ipea livro federalismo a brasileira v08

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Volume 8 Diálogos para o Desenvolvimento Volume 8 Organizadores Paulo de Tarso Frazão Linhares Constantino Cronemberger Mendes Antonio Lassance Federalismo à Brasileira questões para discussão Federalismo à Brasileira questões para discussão

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Federalismo

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  • Volume 8

    Dilogos para o Desenvolvimento

    Volume 8

    OrganizadoresPaulo de Tarso Frazo Linhares

    Constantino Cronemberger MendesAntonio Lassance

    Federalismo Brasileiraquestes para discussoFederalismo Brasileiraquestes para discusso

  • A temtica do desenvolvimento brasileiro em algumas de suas mais importantes dimenses de anlise e condies de realizao foi eleita, por meio de um processo de planejamento estratgico interno, de natureza contnua e participativa, como principal mote das atividades e projetos do Ipea ao longo do trinio 2008-2010.

    Inscrito como misso institucional produzir, articular e disseminar conhecimento para aperfeioar as polticas pblicas e contribuir para o planejamento do desenvolvimento bra-sileiro , este mote pretende integrar-se ao cotidiano do instituto pela promoo de iniciati-vas vrias, entre as quais se destaca o projeto Perspectivas do Desenvolvimento Brasileiro, do qual este livro faz parte.

    O projeto tem por objetivo servir como plataforma de sistematizao e reflexo acerca dos entraves e oportunidades do desenvolvimento nacional. Para tanto, entre as atividades que o compem incluem-se seminrios de abordagens amplas, oficinas temticas especfi-cas, assim como cursos de aperfeioamento em torno do desenvolvimento e publicaes sobre temas afins. Trata-se de projeto sabidamente ambicioso e complexo, mas indispens-vel para fornecer ao Brasil conhecimento crtico tomada de posio diante dos desafios da contemporaneidade mundial.

    Com isso, acredita-se que o Ipea conseguir, ao longo do tempo, dar cabo dos imensos desafios que esto colocados para a instituio no perodo vindouro, a saber:

    9 formular estratgias de desenvolvimento nacional em dilogo com atores sociais; 9 fortalecer sua integrao institucional junto ao governo federal; 9 caracterizar-se enquanto indutor da gesto pblica do conhecimento sobre desenvolvimento; 9 ampliar sua participao no debate internacional sobre desenvolvimento; e 9 promover seu fortalecimento institucional.

  • Dilogos para o Desenvolvimento

    OrganizadoresPaulo de Tarso Frazo Linhares

    Constantino Cronemberger MendesAntonio Lassance

    Volume 8

    Federalismo Brasileiraquestes para discusso

  • Governo Federal

    Secretaria de Assuntos Estratgicos da Presidncia da Repblica Ministro Wellington Moreira Franco

    Fundao pbl ica v inculada Secretar ia de Assuntos Estratgicos da Presidncia da Repblica, o Ipea fornece suporte tcnico e institucional s aes governamentais possibilitando a formulao de inmeras polticas pblicas e programas de desenvolvimento brasi leiro e disponibi l iza, para a sociedade, pesquisas e estudos realizados por seus tcnicos.

    PresidenteMarcelo Crtes Neri

    Diretor de Desenvolvimento InstitucionalLuiz Cezar Loureiro de Azeredo

    Diretor de Estudos e Relaes Econmicas e Polticas InternacionaisRenato Coelho Baumann das Neves

    Diretor de Estudos e Polticas do Estado, das Instituies e da DemocraciaAlexandre de vila Gomide

    Diretor de Estudos e PolticasMacroeconmicas, SubstitutoClaudio Roberto Amitrano

    Diretor de Estudos e Polticas Regionais,Urbanas e AmbientaisFrancisco de Assis Costa

    Diretora de Estudos e Polticas Setoriaisde Inovao, Regulao e InfraestruturaFernanda De Negri

