Hola.

p. 117

22. Imagem de Ka’apor na “Aldeia” Capitão Mira se deslocando na mata ao

encontro de sawa’e atingido por uma badogue

p. 118

23. Imagem de Ka’apor da “Aldeia” Capitão Mira em acampamento montado na

mata, às margens do Rio Hola, por ocasião de uma pescaria e caçada

p. 119

24. Imagem de área de mata derrubada para a feitura da kupixa (roça) na

“Aldeia” Xié pihu renda

p. 120

25. Ilustração sobre a organização da área de kupixa na “Aldeia” Xié pihu renda p. 121

26. Imagem de área derrubada na “Aldeia” Xiépihurenda, na fase da limpeza para

a feitura do Kupixa

p. 121

27. Imagem de famílias na “Aldeia” Xié pihu renda realizando a seleção, corte e

organização dos feixes de mani’ok (mandioca) a serem plantadas em área

demarcada

p. 122

28. Imagem de Ta’yn nuhu realizando plantação de mani’ok e ilustração de

processo de plantação da mani’ok

p. 123

29. Ilustração sobre organização da plantação de mani’ok, feixes de mani’ok por

linha

p. 124

30. Imagem de sawa’e tecendo a cobertura da ok (casa) com palmeira de owi

(ubim) e imagem de sawa’e e ta’yr a caminhar em trilha na mata para caçar e

coletar frutos

p. 125

31. Imagem de kunjã da “Aldeia” Xié pihu renda cortando mani’ok; Jai ramõ te

(menina-moça) da “Aldeia” Xié pihu renda torrando massa de mandioca na

chapa; Imãi (mãe dele) e Imembyr (filho dela) da “Aldeia” Xié pihu renda

coletando sementes na mata e Kunjã da “Aldeia” Ximbo renda assando pira

(peixe)

p. 126

32. Imagem de família da “Aldeia” Ximbo renda construindo sua ok e Ka’apor da

“Aldeia” Capitão Mira realizando o preparo de pira às margens do Rio Hola

p. 127

33. Imagem de ok da “Aldeia” Capitão Mira p. 143

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Pe rupi awa ta

o caminho que percorri

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A experiência que estou a enfrentar pode ser boa ou má, o que importa é mais uma vez o aprendizado que vou tirar. Alguém apareceu e convidou, fez o convite e esperou. Era uma missão! Diferente daquelas que se costuma pensar. Era aldeia, era índio, era Tembé do Guamá. Na expectativa de estudar, para a escolaridade avançar. Eu pensei, inseguro fiquei. Tardei, tardei, nenhuma resposta evoquei. O tempo urgia, e uma resposta aguardaria. De inseguro, fui entendendo que a experiência poderia ser madura. Maduro, seria dizer sem medo: eu assumo, eu vou, eu estou. O medo desanimou, a coragem contaminou. Eu fui! Ânsia, expectativas, novidades, curiosidades. Mas, tudo parecia que já havia vivido, sentido, aprendido nos sítios de meu avô, lá nas Pedras, muito tempo já passou. Era um lugar, também às margens do Rio Guamá. Irituia se chamava o município, o lugar. Tinha rio, beira, caminho, capoeira, mata, passarinho. Tinha igarapé, caça, fruta, comida e até xibé. Chegava, saía, andava, brincava, pescava, e as conversas do avô escutava. Tinha manhã, meio-dia, sol quente, tarde chovia. Lembro sempre daquele tempo, daquele lugar, experiências que estou sempre a lembrar. E quando penso, vou e estou na aldeia, a acampar, lembro sempre do tempo, do momento, de meu avô, daquele lugar. Todo tempo estou a aprender, as experiências renovar. Quero mais caminhos trilhar. Não importa a distância, as dificuldades, eu quero sempre experiências conquistar. Ser um aprendiz permanente, e nunca desanimar (Escritos sobre Aprendiz de Antropólogo1, Diário de Campo, 23 de maio de 2001).

É com as palavras que retratam impressões e sentimentos acerca de minha iniciação na

longa trajetória de aprendiz de antropólogo que apresento a seguir, Pe rupi awa ta (os

caminhos que percorri) nesta etnografia. Para início deste estudo, apresento as etapas, meu

trajeto etnográfico a partir de diferentes lugares e experiências pedagógicas que percorri,

vivenciei a propósito deste estudo.

Entendo a etnografia como fazer antropológico traduzido em práticas, procedimentos,

posturas e sentimentos acerca de realidades de diálogos interculturais possíveis de serem

compreendidos mediante alguns instrumentais capazes de revelar realidades socioculturais de

um determinado grupo social. A etnografia dá ênfase à compreensão da natureza de

fenômenos particulares; interpretando ou reinterpretando os possíveis significados e práticas

sociais atribuídos por diferentes grupos sociais construídos a partir da cultura estudada.

Nesse sentido, procurei a partir das possibilidades encontradas na interlocução com os

Ka’apor, realizar procedimentos metodológicos relativos à perspectiva etnográfica. Sendo

assim, no primeiro capítulo, apresento os princípios teórico-metodológicos que orientaram

meu estar lá e o fazer etnografia na interlocução com o povo Ka’apor em diferentes lugares

de seu território, implicando em relações orientadas por diálogos, trocas e reciprocidades

permanentes.

Em seguida, apresento as circunstâncias, possibilidades e percalços de minha trajetória

pessoal, profissional e acadêmica até minha chegada, ou meu ritual de iniciação ao tema de

1 Notas registradas nos Escritos sobre Aprendiz de avanço Antropólogo no Diário de Campo por ocasião de minha presença enquanto docente no Projeto de Apoio ao da escolaridade de jovens indígenas Tembé Tenetehara, na Reserva Indígena Alto Rio Guamá no período de março a junho de 2001.

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estudo e diálogos estabelecidos junto às sociedades indígenas no Pará e no Maranhão.

Aproximação intermediada pelas relações interétnicas (Tembé-Ka’apor) entre grupos

historicamente reconhecidos na região do Gurupi, independente de fronteiras geográficas

estabelecidas pela sociedade não indígena.

Vale ressaltar, que o Rio Gurupi tem sido utilizado nestas duas últimas décadas como

uma via de acesso que possibilita a apropriação indevida do patrimônio cultural desses povos,

a exemplo do que tem ocorrido na região com a exploração irregular e ilegal de recursos

naturais desses territórios indígenas (desflorestamento de suas áreas) por frentes de expansão

madeireira, muitas vezes, subsidiadas por Agências Públicas de Financiamentos (entendam-se

bancos). Por outro lado, mesmo com essas ameaças, as sociedades indígenas da região têm

criado e utilizado estratégias a partir de formas próprias de manutenção de suas travessias e

deslocamentos simbólicos em relação aos não-índios, que são significativos para a garantia

das relações interétnicas e culturais.

Essas realidades me conduziram ao Território do Alto Turiaçu, quando fui acionado

por lideranças, inserido em ações para intermediar (orientações e apoio) demandas de grupos

locais para a garantia de atenção à saúde e saneamento na região. Haja vista, ser notório

visualizar um quadro de ausência de políticas sociais para esses grupos.

Contudo, essa inserção foi motivando reflexões, preocupações e interesses no sentido

de transformar minha experiência cotidiana com os Ka’apor em estudo antropológico. Com

isso, meus diálogos permanentes foram se transformando em interlocuções possíveis de serem

compreendidas e analisadas a partir de um referencial acadêmico. Práticas, procedimentos que

me conduziram a diálogos teóricos, análises e interpretações sobre as interpretações Ka’apor

acerca de si mesmos, de sua realidade, de seu mundo.

Todavia, é motivado pela perspectiva de obter um conhecimento mais denso da

realidade e dos sujeitos dessa interlocução, que apresento no capítulo segundo os diferentes

aspectos da realidade que entendo representar a dinâmica cultural do grupo, construída

historicamente junto a outras sociedades indígenas de tradição Tupi-Guarani na Amazônia,

especificamente, na região entre o Pará e Maranhão. Por essa tradição, possuem e

compartilham identidades, trajetórias, histórias e projetos comuns com outras sociedades

indígenas.

Aproximadamente há um século os Ka’apor mantém relações com os regionais,

apresentando aspectos que configuram como viveram nos tempos dos primeiros contatos

quando surgem as frentes de “pacificação” na tentativa de “integrá-los”. Por outro lado, vão

assimilando valores, elementos da sociedade não indígena na medida em que interagem com

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grupos regionais. Assim, o lugar, as relações, os momentos, as identidades vão sendo re-

elaborados, reconstruídas nessas relações sociais, nos lugares que vão se fixando até o

território atual.

E esses inúmeros deslocamentos até o território atual constituíram-se em experiências

acumuladas ao longo do tempo em função de situações de contato2, sejam as resultantes das

relações dos grupos étnicos entre si, sejam as oriundas das relações desses grupos com a

sociedade nacional. Ora marcados por momentos de conflitos, ora por complementaridades

culturais. Relações que vão caracterizar as formas de sociabilidade nos diferentes processos

sociais que configuram a cultura desta sociedade indígena.

Entre os povos indígenas, pode-se dizer também, que o modelo de sociabilidade está

fundamentado em diferentes aspectos da vida do grupo. Decerto que há uma correspondência

entre esses diferentes aspectos, podendo ser os associados à natureza, ou aqueles vinculados à

cultura.

Logo, a contextualização histórico-social da sociedade Ka’apor, foi uma das formas

que encontrei para apresentar as multifaces culturais de reconhecimento desta sociedade, que,

posteriormente, se tornaram elementos primordiais para compreender o ser Ka’apor a partir

de parâmetros e lógicas próprias construídas pelo grupo que traduzem a natureza da pessoa

nesta sociedade. Realidades que reflito e desenvolvo etnograficamente no terceiro capítulo.

Etnografias fundamentadas em sociabilidades, construídas a partir de perspectivas de

sociedades ameríndias sobre si e sobre o outro e, cosmologias, que orientaram minhas análises

acerca do ser Ka’apor.

Porquanto, somente a partir da compreensão do ponto de vista Ka’apor e de

diferentes aspectos da vida do grupo é que foi possível identificar os marcadores sociais que

emergem indicando a noção de pessoa, que constituem o ser nesta sociedade. Entre eles estão

as categorias ou classes de idade, ritos de nominação e os princípios que orientam a noção de

saber a partir da corporeidade.

Porém, essas lógicas próprias de pensar a pessoa se consubstanciam em formas

pedagógicas de socialização, intermediadas por um saber próprio que orienta o fazer cotidiano

e ritual; considerando que a formação da pessoa requer um conjunto de práticas sociais

associadas às referências culturais.

2 Expressão que melhor se adequa para compreender as relações entre os Ka’apor e sociedade nacional, assim como, possível de compreender sistemas culturais em conjunção. Conferir: OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Identidade, etnia e estrutura social. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1976, p. 1 – 31; ______. O Indio e o mundo dos brancos. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1996, p. 33 – 52.

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Por fim, é fundamentado em uma etnografia do cotidiano, que reflito no quarto

capítulo, sobre as possibilidades de se compreender homens e mulheres se tornando pessoas

mediante um saber-fazer próprio, sobretudo, a partir de ações fundamentadas e orientadas

pelas tradições.

Após esta breve descrição do trajeto etnográfico que percorri ao longo destes dois

anos, é que apresento no passo a seguir, os fundamentos teórico-metodológicos que guiaram

esse trajeto.

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IIII

Ko ramõ ihKo ramõ ihKo ramõ ihKo ramõ ihẽ ke jumu’e watahar reheke jumu’e watahar reheke jumu’e watahar reheke jumu’e watahar rehe

ele vai caminhando, fazendo o caminhoele vai caminhando, fazendo o caminhoele vai caminhando, fazendo o caminhoele vai caminhando, fazendo o caminho

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Jande rehe Kamarar uhyk uwyr,3 como ele chegou até nós

Em dezembro de 2005, por ocasião de minha interlocução com dirigentes de

organizações camponesas e participação em atividades de apoio às organizações em projetos

de agricultura familiar4, seguidos de relatos de experiências sobre educação escolar indígena,

fui convidado a visitar os grupos locais5 Capitão Mirá e Piquizeiro, do povo Ka’apor, no

município de Nova Olinda do Maranhão, onde permaneci por uma semana em cada grupo.

O convite partiu de agricultores familiares6 que já mantém uma relação estreita com os

Ka’apor por conta das atividades de produção familiar que realizam na região,

especificamente na área da apicultura. Naquele momento, dividiu-se a viagem em duas

etapas: em um primeiro momento a visita aconteceu no grupo local Piquizeiro e, num

segundo momento, em Capitão Mirá. Entre os critérios que se utilizou para a visita aos

grupos locais, estavam às distâncias em relação à cidade, embora o acesso se fizesse, apenas,

pelas estradas que alcançam às comunidades rurais ao entorno do território indígena.

Tanto a recepção em Piquizeiro, por um grupo de mulheres e jovens, quanto em

Capitão Mirá, pelo cacique e, a seguir, por outros moradores desse núcleo, reafirmava que as

relações de diálogo entre os Ka’apor e agricultores da região me levariam a longos percursos

com outros grupos locais do território.

3 Expressão utilizada por Pipihu Ka’apor, liderança do grupo local Xié pihũ renda (Alto Gurupi, município Centro Novo do Maranhão) e Kim Kim, liderança do grupo local Capitão Mirá (Alto Turiaçu, município de Nova Olinda do Maranhão) ao se referirem a mim por ocasião de meus primeiros encontros nos grupos locais, quando realizaram relatos sobre a minha chegada junto a eles. Por outro lado, tal expressão é usada sempre que me interrogam na presença de outros parentes ou não índios que visitam os núcleos. Nesse sentido, optei pelo termo por entender que no momento se faz necessário revelar ao leitor como tudo começou, como se deu o início, os primeiros momentos de vivência nos grupos locais da Terra Indígena Alto Turiaçu. 4 A atividade surgiu a partir do convite que recebi de agricultores familiares em projetos de apicultura no Município de Nova Olinda do Maranhão, que possuem contatos permanentes com os Ka’apor da região. 5 Vale ressaltar que optei em trabalhar com a noção de grupos locais e núcleos e, não de “aldeias”, por considerar as razões apresentadas por LARAIA (1986) acerca da organização das unidades residências como elementos que repensam as expressões de caráter colonialista – as “aldeias” e que buscam reafirmar, retomar a forma de organização atual dessas unidades. Nesse sentido, o autor considera grupos locais ou núcleos, as unidades residenciais ou casas dispostas irregularmente em um território comum, autônomas economicamente, com um ou mais chefes ou caciques, podendo os habitantes de um mesmo núcleo constituir uma família extensa. Conferir: LARAIA, Roque Barros. Tupi: Índios do Brasil Atual. São Paulo: FFLCH/USP, 1986, p. 55 – 63. Em campo, vi esse modelo sendo atualizado a todo o momento que se formam os grupos locais por ocasião dos deslocamentos no território. 6 As pessoas nas quais me refiro são agentes de pastorais, lideranças e agricultores que trabalham em projetos de agricultura familiar nos municípios de Nova Olinda do Maranhão e Santa Luzia do Paruá, mantendo contatos permanentes com os Ka’apor. Alguns grupos de agricultores residem no entorno da Terra Indígena Alto Turiaçu, especificamente, no município de Nova Olinda do Maranhão.

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Quanto ao tempo de permanência no local, o que inicialmente estava planejado para

ser uma visita, acabou se estendendo por uma semana nos dois núcleos. Sendo que, nesse

primeiro contato passei cerca de cinco dias. Na segunda vez, permaneci por três dias.

Durante minha permanência nos dois núcleos fui inserido, a convite de lideranças e

demais pessoas, em diversas atividades do cotidiano do grupo, desde as diferentes tarefas

executadas na casa de farinha ao trabalho de roço (limpeza) no entorno do núcleo. A inserção

nas atividades se tornou para mim momento intenso de aprendizado experimental para um

possível estudo antropológico, sobretudo, quando me deparava com a situação de ter que

compreender e significar cada conversa na língua Ka’apor.

No Piquizeiro, a conversa era sempre intermediada por uma mulher em um grupo de

três, ou um homem no grupo de quatro que se faziam presentes na ocasião da conversa e que

falavam a língua portuguesa. Diferentemente do que acontecia em Capitão Mira, onde apenas

o cacique dialogava comigo em português, apesar das barreiras lingüísticas.

Por outro lado, o outro contato inicial que tive com os Ka’apor se deu em maio de

2006, em atividades de apoio à organização de educadores indígenas7 no município de

Paragominas. O encontro aconteceu com lideranças e educadores indígenas do núcleo Xié

pihũ renda8, da Terra Indígena Alto Turiaçu, visando relatar experiências do processo de

elaboração de uma proposta de currículo diferenciado para o Ensino Fundamental e Médio

junto ao povo Tembé Tenetehara9, moradores da Reserva Indígena Alto Rio Guamá.

Nesta atividade as lideranças e os educadores indígenas relataram experiências

vivenciadas e mudanças ocorridas nos núcleos, bem como na vida do povo com a chegada da

escola10, principalmente, situações de conflitos geradas a partir da escolarização.

7 Essa organização constituía-se em um espaço autônomo de estudo e de diálogos sobre educação escolar indígena, com reuniões bimestrais, tendo a participação de educadores e de lideranças indígenas das etnias Tembé (oriundas de Santa Maria do Pará, Tomé-Açu, Paragominas e Santa Luzia do Pará - PA), Ka’apor (Centro Novo – MA) e Amanayé do Rio Capim (Goianésia - PA). 8 Que na língua Ka’apor quer dizer “lugar do curió preto”. O núcleo está localizado à margem direita do Rio Gurupi, no município de Centro Novo – Maranhão. 9 Os Tembé, como são conhecidos, constituem um Povo Tupi-Guarani, da família Tenetehara como os Guajajara, são originários da região do Pindaré (Maranhão), que pelo início do século XX resolveram migrar para as regiões do Gurupi, do Guamá e do Capim (Pará). Hoje se encontram distribuídos em três regiões no Pará: Reserva Indígena Alto Rio Guamá (Santa Luzia do Pará e Paragominas); Áreas Acará-Mirim, Arumateua, Turé-Mariquita I e II, e Marakaxi (Tomé-Açu) e Aldeias Jeju e Areal (Santa Maria do Pará). Também são conhecidos pela sua autodenominação de Tenetehara, como os Guajajara. De acordo com o lingüista Max Boudin, timbeb, significaria "nariz chato". Contudo, seria a denominação atribuída por regionais aos Tenetehara. Conferir: WAGLEY, Charles e GALVÃO, Eduardo. Os Índios Tenetehara. Uma Cultura em Transição. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1955; BOUDIN, Max. Dicionário de Tupi moderno (dialeto Tembé-

Tenetehara do alto Rio Gurupi). São Paulo: Conselho Estadual de Artes e Ciências Humanas, 1978. 10 Embora os grupos locais estejam localizados geograficamente no Maranhão, atualmente a escola que existe no núcleo foi construída e é “assistida” pela Secretaria Municipal de Educação de Paragominas, município do nordeste paraense que faz limite pelo Rio Gurupi com o município de Centro Novo do Maranhão, onde o núcleo está localizado.

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Contudo, os relatos apresentados pelos Ka’apor me faziam rememorar as situações

desafiadoras vivenciadas com educadores Tembé Tenetehara, quando se tratava da

convivência com conflitos exteriorizados pela prática de educadores não-indígenas e de

educadores indígenas, tanto na escola quanto no núcleo. Pois, os dois segmentos e os dois

espaços citados constituem projetos distintos, que vivem em constantes contradições.

As narrativas das lideranças Ka’apor se aproximavam de situações vivenciadas por

mim entre os Tembé que revelavam contradições. Entre as situações estavam: procedimentos

metodológicos desconectados de conteúdos, de objetivos e de metas educacionais previstas

pela comunidade indígena; currículo escolar fundamentado em conteúdos escolares não-

indígenas; relações e práticas autoritárias, verticalizadas que negam os saberes e o potencial

de cada sujeito em relação na educação escolar; metodologias de ensino e avaliação baseadas

apenas em conteúdos, excluindo e desconsiderando as especificidades e o potencial dos

educandos; material didático elaborado por não indígenas com conteúdos e realidades

externas aos grupos locais; ensino da língua indígena apenas como metodologia para a

alfabetização e instrumento transitório de instrução; a migração crescente de adolescentes e

jovens indígenas para as cidades mais próximas em busca da continuidade ou conclusão de

seus estudos.

No que diz respeito às possibilidades de encontros ou diálogos entre os dois projetos

de educação11, constatei uma demanda considerável de educadores indígenas assumindo as

atividades pedagógicas nas escolas indígenas; educadores não-indígenas e indígenas

transformando o espaço da escola em extensão das atividades do núcleo, sobretudo, no

desenvolvimento e valorização de linguagens culturais específicas, como a música, a dança, a

pintura corporal; o ajustamento do calendário escolar ao calendário do grupo local.

Nesse sentido, as experiências relatadas fazem parte do conjunto dos desdobramentos

que se deu após meu ritual de iniciação nos grupos locais no início de 2001, por ocasião de

uma experiência de docência em um projeto de apoio12 à elevação da escolaridade de jovens e

adultos Tembé Tenetehara onde permaneci por dois meses. Porém, no final de 2003, a convite

dessa comunidade indígena, especificamente de educadores indígenas, retorno aos núcleos da

11 Essa condição deve ser o princípio norteador de qualquer ato pedagógico, pois os sujeitos em relação são capazes de ensinar e aprender ao mesmo tempo, condição que subtende o reconhecimento do outro enquanto ser em potencial na relação de ensino – aprendizagem – ensino; quando o educador ensina e aprende com o educando. Por isso, que negar essa condição no ato pedagógico é negar o potencial de cada pessoa, a humanidade dos sujeitos na educação. Conferir: FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005; ______. Extensão ou Comunicação? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. 12 O projeto em questão era coordenado pelo Conselho Indigenista Missionário – CIMI. Tal atividade constituía-se em um preparatório ao processo seletivo de avaliação a que seriam submetidos esses jovens indígenas, no final do ano, para aquisição de certificado pela conclusão do Ensino Fundamental.

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Reserva Indígena Alto Rio Guamá para trabalhar em uma escola como educador no Ensino

Fundamental e realizar o acompanhamento pedagógico a esses educadores. Momento

oportuno para aperfeiçoar meu aprendizado na área da educação indígena a partir da vivência

junto aos educadores e às escolas indígenas13. Essa vivência me conduziu a outras

experiências com atividades pedagógicas junto às diferentes sociedades indígenas no Estado.

Embora percebesse as semelhanças na fonética Ka’apor com a Tembé Tenetehara,

uma vez que ambas têm sua origem no tronco lingüístico Tupi, tive que considerar as

especificidades em significar por parte dos primeiros, pois a língua possibilita que cada

sociedade construa suas categorias próprias de entendimento como forma de atribuir sentido

ao mundo em que vivem.

Stocking (2004) ao lembrar os pressupostos básicos da Antropologia de Franz Boas,

afirma que a linguagem exerce um papel relevante no processo de integração entre as culturas

e argumenta que “o caráter inconsciente desses processos lingüísticos nos revel [a] muito

sobre os processos da cultura em geral” (p.22) que podem ser exteriorizados nos processos de

imitação e socialização no interior de cada sociedade.

À medida que ouvia as conversas na língua Ka’apor, assimilava, apreendia e

compreendia os seus significados e, a partir daí, tentava construir vocábulos para serem

utilizados em possíveis diálogos, e assim, me fazer entender perante as pessoas.

A percepção das diferentes linguagens culturais Tembé Tenetehara somadas às

experiências na área da educação escolar indígena junto a essa sociedade, a inserção e o apoio

às atividades de organização camponesas, bem como os projetos de agricultura familiar no

Pará e no Maranhão, me conduziram ao rio Gurupi, possibilitando viver uma outra

experiência de fronteira cultural entre os Ka’apor, que migraram do Pará ao Maranhão em

tempos de outrora.

13Durante a minha permanência nos núcleos do Povo Tembé, participei na organização de diferentes atividades com educadores e famílias indígenas, visando o fortalecimento da educação escolar indígena, o respeito aos processos pedagógicos próprios, bem como, os conhecimentos tradicionais daquele povo. A experiência junto a esse povo teve como desdobramentos: a minha participação na organização e na condução de Encontros de Professores Indígenas do Pará promovidos por Entidades Indigenistas; participação, acompanhamento pedagógico às reuniões de articulação de educadores indígenas do nordeste paraense e; outras atividades de assessoria pedagógica na área da formação de educadores indígenas e organização da educação escolar e não escolar indígena.

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Parana aha oho,14

ele atravessou o rio Gurupi

Na manhã fria do dia treze de agosto de 2007, acordo com os risos dos Ta’yn (as crianças) a se aquecerem próximas de uma pequena fogueira preparada por seu Kim Kim. Ao perceberem que estava acordado, dois ta’yn se aproximam de ihẽ kyha (minha rede) que se encontrava atada na casa do forno (local destinado pelo cacique para minha dormida), distanciando – se cerca de dez metros do aquecedor natural. Enquanto isso, as conversas aconteciam como que, prevendo uma possível viagem fora Do grupo local. Apesar de minha pouca compreensão da língua do grupo, conseguia identificar algumas expressões que eram recorrentes nas conversas, como ka’ate (a mata), ywykwar (o poço), pira (peixe), so’o (a caça), pois a conversa se dava em torno de uma ka’ate rehe jande jaho ta (possível ida deles à mata). Tal suposição se confirmava quando o warahy uhem (nasceu o sol), o Sr. Kim Kim (um dos únicos que apresenta um domínio regular da língua portuguesa) me convidou para uma pescaria e caçadas que realizariam naquela manhã com objetivo de garantir alimentos para o abastecimento da aldeia durante um determinado período. Informa que montariam um xipa (abrigo/acampamento provisório feito de palmeira) às margens do rio Hola15 quando permaneceriam cerca de dois a três dias no local. Após o convite e meu aceite, o senhor orientou a sua família a organizar todo o material necessário para a viagem, permanência e estadia na mata. Além disso, organizou a distribuição das pessoas em grupos para a viagem. Contudo, me informou que eu deveria acompanhar Waxã e Juze (os únicos jovens solteiros do grupo local). Nesse momento, algumas pessoas se aproximavam da casa do Sr. Kim Kim com animais que seriam utilizados no transporte de materiais e crianças, alguns objetos (rede, pratos, talheres, etc) e instrumentos (facão, tarrafa, etc) que faziam parte expedição. Na presença de um número considerável de pessoas, o Sr. Kim Kim informa o pe (o caminho), ou os possíveis trajetos mais seguros a serem realizados pelos diferentes grupos que levariam até às margens do rio Hola. Por outro lado, um dos presentes informa que o Sr.

14 Termo utilizado pelos Ka’apor ao se referirem como se deu o processo de minha passagem pelos núcleos Tembé, no Pará, núcleos Ka’apor, na região do Gurupi, no Maranhão. Sobretudo, para lembrar que o rio que divide os dois Estados é o Rio Gurupi. 15 Rio que dista, aproximadamente, oito a dez quilômetros do núcleo; afluente esquerdo do Rio Turiaçu.

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“Doutor” (cacique da aldeia) já havia saído com a família para a pescaria. À medida que as pessoas se organizavam para a viagem, eu organizava meus pertences na casa do forno juntamente com Waxã e Juze, haja vista, ter sido orientado a acompanhá-los e permanecer com eles durante a expedição. A seguir, Waxã, com seu “Ka’apor-português”, auxiliado pela performance gestual, explica o que eu deveria ajudar a levar (me entrega um facão), e por onde deveríamos nos deslocar para iniciar o trajeto da expedição. Quando entramos no caminho às proximidades da entrada do grupo local, Juze aponta em direção a um arbusto trançado com espinhos que chamam ximbo (cipó grande usado para paralisar os peixes) e começa a cortar me indicando para que realizasse o mesmo, uma vez que apresentam função específica na captura dos peixes. Após o corte do cipó, me orientaram a fazer pequenos feixes e, a seguir, continuamos a viagem... (Diário de campo, 15 de agosto de 2007)

“Atravessar o Rio Gurupi” não significou apenas, a entrada e o convívio com - e o

conhecimento acerca de - outra sociedade indígena, mas um rever, um repensar, um re-

elaborar, ou mesmo, uma atualização de conceitos envolvendo compreensões, práticas e

valores referentes ao fazer antropológico. A sensação de aprender a começar sempre era

atualizada a cada momento da chegada e dos diálogos nos grupos locais. O trajeto, as paradas

em cidades da região16 que dão acesso ao território, assim como os encontros com os Ka’apor

na cidade, as viagens nos ramais que levam até os núcleos representaram momentos de

aprendizado a que somam-se às demais experiências de aprendizado no deslocamento interno

no território. Portanto, foi na condição de aprendiz que essas experiências permitiram uma

ampliação dos horizontes no campo de estudo desenvolvido.

A partir das reflexões de Arantes (2000), pude compreender a viagem como uma

experiência cultural, onde moradia e deslocamento possuem dinâmicas específicas que se

complementam. Neste sentido, levava sempre comigo experiências que eram compartilhadas

com pessoas no percurso, durante as paradas e na permanência nos núcleos. A cultura era

compreendida a cada momento como um elemento dinâmico acionado constantemente nas

relações de viagem17.

Durante o ir e vir ao território indígena por ocasião da pesquisa, existiram realidades,

ambientes que exerceram um papel determinante para o alcance das metas almejadas no

trajeto etnográfico. Entre os que se destacam estão os meios utilizados para os deslocamentos:

quando se tratava de sair de Belém para a cidade de referência ou sede do município de acesso

16 Pelo Pará, saí de Belém rumo à cidade de Paragominas. Chegando à cidade, seguia a estrada que dá acesso ao Rio Gurupi, conhecida como estrada do “Bogi” até a travessia para o Maranhão. Ao atravessar o rio, percorria a estrada das fazendas que fazem limites ao território. No Maranhão, quando saía de Belém, seguia sempre pela via BR-316, no sentido (Belém - Santa Inês/MA), passando pelas seguintes cidades que possuem estradas ou ramais que dão acesso ao território Ka’apor: Maracaçumé, Centro Novo do Maranhão, Centro do Guilherme, Maranhãozinho, Presidente Médici, Santa Luzia do Paruá, Nova Olinda do Maranhão, Araguanã e Zé Doca. 17Entendo a cultura como elemento que intermedia as relações entre pessoas, pois à medida que a pessoa expressa algo de sua cultura, absorve, aprende com a do outro. Experiência vivenciada nas relações estabelecidas durante as viagens do etnógrafo ao campo de pesquisa. Para tanto, consultar: CLIFFORD, James. “Culturas Viajantes”. In. ARANTES, A. A. (Org.) O espaço da diferença. São Paulo: Papirus, 2000, p. 60.

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aos núcleos, isto se fazia de ônibus. A permanência ou parada na cidade dependia das

condições favoráveis para o deslocamento que poderia ser realizado de moto-táxi18, ou se

prolongaria por até dois dias àquelas onde o trajeto era feito de carro19, quando se aguardaria

o surgimento de um transporte para os núcleos.

Quando acontecia de se realizar o deslocamento de um núcleo para outro, dependendo

das condições do trajeto, ou ambientes de acesso (caminho, ramal, igarapé, estrada), fazia o

percurso caminhando; montado em animais que utilizam para o deslocamento20; de canoa ou

de casco; de motocicleta. Lembro que esses deslocamentos eram sempre realizados em

companhia ou orientados por um ou mais Ka’apor, sobretudo, as viagens realizadas no

território indígena.

Entre outros, estavam, os locais, ambientes e momentos de trabalho do pesquisador.

Isso foi possível a partir do tempo estabelecido pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências

Sociais (PPGCS) para o curso das disciplinas que fundamentam ou subsidiam o mestrando

nos estudos e na pesquisa antropológicos. Para tanto, construí uma dinâmica específica

levando em conta o tempo de meu cotidiano já traçado, o tempo do curso e dos trabalhos de

avaliação das disciplinas, bem como o tempo das possibilidades de pesquisa.

No que diz respeito aos locais de estudo, poderiam ser alternados de acordo com as

tarefas a serem desenvolvidas: desde a leitura e resenhas de textos, consultas às obras na

biblioteca e no Laboratório de Antropologia, até as leituras de obras em casa, em ônibus de

viagem, rodoviárias a espera de transporte, alojamentos diversos na cidade e alojamentos nos

grupos locais.

Esses elementos representaram mudanças consideráveis em minha “moradia

provisória”, haja vista, o período de estudo e pesquisa ter transformado meu cotidiano e

redimensionado minhas atividades diárias. Assim, o diálogo resultante das conversas com

diferentes pessoas, em diferentes lugares sociais, enriqueceu e subsidiou a compreensão do

contexto social do povo Ka’apor em seus grupos locais.

18 O trajeto de moto-táxi para os núcleos era feito nas estradas que estão localizadas na região do Alto Turiaçu, onde o acesso da cidade ao território dispõe de estradas planejadas pelo poder público municipal e por madeireiros da região. É preciso mencionar que as condições de acesso aos núcleos mudam dependendo das estações do ano. No verão o acesso ou movimento nas estradas é possível, diferentemente do inverno, que devido a um volume maior de chuvas, muitas aldeias ficam isoladas quando rios, igarapés da região transbordam impossibilitando o acesso a esses locais. 19 O deslocamento de automóvel dependia, por vezes, da programação do transporte da Casa de Saúde Indígena (CASAI) em Paragominas, no Pará, que levaria pacientes em tratamento de saúde à cidade, ou, então, era necessário aguardar uma possível viagem do caminhão da Associação Indígena à cidade. 20 As pessoas adultas sempre realizam o deslocamento montadas em cavalos, éguas e burros, diferentemente das crianças que, quando não vão acompanhadas ou montadas na companhia dos adultos, seguem montadas em jumentos, que os Ka’apor consideram animais mais fáceis de domesticar ou amansar, como se referem.

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Os inúmeros trajetos, deslocamentos, vivências junto aos povos indígenas do Pará e

Maranhão, significaram para mim, momentos essenciais para a constituição de minha pessoa

enquanto antropólogo em formação. Como parte dessa trajetória, apresento o meu percurso

etnográfico e os princípios teórico-metodológicos que fundamentaram o pe rupi awa ta - o

caminho que percorri - neste estudo.

A princípio, realizo um diálogo permanente com autores clássicos e contemporâneos

das Ciências Sociais, que sistematizaram experiências sobre os temas e as categorias de

entendimento que busco aprofundar neste estudo, na perspectiva de apresentar os princípios

teórico-metodológicos que orientaram a minha permanência - o estar - em campo, mas,

também o ser (do) pesquisador em processo etnográfico junto ao Outro.

Contudo, realizar a pesquisa orientado por uma perspectiva etnográfica, além de

possibilitar um conhecimento mais denso da realidade sociocultural Ka’apor, me conduziu a

priorizar determinados aspectos da cultura a serem compreendidos, conforme os propósitos

do estudo. Nesse sentido, entendo ser necessário apresentar alguns princípios ou

procedimentos que orientaram meus passos nesta etnografia.

Os encontros iniciais com os Ka’apor me fizeram ao longo do tempo, a partir de

nossas interações e conversas, ir pensando na importância que estes encontros poderiam

representar para meu aprendizado na pesquisa etnográfica. Por isso, a necessidade de

considerar nossos encontros sempre orientados por uma visão compartilhada na

interlocução21. Portanto, considerei a interação junto aos grupos locais do território Ka’apor

como momentos privilegiados para o exercício do diálogo, por ocorrerem intensas conversas

entre (e sobre) as pessoas no lugar no qual vivem e, por certo, presenciar o cotidiano das

relações em que as suas visões de mundo fluem e se entrecruzam.

A partir da obra de Crapanzano (1991) sobre o diálogo construído em realidades de

mudança e oposição sociais, pude entender que se faz necessário considerar as diferenças

entre dois mundos que se aproximam no diálogo, as complexidades e tensões colocadas no

jogo das relações sociais.

O diálogo intermediou inúmeras interações nos grupos locais que entendo ser

considerado como conhecimento científico gerado a partir do ponto de vista do outro22, ou

21 Essa relação é construída na inter-relação entre sujeitos que interagem, dialogam na pesquisa; onde há trocas de subjetividades. Sobre está idéia conferir: CRAPANZANO, Vicent. “Diálogo”. Anuário Antropológico nº 88. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1991, p. 59- 80. 22 Os procedimentos ou práticas que orientaram o meu estar entre os Ka’apor, para a realização da pesquisa etnográfica foram fundamentados nas orientações clássicas de Franz Boas, Malinowski e Geertz. Conferir: BOAS, Franz. “Introdução”. In STOCKING, Jr. George. A formação da Antropologia Americana. 1883-1911. Rio de Janeiro: Contraponto/Edufrj, 2004; MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pacífico Ocidental. São

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ponto de vista nativo23, até porque o desafio está em considerar o ponto de vista nativo a

partir de seus contextos em que são engendrados e construções sociais amparadas em suas

cosmologias e, não substituí-los por conceitos de correspondentes externos (STRATHERN,

2006:33)24.

Com base nessa perspectiva, tentei realizar uma imersão no cotidiano e nos espaços de

interação social Ka’apor. Busquei ocupar uma espécie de “espaço liminar” nesta etnografia,

estando sempre na interlocução com grupos etários diversos. Além disso, os Ka’apor, à

medida que relatavam suas experiências cotidianas, faziam com que tais situações

despertassem em mim memórias acerca de minhas vivências com outros grupos indígenas, o

que desencadeava o diálogo entre o grupo, refletindo sobre as suas questões – procurando

olhar cuidadosamente o cotidiano das experiências e ambientes do grupo. Portanto,

preocupei-me com uma etnografia do lugar da pesquisa, haja vista, a importância do henda

(lugar) para os Ka’apor.

Tais interações dialógicas, seguindo as orientações de Gadamer (1975)25, têm a

linguagem como principal intermediadora e finalizadora, por onde se dá todo o entendimento

entre os sujeitos do diálogo. Porquanto, apresenta três maneiras que levam as pessoas a

entenderem o outro: primeiramente, se entende o outro pela natureza humana; segundo, é

possível entendê-lo enquanto pessoa; e terceiro, o entendimento ocorre pelo modo imediato,

aberto e autêntico.

Portanto, é fundamentado nesta segunda maneira, que entende o outro enquanto

pessoa, que desenvolvo o terceiro capítulo desta dissertação, no intuito de apresentar, a partir

de estudos clássicos, algumas categorias de análise que utilizei para entender as noções que se

tem de pessoa, assim como, compreender os diferentes aspectos da cultura, que indicam a

possibilidade de “entender” a pessoa Ka’apor.

Esses procedimentos etnográficos inserem o antropólogo numa teia de relações

intersubjetivas26, porque as interações dos sujeitos envolvem narrativas e ações que evocam

realidades que se entrelaçam e complementam-se.

Paulo: Abril Cultural, 1978; GEETZ, Clifford. O Saber Local. Petrópolis: Vozes, 2004. 23 Sobre a relação entre a compreensão da natureza do olhar antropológico, o ponto de vista do nativo e ponto de vista nativo, conferir: VIVEIROS DE CASTRO, E. “O Nativo Relativo”. Mana, 8(1): 2002, p. 123. 24 Cf. STRATHERN, Marilyn. Gênero da Dádiva. Problemas com as mulheres e problemas com a sociedade milanésia. Campinas: Ed. Unicamp, 2006. 25 Cf. Gadamer Apud Crapanzano, 1991, p. 61 – 23. 26 Sobre a análise feita na perspectiva de considerar os diferentes sujeitos na interlocução em redes, consultar: FAVRET-SAADA, 1977 Apud CLIFFORD, James. “Sobre a autoridade etnográfica” In A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998, p.44.

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A aceitação de minha presença pelo grupo e a permissão para o registro de imagens e

narrativas, fundamentaram minhas considerações sobre o reconhecimento e a relevância da

interlocução na pesquisa. Procedimentos que me levaram a refletir sobre o meu papel e o dos

interlocutores no processo de interação dialógica.

Considero as reflexões a que cheguei neste estudo só foram possíveis mediante a

interlocução a partir da companhia dos Ka’apor no henda e nos inúmeros deslocamentos

internos. Sendo assim, motivado por esse princípio é que busquei escrever o texto, ou seja,

intentei uma forma de literatura que respeite os gêneros específicos da fala nos diferentes

momentos, ambientes, eventos, modos de falar e compreender do grupo, respeitando os

elementos lingüísticos associados aos etnográficos e aos estéticos27.

Assim, fundamentado em uma etnografia da fala28, realizo uma etnografia que

considera o deslocamento Ka’apor. Procurei compreender a experiência do deslocamento

Ka’apor pela importância da palavra, considerando-o como movência29, tanto dos sentidos da

palavra como da deriva dos grupos no espaço – ou seja, tal questão implicou a tentativa de

entendimento do falar Ka’apor durante os meus deslocamentos com o grupo em seu território.

Sendo assim, realizei um esforço hermenêutico de compreender o que significa o deslocar-se

para os Ka’apor e os sentidos atribuídos a ele.

Além desses procedimentos metodológicos que se transformaram em princípios

orientadores que guiaram minha interlocução no território Ka’apor, busquei fundamentar

meus estudos sobre o entendimento dos aspectos da cultura em análise em outras categorias

de entendimento, como a noção de pessoa.

27 Sobre a abordagem literária que visa traduzir o texto oral para uma forma escrita, envolvendo trabalhos que tiveram o objetivo de tornar a literatura oral indígena relevante para o texto literário, ou inscrever um texto em uma forma que seja fiel à linguagem literária nativa, consultar: TEDLOCK, D. “A Tradição Analógica e o Surgimento de uma Antropologia Dialógica”. Anuário Antropológico 85, Rio de Janeiro, Edições Tempo Brasileiro, p. 183-2002, 1986. 28 Tal expressão de Hymes (1971) é compreendida como uma descrição em termos culturais relacionados ao uso contextualizado da língua e da fala, ou seja, são as próprias regras de interação social de um grupo, instituição ou comunidade. Podendo ser entendida primeiramente, a partir de recursos sociolingüísticos de uma comunidade particular, incluindo não somente os gramaticais, mas também, um conjunto de potenciais lingüísticos para o uso e significados sociais; das inter-relações e organizações contextualizadas dos diversos tipos de discurso e interação social na comunidade; das relações dos contextos de fala com outros aspectos da cultura da comunidade, tais como organização social, religião e política; e do uso e da exploração de recursos no discurso, em situações de fala, eventos de fala e atos de fala. Conferir: HYMES, D. "Competence and performance in linguistic theory" Acquisition of languages: Models and methods. Ed. Huxley and E. Ingram. New York: Academic Press. 3-23. 29 O termo é utilizado para designar a flexibilidade e a instabilidade do tempo da narrativa oral, sobretudo, quando se trata de narrativas, considerando o deslocamento de acontecimentos ou de personagens, assim como, a interpretação destes últimos sobre a experiência vivida. Como se houvesse um “retorno as fontes”, às emoções vivenciadas, aos lugares, às histórias do povo. Conferir: ZUMTHOR, Paul. “Duração e Memória” In Introdução à poesia oral. São Paulo: Hucitec, 1997, p. 257 – 273.