    Diretor de Estudos e Polticas SociaisRafael Guerreiro Osorio

    Chefe de GabineteSergei Suarez Dillon Soares

    Assessor-chefe de Imprensa e ComunicaoJoo Cludio Garcia Rodrigues Lima

    Ouvidoria: http://www.ipea.gov.br/ouvidoriaURL: http://www.ipea.gov.br

  • Dilogos para o Desenvolvimento

    OrganizadoresPaulo de Tarso Frazo Linhares

    Constantino Cronemberger MendesAntonio Lassance

    Braslia, 2012

    Volume 8

    Federalismo Brasileiraquestes para discusso

  • Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada ipea 2012

    ProjetoPerspectivas do Desenvolvimento Brasileiro Srie Dilogos para o Desenvolvimento

    Volume 8Federalismo Brasileira: questes para discusso

    OrganizadoresPaulo de Tarso Frazo LinharesConstantino Cronemberger MendesAntonio Lassance

    Equipe TcnicaPaulo de Tarso Frazo Soares [email protected] de Planejamento e Pesquisa da Diretoria de Estudos e Polticas do Estado, das Instituies e da Democracia (Diest) do Ipea e coordenador tcnico do Grupo de Trabalho Interdiretorias sobre Federalismo do instituto.

    Constantino Cronemberger [email protected] de Planejamento e Pesquisa da Diretoria de Estudos e Polticas do Estado, das Instituies e da Democracia (Diest) do Ipea.

    Antonio [email protected] de Planejamento e Pesquisa da Diretoria de Estudos e Polticas do Estado, das Instituies e da Democracia (Diest) do Ipea.

    As opinies emitidas nesta publicao so de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, no exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada ou da Secretaria de Assuntos Estratgicos da Presidncia da Repblica.

    permitida a reproduo deste texto e dos dados nele contidos, desde que citada a fonte. Reprodues para fins comerciais so proibidas.

    Federalismo brasileira : questes para discusso / Organizadores: Paulo de Tarso Frazo Linhares, Constantino Cronemberger Mendes, Antonio Lassance. Braslia : Ipea, 2012. v. 8 (249 p.) : grfs., mapas, tabs. (Dilogos parao Desenvolvimento)

    Inclui bibliografia. Projeto Perspectivas do Desenvolvimento Brasileiro. ISBN 978-85-7811-142-7

    1. Federalismo. 2. Estado. 3. Brasil. I. Linhares, Paulo de Tarso Frazo. II. Mendes, Constantino Cronemberger. III. Lassance, Antonio. IV. Institutode Pesquisa Econmica Aplicada. CDD 342.042

  • SUMRIO

    APRESENTAO ................................................................................................................................ 7

    INTRODUO .................................................................................................................................... 9

    PARTE I: FEDERALISMO E POLTICAS PBLICASINTRODUO .................................................................................................................................. 19

    CAPTULO 1 FEDERALISMO NO BRASIL: TRAJETRIA INSTITUCIONAL E ALTERNATIVAS PARA UM NOVO PATAMAR DE CONSTRUO DO ESTADO .................................................................................... 23Antonio Lassance

    CAPTULO 2 COOPERAO FEDERATIVA: A FORMAO DE CONSRCIOS ENTRE ENTES PBLICOS NO BRASIL ...................................................................................................37Paulo de Tarso LinharesAlexandre dos Santos CunhaAna Paula Lima Ferreira

    CAPTULO 3 A PROGRESSO DO CARTER FEDERATIVO DAS RELAES INSTITUCIONAIS NO SUS ....... 55Roberto Passos Nogueira

    CAPTULO 4 PROGRAMA FEDERAL DE APOIO GESTO URBANA MUNICIPAL: SITUAO E PERSPECTIVAS..........................................................................................59Rafael H. Moraes PereiraMarco Aurlio CostaErnesto Pereira GalindoRenato Balbim

    PARTE II: FEDERALISMO E TERRITRIOINTRODUO .................................................................................................................................. 87