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Para isso busquei fundamentar este entendimento em obras da sociologia e da

antropologia, a começar pelos estudos de Mauss (1974)30, fundamentado em Durkheim

(1996). A partir da obra de Geertz (1978)31 também é possível se compreender a idéia de

pessoa a partir de estruturas, sistemas simbólicos ou construções culturais.

Entre os estudos na contemporaneidade realizados com a preocupação de entender a

noção de pessoa destaco as etnografias de Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro (1980),

Viveiros de Castro (1996)32, Cartry (1973)33, Descola (1997)34 e Arhen (1990)35. Estudos

realizados sobre a constituição ou natureza do ser junto às sociedades Tupi amazônicas36.

30 Sobre o capítulo, conferir: MAUSS, Marcel. "Uma Categoria do Espírito Humano: a noção de pessoa, a noção do eu". In: Sociologia e Antropologia - Vol.1. São Paulo: EPU/EDUSP, 1974. 31 Cf. GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. 32 O artigo reeditado reflete uma das primeiras reflexões dos autores acerca da noção de pessoa nas sociedades ameríndias amazônicas. Conferir: SEEGER, Anthony, DA MATTA, Roberto e VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras” In: PACHECO DE OLIVEIRA FILHO, J. (ed.) Sociedades Indígenas e Indigenismo no Brasil. Rio de Janeiro/São Paulo: UFRJ/Marco Zero, 1987 [1979]; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Os Pronomes Cosmológicos e o perspectivismo ameríndio. MAFA 2(2), 1996, p.115-144. 33 Para os estudos sobre a noção de pessoa no norte da África, conferir CARTRY, Michel. “Introduction” In: La notion de personne em Afrique noire. Paris: CNRS, 1973, p. 15 – 31. Citado também por GOLDMAN, 1996: 98-99. 34 Fundamentado em uma tendência de sensibilidade ecológica a partir das narrativas indígenas e concepções cosmológicas tradicionais, o autor trabalha a categoria “pessoas” englobando espíritos, plantas e animais, todos dotados de uma alma, logo, uma cosmologia que não diferencia os humanos e os não-humanos. Sobre a obra que referenda tal perspectiva, consultar: DESCOLA, Phillipe. Estrutura ou sentimento: a relação com o animal na Amazônia. Mana, 4, 1998, 23-45. 35 O autor em questão, fundamentado nos princípios filosóficos da natureza Makuna, contrários a um antropocentrismo, percebe que cada ser nesta sociedade (humanos e não-humanos) possui uma visão de mundo. Princípios que fundamentam uma relação de equilíbrio com o meio ambiente e o reconhecimento da humanidade ou pessoa no “outro”. Conferir: ARHEM, Kaj. Ecosofia Makuna. In La Selva Humanizada. Ecologia Alternativa em el Trópico Húmedo Colombiano. Bogotá: Instituto Colombiano de Antropologia, 1990, p. 105-122. 36 Segundo Viveiros de Castro (1996), em seu artigo sobre os fundamentos da perspectiva ameríndia a partir de categorias cosmológicas, reafirma e reconhece que esses estudos tiveram inicio com as contribuições trazidas pelas etnografias de Vilaça (1992) sobre o canibalismo wari’ e de Lima (1995) sobre a epistemologia juruna. Conferir: VILAÇA, Aparecida. Comendo como Gente: Formas do Canibalismo Wari’ (Pakaa Fova). Rio de Janeiro: Anpocs/Editora UFRJ, 1992; LIMA, Tânia Stolze. A Parte do Cauim: Etnografia Juruna. Tese de Doutoramento. PPGAS, Museu Nacional, UFRJ, 1995 e; _______. Os dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia tupi. Mana: estudos de antropologia social 2, nº 02, 1996, p. 21-47.

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Pe rupi jahik ta jaho37, por aí a gente chega lá

Os procedimentos metodológicos utilizados para a interlocução, além de orientarem

meus passos e a minha trajetória nesta etnografia a fim de compreender as categorias nativas,

somaram-se ao entendimento de categorias de análise e conceitos-chaves sobre os aspectos ou

elementos da cultura Ka’apor que privilegiei neste estudo.

Entre os aspectos que privilegiei para a análise está a concepção de pessoa. Sendo que

esta realidade está associada a marcadores sociais ou aspectos identificadores que constituem

a pessoa nesta sociedade.

Entre os marcadores identificados neste estudo estão os critérios de classificação e

denominação das classes de idade, a forma como nominam as pessoas e a associação dos

saberes em relação à corporeidade. Contudo, este último marcador social além de ser inerente

aos demais (às classes de idade e ritual de nominação) possui um desdobramento prático na

vida do povo quando privilegia os saberes e os fazeres cotidianos e rituais enquanto

dimensões essenciais na constituição da pessoa.

37 Expressão usada pelos Ka’apor para apontar a direção, o rumo que se está seguindo, caminhando, ou ainda, que esse caminho nos leva a meta planejada.

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Todavia, estas dimensões podem equiparar-se ao saber-fazer, como aparece em

Certeau (1994), quando se refere às práticas cotidianas “relativas às ocasiões e a detalhes,

insinuados e escondidos nos aparelhos das quais elas são os modos de usar e, portanto,

desprovidas de ideologias e de instituições próprias, obedecem a regras (...) deve haver uma

lógica dessas práticas” (p.42).

Certeau (1994) continua afirmando que se trata de saberes apropriados por sujeitos que

os praticam e disponíveis para o conhecimento de um possível “interprete que o esclarece no

seu espelho discursivo”, embora esse último também não disponha de condições para

apropriá-lo. Caracterizando-se como um saber que “[f]ica circulando entre a inconsciência

dos praticantes e a reflexão dos não-praticantes, sem pertencer a nenhum. Trata-se de um

saber anônimo e referencial”. [P]odendo existir implicitamente no saber-fazer uma

“estetização do saber”; (...) este sendo considerado um “gosto” ou um “tato”. (...) “[T]rata-se

de um conhecimento que não se conhece”, mas de um “fazer cognitivo”. Um saber que possui

uma estreita relação com o corpo, ou a própria, corporeidade.

Por outro lado, a partir do entendimento de “lugar [enquanto espaço que] indica os

pontos de referência entre os quais se desenrola uma ação”38, é que apresentei as formas de

sociabilidade enquanto possibilidades do saber-fazer revelar-se nesta sociedade.

A princípio, busquei compreender sociabilidade em relação com formas de sociação a

partir das reflexões feitas por Simmel (1983). Sobre sociabilidade, o autor a relaciona “com o

estar com um outro, para um outro [uma vez que] forma e desenvolve os conteúdos e

interesses materiais e individuais” (p. 167-168). Ou seja, caracteriza um estar em relação, à

interação entre os indivíduos, que surge em função dos impulsos e propósitos, interesses e

necessidades que ocorrem por livre escolha.

Por outro lado, os conceitos de sociação ou de formas de sociação39 vão garantir a

existência da sociedade através de condições formais. Entre essas condições estão: a

existência de formas de convivência e ações recíprocas entre os sujeitos; a interação entre

quem domina com aquele que é dominado; e o conflito, que é “indispensável à coesão do

grupo”. Logo, à sociação subtende-se não apenas “o estar com um outro, para um outro, [mas]

contra um outro” (p. 168) que, através dos impulsos ou propósitos, vão garantir a

sociabilidade do grupo.

38 Cf. CERTEAU, Michel de. A Invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994, p.35. 39 Cf. SIMMEL, Georg. “Sociabilidade um exemplo de Sociologia pura ou formal”. In FILHO, Evaristo de Moraes (org.) Simmel – Sociologia. Coleção Grandes Cientistas Sociais nº 34. São Paulo: Editora Ática, 1983: 22-23.

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Porém, entendi que foi possível compreender as relações entre (com) os Ka’apor,

especificamente, àquelas orientadas por um saber-fazer, orientadas por uma presente

interação entre as pessoas em busca de seus interesses e necessidades; orientadas por formas

de convivência e uma constante reciprocidade entre os sujeitos.

As idéias melanésias de socialidade apresentadas por Strathern (2006:40) contribuíram

para reforçar as análises e utilização do termo sociabilidade dentro dos construtos e contextos

Ka’apor. Partindo dos pressupostos que fundamentam a noção de sociabilidade, a autora parte

do termo socialidade (sociality), considerando-o um conceito estritamente relacionado à

criação e manutenção de relações sociais, que organizam diversas formas de interações

individuais e coletivas. Pois, cada pessoa traz consigo a possibilidade de expressar essa

socialidade. E apresenta a “sociedade” como o lugar privilegiado e possível de conectar as

pessoas e relações entre si.

Essa perspectiva vai ser potencializada por Piscitelli (1994)40 que, ao tecer

considerações sobre o trabalho de Marilyn Strathern, em The gender of the gift41, apresenta as

contribuições relevantes para o entendimento do conceito de sociabilidade, pois este conceito

está associado à constituição social e moral de relatedness (estar relacionado), possivelmente,

sendo decorrente da “ação humana” (utilizando a noção de agência, human agency) em suas

diversas formas. Contudo, tais princípios teóricos podem ser considerados elementos

possíveis para a compreensão do contexto em que se dá o saber-fazer na sociedade Ka’apor.

Nota-se que inúmeras etnografias sobre sociedades ameríndias se fundamentaram

nessa categoria de análise para compreender o ser e as relações sociais nessas sociedades. A

princípio, é essencial destacar os trabalhos realizados por etnógrafos que reconhecem na

cosmologia das sociedades ameríndias o elemento primordial para a compreensão das

relações e o sentido da vida nesses grupos sociais. Destacaria os trabalhos de Overing

(1991)42 sobre a dinâmica da vida diária dos Piaroa; a etnografia de Goldman (1963)43 sobre

o estado comunitário moral dos Cubeo, sendo que tais etnografias me possibilitaram

compreender a importância do pensar a dinâmica da vida diária dessas sociedades na

Amazônia.

40 Cf. PISCITELLI, Adriana. “The Gender of the gift”. Resenha. Cadernos Pagu (2) 1994, p. 211 -219. 41 A análise de Adriana Piscitelli (1994) está fundamentada na obra de STRATHERN, Marilyn. The Gender of the Gift. University of California Press, 1988. 42 Cf. OVERING, Joanna. "A estética da produção: o senso de comunidade entre os Cubeo e os Piaroa". Revista de Antropologia, 34, 1991, p. 7-33. 43 Cf. GOLDMAN, Irving. The Cubeo: Indians of the Forthwest Amazon. Urbana, The University of Illinois Press, 1963.

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Elemento que me levou ao trabalho de McCallum (1988), que, seguindo a abordagem

de Strathern (1988) e Overing (1991), reflete a vida cotidiana Kaxinauá44, entendendo ser

possível a partir das relações de sociabilidade e socialidade, compreenderem as formas

diversas de relações sociais. A autora entende que a socialidade é construída no curso da vida

diária, havendo diferentes modos de agência social para homens e mulheres. Em sua

pesquisa, procurou compreender o significado de “sociabilidade” na literatura sobre os povos

indígenas da Amazônia, tendo como parâmetros a diferença existente entre “sociabilidade” e

“socialidade” para a compreensão das relações sociais nesta sociedade, quando deduz que,

além da sociabilidade a ser construída no curso da vida diária, ela tem como objetivo a

compreensão da alteridade do ser Kaxinauá.

Reflexões teóricas baseadas em experiências etnográficas que me ajudaram a perceber

entre os Ka’apor a possibilidade de identificar inúmeras formas de sociabilidade e de

sociação tanto interna quanto com os grupos externos. Ao mesmo tempo em que pude

identificar formas de sociação através das trocas de mantimentos e produtos resultantes das

empreitadas de caça, coleta de frutos, beneficiamento da mandioca e pesca, também encontrei

esse tipo ou forma de sociação presente entre Ka’apor e não indígenas utilizando os mesmos

produtos na troca. Por outro lado, quando essas permutas com grupos externos (colonos,

caçadores, pescadores, cipoeiros, madeireiros, fazendeiros, entre outros) não se fazem pelo

diálogo, às relações de negociação são comprometidas havendo tensões entre os grupos e a

troca não se concretiza.

Esse último fato tem sido uma realidade nos grupos locais entre lideranças que foram

aliciadas por grupos externos, passando a utilizar recursos naturais do território como objetos

de mercadoria; entre os recursos mais negociados na ordem de demandas estão: madeiras

(diferentes espécies45), a caça46, o arrendamento da terra para roça (mandioca, milho, arroz,

feijão), a pesca (no período da vazante dos rios e igarapés), os cipós (no período do verão

quando há facilidade de deslocamento para as cidades próximas do território, sendo que os

cipós seguem, posteriormente, para outros centros urbanos mais populosos da região47 com

destino para outros Estados).

44 Povos de língua Pano vivem atualmente no Alto Rio Purus e nas cabeceiras do Juruá, no Estado do Acre e, também nas cabeceiras do Purus, no Peru. 45 Entre as espécies mais negociadas para venda, destaco: Mogno, Ipê e Maçaranduba. 46 Entre as caças mais abatidas de pequeno porte estão, a paca, a cutia e o tatu; enquanto que as de grande porte seriam a anta e o jacaré. 47 Entre as cidades com um mercado desenvolvido para a venda e negociação desses recursos oriundos do território indígena, estão: Zé Doca, Santa Luzia do Paruá e Maracaçumé (Maranhão) e Paragominas (Pará).

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As formas de sociabilidade no grupo podem ser identificadas em diferentes momentos

e lugares, relações entre os envolvidos, com finalidades específicas nesta sociedade. Porém,

priorizei um olhar sobre as práticas, os procedimentos e as técnicas que orientam um saber-

fazer no cotidiano dos grupos locais. Pois, a partir desses processos é possível identificar

como se estabelecem as relações de sociabilidade na busca pela sobrevivência de suas

famílias.

Antes de chegar ao território Ka’apor, minha relação com o grupo acontecia em

função de atividades pontuais como referi anteriormente: as conversas com lideranças

Ka’apor por intermédio de lideranças Tembé; a participação em atividades e diálogos com

camponeses da região que trabalham em projetos na área da agricultura familiar; as atividades

relacionadas à educação escolar indígena com os Tembé Tenetehara da Reserva Indígena Alto

Rio Guamá.

No entanto, foram esses elementos que possibilitaram com que as lideranças Ka’apor

permitissem minha entrada nas aldeias do território e, a partir daquele momento, a minha

relação com o grupo foi sendo construída em função dos diálogos estabelecidos. Com

propósitos diferenciados se entrelaçando, foram se firmando compromissos entre eu e as

pessoas. A começar pelos núcleos Capitão Mira e Piquizeiro que estão ao norte do território,

na região denominada de Alto Turiaçu. Essa inserção junto ao grupo me levou a passar por

etapas que caracterizaram o nível de minha relação e condição nessa sociedade: inicialmente

era acionado ou reconhecido nos diálogos como Kara’i (qualquer pessoa que não seja

Ka’apor) e, posteriormente, com o processo de socialização em diferentes atividades junto ao

grupo passei a ser referido como Kamara48 (o amigo; companheiro; o parente).

Com isso, relações de troca foram sendo estabelecidas em função de propósitos

específicos em ocasiões diversificadas, como na ocasião em que mantive os primeiros

diálogos. Quando permitiram que estabelecesse minha moradia provisória em Capitão Mira,

constatei inúmeros problemas de saúde relacionados à água, por conta da estiagem na região e

a situação ameaçadora da retirada ilegal de madeira às proximidades dos núcleos. Naquele

momento, as conversas sobre os problemas vivenciados pelo grupo resultaram em sua

solicitação para que intermediasse discussões envolvendo tais situações junto ao Pólo Base de

48 A expressão é usada pelos Ka’apor sempre que fazem referência a alguém que consideram amigo, companheiro, próximo ao grupo ou de confiança do grupo. Por vezes utilizam o termo para se referirem aos parentes de outras etnias quando estão na presença da pessoa.

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Saúde Indígena, no município de Zé Doca49 e no Distrito de Saúde Indígena em São Luís

(capital), assim como, junto à FUNAI e “justiça de São Luís”.

A princípio, realizei o levantamento sobre a atual situação da saúde dos grupos locais

da região, procurando compreender a dinâmica e a estrutura do funcionamento do sistema de

saúde nos núcleos da região, identificando a forma de atendimento e os profissionais em

serviço, bem como os recursos necessários para o atendimento à saúde.

A seguir, estabeleci contatos telefônicos e presenciais com pessoas ou profissionais

responsáveis pelas demandas apresentadas acima. Como todos os contatos e situações

levantadas apontavam um quadro não favorável à resolução dos problemas vivenciados pelas

famílias daqueles núcleos, resolvi expor o resultado dos encaminhamentos ao grupo local e

propor procedimentos que viessem ter desdobramentos práticos. Entre as propostas, estavam:

a realização de um levantamento sobre a situação da saúde e o saneamento com apoio do

técnico de enfermagem50 e profissional da área de saneamento51.

Após o levantamento foi possível com apoio e orientação do técnico de enfermagem a

aquisição de medicamentos necessários junto à FUNASA, para orientar as famílias sobre o

tratamento da água. Posteriormente, com o apoio de um profissional da área de saneamento,

identificamos as principais parasitoses vinculadas à água, e a melhor orientação quanto ao seu

uso e consumo para evitar a presença de doenças relacionadas à mesma. Outras pessoas52 e

instituições foram se sensibilizando com os fatos e passaram a contribuir com os grupos locais

através de doações de recursos financeiros para a compra - ou doações - de filtros para cada

unidade residencial.

No que diz respeito à problemática relacionada às ameaças aos recursos naturais está a

exploração ilegal de madeira. Situação que se agravou em função da ausência de serviços que

deveriam ser disponibilizados pelos órgãos responsáveis pela proteção dos territórios

indígenas, visando assegurar os direitos desse povo. Com a ausência de uma infra-estrutura de

comunicação através de radiofonia nos grupos locais e a vasta extensão territorial, têm levado

os Ka’apor a buscar estratégias próprias de comunicação e defesa de seu território.

49 Município onde está instalado uma Unidade (Pólo) de Saúde Indígena para atender todos os núcleos de três etnias da região: Guajajara (dois núcleos), Guajá (dois núcleos) e Ka’apor (catorze núcleos) 50 O técnico de enfermagem só se desloca para realizar o atendimento no Posto de Saúde do núcleo quando dispõe de recursos financeiros e recursos materiais. Quando permanece no núcleo fica em torno de vinte dias, tendo posteriormente, dez dias como folga. 51 Para as orientações e o levantamento inicial referentes às situações relacionadas à área de saneamento, sobretudo, da água, contei com o apoio voluntário de um Engenheiro Sanitarista e Ambiental da Universidade Federal do Pará. 52 Entre as pessoas estão as lideranças de movimentos sociais e lideranças religiosas da Igreja Católica no município de Nova Olinda do Maranhão.

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Essas realidades enfrentadas pelos grupos locais da região do Turiaçu, não se

diferenciavam da realidade da região do rio Gurupi. E, à medida que eu era acionado para

intermediar as questões relacionadas às demandas sociais dos grupos locais dessas regiões,

minhas relações eram estreitadas com as unidades residências. O exemplo disso ocorreu com

a Associação Indígena da região do Gurupi, quando minha relação com lideranças indígenas

dos grupos locais dessa região, sobretudo, as dos núcleos Xié pihu renda e Paraku’y renda,

levou-me a acompanhá-los na elaboração de projetos que potencializassem a produção de sua

cultura material, especificamente a confecção de artefatos, de utensílios, de indumentárias e

de instrumentos musicais, tanto para uso diário quanto para uso ritual53.

Contudo, esse estágio de relação com os grupos locais me levou a transformar esses

lugares em lugar de moradia deslocada54 e provisória, como bem lembra Clifford (2000).

Para mim, representou lugar de trabalho e de crescimento pessoal junto aos interlocutores,

onde tenho procurado superar meus limites acadêmicos e pessoais, a aperfeiçoar minhas

potencialidades para a formação profissional e o comprometimento político-social com os

Ka’apor. Sendo assim, com a permissão concedida e os compromissos firmados pude

desenvolver outras etapas da pesquisa etnográfica.

A relação de sociabilidade com o grupo permitiu a minha iniciação como antropólogo,

possibilitando-me conhecer, respeitar e compreender melhor os processos de reprodução dos

saberes, assim como, os diferentes espaços de interação social em que se reproduzem.

Para uma análise possível e coerente da sociedade; cuidados necessários para não cair

no risco de estabelecer parâmetros com visões compartimentadas dos fenômenos culturais,

procurei adotar uma perspectiva que, compreendesse – a sociedade - em sua totalidade

(DURKHEIM: 2000)55, enquanto dimensão complexa e relativa a fenômenos sociais

indissociáveis, aproximando-se das análises de Mauss (1974; 2001) acerca de fenômenos

sociais enquanto “fatos sociais totais”; considerando-os capazes de reunir indissociavelmente

53 Tal relação culminou na elaboração do Projeto “Arte Viva Ka’apor” que em linhas gerais visa potencializar a produção cultural, sobretudo, a cultura material utilizada em atividades diárias e nos rituais (adornos, artefatos, indumentárias, instrumentos musicais, pintura corporal, cantorias, danças, entre outros.) visando a afirmação da identidade étnica e o desenvolvimento auto-sustentável das famílias. O projeto, após avaliação e análise técnica foi aprovado pela Coordenadoria Ecumênica de Serviços (CESE) e Secretaria Estadual de Cultura (SECULT)/Pará através do Edital de Apoio a Projetos, que criarão os chamados Pontos de Cultura no Estado. O projeto conta atualmente com apoio da CESE, enquanto aguarda a liberação de recursos financeiros pelo Ministério da Cultura (MINC) para iniciar suas atividades. 54 Como se refere James Clifford ao tratar do campo como o lugar concreto de atividade profissional dos etnógrafos. Conferir: CLIFFORD, 2000: 55. 55 Segundo Durkheim (2000), a noção de totalidade passa a se constituir a partir das relações sociais internas de um grupo, sobretudo, os grupos que possuem uma identidade própria e se autodefinem enquanto tal. Contudo, a noção de todo, orientada por um pensamento coletivo, teria se desenvolvido através da religião, criando assim, as bases para a construção de uma identidade de grupo. Conferir: DURKHEIM, Émile. As Formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

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as pessoas e as coisas pertencentes a uma sociedade em seus diferentes aspectos e pontos de

vista.

Nestes termos, entendi também ser possível olhar a cultura Ka’apor como um texto56

que, posteriormente, poderá ser reinterpretado por mim e pelos interlocutores, revelando-se,

assim, um elemento importante quando se pensa na construção de um texto polifônico.

Seguindo as reflexões de Clifford (1998), que concebe a etnografia como experiência

e interpretação, envolvendo “sujeitos conscientes e politicamente significativos” (p. 43),

considero haver uma reciprocidade na interpretação. Pois, são os interlocutores que têm

possibilitado a minha estadia nos grupos locais, a partir de sua abertura para os diálogos e o

acesso às informações referentes a uma leitura possível da sua cultura. Acredito, portanto, na

“produção colaborativa do conhecimento etnográfico” (54). Além disso, as interpretações só

foram possíveis quando concebi essa produção como uma autoria plural57, considerando os

diferentes lugares, as múltiplas vozes e olhares na interlocução.

Entre as diferentes atividades realizadas no período que intercalou o estudo e a

pesquisa, estavam: as leituras, os fichamentos de obras e de textos referentes à temática em

estudo juntamente com a análise de material registrado em campo, reafirmando assim, a idéia

de Geertz (1998) sobre a primeira etapa da investigação empírica, quando lembra que, para

olhar e ouvir se faz necessário “estar lá”58, vivendo o campo e não no campo. Utilizei o diário

de campo para o registro dos “imponderáveis da vida real”59, situações, momentos, eventos

relevantes do cotidiano, que entendi integrarem elementos essenciais da vida social do grupo.

Embora o diário de campo seja considerado como um instrumento necessário e

indispensável para o pesquisador em qualquer experiência etnográfica, por vezes, encontrei

limitações para utilização desse instrumento. Sobretudo, a pouca habilidade na

rememorização dos fatos para o registro no diário.

É por essas razões e outras mais, que o diário de campo tem representado na prática, a

atitude fundamental do antropólogo, no que se refere ao caráter interpretativo do seu ofício,

56 Expressão que evoca a experiência etnográfica aliada à interpretação, onde Dilthey compara a compreensão de formas culturais com a leitura de “textos”, assim como, poderia ser com os “eventos”, “fatos”. E esse procedimento só é revelado quando é sentido, percebido, há inferência de. Conferir: DILTHEY, 1914 & RICOEUR, 1971 Apud CLIFFORD, 1998: 35. 57 Procedimento que repensa o papel dos interlocutores, quando saem do status de anunciadores ou “informantes” a co-autores no processo da construção teórica. Nesse sentido, conferir CLIFFORD, James. “Sobre a autoridade etnográfica” In A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998, p. 55. 58 Como nos orienta Geertz sobre os passos que o etnógrafo deve ter. Conferir: GEERTZ, Clifford. “Do ponto de vista dos nativos” In O Saber Local – novos ensaios em Antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 106-107; Cardoso de Oliveira, R. O trabalho do Antropólogo. São Paulo/Brasília, UNESP, 1998, p. 25. 59 Cf. MALINOWSKI, 1978:29.

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diante da cultura do outro. Portanto, frente a tal situação, tirei lições das reflexões de Boas

(1896; 1920; 1930)60, Malinowski (1967; 1978), Evans-Pritchard (1978) e, especificamente

àquelas referentes aos Ka’apor. Obtive muitas lições a partir das etnografias de Huxley

(1963), Darcy Ribeiro (1954), Samain (1984-85), entre outros.

Um outro recurso relevante, mas que também exige cautela por parte de qualquer

pesquisador em sua utilização para a garantia do respeito e do direito à imagem, foi o uso da

máquina fotográfica. Embora não demonstrasse familiaridade e nem dispusesse

permanentemente deste recurso em minhas incursões, sua utilização ficou limitada a ocasiões

em que era solicitado para registrar imagens que seriam de interesse das pessoas, ou quando

solicitei às pessoas para ser utilizada em minha etnografia. Nestes termos, vale ressaltar que

inúmeras vezes as pessoas solicitaram o registro de imagens para serem utilizadas no intuito

de rememorarem a imagem de pessoas, de momentos e eventos, pois afirmavam que esses

materiais iriam ser “guardados” e lembrados futuramente em ocasiões pela chegada de novas

gerações, ou como costumam se referir, u’ariha angaha rehe uhyk uwyr (quando o tempo de

nascer chegar)61.

Por outro lado, após um vasto levantamento de referenciais em diferentes fontes que se

referiam ao Povo Ka’apor, encontrei diversos materiais que expressavam linguagens culturais

ou aspectos da vida do povo que, posteriormente, foram disponibilizados por mim aos grupos

locais do território. Entre esses recursos metodológicos identificados, estão fontes impressas,

visuais e sonoras. Sendo que o acesso aos materiais se deu através de doação de autores,

organizadores e colaboradores.

Entre os materiais adquiridos durante o levantamento feito às fontes estão: o CD com

cantorias de pajés e sons de flautas gravados e organizados em Vinil em 1981, por Etienne

Samain62; o DVD Índios do Brasil, da Cinemateca Sylvio Back – Museu Nacional do Rio de

Janeiro, com cenas gravadas na década de 1950 de um casamento Ka’apor na antiga “Aldeia”

Gurupiúna; o DVD de Documentação sobre a Festa do Kawĩ e Cantos e Mitos Ka’apor

narrados por Jupara63, ambos realizados no grupo local Xié pihu renda em outubro de 2007

com a colaboração do Museu Paraense Emílio Goeldi.

60 Cf. CASTRO, Celso. Antropologia Cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. 61 Tal expressão foi usada por Kim Kim por ocasião de nossas conversas no núcleo Capitão Mira em maio de 2008 quando conversamos sobre o registro das imagens de pessoas e momentos no cotidiano de grupos locais. Naquele momento, lembrou que se tivesse “aparelho de branco” (se referindo à máquina fotográfica), poderia ver os parentes que já partiram, “[que] foram embora pra longe” (faz gesto unindo as duas mãos em forma vertical elevando em direção ao céu). 62 Material sonoro doado pelo antropólogo Etienne Samain, coletado em 1981 na “Aldeia” Gurupiúna (extinta há cerca de 10 anos) devido a sua estadia junto aos Ka’apor neste período. 63 Liderança religiosa residente no núcleo Xié pihu renda.

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Todo o material áudio-visual adquirido por mim através de doações para o estudo foi

reproduzido e distribuído para lideranças durante minha estadia nos núcleos do território. E, à

medida que recebiam, buscavam meios para visualizá-los ou ouvi-los, com o objetivo de

identificar, rever e lembrar de imagens e sons onde reconheciam os parentes que partiram para

outros lugares, ou se dispersaram no território.

Todos esses recursos subsidiaram minhas relações com o lugar de estudo e os

interlocutores, indicando-me uma visão integrada das diferentes faces ou linguagens culturais

Ka’apor, assim como, na perspectiva de considerar o “olhar” como um procedimento

essencial na compreensão da cosmologia do grupo.

Na maioria das sociedades indígenas, o kosmos (o universo, a ordem, a estrutura)

como se pensava na Grécia, representa um elemento expressivo de sentido às suas vidas, ou

seja, implica a compreensão e a explicação de uma totalidade que tem tal dimensão como

parâmetro.

Viveiros de Castro (2008) em seus estudos na área da Etnologia, sobretudo, junto às

sociedades indígenas, orientado pelo perspectivismo ameríndio64 afirma que é possível

caracterizar o estudo da cosmologia como a possibilidade de compreender “o pensar...

presente no modo de ser, modo de viver e pensar indígena, (...) pois, todo coletivo humano

exprime posição diante do mundo; e que este pensamento surge do pensamento embutido na

prática”65. Categoria de pensamento que possibilita o reconhecimento dos seres e de seus

universos no cotidiano dos grupos locais (SEEGER, 1981:21)66

Os estudos sobre a cosmologia de sociedades indígenas na Amazônia têm alcançado

uma relevância significativa para a compreensão da epistemologia dessas sociedades na

América do Sul, diferentemente dos modelos importados construídos a partir de outras

realidades etnográficas que não as deste continente.

64 Esse termo está associado ao resultado das etnografias realizadas por Viveiros de Castro na Amazônia, que o possibilitaram que sistematizasse inúmeras experiências, denominando-as de perspectivismo como uma “teoria indígena, segundo o qual, o modo como os humanos vêem os animais e outras subjetividades que povoam o universo — deuses, espíritos, mortos, habitantes de outros níveis cósmicos, fenômenos meteorológicos, vegetais, às vezes mesmo objetos e artefatos —, é profundamente diferente do modo como esses seres os vêem e se vêem”. Conferir: VIVEIROS DE CASTRO, E. “Os Pronomes Cosmológicos e o Perspectivismo Ameríndio”. Mana, 2(2): 115-144, 1996. 65 Afirmações do autor na Conferência sobre Cosmologia Indígena realizada no Museu do Índio, no Rio de Janeiro em 22 de julho de 2008, por ocasião da realização do Curso Dimensões das Culturas Indígenas: Cosmologia, Arte e Etnicidade. 66 Cf. SEEGER, Anthony. Fature and Society in Central Brazil: The Suya Indians of Mato Grosso. Cambridge: Harvard University Press, 1981, p. 21.

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A partir de Lévi-Strauss, com As Mitológicas67 em seus quatro volumes que se

sucederam de 1964 a 1972, onde o autor procura evidenciar a lógica do sensível, do concreto

e do real68 presentes nos 820 mitos que analisa em concomitância com o Pensamento

Selvagem, de 1961, passou-se a reconhecer a grande relevância da cosmologia para os

modelos interpretativos, como forma de interpretar as sociedades. A cosmologia, desta

maneira, possibilita a compreensão das especificidades nas diferentes sociedades em relação,

sobretudo, nas sociedades indígenas.

Portanto, para a meta de estudo, a cosmologia constitui-se em um dos elementos

norteadores das análises de narrativas, interpretações e explicações do mundo pelos Ka’apor,

quando passam a valorar e a significar o saber-fazer a partir de diferentes formas de

sociabilidade e espaços de socialização. Portanto, trata-se de um elemento determinante que

orienta a compreensão das categorias nativas.

Além de compreender “as relações sociais, os acontecimentos, as coisas materiais

como base que constitui a cosmologia”69 do grupo, acredito que esses momentos junto aos

Ka’apor revelam temporalidades que indicam um outro elemento essencial neste estudo

etnográfico, que é, justamente, o termo, ou conceito de cosmografia, trabalhado por Paul

Little (2002). Tal noção tem ressonância com os relatos Ka’apor quando se referem a

qualquer aspecto da cultura em relação ao território de pertença, ou ainda, aos seus vínculos

simbólico-afetivos com o lugar (SILVEIRA, 2004)70.

A cosmografia seria, para este autor, um aspecto fundamental da territorialidade

humana que tem uma multiplicidade de expressões, produzindo um leque muito amplo de

tipos de territórios, cada um com suas particularidades socioculturais e ambientais. Assim, a

análise antropológica da territorialidade também precisa de abordagens etnográficas para

entender as formas específicas da diversidade na constituição do território.

Little (2002), no objetivo de entender a relação particular que um grupo social mantém

com seu respectivo território, utiliza o conceito de cosmografia como “os saberes ambientais,

ideologias e identidades − coletivamente criados e historicamente situados − que um grupo

social utiliza para estabelecer e manter seu território” (p.4). Segundo ele, a cosmografia de um

67 Cf. LÉVI-STRAUSS, Claude. Mitológicas em O Cru e o cozido (1964); Do mel as cinzas (1966); Origem dos modos à mesa (1968); O homem nu (1972). São Paulo: Brasiliense, 2001. 68 Cf. SAMAIN, Etienne. Reflexões críticas sobre o tratamento dos mitos. Revista de Antropologia, (27/28), 1984/85, p. 237. 69 Cf. GONÇALVES, Marco Antonio. O Mundo Inacabado. Ação e Criação em uma Cosmologia Amazônica. Etnografia Pirahã. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2001, p. 32. 70 Cf. SILVEIRA, Flávio Leonel Abreu da Silveira. As paisagens fantásticas e o barroquismo das imagens. Estudo da memória coletiva de Contadores de Causos da Região Missioneira do Rio Grande do Sul. Tese de Doutorado. Porto Alegre, 2004, p.162 – 190; 235 -270.

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grupo inclui seu regime de propriedade, os vínculos afetivos que mantém com seu território

específico, a história da sua ocupação guardada na memória coletiva, o uso social que dá ao

território e as formas de defesa empregadas para resguardá-lo.

Como portadores de saberes adquiridos por seus ancestrais, os Ka’apor realizam

cotidianamente em seu território tais relações de reconhecimento da natureza que têm sentido

para sua vida cotidiana. São procedimentos resultantes da interação e de sociação no e com o

ambiente, sobretudo, para o desenvolvimento da coletividade. Tal questão é confirmada por

Ribeiro (1974) quando se refere ao conhecimento dessa sociedade em relação à diversidade da

flora e da fauna do território, que seria uma dimensão cultural do grupo, pois: “[...] é a

ciência, o saber tradicional dos índios Urubus que os guia na luta diária pela sobrevivência.”

(p.36)

Por fim, é orientado pela compreensão do olhar Ka’apor sobre o seu universo

cosmológico e a compreensão dos princípios que determinam as suas relações no território,

que realizo a seguir uma apresentação da sociedade Ka’apor a partir de diferentes aspectos

que configuram o yman te (tempos passados, ou ainda, há muito tempo atrás) e o apo (o

tempo presente, o agora) em seu henda (o lugar, o grupo local), no caso, o lugar privilegiado

deste estudo.

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II

Ja sa katu ehe rym

Pra entender é preciso conhecer

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(gã uhem py rahã, quando ele apareceu pela primeira vez

Tudo era claridade, não existia nada. No principio não existia nada, só Maíra e aquele clarão. Maíra fez a terra e os rios grandes, depois mandou um macaco gigantesco plantar a mata. Quando a mata já estava pronta, Maíra fez as gentes, antes disto fez Tapĩtĩ para ser seu irmão e mandou para o norte; Maíra ficou no sul. Depois de fazer as coisas, Maíra perguntava o nome, elas diziam: “eu sou mandioca”. Cada coisa disse seu nome e Maíra os ensinou aos Ka’apor. Maíra só fez os grandes rios e a mata. Os igarapés, as caças e os peixes foram feitos pelo filho de Maíra, para que a gente pudesse viver. Os homens foram feitos de madeira. Maíra fez os Ka’apor de pau d’arco (tadyki), aos Karaiwa (brancos) de sumaúma (axuigi) e aos Guajá de pau podre, por isto vivem no mato, não fazem casa, só comem coco. Maíra queria que os Karaiwa fizessem as coisas tão bem como ele próprio, que fossem iguais a ele... Maíra é como Ka’apor, moreno, pinta-se também com jenipapo e urucu, amarra o membro viril e usa diadema de japu como nós... Um Ka’apor viu Maíra. Levava seu diadema de Japu. Quando foi chegando gritou: ‘eu sou Ka’apor, sou forte’. Maíra disse também: ‘eu sou Ka’apor, sou forte’. Viu o diadema escondido e deixou aquele homem ficar lá na morada dele. (RIBEIRO, 1980: 20-21; 24-25)

Assim como as demais sociedades indígenas no Brasil, os Ka’apor também têm uma

explicação para a origem do grupo, sobretudo, kome’ẽ ywy keruhu nixoi rahã (quando não

existia esta terra, este mundo). E, como os outros grupos Tupi, têm em Maíra ou Mair, àquele

que cria as pessoas, o mundo e tudo que é necessário para que esses seres vivam nele; o têm

como um ser que vai muito além de um herói mítico e civilizador, mas um ser presente e

atuante na vida do povo indígena; que continua até o presente momento sendo rememorado e

atualizado pelo grupo em diferentes momentos de sua vida.

Essas narrativas míticas possuem um significado prático para o grupo, como lembra

Lévi-Strauss (1991) ao reconhecer que estes relatos representam um instrumento importante

para cada cultura, sobretudo, porque constituem em si inúmeras significações da vida do

grupo.

Contudo, percebi que as afirmações de Métraux (1979)71 sobre os manuscritos de

Thevet, confirmam as explicações do que Mair representa para esses povos:

[E]sse nome significa ‘transformador’, designação perfeitamente conveniente a um deus que ‘deu ordem, de acordo com seu bel-prazer, a todas as coisas, afeiçoando-as de vários modos e, em seguida, convertendo-as em diversas figuras e formas de animais, de pássaros e de peixes, de conformidade com as regiões; até, mudando o homem em animal para puni-lo, como bem lhe parecia, por sua maldade (p.2).

71 Cf. MÉTRAUX, Alfred. A religião dos Tupinambás e suas relações com as demais tribos tupi-guaranis. Coleção Brasiliana. São Paulo: Ed. Nacional e EDUSP, 1979.

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Tal relato sobre a origem Ka’apor também demonstra que antes de Maíra não existia

nada e, que este foi a fonte principal para razão da existência do ser nesta sociedade.

Métraux (1979) continua apresentando a natureza ou as explicações que fundamentam

a criação da humanidade pelos grupos Tupi: “Os homens surgem, em seus mitos, como

contemporâneos dos heróis lendários, não propriamente os heróis-criadores, já os

encontrando, em dado momento de suas aventuras, povoando a terra” (p. 34).

Quanto à origem da humanidade, o grupo também possui explicações para sua

autodenominação, embora existam outras denominações atribuídas ao grupo. Ka’apor tem

sido a expressão utilizada pelo grupo para diferenciar-se das expressões evocadas por não

indígenas e outros grupos da região, como os Tembé, os Guajajara72 e os Guajá73.

Trata-se de um povo de língua Tupi que vive na Terra Indígena Alto Turiaçu, às

margens de pequenos cursos d’água que correm para o Gurupi (Alto Gurupi), Turiaçu e o

Pindaré, no território maranhense.

Ribeiro (1996), durante os seus estudos, visitou grupos locais em que os mais antigos

ou velhos Ka’apor utilizavam outra expressão similar a esta última, que era o Kaaporté, que

diziam ser “moradores da mata”. Entre outros nomes pelos quais eram conhecidos, figuram os

seguintes: Urubu, Kambõ, Urubu-Caápor, Urubu-Kaápor, Kaapor. Sendo que Ka’apor

parece derivar de Ka’a-pypor, que significa “pegadas na mata”, podendo ser associada ainda,

àqueles que são os “moradores da mata”. Contudo, essa última expressão, na verdade, caberia

melhor à nominação atribuída pelos Ka’apor atribuem aos indígenas caçadores coletores

Guajá, seus vizinhos, aos quais denominam Ka’aperar74.

72 Os Guajajara, povo Tupi-Guarani maranhense, da Família Tenetehara juntamente com os Tembé, são povos que permanecem até hoje em seus territórios originários: regão do Grajaú, Mearim e Pindaré. Embora se autodefinam como Tenetehara, os nomes Guajajara (os donos do cocar) e Tembé ou Timbeb (nariz chato), foram nomes adquiridos. Eles habitam nove terras indígenas na margem oriental da Amazônia, Estado do Maranhão: Pindaré e Caru; Ariribóia; Bacurizinho; e Morro Branco, Lagoa Comprida e Urucu/Juruá; Canabrava/Guajajara e Roedor. Geograficamente, situam-se na chamada Pré-Amazônia maranhense. Conferir: WAGLEY e GALVÃO, 1955; ZANNONI, Cláudio. Conflito e Coesão: o dinamismo tenetehara. Brasília: Conselho Indigenista Missionário, 1999, p. 19-23. 73 Os Guajá, povo indígena da família Tupi, vivem na pré-Amazônia brasileira, região do Gurupi, Estado do Maranhão, constituem um dos últimos povos caçadores e coletores no Brasil, encontram-se atualmente em situação de constantes ameaças em seu território. Além dos grupos aldeados pela Fundação Nacional do Índio (Funai), existem grupos de Guajá que se encontram em permanente deslocamento entre os territórios de outros povos da região (Krikati e Guajajara) e na área da Reserva Biológica do Gurupi. Sem contato permanente com a sociedade regional, vivem sob ameaças de pecuaristas, madeireiros e posseiros. Conferir: GOMES, Mércio Pereira. “O povo Guajá e as condições reais para a sua sobrevivência”. In: RICARDO, Carlos Alberto (Ed.). Povos Indígenas no Brasil: 1987/88/89/90. São Paulo: CEDI, 1991, p. 354-60. 74 Para melhor conhecer o contexto em que Darcy Ribeiro constatou essa variação nos nomes ou expressões dadas à sociedade indígena em estudo, conferir: RIBEIRO, Darcy. Diários índios: os Urubu-Kaapor. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 204.

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Ka'apor ou Ka'apór (o apóstrofo representa uma parada da glote; o acento tônico na

língua Ka’apor em geral cai na última sílaba). A pessoa também pode ser identificada na

língua Ka'apor como awa, que se refere à forma reflexiva ("alguém") e ao sujeito, enquanto

pessoa, nas sentenças interrogativas. A palavra awa ainda está relacionada com os termos

inflexivos referentes à "pessoa" e "povo" em várias outras línguas Tupi-Guarani75. Kambõ foi

assimilado do português "caboclo", um termo aplicado aos Ka'apor e outras pessoas,

provavelmente, de origem amazônica, o termo é usado frequentemente pelos que falam a

língua Ka'apor numa auto-referência quando em conversa com terceiros.