    CAPTULO 5 O TERRITRIO E O ARRANJO FEDERATIVO PARA O DESENVOLVIMENTO BRASILEIRO: O CASO DO NORDESTE ................................................................................................89Constantino Cronemberger Mendes

    CAPTULO 6 DESAFIOS CONTEMPORNEOS NA GESTO DAS REGIES METROPOLITANAS ...............................................................................113Renato BalbimMaria Fernanda BeckerMarco Aurlio CostaMiguel Matteo

  • PARTE III: FEDERALISMO FISCAL OS CRITRIOS PARA A REPARTIO DO FUNDO DE PARTICIPAO DOS ESTADOS

    INTRODUO ................................................................................................................................ 147

    CAPTULO 7 FUNDO DE PARTICIPAO DOS ESTADOS: SUGESTO DE NOVOS CRITRIOS DE PARTILHA QUE ATENDAM DETERMINAO DO STF ...............................................149Marcos Jos Mendes

    CAPTULO 8 RATEIO DO FUNDO DE PARTICIPAO DOS ESTADOS E DO DISTRITO FEDERAL: AVALIAO DE IMPACTO E DE VIABILIDADE LEGISLATIVA DAS PROPOSTAS AVENTADAS ................................................................................... 167Carlos Alexandre A. Rocha

    CAPTULO 9 PESOS REGIONAIS NA FUNO DE BEM-ESTAR SOCIAL: UMA APLICAO PARA O FUNDO DE PARTICIPAO DOS ESTADOS ..................................................... 205Roberta da Silva VieiraLeonardo Monteiro Monasterio

    CAPTULO 10 A RESTRIO ORAMENTRIA MALEVEL NA ABORDAGEM DA SEGUNDA GERAO DA TEORIA DO FEDERALISMO FISCAL....................................................... 233Rogrio Boueri

  • APRESENTAO

    O federalismo constitui um dos traos caractersticos do Estado brasileiro desde a Proclamao da Repblica, em 1889. Atualmente, sua peculiar distribuio de recursos polticos e fiscais apresenta-se simultaneamente como fator de dinamis-mo e constrangimento para boa parte do que se convencionou chamar ciclo das polticas pblicas: desde o processo decisrio, no qual necessidades sociais so includas na agenda de prioridades do poder pblico e aes para atend-las so desenhadas, at as etapas de planejamento, implementao, monitoramento, avaliao, auditoria e reviso destas aes.

    Identificar as implicaes e os condicionamentos para a efetividade dessas polticas pblicas no Brasil requer compreender os intrincados mecanismos fede-rativos que orientam a ao dos atores, dentro e fora do Estado, em cada uma das Unidades da Federao e nas relaes de cooperao e competio entre elas, ao longo daquelas etapas. Coerentemente com sua misso institucional, a tarefa que se apresenta para o Ipea neste campo produzir, articular e disseminar conheci-mentos sobre o arranjo poltico do Estado brasileiro, de maneira a tornar nosso federalismo um meio para a promoo do desenvolvimento.

    Esse esforo do Ipea associa-se a uma longa tradio de pensamento que, embora heterognea quanto a fontes e matrizes tericas e polticas, possui como ponto comum a possibilidade de compreender o desenvolvimento enquanto um processo que vai alm da esfera econmica. Tambm afirma a necessidade de compreender os vnculos do desenvolvimento com a poltica, a participao de cidados nas decises de interesse comum e a forma como recursos polticos e financeiros so distribudos no interior do Estado.

    No Brasil, desde o sculo XIX, demandas por maior autonomia de governos regionais eram pensadas e defendidas como meio para a promoo das melhorias impulsionadas pela ao do Estado. Como afirmou Celso Furtado em 1984, em nosso Pas a luta pelo federalismo est principalmente ligada s aspiraes de desenvolvimento das distintas reas do imenso territrio que o forma. E mais, sustenta que o federalismo a nica forma de se contrapesar o centralismo que est inscrito nas estruturas econmicas que se instalaram no Pas. Assim, no apenas a poltica deve ser incorporada anlise do desenvolvimento, mas tambm o federalismo deve ser visto como uma forma virtuosa para a distribuio geogr-fica da riqueza e da renda.