Contudo, a denominação “Urubu”, embora tenha sido uma atribuição dada aos

Ka’apor durante séculos, e registrada em inúmeras etnografias sobre o grupo, Huxley (1963),

reconhece que tal atribuição foi dada durante o século XIX pelos inimigos luso-brasileiros,

sendo esta terminologia atribuída pelos próprios interlocutores Ka'apor, embora estes não se

refiram a si mesmos, desta forma, quando falam com terceiros. Por outro lado, existe a

informação de que esta denominação pode ter sido utilizada pelos Tembé ao se referirem aos

Ka’apor como urubu tapii, que significa “abutre bárbaro”. Tal expressão teria sido com o

passar do tempo, assimilada pelos regionais, chegando a ser adotada até hoje por muitos ao se

referirem aos Ka’apor.

Os termos com hífen Urubu-Caápor e Urubu-Kaápor, por sua vez, foram introduzidos

pelos indigenistas brasileiros nos anos 50, numa tentativa de padronizar, na Etnologia, a grafia

dos nomes de grupos indígenas. Por outro lado, as sociedades indígenas se utilizam dos

processos lingüísticos para revelar os processos de sua cultura, mostrando assim, as

complexas relações entre língua e cultura na ação. Para isso, os Ka’apor possuem uma

linguagem própria que dá sentido à vida em sociedade, veiculando as visões de mundo e os

preceitos ético-estéticos inerentes ao grupo.

Awa je’êha,76sobre a língua Ka’apor

Ka'apor é uma língua do tronco lingüístico Tupi-Guarani. Não é falada por nenhum

outro grupo conhecido, exceto como segunda língua por alguns Tembé e outros moradores da

região do Gurupi etnicamente não considerados Ka'apor; além disso, dialetos da língua são

75 Cf. KAKUMASU, James Y. Gramática Gerativa Preliminar da Língua Urubu. Série Lingüística, Brasília, nº 5, 1976, p. 171-197. 76 Termo utilizado pelos Ka’apor quando fazem referência à língua, “a língua Ka’apor”.

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minimamente desenvolvidos. Pequenas diferenças léxicas e livres variações podem ser

notadas entre o povo Ka'apor originário dos grupos locais da bacia do Turiaçu e o da bacia do

Gurupi (KAKUMASU, 1976; 1988). A língua não se aproxima das línguas Tupi-Guarani

faladas pelos grupos mais próximos geograficamente, como os Tembé (Tenetehara) e Guajá:

das duas, parece ser ligeiramente próxima, léxica e foneticamente, com o Guajá.

Segundo Correa da Silva (1997), historicamente, é provável que a língua Ka'apor

esteja mais intimamente relacionada à Wayampi77, que é falada a uma distância de 900 km, no

outro lado do rio Amazonas. Ambas foram altamente influenciadas nos últimos trezentos anos

por outras línguas. A língua Ka'apor parece ter sido mais influenciada gramaticalmente pelo

�heengatu78; a Wayampi, pelas Carib setentrionais. Uma grande diferença entre elas é a

tonicidade: na língua Ka'apor, as palavras são normalmente oxítonas; na Wayampi,

paroxítonas.

A autora continua afirmando que, durante estes estudos foram considerados dados

sincrônicos – a análise comparativa da gramática e do léxico da língua Ka’apor com o

Wayampí, o Tembé, o �hengatu e o Tupinambá79 – e dados diacrônicos – a análise do

desenvolvimento da língua a partir de formas reconstruídas para o Proto-Tupi-Guarani.

Em seu trabalho também foram utilizados dados etnohistóricos, etnográficos e

etnocientíficos, como uma forma de melhor fundamentar a reconstrução histórica almejada.

Embora não existam regras de distinção entre falas masculinas e femininas, os Ka'apor são

lingüisticamente peculiares na Amazônia por terem uma linguagem padrão de sinais, usada

para a comunicação com/entre os surdos, que até a metade dos anos 80 compunham cerca de

77 Os Wayampi, são falantes do Tupy-Guarani, habitam vasta extensão da floresta tropical de terra firme entre Brasil e Guiana Francesa. A população total da etnia é de cerca de 800 pessoas, distribuídas em vários grupos territoriais: na Guiana 440 pessoas habitam o alto do rio Oiapoque; no Brasil, a área de concentração da etnia situa-se na região do Amapari, noroeste do Amapá, onde 310 Wayampi distribuem-se entre 11 aldeias; algumas famílias ainda habitam o Parque Indígena do Tucumaque, no Pará. São os mesmos Guaiapi, mencionados na região do baixo rio Xingu, sua área de origem, desde o século XVII. Conferir: GALLOIS, Dominique. "Os Wayãpi e seu Território". Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, Nova Série, Antropologia 80, 1981; GALLOIS, Dominique T. Waiãpi. Verbete da Enciclopédia Povos Indígenas no Brasil. São Paulo: Instituto Socioambiental. Consultado em 12/06/2008. [http://www.socioambiental.org] 78 O �heengatu, também conhecido como língua geral da Amazônia, é uma língua do tronco Tupi, da família Tupi-Guarani. Trata-se da língua materna de parte da população cabocla do interior amazônico, além de manter o caráter de língua de comunicação entre índios e não-índios, ou entre índios de diferentes línguas. A expressão língua geral tomou um sentido bem definido no Brasil nos séculos XVII e XVIII, quando, tanto em São Paulo, como no Maranhão e Pará, passou a designar as línguas de origem indígena faladas, nas respectivas províncias, por toda a população originada no cruzamento de europeus e índios tupi-guarani (especificamente os tupis em São Paulo e os tupinambás no Maranhão e Pará). Conferir: RODRIGUES, Aryon D. Línguas brasileiras: para o conhecimento das línguas indígenas. São Paulo: Loyola, 1986: 101. 79 É uma denominação empregada no período colonial e nos períodos posteriores aos grupos indígenas descritos e compreendidos na época da colonização do Brasil, como que grupos que contataram com os não indígenas do Rio de Janeiro e da Bahia, os quais, posteriormente povoaram o Maranhão, o Pará e sua região litorânea. Conferir: FERNANDES, Florestan. “Introdução” In A organização Social dos Tupinambá. São Paulo: HUCITEC; Brasília, Editora UnB, 1989, p.16.

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2% da totalidade de sua população. A incidência de surdez deveu-se evidentemente à bouba

neonatal e endêmica, que foi erradicada. Na época, cerca de 60% do povo falava apenas

Ka'apor; os outros 40% falavam português. Devido à relação estabelecida com outros grupos

da região, também aprenderam a falar as línguas Tembé e Guajá.

Hoje, a presença de ipo te’e pandu80 ( surdos), como se referem, ainda é uma realidade

nos grupos locais, embora com uma população reduzida em relação aos períodos de outrora.

Talvez seja importante, a princípio, apresentar elementos de caráter sócio-cultural que tem

identificado tal forma de comunicação, sendo determinantes para a construção de linguagens

de sinais utilizadas pelo grupo, quais sejam: o número de ipo te’e pandu, a categoria de idade

que ocupam na sociedade Ka’apor, a relação que a sua família tem com as demais, ou seja, o

contexto social do grupo local.

Chiodi (1993) compreende que, para as famílias indígenas, a linguagem tem

representado um valor pragmático como meio de comunicação; também assumida como um

“instrumento de interação social” (...), pois, tem se tornado “um ato comunicativo em um

contexto real e funcional.” (p.147)

O fato da sociedade Ka’apor pensar e significar uma forma de comunicação através de

gestos mostra a sua capacidade de construir cognitivamente estratégias comunicacionais e

educativas, pois elaboraram um sistema próprio de linguagem, de maneira a possibilitar um

intenso diálogo com os ipo te’e pandu. Portanto, o grupo engendrou um processo próprio de

educar e socializar essas pessoas sem que venham a ser segregadas, como acontece em alguns

casos nas sociedades não-indígenas, ao ponto de pessoas com essas limitações serem

desprezadas pelas famílias em instituições especializadas, impossibilitando sua socialização

com as pessoas ditas “normais”. Contudo, tendo seus direitos desrespeitados e dignidade

cerceada.

Com isso, a educação nessas sociedades tem cumprido um papel que não está restrito

apenas em socializar essas pessoas, mas em reconhecer a sua dignidade como tal. Ou seja, em

mostrar que o potencial e a possibilidade de ser e fazer estão além das limitações que alguém

pode apresentar nesta sociedade. Portanto, o aprendizado tem sido um elemento que os torna

sempre sociáveis, não estando restrito a um espaço institucional.

Em outro contexto, constata-se que a instituição escola tem convivido com situações

diversas entre os Ka’apor, ora expressando possibilidades na construção de novas relações

80 Sobre o termo utilizado e o fato da existência de pessoas surdas entre os Ka’apor, tem sido uma das questões relevantes para compreender como uma possibilidade do ser e fazer educação Ka’apor.

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pelo grupo junto aos não-indígenas, ora caracterizando-se como um espaço a ser conhecido,

aprimorado por esta sociedade.

Nesse sentido, tais características resultam de como a escola chegou até ao grupo.

Nota-se que a partir dos anos 1970, a educação primária nas “escolas da FUNAI”, do Posto

Canindé no Rio Gurupi, bem como, no grupo local Zé Gurupi, município de Zé Doca, às

margens do Pindaré, começou a ser oferecida em português e na língua Ka'apor.

Hoje, embora o ensino nessas línguas constitua-se uma realidade nos grupos locais da

região norte81 e menos ao sul82 da Terra Indígena Alto Turiaçu, ainda existem núcleos em que

as famílias permanecem apenas falantes da língua Ka’apor, como é o caso dos núcleos com

menor população, as que se formaram recentemente por cisões internas ou busca de

referenciais de sobrevivência, que estão localizadas em regiões de difícil acesso ou estão

localizadas em regiões mais ao centro do território indígena.

Porém, vale ressaltar que o termo “bilíngue”83 ou situação de bilingüismo, que na

maioria das vezes desconsidera a diversidade lingüística, apresenta-se como um conceito

relativo diante do fenômeno lingüístico, como afirma (MACKEY, 1970 apud MELIÀ,

1975)84. Pois, o bilinguismo apresenta-se mais como uma característica relacionada ao uso da

língua, pertencente ao domínio da fala e não da língua.

No que se refere ao ensino da língua nativa em relação à língua portuguesa, constata-

se inúmeras situações que revelam a que condição a primeira vem sendo submetida e que

estágio vem ocupando internamente nessas sociedades. Entre as situações presentes encontrei

palavras da língua nativa sendo incorporadas nos vocábulos de conversas em língua

portuguesa ou vice-versa. A primeira (língua nativa) sendo acionada no grupo em situações

confidencia na presença de não-indígenas, ou sendo acionada para impor uma condição

política perante aos conflitos interculturais. Além disso, percebi que, por vezes, a língua

nativa chegava a ser negada ou “esquecida” pelo povo, ou ainda, subsumida pela língua

81 Grupos locais Xié pihũ renda, Araçatiw, Paraku’y renda e Sítio Novo. 82 Grupos locais Zé Gurupi, Bacurizeiro, Turizinho e Paraku’y rendá. 83 Sobre a reflexão a cerca do conteúdo do termo “bilingue” e o que tem representado para as sociedades indígenas consultar: MONSERRAT, Ruth Maria Fonini. “A Língua Indígena na Escola: Questões de Política Lingüística”. In VEIGA, Juracilda & SALANOVA, Andrés. (Org.) Questões de Educação Escolar Indígena: da formação do professor ao Projeto de Escola. Brasília: FUNAI/DEDOC. Campinas/ALB, 2001, p. 127-159. 84 Sobre noções fundamentais do fenômeno do bilingüismo frente às sociedades indígenas, ver trabalhos de MACKEY, William F. The description of bilingualism. In FISHMAN, J. A. Readings in the sociology of language. The Hague, 1970, p. 554; e MELIÀ, Bartolomeu. Hacia una “tercera lengua” en el Paraguay. In Estúdios paraguayos. Vol. II, nº 2, Assuncion, 1975, p. 31 – 71.

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portuguesa. Essas são situações que revelam uma relação diglóssica85 ou antagônica entre as

línguas, aonde a língua portuguesa vem exercendo hegemonia em relação à língua nativa, que

permanece subalterna em relação à primeira.

Como exemplo, posso citar o caso de escolas Tembé da Reserva Indígena Alto Rio

Guamá (Pará) que, por ocasião de uma experiência pedagógica vivenciada nestas escolas,

constatei que o ensino da/na língua deixou de ser uma realidade nas “aldeias do Guamá” não

somente por fatores externos resultantes das relações estabelecidas de “troca cultural” ou

casamentos contraídos com não-indígenas, mas ocasionados por fatores historicamente

constituídos a partir da política de integração do Estado Brasileiro para as diferentes

sociedades indígenas.

Diferente de seus “parentes” das “aldeias do Gurupi”, que durante um longo período

fizeram com que a língua exercesse dois papéis fundamentais na sociedade Tembé, ou seja, se

tornasse um instrumento tático (meio) de defesa cultural e afirmação de sua identidade étnica

para um projeto estratégico (fim), em médio prazo, de defesa de seu território. Haja vista,

passarem hoje por situações vulneráveis de aliciamento frente aos grupos externos e ao

mercado madeireiro local.

Logo, as políticas de Estado para essas sociedades sempre foram e continuam sendo

pensadas a partir de parâmetros universalistas, capazes de realizar interferências no nível

micro (na língua, na escola) e modificar ou transformar o macro (o pensar, o ser).

Comprovando a estreita relação entre os diferentes aspectos da cultura, entre o político e o

lingüístico.

Como lembra Monserrat (2001), a ausência de uma política lingüística específica e

diferenciada a partir dessas sociedades tem tornado o ensino da língua com uma função

apenas escolar, referendando uma “incompatibilidade semântica entre a educação escolar e a

educação interna das culturas indígenas”, isto é, as línguas indígenas como instrumento “que

veiculam conteúdos curriculares que são alheios às culturas, ou modificados e adaptados ao

contexto indígena de uma maneira superficial”. (p.144)

Os projetos lingüísticos pensados para as sociedades indígenas carregam consigo

ameaças, sobretudo, nos grupos locais em que as crianças e os adolescentes passam a adotar o

português, passando a ter a língua nativa como segunda língua86.

85 A relação diglóssica entre línguas é uma relação que subtende uma relação assimétrica, onde uma exerce a função de ser a língua hegemônica, “oficial” e, outra, subordinada ou minoritária. Sobre essa relação entre línguas indígenas no Brasil, consultar MONSERRAT, 2001: 131-132. 86A afirmação foi confirmada nos estudos realizados por CHIODI (1993) ao descrever a visão que as comunidades indígenas têm sobre a linguagem. Conferir: CHIODI, F. ‘Los Problemas de la Educación Bilíngue

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Em resposta à possibilidade de desaparecimento ou morte de algumas línguas

indígenas, deduz-se que, a revitalização da língua e da cultura indígenas não se concretizará

apenas via escola, mas “dependerá da capacidade de resistência étnica desenvolvida pelo povo

indígena” 87 em todos os aspectos.

Nesse sentido, Monserrat (2001) afirma que uma situação de sobrevivência das línguas

indígenas envolve “um projeto de manutenção lingüística que deve considerar dois aspectos

distintos da língua: o código oral e o código escrito” (p.151). Portanto, de acordo com a

autora, não se trata de um em detrimento do outro, sobretudo, nessas sociedades que se

caracterizam pela tradição oral. E que, a escrita só terá uma função social se promover o uso

da língua escrita associado à oralidade, tornando a comunicação escrita em língua indígena

uma prática social para a garantia da autonomia sociocultural.

Contudo, no decorrer da história das sociedades indígenas no Brasil, um número

considerável de sociedades manteve suas línguas originárias e se instrumentalizaram a partir

de um processo de manutenção lingüística que os garantisse permanecer falando sua língua

original.

O que fica claro é que os fatos que sucederam a constituição da história de vida

coletiva dos Ka’apor mostram o processo que enfrentaram para manter os diferentes

elementos culturais que garantiram a sobrevivência e a reprodução social, política e cultural

do grupo.

Y man te,88 há muito tempo

Inúmeras fontes89 referem os Ka’apor como povo indígena que provavelmente tenha

vindo da região entre os rios Tocantins e Xingu, no Pará. Eles teriam realizado o seu

deslocamento devido aos conflitos com colonizadores luso-brasileiros e com outros povos

Intercultural en el área del lenguaje”. In Wolfgang, Kuper (Comp.) Pedagogia Intercultural Bilíngüe: fundamentos de la edicación bilíngüe. Quito, Ecuador: EBI & ABYA-YALA, 1993, p. 147-149. 87Diante dos futuros das línguas indígenas, HAMEL apresenta essa reflexão como possível reversão da eminência de línguas indígenas (Hamel Apud Monserrat, 2001: 150). 88 Termo utilizado pelos Ka’apor quando se referem à história do grupo, expressando em Português “muito tempo atrás”; a tempos passados. 89 Consultar entre outras: HUXLEY, Francis. Selvagens Amáveis. Uma Antropologia entre os índios Urubus do Brasil. São Paulo: Editora Nacional, 1963; RIBEIRO, Darcy. “Os índios Urubus: ciclo anual das atividades de subsistência de uma tribo da floresta tropical”. In Uirá sai à procura de Deus. Ensaios de Etnologia e Indigenismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974; SAMAIN, Etienne. A vontade de ser: notas sobre os índios Urubú-Kaapor e sua mitologia. RA 27/28: 245 262. 1984-85.

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nativos, iniciando, assim, uma longa e lenta migração que os levou, nos anos de 1870, do

Pará, através do rio Gurupi ao Maranhão.

Ribeiro (1974) afirma que os antepassados Ka'apor, que parecem ter fugido da

expansão da sociedade luso-brasileira no sul do Pará, chegaram e se estabeleceram nas suas

terras atuais no Maranhão, por volta do período de 1870. Porém, como grupo étnico distinto,

remonta a uma Amazônia Tupi-Guarani localizada entre o baixo Tocantins e o Xingu no final

do século XVII e início do século XVIII. Os habitantes nativos da região naquele momento

eram conhecidos como Pacajás.

Também existem informações de que os Wayampi é, provavelmente, outro grupo

derivado daquele centro (CORRÊA DA SILVA, 1997). Os Amanajós90 das bacias do baixo

Tocantins/Capim foram também originários de lá.

Os Wayampi, por sua vez, migraram para o norte, atravessando o rio Amazonas na

direção da sua localização atual ao longo da fronteira do Brasil com a Guiana Francesa.

Enquanto que os Ka'apor migraram para o leste, cortando o rio Tocantins. Os documentos

sobre suas histórias registram que se estabeleceram sucessivamente nas bacias do rio Acará

em1810, rio Capim em1825, rio Guamá em 1864, rio Piriá em 1875 e no rio Maracaçumé em

1878 (RIBEIRO: 1974).

Em 1734, os Tupinambá que desceram do sertão para se fixarem no Pará, por se

caracterizarem como nações guerreiras, foram utilizados como mão-de-obra do Estado na

região para capturar outros indígenas. Além disso, também eram utilizados nas frentes de

expansão de povoamento, como aconteceu na região do Tocantins (FERNANDES, 1989:47-

48). Logo, tal informação, como revela a literatura escrita sobre a época, reconhece uma

estreita relação ou descendência dos Ka’apor dos antigos Tupinambá (HUXLEY, 1963;

RIBEIRO, 1980/1996; LARAIA, 1984/1985).

Por outro lado, as inúmeras conversas com os Ka’apor acerca da referencia aos

“primeiros parentes” revelavam não somente uma estreita relação com os Tupinambá, mas

com o território de origem onde moravam seus “primeiros parentes”. Entre as inúmeras

narrativas que revelam essas similitudes, está a evocada na fala de Irakaju:

90 Povo indígena do alto Pindaré de fala e cultura tupi, supostos tradicionais inimigos dos Tenetehara, assim como os gamelas, timbiras e guajajaras. Eram reconhecidos como grupos indígenas procurados para serem atacados nas expedições militares oficiais no início do século XIX, conforme relatos do Capitão Francisco de Paula Ribeiro e Frei Francisco dos Prazeres Maranhão (1946), escrevendo na mesma época, chega a descrever alguns aspectos dos Amanajós, mas não menciona o nome Guajajara, a não ser em referência ao século XVII. Conferir: GOMES, Mércio Pereira. “Liberdade ainda que Recôndita” In O Índio na História. O Povo Tenetehara em busca da Liberdade. Rio de Janeiro: Vozes, 2002.

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[M]eu pai sempre conta pra gente que nos tempos antigos nossos parentes comiam outros parentes e comiam também karaí. Nossos parentes não tinham medo, era costume já dele comer outras pessoas. Ainda existiu muitos velhos que contam essas histórias, por isso hoje a gente sabe sobre isso. E esses parentes antigos moravam pro lado do Pará, uns dizem que tinha parente nosso até nessa beira de Belém. Morreram muitos quando Karaí chegou nesse lugar. A gente fica pensando como foi pra gente chegar aqui no Maranhão 91. Segundo Ribeiro (1974), por volta de 1890, os cronistas mencionam os Ka'apor como

guerreiros que “atacavam” as comunidades rurais com suas "terríveis flechas com pontas de

aço". Outras informações indicam que por volta de 1900, grupos de colonizadores brasileiros

“atacaram” núcleos Ka'apor, aniquilando parte de sua população. Por outro lado, os mesmos

grupos que os atacavam, ficaram surpresos ao descobrirem esplêndidos cocares de penas

amarelas, verdes, pretas e vermelhas dentro de pequenos baús de cedro, que os sobreviventes,

em fuga, teriam deixado para trás.

O autor continua informando que a partir de 1911, o governo brasileiro realizou

inúmeras tentativas de “pacificação” por meio do SPI. Porém, encontraram resistência de

grupos Ka'apor, que agiram com hostilidade aos métodos de pacificação do órgão. Eram

considerados pelo SPI como um dos grupos nativos mais hostis, por isso faziam parte de

grupos que eram considerados como meta de pacificação do governo brasileiro.

Em 1928, essa política vai intensificar-se e estender-se por quase setenta anos. Prova

disso são as recentes invasões da terra dos Ka'apor por madeireiros, sendo que tais ações

ocasionam novas hostilidades que colocam em risco a sobrevivência física e cultural do

grupo.

Outra possibilidade é de que suas origens remontem ao Pará, mais especificamente, às

margens do Rio Acará, quando na segunda metade do século XIX, devido aos conflitos com

outros grupos indígenas e com regionais, foram obrigados a iniciar um processo de migração

até chegar ao território maranhense. Conforme se verifica na organização da árvore

genealógica de capitão Kaaró Ka’apor por Darcy Ribeiro (1996) durante sua segunda

expedição na região do Gurupi:

[ ] ele nasceu no Maracaçumé, seu pai no Turiwá, seu primeiro avó morreu no Tury, o segundo no Coracy, o terceiro no Guamá e o quarto no capim, sendo que nasceu no Acará. Disse que não sabe de sua parentela daí por diante, porque sua gente foi dispersada pelos guajá e outros índios, contra os quais lutavam no nicho primitivo (p. 215-216).

91 Narrativa apresentada por Irakaju Ka’apor, cacique do núcleo Turizinho, por ocasião de sua participação em oficina de Saúde e Direitos Indígenas realizada no município de Zé Doca em 27 de março de 2009. Momento em que encontravam-se reunidos caciques e lideranças Ka’apor para tratar de assuntos relacionados à Saúde Indígena nos núcleos do Alto Turiaçu.

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Ribeiro (1974), afirma que, por volta de 1978, a Área Indígena Alto Turiaçu,

consistindo em 2.048 milhas quadradas (5.301 km²) de floresta amazônica alta, ocupada por

todos os remanescentes Ka'apor, assim como por alguns Guajá, Tembé e Timbira92, foi

demarcada pela FUNAI. A demarcação foi homologada pelo Decreto nº 88.002 em 1982, na

administração do presidente João Figueiredo.

No entanto, cerca de um terço da área vem sendo invadida, devastada e convertida em

fonte de exploração ilegal de madeira, pastagens por fazendeiros, madeireiros e políticos

locais desde o final dos anos 80.

Os territórios ocupados pelos Ka’apor ao longo do deslocamento realizado pelo grupo

foram palcos de inúmeros conflitos quando migraram internamente no Estado do Pará até que

se fixassem no Estado do Maranhão.

Os deslocamentos constantes relatados por lideranças Ka’apor, dos núcleos Capitão

Mira, Piquizeiro e Xié pihu renda, durante as rodas de conversa por ocasião de minha estadia

nestes locais, sobretudo, quando o assunto era se referir ao passado dos parentes. Nota-se, que

fazem necessariamente referência à relação estabelecida pelos karaí (não indígenas; brancos)

com seus parentes, mas também, ao mesmo tempo, se referem ao pejot (naquele tempo) em

que os karaí se aproximaram dos primeiros parentes.

Mukatu pejot,93 no tempo do contato

Segundo as etnografias94 de (RICE, 1930), (LOPES, 1934), (HUXLEY, 1963),

(RIBEIRO, 1974), (SAMAIN, 1984-85), (BALÉE, 1988), os Ka'apor tiveram numerosos

contatos com a sociedade luso-brasileira, todos eles documentados entre o período dos

Pacajás, nos anos seiscentos e o estabelecimento do contato prolongado, ou ainda, da

92 Os Timbira pertence à família jê. Os Timbira Orientais do norte são aqueles que viviam nos cursos inferiores dos rios Mearim e Pindaré, no Maranhão. No início do século XIX ficavam entre o Mearim e o Tocantins e eram conhecidos como os Krenyê de Bacabal. Conferir: LADEIRA, Maria Elisa; AZANHA, Gilberto. Os "Timbira atuais" e a disputa territorial. In: RICARDO, Carlos Alberto (Ed.). Povos Indígenas no Brasil - 1991/1995. São Paulo: Instituto Socioambiental, 1996. p. 637-41. 93 Termo utilizado pelos Ka’apor para se referir ao “tempo do contato; naquele tempo”. 94 Os autores referidos construíram etnografias que revelam o processo de deslocamento do Povo Ka’apor de seus possíveis territórios originários a outras terras, onde estabeleceram moradias provisórias, constituíram casamentos interétnicos e foram alvo de perseguições por parte das frentes de “pacificação” que visavam a sua integração à sociedade nacional. Logo, são etnografias referenciais que atualizam a memória coletiva do grupo, assim como subsidiam e fundamentam os novos estudos sobre a história do contato nesse contexto sócio-histórico.

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“pacificação”, em 1928. Nota-se que a maior parte dos episódios relatados expressa situações

de intensa violência.

Na obra de Azevedo (1930)95 sobre a presença dos jesuítas na então chamada

Província do Grão-Pará, diferentemente das etnografias acima citados, apresenta relatos de

momentos pacíficos na vida dos Ka’apor, sobretudo, quando os missionários jesuítas fixaram

missões na região do médio Xingu até os anos de 1759, quando foram expulsos do Brasil.

Pois, durante este período, gozavam de relações pacíficas embora tivessem que se submeter

cotidianamente às ordens dos missionários.

Nas etnografias de Ribeiro (1974) encontrei relatos de que no período de 1820 a 1830,

os Ka'apor da bacia do Capim entraram em conflitos com regionais das vilas na bacia do

Guamá, evadindo-se com mulheres e canoas em resposta aos ataques sofridos pelos regionais.

Enquanto os Ka'apor que se encontravam na bacia do Capim foram derrotados pelos

Turiwara96, que também falavam uma língua Tupi-Guarani. Fator que confirma a

possibilidade de se aproximarem lingüisticamente dos Ka’apor, ou ainda, hipoteticamente,

constituírem-se em um dos subgrupos Ka’apor resultante de divisões locais, conforme os

relatos da época sobre a presença dos grupos indígenas na região. Durante esse período

inúmeros soldados da guarda nacional destruíram uma “aldeia”, perseguindo logo depois os

remanescentes Ka'apor até as cabeceiras dos rios Guamá e Gurupi.

O autor continua relatando que em 1874, alguns Ka'apor viviam na bacia do Piriá,

desconhecendo-se qualquer contato dos mesmos com os colonizadores. Nesse mesmo

período, guerreiros Ka'apor entraram em conflitos com moradores de um quilombo do lado

maranhense do rio Gurupi, ocupando subseqüentemente o antigo local de refugiados, próximo

do antigo núcleo de Gurupiúna, às margens do rio do mesmo nome.

De 1870 até a chegada do SPI em 1911, os ataques Ka'apor a lugarejos e cidades do

Pará e do Maranhão, assim como, a trabalhadores do telégrafo, garimpeiros, coletores de

sementes de látex e outros índios, como os Guajajara, Tembé, Guajá e os Kren-Yê Timbira,

não diminuíram. Em sua maior parte, os ataques Ka'apor pareciam ter como propósito a

aquisição das ferramentas de aço das vítimas para serem utilizadas nas roças e na confecção

de pontas de flechas.

95 Cf. AZEVEDO, J. L. Os jesuítas do Grão-Pará. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1930, p. 75. 96Turiwara ou Turiuara era um grupo indígena que habitou o Nordeste paraense até o início do século XX quando tiveram que passar por intensos conflitos e perseguições por outros grupos indígenas e um longo processo de dispersão resultante das fugas da pacificação pelo SPI. A partir daí, passaram a se inserir e constituir casamentos com os Tembé da Região do Acará e Rio Capim e com os Anambé.

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Os estudos e informações levantadas por Balée (2006)97 mostram que as relações

sociais estabelecidas entre grupos de migrantes que vinham explorar as chamadas “drogas do

sertão” e povos nativos eram motivadas por fatores econômicos. O autor lembra a situação de

hostilidade que foram submetidos os Ka’apor, por ocasião do ciclo da borracha, quando

inúmeros nordestinos migraram para região para engrossar as fileiras nos seringais

interferindo no cotidiano das populações nativas.

O que tudo indica é que antes de 1820, os Ka'apor tiveram oportunidades de

estabelecer relações “pacíficas” com a sociedade luso-brasileira, até mesmo nos

assentamentos das missões. Se isto é verdade, ajudaria a explicar por que há tantos

empréstimos e outras influências na língua Ka'apor que parecem advir da língua geral

amazônica, falada por missionários e, por grande parte da comunidade paraense nos séculos

XVIII e XIX, como é o caso do �heengatu.

Segundo Lopes (1934), em 1911, o SPI desenvolveu inúmeras ações visando a

"pacificação" dos Ka'apor, utilizando várias formas de “atração” às proximidades do rio

Turiaçu, sobretudo, através de presentes sob a forma de ferramentas de aço. Contudo, muitos

guerreiros Ka'apor revidaram aos “ataques” e aos métodos de aliciamento praticados pelo

SPI. Por volta de 1917, às margens do Alto Rio Gurupi, agentes do SPI tentaram, em vão,

“pacificá-los”, mas não foram bem sucedidos, pois esgotaram as fontes de recursos

financeiros para os esforços de pacificação que se estenderam na bacia do rio Guamá a

Bragança, próximo da costa atlântica.

Por fim, relata que em outubro de 1928, após ambos os lados terem passado por

situações de violência, começavam os primeiros sinais e tentativas de diálogos com a

sociedade não indígena. De acordo com o saber tradicional do grupo, um homem Ka'apor,

denominado Pa'i ("padre"), "pacificou" (mu-katu) os brasileiros no Posto Canindé do SPI, na

região do Gurupi. Pela versão do SPI, afirmam que foram os seus esforços em oferecer

ferramentas de aço e outros bens colocados sobre tapiris98 que teriam levado os Ka'apor a

buscar a paz.

Em dezembro do mesmo ano, um grupo de Ka’apor visitou o Posto Canindé do SPI e,

simultaneamente, guerreiros Ka'apor aproximaram-se da cidade de Alto Turi, junto ao rio

Turiaçu, com as suas flechas apontadas para baixo, em sinal das intenções conciliáveis. Os

conflitos entre os Ka'apor e a sociedade não-indígena haviam cessado por um longo tempo.

97 Cf. BALÉE, William. “Transformação da Paisagem e mudança da língua: um estudo de caso em ecologia histórica amazônica”. In ADAMS, Cristina; MURRIETA, Rui; NEVES, Walter. Sociedades caboclas amazônicas: modernidade e invisibilidade. São Paulo: Annablume, 2006, p. 45 - 63. 98 Casas ou abrigos provisórios cobertos de palhas de palmeiras diversas.

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No final de 1949, Darcy Ribeiro (1996), em Diários Índios: os Urubu-Ka’apor relata

a sua longa expedição etnográfica à região, sobretudo, na região do Alto Gurupi, constatando

os sinais ou táticas estabelecidas pelo SPI no processo de pacificação com a criação de

núcleos de atendimento aos Ka’apor, conforme se visualiza no mapa da área e rio Gurupi

nesse período:

Fonte: RIBEIRO (1996). Diários Índios: os Urubu-Kaapor, p. 14.

O autor afirma que em 1989, após a homologação da Terra Indígena Alto Turiaçu, tem

início uma nova fase de invasões às terras Ka’apor. Posseiros, madeireiros e fazendeiros

começam a desenvolver um longo processo de invasão e desmatamento na área. Cerca de um

terço das terras Ka'apor, principalmente ao longo de seu limite oeste entre a área do igarapé

do Milho e do igarapé Jararaca, vinham sendo desmatadas e ocupadas por posseiros

insuflados por grileiros, fazendeiros, madeireiros e políticos locais.

Huxley (1963) tinha constatado essa circunstância em 1951 por ocasião de sua

expedição com Darcy Ribeiro pelas margens do Rio Gurupi, onde notara que os “negócios de

madeira” já eram avançados. Em uma de suas descrições confirma a prática, segundo o autor,

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a figura do madeireiro encarnava aquele que “[d]errubava as árvores e transformava-as em

toros e tábuas na serraria local; (...) fornecia o dinheiro e encarregava-se da parte comercial.”

(p.25)

A partir de 1993, a situação na região é marcada por tensão e pela escalada da

violência. Ataques de posseiros e de madeireiros aos núcleos indígenas, assim como, contra-

ataques dos Ka’apor aos posseiros e madeireiros dentro de suas terras acontecem com

freqüência.

O que se constata na literatura sobre o contato na região é que desde 1928, com o

processo de “pacificação”, a relação entre a sociedade não-indígena e a sociedade Ka’apor

vem no decorrer do tempo, tomando diferentes desdobramentos, emergindo sob novas formas

de conflitos. As narrativas sobre o contato e os conflitos têm demonstrado para os Ka’apor

que a figura do inimigo de hoje não é tão clara quanto aquela de 1928. Outrora, o inimigo era

qualquer um que não fosse Ka'apor. Na atualidade, a situação de contato99 é muito mais

complexa, pois, inúmeras lideranças de outras etnias que possuem seus territórios nas

adjacências do território Ka’apor têm sido aliciados para identificar, mapear diferentes

espécies vegetais para grupos externos (madeireiros, fazendeiros, pesquisadores estrangeiros)

visando a exploração ilegal dos mesmos e; até de intermediários, nas negociações de

exploração desses recursos nos territórios de outras etnias, acirrando os conflitos interétnicos

na região.

Tal fato transformou-se em pauta e preocupação interna de inúmeras ONGs e

entidades indigenistas, como o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), e não indigenista,

como a Survival International - Reino Unido. Sendo que várias pessoas levaram a questão das

invasões ilegais das terras Ka'apor à atenção de vários órgãos de defesa dos direitos humanos

a nível nacional e internacional, incluindo-se o governo federal, a Comunidade Européia do

Carvão e do Aço; o Parlamento Europeu e o Congresso Americano. Por outro lado, o Estado

Brasileiro permanece ausente no que diz respeito a intermediar e acompanhar os

desdobramentos políticos e judiciais que tratam de conflitos em territórios indígenas,

ameaçando assim, a dignidade dessas sociedades. Portanto, com o agravamento dos conflitos,

muitos grupos se vêem obrigados a iniciar longos processos migratórios, ficando, por isso,

99 Considerando aqui as estruturas socais a que os povos indígenas da região estão submetidos; a dinâmica das relações entre os povos de diferentes etnias; compreendendo que são situações em que há oposições, contradições, conflitos e; que devem considerar as sociedades indígenas em relações com sociedades que se estruturam em classes. Conferir: OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. O Indio e o mundo dos brancos. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1996, p. 33-54.

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vulneráveis à assimilação de novos valores e práticas estranhas a sua cultura, situação que

pode levá-los a um desequilíbrio interno, tanto social quanto político-cultural.

Darcy Ribeiro (1974) relata que entre 1928-1998 observou-se uma estreita relação

entre a cultura e a sociedade Ka'apor com elementos oriundos dos modelos civilizacionais do

Ocidente, tais como a existência de pessoas que utilizam e acionam a língua portuguesa em

diferentes momentos e diálogos, mesmo que todos falem Ka'apor como primeira língua.

Além isso, entre eles existem os que professam uma crença em Tupã-ra'ïr ("filho do

Trovão"), já que a divindade cristã foi introduzida por missionários fundamentalistas do

Summer Institute of Linguistics, hoje, Sociedade Internacional de Lingüística (SIL), que

atuaram na área no período entre 1963 a 1985. Há um processo de sincretismo entre as

práticas religiosas desenvolvidas nos núcleos. Contudo, muitos Ka'apor acreditam nos

poderes divinos e curativos de Ïrïwar, uma divindade feminina, indígena, relacionada à água,

cujo conceito foi parcialmente trazido dos Tembé e, que é invocada no xamanismo Ka’apor.

Até o presente momento apresentei um breve panorama histórico e político-econômico

no qual estão inseridos os Ka’apor enquanto grupo detentor de uma cultura singular em

interação com os não-indígenas. Portanto, busquei demonstrar que o esforço do grupo em

permanecer em seu lugar de pertencimento está relacionado ao enfrentamento das

adversidades oriundas do contato com a sociedade nacional, que se encontra, por certo, imersa

num processo de globalização cultural e econômica, cujas dimensões nefastas impõem a

degradação sócio-ambiental aos povos indígenas. Com isso, é possível visualizar inúmeras

tensões que contribuíram para a permanência/resistência da sociedade Ka’apor em seu

território originário.

Tal processo está intimamente ligado àqueles fatores que tinham como meta a

integração dessas sociedades à sociedade nacional, o que levou muitas famílias a realizarem

um deslocamento interno permanente. Característica essa, presente até hoje entre muitas

famílias que ocupam a região central da Terra Indígena Alto Turiaçu.

Porém, ressalto que todo movimento ou deslocamento interno feito pelas famílias em

busca de novas áreas para a garantia da subsistência através da prática da agricultura, caça e

coleta tem se constituído em um fator preponderante para a formação de novos grupos locais.

Tal fato tem se transformado em uma tática do grupo na perspectiva de garantir a ocupação do

espaço em busca de segurança e defesa do território.

Segundo Fernandes (1976: 82), tal experiência similar foi vivenciada pelos Tupinambá

por ocasião de sinais de destruição do meio natural, na perspectiva de restabelecer o equilíbrio

da natureza e de suas relações com as necessidades coletivas. Com isso, tinham que deslocar

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periodicamente suas unidades tribais, tanto dentro do território quanto em direção a outro

habitat.

A memória coletiva do grupo é acionada todas as vezes que realizam o exercício de

rememorar a sua trajetória do grupo durante tempos passados, sempre atualizando os últimos

deslocamentos dentro do território100, haja vista, ainda se deslocarem constantemente dentro

dele, ora para constituir um novo núcleo, ora incorporando-se a outras unidades residenciais

em núcleos já existentes.

Tal procedimento realizado pelos Ka’apor na perspectiva de rememorar e atualizar os

acontecimentos que confirmam a ocupação de diferentes territórios ao longo do tempo e na

atualidade pelo grupo é referendado por Halbwachs (1990)101, quando o autor reconhece a

importância de duas categorias do trabalho da memória, pois, para ele a memória coletiva não

se desenvolve sem o aspecto temporal e espacial. Há tantos espaços quantos grupos que

chegam a ocupá-los.

Nessa ocasião, quando relatei minha experiência junto às outras sociedades indígenas

e as leituras realizadas acerca das obras que tratam de “parentes” mais antigos do grupo em

outros momentos históricos em territórios no Pará, assim como, de sociedades indígenas que

apresentam similaridades lingüísticas, como Wayampi, Bїdê102 (Arawete103) e Aikewar104

(Surui)105, demonstraram interesse em conhecer as fontes, informações, documentos (“onde

karaí escreveu”), bem como em “assistir” filmes que revelam histórias desses lugares e

parentes (“vê em televisão de karaí”), expressão usada quando têm oportunidade de assistir

programas televisivos.

Além dos processos de integração estabelecidos pela política de Estado Brasileiro com

essas sociedades no decorrer do século passado, os conflitos interétnicos ocasionados pela

100 Sobre os deslocamentos realizados pelos Ka’apor no decorrer de sua história até o território atual, assim como, os deslocamentos realizados internamente, conferir: LOPES: 1934; HUXLEY: 1963; SCHADEN: 1976; RIBEIRO: 1976; SAMAIN: 1985; BALÉE: 1988. 101 Cf. HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Vértice, 1990, p. 131-144. 102 Autodenominação usada pelo povo indígena Tupi-guarani que habitam as margens do Igarapé do Ipixuna, afluente da margem esquerda do Xingu (médio Xingu), município de Altamira – Pará. Para o grupo essa autodenominação quer dizer “nós”, “a gente”, “os seres humanos” para se diferenciar em relação aos outros povos indígenas e os não indígenas (kamarã), que chamam por awĩ, os “estrangeiros” ou “inimigos”. Conferir: VIVEIROS DE CASTRO, 1992: 22. 103 Nome atribuído por sertanistas da FUNAI aos Bїde, e hoje, constitui-se a expressão mais usada para se referir ao grupo. 104 Autodenominação usada pelo povo indígena Tupi-guarani que habitam originalmente os igarapés Gameleira (afluente do Rio Araguaia) e Grotão dos caboclos, um dos formadores do Rio Sororó, afluente do Rio Itacaiunas, município de São Geraldo do Araguaia, sudeste do Pará. Conferir: LARAIA, Roque de B. e DA MATTA, Roberto. Índios e Castanheiros. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1967. 105 Nome atribuído pelos regionais aos Aikewar.

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ação do Estado na região, associadas às epidemias, se tornaram fatores determinantes para o

agravamento da permanência do povo Ka’apor em seu território.

Samain (1984), afirma que a partir de sua estadia no núcleo Gurupiúna em 1981,

constatara no conjunto dos grupos locais sob a responsabilidade do Posto Indígena Canindé,

inúmeras situações que continuavam comprometendo a saúde dos Ka’apor, embora

contassem na área com uma equipe permanente de enfermagem, ou ainda, de uma “Equipe de

Saúde”. Refere em sua pesquisa que, entre as principais doenças constatadas na ocasião,

estavam: a gripe, a amigdalite, a hepatite, a malária, a furunculose, a tuberculose, as lesões

oculares graves e, os inúmeros casos vinculados a parasitoses intestinais, como verminoses e

amebíases.

Contudo, a existência de doenças detectadas há vinte sete anos atrás por pesquisadores

na região, continua sendo uma realidade nos grupos locais. Por ocasião de um levantamento106

realizado recentemente nos núcleos do Alto Turiaçu sobre a situação da saúde nos últimos três

anos (2006/2007/2008)107, a fim de subsidiar um documento sobre saúde e saneamento a ser

apresentado por lideranças em reunião com a FUNASA, constatou-se a sucessão permanente

das seguintes patologias: gripe; diarréia ocasionada por parasitoses intestinais como

verminoses e amebíases; tosse ocasionada pela amigdalite; infecções dentárias; furunculoses;

micoses; etc.

A seguir, apresento como se deu o movimento de constituição da população Ka’apor

com seus inúmeros fatores de crescimento e decréscimo, tendo como marco de referência as

informações e registros estabelecidos a partir do processo de contato ou “pacificação” pela

sociedade nacional até os registros atuais.

Ka’apor heta,108 os Ka’apor são muitos

No início do contato com a sociedade nacional, em 1928, os censos indicavam que a

população Ka'apor declinava significativamente: 2.000 em 1928 (RICE, 1930: 312), 1.095 em

1943, 912 em 1954, 822 em 1962, 488 em 1975 (BALÉE, 1988: 155 - 169).

106 Levantamento realizado por mim com apoio das Auxiliares de Enfermagem presente na ocasião nos núcleos Piquizeiro e Capitão Mira no período de 05 a 07/07/2008, a partir de solicitação de lideranças Ka’apor. 107 A delimitação do período se deu em função da existência dos livros de registro dos funcionários da área de saúde que realizaram atendimento ou “passaram” pelos grupos locais no período de 2006 quando se constatou os primeiros registros até julho de 2008. 108 Termo usado pelos Ka’apor para expressar quantidade da população perante as outras etnias “os Ka’apor são muitos”.

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Segundo Lopes (1934) e Darcy Ribeiro (1974; 1996), houve cinqüenta anos de

declínio da população Ka’apor (dos anos 20 aos 70) sendo que os principais fatores eram as

epidemias de infecções respiratórias, sobretudo, de sarampo e outras síndromes virais, assim

como, a ausência de cuidados com a saúde da população por parte dos órgãos responsáveis.

Porém, Darcy Ribeiro (1974 e 1996), nas últimas décadas indica que dados

preliminares apontam que a população total Ka'apor vem crescendo, talvez a uma taxa de

crescimento natural de 3% ou mais, tendo adquirido imunidade contra condições antes letais,

seja pelo isolamento de crianças debilitadas, seja pela melhoria no tratamento da saúde.

Casamentos fora do grupo com Tembé, Guajá e regionais têm ocorrido desde os anos 50,

senão antes. Esse fator responde por cerca de 5% dos casamentos Ka'apor. Também informa

que as maiores causas de mortalidade (e invalidez) do povo Ka'apor nos últimos anos foram

ocasionadas por complicações de parto, síndromes e complicações neonatais, malária, febre

amarela e outras infecções do fígado/sangue, acidentes de caça, quedas de árvores, outros

acidentes e homicídios.

Segundo o lingüista Kakumasu, que em 1976, por ocasião de suas pesquisas na área da

lingüística Ka’apor, constatou que a população já se encontrava em aproximadamente ao

redor de 500 pessoas, distribuídas em cerca de dez grupos locais.

Em 1981, quando Francis Huxley chega à região do Gurupi para somar-se à expedição

de Darcy Ribeiro, encontra no Alto Gurupi, sobretudo, na região de mata entre o Rio Coraci e

BR-316, uma população de aproximadamente 600 Ka’apor distribuídos em vinte núcleos109.

Tais dados contrastavam com os apresentados pela FUNAI em 1982, que registrava em seus

documentos uma população total de 494 pessoas.

Em 1998, segundo o Instituto Socioambiental (ISA: 2000), a população Ka’apor

concentrava-se entre 600 e 1000 habitantes, sendo que, a maior parte deste aumento deve-se

ao crescimento natural e não à imigração.

Segundo os pesquisadores do Laboratório de Línguas Indígenas (LALI), da

Universidade de Brasília (UnB)110, que desenvolveram pesquisas lingüísticas na Terra

Indígena Alto Turiaçu, os mesmos constataram em 2002 uma população de cerca de 1.200

Ka’apor.

Atualmente, embora a Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), reconheça apenas a

existência de 1.214 Ka’apor na Terra Indígena Alto Turiaçu, percebe-se que a realidade

109 Dados apresentados a partir de levantamentos realizados por Etienne Samain por ocasião de sua estadia juntos aos Ka’apor do núcleo Gurupiúna.Conferir: SAMAIN, Etienne. Reflexões críticas sobre o tratamento dos mitos. Revista de Antropologia, (27/28), 1984/85. 110 Consulta realizada em 13/06/2008 na página: http://www.unb.br/il/lali/.

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presente e as informações apresentadas por lideranças, informam que a população real está

muito acima dos dados apresentados pela FUNASA e FUNAI que contam apenas os Ka’apor

que residem nos grupos locais, nas quais, os serviços destes órgãos, através de seus técnicos,

se fazem presentes. Também informam que tais órgãos consideram Ka’apor apenas àqueles

que dispõem de um documento de registro de nascimento ou de identidade.

Nesse sentido, esses órgãos desconsideram inúmeros fatores que determinam a

existência da população Ka’apor em seu vasto território, entre eles: os processos contínuos de

migração interna visando à busca pela sobrevivência física; os constantes deslocamentos

ocasionados pela presença de estranhos (posseiros, fazendeiros e madeireiros) que invadem

suas terras em busca da exploração ilegal de seus recursos naturais.

Por outro lado, a partir dos deslocamentos internos realizados em companhia de

lideranças foi possível efetuar um levantamento demográfico da atual população em números

de famílias no conjunto dos grupos locais da Terra Indígena Alto Turiaçu, conforme é

possível visualizar abaixo:

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Fº Grupo Local Fº de

Famílias

População Município Povo

01 Araçatiwa 08 45 Centro Novo Timbira

02 Axigui renda 80 490 Maranhãozinho Ka’apor

03 Bacurizeiro 12 46 Zé Doca Ka’apor

04 Capitão Mira 09 42 Nova Olinda Ka’apor

05 Cocal 20 140 Zé Doca/Araguanã Guajá

06 Maracaçumé 04 26 Centro do Guilherme Ka’apor

07 Myrawy renda 14 45 Maranhãozinho Ka’apor

08 Paraku’y renda 12 50 Centro Novo Ka’apor

09 Piquizeiro 20 78 Nova Olinda Ka’apor

10 Sitio Novo 25 135 Centro Novo Ka’apor

11 Turizinho 09 43 Zé Doca Ka’apor

12 Xié pihu renda 22 105 Centro Novo Ka’apor

13 Ximbo renda 60 390 Maranhãozinho Ka’apor

14 Zé Gurupi 25 75 Araguanã Ka’apor

15 Cumaru 03 15 Araguanã Ka’apor

Total - 329 1.755 - -

Os quadros confirmam as informações e os relatos das lideranças Ka’apor sobre a

negligência por parte destes órgãos governamentais, especialmente, em não querer considerar

e registrar os parentes que se encontram em outras áreas do território nas quais os órgãos em

foco, não se fazem presentes.

Durante a minha permanência em grupos locais do Alto Turiaçu, constatei a situação

de negligência e de irresponsabilidade desses órgãos, chegando ao ponto de não incluirem em

seus registros a população integral de um núcleo, como é o caso de Capitão Mirá que possuía

nove famílias com uma população de quarenta e duas pessoas. Consequentemente, muitas

famílias são submetidas ao abandono e permanecem expostas as doenças, sobretudo, às

categorias mais vulneráveis, como: os ta’yn (crianças) e os tamũi (velhos), que constituem a

principal preocupação do conjunto das pessoas, como sempre referem quando lamentam sobre

a ausência dos serviços e profissionais da área da saúde.

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Por outro lado, a população Ka’apor dentro do território destaca-se expressivamente,

distribuindo-se ao longo das áreas limítrofes com os municípios que estão superpostos à Terra

Indígena Alto Turiaçu. Vejamos o quadro abaixo somente com a população Ka’apor.

Fº Grupo Local Fº de

Famílias

População Município

01 Axigui renda 80 490 Maranhãozinho

02 Bacurizeiro 12 46 Zé Doca

03 Capitão Mira 09 42 Nova Olinda

04 Maracaçumé 04 26 Centro do Guilherme

05 Myrawy renda 14 45 Maranhãozinho

06 Paraku’y renda 12 50 Centro Novo

07 Piquizeiro 20 78 Nova Olinda

08 Sitio Novo 25 135 Centro Novo

09 Turizinho 09 43 Zé Doca

10 Xié pihu renda 22 105 Centro Novo

11 Ximbo renda 60 390 Maranhãozinho

12 Zé Gurupi 25 75 Araguanã

13 Cumaru 03 15 Araguanã

Total - 295 1.540 -

A partir desses dados apresentados que identificam a população Ka’apor, somados as

demais sociedades indígenas no Maranhão,111 revelam como essa sociedade ocupa

demograficamente um espaço em destaque no contexto maranhense, assim como,

ressignificam as relações com a sociedade nacional, uma vez que constituem coletivamente

uma sociedade que afirma especificidade de suas tradições, produzindo e reproduzindo

sistemas sociais e culturais cotidianamente.

Quanto aos elementos importantes para a experiência etnográfica nos grupos locais,

estão as idas e vindas pela ocasião da pesca e da coleta de frutos juntos aos jovens Ka’apor e

relatos dos mais velhos durante os diálogos realizados no grupo local. Agora, é possível uma

111 As sociedades indígenas no Maranhão constituem nove etnias (Kanela, Timbira, Krahô, Krikati, Guajá, Guajajara, Tembé, Guarani e Ka’apor) subdivididas em 16 grupos locais, distribuídas em 14 áreas perfazendo um total de 1.908.89. Conferir: IBGE, 2007.

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melhor compreensão da localização dos núcleos no conjunto do território, bem como da

vegetação e do mapa hidrográfico.

Para compreender o que o território representa para os Ka’apor se faz necessário

visualizar o henda (o lugar) onde vivem, ou seja, o lugar onde estão há mais de um século.

Ka’apor henda,112o lugar dos Ka’apor

Os Ka'apor vivem no oeste do Maranhão. Suas terras fazem limite, ao norte, com o rio

Gurupi ou Yurupi (caminho da água), ao sul, com os afluentes meridionais do rio Turiaçu; a

oeste com o Igarapé do Milho e a leste, com uma linha no sentido noroeste-sudeste quase

paralela à rodovia BR-316. Todos os córregos e rios drenam para três grandes rios:

Maracaçumé, Turiaçu e Gurupi, que, por sua vez, deságuam diretamente no oceano Atlântico.

Nota-se que, grande parte dos escritos e das pesquisas realizadas sobre a história

Ka’apor remonta às suas origens, ou ainda, de que seus possíveis territórios originários

estejam localizados entre o Rio Tocantins e Xingu, no Pará e, que tenham migrado no final do

século XIX para o Maranhão.

Segundo Dodt (1981), engenheiro alemão que em 1872 é contratado pelo Barão de

Capanema, para, a serviço do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, realizar

um levantamento descritivo do Rio Gurupi, desde a sua cabeceira até a foz, já era possível

constatar nesse período a presença de Ka’apor no lado paraense. Fato esse possível, após a

migração realizada pelo grupo desde o Rio Acará, se fixando por um período às margens do

Rio Capim, passando pela cabeceira do Rio Guamá até construírem aldeias nas cabeceiras dos

rios Coracy e Piriá, afluentes que migram para a margem esquerda do Gurupi, lado paraense.

Tal fato é referendado por Huxley (1963), quando afirma que os Ka’apor, “no

passado, andaram por várias regiões. Muitas de suas lendas são do norte, sobre as florestas

que margeiam o rio Capim; uma delas sobre um homem que vivia às margens do Tocantins, a

oeste. Em seus deslocamentos cruzaram-se com outras tribos”. (p. 67-68)

Como mostra a sua autodenominação e mitologia, a sociedade Ka’apor sempre teve

sua cultura adaptada às regiões de mata, à floresta tropical da Amazônia Oriental, sobretudo,

na região do Gurupi, desde o final do século XIX e início do século XX quando ainda não

112 Termo utilizado pelo grupo quando se referem à Terra Indígena, aos grupos locais que constituem o território indígena. Como costumam expressar: “o lugar dos Ka’apor”.

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eram intensas às ameaças de exploração de recursos naturais em seu território, conforme

descreve Darcy Ribeiro (1974) em seus relatos sobre a flora Ka’apor:

[o] território tribal é coberto pela floresta típica das terras firmes da Amazônia, firmada de árvores muito altas, mas geralmente finas, pouco espaçadas, relativamente pobres de cipós, lianas e da vegetação rasteira e espinhosa que tanto dificulta a marcha nas matas de terra alagadiça (p.34).

Dodt (1986), por usa vez, continua confirmando que, como experientes conhecedores

e moradores da mata, não tinham a cultura de freqüentar permanentemente os rios da região,

assim como, os regionais que se instalaram na região do Piriá (lado paraense) e no Gurupi

(lado maranhense):

As margens do Gurupi são em geral pouco povoadas, e em parte completamente desabitadas. Afora a insignificante Vila de Vizeu, 25 km acima da foz do rio, na Província do Pará, existe na margem esquerda só uma povoação pequena denominada “Gurupi” composta de meia dúzia de palhoças, distante 67 km, 5 daquela vila e no lado oposto 64km, 5 para cima a colônia militar de S. Pedro de Alcântara. Esta é o último ponto até onde penetrou a civilização. Encontrando-se abaixo dela alguns, ainda que raros, sítios habitados, não se acham acima desse ponto senão terrenos completamente despovoados ou habitados somente por índios (p.84).

Entre as mudanças ocasionadas pela intervenção do Estado, o autor relata que, desde a

segunda metade do século XX aos dias atuais, a sociedade Ka’apor foi forçada a intensificar o

processo de migração, de deslocamento na região por ocasião da política integracionista do

SPI com suas frentes de “pacificação”; chegada das frentes de expansão mineral, madeireira e

comercial pelos regatões. Consequentemente, constatou-se uma mudança no processo de

ocupação do território pelo grupo que, de moradores das matas e florestas, passam a

transformar o hankã (o igarapé, o riacho), ou ypa (o lago), como se referem, em suas moradas

provisórias ou passageiras, expressando a proximidade do grupo com os afluentes que se

estendem até o Gurupi:

Os urubus moram abaixo da barra de Uraim, porém não na beira do Gurupi. Suas aldeias acham-se entre as cabeceiras do Coraci-Paraná (rio do sol) e do Piriá na Província do Pará, sendo o primeiro um confluente do Gurupi, e correndo o outro entre o Gurupi e o Capim. Esta tribo vive isolada e sem relações com a população civilizada; só nas suas correrias, que estendem até as margens do Gurupi que eles também transpõem, é que entram em contato com a população civilizada, para a qual às vezes se torna perigosa (Dodt, 1986: 86).

Conforme as imagens abaixo é possível visualizar o Rio Gurupi no trecho de sua

travessia entre o Pará e o Maranhão, sentido cabeceira-foz no período do inverno de 2008.

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Por outro lado, as ações implantadas pelas frentes repressoras de “pacificação”

governamentais e de exploração privadas (relacionadas aos setores minerais, madeireira,

agropecuária) ocasionaram uma mudança considerável na dinâmica de ocupação do território

pelo grupo nos dias atuais.

A Terra Indígena Alto Turiaçu, território habitado pelos Ka’apor, foi demarcada com

uma superfície de 530.524 hectares. É formada por aproximadamente dezesseis grupos

locais, em uma área circunscrita em sete municípios situados em duas sub-regiões do

Maranhão: Gurupi e Pindaré. A área constitui um vasto território ocupado por esse grupo

étnico que, por fatores específicos do grupo e externos a ele, levam as unidades familiares a

realizar mudanças ou deslocamentos permanentes dentro do território, entre eles, pela

constituição de laços de casamento; por conflitos internos entre grupos familiares; devido às

situações de conflitos com invasores no território; pela busca de alimentação (caça e pesca em

períodos ou estações do ano diferentes); procura por recursos naturais que garantam a

sobrevivência do grupo, tais como a coleta de frutos e de sementes, entre outros fatores.

Laraia (1986), em seus estudos sobre os grupos Tupi, apresenta características

geográficas que determinam as mudanças internas nos territórios dessas sociedades no Brasil,

sobretudo, quando o processo de deslocamento interno de grupos familiares é resultante de

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um movimento migratório ocasionado pelo esgotamento das roças ou influenciado pelo

processo de rodízio na feitura dessas roças e, não necessariamente, fruto de uma dinâmica

relativa ao “nomadismo”, como se costuma associar a esse processo.

As narrativas sobre o cotidiano Ka’apor têm revelado a importância de pensar a vida

sócio-cultural do grupo, por uma perspectiva que contemple uma etnografia do deslocamento

permanente, sobretudo, nos relatos sobre as experiências passadas e as atuais vivenciadas nos

lugares pelos quais passaram e se relacionaram, constituindo, assim, um arcabouço de

experiências que são próprias ao grupo. Pois, durante nossos diálogos, sempre havia um

prolongamento dos relatos, acompanhados de performances cuja preocupação era a de serem

compreendidos, especialmente em relação aos significados que atribuem ao território.

Sobretudo, a importância dos lugares onde fixaram residência por um determinado período

que ficou na memória coletiva do grupo, assim como, de lugares onde sepultaram “parentes”

que são permanentemente rememorados.

Logo, as narrativas construídas sobre o passado, relacionadas ao deslocamento no

território, lembram os estudos sobre cosmografia realizados por Paul Little (2002), quando

analisa os múltiplos territórios sociais que existem no seio do território do Estado Brasileiro,

considerando as suas principais características, para depois focalizar os seus confrontos

contemporâneos com o desenvolvimentismo, com o preservacionismo, com o

socioambientalismo e o Estado tecnocrático.

Dentro da perspectiva da cosmografia, essa reflexão expressa o olhar, a percepção, o

sentido que os Ka’apor dão às relações estabelecidas com o seu território, onde os saberes

tradicionais adquiridos na relação com a floresta os transformam em guardiões de seu lugar de

pertença. Para facilitar o entendimento desta dinâmica, apresento o mapa abaixo, onde é

possível visualizar a localização dos grupos locais de diferentes povos presentes no Território

Indígena Alto Turiaçu nestas últimas décadas:

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Legenda:

Cor Etnia

Ka’apor

Guajá

Timbira

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No entanto, é possível visualizar a localização dos grupos locais e a área total do

território Ka’apor nos diferentes municípios que constituem a região do Gurupi:

Fome UF Área Total (ha) Araguanã MA 109.844 Centro do Guilherme MA 86.732 Centro Novo do Maranhão MA 1.052.178 Maranhãozinho MA 94.845 Nova Olinda do Maranhão MA 87.623 Santa Luzia do Paruá MA 235.781 Zé Doca MA 203.535

Fonte: IBGE, 2007.

Darcy Ribeiro (1974) constatou em sua primeira expedição realizada pelo território

Ka’apor maranhense que, embora os fatores apresentados anteriormente tenham trazido

agravantes para a vida da coletividade, interferindo na dinâmica cultural, o grupo ainda

continuava conservando seus sistemas próprios de relação com a natureza, desde a utilização

de técnicas específicas ligadas aos fazeres e aos saberes tradicionais. Nesse sentido, as

práticas culturais Ka’apor, desde muito tempo, possibilitam e têm sido acionados à medida

que mantêm a sobrevivência física e cultural do grupo, inclusive, em situações de ameaça. O

autor deixa claro, tal aspecto quando afirma que:

Para sobreviver na mata os índios Urubus tiveram de recriá-la mentalmente, dar nomes as coisas, atribuir-lhes sentido, encontrar-lhes utilidade. De toda a infinidade de espécies que compõem a floresta amazônica eles selecionaram umas quantas como frutos alimentícios, as matérias primas de seus artefatos, compreendendo desde madeiras para construir o arcabouço das casas ou simples arcos, até cipós e enviras para amarrar e tecer, folhas e palmas para embalar o trançar, resinas e látex para colar, fazer fogo e defumar, e, ainda, tintas, venenos, e muitos outros (p. 35).

Esses saberes próprios sobre o cotidiano e o movimento das pessoas não somente

confirmam uma ciência do concreto113, saberes que conduzem e orientam as relações dos

diferentes seres no território, mas apresenta fatores levam a repensar a dinâmica que tive que

adotar para o desenvolvimento da pesquisa etnográfica, pois precisei constantemente

redimensionar o lugar para onde deveria me deslocar, assim como, identificar quais os

interlocutores seria necessário priorizar para possíveis diálogos em vista da pesquisa.

113 Sobre a importância, o reconhecimento e a propriedade intelectual dos nativos sobre os seres que constituem o habitat em seu território, conferir: LÈVI-STRAUSS, Claudé. “A Ciência do Concreto” In O Pensamento Selvagem. Campinas/SP: Papirus, 1989, p. 15 – 49.

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A seguir, apresento alguns elementos contextuais que caracterizam a situação de

contato nas últimas décadas no território Ka’apor; assim como, as mudanças ocorridas

internamente nesta sociedade indígena em função das relações estabelecidas com pessoas e

grupos externos.

Jaxer114, estamos em perigo

A minha etnografia do deslocamento permanente no território Ka’apor, mostrou que,

ao longo dessas últimas décadas (1989 – 2009) vêm se configurando na região do Mearim -

Pindaré - Gurupi um processo intenso de ameaças à vida das sociedades indígenas, sobretudo,

ocasionadas pela presença de forças que representam os grandes projetos agropecuários,

mineradores e madeireiros na região. Como os territórios indígenas representam uma das

últimas áreas com uma vasta biodiversidade da Amazônia Legal, logo, tem se tornado alvo de

disputa dessas principais forças. Nota-se que as formas adotadas para chegar aos territórios e

às pessoas que vivem nessas áreas são as mais perversas. Desde o incentivo à invasão das

terras por trabalhadores rurais, invasão por grupos pecuaristas e madeireiros, ao aliciamento

de lideranças indígenas em troca de recursos financeiros e bens materiais que representam

uma interferência considerável na dinâmica da sociedade Ka’apor; trazendo grandes

desequilíbrios ao ponto de comprometer e ameaçar a reprodução física e cultural do grupo.

Entendo que tais realidades têm interferido na rotina e na integridade cultural do

grupo, ameaçando ou redimensionando a realização dos eventos cotidianos e rituais que

representam uma das formas de atualização e reafirmação da identidade do grupo.

Mesmo que fatores externos ameacem a dinâmica cultural e social do grupo, existem

formas e procedimentos internos responsáveis por acionar e atualizar os diferentes eventos

sociais. Sendo que grande parte desses procedimentos são conduzidos ou orientados por

adultos ou pelos mais experientes da sociedade Ka’apor através da memória oral,

reconhecendo o papel dessas categorias na atualização e fortalecimento da cultura Ka’apor.

Por outro lado, diferentes narrativas de pessoas nos vários grupos locais Ka’apor

continuam afirmando que tais eventos e momentos rituais descartam um marco temporal

fundamentado na lógica da sociedade envolvente, podendo ser compreendidos como um

processo contínuo. Nesse sentido, as vivências, as etnografias do deslocamento me

114 Expressão usada por vários Ka’apor quando se referem à situação de ameaça que estão passando em seu henda (lugar; a “aldeia”). Sentido esse expresso para se referir à ameaça a qualquer forma de vida no território.

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conduziram a compreender a dinâmica própria de ensino-aprendizagem nos processos de

educação e socialização presentes nos rituais de iniciação masculina e feminina.

Sendo assim, apresento a seguir, em linhas gerais, como se constitui o jumu’eha renda

(o lugar de estudo) onde estou situado, e como se efetivou o meu processo de socialização

entre os Ka’apor, considerando a minha condição de antropólogo em formação.

Jumue’ha renda,115o lugar de estudo

Os Ka’apor, como habitantes da floresta do Gurupi, apresentam todo um estilo de vida

adaptado à mata. Orientam suas atividades por um calendário definido pelos ciclos da

natureza, assim como, a sua mitologia é elaborada a partir de suas interações com a floresta.

Devido a esse fator, o grupo mantém uma distância sócio-cultural e lingüística bastante

acentuada em relação aos regionais.

Os grupos locais dispõem de diferentes tipos de casas, caracterizando-se em sua

maioria por um quarto fechado de barro, folhas de palmeiras de buriti ou babaçu, e de acha116.

Sua cobertura é feita basicamente com folhas de ubim, inajá ou babaçu, todas elas palmeiras

da Amazônia. Porém, nos núcleos maiores, como é o caso dos núcleos Sítio �ovo e Xié pihu

renda (Alto Gurupi), Axigui renda (região do Rio Maracaçumé), Ximbo renda e Zé Gurupi

(Alto Turiaçu) já se visualiza a presença de materiais pré-fabricados, os quais são utilizados

para a cobertura das casas, como telhas de amianto e colonial.

Contudo, existem as casas que possuem somente uma cobertura de folhas de palmeira

com suas laterais totalmente abertas, como é o caso daquelas presentes nos núcleos com uma

população menor, e entre elas: Capitão Mira e Piquizeiro (Alto Turiaçu), Paraku’y renda e

Arasatiw (Alto Gurupi). Essas últimas são casas construídas basicamente por grupos

familiares que realizam um deslocamento permanente no território.

Nota-se que com folhas de palmeira, algumas famílias realizam a cobertura das casas

com cavacos de madeiras fortes, como o jandyro’y (andiroba), yrykywa’y (maçaranduba) e

taji’y (pau d’arco). Além das casas, o espaço do núcleo, sobretudo, dos núcleos com uma

população maior, comporta outras construções, como o Posto de Saúde, a casa de farinha e as

115 Termo usado quando se referem ao “lugar de estudo, o lugar onde se aprende”. Nesse sentido, entendo ser este lugar o espaço almejado para realizar meu estudo, o lugar privilegiado para aprender enquanto pretenso antropólogo. 116 Tipos de madeiras ou estacas.

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escolas. A seguir, é possível visualizar uma casa de Capitão Mira e uma casa de Xié pihu

renda.

A constituição das famílias e a ocupação dos espaços utilizados por elas para

desenvolverem suas atividades sociais apresenta uma estreita relação entre si, por isso, a

interação casa ou unidade residencial vai caracterizar as formas de parentesco nesta

sociedade.

Como os outros povos tupi, os Ka’apor também possuem como instituição

fundamental de organização sócio-político-econômica, a família extensa através de um

sistema de parentesco que privilegia o casamento entre primos cruzados.

Segundo Ribeiro (1996), os grupos locais Ka’apor são constituídos em sua

organização social por unidades familiares formadas por residências uterinas, que vão

determinar o poder político. Logo, os números de chefes serão determinados pelo número de

unidades residenciais. Constatou-se que na maioria das unidades residenciais existe uma

predominância de residência uxorilocal, onde os homens são obrigados a deixar a sua

primeira ok (casa) para juntar-se aos familiares de sua esposa. Sendo assim, as unidades

residenciais tendem a ter um poder político fundamentado na co-residência quanto à doutrina

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da descendência. O autor continua destacando que o poder político do chefe se limita a acertar

os casamentos de suas irmãs reais e classificatórias com homens dispostos a casar na sua

unidade familiar. Da mesma forma podem ocorrer contratos de casamento desse mesmo

modelo, agora com a filha da irmã do pai e com a filha da irmã.

Afirma ainda que a terminologia de parentesco é basicamente dravidiana (DUMONT,

1992), sendo que as pessoas chamam alguns de seus parentes por afinidade pelos termos de

parentesco cognático (por exemplo, "tio" e "sogro" são a mesma palavra, tutyr). Logo, essa

terminologia de parentesco implica na regra de casamento de primos cruzados. A

descendência é bilateral e não há metades, sibs ou linhagens. Os chefes que demonstram

generosidade com suas esposas e são prudentes no poder político recebem como recompensa

o gozo da poliginia.

Tais relações de casamento têm transformado cada grupo local em um espaço

politicamente autônomo, as quais podem ser constituídas por mais de uma unidade uterina.

Entre os contratos de casamentos mais expressivos visualizados entre grupos locais

Ka’apor, estão a poligenia, sobretudo, a poliginia sororal117, em que irmãs estão unidas a um

mesmo homem. Fato encontrado nos núcleos Capitão Mira, Piquizeiro, Ximbo renda, Axigui

renda, Bacurizeiro.

Por outro lado, entre as configurações encontradas que têm orientado a organização

das residências, estão: a residência avunculocal118 ou uxorovirilocal119; residência virilocal120;

residência matrilocal121 ou uxorilocal. Porém, esse último tipo de residência foi o mais

visualizado entre as unidades residenciais.

No que se refere à situação da saúde nessas unidades familiares no território, o

atendimento tem sido realizado por profissionais da saúde em postos de saúde construídos sob

administração da FUNASA, em algumas ocasiões, em parceria com as famílias. Seu tamanho

varia conforme a localização no espaço da aldeia e da demanda da população a ser atendida.

Basicamente são construídos de madeira e cobertos com telhas de barro ou amianto.

Conforme projeto de ação da FUNASA, cada Posto de Saúde deve ter um profissional

de apoio (Técnico de Enfermagem) para prestar os devidos serviços e o atendimento à saúde

117 Cf. AUGÉ, Marc. Os Domínios do Parentesco (filiação, aliança matrimonial, residência). Lisboa: Edições 70, 1978, p. 44. 118 Tipo de residência em que o casal passa a residir com ou junto do irmão da mãe de um dos esposos. Conferir: AUGÉ, 1978, p. 48. 119 Tipo de residência em que pode haver uma alternância entre a residência virilocal e uxorilocal, ou patrilocal e matrilocal. Idem, anterior. 120 Tipo de residência em que o novo casal passa a residir onde o marido residia anterior ao casamento ou após o casamento. Ibidem. 121 Tipo de residência em que o casal define morar com ou junto dos pais da noiva. Ibidem.

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da população local. Além do técnico de enfermagem, percebe-se que cada grupo local possui

um agente de saúde indígena (AIS) e um agente indígena de saneamento (AISAN), que

desenvolvem atividades de orientação e executam ações em consonância com os demais

profissionais da saúde, visando o bem-estar da população.

Além dos Postos de Saúde, constata-se em algumas construções realizadas pela

FUNAI, como foi o caso da casa construída para a realização de atividades de beneficiamento

da mandioca, onde se faz a farinha. Porém, nos núcleos Capitão Mira, Piquizeiro e Iapu, o

espaço da casa de farinha é raramente utilizado para os fins a que foram construídos, pois,

muitas famílias continuam realizando suas atividades em seus pontos tradicionais de produção

de farinha, utilizando instrumentos feitos pelos próprios grupos familiares, como é o caso das

peneiras e dos tipitis. Logo, em sua maioria os espaços são construídos, às vezes, à revelia da

vontade da comunidade local.

A seguir, visualiza-se a imagem do Posto de Saúde de Xié pihu renda, na região do

Gurupi, imagens do Posto de Saúde e a casa do forno do núcleo Capitão Mira, na região do

Turiaçu.

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Ao continuar olhando para a “arquitetura social” da sociedade Ka’apor me deparo

com outro aspecto que orienta, dinamiza e dá sentido às ações sociais, que são os processos de

educação e socialização nesta sociedade.

As diferentes sociedades humanas possuem racionalidades e formas diferenciadas de

educar e socializar as pessoas. Algumas, criando espaços e determinando momentos na vida

para que esses processos aconteçam.

Para as sociedades indígenas, assim como para as demais sociedades, a educação

sempre ocupou um lugar de destaque; ela é interesse de toda a comunidade. Tem como

propósito, formar pessoas capazes de reproduzir socialmente a cultura de seu povo, com suas

características próprias. Desta forma, os povos indígenas possuem e sempre possuíram suas

próprias pedagogias. Confirmando o princípio em que cada povo constrói historicamente

formas de educar e de socializar suas crianças e jovens, as quais estão vinculadas às tradições

que garantem a sua continuidade enquanto povos etnicamente diferenciados.

Melià (1979), em sua obra Educação Indígena e Alfabetização, afirma existirem dois

modelos de Educação que orientam os processos de socialização nas sociedades indígenas e,

que são desenvolvidos nos grupos locais: a “educação indígena” e a “educação para o índio”

(MELIÀ, 1979: 9 – 53).

Contudo, cada povo indígena tem seus próprios processos pedagógicos, detendo

formas, maneiras, métodos e regras específicas de transmitir conhecimentos. O autor afirma

ainda, que a educação indígena é um meio de controle social do grupo, implicando o processo

pelo qual cada sociedade indígena internaliza em seus membros sua maneira de ser,

garantindo sua sobrevivência e continuidade enquanto povo.

Na sociedade Ka’apor, o educar e socializar foi se redefinindo e re-configurando a

partir de relações políticas e culturais estabelecidas com a sociedade nacional. A escola

tornou-se uma realidade no território Ka’apor a partir da presença dos primeiros missionários

na área, muitas vezes utilizada como estratégia para evangelização.

Posteriormente, a educação escolar indígena é assumida pela FUNAI que destaca

pessoas para essa tarefa em diferentes núcleos no território. Entre os inúmeros problemas

encontrados na educação escolar indígena nesse momento estavam as dificuldades de

adaptação dos professores. Consequentemente constatou-se que, as pessoas destacadas,

chegavam a abandonar o ofício, comprometendo a continuidade das atividades e projetos da

FUNAI junto a essa sociedade. Nota-se que hoje, essa problemática ainda continua presente

nos sete grupos locais (dos dezesseis) em que existem escolas.

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Entre os grupos locais que possuem escolas, ou orientados pelos princípios da

educação escolar indígena, estão em sua maioria, núcleos que se encontram sob a

responsabilidade das Secretarias Municipais de Educação (SEMEC), como é o caso de Xié

pihu renda, Paraku’y renda, Sítio �ovo e Araçatiwa (SEMEC – Paragominas/Pará), Axigui

renda (SEMEC – Centro do Guilherme/Maranhão), Ximbo renda (SEMEC – Santa Luzia do

Paruá/Maranhão), Zé Gurupi (SEMEC – Zé Doca/ Maranhão). Diferente do processo que

vem acontecendo com outras etnias em que a responsabilidade pela educação escolar indígena

está na instância estadual, ou seja, fica a cargo da Secretaria Estadual de Educação – SEDUC,

conforme garante a legislação específica122.

Nesse sentido, as diferentes experiências de educação escolar indígena desenvolvida

nos grupos locais revelam complementaridades entre o modelo de educação existente e o que

chega. No entanto, é latente o paradoxo nessas relações. Sobretudo, quando se desconsidera

subjetividades, ações em tempos e lugares diferenciados e específicos no processo de

educação.

Florestan Fernandes (1975), ao analisar os princípios que orientam a educação

Tupinambá, destaca que todo aprendizado pressupõe participação em diferentes etapas ou

fases da vida, acompanhado da imitação, pois esses seriam os dois princípios que destacam o

processo de educação entre os Tupinambá. Contudo, afirma que “pode dizer-se, sem temor de

erro, que o aprender fazendo constituía a máxima fundamental da filosofia educacional dos

Tupinambá.” (p. 44)

Tal procedimento nas sociedades indígenas, a “arte de fazer” (CERTEAU, 1994: 86)

se diferencia das práticas baseadas nos modelos ou cultura habilitada apenas pelo ensino.

Nesse sentido, a sociedades Ka’apor tem revelado que o aprender fazendo tem se

constituído em um dos princípios orientadores do aprender cotidiano nesta sociedade. Basta

que se conheçam os processos e técnicas estabelecidas por essa sociedade no que se refere à

produção de seus artefatos, indumentárias, adornos, utensílios diversos e instrumentos

musicais. Elementos essenciais de uso em atividades de subsistência, doméstico, pessoal e

ritual.

A densa etnografia realizada por Berta Ribeiro em 1957, referente à arte plumária dos

Ka’apor demonstra, mais do que nunca, que essa tradição continua viva como elemento

marcante da identidade do grupo, pois, a sábia habilidade para a confecção de artefatos com

122 Sobre as instâncias responsáveis pela educação escolar indígena consultar: Art. 210, da Constituição Federal de 1988; Art. 32, 78 e 79, da Lei 9.39496 ou das Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB; o Parecer 14/99 da Câmara de Educação Básica - CEB, do Conselho Nacional de Educação – CNE.

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plumagens constitui-se em uma expressão cultural Ka’apor que atravessou séculos. Práticas

culturais que são permanentes ainda até hoje no cotidiano do grupo, sobretudo, na confecção

de artefatos de uso doméstico (jamaxi, peneiras, esteiras, redes, tipóias, panelas de barro, etc.)

e uso ritual (indumentárias, instrumentos musicais, ornamentos, entre outros).

Por outro lado, a relação dos Ka’apor com seu território, assim como, as demais

sociedades, sempre foi orientada pela reprodução de saberes, práticas ambientais e culturais

visando a reprodução social do grupo. O grupo possui uma relação particular com todas as

formas de vida existentes no seu território, dando-lhes uma função social na defesa do

mesmo. Com isso, transformam as fontes dos saberes em elementos que afirmam uma

identidade simbólica, mas, sobretudo, étnica. Entre as linguagens culturais expressivas do ser

Ka’apor está a arte desenvolvida historicamente pelo grupo – a plumária; onde pássaros e

outros seres da natureza são motivos presentes tanto nas letras de suas cantorias, músicas

quanto nos elementos utilizados na confecção dos artefatos.

As diferentes linguagens culturais possuem um grande poder simbólico capaz de

orientar os projetos de vida nesta sociedade, como é o caso de artefatos confeccionados pelos

pais a serem entregues às crianças após o nascimento, quando vão embutidos neles algo

projetado para o futuro da criança ao se tornar um adulto. No caso dos meninos, em sua

maioria, recebem wyrapar (arcos), u’y (flechas com ponta de madeira), em miniaturas, para se

tornarem bons guerreiros. E, as meninas, passam a receber Kyha (rede), Panakũ

(jamaxi/cesto), Urupẽ (peneira de guarumã), para se tornarem aptas à confecção de utensílios

domésticos.

Aliados a esses elementos culturais, existem outros elementos de cunho simbólicos

possíveis de revelar a identidade étnica do grupo, entre eles, as formas próprias adotados para

se definirem enquanto pessoas.

Este breve ensaio acerca do contexto histórico do jumu’e ha henda aos dias atuais me

possibilitou identificar elementos essenciais da cultura do grupo visando a compreensão do

corpus cultural Ka’apor.

Os dados, as informações, os registros e os relatos aqui apresentados de forma

concisa, não constituem o upa (fim), como referem alguns Ka’apor quando se referem às

inúmeras atividades no cotidiano dos grupos locais, mas tiveram o objetivo de apresentar

aspectos importantes da vida desta sociedade na perspectiva de conduzir o estudo para a

compreensão da cosmologia enquanto elemento essencial na análise das categorias de

entendimento do grupo. A partir desse pressuposto, procurando compreender os elementos

constitutivos ou parâmetros que explicam a noção do “eu” nessa sociedade.

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Neste sentido, é que no capítulo a seguir, fundamentado nas etnografias sobre as

perspectivas indígenas amazônicas, desenvolvo um ensaio interdisciplinar entre a literatura

clássica da antropologia com áreas afins e, destas com a epistemê Ka’apor, visando apresentar

as categorias de entendimento desses sujeitos dialógicos que fundamentam a concepção de

pessoa nessa sociedade.

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III

Ipy’a pe ukwa katu te’e ixoIpy’a pe ukwa katu te’e ixoIpy’a pe ukwa katu te’e ixoIpy’a pe ukwa katu te’e ixo

ele sabe por si mesmoele sabe por si mesmoele sabe por si mesmoele sabe por si mesmo

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Hape, no caminho dele

... Passava das seis horas da manhã quando Juze (16 anos), Hirá (11 anos), �atã (09 anos) fazem gestos, como que me convidando para ir ao igarapé Taboca123, para o banho e escovar os dentes, conforme fazem os homens todas as manhãs, antes das mulheres se deslocarem para o mesmo e lavar as roupas. Como eu dormia na casa do forno, que se localiza ao lado do caminho que dá acesso ao igarapé, foi muito prático eu levantar e acompanhá-los. Como ainda fazia frio, e eu continuava com o corpo aquecido, resolvi aguardar um momento até que a coragem motivasse o banho no igarapé. Na ocasião do retorno para a aldeia, Waxã (25 anos) convida o grupo para uma pescaria no igarapé Taboca, e percebi por sua performance que indicava a direção da região onde os peixes são mais abundantes. Como costumam solicitar para mim alguns instrumentos de pesca (linha, anzol, chumbada), resolvemos no momento dividir os materiais que havia trazido e resolvemos nos deslocar para o caminho que levaria à região da pescaria. Porém, no momento da saída, Juze se dirige a Waxã apontando o caminho que iria se deslocar. E Waxã, contrário a Juze, olhando em minha direção, aponta para outro caminho, tentando explicar que esse seria o caminho sem obstáculos (entre eles, ter que atravessar outro igarapé) e que o tempo de deslocamento seria menor. Por fim, �atã resolve acompanhar Juze, enquanto que eu e Hirá resolvemos acompanhar seguir os passos de Waxã, após a definição do trajeto. Depois de uma caminhada de cerca de um quilômetro e meio na mata, avistamos as margens do igarapé Taboca, e uma canoa que serviu para nos deslocar igarapé adentro. Porém, antes de sair, tiramos água de dentro da canoa, que se encontrava alagada por ocasião da chuva que caiu na região no dia anterior. Alguns minutos depois, chegam Juze e �atã para somar-se a nós. Nesse momento pensei: Waxã tinha razão, hape (o caminho dele), conforme costumam expressar era mais seguro. Antes de continuar nossa viagem pelo igarapé, Hirá abriu seu pequeno saco de u’i (farinha), encheu a pequena kúi (cuia) de água, jogando cerca de cinco punhados de u’i sobre a água até que ficasse molhada, dando origem ao saboroso u’i tykwar (chibé), bebida muito comum entre os Ka’apor. Nesse momento, a cuia começou a circular pelo grupo antes de continuar nossa viagem (Diário de campo, 09 de janeiro de 2008).

As constantes expedições realizadas junto aos Ka’apor em seu território, somados às

empreitadas realizadas com outros grupos indígenas, potencializaram um caminhar seguro

rumo a meta prevista neste estudo. Contudo, tirei muitas lições nas constantes idas e vindas ao

henda e o diálogo que estabeleci com a cultura Ka’apor. Os deslocamentos, percursos e

trilhas realizadas no território físico e cultural, foram essenciais para a compreensão do

Ka’apor henda.

Por isso, a partir destas experiências que enriqueceram meu aprendizado etnográfico,

procurei caminhos que me levassem aos lugares mais seguros para o estudo que realizava. Os

Ka’apor quando desejam ou optam seguir um caminho que julgam ser seguro, já trilhado

anteriormente por outras pessoas, que os levou a um destino possivelmente almejado, se

referem à expressão hape (o caminho dele).