    Dada a importncia do tema e sua abrangncia, existem pesquisas sobre aspectos do federalismo brasileiro em curso em todas as diretorias do Ipea, o que requer coordenao dos projetos e das iniciativas desenvolvidas por tcni-cos e reas especficas de sua estrutura. Em nome da integrao destes esforos

  • e para impulsionar as aes relacionadas ao tema, a atual direo do instituto promoveu a criao do Grupo de Trabalho Interdiretorias sobre Federalismo (GT Federalismo), que tem neste livro um dos produtos de seu trabalho.

    O GT Federalismo no mediu esforos no que tange articulao dessas pesquisas, em que pesem a amplitude e a relevncia das dimenses nelas ana-lisadas. Por conseguinte, buscou-se tambm o envolvimento de instituies re-presentativas das trs esferas de governo, as quais participaram e interferiram de diferentes formas no temrio e no contedo dos textos e que, portanto, devem ser aqui mencionadas, ainda que sob o risco de que seu simples registro no permita dar o devido relevo a contribuies verdadeiramente decisivas. No m-bito municipal, a Frente Nacional de Prefeitos; o Observatrio dos Consrcios Pblicos e do Federalismo; as prefeituras de Jaboato dos Guararapes, Congo-nhas do Campo, Aracaju e Ipojuca; o Consrcio Intermunicipal da Regio Leste Fluminense (Conleste); e o Consrcio Pblico para o Desenvolvimento do Alto Paraopeba (CODAP). No mbito estadual, o Conselho Nacional de Poltica Fa-zendria (Confaz); a Agncia Estadual de Planejamento e Pesquisas de Pernambu-co (Condepe-Fidem); e a Fundao Joo Pinheiro, de Minas Gerais. Por fim, no mbito federal, a Secretaria de Relaes Institucionais, especialmente a Subche-fia de Assuntos Federativos; a Petrobras; o Banco Nacional do Desenvolvimento Econmico e Social (BNDES); o Banco do Nordeste; a Superintendncia para o Desenvolvimento do Nordeste (Sudene); e o Senado Federal.

    Marcelo Crtes NeriPresidente do Ipea

  • INTRODUO

    A organizao federativa constitui um arranjo estatal peculiar em funo da auto-nomia poltica e financeira conferida a cada ente. Suas consequncias so amplas, tanto em aspectos positivos quanto negativos. A dinmica do Estado federativo impulsionada por mecanismos de responsividade e accountability, por um lado, e sistemas de freios e contrapesos impostos pela atuao dos diferentes atores e inte-resses nas diversas arenas em que se confrontam, por outro. Compreender os meca-nismos polticos que explicam os resultados obtidos em uma federao , portanto, uma tarefa complexa e requer conhecer as especificidades de cada pas, posto que os 28 estados organizados dentro deste modelo no mundo constituem casos nicos.

    A trajetria do federalismo republicano brasileiro pautada por tenses e conflitos, avanos e retrocessos, entre um modelo de Estado centralizado, da uni-dade e da integrao nacional e, por seu turno, um modelo descentralizado, da autonomia e da diversificao regional. Diversos ciclos ou etapas histricas po-dem ser caracterizados desde a Proclamao da Repblica Federativa, em 1889, tendendo mais ou menos para um dos dois polos. Este movimento pendular no parece ter atingido, ainda, um formato definitivo, mesmo porque ele permeado por contradies e controvrsias de interesses, de escolhas e de ideias. Entre os diversos problemas do Brasil, a despeito dos avanos inegveis, destaca-se a inca-pacidade de incorporar, em bases sociais amplas, os valores ou princpios intrnse-cos ao modelo federativo-republicano: democracia, liberdade, justia, igualdade, progresso, desenvolvimento, entre outros.