123 Igarapé que atravessa o grupo local e que desemboca na margem direita do Rio Hola, afluente esquerdo do Rio Turiaçu.

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Porquanto, realizo minhas interpretações a partir do hape trilhado primeiramente pelos

clássicos da Antropologia, quando em suas etnografias junto a diferentes povos indígenas vão

orientar inúmeros estudos etnológicos no Brasil em que a atenção se volta para construção da

noção de pessoa.

As sociedades indígenas possuem formas diversas e especificas de produzir cultura e

socializar seus integrantes. Processos que podem ser traduzidos nos costumes e em suas

instituições próprias. Portanto, a partir das inúmeras interlocuções possíveis busquei

estabelecer um exercício permanente na perspectiva de aproximar as “experiências-

distantes”124 das “experiências-próximas”125. Neste capítulo apresento princípios teórico-

metodológicos fundamentados em uma antropologia clássica, concomitantemente, com uma

etnologia contemporânea acerca das etnografias realizadas junto às sociedades indígenas em

terras baixas da América do Sul.

Nota-se que essas sociedades possuem marcadores simbólicos que identificam como

se definem enquanto pessoas. Nesse sentido, fundamentado na cosmologia Ka’apor, procurei

realizar um exercício de descrições e análises que visassem a compreensão dos elementos de

ordem simbólica que levam o grupo a pensar o sentido do “eu”, procurando compreender as

formas culturais com que as pessoas nessa sociedade se representam para si mesmas e para os

outros.

A princípio, o olhar sobre o outro, que possui uma noção sobre si e, que apresento

nesta etnografia, me conduziu também ao estudo da noção de pessoa a partir do texto clássico

Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, aquela de Eu126, escrito por Mauss

em 1938, na tentativa de comprovar as hipóteses127 pensadas por Durkheim em As Formas

Elementares da Vida Religiosa de 1858-1917, quando apresenta uma história social das

categorias do espírito humano (DURKHEIM, 1996: 289-313).

Porém, a idéia de pessoa segundo Mauss (1974: 209) requer a compreensão dos

seguintes princípios básicos: primeiramente, que como uma categoria de nominação e

diferenciação de outros seres do mundo, a idéia de pessoa não é inata ao espírito humano, ela

124 São experiências em que determinados profissionais de uma área específica do conhecimento buscam realizar com fins científicos, filosóficos ou práticos. Conferir: GEERTZ, Clifford. “Do ponto de vista dos nativos’: a natureza do entendimento antropológico” In O Saber local – Fovos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997, p. 85 -107. 125 São experiências realizadas por “nativos” com vista a definir sentimentos e realizar atos similares aos seus semelhantes. Idem, ant. 126 Sobre o capítulo, conferir: MAUSS, Marcel. "Uma Categoria do Espírito Humano: a noção de pessoa, a noção do eu" In Sociologia e Antropologia - Vol.1. São Paulo: EPU/ EDUSP, 1974. 127 Essa preocupação é apresentada por Goldman quando situa o debate sobre esta noção entre os antropólogos. Conferir: GOLDMAN, Marcio. Uma Categoria do Pensamento Antropológico. Revista de Antropologia. Vol. 39 nº 01. São Paulo, USP, 1996, p. 83 – 109.

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é uma produção social; segundo, como construção simbólica da cultura dos povos, possui

uma história própria dentro da história social da humanidade; e, por fim, que essa idéia se

diferencia de uma sociedade para outra quando se trata de um mesmo período histórico, mas

com uma ressalva, pode ser que ela nem exista em determinadas sociedades.

Logo, esses princípios mostram que pode haver uma variabilidade quanto à

constituição ou construção dessa idéia pelas diferentes sociedades, dependendo, assim, dos

padrões culturais estabelecidos internamente no grupo social. Também, percebe-se que à

medida que os indivíduos interagiam com o outro e com a natureza, atribuíam significados às

coisas, possibilitando que o conceito de pessoa fosse construído historicamente.

Essa idéia vai sendo aperfeiçoada por Mauss (1974) a partir dos inúmeros estudos

sociológicos realizados com povos originários, conforme aconteceu com os estudos com o

subgrupo Zuni, ligado aos Pueblo, povo oriundo da América do Norte. A partir desses estudos

o autor afirma que essa concepção está associada à idéia latina de persona, que significa

máscara, imagem e que tem o sentido, também, de prenome ou sobrenome. Afirma que na

Roma Antiga, o termo persona estava associado às máscaras que eram utilizadas nos rituais

fúnebres, nos enterros, indicando que o morto foi uma pessoa importante. Deixa claro que os

romanos também se destacaram por construir e utilizar a noção de indivíduo; transformar a

noção de máscara, personalidade mítica, em noção de pessoa moral, utilizando-se do direito

para engendrar a noção de pessoa civil e de cidadão. Entre os gregos, está associada à figura

de madeira que viaja no mastro da proa dos barcos, que posteriormente, será vinculada à idéia

do personagem presente em cada indivíduo; assim como, à personalidade humana e divina. (p.

233-234).

Porém, entendo que o estudo dessa noção proposto por Mauss (1974) assumiu seu

caráter prático no Brasil a partir das etnografias de Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro

(1987/1996)128, Cartry (1973)129, Descola (1998)130 e Arhen (1990)131, sobretudo, no que diz

128 O artigo reeditado reflete uma das primeiras reflexões dos autores acerca da noção de pessoa nas sociedades ameríndias amazônicas. Conferir: SEEGER, Anthony, DA MATTA, Roberto e VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras” In PACHECO DE OLIVEIRA FILHO, J. (ed.) Sociedades Indígenas e Indigenismo no Brasil. Rio de Janeiro/São Paulo: UFRJ/Marco Zero, 1987 [1979]; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Os Pronomes Cosmológicos e o perspectivismo ameríndio. MAFA 2(2), 1996, p.115-144. 129 Para os estudos sobre a noção de pessoa no norte da África, conferir CARTRY, Michel. “Introduction” In La notion de personne em Afrique noire. Paris: CNRS, 1973, p. 15 – 31. Citado também por GOLDMAN, 1996: 98-99. 130 Fundamentado em uma tendência de sensibilidade ecológica a partir das narrativas indígenas e concepções cosmológicas tradicionais, o autor trabalha a categoria “pessoas” englobando espíritos, plantas e animais, todos dotados de uma alma, logo, uma cosmologia que não diferencia os humanos e os não-humanos. Sobre a obra que referenda tal perspectiva, consultar: DESCOLA, Phillipe. Estrutura ou sentimento: a relação com o animal na Amazônia. Mana, 4, 1998, 23-45.

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respeito a constituição ou natureza do ser a partir dos estudos realizados com sociedades Tupi

amazônicas132.

Vale ressaltar que a maioria das etnografias referidas apresenta a idéia de pessoa

construída pelas sociedades indígenas enquanto uma categoria de pensamento nativa. Sendo

assim, priorizar a noção de pessoa como categoria é tomá-la como instrumento de

organização da experiência social, ou ainda, como construção coletiva que dá significado ao

vivido, uma vez que a prática concreta de qualquer sociedade só pode ser entendida a partir da

compreensão das categorias construídas no grupo. Ou, como bem lembra Carneiro da Cunha

(1978)133 em seus estudos sobre a noção de pessoa entre os Krahó, quando indica que cada

cultura entende sua noção de pessoa como sendo uma idéia natural, pois cada grupo elabora

“representações específicas sobre o ser humano” enquanto pessoa que faz parte do grupo.

Na perspectiva de compreender essa noção a partir da relação identidade-etnia,

Brandão (1986)134, ao analisar a construção de identidade mediada pelos contatos interétnicos,

afirma que existem inúmeras possibilidades de uma dada sociedade edificar sua noção de

pessoa. Entre elas, que é possível pensar a pessoa a partir de “estruturas de relações

socializadoras”, onde pessoas de diferentes categorias de idade vivenciam “situações

codificadas, redes e estruturas sociais estabelecidas”. Logo, cada grupo social constrói seus

símbolos e idéias acerca da idéia de pessoa que, possivelmente, cooperam na formação de sua

identidade étnica.

Portanto, o sujeito que forma a pessoa é resultante das expressões e interações

cotidianas no meio em que vivem, sobretudo, orientados por seus padrões culturais, conforme

referenda Brandão (1986:15) quando cita Mead (s.d.):

Na medida em que pode ser um objeto para si, a pessoa é essencialmente uma estrutura social e surge da experiência social. Depois que surgiu, a pessoa proporciona a si mesma, de certo

131 O autor em questão, fundamentado nos princípios filosóficos da natureza Makuna, contrários a um antropocentrismo, percebe que cada ser nesta sociedade (humanos e não-humanos) possui uma visão de mundo. Princípios que fundamentam uma relação de equilíbrio com o meio ambiente e o reconhecimento da humanidade ou pessoa no “outro”. Conferir: ARHEM, Kaj. Ecosofia Makuna. In La Selva Humanizada. Ecologia Alternativa em el Trópico Húmedo Colombiano. Bogotá: Instituto Colombiano de Antropologia, 1990, p. 105-122. 132 Em seu artigo sobre os fundamentos da perspectiva ameríndia a partir de categorias cosmológicas, Viveiros de Castro (1996), reafirma e reconhece que esses estudos tiveram inicio com as contribuições trazidas pelas etnografias de Vilaça (1992) sobre o canibalismo wari’ e de Lima (1995) sobre a epistemologia juruna. 133 A autora analisa o sistema funerário e a noção de pessoa entre os Krahó. Sendo que, no que diz respeito a noção de pessoa, identificou dois marcadores ou aspectos da sociedade Krahó como elementos formadores da noção de pessoa nessa sociedade: a amizade formal e companheirismo. Conferir: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Os Mortos e os Outros – Uma análise do sistema funerário e da noção de pessoa entre os índios Krahó. São Paulo: Hucitec, 1978, p.88 -94. 134 Sobre a obra, conferir: BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Identidade e Etnia. Construção da Pessoa e Resistência Cultural. São Paulo: Brasiliense, 1986, p.13-34.

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modo, as suas experiências sociais... No entanto, é impossível imaginar uma pessoa surgida fora da experiência social p.172).

Por outro lado, Geertz (1978)135 também apresenta possibilidades de se compreender a

idéia de pessoa a partir de estruturas e sistemas simbólicos, construções culturais:

Uma dessas necessidades orientadoras difundidas é certamente a caracterização dos seres humanos individuais. Todos os povos desenvolveram estruturas simbólicas nos termos das quais as pessoas são percebidas exatamente como tais, como simples membros sem adornos da raça humana, mas como representantes de certas categorias distintas de pessoas, tipos específicos de indivíduos. Em cada caso em separado, surge, inevitavelmente, uma pluralidade de tais estruturas. Algumas são centradas no ego, como, por exemplo, as terminologias do parentesco: isto é, elas definem o status de um indivíduo em termos de uma relação como um ator social específico. Outras se concentram em um ou outro subsistema ou aspecto da sociedade, e são invariáveis no que diz respeito às perspectivas dos atores individuais: categorias nobres, status de grupos de idade, categorias ocupacionais. Alguns - nomes pessoais e apelidos – são informais e particularizantes; outros – títulos burocráticos e designações de casta – são formais e padronizados (p.228-229).

Por isso que, como primeiros passos dessa análise de estudo, busquei me orientar pelo

chamado perspectivismo ameríndio, por entender que este movimento de análise caracteriza-

se como uma forma de compreender as sociedades indígenas mediatizadas pela natureza e

cultura (LÉVI-STRAUSS, 1982: 41-49); onde diferentes seres, humanos ou não, são

reconhecidos como portadores de cultura; quando a “humanidade” torna-se um elemento

fundamental que confirma a existência desses seres.

Entendo que esse movimento se atualizou nos estudos etnológicos contemporâneos,

haja vista, essa perspectiva ter sido inaugurada nos estudos clássicos da Antropologia

conforme lembra muito bem Sahlins (2003)136 ao reafirmar o pensamento de Morgan sobre a

integralidade entre natureza e cultura, quando compreende esta última orientada por “... uma

lógica prática – biológica nos primeiros estágios, tecnológica nos últimos” (p. 64). Portanto,

que cultura e natureza estão intrinsecamente ligadas, pois “... pensamento é reconhecimento e

a mente é um veículo pelo qual a natureza é compreendida como cultura” (p. 65).

A propósito da reflexão de Mercante (2006)137 sobre o perspectivismo, o autor

reconhece a estreita relação entre o universo simbólico e cosmológico, sobretudo, quando há

um relacionamento da pessoa com o meio-ambiente. Mostra que esses dois universos são “o

resultado do contato com o ecossistema e da noção de uma descontinuidade com os seres que

135 Cf. GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. 136 Cf. SALHINS, Marshall. Cultura e razão prática. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 2003, p. 63 – 70. 137 Cf. MERCANTE, Marcelo Simão. A Interconexão entre Saberes, Práticas e Percepções: o Mediador entre Cultura e Fatureza. Capturado no dia 07/01/2009 na página: www.cfh.ufsc.br/mercante/intercon.htm,maio,2006.

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o habitam” (p.7). Porquanto, ratifica o papel primordial ocupado pela cosmologia no sentido

de integralizar esses dois mundos, que denomina primeiro de interno ou neuro-cognitivo, que

possibilita um olhar da cultura por dentro, e o externo, relacionado ao habitat natural da

pessoa, o meio-ambiente.

Esses dois universos podem serem vistos a partir do olhar e do diálogo entre duas

áreas do conhecimento, a começar pelas análises de Merleau-Ponty (1980)138 quando entende

que a Antropologia possibilita à Filosofia um alargar [d]a razão quando acontece o encontro

com o outro. Com isso, é possível entender as diferentes formas que os sujeitos – que as

sociedades - têm de significar o mundo. É nesse alargar da razão que passo a despertar para o

meu conhecimento e os conhecimentos dos outros. Logo, compreender significa um olhar

sobre o mundo compartilhado; sobre como eu vejo o outro e como ele me vê.

Tal perspectiva orientou meu olhar e leitura interdisciplinar do entrecruzamento de

olhares e mútuas interpretações de outras áreas do conhecimento das Ciências Humanas com

a Antropologia (FOUCAULT, 2006)139 e destes, com a epistèmê Ka’apor. Pressupostos

essenciais que orientaram ou constituíram-se em elementos de análise para a compreensão da

noção de pessoa Ka’apor.

E é a partir das análises sobre a epistemologia ameríndia na Amazônia, que Viveiros

de Castro (2008) afirma que essas sociedades têm formas específicas de se pensarem a partir

de noções próprias de pessoa, que “todo ser se vê como gente, [e se vendo dessa forma] faz

parte d[e um] universo cultural; [e que] ser gente é ser eu para os indígenas, [e] esse eu traz

consigo todos os atributos desse eu; só quem pode ser nós são os seres da mesma espécie”.140

Assim, como as demais sociedades Tupi amazônicas, a sociedade Ka’apor tem

privilegiado determinados aspectos da sua cultura através dos quais constrói a idéia de pessoa.

138 Cf. MERLEAU-PONTY, Maurice. De Mauss a Claude Levi-Strauss. In Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 203. 139 A partir das reflexões de Foucault (2006) sobre a importância do surgimento do conhecimento, seja o científico ou o empírico, quando indica três possibilidades ou formas de se compreender o conhecimento, que chamou de “triedro dos saberes”: o das Ciências Matemáticas e Físicas, com método dedutivo e linear de investigação; o das Ciências Empíricas, que se refere à lingüística, biologia e economia e; o da reflexão filosófica, com atenção ao desenvolvimento do pensamento. Entre as perspectivas que orientam o possível domínio por inteiro do conhecimento humano nesses três domínios, estão: o entrecruzamento das Ciências Humanas; a interpretação mútua entre as áreas do conhecimento, eliminando as fronteiras que se fazem presentes; uma multiplicação das disciplinas intermediárias e mistas que possam surgir e; a dissolução de seu próprio objeto. Nesse sentido, que entendo ser possível aqui pensar metodologias fundamentadas no entrecruzamento de olhares e interpretações entre diferentes áreas do conhecimento em conformidade com o ponto de vista nativo acerca de categorias de entendimento que ajudam a compreender como os sujeitos se pensam perante os demais seres humanos. Conferir: FOUCAULT, Michel. “As Ciências Humanas” In As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 475-536. 140 Afirmações do autor na Conferência sobre Cosmologia Indígena realizada no Museu do Índio, no Rio de Janeiro em 22 de julho de 2008, por ocasião da realização do Curso Dimensões das Culturas Indígenas: Cosmologia, Arte e Etnicidade.

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Tais aspectos estão fundamentados tanto na construção mental sobre si, na relação com o

outro quanto nas relações com o meio ambiente. Todos orientados pela cosmologia do grupo.

Entre os diferentes aspectos em que a pessoa se revela, Mauss (1974) mostra que,

entre os Zuñi, na ocasião do nascimento, inúmeros sujeitos, além de ocuparem uma posição

social na vida do clã e da tribo, alguns deles eram nominados com o intuito de seguirem as

funções atribuídas e os projetos a que foram destinados dentro da cultura do grupo. Pois é

através desses papéis assumidos que as relações são construídas culturalmente e significadas

entre os sujeitos, e desses com o grupo - a coletividade.

Esses projetos sociais são atribuídos a partir de duas ordens, uma social e outra

simbólica. Sendo que na social está implícito como se dão na realidade concreta os jogos de

posições e relações familiares/parentesco possíveis entre seus membros. Já, na ordem

simbólica, como, na realidade, é projetada coletivamente a vida social de seus membros e,

como pensam suas relações com a natureza. Logo, é possível pensar de que maneira essa

ordem vivida e pensada pode ser compreendida a partir de um cotidiano que é coletivamente

ritualizado (MAUSS, 1974: 214-215).

Porém, existem mecanismos possíveis (experiência, observação e reflexão) que levam

ao conhecimento da pessoa; entre eles destaca-se, por exemplo, as formas como os grupos

concebem as categorias de idade. E, entre as diferentes classes de idade é possível que se

possa conhecer a pessoa enquanto ser em desenvolvimento sócio-cultural, em suas diferentes

atividades de inserção ou sociabilidade, que podem estar associadas às fases de

desenvolvimento humano141, pois cada ser humano vê o mundo sob a perspectiva da cultura

em que cresceu142.

O diálogo com esses autores permitiu-me entender que a visão de pessoa nas

diferentes sociedades é construída a partir das racionalidades do grupo social em diálogo com

realidades concretas.

Por outro lado, nas sociedades indígenas, o modelo de sociabilidade está

fundamentado e relacionado às diferentes classes de idade e aos papéis desempenhados pela

pessoa. Lembrando que as classes de idade definidas nessas sociedades diferem das

classificações definidas nas sociedades não indígenas.

141 Fases que estão intrinsecamente vinculas aos aspectos cognitivos do ser humano. Conferir: ROUSSEAU, Jean-Jacques. Os devaneios do caminhante solitário. Plêiade, I. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1986, p. 1.087. 142 Aspectos que, possivelmente são determinados culturalmente. Conferir: BOAS, Franz. Antropologia Cultural. Rio de Janeiro: Zahar, 2004, p. 18.

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Warahy ‘ar, o sol em cima

Assim como nas demais sociedades indígenas em que o marcador tempo constitui-se

em um elemento primordial para a concepção de pessoa, para os Ka’apor a dimensão

temporal vai representar uma forma peculiar de caracterizar, demarcar e estabelecer as

categorias ou fases da vida.

Contudo, existem elementos ou marcadores no cotidiano Ka’apor que apresentam

características ou traduzem concretamente a passagem de uma fase da vida para outra,

indicando que a pessoa está em condições ou apta a passar por mudanças na vida. Logo, o

ponto de referência que serve para referir a idade da pessoa na sociedade Ka’apor está

vinculado ao momento em que vivem a estação intensa de warahy (o sol), estação seca no seu

território de pertença. Eis a razão de em todos os momentos em que estão a lembrar a idade ou

se referirem ao tempo, sempre fazerem uso da expressão warahy’ar (o sol em cima) com os

braços para cima. Geralmente com os braços perfazendo um ângulo de noventa graus que

representa em nosso fuso horário às doze horas ou meio-dia.

Essa construção social do tempo Ka’apor corrobora o que Leach (2006: 206),

comprovou ao estudar a representação do tempo pela sociedade Kachin, da Birmânia

Setentrional. Além de considerá-lo como uma criação humana; ordenado pelas sociedades;

pode ser compreendido enquanto diferentes e contraditórias.

Quanto a essa última característica, os tempos diferentes são marcados por sucessões;

a noção de repetição é uma constância associada à medida, à sucessão de dias, luas, estações

anuais. Já no contraditório, apresenta-se a noção da não-repetição que deriva das mudanças da

vida. Porém, o tempo é compreendido como algo descontínuo onde há uma repetição de

inversões repetidas com a presença de pares de opostos. Sobretudo, representado pelo dia e

noite, inverno e verão, seca e cheia, velhice e juventude, vida e morte. Sendo o tempo uma

“sucessão de alternações e paradas..., ‘a descontinuidade de contrastes repetidos” 143.

Tal entendimento lembra o que Alves (1989)144 afirma acerca dos saberes associados

às representações astronômicas ou astronomia indígena. Pois, as sociedades indígenas

observam e classificam eventos astronômicos que configuram diferentes formas de apreensão

de saberes diferentemente das sociedades ocidentais. Eis mais uma razão para considerar o

143 Ao se referir a visão pendular do tempo mostra que a seqüência das coisas é descontínua. Conferir: LEACH, Edmund Ronald. Repensando a Antropologia. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 191 - 209. 144 Para compreender os saberes indígenas fundamentados em representações astronômicas ou em uma etnoastronomia, conferir: ALVES, Isidoro M. S. Ciência e Saber Contemporâneo. Estudos e reflexões. História, Sociologia, Epistemologia. CNPq/MAST. Rio de Janeiro, 1989, p. 40 – 55.

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olhar diferenciado. Essas representações cosmológicas além de conceberem interações e

estreitas relações entre o ser, à natureza e o cosmos também “ordenam o universo que conecta

o natural e o social, o mundo da natureza e o mundo da cultura” (p. 51).

Nesse sentido, considero que o corpo e o espaço demonstram ser elementos

determinantes para a constituição das classes de idade Ka’apor. Haja vista, Tuan (1983),

entender que as posições do corpo (vertical-horizontal, em cima-embaixo, frente-atrás,

direito-esquerda) podem ser consideradas como marcadores simbólicos dessas classes de

idade. Pois, é possível que o corpo extrapole o espaço ou que esse espaço seja articulado de

acordo com seu esquema corporal, justificando “que o futuro está à frente e acima”.

Entendendo que existe uma estrita relação entre corpo, espaço e tempo; e ao espaço é

atribuído o papel de ser o construto da pessoa.

Florestan Fernandes (1989), ao se referir ao Tratado descritivo do Brasil em 1587,

escrito pelo missionário Gabriel Soares, constata que esse procedimento ou técnica de

orientação pelo sol já era utilizada pelos Tupinambá quando queriam encontrar a direção que

os levaria a lugares seguros, ou possivelmente conhecidos pelo grupo. Lembrando que essas

técnicas vinham associadas ao refinamento dos órgãos dos sentidos (a escuta de sons na mata;

o ver e decifrar determinados objetos e sinais; a percepção de odores) que eram determinados

culturalmente (p.88-89).

Portanto, o tempo para as sociedades indígenas possui um significado singular a partir

de seus estágios de desenvolvimento próprio, adquirido através da transmissão cultural,

repassada ao longo dos anos, mostram que a pessoa “ao crescer, aprende a interpretar os sinais

temporais usados em sua sociedade e a orientar sua conduta em função deles” 145.

Para compreender a noção de tempo entre os Ka’apor utilizei a análise que mais se

aproximou da concepção do grupo, a reflexão feita por Evans-Pritchard (1974) entre os Nuer.

Segundo o autor, os conceitos de tempo Nuer devem ser divididos em dois grupos: o de

“tempo ecológico”, que reflete as relações do grupo com o meio ambiente; e o de “tempo

estrutural”, que reflete as relações sociais propriamente ditas, ou seja, as relações que os

indivíduos e os grupos estabelecem entre si. Contudo, as estações e meses do ano, as partes do

dia, se enquadrariam no “tempo ecológico”; enquanto as classes de idade, os nomes de locais

e eventos sociais, quando são utilizados para assimilar algo no tempo, estariam associados ao

“tempo estrutural”.

145 Sobre a questão do tempo sendo determinado pela cultura, conferir: ELIAS, Norbert. “Introdução” In Sobre o Tempo. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 15.

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Contudo, pelo calendário Ka’apor estar associado à sucessão das atividades produtivas

e de subsistência (cultivo, pesca, coleta, entre outros), a ciclos rituais pelos quais se

reproduzem o tempo e o alimento nos grupos locais, deduz-se ter uma forte proximidade com

o “tempo estrutural”. Pois, os fenômenos ecológicos selecionados como indicadores

temporais são pontos que interferem diretamente nas atividades econômicas do grupo.

Logo, percebi que as diferentes atividades desenvolvidas no cotidiano por homens e

mulheres, embora sigam a orientação de um tempo determinado pelo grupo, também seguem

os critérios de ações desenvolvidas segundo a capacidade e a classe de idade em que a pessoa

faz parte.

Nesse sentido, o tempo de cada pessoa na sociedade Ka’apor obedece a uma dinâmica

própria, pensada a partir do grupo e da função social que lhes é atribuída. Confirmando o que

Halbwachs (1990) expressa sobre a representação simbólica do tempo, quando afirma que

esse tempo vai está associado a algo de dentro do grupo; assume uma conduta conforme as

necessidades e as tradições146. E em se tratando dos Ka’apor, ele está presente em todos os

momentos da vida, seja nas atividades cotidianas, seja nos momentos rituais.

Além disso, destaco a importância de se reconhecer as diferentes denominações,

termos específicos ou nativos estabelecidos por essas sociedades para classificar suas classes

de idade. São categorias construídas socialmente que se referem às diferentes etapas de

desenvolvimento biológico e social dos sujeitos, relacionado a um caráter pedagógico no

cotidiano, sobretudo, no trabalho social desenvolvido pelos Ta’ynuhu (menino; rapaz), que

estão no estágio de se tornarem sawa’e (homem) quanto das Jai ramõ te (menina-moça entre

treze e quinze anos que apresentam sinais da primeira menstruação, aptas aos ritos da

reclusão) a se tornarem Kunjã (mulher; a senhora; à mãe); pois, esses momentos possuem um

significativo poder simbólico para a formação do ser Ka’apor.

A seguir, apresento um quadro resultante de um levantamento bibliográfico e empírico

realizado a partir de diferentes fontes históricas e etnográficas considerando as diferentes

categorias de idade construídas pelos Ka’apor, conforme quadro segue:

146 O tempo vinculado às tradições do grupo social, conferir: HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Vértice, 1990, p. 119.

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Sexo Autores/Ano

Fase/ Categorias Ives d’Evreux

(1874) Florestan Fernandes (Tupinambá/1976)

Roque Laraia (1986)

Darcy Ribeiro (1996)

Kakumasu/SIL (2007)

Recém-nascido Ta’en-men Táin-meen Ta’yn u’ar Menos de 1 ano Peitan Ta’em Até 3 anos Ta’yn Até 07 anos Kunumĩ-mirĩ Kunumy-miry Kunumi Kurumim Kurumĩ ra’yr

5 a 8 anos Tuy-háu-tuã

Até 12 anos Kurumĩ

Dos 07 aos 15 Kunumĩ Kunumy Kunumi-hu Ta’ynuhu

De 08 a 13 anos Tuy-háu

Dos 13 aos 18 Sauaé

De 15 a 25 anos Kunumĩ-guasu Kunumy-uaçu

Dos 15 aos 40 Avá Aua Sawa’é Saú-ay-té Sawa’e

Dos 30 aos 50 Tamoi

M A S C U L I N O

40 ou mais Tujuáe Thuyuae Tamui Pai-tamói Tamũi

Recém-nascido Ta’en-men Táin-meen Ta’yn u’ar

Menos de 1 ano Peitan Ta’em

Até 2 anos Ta-in Ta’yn

De 2 a 8 anos Kunã-tã-i

Até 07 anos Kuñãtaĩ-mirĩ Kugnatin-miry Kunãn-nayre Kunjantãi ra’yr De 8 a 10 anos Kuñãtã-raí Kunjantãi De 10 a 13 anos In-muñã ou Xãby-ramun Dos 07 aos 15 Kuñãtaĩ Kugnatin Kunãn De 13 a 15 anos Iay-ramun Jai ramõ te De 15 a 25 anos Kuñambusú Kugnammucu Pua-ramu De 15 a 40 anos Kunjã De 25 a 40 anos Kuñã Kugnam Ay

Dos 15 aos 40 Hakehara

F E M I N I N O

40 ou mais Guaimĩ Uainuy A’i Ay-kohé-hára A’i

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Entre os diferentes registros acerca das categorias de idade Ka’apor percebe-se uma

similitude com os relatos sobre as categorias levantadas por viajantes como Evreux (1871) e,

posteriormente, por Fernandes (1976) devido aos seus estudos sobre a sociedade dos

Tupinambá. Sendo esse elemento, um dos fatores determinantes para o reconhecimento da

semelhança entre essas duas sociedades indígenas, ou mesmo, para atribuir a descendência147

Ka’apor aos Tupinambá.

Contudo, o quadro acima retoma as explicações de Laraia (1986), em seus estudos

sobre a organização social dos grupos Tupi em que já reconhecia as semelhanças entre seis

categorias de idade nas duas sociedades.

Embora Ribeiro (1996) tenha registrado uma variabilidade de termos acerca de

diferentes categorias de idade adotados pelos Ka’apor que residiam tanto no Alto Turiaçu

quanto na região do Gurupi, percebi que os registros coletados por Laraia (1986) e Kakumasu

(2007) acerca desses sistemas, além de assemelharem-se quanto ao registro, são termos

utilizados entre os Ka’apor que residem especificamente na região do Gurupi, com exceção,

de grupos locais que foram constituídos recentemente no Alto Turiaçu, como é o caso de

Turizinho.

A partir da literatura que se refere ao processo de deslocamento Ka’apor desde seus

territórios originários até o atual, constatei que a variabilidade de termos encontrados por

diferentes cronistas e pesquisadores sobre as categorias de idade, se deram em função da ação

das frentes de “pacificação” do Sistema de Proteção do Índio, quando diferentes unidades

familiares foram submetidas a duas situações específicas: por um lado a atração e, por outro, a

dispersão.

O processo de atração, ora se dava pelo comando de não indígenas, ora por indígenas

de outras etnias, como é o caso dos Tembé Tenetehara, que foram utilizados pelos agentes

desses órgãos para “pacificar” outros grupos da região. Contudo, no processo de atração por

outros indígenas, aconteceram inúmeras trocas culturais e, a língua constituiu-se em um

elemento primordial nessa relação interétnica. Logo, havendo adesão de ambos na

incorporação de sígnos específicos de cada língua ou havendo um processo de

“heteroglossia”148 ou de interseções entre as duas línguas.

147 Sobre a semelhança em diferentes aspectos da cultura entre os Ka’apor aos Tupinambá, conferir: RIBEIRO, 1996: 219; 600. 148 Fato em que as línguas não se excluem, mas se complementam de formas diversificadas, sobretudo, no processo de expansão da comunicação e da influência intercultural, conferir: Bakhtin (1953) Apud Clifford (1998).

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No processo de dispersão, inúmeras unidades familiares foram forçadas a deslocar-se,

refugiar-se ou ocupar outras regiões do território vivendo em situação de isolamento por um

grande período. Com isso, as famílias que foram submetidas a essa condição continuaram

utilizando termos específicos para as diferentes categorias de idade sem que houvesse

incorporação de outros signos lingüísticos e/ou interferências de outrem.

Contudo, dependendo do período histórico ou situação de contato em que estavam

inseridos os Ka’apor, os pesquisadores que desenvolveram estudos sobre a vida do povo

Ka’apor ou, mais especificamente, sobre a língua falada pelo grupo, constatavam uma

especificidade nos termos relacionados às categorias de idade.

Para o entendimento do que representa cada categoria de idade no conjunto da

sociedade Ka’apor adotei os termos expressos no Dicionário por Tópicos Temáticos

organizado pelo casal de lingüistas Jaime Kakumasu e Kiyoto Kakumasu. Nota-se que esses

termos assemelham-se aos inúmeros constatados por mim em diferentes diálogos com os

Ka’apor.

Nesse sentido, apresento de forma breve as diferentes classes de idade organizadas

internamente com suas respectivas expressões.

A princípio, quando a criança nasce costumam referir-se a ela como Ta’yn u’ar;

ocasião em que os pais começam o resguardo.

Huxley (1963) compara o resguardo Ka’apor à couvade, por entender que há uma

similitude ou imitação ritual por parte do homem de um procedimento comum adotado por

ocasião do parto da mulher. Pois, esse período de reclusão segue após o nascimento da criança

com restrições que ambos devem observar no sentido de não serem acometidos por nenhum

malefício. Afirma que a couvade é finalizada quando a criança encontra-se com seis meses de

idade, apta a receber o nome no ritual de nominação.

Porém, hoje, com os procedimentos do atendimento de saúde não indígena em que se

tem a presença de profissionais vinculados ao sistema de saúde não indígena (médicos e

auxiliares de enfermagem), essas restrições tem sido seguidas com pouco rigor ou até mesmo,

abandonadas. Situação que tem acarretado conflitos quanto às práticas de saúde entre adultos

e os mais velhos com os profissionais não indígenas que atuam na área. Sendo que pessoas e

famílias abandonam ou trocam as orientações “da cultura” acerca do resguardo por

orientações “da cultura dos Karaí”.

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Essas implicações ou redimensionamentos das práticas culturais relacionadas aos ritos

liminares149 a que são submetidos homens e mulheres com restrições após o parto até o

período em que os ta’yn u’ar estão aptos a receber um nome.

Quando a criança, independente do sexo, completa dois a três anos passam a chamá-la

de Ta’yn.

No caso do menino, por volta de aproximadamente oito anos, quando começa a juntar-

se a outros meninos de sua idade para correr pela mata à procura de frutos, ninhos e aves,

passa a ser chamado de Kurumĩ ra’yr. Quando a menina chega neste mesmo período de seu

desenvolvimento recebe a denominação de Kunjantãi ra’yr.

149 Sobre ritos liminares, conferir: VAN GENNEP, Arrnold. Os ritos de Passagem. Rio de Janeiro/Petrópolis: Vozes, 1978, p. 25-33; 68-69.

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À medida que avança a idade, continuam recebendo outras denominações. Quando o

menino completa mais ou menos seus doze anos, começa acompanhar os caçadores, a

carregar cargas no retorno da caçada, passando a se chamar Kurumĩ. No caso da menina, o

que marca a passagem para outra fase é a transformação do corpo, quando nesse período os

seios começam a aparecer150 é logo denominada Kunjantãi.

150 Sobre o desenvolvimento ou mudanças ocorridas no corpo da menina por ocasião de sua iniciação, consultar RIBEIRO, 1996: 258; 259; 431; 432.

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Na fase seguinte, o menino-rapaz passa a ser chamado de ta’y nuhu, por se encontrar

na ocasião de ter seu prepúcio (ou estojo peniano) atado151 pelo tuxaua ou chefe guerreiro do

grupo local152; momento em que se sentem embaraçados pelo crescimento do pênis e olhares

às escondidas das mulheres. Situação que levam muitos ta’y nuhu a esconder os órgãos

genitais com as mãos em diferentes situações que têm que expor o corpo. Porém, hoje,

segundo relatos de lideranças Ka’apor, são raros os casos em que o tuxaua orienta o ta’y nuhu

na colocação de seu estojo peniano.

Em sua maioria, preferem atá-los sozinhos, quando recebem orientações de uma

pessoa adulta do sexo masculino (tuxauas ou avós), a se exporem aos demais familiares ou à

própria comunidade. Até porque como orienta a tradição, esse rito é realizado por ocasião da

Akaju re kwer (festa do caju) 153. Essa festa tem sido considerada como um dos marcos

regulatório que demonstra que o ta’y nuhu estão aptos para terem seus prepúcios atados

(HUXLEY, 1963: 172)

151 Caso a pele que cobre a glande de seu pênis não seja atada pelo tuxaua ou chefe guerreiro, o próprio se incumbe de amarrar o nozinho com um fio de algodão e apresentar vergonha e temor, evitando expor seus membros ao público. Conferir: RIBEIRO, 1996:261. 152 Tal mudança no corpo do menino pode ser constatada nos relatos de HUXLEY, Francis. Selvagens Amáveis. Um Antropologista entre os índios Urubus do Brasil. São Paulo: Brasiliana/Editora Companhia Nacional, 1963:160-172 e DARCY RIBEIRO, 1996: 258, por ocasião de suas visitas ou expedições junto aos Ka’apor, quando puderam presenciar essas mudanças em rituais de iniciação masculina. 153 Para tomar conhecimento da Akaju re kwer (festa do caju) enquanto ritual que aglutina simultaneamente a realização dos diferentes ritos Ka’apor, conferir: RIBEIRO, 1996: 593-596.

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Por outro lado, a menina-moça, ao chegar entre os treze e quinze anos, recebe o nome

de jai ramõ te, pois começa a apresentar sinais da primeira menstruação. Momento tomado de

restrições e tabus, quando a presença do sangue ou não pode se tornar um elemento que vai

regular diferentes atividades. Pois, na menstruação não somente passa por um período curto

de reclusão como representa a possibilidade da mulher Ka’apor manifestar seu poder de

criação na perspectiva de dar origem a outras vidas (HUXLEY, 1963: 165). Também nesta

fase as jai ramõ te começam a sentir orgulho de ter os seios crescidos; demonstram disposição

para auxiliar as mulheres adultas em diferentes atividades, assim como, apresentando sinais

de força diante das tarefas que são desenvolvidas apenas por mulheres adultas. Essas

características a tornam aptas aos ritos da reclusão154.

Após essas transformações, submetidos aos ritos que transformam meninos em

homens e meninas em mulheres, passam a receber outras denominações. Os rapazes, já

homens, após terem seu prepúcio atado, seguido recomendações do cacique ou chefe para não

terem relações sexuais enquanto não aparecerem seus pêlos pubianos (HUXLEY, 1963:172).

A partir de então, seu tratamento não será mais como ta’y nuhu, mas como sawa’e. Os

rapazes que, passarem pela experiência de numa batalha, matando algum inimigo, serão

submetidos a ritos de autopunição, recebendo marcas em seu corpo (HUXLEY, 1963: 166).

154 Sobre os detalhes da fase de reclusão da menina-moça, consultar HUXLEY, 1963: 162 – 174; RIBEIRO, 1996: 258; 259; 431; 432.

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Na ocasião, são reconhecidos pela comunidade como guerreiros, obtendo a denominação de

sawa’e ra’yr (menino guerreiro) ou amuhawaretá sawa’e (guerreiros).

Por outro lado, a menina-moça que passou pelo processo de reclusão, ou rito de

passagem, também passa a ser reconhecida não mais como jai ramõ te (menina-moça), mas

como kunjã, (mulheres adultas; senhoras; mães). Pois, a menstruação e a reclusão passam a

representar momentos em que se tornam mulheres plenas (HUXLEY, 1963:174).

Já adultos, após muitas experiências vivenciadas e acumuladas, saberes e

conhecimentos repassados, chegam a uma fase da vida em que a comunidade lhes atribui

outra denominação.

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Os homens, a partir de quarenta anos, reconhecidos como guardiões de saberes

tradicionais, pessoas que orientam e indicam como as tradições devem ser cumpridas, passam

a ser chamados de tamũi155. As mulheres que alcançam mais de quarenta anos de

experiências, chegando a ser acionadas permanentemente para orientar e conduzir eventos

ritualísticos no grupo local recebem, por sua vez, uma denominação específica, são chamadas

de a’i.

155 Explicação apresentada por Kim Kim Ka’apor (liderança do núcleo Capitão Mira), por ocasião das conversas sobre quem ensina no grupo local em 08 de julho de 2008.

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As categorias de classes de idade Ka’apor além de representarem diferentes etapas do

desenvolvimento humano constituem momentos essenciais de articulação entre aspectos

biológicos e culturais.

Como exemplo disso, entendi que, através dos órgãos dos sentidos, cada pessoa possui

capacidades de coletar ou captar informações do meio em que vive (mesmo que seja

limitada), cabendo a cultura o papel de auxiliá-la a organizar tais informações, visando

preparar a pessoa de forma a dar coerência às ações no cotidiano (Laughlin Apud Mercante,

2006).

Por isso que em cada categoria de idade são atribuídas ações específicas à pessoa que

a vivencia. É no desenvolvimento de suas capacidades no meio em que vive, interagindo com

o outro, que a pessoa vai desempenhar o papel social que coube a ela na sociedade Ka’apor.

Essas ações vão caracterizar a classe de idade a que a pessoa pertence no âmbito familiar e no

contexto do grupo local.

As várias constituições de categorias de idade Ka’apor, demonstraram para mim uma

inter-relação permanente entre o biológico e o social, existindo, assim, uma interdependência

entre essas duas dimensões no ser, sendo possível que uma dimensão determine a outra, pois

“a passagem de um indivíduo de um agrupamento a outro afet[a] o equilíbrio do sistema de

relações sociais e provoc[a] profundas modificações na personalidade do indivíduo em

questão” (FERNANDES, 1989: 221).

As classes de idade representam um dos aspectos importantes da constituição do ser

nesta sociedade, uma vez que elas demarcam culturalmente a trajetória de vida das pessoas.

Nesse sentido, pude identificar que é a partir de um momento específico da vida Ka’apor,

neste caso, na fase de Ta’yn u’ar, quando a criança começa a apresentar os primeiros sinais de

habilidades motoras - tais como: wata (ele anda); wapik (ele senta); jumumbe (ele se agacha;

ele se dobra) - que ela está apta a receber um nome, ou ainda, a passar pelo rito de nominação.

Além do rito de passagem representar a possibilidade de agregar as crianças à

coletividade pela cerimônia de nominação (VAN GENNEP, 1978: 68)156 também constitui-se

em um dos aspecto da sociedade Ka’apor possível de compreender a noção de pessoa

(BRANDÃO, 1986:16).

156 Sobre ritos de agregação como ritos de passagem, conferir: VAN GENNEP, 1978, p. 25-33; 68-69.

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Mija ame’ẽ tekoha pe ta irer re muĩ ta my, é quando se dá nome na “aldeia”

Segundo as etnografias clássicas157 e relatos de lideranças158, o ritual de nominação é

um ritual que durante muito tempo foi realizado de forma exclusiva ou separado dos demais

ritos de iniciação159 e de passagem160 nesta sociedade.

Entre os Tupinambá, o ritual de nominação consistia em um dos ritos pelos quais a

criança recém-nascida passaria a ser incorporada a sociedade (MÉTRAUX, 1979:189-197)161.

Hoje, esse ritual é realizado juntamente com a formação ou a passagem da menina-

moça; a posse do novo cacique; os casamentos; a formação do rapaz e o reconhecimento ou a

confissão de novos guerreiros. Essa conjugação de ritos é denominada de Akaju re kwer (festa

do caju).