    Mesmo hoje, aps o incio de um novo ciclo de descentralizao federativa, consolidado e ampliado com a Constituio Federal de 1988, em que os municpios so reconhecidos, de maneira indita, como entes federados autnomos, essa tenso assume novos contornos, e as contradies e os conflitos persistem em nveis ainda altos. A estruturao de um federalismo mais equilibrado no uma meta importante somente para o Brasil, mas em todos os pases federativos do mundo. Aqui, porm, essa tenso assume caractersticas especficas em face, principalmente, das graves desi-gualdades sociais e regionais existentes no pas. No grupo das 20 maiores economias do mundo (Grupo dos 20 G20) o Brasil s no est em pior situao nesta rea que a frica do Sul, outro pas que adotou o federalismo dentro do grupo BRICS (a nica exceo a China), na sequncia de sua democratizao ps-apartheid.

    Associado desigualdade entre as regies brasileiras, nosso federalismo tem tido que se adequar a uma continuada diversificao das preferncias de uma so-ciedade crescentemente mais complexa e que demanda, por meio dos instrumen-tos criados aps 1988, uma atuao da administrao pblica simultaneamente universal e atenta s peculiaridades locais, produzindo novas presses sobre o Estado brasileiro.

  • 10 Federalismo Brasileira: questes para discusso

    O jogo combinado das tenses e das novas demandas vem revelando uma caracterstica especialmente dinmica do federalismo do Brasil, capaz de pro-porcionar, no campo das polticas pblicas, o espao de experimentaes que se consolidaram em alternativas inovadoras e, por vezes, mesmo radicais aos velhos e estruturais problemas da sociedade brasileira. O Programa Bolsa Famlia e as inmeras administraes que adotaram mecanismos de oramentos participati-vos so seus exemplos mais conhecidos. Em que pese o quanto ainda se tem que avanar para uma melhor coordenao e cooperao entre os entes federados no Brasil, o modelo progressivamente implementado de provimento do servio de sade, por meio do Sistema nico de Sade (SUS), demonstra que, tambm neste campo, j no se est no ponto de partida.

    A compreenso do modelo federativo brasileiro expe seus traos especficos quando tomado em torno de suas diversas componentes, em vrios aspectos tratados e enfatizados neste livro. Adentra-se, pois, em elementos mais especficos que podem ser vistos, simultnea e metaforicamente, como as partes do quebra-cabea do arran-jo federativo do Brasil, na medida em que no se encaixam de forma simples e au-tomtica umas s outras; e, igualmente, como as ferramentas para o aprimoramento dos mecanismos federativos brasileiros, pois por meio de sua manipulao que o pas ser capaz de produzir melhores resultados no desempenho das funes para as quais o Estado brasileiro socialmente demandado a cumprir.

    A primeira seo (parte 1) traa um perfil das polticas pblicas nacionais. Compreend-las, com o intuito de aprimor-las, impe que elas sejam observadas em perspectiva histrica, posto que sejam, elas prprias, resultado de aes que se inserem em momentos pretritos. Por esta razo, a seo e, por ser a primeira, o prprio livro, inicia-se pela anlise da configurao histrico-institucional do fede-ralismo brasileiro.

    A histria do federalismo no Brasil um processo sinuoso de estabilizao e mudana pontuado por crises. Seu momento fundacional remonta prpria Procla-mao da Repblica, mas se alonga pela Constituinte de 1891 e vai at a presidncia de Campos Sales (1898-1902), quando se tornou um arranjo mais estruturado e estabilizado. Neste primeiro perodo, o federalismo significou a derrota da maior par-te dos interesses da Unio e a adoo de um arranjo em que o Executivo federal era enfraquecido de poderes, de instrumentos e de recursos que se fariam necessrios, em especial em perodos crticos. Estabeleceu-se ampla autonomia dos estados, em uma inverso quase automtica do modelo institucional do Imprio.

    A questo tributria foi uma das que melhor materializou as divergncias entre Unio e estados. O resultado final beneficiou os estados, que conquistaram grande vantagem em matria tributria e passaram a receber recursos significa-tivos, inclusive dos impostos arrecadados pela Unio. Foi o caso do imposto de

  • 11Introduo

    importao, desde sempre arrecadado pela Unio, que passou a ser todo destinado aos estados. Anteriormente, dos 11% cobrados com este imposto, a Fazenda do Imprio ficava com 7% e destinava 4% s provncias.

    A ruptura desse modelo teve lugar em 1930 e partiu da fissura no arranjo federativo que vigorou durante a Primeira Repblica denominada depois de Re-pblica Velha. Nesse sentido, 1930 novo momento fundador. Os ganhos que Var-gas conseguiu, em termos de concentrao do poder e fortalecimento da Presidncia da Repblica, s podem ser explicados diante da crise profunda do arranjo federativo de 1891. As prerrogativas presidenciais, ancoradas nas competncias institucionais da Unio, estariam apoiadas em trs pilares fundamentais: o poder de iniciativa le-gislativa do presidente, o poder regulamentar e sua estrutura de governana. O rol elevado de competncias federais, muitas delas demandadas pelos prprios estados em busca de auxlio, conformaria a institucionalizao de poderes presidenciais ex-pandidos, com prerrogativas mais amplas, um conjunto de mecanismos polticos de coordenao e de interveno mais fortes, e estruturas de servio pblico cada vez maiores. Assim, o presidencialismo, que principiou como instituio central da poltica dos estados na Primeira Repblica, passou a ter o Executivo federal cada vez mais como piv de sustentao de todo o arranjo federativo.

    No obscuro perodo ditatorial iniciado em 1964, as instituies federativas foram substitudas por uma simulao ritualstica que, apenas grosseiramente, buscava represent-las, posto que fossem indicados por um poder arbitrrio: os governadores, parte significativa dos prefeitos e dos membros do Senado (os cha-mados senadores binicos), a Casa por excelncia da Federao.

    O perodo histrico que se abriu com a campanha das Diretas J (1984) e conclui-se entre a Constituinte (1987-1988) e as eleies presidenciais de 1989 representou no apenas um novo momento do federalismo, mas sua radical trans-formao enquanto instituio poltica. Esta mudana de primeira grandeza, uma verdadeira ruptura histrica de notveis consequncias, ocorreu sob um qua-dro poltico de transformaes aceleradas e ascenso de novos personagens com fortes bases locais. A histrica relao entre Unio, estados e municpios sofreu transformaes importantes. O formato tradicional, estabelecido pela Primeira Repblica, associava Unio e estados, submetendo os municpios s diretrizes e ao domnio poltico estadual. A compreenso sobre o que hoje o Estado brasileiro indissocivel de uma viso de longo prazo da radicalizao de seu federalismo.

    No desenho institucional resultante das diretrizes estabelecidas pela Cons-tituio Federal de 1988, a articulao entre os entes da Federao brasileira se apresenta na forma de um conjunto superposto de arenas de negociao, coordenao e produo de polticas e servios pblicos, ramificados horizontal, vertical e setorialmente em cada nvel de governo ou rea de atuao pblica.

  • 12 Federalismo Brasileira: questes para discusso

    A figura resultante encontra-se em constante transformao, impulsionada por variados interesses, algumas vezes de competio e em outras de cooperao, entre os entes federados.

    Cooperao, coordenao e integrao nem sempre formam um trinmio harmnico no federalismo brasileiro no perodo ps-1988. Um quadro de frag-mentao, de competio por recursos escassos e de estratgias de intensa disputa fiscal j foi considerado tpico de um federalismo predatrio, especialmente durante os anos 1990. Em contrapartida, as experincias recentes de cooperao federativa, entre as quais se destacam os consrcios pblicos, parecem indicar um movimento em direo ao aumento de arranjos federativos coordenados e cooperativos, dentro de uma base territorial heterognea, a despeito das distores ainda vigentes.