157 Para o relato acerca deste ritual utilizei informações das primeiras etnografias realizadas entre Ka’apor, conferir: HUXLEY, Francis. Selvagens Amáveis. Um Antropologista entre os índios Urubus do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional/Brasiliana, 1963; RIBEIRO, Darcy. “Os índios Urubus: ciclo anual das atividades de subsistência de uma tribo da floresta tropical”. In Uirá sai à procura de Deus. Ensaios de Etnologia e Indigenismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974; RIBEIRO, Darcy. Diários Índios: Os Urubus-

Kaapor. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 158 Informações presente nos relatos de inúmeras lideranças dos núcleos Capitão Mira, Piquizeiro, Xymbo renda, Turizinho, Xi’é pihu renda. 159 Compreendem as cerimônias relacionadas à puberdade masculina e feminina, que dão acesso às categorias de idade; tendo como ponto de partida fenômenos fisiológicos e sociais quando os indivíduos se tornam homem ou mulher. São compreendidos também em sua função social, como é o caso dos “ritos de admissão”. Conferir: VAN GENNEP, 1978: 11-21; 68; 70-71; 94. 160 Entendendo esses ritos como cerimoniais que marcam a passagem de uma pessoa, ou de um grupo, de uma situação para outra, ou de um mundo social para outro. Conferir: VAN GENNEP, 1978: 11-21. 161 Cf. MÉTRAUX, Alfred. A religião dos Tupinambás e suas relações com as demais tribos Tupi-Guaranis. São Paulo: Brasiliana/Companhia Editora Nacional, 1950/1979, p. 189 – 197.

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Em outubro de 2007, lideranças dos núcleos Xié pihu renda e Paraku’ y renda

decidiram realizar esta festa.

Entre os Ka’apor, o muher (o momento quando se dá nome às crianças) é um

momento que marca a vida das pessoas na fase inicial da vida. Também conhecido como festa

da nomeação, nominação, “batizado” 162 dos Ka’apor, ou akaju re kwer (festa do caju), sendo

que o ritual recebe esta última denominação por ser o momento em que os Ka’apor preparam

o vinho de akaju (caju), podendo também ser de pako (banana), ou de mandiaka

(mandiocaba), se constituindo em um dos elementos simbólicos sinalizadores desse ritual. No

próximo item, tento demonstrar momentos que sucedem o ritual de nominação.

Jumusarai ha jamujã ta, preparar a festa do “batizado”

A festa é preparada usualmente pelos homens, podendo ser feita pelo irmão da mãe

(cunhados) ou pelos filhos do irmão, ou da irmã (primos), momento em que um deles tem a

tarefa de nomear o filho do outro (HUXLEY, 1963:210). Nota-se que esses dois grupos de

parentesco eram os potenciais candidatos a assumirem o lugar do pai nos ritos de nascimento

na sociedade Tupinambá (FERNANDES, 1989: 159), fato que vem se mantendo entre os

Ka’apor conforme relato acerca das últimas festas realizadas nesses dois grupos locais.

Essas festas tradicionais são orientadas pelos e/ou acompanham os ciclos anuais

agrícolas163, pois são como marcos para a realização de atividades extensas de plantação, para

a realização de caçadas e de coletas visando à sobrevivência das famílias. No momento que

antecede o akaju re kwer são realizadas grandes expedições à mata com o objetivo de capturar

caças que, posteriormente, são moqueadas a fim de alimentar as famílias durante a festa.

O mês de outubro tem sido a época para a realização da Akaju re kwer. Nesse período

começam a coletar o akaju (“caju da roça” ou “da aldeia”), diferentemente do akaju’i (“caju

do mato”), coletado no período de janeiro a março. Contudo, esse fruto tem sido escolhido

para o preparo da bebida a ser distribuída durante a festa. Também relatam que além do akaju,

costumam preparar a bebida de mandiaka (mandiocaba) ou de pako (banana) que passam por

um período de mupururuk (período de mistura, de fermentação) antes de serem preparadas.

162 Inúmeros sinais e momentos ritualísticos presentes no ritual de nominação Ka’apor assemelham-se ao ritual de batismo do Catolicismo. Com a presença de missionários realizando ritos de batismo católico junto ao povo, foram assimilando a denominação de seu ritual de nominação de “batizado”. Conferir: RIBEIRO, 1996:137. 163 Quando os ciclos agrícolas anuais orientam a realização dos diversos rituais n sociedade Ka’apor, conferir: RIBEIRO, Darcy. “Os índios Urubus: ciclo anual das atividades de subsistência de uma tribo da floresta tropical”. In Uirá sai à procura de Deus. Ensaios de Etnologia e Indigenismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, p. 31-59; RIBEIRO, 1996: 535-539.

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O local que funcionará como abrigo para as famílias durante a festa, o tukui, é

construído pelos donos da festa com ajuda de outras pessoas. Enquanto os donos da festa

estão a trabalhar no local destinado a construção do barracão, outros parentes e afins estão a

buscar madeiras e palmeiras na mata, as quais serão utilizadas tanto como material na

construção quanto na tecelagem e confecção de artefatos, entre outros. As mulheres passam

em torno de dois ou mais dias confeccionando adornos (pulseiras, brincos, colares, cintos,

adornos labial, braçadeiras, diademas, testeiras) e indumentárias (tangas, saias, cintos e

saiotes) que serão usados pelas pessoas envolvidas diretamente com a festa, ou que serão

submetidos a um dos ritos ao longo da festividade. Por outro lado, os homens também

confeccionam implementos (bordunas, flechas, arcos), utensílios (cachimbo, tipóia),

instrumentos musicais (maracá, corneta, flautas, colar apito), por exemplo.

No período da coleta do fruto, como é de costume, os homens colhem e trazem os

frutos do kupixa (do roçado) deixando-os amadurecer, para posteriormente, serem levados à

fermentação. Com a ajuda das mulheres, kytyk (ele rala) a mandioca, kamirik ou majyk (ele

amassa) e põem para cozinhar em potes. A seguir, despejam em camucins quando o produto

aparenta estar em fase de infusão. No caso da pako, chegam a deixar fermentar por quatro

dias. Esse mesmo processo pode ser feito com o akaju.

Esse é um momento oportuno para ir à mata tirar lascas de pytymyr (tauari)164 para

fazer o pytym (fumo usado pelo pajé durante os rituais). Os donos da festa entregam fumo aos

pajés e distribuem aos sawa’e ta pame (os homens) presentes no barracão. Enquanto isso, as

mulheres preparam mbeju (beiju), que são guardados num jirau de quatro metros e,

posteriormente, são fermentados e depositados em potes.

Além dos preparativos da bebida, cada convidado traz ixyha (rede dele). No momento

em que chegam, deitam na kiha (rede), colocando seu terçado embaixo da kiha juntamente

com um feixe de flechas. Também trazem consigo os melhores adornos de plumas para exibir

durante a festa. A mãe da criança a ser batizada, por sua vez, pinta com uruku (urucum) o

rosto do marido e do seu irmão, sendo este último a pessoa em potencial para nomear a

criança. Contudo, enquanto os homens preparam seus adornos, as mulheres limpam o terreiro

ao redor da casa grande, ou barracão, onde ocorrerão as danças, enquanto que os convidados

já presentes se espreguiçam nas redes.

No barracão onde são atadas as redes, durante a noite, é servida a bebida, quando

primeiro circulam as cuias pequenas e, sucessivamente, vão sendo servidas cuias maiores até

164 Árvore têxtil, onde se retira a entrecasca para enrolar cigarros usados pelos pajés ou lideranças Ka’apor em rituais diversos. Conferir: RIBEIRO, 1980:51.

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que se sintam satisfeitos. Na condição de embriaguês, começam a cantar, a dançar e, mesmo,

a cambalear a caminho do mato para fazerem as suas necessidades fisiológicas, ou utilizando

esse espaço para a prática de relações sexuais (RIBEIRO, 1996:137). Situações que

continuam sendo atualizadas conforme relatos sobre a festa realizada em outubro de 2007 nos

grupos locais Xié pihu renda e Paraku’y renda.

Jumusarai ha arahã , no dia da festa

Ainda de madrugada, todas as famílias do núcleo e as que vieram para a festa se

deslocam para o barracão onde se realiza o ritual. A parte interna das casas onde estão atadas

as redes é ocupada pelos homens, enquanto as mulheres ocupam os tupe (esteiras de fibra de

guarumã165), que estão na parte externa a casa. (HUXLEY, 1963:210) No entanto, esses

espaços continuam sendo demarcados como outrora, e os homens continuam ocupando

lugares privilegiados e de destaque durante o ritual.

Assim que a bebida fica pronta, a festa inicia, ainda de madrugada, antes do nascer do

sol. Os Ka’apor acreditam que a bebida é um espírito que se apodera das pessoas, tornando-as

fora de si, não conscientes de suas ações. Por outro lado, é capaz de limpar, purificar a alma.

Fato que justifica a existência da bebida nos rituais, pois somente quando sentem que estão

“purificados” é que iniciam o rito. A bebida, além de configurar-se num “purificador” ainda

promove o convívio social, possibilitando momentos de sociabilidade intensos quando as

pessoas, além de beberem, dançam imitando animais e aprendem cantorias juntos, chegando a

estabelecer relações de reciprocidade como a troca de arcos, flechas e cocares de penas.

Entoam canções em voz baixa em honra à bebida preparada. No decorrer da cantoria

vão apresentando a forma com que a bebida é preparada, seus ingredientes e a relação dos

efeitos nas pessoas que bebem. Por outro lado, as canções que oferecem a Mair são feitas em

tons mais altos, como a canção do Iapu, pássaro que tem uma estreita relação com Mair,

sendo que as penas amarelas de sua cauda são utilizadas para a confecção de cocares166

usados pelos homens durante o ritual (HUXLEY, 1963:125-126; 210).

165 São cipós onde a casca da haste é usada para trançar tipitis, peneiras, esteiras, e outros objetos de utilidade no trabalho doméstico Ka’apor. Sobre a importância e utilização desses recursos naturais em relação com a cultura agrícola deste povo, conferir: RIBEIRO, 1980:51. 166 O cocar de pena de Iapu possui um poder social e ritual para o grupo, podendo ser usado tanto no espaço público quanto em espaço privado. Porém, é exclusividade dos homens, sendo as mulheres proibidas até mesmo de ajustarem o cocar na cabeça do marido. A história de sua confecção pode ser encontrada nas histórias contadas pelos Ka’apor quando se referem a Turiwar e A’e. Sendo Turiwar uma espécie de herói mitológico que vem a este mundo, chegando aqui durante o dia trazendo um tesouro, um cocar de penas simbolizado pelo sol. Por outro lado, afirmam ser A’e , ora um animal mitológico similar a um macaco cuatá (de cabelos e olhos

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As mães, cujas crianças que estão aptas a receberem nomes, com a ajuda de outras

mulheres, saem a distribuir a bebida nas casas para adultos e crianças maiores. Nesse

momento, as famílias que vieram de longe já se encontram no barracão da festa. Durante a

madrugada, além da presença de bebidas, de cantos e de danças, ouvem-se inúmeras

narrativas de mitos que relembram histórias antigas dos Ka’apor.

Pela manhã, após o nascer de kwarahi (o sol), quando ele estiver alto (por volta de oito

horas), as pessoas escolhidas pelos pais começam a nomear as crianças, iniciando-se o rito de

nominação. A imãi anga167 ou hehyranga (podendo ser a irmã da mãe) vai a casa buscar a

criança e a entrega ao ipái anga ou heruranga168 (podendo ser o irmão da mãe ou tio

materno). Caso seja um menino, recebe do ipái anga um cocar que é colocado na cabeça da

criança (HUXLEY, 1963: 211).

A seguir, ipái anga passa pelas pessoas com a criança em seus braços, dançando e

tocando Wyrahu Kangwer (pequena flauta de tíbia de gavião real). Enquanto estão na

condição de receberem um nome, as crianças recebem um nome liminar169, aguardando no

ritual, o momento exato de receberem um nome definitivo; por isso, o menino é chamado de

herayr anga e, a menina de herandir anga. Na ocasião, ta’yn ru (o pai da criança) pergunta

ao ipái anga que nome escolheu para a criança. Nesse momento, ipái anga chora até que a

criança adormeça. A seguir, ergue-se a criança evocando o nome escolhido repetidamente e a

entrega ta’yn mãi (a mãe da criança). O ru (o pai), com o corpo todo pintado de urucum, e

com seus melhores adornos, com destaque para seu cocar de penas amarelas de japu, vem em

direção ao filho, tira seu cocar amarelo, diz o nome que a criança recebeu do ipái anga e faz

um gesto com as mãos rodeando o cocar sobre a cabeça da criança. Como o formato do cocar

lembra a presença do sol, de Maíra sobre os Ka’apor. A expectativa do povo é que nesse

momento ta’yn (a criança) receba elementos suficientes e capazes de moldar a identidade e a

personalidade da pessoa como mais um membro do povo (RIBEIRO, 1996: 596).

vermelhos, pênis e ossos azuis), ora similar a um Tenetehar. Podendo ter dupla personalidade, um ser fantástico; ou um ser liminar, podendo também ser ou não ser Mair. Se torna Mair quando é tuxaua e usa cocar e, não o é, quando assume o papel de guardião e habitante do mundo inferior feminino, podendo ser comparado ao sol da noite, o oposto de Mair. Contam que Turiwar queria matar um A’e por possuir ossos azuis com o objetivo de transformá-los em um grande colar para sua mulher. Conferir: HUXLEY, 1963: 254 – 263; 280 – 281. 167 Termo que se refere à pessoa do sexo feminino que acompanha o rito de nominação junto aos pais da criança. 168 Termo que se refere à pessoa do sexo masculino escolhida pelos pais para dar nome ao filho ou filha. 169 São nomes atribuídos aos candidatos em potencial a receberem um nome definitivo; por enquanto, estão em uma fase liminar, intermediária a receber um nome. Sobre a fase liminar em ritos de passagem, conferir: VAN GENNEP, Arnold. Os ritos de Passagem. Rio de Janeiro/Petrópolis: Vozes, 1978, p. 141 – 156. Sobre a condição liminar de pessoas ou liminaridade como forma e atributos em ritos de passagem, conferir: TURNER, Victor. O Processo Ritual. Estrutura e Anti-estrutura. Petrópolis: Vozes, 1974, p. 116 – 159.

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Porém, o ipái anga será a pessoa responsável por “projetar”, “idealizar” neste

momento o futuro do herayr anga, que passa a ser referendado no ritual de nominação quando

ta’yn passa a integrar a coletividade.

Segundo Huxley (1963), a criança é apresentada ao mundo como um potencial Mair,

quando essa intenção é feita publicamente (no ritual), é na perspectiva de que venha a se

tornar de fato. Após o nascimento, a criança permanece durante um período em fase de

crescimento espiritual, nesse momento encontra-se “adormecida”; período que pode durar seis

meses ou mais. E quando recebe um nome, “desperta” para a vida. Essa etapa de sua vida

pode representar o fim de uma etapa iniciada no nascimento, a couvade, quando o homem

encontra-se na condição de “morto” para uma fase, ou momento, em que na nominação ele

renasce. (p. 210- 211) Os ornamentos de penas possuem uma relevância cosmológica para os

Ka’apor, a começar pelo cocar com semi-círculo de penas amarelas, vermelhas e pretas;

perfazendo uma trajetória solar que transforma a pessoa numa espécie de sol. Assim como o

colar, o cocar de penas só pode ser usado por homens; sendo que os dois são adornos

tipicamente usados em rituais religiosos (p. 74).

Além do ipái (pai dele), a imãi (mãe dele) e outras mulheres também choram. A

seguir, os homens que moram no núcleo que está sediando o ritual ou moram às

proximidades, trocam flechas com os homens que vieram de núcleos distantes. No final deste

momento, o dono da festa, ta’yn ru (o pai da criança que recebeu o nome), desfaz o feixe de

flechas jogando-as no chão com intuito de que as pessoas peguem e levem a quantidade que

quiserem para os seus grupos locais. Além da troca de flechas, existem outros materiais que

são trocados ou dados neste momento, entre eles: cocares, adornos plumários, roupas,

terçados, facas, miçangas. O único alimento a ser degustado pela criança será um bolo de

carne de inambu pemba ou inambu pytã (inambu-galinha)170, que depois é servido às moças

na festa de iniciação (RIBEIRO, 1996: 137 -138; 287).

Jumusarai ha parahã, depois da festa

O ta’yn ru dá ao filho um colar de ossos de pássaros (tucano) para indicar que já

possui um nome. Quando começa a andar, troca esse colar por outro, feito com dentes

170 Ave da família Tinamídeos que ocupa a posição de Miasu ta (de servo; inferior; subordinada) em relação as demais aves da mesma família, como é o caso do inamutõ (o inhambuaçu ou nambu de grande porte). Sobre a classificação etiológica das aves no Brasil, conferir: JENSEN, Allen Arthur. Sistemas Indígenas de Classificação de Aves: Aspectos Comparativos, Ecológicos e Evolutivos. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ecologia da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1985.

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menores de oncinha maracajá para que seja um bom caçador de cutia. Já a menina, após a

nominação, ganha um colar de penas de tucano vermelho equivalente ao recebido pelo

menino, assim como, uma tanga na perspectiva de se tornar uma artesã em potencial

(RIBEIRO, 1996:218).

O ritual de nominação Ka’apor tem cumprido a função de projetar os caminhos

possíveis das pessoas que passam a constituir uma identidade coletiva nesta sociedade.

O ru (o pai) e a ta’yn mãi (a mãe da criança) possuem a tarefa de escolher essas

pessoas, que além de nominar os filhos, deverão pensar, projetar e acompanhar o

desenvolvimento desse projeto de vida associado ao nome que é tornado público no ritual,

com a participação das pessoas do grupo local. Entre as pessoas escolhidas está o ipái anga e

a imãi anga. O ritual proporciona a formação de sujeitos singulares, ou ainda, de pessoas que

correspondem ao ideário coletivo.

De acordo com Da Matta (2000)171, quando se refere às tendências nos estudos de

rituais, sobretudo, quando trata da liminaridade nos ritos de passagem em diferentes

sociedades, o autor afirma que é possível perceber a existência de mudanças nesses ritos,

passando, assim, a revelar uma mudança do plano individual para o coletivo.

Percebe-se claramente a construção coletiva de um horizonte comum que insere o

nominado em um projeto de sociedade, conforme pude constatar na fala de Iapuhu Ka’apor:

Entre nós Ka’apor o que vocês chamam de batismo quando criança é pequena, pra gente quem pensa e dá nome da criança é o ipái anga. Ele passa a noite toda numa casa que a gente constrói pra ele ficar com a criança que de manhã vai receber o nome. Ele fica olhando para a criança e pensando muito que nome ele vai dá pra ela. Ele pensa na vida, no futuro daquela criança. Depois ele pensa em animais, coisa da mata, bicho, pássaro que a criança pode ser. Se o ipái anga pensar que a criança deve ser inteligente, alegre, rápido, ele pensa num bicho, numa coisa do mato que a gente acha parecido com isso, que tem isso. Na hora da festa quando a gente dá nome pra criança toda as pessoas que tão ali no momento deve saber do que o ipái anga pensou pra criança pra ajudar aquela criança ser o que o ipái anga pensou pra ela.(Narrativa feita no grupo local Capitão Mira em outubro de 2008).

Esses projetos pessoais que se tornam coletivos a partir do ritual de nominação são

reveladores da existência de uma inter-relação entre diferentes aspectos ou fenômenos da

cultura Ka’apor. Logo, existem diferentes fenômenos que caracterizam cada aspecto da

cultura do grupo social, sendo necessário que a cultura nativa seja compreendida na totalidade

desses diferentes aspectos (MALINOWSKI, 1978: 28-29).

Contudo, compreender que os ta’yn u’ar são candidatos em potencial a receber nomes

171 Cf. Da MATTA, Roberto. Individualidade e Liminaridade: considerações sobre os ritos de passagem e a modernidade. Mana, 6(1), 2000, p. 7 – 29.

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nesta sociedade, é considerar as estruturas sociais estabelecidas ou classes de idade (natureza),

como aspectos natos de produção social de pessoas (cultura).

Por outro lado, além desses aspectos se constituírem elementos de incidência da

sociedade sobre as pessoas, foi possível identificar que o corpo, ocupa um lugar privilegiado

na cosmologia Ka’apor - assim como, em outras sociedades indígenas - sobretudo, no que diz

respeito à visão da natureza do ser humano (VIVEIROS DE CASTRO, 1987a).

Ipy’a pe ukwa katu te’e ixo172

, ele sabe por si mesmo

Tanto a noção de corpo quanto a idéia de substância, começam a ser utilizadas no

estudo das sociedades indígenas a partir do trabalho de Seeger et al. (1987)173. Trata-se de

temas muito presentes nas práticas e nas cosmologias das sociedades ameríndias. Nota-se, que

esses estudos vão se fundamentar em obras clássicas da antropologia, quando a noção de

corpo vai estar vinculada à cosmologia e às significações sociais. Por isso, o corpo é

considerado uma “matriz de símbolos e um objeto de pensamento” (p. 43).

Neste sentido, Seeger (1980), reconhece na percepção Suyá de corpo, a idéia de que

“no corpo existe a conjunção dos atributos biológicos, psicológicos e sociais” (p. 55).

Porém, os estudos de Seeger é uma chamada ao estudo clássico sobre o corpo a partir

de Mauss (1950), que têm nas técnicas corporais174, o referencial de reconhecer o corpo como

expressão de sentidos e ação concreta.

Contudo, entre outros trabalhos clássicos da antropologia acerca do corpo, vale

destacar os trabalhos de “Victor Turner (1967; 1974) sobre o pólo corpóreo-sensorial de toda

metáfora ritual; Mary Douglas (1970; 1976) sobre a experiência corporal lança mão dos

processos sociais para se tornar pensável; e C. Lévi-Strauss (1962; 1966; 1967) sobre as

qualidades sensíveis, e a experiência do corpo, como operadores de um discurso social,

quando se tem uma 'sócio-lógica' indígena apoiada em uma 'físio-lógica'.

O tema ganha força no Brasil a partir dos estudos do perspectivismo ameríndio que

172 Expressão usada pelos Ka’apor para se referirem aos conhecimentos advindos da interioridade do ser humano, ou ainda, refere-se aos saberes que possuem um vínculo estreito com o corpo e com os sentidos, bem como com as emoções da pessoa que está em atividade permanente no saber-fazer (CERTEAU, 1994) Ka’apor. Além dessa expressão usam também a seguinte: Jeje te’e ixokwa katu. 173 Cf. SEEGER, Anthony. “O Significado dos Ornamentos Corporais”. In: Os Índios e Fós: Estudos sobre Sociedades Tribais Brasileiras. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1980, p. 43-60. 174 Cf. MAUSS, Marcel. “As técnicas corporais”. In Sociologia e Antropologia. São Paulo: EPU/EDUSP, v. 2, 1974, p. 209 – 234.

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reconhece a humanidade em diversos seres. E Viveiros de Castro (1996; 2002) ao se tornar

um dos pioneiros deste estudo, vê o corpo nas sociedades ameríndias como um “conjunto de

afecções ou modos de ser que constituem um habitus” (p.128a; p.380), podendo essas

atribuições ser determinadas culturalmente a partir da forma como os grupos sociais

concebem a pessoa, pois “o ponto de vista está no corpo” (p.128b; p.380). Reconhecendo-o

como corpo-sujeito (VIVEIROS DE CASTRO, 1996:126; 2002:373).

A partir dos estudos sobre a hermenêutica simbólica, presente na corporalidade Suyá

em relação com o significado dos ornamentos corporais entre os grupos indígenas Jê no Brasil

Central, Seeger (1980) mostra que “culturas diferentes enfatizam e definem os significados de

órgãos e faculdades de forma diferentes... [Que] em qualquer sociedade, certas faculdades

estão simbolicamente enfatizadas e relacionadas com outras faculdades (p.57)”.

Na tentativa de compreender a visão e outros sentidos em relação ao corpo, encontrei

nas fontes da antropologia dos sentidos uma reflexão possível sobre a natureza dessa relação

feita a partir dos estudos realizados por Plessner (1977)175, que compreende o organismo

“como um corpo entre os corpos [e], que [sua] multidimensionalidade [possibilita o acesso à]

multiplicidade total de sentidos” (p.7). Haja vista, os sentidos serem fonte de informações

para a pessoa, fazendo com que possa refletir sobre si e seus membros, transformando-se em

base de conhecimento. (MAUSS: 1982)

Por isso, entendo que o conhecimento possui uma estreita relação com o corpo,

ressaltando que o corpo também possui vínculos com outras faculdades do organismo

humano. Eles se coadunam, coexistem intrinsecamente, pois o sofrimento, distúrbio de um

interfere ou pode trazer sérias conseqüências para o outro (McCALLUM, 1998: 215).

Os estudos orientados pelo perspectivismo ameríndio na região amazônica que têm

primado pela compreensão da relação entre o corpo, sentidos e conhecimentos ganhou

dimensões relevantes nos estudos antropológicos, sobretudo, quando possibilitou pensar as

alteridades associada ao corpo. Logo, os estudos que relacionaram corpo e cosmologia,

mostraram que é possível pensar o corpo enquanto fonte de saberes.

Entre as etnografias em destaque está o ensaio escrito por Calávia Sáez (2003) acerca

da etnografia da ciência do saber Yaminawa que afirma ser possível saber através dos

sentidos, sobretudo, do corpo, pois é possível conhecer e saber com o corpo.

175 Cf. PLESSNER, H. “Antropologia dos Sentidos”. In GADAMER, H. e VOGLER, P. (org.). Fova Antropologia: o homem em sua existência biológica, social e cultural. Vol. 7. Antropologia Filosófica – 2ª Parte. São Paulo, EPU, Editora Universidade de São Paulo, 1977.

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Da mesma forma Kensinger (1995)176 constatou entre os Kaxinawa, quando

identificou que no corpo está a fonte de diversos saberes, que são passíveis de conhecer com o

corpo.

Por outro lado, para os Yanesha177, o conhecimento pode ser encontrado em modos

não corpóreos de sensorialidade, que chamaram de yecamquëñ (sinal de vitalidade);

apontando o coração, as mãos, o fígado como possibilidades do saber se expressar. Logo,

diferentes partes do corpo acumulam conhecimentos e habilidades específicas no decorrer da

vida e, essa condição epistemológica de dinamismo está intimamente ligada à alma do corpo.

Para os Suyá, a boca e a orelha são consideradas para os homens como órgãos de

destaque nessa sociedade, uma vez que é através da perfuração da boca, do lobo da orelha e

da inserção de discos pintados que o corpo torna-se socializado (SEEGER, 1980).

Merleau-Ponty (1980)178 afirma em seu exercício fenomenológico acerca do corpo em

relação com os saberes, que se o corpo fundamenta a percepção que podemos ter do mundo, é

possível perceber uma intrínseca relação entre o mundo e o corpo, assim como, podemos

evocar nossos poderes através do corpo. Portanto,

[T]odo hábito é ao mesmo tempo motor e perceptivo, porque, como dissemos, reside, entre a percepção explícita e o movimento efetivo, esta função fundamental que delimita ao mesmo tempo nosso campo de visão e nosso campo de ação.....“Reciprocamente, todo hábito perceptivo é ainda um hábito motor, e ainda aqui a apreensão de uma significação se faz pelo corpo” (MERLEAU-PONTY, 1999: 210 - 211)179.

176 Sobre o corpo e saberes na sociedade Kaxinawa, conferir: KENSINGER, Kenneth M. 1995. How real people ought to live. The Cashinahua of Eastern Peru. Waveland Press, 1995, p. 239; McCALLUM, Cecília. Morte e Pessoa entre os Kaxinawa. Mana. Vol. 02, 1996, p. 49-84. 177 Para os Yanesha, povo indígena do leste do Peru, embora reconhecendo a importância dos sentidos físicos à vida humana, acreditam que são poucos capazes de aprender. E, que embora reconhecendo que o conhecimento reside no corpo, acreditam que o conhecimento relacionado à memória habita o coração. Conferir: SANTOS-GRANERO, Fernando. Vitalidades Sensuais. Modos não corpóreos de sentir e conhecer na Amazônia Indígena. Revista de Antropologia. Vol. 49, n. 01, 2006, p. 93-131. 178 Cf. MERLEAU-PONTY, 1980: 203. 179 Cf. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 210 – 211.

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Thomas CSordas (1994 a; 2008)180, apresenta uma leitura de corpo que dialoga com a

visão apresentada pelos Ka’apor, quando o reconhece como sujeito capaz de; que além de

biológico, é cultural, religioso, lingüístico, histórico, cognitivo, emocional, entre outras

dimensões; que nutre o sujeito de corporeidade (embodiment).

O autor nutriu minha compreensão acerca do sujeito inerente ao corpo Ka’apor. E

pude, a partir desse momento, encontrar razões suficientes que confirmam ou justificam as

expressões utilizadas pelo grupo que demonstram uma relação de coexistência entre corpo,

sentidos e saberes ou que os saberes advêm do corpo; podendo ter sua origem no hete (corpo

dele) ou no ihẽ hete (meu corpo), como constatei nas narrativas.

Pressupostos que podem ser encontrados nas expressões levantadas ou compiladas por

Kakumasu (1988); ratificadas por mim nas inúmeras narrativas presentes nos diálogos com os

Ka’apor acerca do processo pedagógico inerente ao saber-fazer. Entre as expressões que

identifiquei, destaco a Ipy’a pe ukwa katu te’e ixo, que quer dizer, ele sabe por si mesmo;

expressão que possui uma riqueza epistemológica construída a partir de uma associação entre

corpo, sentidos e saber, significando que a pessoa conhece muito bem através de seu fígado

ou do que está sentindo no fígado.

Assim como os Kaxinawa, os Ka’apor entendem que o conhecimento não pode ser

visto e compreendido fora ou exteriormente ao corpo, mas que é parte inerente ao corpo. O

fígado aqui expressa um dos órgãos que dispõe tanto de um processo específico de aquisição

de conhecimento quanto de funções para sua aplicabilidade. Articulado de forma

interdependente em relação aos demais órgãos, o fígado integra com seus conhecimentos e

habilidades parte do corpo. (McCALLUM, 1998: 225).

Contudo, reconhecendo o sentido dos termos usados para expressar o significado do

saber Ka’apor, constatei que Ipy’a, quer dizer, seu fígado ou o fígado dele. Sendo que o a

pode vir como prefixo ou sufixo, mas estará sempre associado ao pronome na primeira pessoa

do singular181. Porquanto, esse termo está intimamente ligado às emoções, ou representa o

lugar das emoções182.

Portanto, pode estar associado ao “espírito da coisa”, de algo que vem de dentro, das

180 As obras citadas além de trazerem reflexões que embasaram uma nova leitura do corpo/sujeito, também orientaram minha condução na compreensão do saber-fazer Ka’apor, reconhecendo-o como extensão da corporeidade do ser. Para isso consultou-se CSORDAS, Thomas J. Embodiment and Experience: the existential ground of culture and self. Cambridge: Cambridge University Press, 1994 a, p. 1 – 24; CSORDAS, Thomas J. Corpo/Significado/Cura. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008. 181 Sobre uma possível tradução dos termos Ka’apor conferir: KAKUMASU (1988) e KAKUMASU, James Y. Gramática Gerativa Preliminar da Língua Urubu. Série Lingüística. Brasília, 1976. 182 Sobre o sentido, conferir: KAKUMASU (1988).

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entranhas, conforme relata Wyrapytáng Ka’apor ao apresentar sua versão183 sobre a origem de

seu povo ao falar de Maír184 ou Maíra, como grande herói-sábio capaz de se personificar em

diferentes seres naturais da cultura Ka’apor por ocasião de sua estadia na terra:

Mair ixo rahã yman te je. Arahã jane ramõj ta inamõj ta inamõ uhem je. (Diz-que há muito tempo quando Mair existia). Ko jane ramõj Mair namõ uhem. (Nesse tempo nossos avós saíram com ele, então nossos avós saíram com Mair). Mair wyrapitáng ngi uhem je. Aja jane ramõj panuha jane pe. (Diz-que Mair saiu do pau-brasil. Assim, nossos avós nos contavam). Mair ko jane ramõj, ko janu ramõj. Ko sarakur ramõj, ko amerekan ramõj. Tumeme uhem Mair namõ ngã. (Mair, nosso avô, o avô da aranha, o avô da saracura, o avô do americano. Eles quatro saíram com Mair). Jane ke jakwa katu ‘ym ma’e ke. (Nós não sabemos muito bem sobre as coisas). Myrahu ngi i’ãj yman uhem ramo rahã, pe Mair panu ihemũ ta: ‘Pehe hoĩ pejur ma’e, awa-po-upa ukwer rahã. (Há muito tempo quando Mair havia acabado de sair da grande árvore, então falou para meus irmãos: - ‘Vocês amanhã virão, depois de dez dias’). Ihẽ apukwaj ta peker ‘ym te hũ ki, aja ihe kõ apanu pehẽ pẽ, aja ko ihẽ apanu pehẽ pe, ẽrehe pehe peker ‘ym hũ te ta. (Eu vou chamar, vocês não durmam, então eu vou chamar vocês, então eu vou chamar vocês, por isso vocês não vão dormir de modo algum). Ko ihẽ aho ta rĩ. (Eu já vou embora (mas eu ainda vou voltar)). Apo pehẽ ihẽ ke pehẽ peharõ ta. Ku’e koty ihẽ apukwaj ta, ku’ẽ koty ihẽ apukwaj ta. (Agora vocês vão me esperar. De madrugadinha eu vou chamar, de madrugadinha eu vou chamar). Myra pirok keruhu pukwaj ta pẽhe pe. Aja ta ihe apanu: apukwãj pehẽ pe, ihe py’a ang pe. (A grande árvore descascada vai chamar por você. Assim eu digo: eu vou chamar por vocês, no meu espírito). Pehẽ peharõ pẽi rahã pehẽ pepukwaj ta: - O ko jane jama’ã jaju. – O ko jane jama’ã jaju. (Vocês esperem (sentados) quando forem gritar: - Ei, nós estamos (deitados) vigiando aqui! – Ei, nós estamos (deitados) vigiando aqui!). Aja pehẽ pepanu ihẽ pe ta’y. (Assim vocês vão falar para mim). Myra te’e ta sakaha, pehẽ pe apanu ihẽ ke ‘ym myra. (Semelhante a uma árvore, eu falo para vocês: a árvore não sou eu). Ihẽ py’a ang hĩ ta myra rehe. Aja ko pẽhe pe ihẽ apanu. (O meu espírito vai estar dentro da árvore. Assim eu falo para vocês). Pehenu katu ihẽ je’ẽhar rehe. Pehenu ihẽ rehe. (Escutem minha palavra. Prestem atenção em mim). Jane aja jane ramõj ta panuha. (Assim nossos avós nos contaram).

Esse “espírito”, força interior em que está subjacente o saber Ka’apor, além de ter sua

origem vinculada à sensações sinestésicas185, ao fisiológico, traz consigo uma hermenêutica

dos sentidos capaz de significar todas as ações que orientam o fazer cotidiano do grupo;

princípio-fonte orientador da expressão sábia: Ipy’a pe ukwa katu te’e ixo.

O termo Ipyakwar katu186, que quer dizer, o ouvido interno dele, mesmo sendo

183 A versão apresentada por Wyrapytáng constitui-se parte do relato apresentado à lingüistas da Universidade do Estado do Pará, por ocasião de uma pesquisa sobre a língua Ka’apor visando a elaboração de um livro paradidático. A pesquisa contou com a colaboração do Laboratório de Línguas Indígenas da Universidade de Brasília. Conferir: CABRAL, Ana Suelly Arruda Câmara (Org.) Mair Ixo rahã yman ke je – Diz-que, há muito tempo, quando Mair existia. Belém: Universidade do Estado do Pará, 2004, p. 9 -16. 184 Por ocasião das relações interétnicas no decorrer de seus deslocamentos até o território originário, além de Mair, têm-se informações que os Ka’apor adotaram outro herói cultural na qual chamam de Anawira que, assim como Mair saiu também de uma árvore que produzia mandioca. Conferir: HUXLEY, Francis. Selvagens Amáveis. Um antropologista entre os índios Urubus do Brasil. São Paulo: Brasiliana/Editora Nacional, 1963, p. 193. 185 Sensações resultantes de um conjunto ou cruzamento de sentidos; oriundo da multiplicidade de relações entre diferentes sentidos do ser humano. Conferir: PLESSNER, 1977: 06-07. 186 Cf. KAKUMASU (1988).

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resultante da formação dos vocábulos Ipy’a (o fígado dele), akwar (orifício, “buraco”) e katu

(quando algo é ou está bom), é entendido como uma expressão que indica o fato de uma

pessoa estar em condição de aprender, de ser capaz de aprender.

Por outro lado, o termo ukwa, segundo as narrativas Ka’apor, está mais próximo da

expressão ele sabe, como se estivesse tomando conhecimento naquele momento, naquele

instante. Conforme a análise gramatical realizada por Kakumasu (1988) acerca deste aspecto,

o prefixo pronominal – u deve estar vinculado ao objeto na oração, e não ao sujeito; logo,

aqui se trata do saber. Expressando uma ação realizada no presente.

Já a expressão te’e é utilizada sempre em uma frase para expressar que algo é livre, é

espontâneo.

E a expressão ixo, que para Kakumasu (1988), constitui-se em uma junção do i-

(pronome possessivo) mais o termo – xo, como que um aspecto auxiliar concordando com um

verbo que expresse movimento. Logo, confirma o sentido que encontrei nas narrativas em que

utilizam o termo que expressa um aspecto de continuidade, movimento permanente.

Como o termo Ipy’a, quer dizer, o fígado dele, e Ipyakwar Katu, o ouvido interno

dele, todas as vezes que se referem às emoções ligadas ao saber e fazer associam ao fígado,

ou outras partes internas do corpo.

As emoções passam a representar um fator preponderante na ação e no pensar das

pessoas, haja vista, o pensamento estar diferentemente associado ao seu corpo (VIVEIROS

DE CASTRO, 2002:391).

Por outro lado, encontrei inúmeros termos utilizados para expressar sentimentos,

emoções, que demonstram possuírem uma origem comum na epistemologia Ka’apor, entre os

identificados estão: ipy’a pe ukwa ukwa uĩ (ele está pensando); ipy’a pe har pandu (ele fala

de coração); ipy’a mondo ehe (ele está com saudades); ipy’a ke te’e huwy ehe (ele está muito

aborrecido, zangado); ipy’a katu (ele ama ou gosta de alguém); ipy’a imembek te’e (ele tem

medo ou está com medo).

Tais expressões relacionadas aos sentimentos remetem a Geertz (2007) quando se

refere a uma das noções que as pessoas têm sobre o que é ser uma pessoa: “[ ] acham que

elementos essenciais de sua psique, tais como o ódio, estão localizados em córpolus negros e

granulares dentro de seus fígados, só descobertos através das autópsias” (p. 90).

Contudo, em cada uma dessas expressões está imbuído uma forma de expressar a

pessoa, como acontece especificamente na expressão ipy’a pe ukwa ukwa uĩ. Expressão que

carrega o exercício pleno de constituição da pessoa, pois o pensar sobre si constitui-se uma

forma de se pensar enquanto pessoa. Haja vista, a pessoa ser também uma idéia, uma

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categoria ideológica (BRANDÃO, 1986).

Esse conjunto de possibilidades de pensar o saber a partir do ipy’a Ka’apor, ancorados

na fenomenologia da percepção em Merleau-Ponty (1999)187 me fez pensar nas formas de

significação do corpo ou o que ele pode representar para cada pessoa nessa sociedade. Neste

sentido, afirma: “Nós reaprendemos a sentir o corpo, reencontramos, sob o saber objetivo e

distante do corpo, este outro saber que temos dele porque ele está sempre conosco e porque

nós somos corpo (p. 278).”

Contudo, o reconhecimento do saber pelo corpo ameríndio possibilitou-me perceber

com que visualizasse a noção, a natureza da pessoa fundamentado na cosmologia Ka’apor.

Que de fato é possível entender essa pessoa a partir de sua corporeidade.

Por fim, considerando a relação conhecimento-corpo, fundamentada nas idéias de que

“o corpo precisa aprender para poder agir socialmente”, e que a ação social ao tomar a força

física pode ser descrita com ‘a exteriorização de conhecimento’ (McCALLUM, 1998: 227),

ao fato que há uma tríade, consubstanciada na interconexão entre saberes, práticas e

conhecimentos presentes em processos biológicos e culturais de povos indígenas amazônicos

(MERCANTE, 2006) e – podendo assumir seu caráter prático e pedagógico a partir de rede de

relações socializadoras – é que apresento, a seguir, a forma substancial da pessoa presente no

cotidiano orientado pelo saber - fazer Ka’apor.

187 MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 278.

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IVIVIVIV

A’e jumu’e Ka’apor wã tekoha peA’e jumu’e Ka’apor wã tekoha peA’e jumu’e Ka’apor wã tekoha peA’e jumu’e Ka’apor wã tekoha pe

ele aprende a ser ele aprende a ser ele aprende a ser ele aprende a ser Ka’aporKa’aporKa’aporKa’apor na na na na ““““aldeiaaldeiaaldeiaaldeia””””

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Ihe re te ipo ke mu’e mujã há rehe, o corpo ensina a fazer

Às cinco horas da manhã do dia 23 de dezembro de 2005 acordei no posto de saúde do grupo local Piquizeiro (local destinado pelo cacique para que eu dormisse) na escuta das conversas que aconteciam na casa do forno (casa onde acontece o preparo da farinha de mandioca) que está localizada a dez metros deste posto de saúde. Lembro que além de mim, dormiam naquele local, o auxiliar de enfermagem e um dos jovens Ka’apor que resolveu repousar aquela noite. Como as atividades eram intensas na casa do forno, o jovem Ka’apor resolveu levantar e me convidar para ir até o local em que faziam a farinha. Embora o frio fosse intenso, tive que enfrentá-lo. Ao chegar ao local, diversas pessoas (crianças, mulheres, jovens, adultos e alguns idosos) desenvolviam diferentes tarefas: homens jovens e adultos chegavam com a massa de mandioca em cestos trazidos por animais e a colocavam em tanques reservados para a mesma; homens e mulheres adultos e jovens retiravam a casca que a seguir era levada por homens jovens para uma máquina que a trituraria. Após ter sido triturada, enchiam sacas de massas que seriam levadas à prensa de ferro, enquanto outros homens e mulheres jovens e adultos enchiam os tipitis de massa, que também eram levados ao espremedor de madeira; homens jovens e adultos se revezavam na retirada da massa da prensa e do tipiti e, posteriormente, a depositavam em reservatórios onde um grupo de mulheres jovens e adultas se revezava na peneira a coar a massa enxuta. A seguir, mulheres jovens e adultas enchiam cuias de massa coada e jogavam sobre as chapas quentes (duas) onde homens jovens e adultos manuseavam (mexiam), por um período prolongado, pequenas varas ou rodos de madeira sobre a massa depositada na chapa até que secasse, se transformando em pequenos grãos torrados. Por um longo período na chapa, mulheres e homens adultos provavam a massa torrada para ver se ela se encontrava no ponto de ser retirada por homens jovens e adultos, que a depositavam em grandes sacas de sessenta ou cinqüenta litros. Paralelo às atividades de beneficiamento da massa de mandioca na casa do forno crianças e adolescentes retiravam do entorno da “aldeia” pequenos gravetos ou pequenos troncos de árvores já derrubados, a partir daí deslocavam o material coletado com a ajuda de animais até a casa do forno para abastecer os dois fornos que eram controlados por homens jovens e adultos. Nesse momento, os idosos, além de circularem entre as atividades, conversavam com diferentes pessoas e, juntamente com as mulheres adultas, monitoravam o preparo da comida em um pequeno fogo à lenha na área externa da casa do forno. (Diário de campo, 24 de dezembro de 2005)

A pessoa na sociedade Ka’apor traz consigo, desde a origem, a marca, o legado de ter o corpo não somente como elemento constituinte do ser nesta sociedade, conforme expresso no Ipy’a pe ukwa katu te’e ixo. Mas, o ser é quando mujã ou ma’e ma’e (ele faz); quando a ação é significada no fazer cotidiano. Nesse sentido temos o ihe re te ipo ke mu’e mujã há rehe, [indicando que] o corpo ensina a fazer.

As diferentes sociedades humanas têm no acúmulo de experiência de vida, formas

diversas de conceber o ser em relação a outras formas de vida. E essa diferença torna a

constituição da noção de pessoa um fenômeno universal (GEERTZ, 1997: 90).

Porquanto, ao se relacionar este fato às sociedades indígenas, as experiências vão se

diferenciar de grupo para grupo. Percebe-se, desta maneira, que o fazer no cotidiano identifica

as especificidades culturais e as peculiaridades de cada grupo indígena. Pois, existem

diferentes formas de conceber a pessoa a partir de suas diferentes experiências cotidianas.

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A princípio, identifiquei o quanto as histórias ou os mitos narrados pelos Ka’apor de

ontem e de hoje, possuem uma especificidade em expressar o saber pelo corpo, quando é

inerente ao ser um fazer pedagógico, conforme fragmento de uma das versões mais

completas, coletadas por RIBEIRO (1996) sobre Maíra, expressada na cosmologia de

Koaxipuru:

Maíra é bom. Quando andava por aqui, os índios podiam vê-lo, ele caçava para os Ka’apor, matava veado matava anta para eles comerem. Matava Iapu também, para a gente tirar as penas e fazer cocares. Naquele tempo, só tinha os Ka’apor e os Karaiwas, depois que Maíra fez os outros. Aos Guajá, ele fez depois, não ensinou nada, por isso estão no mato e só comem coco. Maíra ensinou os Karaiwas como fazer casa, fazer espingarda, fazer terçado, fazer pano, por isso eles sabem tudo. Maíra não ensinou os Ka’apor a fazer pano, mas mandou amarrar o membro. Maíra andava por aí, nessas matas. Ele tinha tudo e não precisava trabalhar. Fazia um arco e o arco ia caçar sozinho pra ele. Era só mandar, aquele arco saía por aqueles matos, matava um veado ou uma anta, pulava e ficava encostado numa árvore, aí gritava. Maíra vinha buscar carne. Ele falava em pote e aparecia um pote que ia buscar água sozinho. A roça dele, também, eram machados que faziam, saíam pro mato um dia, com sol pequeno, e ficavam lá gritando e trabalhando como se fosse muita gente. Quando acabavam o serviço voltavam, com sol pequeno, vinham pulando e entravam em casa. Depois, ia o fogo queimar roçado. Tudo trabalhava pra ele (p.352).

O trecho transcrito revela mais uma vez a capacidade que esses sujeitos herdeiros de

Mair possuem, no sentido de atualizar a natureza dos saberes consubstanciada em fazeres no

cotidiano. Sendo que os fazeres resultantes das diferentes experiências de sociabilidade nos

grupos locais constituem-se em elementos formadores da pessoa nessa sociedade.

Segundo Vaz (1992)188, a concepção scheleriana de pessoa, fundamentado em uma

fenomenologia do ato, define a pessoa como uma unidade de ser concreto e essencial de atos

de essência mais diversa, sendo possível pensar o ser como fundador de todos os atos

essencialmente diversos.

Por outro lado, Kant (1980)189, em sua obra Fundamentação da Metafísica dos

Costumes, reconhece a pessoa como fim em si mesmo, e não como meio para uso arbitrário,

pois em todas as suas ações direcionadas a ela mesma e a outrem, é considerada como fim.

Logo, a pessoa é o fundamento de toda lei, sobretudo, das leis práticas, ou mais ainda, o

“princípio subjetivo das ações humanas” (135).

Portanto, é intrínseco ao saber do corpo um fazer resultante da experiência desse corpo no mundo, quando vai percebendo e acumulando experiências. De acordo com Vaz (1992) a pessoa constitui-se a partir da

188 Cf. VAZ, Henrique Claudio de Lima. “A categoria da Pessoa” In Antropologia Filosófica II. São Paulo: Loyola, 1992. 189 Cf. KANT, Emmanuel. “Fundamentação da Metafísica dos Costumes.” In Kant (II) Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

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“síntese entre.... o ser que é (essência) e o ser que se torna (existência) ele mesmo pela realização ativa... Pois, é como pessoa que o homem exprime a inteligibilidade radical do seu ser, na passagem do dado à forma pela mediação do sujeito...[é] a forma com a qual o sujeito ou o Eu se exprime ou se diz a si mesmo (p. 190 – 192)”.

Vaz (1992) afirma que o corpo em consonância com o fazer pode ser compreendido como “a expressão da pessoa”, ou ainda:

É a primeira palavra ou o primeiro gesto com as quais o homem significa para si a objetividade do mundo como mundo humano: o mundo do seu habitar e do seu fazer, aberto como horizonte próximo e imediato do seu viver. A relação pessoa-mundo, que é a forma mais plenamente humana da relação de objetividade, irá, pois, determinar o primeiro conteúdo da ‘experiência da pessoa (p.209).

Sendo assim, a pessoa constitui-se a partir de uma relação conhecimento-corpo

fundamentada em um saber-fazer (CERTEAU: 1994) que lhe é próprio, à medida que o

apreende [o saber-fazer] por intermédio das interações sócio-culturais do grupo. Questões

desta ordem orientam uma possível interconexão entre corporeidade, saberes, práticas e

conhecimentos presentes nos diferentes processos sócio-biológicos, para o caso que nos

interessa, de construção da pessoa Ka’apor. Tais pressupostos orientaram minha experiência

etnográfica sobre o sentido das práticas cotidianas e rituais que atualizam o sentido da vida do

grupo.

Há que se considerar que, diferentes aspectos do ser Ka’apor, reveladores de um

saber-fazer no cotidiano do grupo, tem sido atualizado nas relações contemporâneas e

encontram-se relacionados à herança cultural repassada ao grupo, conforme constatei na

etnografia de Ribeiro (1996): “Saberes copiosíssimos, como dos índios sobre a natureza e

sobre o humano, ativados por uma curiosidade acesa de gente que se acha capaz de

compreender e explicar tudo. São saberes mais modestos, fruto de uma (...) tradição oral, (...)

ou de heranças culturais...(p. 545)”.

A partir dessas perspectivas foi que entendi ser possível neste capítulo apresentar a

lógica que orienta o tempo e a dinâmica do fazer Ka’apor, entendendo-a como expressão de

um saber-fazer fundamentado na cosmologia do grupo. A princípio, privilegiei para análise,

as diferentes relações de sociabilidade: tanto as relações presentes no cotidiano dos grupos

locais quanto nos rituais mais expressivos, ou ainda realizados, como a Festa do Kawĩ, a Festa

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do Tajahu (porco grande do mato)190, rituais funerários e outros. Eventos que me levaram a

perceber que as ações e as relações de pessoas e de coletivos possuem uma dinâmica própria.

Porém, esses eventos cerimoniais apresentam aspectos que os caracterizam como momentos

pautados no tempo e determinados pelas circunstâncias peculiares a cultura do grupo.

Jumu’e pete’e ixo191, ele está sempre aprendendo

As sociedades indígenas possuem e sempre possuíram suas próprias pedagogias. Cada

povo constrói historicamente formas de educar e de socializar suas crianças e jovens,

vinculadas às tradições que garantem a sua continuidade enquanto povos diferenciados.

Segundo Fernandes (1976), as condições de transmissão da cultura nas sociedades

indígenas ocorrem de forma variável levando em conta o sexo e a idade de seus integrantes. O

autor afirma que os processos pelos quais ocorre essa transmissão, além de estarem

fundamentados nas tradições, possuem um caráter adaptativo e dinâmico, exercendo a função

de orientar as ações e decisões humanas.

Para Melià (1979), esses processos específicos em que os saberes são

repassados culturalmente nos grupos locais, que é chamado de “educação indígena”, se

aproximam mais da noção de educação enquanto processo total, uma vez que se aprende no

dia-a-dia, no trabalho. Os educadores e educadoras nos grupos locais têm rosto e voz; têm

dias e momentos; possuem materiais e instrumentos; detêm recursos definidos para educar a

quem vai se tornar uma pessoa da comunidade. Por isso, a educação indígena é de interesse de

toda a comunidade.

Portanto, nessas sociedades a educação torna-se um elemento intimamente relacionado

à vida. Aprende-se a viver no cotidiano; adquirirem-se os conhecimentos necessários para a

vida, com o pai e a mãe e com a comunidade; aprende-se pelo exemplo e pela

experimentação. A tradição cultural dos antepassados é valor fundamental e base do fazer

pedagógico, sendo assim, preserva-se a tradição da oralidade e valoriza-se o trabalho como

190 Segundo Marilza Ka’apor, do núcleo Xié pihu renda, e Geraldo Ka’apor, do núcleo Paraku’y renda, a festa acontecia durante o mês de novembro, quando reunia parentes de vários grupos locais para comer coletivamente o porco grande do mato. (Conversa realizada em outubro de 2008, no núcleo Xié pihu renda). 191 Segundo Petrônio Ka’apor, o termo expressa a idéia de que a pessoa está aprendendo sempre, todo dia, a todo momento; como se estivesse vendo a pessoa fazendo algo no sentido de estar aprendendo. (Conversa realizada em outubro de 2008).

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meio educativo e como inserção na vida do grupo. Neste sentido, o valor fundamental da terra

é afirmado constantemente, aprende-se desde cedo a conhecer e a respeitar a natureza.

Os fenômenos cíclicos da natureza sempre estimularam às sociedades indígenas o

desejo da compreensão na produção e na organização de conhecimentos e, sempre ajudaram a

regular o tempo, bem como as diversas atividades ligadas aos hábitos cotidianos, ao trabalho

para a subsistência e aos rituais. Porém, existem marcadores que determinam os “relógios

naturais” desses povos; podendo ser apresentadas por meio de representações míticas do

espaço, dos astros, da geografia e da arquitetura e das percepções de mudanças dos grupos

locais. Tais marcadores possibilitam com que saberes circulem cotidiana e permanentemente

nesses grupos através desses “relógios naturais”.

O que se observou na dinâmica das relações de sociabilidade nos

grupos locais é que o tempo aqui se diferencia do “tempo do não-trabalho”, que no mundo da

criança e, no caso, da criança indígena, parece estar diretamente ligado às noções simbólicas

pelas quais “localizam-se e posicionam-se no mundo social.” (NUNES, 2002:67)192.

Conscientes da relatividade do conceito ocidental de tempo, Berger & Luckmann

(1987) afirmam que “a estrutura temporal da vida cotidiana é extremamente complexa, porque

os diferentes níveis da temporalidade empiricamente presentes devem ser continuamente

correlacionados (p. 45)”. Sendo assim, a “estrutura temporal” do cotidiano de uma criança

indígena é, no mínimo, possuidora de outra complexidade, que não aquela do espaço escolar,

com seus tempos pré-determinados e constantemente dirigidos, exigindo outras correlações.

A criança participa ativamente e de forma integrada da vida da comunidade. De todos

os momentos, incluindo as festas, os rituais, atividades produtivas: como a caça, a pesca, a

produção da roça, entre outros. Esse “acompanhar” a vida do grupo é parte intrínseca do seu

processo de formação.

A familiaridade no manuseio de instrumentos para as atividades diversas, desde o uso

do fuso para o tear pelas meninas ao remar a canoa no rio pelos meninos, nota-se que a pessoa

mostra mediante a experimentação sua capacidade de construir o conhecimento da e pela

ação. Portanto, trata-se de um conhecimento peculiar adquirido pelo “hábito, pelo

desempenho invariável, constantemente repetido” 193 da ação.

A princípio, as famílias Ka’apor, assim como nas demais sociedades indígenas,

exercem a tarefa de socializar ta’yn. Pois, desde o nascimento, ta’yn são conduzidas pelos

192 NUNES, Angela Maria. “O lugar da criança nos textos sobre sociedades indígenas brasileiras” In: LOPES DA SILVA, Aracy (org.) Crianças Indígenas. Ensaios Antropológicos. São Paulo: Global, 2002.

193 Cf. CASSIRER, Ernst. Ensaios sobre o homem. Introdução a uma Filosofia da cultura humana. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.80.

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pais a se colocar em diferentes lugares; são orientadas a se relacionar com os lugares e

pessoas e, posteriormente, a exercer determinadas tarefas, nos lugares e com pessoas, de

acordo com a cultura do grupo. E, à medida que esses procedimentos vão sendo significados

socialmente, as pessoas vão atribuindo sentidos a eles vão recebendo adesão do grupo, do

coletivo dos núcleos. Como é o caso do ta’yn ru (o pai da criança) que leva ta’yn nas grandes

pescarias em determinadas áreas do território e as kunjã (as mulheres) quando levam ta’yn ao

roçado.

Nesse sentido, entre os principais mecanismos de reprodução e construção de saberes

na educação presentes nos grupos locais Ka’apor estão o observar os mais experientes/adultos

em diferentes atividades, momentos e lugares, assim como, a comunicação interna e externa

aos grupos. Logo, o indivíduo não é educado, mas ele se educa através do convívio com os

outros. Todo o grupo local se responsabiliza pela educação e socialização da criança.

Os tuwete (pessoas adultas) e os tamũi (“o cabôco” ou “os velhos”)

possuem o papel de transformar esse processo de socialização à cultura em um momento

harmônico. As conversas realizadas a noite no terreiro do núcleo, seja de jahy pihun (noites

“escuras” ou de lua nova), ou em jahy wahu (noites “claras” ou de lua cheia), são momentos

privilegiados para a “inspiração” dos mais experientes a repassarem conhecimentos diversos

às crianças e aos mais jovens através da narração de longas histórias.

A princípio, vale ressaltar que cada classe de idade desenvolve atividades específicas e

diferenciadas que identificam a sua função social nos grupos locais, dispostas a partir de suas

habilidades, capacidades e limitações, como é o caso das crianças e idosos que trabalham em

níveis diferenciados, chegando a desenvolver tarefas peculiares ao grupo cultural e sua classe

de idade.

Aos tamũi reserva-se o papel especial de falar e dar conselhos, indicando ou

atualizando os fatos através da memória coletiva Ka’apor, pois as suas vivências e seus

conhecimentos representam experiência de vida, onde os ritos, os mitos, os valores e as

crenças são acionados permanentemente para a manutenção e re-elaboração das tradições.

Conforme afirma o senhor Kim Kim sobre a importância e o papel dos tamũi na sociedade

Ka’apor: “o Arapinim que é velho diz, a gente faz. Ele sabe, ele diz assim: wata, ujan ka’a

katu (é bom caminhar, correr no mato)194”.

194 Conversa realizada em 08 de julho de 2008 na casa do senhor Kim Kim.

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Aos tamũi além dos sawa’e, sobretudo, os caciques, é atribuído o papel de atar o

prepúcio do pênis do ta’y nuhu por ocasião do rito de passagem do menino quando se torna

rapaz.

Os ta’yn por estarem em um processo de formação permanente aprendem no cotidiano

com os adultos e se prepararam para assumir inúmeros papéis sociais na vida futura. A

socialização dos ta’yn caracteriza-se pela orientação às funções que irão assumir de acordo

com a divisão de tarefas no interior do núcleo. E, mesmo que haja uma divisão de tarefas por

sexo, essas atividades complementam-se nas relações de produção.

Foi o que presenciei na paratu rok (casa do forno), lugar destinado ao beneficiamento

da mandioca para a feitura da farinha, quando ta’yn ta pame (as crianças), além de serem

levadas pelos pais para estar em companhia deles por ocasião da execução de tarefas, muitas

vezes são orientadas e inseridas nas atividades para desempenhar tarefas compatíveis com

suas habilidades e possibilidades, dentro de sua classe de idade. Percebi o deslocamento

constante de ta’yn em busca de alimentos já preparados na casa onde residem visando

acrescentar aos que dispõem no local de trabalho; revelam-se, assim, auxiliares em diferentes

situações com tarefas que não demandam esforço físico.

Entre os Ka’apor dos núcleos Piquizeiro, Capitão Mira, Iapu, Ximbo renda e Myra wy

renda identifiquei algumas tarefas sendo desenvolvidas ora por sawa’e ta pame (os

homens)195, ora por kunjã ta pame (as mulheres)196. Lembrando que os Kurumĩ ra’yr, os

Kurumĩ, as Kunjantãi ra’yr e as Kunjantãi acompanham seus pais na grande maioria das

tarefas.

As inúmeras vezes em que fui convidado a acompanhar a comunidade em atividades

cotidianas, pude identificar a existência de atividades que têm sido desenvolvidas apenas por

sawa’e. A seguir, indico as atividades em que fui inserido, possibilitando uma maior

compreensão de sua dinâmica social.

Na pesca, costumam adotar diferentes formas de pescaria: de pinda’y (caniço)197, de

myra rehe har tanxĩ (lança)198, de ximbo (o timbó)199, e finalmente, de kunami (cunabi)200.

Desta forma, na pesca de pinda’y, primeiramente seleciona-se e retiram-se pequenas

varas ou cipós apropriados para a espécie de peixe que se pretende capturar; a seguir,

195 Termo utilizado para se referir a mais de um homem, ou seja, a uma ação realizada por um grupo de homens. 196 Termo utilizado para se referir a mais de uma mulher, ou seja, a uma ação realizada por um grupo de mulheres. 197 Uma vara de pau ou cipó para fixar o anzol. 198 Uma espécie de vara com um arpão de pesca apropriada para fisgar o peixe. 199 Uma espécie de cipó ou raízes usada para paralisar os peixes. 200 Uma espécie de planta em que suas folhas ou frutos são utilizados como paralisantes de peixes na pescaria.

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apreende-se a essa vara o pindaham (a linha) e o pinda (o anzol). Após o pinda’y pronto,

busca-se preparar a isca201, que pode variar: so’i (minhocas), kunami pu’a (cunabi

redondo)202, kamambu (o camapu)203, karapatu (carrapato), entre outras204.

A pesca de myra rehe har tanxĩ , por sua vez requer que as pessoas ou grupo dediquem

um tempo a selecionar na mata uma vara que seja apropriada para este tipo de pesca e, em

seguida, se coloca uma ponta afinada de metal para fisgar o peixe. Porém, a ponta da fisga

varia de acordo com os peixes que se almeja capturar, tratando-se de práticas que têm sido

utilizadas mais nos rios por kurumĩ ra’ yr e kurumĩ, embora não seja a mais utilizada entre os

Ka’apor.

No que diz respeito à pesca de ximbo e de kunami, são as práticas mais utilizadas nos

igarapés da região por ocasião da estiagem, porém são precedidas de uma expedição à mata

quando saem à procura desses cipós, raízes, folhas e frutos que possuem a função de paralisar

os peixes, para que assim possam ser capturados.

Vale ressaltar, que a pescaria nos rios ocorre em diferentes estações do ano, ao

contrário das que ocorrem nos igarapés, sendo possível visualizar tais práticas com maior

freqüência durante o período do verão, quando são encontrados pequenos poços ou lagos que

possibilitam a captura dos peixes.

Muitas vezes a atividade de pesca está associada à caça, sendo que essas atividades

têm a função de suprir as necessidades de alimentação por um determinado período.

Conforme a imagem abaixo, que retrata em uma das idas à pescaria e caçadas com famílias do

núcleo Capitão Mira.

201 Tipo de alimento que atrai o peixe até o anzol, a fim de capturá-lo.

202 São bolinhos de farinha de mandioca misturados com cunabi, que depois de preparados, são jogados na água com intuito de atrair os peixes. E assim que engolidos por eles, passam a paralisá-los, possibilitando assim, a captura. 203 Um pequeno fruto silvestre utilizado como isca para a captura da espécie de peixe pacu e outras espécies de peixes que pode ser encontrado apenas em rios da região. 204 Entre as outras iscas, estão: peixes pequenos, vísceras de aves.

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Entre as diferentes práticas de captura de animais estão: a prática da “espera” ou “ir

pra espera”, quando ta’ynuhu (meninos) ou sawa’e (rapazes e adultos), no período da jahy

pihun (lua preta) ou lua nova, permanecem vigilantes na mata por um longo período até que

possam capturar a caça.

Nota-se que para esse tipo de captura utilizam sempre u’yhu (flecha grande) ou u’yhu

ra’yr (espingarda pequena), sendo essa última a mais utilizada nas empreitadas de caça. No

entanto, quando estão fora do período lunar apropriado para a caça costumam preparar ou

armar badogue, uma espécie de armadilha feita com fios, pequenos canos de aço (imitação de

canos de uma espingarda) e chumbo, que são montadas em caminhos, rastros de passagem de

animais, acompanhando a altura do animal que se pretende capturar.

Porém, à medida que as armadilhas são armadas, o caçador tem por obrigação fazer

com que o grupo local esteja ciente do território em que armou a bagogue, evitando que

pessoas venham correr risco como tem acontecido.

Vide imagem abaixo em que as famílias se deslocam na mata para ir ao encontro de

um sawa’e que foi atingido por ocasião do desarmar de uma badogue no núcleo de Capitão

Mira.

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Todavia, tanto a pescaria quanto a caçada são realizadas, em sua maioria, por um

grupo de várias unidades residenciais que ao se articularem internamente, planejam os

possíveis trajetos para o percurso, os materiais necessários para o deslocamento, atividades e

permanência na mata. O território onde permanecem é pensado anteriormente e, demarcado

na chegada das famílias, que passam a ocupar lugares diferentes na mata visando acomodar e

facilitar o deslocamento até as margens do igarapé, assim como, o acesso a possíveis trilhas

que são abertas para o deslocamento em busca de caça.

Nos espaços demarcados, cada família passa a se organizar visando montar seu xipa

(acampamento provisório feito de palmeiras de açaí, de inajá ou de babaçu). Por outro lado,

percebi que a noção de xipa não se restringe apenas a uma construção a ser feita onde pessoas

se abrigam, mas está associada, também, ao lugar onde decidem se fixar, acampar, demarcar

com utensílios de uso doméstico e pessoal, como pander (panela), paratu (prato), kúi (cuia),

kyha (rede) e; realizar o preparo dos alimentos, como é ocaso de demarcarem com o preparo

do tata (fogo).

Vide imagem que do acampamento montado por famílias do núcleo Capitão Mira, às

margens do Rio Hola, por ocasião de uma pescaria e caçada realizada naquela região.

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Com isso, as famílias permanecem no lugar até o momento em que julgam que o

tempo foi suficiente para capturar os peixes e caças necessárias para a manutenção das

famílias por um período determinado. Porém, observei que a maioria dos xipa são

organizados ou construídos pelos sawa’e com a colaboração de ta’y nuhu, que juntos vão a

busca de myra (madeiras ou árvores) e sypo (cipós) que são necessários para erguer o xipa.

Além das atividades vinculadas à pesca e a caça, os sawa’e são responsáveis por

grande parte das tarefas nas diferentes etapas da feitura da roça.

Por ocasião das idas e vindas na roça em diferentes momentos, pude visualizar a

dinâmica ou técnicas desenvolvidas que dão conta das diferentes etapas de preparação do

kupixa (a roça) de mani’ok ou mandi’ok (a mandioca): derrubada, queima, limpeza, seleção da

mani’ok, preparação dos feixes, plantação, limpeza e colheita. A cada etapa, acionam práticas,

conhecimentos que resultam em novos desdobramentos práticos.

A seguir, apresento brevemente, a dinâmica que tem orientado algumas famílias nas

etapas iniciais da feitura de sua roça, como, a área destinada para a derrubada, o roço, a

limpeza e a plantação.

Na primeira etapa, observou-se a delimitação da área a ser derrubada para a kupixa.

Para muitas sociedades indígenas tupi amazônicas, “a medição, como noção de comparação

de grandezas, responde, em grande parte, à necessidade de quantificação” (LOPES BELLO,

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2002)205. O que tem sido muito similar às práticas adotadas pelos Ka’apor quando definem

medida ou área, utilizando-se padrões como parte do corpo (braços, palmos) ou objetos,

movimentos (linha, passos). Contudo, a escolha e o uso de um ou outro depende do que se

deseja medir. Vejamos a área de mata derrubada para a feitura da kupixa.

Para a derrubada da mata destinada à kupixa, se utiliza os seguintes critérios de

medida: derrubar uma área de 100m² ou (4) quatro linhas, sendo que cada canto ou uma (1)

linha corresponde a vinte e cinco metros (25m). Porém, percebi que os procedimentos

adotados pelos Ka’apor que residem às proximidades do Rio Gurupi são similares aos

sistemas de feitura da roça dos Tenetehara do Rio Gurupi (os Tembé).

Essas práticas visualizadas e registradas fizeram parte das etnografias de Wagley e

Galvão (1961)206, quando reconheciam que os Tenetehara, com a mesma precisão e

capacidade que os não indígenas, observavam suas roças e adotavam medidas em termos de

linhas ou braças. Sendo que (1) uma linha corresponde um quadrado de (25) vinte e cinco

braças de lado ou 2. 500m². Associam à braça, a distância do chão à ponta do dedo médio de

uma pessoa, sendo que o braço deve ficar na vertical (cerca de 2m). A partir das observações

in loco, visualizei a organização da área da kupixa, conforme a ilustração abaixo:

205 Cf. LÓPEZ BELLO, Samuel. “Etnomatemática no contexto guarani-kaiowá: reflexões para a educação matemática” In LEAL FERREIRA, Mariana Kawall (Org.) Idéias Matemáticas de Povos Culturalmente Distintos. Série Antropologia e Educação. São Paulo: Global, 2002, p. 317. 206 Cf. WAGLEY, Charles e GALVÃO, Eduardo. Os Índios Tenetehara. Uma cultura em transição. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1955, p. 54.

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1 linha ou braça 1 linha ou braça

1linha ou braça 1 linha ou braça

Na segunda etapa, posterior a derrubada, dedicam o trabalho à limpeza da área

associado à queima, destinada ao plantio, retirando os caules das árvores, cipós, raízes, galhos

secos que porventura permanecem na área.

A seguir, é possível visualizar uma área derrubada no núcleo Xiépihurenda, com parte

de sua área já realizada a limpeza.

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Na terceira etapa, identifiquei o processo de seleção, corte e organização dos feixes de

mani’ok a serem plantadas na área demarcada, conforme as imagens abaixo.

Na etapa seguinte, ocorre o processo de plantação da mani’ok, quando escavam uma

superfície de 10 cm aproximadamente, onde são plantados dois (dois) talos de mani’ok. Sendo

que calculam um (1) metro de distância entre uma superfície e outra, conforme imagens e

ilustração abaixo.

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1m 1m 1m 1m

Contudo, informam que são necessários vinte e cinco (25) feixes de mani’ok para o

plantio de uma roça de quatro (4) linhas. Logo, serão destinados seis (6) feixes de mani’ok

para cada linha. Portanto, é possível visualizar a representação dos feixes de mani’ok por

linha.

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1 linha

6 feixes

1 linha

6 feixes

1 linha

6 feixes

1 linha

6 feixes

As etapas apresentadas são resultantes dos conhecimentos matemáticos Ka’apor

expressos nos procedimentos, técnicas de preparo e feitura da mani’ok kupixa (roça de

mandioca), pois, a experiência de produção agrícola desenvolvida em diferentes territórios

indígenas tem representado a luta desses povos na “produção de bens que lhes assegurem sua

subsistência (alimento, moradia) e com os meios necessários (estratégias, conhecimentos,

instrumentos) de assegurar essa subsistência para quem virá” 207.

Além da feitura das roças, aos sawa’e é destinado o deslocamento da produção que

subtende a domesticação de animais e organização de materiais para o transporte. A seguir, no

processo de beneficiamento da mani’ok ou da produção da farinha, colocam a massa no

tipiti208 ou prensa; carregam a massa para o casco209; colocam a massa no caititu210; ajudam a

peneirar e a torrar a massa no forno, buscam jape’a (lenha), a colocam no forno; empacotam a

farinha no saco. Posteriormente, quando se busca a comercialização, ainda a conduzem a

conduzem até o destino para a venda, seja para a Vila ou Colônia mais próxima da divisa da

Terra Indígena ou para a cidade mais próxima.

Entre outras atividades desenvolvidas especificamente por sawa’e estão o

deslocamento de jape’a; construção de ok (casa) e a tessitura da cobertura das casas com

palmeira de owi (ubim); coleta e transporte de frutos e sementes em diferentes épocas do ano.

207 Conferir: LÓPEZ BELLO, 2002: 304-305. 208 Utensílio feito de talas de guarumã utilizado como reservatório de massa de mandioca que tem a função de prensar a massa para que fique enxuta, no ponto de ser levada à peneira. 209 Uma espécie de madeira escava em formato de uma canoa utilizada para receber massa de mandioca. 210 Uma espécie de máquina movida à gasolina, responsável por moer ou triturar a massa de mandioca.

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Por outro lado, entre as diferentes atividades atribuídas às kunjã identifiquei as

seguintes: preparar o fogo para cozinhar os alimentos; “tratar” caças no igarapé; preparar a

comida. Porém, associado ao preparo da comida existe outras tarefas a serem cumpridas por

familiares do pai da criança durante o resguardo, a couvade, conforme relata o jovem �ohi,

que passava naquele momento por essa experiência juntamente com o resguardo de sua

esposa: “A mãe do pai trabalha pra fazer roça pra ajudar o filho. A mãe convida o padrinho

também pra ajudar. Quando matar caititu levar pro menino, pro pai também comer, junto todo

mundo” 211.

Às kunjã é atribuído o papel de transportar vasilhames de água; lavar roupas no rio ou

no igarapé; na feitura da roça, dedicam-se especificamente, à limpeza, ao plantio e a colheita.

Quando se trata do beneficiamento da mani’ok, auxiliam os sawa’e no colocar a massa no

tipiti; assim como, colocam a massa no “caititu” e, finalmente, peneiram a mesma a fim de

torrá-la. Para tanto, colocam lenha no forno, função que divide com os sawa’e. Realizam a

211 Relato de �ohi Ka’apor após o nascimento de seu filho, ocasião em que ele e sua esposa encontravam-se no período do resguardo no núcleo Capitão Mira. Relato em 13 de maio de 2008.

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coleta de frutos e de sementes, bem como ajudam na construção de xipa por ocasião de

viagens e da estadia na mata.

No ritual de passagem feminino, sobretudo, no caso das Jai ramõ te (menina-moça),

possuem tarefas específicas, como mandam as tradições: “Menina menstruada a primeira vez,

a menina aprende a fazer farinha de tapioca, buscar lenha, corta cabelo, tem formiga, amarra

na testa a tapia’ĩ [formiga], só um dia o padrinho leva farinha pra fazer mingau sozinho”212.

Nesse sentido, foi possível visualizar espaços e atividades sendo desenvolvidas

ativamente pelas kunjã, conforme demonstram as imagens.

212 Idem relato anterior.

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Porém, grande parte das atividades coordenadas pelo ta’yn ru (pai da criança) quanto

pela ta’yn mãi (mãe da criança) tem um caráter pedagógico no sentido de conduzir o filho ou

a filha a continuar exercitando as tarefas e as ações com um fim social à família.

Porquanto, observei que existem atividades que são desenvolvidas tanto por Kunjã

quanto por sawa’e, com o apoio dos filhos, entre elas: as tarefas de plantio; a colheita e a

limpeza da kupixa; a coleta de frutos e de sementes; a pesca com anzol, porém, as realizadas

com malhadeira213, ximbo e kunami são realizadas especificamente por sawa’e.

213 Uma espécie de rede de pesca tecida em trançado de fio de nylon.

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Por outro lado, observei a existência de divisão na confecção de artefatos para o uso

cotidiano e para o uso ritual, quando os sawa’e, geralmente, trabalham com a palha, as talas

de guarumã e a madeira, produzindo artefatos, como: tipiti, tupé214, peneira, cestos, arcos,

flechas, badogues, maracá e apitos.

Já as kunjã, no que diz respeito às atividades realizadas no âmbito doméstico e

cotidiano, trabalham com a coleta de sementes, entre elas as de mandeju (algodão) para

pomyk (tecer, fiar) kyha (redes), hamy (tipóia); na confecção de kawasu (cabaça), kúi (cuia).

Para o uso ritual, dedicam-se à confecção de arara (pulseira masculina e feminina), colares,

saiotes para serem usados nos rituais.

No caso específico do nascimento de uma criança, constatei que tanto homens quanto

mulheres, ao mesmo tempo em que passam por restrições, também assumem tarefas

específicas que se complementam, conforme relata o senhor Kim Kim Ka’apor:

Taramo’ar (nasceu hoje), tikwar (farinha molhada), waxi (jabuti), pai faz mingau; kapi pehin (mãe fica guardada), pai de dela e mãe dela caçando, pira iki (pescando), xiape’a matyr (tira lenha), iho pihã (busca água). Kyha ininoko (Mãe dele e pai dele fica na rede), Kiha ukweroko (dormindo); Ma’e kekaroho (o pai buscar lenha), karikati uhi’ur; Tumeme awa po pa (quatro dias); peta hiri (mãe dela fica guardada durante dez dias). (conversa realizada na Aldeia Capitão Mira, em 08 de julho de 2008)

Todas essas tarefas desenvolvidas movem o cotidiano Ka’apor em diversos lugares da

aldeia, como acontece em atividades resultantes de momentos diferentes ou específicos de

sociabilidade. Por outro lado, as ações praticadas por uma ou mais pessoas apresentam dois

aspectos, um técnico e outro simbólico215. Esses dois aspectos são expressos através de uma

seqüência de ações. Sendo que as ações que evocam o aspecto simbólico podem ser

consideradas como ritos, e os símbolos utilizados dizem algo a respeito das pessoas que o

utilizam. Contudo, tanto o aprender fazer cotidiano quanto o ritual Ka’apor têm sido

orientados por essas duas dimensões inseparáveis.

Todavia, essas ações são orientadas por uma dinâmica ou por uma ritualidade próprias,

onde o poder simbólico que carregam é determinado pela cosmologia do grupo, assim como,

carregam consigo um teor pedagógico capaz de conduzir e de fundamentar os processos que

levam a constituição da pessoa nesta sociedade. Conforme afirma Kim Kim Ka’apor ao se

referir acerca do sentido do aprender e os significados disso para o futuro das ta’yn ta pame216

214 Artefato como que uma esteira feita com guarumã, espécie de cipó encontrado nas áreas de igapó na mata amazônica, utilizado, sobretudo, nos rituais de iniciação feminina. 215 Cf. LEACH, Edmund. Sistemas Políticos da Alta Birmânia. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996, p.162. 216 Termo utilizado para se referir a mais de uma criança, ou ainda, as várias crianças do grupo local.

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(as crianças): “ele aprende pra ele, pra ele ficar sabendo, pra ele viver na aldeia sempre até

quando a gente não existir mais. Ele crescer aqui e viver aqui como índio. Branco tem o seu

jeito de viver diferente do nosso”.

Portanto, os processos educacionais nas sociedades indígenas estão vinculados aos

projetos da pessoa, pensado ou não a partir da coletividade, da “aldeia”, do povo; e estão

relacionados aos projetos societários de futuro. Logo, cada pessoa é um ser importante à

medida que participa, e é inserido em todos os momentos, eventos que a referenda como parte

dessa coletividade. Confirmando o que relata Schaden (1945)217 em sua etnografia sobre a

educação Tupinambá, quando reconhece nos conhecimentos e habilidades desse povo,

elementos essenciais para potencializar os projetos de futuro daquela sociedade.

Logo, está subtendida no ato pedagógico a formação do sujeito moral218, pessoa que se

revela ao outro e o que age a partir das práticas sociais, os valores e visões de mundo que

estão de acordo com sua sociedade; sujeito constitutivo da ação coletiva, onde é engendrado

como pessoa pelas ações que compartilha no grupo social em que é socializado e no qual

socializa.

A compreensão da natureza desse sujeito moral tem orientado a minha interlocução

com o grupo, assim como, possibilitado compreender a significação das narrativas sobre as

relações de sociabilidade de cunho pedagógico e ritual.

Vale ressaltar, que o processo de socialização aqui referido assemelha-se à

compreensão mais sociológica, fundamentada na concepção ou sentido pensado por

Fernandes (1970), “que se refere aos processos sociais através dos quais personalidades em

interação influenciam-se reciprocamente e a ‘herança social’ é transmitida”. (p.147)

Segundo Schaden (1945), todos os povos possuem a preocupação de “transmitir às

novas gerações o patrimônio cultural elaborado durante longo período de vida comunitária. É

a isso que chamamos socialização ou simplesmente educação”, pois para o autor é através

desse processo que “é possível à perpetuação das instituições, das crenças religiosas, dos

valores morais aceitos pela comunidade.” (p. 271)

217 C.f SCHADEN, Egon. “Educação e Magia nas Cerimônias de Iniciação” In Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Brasília, n. 8, vol. III, 1945, p. 271. 218 Categoria rousseneana que compreende o ser humano, o sujeito social enquanto sujeito moral, ou ainda, o ser orientado pelas práticas sociais; que se revela e mostra em sua ação. Conferir: Rousseau, Jean-Jacques. Do Contrato Social. Ensaio sobre a origem das línguas. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Discurso sobre as ciências e as artes. Tradução de Lourdes Santos Machado. 3.º Ed. São Paulo. Abril Cultural (Os Pensadores), 1983.

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Nesse sentido, preferi tomar como a máxima expressão norteadora do pensamento

pedagógico uma narrativa de Pipihu Ka’apor, liderança do núcleo Xié pihu renda, em

conversas com seus “parentes” de Capitão Mira acerca das ameaças e da defesa do território

pertencente ao grupo. A sua narrativa foi uma das primeiras e mais expressivas entre as

inúmeras escutadas no decorrer de minha presença nos grupos locais da região do Alto

Turiaçu, uma vez que apresenta elementos ou princípios que orientam o saber-fazer nesta

sociedade. Narrativas que denominei naquela ocasião de “conversas sobre o ensinar

Ka’apor”. Haja vista, a narrativa ter sido realizada com o acompanhamento de uma

performance expressiva e pedagógica, capaz de atrair a atenção de todos os parentes que

estavam presentes no local e sensibilizá-los acerca da importância de valorizarem um dos

patrimônios culturais que dispõem, os saberes, colocando-os a serviço e defesa do território e

das riquezas naturais da área indígena.

Ka’apor jumu’e ukwa há, ele aprende a ser Ka’apor na “aldeia”

Os espaços de conversas no grupo local constituem-se em uma grande reunião

coletiva, quando todos se fazem presentes, independente das categorias de idade. Foi nesse

contexto que Pipihu, ao expressar sua preocupação sobre o repasse dos saberes como forma

de resguardar e defender o território para as novas gerações, direcionando seu olhar às

crianças e aos jovens presentes, afirmou: “a gente aprende observando, olha, pensando,

depois a gente sonha, fica pensando como se faz, depois começa a fazer, faz sozinho.”219

(grifo meu)

Em sua fala, nota-se que cada palavra revela-se um princípio norteador da ação

coletiva, possuindo uma dimensão sutil e ritual capaz de guiar todo aprendizado cotidiano;

expressão de um potencial pedagógico e filosófico próprio da cultura Ka’apor.

Os princípios filosóficos sobre o aprendizado, evidenciados por Pipihu, tem mostrado

que essa capacidade é inerente aos tuwete e tamũi Ka’apor. Comprovei este fato ao longo das

inúmeras conversas realizadas com o senhor Kim Kim, liderança do núcleo Capitão Mira,

quando reafirmou o seu papel como educador ao expressar como se ensina, como se aprende,

e quem se torna um dos responsáveis pela transmissão dos saberes que instruem as formas de

viver nos grupos locais. Prova disso é o seu reconhecimento acerca do papel dos tamũi,

219 Narrativa de Pipihu Ka’apor, no núcleo Capitão Mira, em 13 de maio de 2008.

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quando se refere ao senhor Wira pinim220 (realizando gestos com as mãos, apontando em

direção à pessoa que está se referindo) em relação à transmissão e a perpetuação dos saberes

às novas gerações. Tal reconhecimento se dá nos momentos que se referem ao cumprimento

de tarefas do cotidiano, ou quando se referem aos processos de preparação e de execução dos

rituais.

Como expressão e resposta às nossas conversas sobre o ensinar Ka’apor, o senhor Kim

Kim continua e referindo aos elementos essenciais nesse processo de socialização nos núcleos.

Nas observações, vivências e indagações sobre a aprendizagem no grupo local sempre se

referia à Wyra Pinim: “Tamũi upakwa” (“caboco” velho ensina tudo), “upakwa” (todo mundo

ensina).

Á medida que as conversas tratavam sobre o aprendizado, da relação desse

aprendizado com as diferentes experiências e práticas cotidianas, comprovava o quanto o

aprender no núcleo está associado ao corpo de quem pensa, de quem sabe algo, conforme

aludem aos seguintes aspectos: mujekwa (conhecer), jeje te’e ixokwa katu (quando ele sabe

por si mesmo). Com isso, deve-se wata (caminhar), ujan (correr), wata, ujan ka’a katu (é bom

caminhar, correr no mato), etc.

Tais ações parecem indicar a importância de cada atividade no território. Essas

expressões possuem uma riqueza simbólica em relação às experiências sensíveis, resultantes

do saberes adquiridos no grupo. Retratam a riqueza de suas habilidades e conhecimentos

sobre o henda; fatores essenciais para a estadia e o deslocamento interno, pois a transmissão

desses conhecimentos orienta as ações coletivas em diferentes lugares no território.

Segundo Lévi-Strauss (1989), é possível perceber o mundo natural como um símbolo

para o social, fruto das elaborações culturais. Além disso, as sociedades indígenas, de fato,

produzem conhecimentos quando seus integrantes, no decorrer das experiências cotidianas

(relacionadas ao saber-fazer), revelam-se como verdadeiros conhecedores do ambiente onde

vivem.

Esses “pensadores nativos” comprovam que essa capacidade não está restrita e, muito

menos, é privilégio dos que costumam analisar ou interpretar sua relação com o meio

ambiente e com diferentes seres que nele vivem a partir de uma perspectiva não-indígena.

Mas, devem ser reconhecidos pela capacidade de percepção, elaboração e reprodução dos

conhecimentos sobre o meio ambiente adquiridos ao longo do tempo.

220O senhor Wira Pinim, 67 anos, pessoa com mais idade no núcleo, respeitada e sempre consultada pelas lideranças e cacique, quando têm que tomar decisões em situações que se referem às mudanças nos grupos locais.

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Existem inúmeros estudos que reconhecem a humanidade em diferentes formas de

vida, sendo e que é possível compreender o mundo respeitando o ponto de vista do outro,

sobretudo, as lógicas que reconhecem os saberes relacionados aos ecossistemas de grupos

indígenas. Estudos associados à perspectiva dos povos ameríndios acerca do ser, de suas

relações, do mundo fundamentado em cosmologias, conforme se constata no Brasil as

etnografias importantes como são as de Lima (1996), de Villaça (1992; 1997), de Viveiros de

Castro (1996) e de Descola (1998)221.

Entre os trabalhos que estariam relacionados a essa área de interesse, como que

realizando uma etnobiologia dos ecossistemas indígenas na Amazônia, destacaria os

seguintes: os estudos de Darrel Possey (1986; 1988)222 sobre o papel da etnoentomologia

Kayapó nas relações com os mitos e parentesco do grupo e o estudo dos conhecimentos

Mebêngõkre na relação com a etnobotânica do território, visando à proteção do meio

ambiente. Outro trabalho associado a essa perspectiva que merece destaque é a etnografia

densa sobre os Makuna de Kaj Arhen (1990)223, quando a partir da cosmologia do grupo,

relacionada à ecologia, realiza o exercício de elaborar uma possível filosofia Makuna.

Porquanto, fundamentado nessas etnografias com vasta riqueza epistemológica para a

Etnologia é que relato a experiência que vivenciei em um dos núcleos da região do Alto

Turiaçu, que comprova que essa perspectiva permanece atualizada entre as sociedades

indígenas e, que esses “pensadores nativos”, continuarão produzindo conhecimentos

importantes para seus projetos societários, aos quais os antropólogos buscarão interpretar.

Na jahy wahu (lua cheia) de agosto de 2007, por ocasião de minha estadia no núcleo

Capitão Mira recebi o convite de uma das lideranças para acompanhá-los no dia seguinte em

uma pescaria que realizariam no Rio Hola, cerca de oito quilômetros do grupo local visando à

captura de animais e peixes para o suprimento das famílias durante um determinado período

(cerca de duas semanas). O movimento das pessoas na noite que antecedeu a viagem era de

preparativos. Como as conversas que realizavam eram restritas apenas a duas lideranças e

mais dois jovens, sendo esses últimos, as únicas pessoas, das quarenta e duas, que se

221 Cf. DESCOLA, Phillipe. Estrutura ou sentimento: a relação com o animal na Amazônia. Mana, 4, 1998, 23-45. 222 Cf. POSEY, D. A. Etnoentomologia de tribos indígenas da Amazônia. In Suma Etnológica Brasileira – Volume 1. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 251 – 272 e; POSEY, D. A.; ELISABETSKY, E.; CAMPOS, M.; RODRIGUES, A. O. & DE LA PENHA, G. M. A Ciência dos Mbêngôkre: alternativas contra a destruição. In Catálogo da Exposição (A Ciência dos Mbêngokre: Alternativas contra a Destruição). Belém: Departamento de Museologia, Museu Paraense Emilio Goeldi, 1988, p. 12-35. 223 Cf. ARHEM, Kaj. “Ecosofia Makuna”. In La Selva Humanizada. Ecologia Alternativa em el Trópico Húmedo Colombiano. Bogotá: Instituto Colombiano de Antropologia, 1990, p. 105 – 122.

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comunicavam timidamente comigo em português, com maior destaque para a liderança Kim

Kim Ka’apor.

Na manhã do dia seguinte, quatro das seis famílias tinham o objetivo de seguir viagem

até o Rio Hola. Contudo, algumas famílias se antecipavam na viagem com objetivo de

montarem seu xipa (acampamento provisório) mais cedo e, assim, destinarem um tempo

maior para a caça e a pesca. Antes da saída do núcleo, percebi que a liderança que havia me

convidado orientava a sua família e a família de sua filha no sentido de formarem pequenos

grupos, sendo que cada um era instruído a seguir um percurso diferente, visando o

monitoramento de possíveis caminhos de caça.

Com isso, fui encaminhado por Kim Kim a acompanhar dois ta’yn nuhu e dois ta’yn,

que me entregaram um facão e lançaram o convite para que os acompanhasse até um caminho

de saída do núcleo, onde encontraria o ximbo, que seria de extrema necessidade para a captura

de peixes durante a pesca, haja vista, a raiz ou cipós desta planta funcionar como paralisantes.

Assim que terminei de cortar os cipós e ajudá-los na organização dos feixes, segui as

orientações de Waxã (um dos ta’yn nuhu) no caminho destinado ao grupo. À medida que o

grupo adentrava a mata, Waxã, com seu “Ka’apor - Português” indicava uma espécie

diferente de vegetação, assim como, a utilidade e a forma de manejo daquela espécie vegetal,

reconhecendo a importância das espécies para a vida do grupo.

Experiência que confirma mais uma vez a capacidade das sociedades indígenas em

construir seus modelos e lógicas fundamentadas em uma ciência do concreto224 própria, seja

de etnoconservação em relação à biodiversidade de seus territórios, quanto aos relacionados à

etnobotânica Ka’apor, conforme demonstrou Waxã em suas explicações durante o percurso

até o Rio Hola.

Segundo Diegues & Descola (2000)225, ao se referirem à etnoconservação relacionado

às populações indígenas, afirmam que para as cosmologias ameríndias, a “natureza”, tal qual

entende a ciência ocidental, não é um domínio autônomo e independente, mas faz parte de um

conjunto de inter-relações.

Apresentando elementos suficientes para exercício autônomo de seus saberes e

recursos naturais, sem que tenham que passar pela tutela de segmentos governamentais e

acadêmicos, pois, as pessoas nestas sociedades possuem um saber-fazer resultante de sua

herança biológica e cultural. A corporeidade intermedia o acesso a esses conhecimentos,

224 Cf. LÉVI-STRAUSS, Claude. O Pensamento Selvagem. Campinas: Papirus, 1989. 225 Cf. DESCOLA, P. “Ecologia e Cosmologia”. In: DIEGUES, A. C. (Org.) Etnoconservação: novos rumos para a proteção da natureza nos trópicos. São Paulo: Hucitec, 2000, p. 30.

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possibilitando à pessoa um ponto de vista sobre os seres que habitam e se inter-relacionam no

meio ambiente do território.

Por outro lado, as diferentes habilidades os tornaram historicamente conhecedores de

técnicas muito peculiares à cultura local, mostrando-se sempre capazes de transformar muitos

de seus recursos naturais em artefatos e símbolos identitários de sua cultura. O exemplo disso,

Berta Ribeiro (1957), conseguiu reunir um rico acervo da arte plumária Ka’apor em pranchas

policromáticas226 que referendam a diversidade do patrimônio cultural (material e imaterial)

do grupo.

À medida que ampliava meus diálogos com lideranças da região do Alto Turiaçu

(Capitão Mira, Piquizeiro, Ximborenda, Mirawyrenda, Cumaru, Turizinho, Bacurizeiro)

acerca de questões relacionadas à defesa dos recursos naturais ameaçados na região – a

madeira por conta da exploração ilegal; orientações relacionadas à melhoria das condições de

saúde e do saneamento nesses grupos locais, devido a ausência de atenção pelas instituições

públicas responsáveis; aumentava a minha interlocução com lideranças do Alto Gurupi

(Xiépihurenda, Paraku’yrenda, Arassatiwa). Embora a infra-estrutura de comunicação seja

ineficiente (radiofonia227) e a dimensão territorial seja um fator a dificultar os contatos

permanentes entre as lideranças, não impede que busquem estratégias próprias no sentido de

manterem as comunicações atualizadas.

Através das relações políticas e interlocuções estabelecidas com as lideranças a partir

de eventos228 relacionados às questões acima apresentadas é que me foi permitida a entrada

em diferentes espaços e lugares.

Diante dessas relações iniciais, que foram determinantes para uma interlocução

permanente com lideranças da Associação do Povo Indígena Ka’apor do Rio Gurupi

(APIKRG), com referencial de sede no núcleo Xié pihu renda, fui acionado por essa

organização para a elaboração de projetos, especificamente, na elaboração de projeto cultural

a ser submetido a avaliação técnica de Entidades de Apoio Social, como a Coordenadoria

Ecumênica de Serviços (CESE) e instituições públicas que atuam na área cultural, como as

Secretaria Estadual de Cultura (SECULT) e Ministério da Cultura (MINC).

226 Cf. RIBEIRO, Berta G. e RIBEIRO, Darcy. Arte Plumária dos Índios Kaapor. Pranchas Georgette Dumas. Rio de Janeiro: Ed. dos Autores/Arte Médica, 1957. 227 Equipamento utilizado para a comunicação entre os grupos locais no território. 228 Vale ressaltar que as diferentes conversas, visitas e reuniões em aldeias, oficinas temáticas (sobre situações relacionadas à exploração ilegal de recursos naturais, especificamente, madeiras e ausência de atenção à saúde e saneamento), embora intermediadas por mim e lideranças, contavam com apoio do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) do Maranhão e Pará, pois o apoio se dava no transporte e alimentação de lideranças indígenas, aquisição de espaços para os eventos e demais infra-estrutura necessária para a realização dos mesmos.

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Assim que lideranças da Associação Indígena se apropriaram de informações

disponibilizadas no Edital de seleção para elaboração de projeto, passaram a convocar

reuniões sucessivas com a participação da comunidade para possíveis esclarecimentos acerca

do Edital e estabelecer uma programação de elaboração do projeto.

Na ocasião, a coordenação da Associação delegou a três pessoas membros da diretoria

a tarefa de elaboração do projeto cultural; posteriormente, solicitaram a mim a disponibilidade

para a orientação de tal projeto.

Após o meu aceite e compromisso estabelecido com a associação, solicitaram que

apresentasse explicações e possíveis esclarecimentos sobre os benefícios adquiridos pela

comunidade caso os projetos viessem a ser aprovados.

Durante as assembléias da associação indígena, decidiram que o projeto cultural

deveria estar relacionado ao “resgate cultural dos artesanatos feitos pelos Ka’apor para usar

na aldeia, nas festas culturais e aqueles que se pode vender para ajudar na renda”, como

expressavam nas reuniões; ou uma possível revitalização da produção da cultura material de

uso cotidiano e ritual do povo Ka’apor.

Sendo que existem artefatos da cultura material que são utensílios de uso cotidiano

que julgam ser apropriados para comercialização, com finalidades de obtenção de renda a

somar as estratégias de sobrevivência física e cultural no território indígena. Logo,

entenderam que o projeto deveria apoiar a produção e confecção de artefatos próprios da

cultura Ka’apor.

Porquanto, estabeleceram que as kunjã, kunjantãi e jai ramo te seriam o público

diretamente envolvido no projeto com a confecção desses artefatos, com possível

envolvimento indireto dos sawa’e neste momento e, de forma direta em etapas posteriores.

Nesse sentido, a equipe responsável pela elaboração do projeto cultural definiu que

seria necessária inicialmente a realização de um levantamento da cultura material e imaterial,

tanto os artefatos, os utensílios, e outros elementos vinculados às práticas, as atividades

atualmente realizadas e utilizadas, quanto àquelas não mais praticadas e empregadas nos

grupos locais, seja de uso doméstico, pessoal ou ritual.

Com essa tarefa a ser desenvolvida, pude juntamente com a equipe de elaboração do

projeto, realizar um levantamento junto aos mais experientes, praticantes, reprodutores desses

saberes, autoridades no saber-fazer da cultura material Ka’apor.

Por outro lado, foi a partir das orientações e fundamentação acerca da classificação do

sistema de objetos indígenas utilizados por Berta Ribeiro (1957; 1988), que sistematizei as

informações coletadas no quadro a seguir:

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Cultura Material Ka’apor

Atividades de subsistência, uso doméstico e pessoal Uso ritual

Adornos Implementos Utensílios Indumentária Adornos Indumentária Utensílios Inst. Musicais

Arara (pulseira feita de pena de arara)

Tâmara (borduna)

Hamy (tipóia) Awai tayr (tanga)

Wyrara (capacete) Ihai (saia) Kywa –putyr (pente femenino)

Tamok (tamborim)

Hembé-pipó (labial ou labrete feito da pluma da arara)

U’y (flecha com ponta de

madeira)

Panakũ (jamaxi/cesto)

Ihai (saia) Hembé-pipó (labial ou labrete feito da pluma da arara)

Awai tayr (tanga)

Tupe (esteira de fibra

de guarumã)

Maraká (maracá)

�ambi porá (brincos)

Wyrapar (arco)

Kyha (rede) Pitã (cinto de pena)

Tykajura (colar feminino feito de pena de tucano)

Turikupe (pente feito de pau-brasil com tala de inajá)

Ami’á ou Jumi’a (corneta feita de

madeira de cedro)

Pu’yr (colar feito de

miçangas)

Urupê ra’yr (bolsinha do caçador para

guardar chumbo)

Patuwa (maleta de cedro)

Awai ta’yr ame’ẽ ke

(saiote feito de sementes)

Yranukakwe (colar masculino)

Takwara’yr (flauta de bambu)

Pu’yr pira (colar feito de

semente de buiuçu)

Itatakwar (flecha com

ponta de metal)

Tapexi (tipiti)

Inambi putyr (brinco masculino

ou feminino)

Awa tukaniwar (colar apito)

Itanxĩ (arpão de

pesca)

Urupẽ (peneira de guarumã))

Pita (cinto de pena)

Wyrahu Kangwer (apito feito do osso do gavião-real com

pluma de arara) Turehu

(flecha de bambu)

Uru (canastra ou maleta feita de

guarumã)

Arara (pulseira feita de

pena de arara)

Kywa –putyr (pente)

Diwá-kuawhar (braçadeiras)

Y’ym Akang Putyr

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(fuso) (testeira feminina) Tupe

(tapete de fibra de guarumã)

Iapu Huwai Diwa (braçadeira)

Wasankã (cesta tecida de cipó guarumã)

�ambi porá (brincos)

Tujuk paratu (prato de barro p/

torrar farinha)

Akangatar (diadema

masculino)

Jatahu ra’ĩ (caroço de

babaçu feito peão pelas crianças)

Howy me’ẽ ra (brinco feminino feito da pena de anambé-azul)

Pytiwa (cachimbo)

Ara kupe tawa ke (diadema ou cocar de penas de asas de

arara-piranga)

Ungu’a (pilão) Japu ruwái (diadema ou cocar masculino de penas

caudais de japu)

Kúi (cuia) sa’i iankã ra (testeira femenina

feito da pena de saí)

Pander (pote de barro)

�ymbo (linha de algodão para fazer redes)

Kawasu (cabaça)

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Akaju re kwer Jumue’ha, a gente aprende também na festa do caju

O saber-fazer na produção cultural Ka’apor demonstrou o quanto os praticantes e

fazedores desse patrimônio material e imaterial são responsáveis pela atualização da

identidade cultural do grupo perante outras sociedades.

Nota-se, que tanto nos diferentes aspectos da vida cotidiana quanto no desempenho

das funções rituais, constatei diferenças e complementaridade no exercício das atividades no

cotidiano dos grupos locais, seja no domínio feminino quanto no domínio masculino.

O saber-fazer Ka’apor tem sido uma realidade que sempre intermediou os rituais,

sobretudo, conduzindo os momentos de preparação até a execução dos mesmos. Fato que

pode ser evidenciado nos ritos de iniciação, sobretudo, o masculino, apresentado na etnografia

de Huxley (1963), quando se refere a esse rito como um processo que acontecia sem que

houvesse um tempo e um lugar determinado para acontecer, respeitando apenas a chegada do

tempo, no qual o ta’y nuhu se apresentasse em condições de receber o arranjo peniano,

entendido como sinal de iniciação à vida de sawa’e.

O autor continua afirmando que, em se tratando da especificidade da educação ritual,

enquanto processo na sociedade Ka’apor, ele a entende como permanente ao indicar que:

“Desde que não há nenhum culto secreto entre os urubus, não há nenhum agrupamento de

iniciação para rapazes; seu processo de transformação em homens é longo e eles só o realizam

tomando parte em assaltos e matando um prisioneiro inimigo em ritual público.” (p.172)

Para Schaden (1945), os adultos ou os mais experientes nas sociedades indígenas,

devem “munir os jovens de faculdades mágicas a proporcionar-lhes maior segurança e

facilidade na satisfação das necessidades..., transmitir-lhe os padrões de comportamento

peculiares à cultura tribal”, com isso, a “educação pela magia começa logo nos primeiros dias

após o nascimento de uma criança, chegando ao ponto culminante, quando o jovem é

admitido à comunidade dos adultos.” (p. 271)

Por outro lado, Oscar Calávia Sáez (2003), em etnografia construída a partir de sua

experiência junto aos Yaminawa, mostra o quanto o aprendizado ritual é essencial para a

constituição da pessoa nessa sociedade, como segue:

Não é por acaso que os saberes tendem a se concentrar no xamã, que idealmente se relaciona melhor com o outro mundo que com este. Em contraste com esse aprendizado à distância, o aprendizado entre os próximos revela-se sempre como uma empresa limitada ou falida. A aquisição do conhecimento é, como a construção da pessoa, o resultado da absorção de substâncias, mas se nos seus graus básicos ele se faz pela partilha de matérias “doces” – a

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macaxeira, a carne, o leite materno – não pode ir além sem a ingestão de matérias amargas ou picantes, longe do doce lar. Se a aquisição de saber, longe de decorrer pacificamente de uma estrutura social, é fruto de uma ativa política de aprendizado, é porque ela sempre deve esboçar uma estrutura alternativa à do grupo doméstico (p. 20).

O sentido da educação nessas sociedades tem sido a formação do ser independente,

conhecendo as tarefas que lhe competem na perspectiva de adquirir diferentes habilidades.

Todos possuem a responsabilidade de tornar os menos experientes em adultos plenos e, cada

sociedade possui uma dinâmica específica de como, e o momento exato de realizar essas

mudanças. Sendo assim, o processo de educação nos diferentes espaços de socialização

também tem a finalidade de formar o ser na sociedade.

Desde Rousseau (1983), sabemos que a educação da criança deve ser voltada aos

interesses do adulto e da vida adulta, pois o autor considerava cada fase da vida como tendo

características próprias. Tanto o homem como a sociedade se modifica, e a educação é

elemento fundamental para a necessária adaptação a essas modificações. Se cada fase da vida

tem suas características próprias, a educação inicial, não poderia mais ser considerada uma

preparação para a vida, da maneira que era concebida pelos educadores à época.

Nas sociedades indígenas, por exemplo, meninos e meninas são transformados em

adultos plenos pela coletividade, sendo formados pelo conjunto da sociedade. Nessa passagem

é preciso que se complete sua socialização. Com isso, os rituais de iniciação tornam-se um

dos momentos mais importantes na trajetória de vida da pessoa.

Existem cerimônias que cumprem funções rituais, mas que não marcam

definitivamente a passagem. No caso da sociedade não indígena, moças e rapazes passam por

diversos rituais, como formaturas, são calouros e veteranos em diferentes etapas dos estudos,

entre outros. Sendo que cada sociedade acaba por apresentar sua referência de marco temporal

de passagem.

Schaden (1945: 271 -274), afirma que a iniciação do rapaz representa “a perpetuação

da tradição tribal e constitui um elo na corrente que liga os antepassados à posterioridade,

[pois nesse momento] morre o imaturo e nasce o homem maduro, [ou seja,] cria-se uma nova

personalidade com qualidades novas muitas vezes até como nome novo. [Logo], os ritos que

integram a cerimônia de iniciação (...) visam [transformar] o imaturo em indivíduo adulto.

[Quando esse iniciado vai se utilizar] de recursos mágicos, destinados (...) a intensificar as

faculdades mágicas do indivíduo”, preparando-o para a vida de adulto.

Em muitos casos, os rituais de iniciação dos jovens passam por períodos diferentes,

dependendo de como cada sociedade elabora o processo. Em muitos casos os ritos iniciais dos

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jovens encerram-se com a cerimônia do casamento. Por outro lado, entende-se que os

processos de socialização são contínuos, permanentes. É preciso que saibam desenvolver e

assumir os diferentes papéis e funções ao longo da vida.

Para que o menino se torne homem e possa incorporar-se ao universo masculino deve

passar por uma série de exigências, que vão desde obtenção de força física, o domínio das

emoções e, sobretudo, do medo. Também o trabalho exige que domine e aprimore suas

habilidades e, assim, possa assimilar regras e valores culturais.

Contudo, Brandão (1983), reconhece no rito a capacidade de re-elaborar os

conhecimentos, quando os envolvidos os adquirem e os reproduzem culturalmente:

O rito recria o conhecido e, assim, renova a tradição: aquilo que se deve repetir todos os anos como conhecimento, para ser consagrado como valor comum. Renova um saber cuja força é ser o mesmo para ser aceito. Repetir-se até vir a ser, mais do que apenas um saber sobre o sagrado, um saber socialmente consagrado ( p. 35).

Schaden (1945) afirma que umas das características dos processos de aprendizagens

são “os conhecimentos e habilidades ligadas à cultura material”, onde podemos encontrar as

técnicas de fabricação, de manejo dos utensílios, das armas de caça, entre outros. Ao

participar das atividades juntamente com adultos, ao manusear esses instrumentos utilizados

por eles, as crianças podem se tornar “um homem adulto em ponto pequeno.” (p. 271)

No caso dos rituais, especificamente, na iniciação masculina e feminina Ka’apor,

existem elementos da cultura material, como os adornos, os utensílios, os implementos, as

indumentárias, os instrumentos musicais, produzidos ou confeccionados pelos ta’yn nuhu e

jai ramo te sob a orientação dos pais, que posteriormente serão utilizados durante o ritual.

Nesse sentido, é possível reconhecer o caráter pedagógico de cada ritual na medida em

que se identifica uma dinâmica específica, e um encadeamento interno das ações presentes em

cada ritual. Pois, em sua maioria, os rituais, à medida que trazem restrições também evocam

ensinamentos aos envolvidos229.

Segundo Pipihu Ka’apor, entre os principais elementos da cultura material

produzidos, ou confeccionados, pelos pais e filhos nos rituais de iniciação masculina e

feminina, estão:

229 Essas características constituem parte de três momentos concatenados (mais o elemento marcador corporal e saída e; hiperatividade e transbordamento) presente em rituais de passagem e iniciação. Conferir: VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “A fabricação do corpo na sociedade xinguana” In J. P. de Oliveira Filho (org.), Sociedades indígenas e indigenismo no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ/ Editora Marco Zero, 1987, p. 36.

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Ritual Iniciação Masculina Iniciação Feminina

Artefatos Responsável/Função Responsável/Função

Tykajura (colar feminino) O pai faz

Arara (pulseira feita de

pena de arara)

A mãe faz

Howy me’ẽ ra

(brinco feminino feito da

pena de anambé-azul)

O pai faz

Turikupe

(pente feito de pau-brasil

com tala de inajá)

O pai faz

U’y (flecha de ponta de

madeira)

O menino faz e o pai orienta

Yranukakwe

(colar masculino)

O pai faz e o menino ajuda a fazer

Wyrara (capacete) O menino faz e o pai orienta como fazer

Hembé-pipó (labial ou

labrete feito da pluma da

arara)

O pai faz

Inambi putyr

(brinco masculino ou

feminino)

O pai faz

Arara (pulseira feita de

pena de arara)

A mãe faz

Tamok (tamborim) O pai faz e o menino ajuda a fazer

Reconhecendo a importância dos mitos nas sociedades indígenas como forma de

significar fatos e fenômenos concretos, Huxley (1963) revela em sua densa etnografia sobre

mitos Ka’apor – mais especificamente, quando descreve o mito dos gêmeos - a relevância que

essa sociedade sempre deu à cultura material, sobretudo, as complexas relações construídas

com os artefatos pelas pessoas, haja vista, as relações estabelecidas pelos pais com os filhos a

partir do nascimento: “Estava fazendo arcos para os filhos, confissão tácita de paternidade,

pois os homens, não somente fazem arcos e flechas para os filhos, como os presenteiam com

miniaturas, charutos de tawari, bastões para fazer fogo, penas de arara, logo que nascem.” ( p.

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250)

Por fim, há que se referendar a idéia de Schaden que na função pedagógica do ritual “o

homem é o animal paradoxal que não se conhece a si mesmo, que aprende por intermédio da

imagem do antepassado na mais séria de todas as atividades – o rito.” (p.282).

Portanto, as diversas sociabilidades cotidianas e rituais, intermediadas pelo saber-fazer

Ka’apor, demonstraram que o Ipy’a pe ukwa katu te’e ixo, uma possibilidade de pensar o ser

Ka’apor a partir do saber associado aos sentidos é um dos espaços privilegiados na cultura do

grupo que possibilita Ka’apor jumu’e ukwa ha, ele aprender a ser Ka’apor na “aldeia”.

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Jumu’e ha Ka’apor namõ

O que ele aprendeu com Ka’apor

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A experiência etnográfica oportunizada pelos Ka’apor durante estes dois anos

acrescentaram elementos primordiais para a formação de minha pessoa enquanto aprendiz de

antropólogo, entendendo a pessoa enquanto ser em construção permanente: pois, ao mesmo

que é, deixa de ser, se refaz, se reconstrói, torna a ser.

À medida que procurava conhecer como os Ka’apor se pensam como pessoa, me

deparava com a possibilidade de rever, repensar os parâmetros utilizados por mim para

afirmar ou identificar o que sou nesta sociedade. Pois, a cada momento que os conhecia,

identificava minhas possibilidades e limites para tal exercício. Mas, para isso é preciso ter

clareza da trajetória percorrida, que se traduziu [no] pe rupi awa ta (o caminho que percorri).

Contudo, os Ka’apor têm mostrado ao longo desses anos que desde os possíveis

territórios originários, no Pará, até o atual território, no Maranhão, tiveram que realizar longas

negociações com outras sociedades indígenas e não indígenas para se fixarem no território

atual.

E desde a minha iniciação às sociedades indígenas do Gurupi fui aperfeiçoando meus

aprendizados, minhas práticas na interlocução com os grupos locais, por isso afirmarem

muitas vezes para mim: ko ramo ihẽ ke jumu’e watahar rehe (ele vai caminhando, fazendo o

caminho).

Porquanto, esses caminhos foram percorridos mediante desafios demandados dos

grupos locais por políticas públicas, inicialmente para as áreas de saúde e saneamento,

posteriormente, por apoio e defesa à integridade física e moral de lideranças ameaçadas por

pessoas e grupos madeireiros; por apoio à revitalização e manutenção da arte e rituais

tradicionais através de projetos de apoio e incentivo à produção da cultura material para uso

nas atividades de subsistência, pessoal e ritual. Foi jande rehe kamarar uhyk uwyr (como ele

chegou até nós), expressão atualizada pelos Ka’apor que traduziu minha chegada no

território.

Experiência que implicou em inúmeras travessias: geográficas (do Guamá - Gurupi, no

Pará para o Alto Turiaçu - Gurupi, no Maranhão), de grupo interlocutor (de Tembé para

Ka’apor), de áreas de conhecimentos (da Pedagogia para a Antropologia), de área de estudo

(da educação para etnologia indígena), de área de atuação profissional (da educação escolar

indígena para atenção à saúde, saneamento nos grupos locais, defesa do patrimônio cultural -

recursos naturais, arte e saberes tradicionais, apoio à organização política do povo). Dessa

forma fui atravessando o rio Gurupi, como verbalizam: parana aha oho (ele atravessou o rio

Gurupi).

E foi com a perspectiva de que pe rupi jahik ta jaho (por ai a gente chega lá) que

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estabeleci um diálogo com os protagonistas essenciais deste estudo para chegar como se

pensam enquanto pessoas que se diferenciam em relação às demais sociedades indígenas por

formas especificas de significar o ser – pessoa e as ações em relações com as pessoas.

Após uma visão universalista sobre a sociedade Ka’apor, encontrei etnografias que

apresentaram ser possível compreender a natureza do ser a partir do pensamento nativo das

diferentes sociedades Tupi amazônicas. Se tornaram fontes essenciais para conhecer a pessoa

Ka’apor em diferentes aspectos de sua cultura. Foi hape (no caminho deles), ou no caminho

de etnografias que constituíram um possível perspectivismo ameríndio que consegui

visualizar nas realidades e interlocuções, aspectos reveladores da pessoa Ka’apor, seja quando

warahy ‘ar (o sol está em cima), Mija ame’ẽ tekoha pe ta irer re muĩ ta my (é quando se dá

nome na aldeia) ou Ipy’a pe ukwa katu te’e ixo ( ele sabe por si mesmo).

Logo, é possível conhecer os Ka’apor na forma que classificam e denominam as

diferentes classes de idade, a forma que buscaram para atribuir nomes aos ta’yn u’ar ou

quando estão na condição de herayr anga e herandir anga e atribuem o saber à corporeidade

ou que os saberes advêm do corpo. Logo, entendi que o corpo tanto para os Ka’apor quanto

para muitas sociedades indígenas, pode ser compreendido a partir dessas diferentes formas de

reconhecer a pessoa. Haja vista, esses aspectos estarem intrinsecamente relacionados à

corporeidade do ser.

Contudo, deduzi que reconhecer o ipy’a como fonte de saberes é reconhecer que o

corpo acumula conhecimentos e habilidades específicas; reconhecendo a pessoa enquanto ser

de possibilidades em relação ao lugar onde vivem.

Considerando o sábio exemplo dos Kaxinawa que “o corpo precisa aprender para

poder agir socialmente”230 e que o ser se torna pessoa para os Ka’apor quando mujã ou ma’e

ma’e (ele faz). Considerando a interconexão corpo, sentido e saberes, percebeu-se uma

estreita relação entre essas dimensões, quando o conhecimento passa a ser exteriorizado,

dando sentido a ação social pela força física, subsidiando assim o sentido atribuído pelos

Ka’apor a essa tríplice relação: ihe re te ipo ke mu’e mujã ha rehe (o corpo ensina fazer).

Além desse princípio fundante do aprender pela corporeidade, reconheci outros

princípios norteadores do tornar-se Ka’apor pela ação social, entre eles: a’e jumu’e we ixo tĩ

(ele está sempre aprendendo), ukwa ta já (ele está aprendendo, fazendo).

Esses princípios orientam as lógicas e parâmetros pedagógicos próprios do saber-fazer

Ka’apor. Logo, diferentemente de nossa sociedade em que o saber está genericamente

230 Cf. McCALLUM, 1998: 227.

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associado a um espaço formal ou institucional, a escola; em que o conhecimento caracteriza-

se ou está orientado apenas pelo conhecimento racional, lógico, não sensitivo e sensível,

científico, tecnológico ou por uma razão instrumental. Pois, para a maioria das sociedades

indígenas, o saber tem se fundamentado nas cosmologias, narrativas, imagens e os sentidos.

Apreendi nessa experiência etnográfica, que é possível que os Ka’apor continuem

reconhecendo a corporeidade como uma fonte de saberes, capaz de constituir um saber-fazer

próprio em suas diversas sociabilidades; continuem atribuindo sentido às práticas cotidianas e

rituais que são atualizadas em seus grupos locais no território, atribuindo assim, sentido à

vida. Por isso, privilegiarem o grupo local como espaço legítimo da formação da pessoa nesta

sociedade, quando entendem que a’e jumu’e Ka’apor wã tekoha pe ( ele aprende a ser

Ka’apor na aldeia).

Entre as inúmeras possibilidades de compreender o eu, a pessoa Ka’apor estão as

ações do cotidiano e ritual, sobretudo, as ações inerentes às diferentes classes de idade ou

presente no rito de nominação. Por outro lado, é possível compreender a pessoa não somente

pelo corpo, mas por sua corporeidade. Pois, à medida que os Ka’apor associam o Ipy’a aos

saberes, às emoções, apresentam essas expressões como possibilidade de reconhecer o que o

ser é (essência) – a pessoa; dessa forma, a pessoa se exprime ou diz a si mesmo.

Por fim, reconheço a existência de outros aspectos da cultura dessa sociedade que eles

têm significado, que não foram apresentados neste estudo, que expressam a compreensão da

pessoa Ka’apor. Assim como, reconheço que os espaços de socialização e sociabilidades

apresentadas neste estudo como algumas das possibilidades de externalizar o saber-fazer

Ka’apor.

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Glossário

A’i – Mulheres com mais de quarenta anos.

Aha – Atravessar um obstáculo à frente; quando vir acompanhado de oho expressa o termo

ele atravessa.

Akaju – Caju, podendo ser o “caju da roça” ou “da aldeia”.

Akaju’i - Caju do mato, coletado no período de janeiro a março.

Akaju re kwer – Festa do caju, evento ou cerimônia tradicional em que acontecem os ritos de

formação da menina-moça; a posse do novo cacique; os casamentos; a formação do

rapaz e o reconhecimento ou a confissão de novos guerreiros.

Akwar – Buraco; orifício.

Amuhawareta sawa’e – Rapazes reconhecidos como guerreiros após uma batalha.

Anga – Se referem ao tempo.

Apo – O tempo presente, o agora.

Arara – Adorno para os braços ou pulseira para uso masculino ou feminino.

Awa – Homem.

Badogue – Armadilha feita com fios, pequenos canos de aço, como que uma imitação de

canos de uma espingarda.

Hamy – Tipóia, uma espécie de faixa tecida, de largura variada, passada no ombro; usada

como sustentar a criança.

Hankã – Riacho (quando se lembram do Rio Gurupi), aos igarapés que cortam o território

quando freqüentado pelo grupo nos períodos de inverno para atividades diversas.

Hape – Caminho que julgam ser seguro.

Henda – Lugar; “aldeia”.

Herandir anga – Criança do sexo feminino em fase de receber o nome no ritual de

nominação.

Herayr anga – Criança do sexo masculino em fase de receber o nome no ritual de nominação.

Hete – Corpo dele.

Hok – Casa.

Hymbo – Talo da planta.

Ihê – Pronome pessoal eu; ou ao possessivo minha.

Ihẽ hete - Meu corpo.

Iho pihã – Buscar água.

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Imãi anga - Pessoa do sexo feminino que acompanha o rito de nominação junto aos pais da

criança.

Imãi – Mãe dele.

Imembyr - Filho dela.

Ipái – Pai dele.

Ipái anga - Pessoa do sexo masculino escolhida pelos pais para nomear o filho ou filha.

Ipo te’e pandu – Pessoas surdo-mudas.

Ipái anga – Pessoa do sexo masculino escolhida pelos pais para nomear o filho ou filha na

Festa do Kawĩ.

Ipy’a – Fígado dele.

Ipy’a imembek te’e – Ele tem medo ou está com medo.

Ipy’a katu – Ele ama ou gosta de alguém.

Ipy’a ke te’e huwy ehe – Ele está muito aborrecido, zangado.

Ipy’a mondo ehe – Ele está com saudades.

Ipy’a pe har pandu – Ele fala de coração.

Ipy’a pe ukwa ukwa uĩ - Ele está pensando.

Imãi anga – Pessoa do sexo feminino escolhida pelos pais para nomear o filho ou filha na

Festa do Kawĩ.

Inambu pytã - Pássaro inambu-galinha.

Iriwar – Divindade feminina, indígena, relacionada à água.

Ixyha – Rede dele.

Jai ramõ te – Menina-moça entre treze e quinze anos que apresentam sinais da primeira

menstruação, aptas aos ritos de reclusão.

Jahy pihun – Noites “escuras” ou de lua nova.

Jahy wahu – Noites “claras” ou de lua cheia.

Jande jaxo – Pronome nós ou aos verbos na 1ª pessoa do plural.

Jandyro’y – Madeira andiroba.

Jape’a – Lenha.

Jaxer – Estamos em perigo.

Je’êha – A língua Ka’apor; ou falar sobre a língua.

Jumu’e – Aprender.

Jumu’e ha – Estudo.

Jumumbe – Ele se agacha; ele se dobra.

Ka’apor ta – Os Ka’apor em relação a outras pessoas de outras etnias.

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Ka’ate – Mata.

Kamambu – Pequeno fruto silvestre utilizado como isca para a captura da espécie de peixe

pacu e outras espécies de peixes que pode ser encontrado apenas em rios da região.

Conhecido também por camapu.

Kamarar – Pessoa que pode ser reconhecida como amigo; companheiro; parente próximo; ou

alguém de outra etnia. Porém, a condição de parente próximo ou de outra etnia só é

acionada na presença da pessoa.

Kamirik – Ele amassa.

Karaí – Os não Ka’apor ou “branco”.

Karapatu – Espécie de semente, que descascada é utilizada como isca para a captura de

peixes. Conhecida também por carrapato.

Katu – Bom; bem; bonito; uma situação de satisfação com algo.

Kawasu – Cabaça; vasilhame feito de fruto utilizado como recipiente para guardar água.

Kekar – Caçar.

Kiha ukweroko – Dormindo.

Kytyk – Ele rala; expressão usada para se referir à pessoa que rala o tubérculo da mandioca.

Kúi – Cuia; recipiente feito de fruto maduro da cuieira utilizado para guardar ou servir

alimentos.

Kunjantãi ra’yr – Menina até mais ou menos oito anos.

Kunami – Espécie de planta em que suas folhas ou frutos são utilizados como paralisantes de

peixes na pescaria, conhecida também por cunabi.

Kunami pu’a – Pequenas bolas de farinha de mandioca misturados ao kunami, sendo que

depois de preparados, são jogados na água com intuito de atrair os peixes. E assim que

engolidos por eles, passam a paralisá-los, possibilitando assim, a captura. Conhecido

também por cunabi redondo.

Kunjã – Mulher; a senhora; à mãe.

Kunjantãi – Menina em que os seios começam aparecer.

Kunjã ta pame – Grupo de mulheres ou às mulheres.

Kupixa – Roça.

Kurumĩ – Menino até mais ou menos doze anos.

Kurumĩ ra’yr – Menino de mais ou menos oito anos.

Kỹ - Vocábulo que indica uma intenção definitiva.

Kyha – Rede.

Kwarahi – O sol.

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Majyk – Ele amassa.

Mandeju – Algodão.

Mandiaka – Mandiocaba.

Mandi’ok ou Mani’ok – Mandioca.

Mante we me’ẽ - Alguém é perigoso; transmite ameaça para a pessoa e para o grupo.

Matyr – Colhe algo, faz colheita.

Mbeju – Massa de beiju, preparada a partir da massa de mandioca fermentada.

Mu’e – Ensinar.

Mui – Puxar vara de pescar.

Mujã ou Ma’e ma’e – Ele faz.

Mujekwa – Conhecer.

Mukatu Pejot – O tempo do contato.

Mupururuk – Período de mistura, de fermentação da massa de mandioca.

Myra – Madeiras ou árvores.

Myra rehe har tanxĩ - Vara com um arpão de pesca apropriada para fisgar o peixe, conhecida

também como lança.

(e – Correspondente ao pronome você.

(gã uhem py rahã – O princípio, o início, o primeiro.

Oho – Ele está saindo; Ele vai.

Ok – Casa.

Owi – Palmeira conhecida como ubim, muita utilizada para cobrir casas.

Pa’i – Pessoa ligada a uma instituição religiosa não indígena, podendo ser um missionário (a),

padre ou religiosa (freira).

Panakũ – Cesto tecido com cipó ou palmeiras, conhecido também como Jamaxi.

Pander – Panela.

Pako – Banana.

Parana – O Rio Gurupi.

Paratu – Prato.

Paratu rok – Casa do forno de beneficiamento da mandioca para fazer a farinha.

Pejot – Naquele tempo.

Pinda – Anzol.

Pindaham – Linha de pescar.

Pinda’y – Vara de pau ou cipó para fixar o anzol conhecida também como caniço.

Pira – Peixe.

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Pira iki – Pescando.

Pomyk – Tecer, fiar.

Pytym – Fumo usado pelo pajé durante os rituais.

Pytymyr – Cigarro feito da árvore têxtil, onde se retira a entrecasca para enrolar cigarros

usados pelos pajés ou lideranças Ka’apor em rituais diversos.

Renda – Lugar.

Rehe – Vocábulo correspondente à preposição em, para.

Ru – Pai.

Sawa’e – Rapaz ou homem que tem seu prepúcio já atado ou um arranjo de decoro; rapaz

orientado pelo cacique a não manter relações sexuais enquanto não aparecerem seus

pêlos pubianos.

Sawa’e ta pame – Grupo de homens ou aos homens.

Sawa’e ra’yr – Menino ou rapaz que foi revelado perante a comunidade como guerreiro.

So’i – Minhocas.

So’o – Caça.

Tajahu – Porco do mato.

Taji’y – Madeira pau d’arco.

Ta’yn – Criança.

Ta’yn nuhu – Menino-rapaz que se encontra na ocasião de ter seu prepúcio atado pelo tuxaua

ou chefe guerreiro da “aldeia”.

Ta’yn ta pame – Grupo de crianças ou às crianças.

Ta’yn u’ar – Criança ao nascer; ocasião em que os pais começam o resguardo.

Ta’yn mãi - A mãe da criança.

Ta’yn ru – O pai da criança.

Ta’yr - Filho dele.

Tamũi – Homens com mais de quarenta anos que são reconhecidos como grandes experientes

e guardiões de saberes tradicional.

Tamũi upakwa – Pessoa idosa, “velha” (caboco velho) que conta histórias, repassa

informações sobre os antigos Ka’apor; àquele que “ensina tudo”.

Tukui – Local que funciona como abrigo para as famílias durante as festas, cerimônias,

rituais.

Tupã-ra'ir – Entidade mítica filho do trovão.

Tapia’ĩ – Formiga.

Taramo’ar – Nasceu hoje.

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Tikwar – Farinha molhada, usada como um dos principais alimentos consumidos pelos Ka’apor

Tupe – Esteiras de fibra de guarumã.

Tuwete – Pessoas adultas.

U’ar – Quando uma criança nasce, “cai”, sai da placenta, do útero por ocasião do nascimento;

nasce.

Upakwa – Todo mundo ensina.

Uhem – Nascer; nascimento.

Uhyk – Referem-se quando alguém chega; estão satisfeito com a chegada de algo ou alguém.

Ukwa – Ele sabe.

Ukwa katu – Ele sabe bem.

Ukwa ukwa uĩ – Ele está pensando sobre.

U’i – Farinha.

Ujan – Correr.

Upa – Fim; terminou; parou.

Urupen ou Urupẽ - Peneira de cipó guarumã.

Uwyr – Ele vem.

U’yhu – Flecha grande.

U’yhu ra’yr – Espingarda pequena.

Wapik – Ele senta.

Warahy – O sol.

Warahy’ar – O sol está em cima; o sol está em uma posição equivale a noventa graus.

Wasankã - Cesta tecida de cipó guarumã.

Wata – Caminhar ou ele anda.

Waxi – Jabuti.

Wyrahu Kangwer - Pequena flauta de tíbia de gavião real.

Y man te – Tempos passados; há muito tempo atrás.

Ypa – Lagos encontrado no território por ocasião do verão.

Yrykywa’y – Madeira maçaranduba.

Ywykwar - Poço.

Xiape’a matyr – Tira lenha.

Ximbo - Cipó ou raízes usadas para paralisar os peixes.

Xipa - Abrigo/acampamento provisório feito de palmeira.

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