    No entanto, a criao de mecanismos de articulao federativa pode servir tanto para criar cooperao, quando se incentiva os entes federados a agirem em favor de interesses por eles compartilhados, quanto para gerar coordenao, hiptese na qual se estabelece taxativamente quando, como e o que cada ente far. Por seu turno, cabe observar que o momento poltico vivido pelo Brasil, desde o fim da ditadura militar, especialmente propcio para a criao destes mecanismos de articulao federativa, dado que a simples predisposio para agir cooperativamente no suficiente para a produo de resultados social-mente satisfatrios. Neste sentido, instrumentos de coordenao no garantem resultados socialmente desejveis, pois sempre possvel que as aes adotadas sejam contraditrias entre si ou contrrias aos interesses dos cidados. Logo, ins-trumentos de cooperao e coordenao tm seu efeito positivo potencializado em um ambiente democrtico, no qual a poltica tende a se submeter escolha dos eleitores e s preferncias dos cidados, em funo dos mecanismos de ac-countability e responsabilizao que lhe so prprios.

    No plano institucional, a concretizao das diretrizes constitucionais de 1988 de um arranjo federativo em um padro cooperativo, expresso pela ampla relao de competncias comuns e concorrentes entre os entes, apenas comeou a se configu-rar em 1998, com a edio da Emenda Constitucional no 19, abrindo o caminho superao da fragilidade institucional dos arranjos cooperativos. Todavia, foi com a Lei no 11.107 de 2005 (Lei dos Consrcios Pblicos LCP) que instrumentos mais poderosos para o comprometimento dos entes associados passaram a favorecer o aumento de arranjos federativos coordenados e cooperativos. Embora as concluses ainda sejam preliminares, um comparativo entre os anos de 2005 e de 2009, estudo oferecido pela Pesquisa de Informaes Bsicas Municipais (MUNIC) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), demonstra forte impacto desta lei no consorciamento federativo no Brasil.

    A principal inovao da LCP a adoo de mecanismos que emprestam maior confiana ao compromisso firmado pelos entes federados em relao ao

  • 13Introduo

    estabelecimento de um consrcio pblico. Dois elementos da nova legislao expressam este objetivo. Em primeiro lugar, a obrigatoriedade de o protocolo de intenes firmado entre os entes federados receber a aprovao dos respectivos poderes legislativos, o que empresta maior publicidade e comprometimento po-ltico. Em segundo lugar, a substituio do convnio por uma nova modalidade de contrato administrativo, denominada de contrato de consrcio pblico, cer-cado de maiores garantias legais quanto possibilidade de denncia unilateral ou o descumprimento pelos contratantes.

    Considerando os totais gerais nacionais para o perodo 2005-2009, por tema e regio, constata-se que o setor de sade pblica a principal rea na qual os municpios consorciam-se, embora o setor de meio ambiente tenha observado o maior crescimento relativo, saltando de 7% do total de municpios em 2005, para mais de 18% em 2009. Em sentido contrrio, o setor de transporte conhe-ceu uma reduo no quantitativo de consorciamentos de 5% para 4% do total de municpios brasileiros.

    Quando observados regionalmente, constata-se que o Norte e Nordeste desenvolveram significativas experincias de consorciamento nesse mesmo intervalo de tempo, embora as regies Sul e Sudeste ainda sejam aquelas que mais intensa-mente as realizam. A rea de sade pblica foi uma das que mais se valeu desse instrumento, principalmente entre municpios pequenos e mdios. A rea de sade, na realidade, , ao mesmo tempo, uma experincia bem-sucedida e um exemplo das limitaes enfrentadas pela descentralizao da execuo de polticas pblicas e das complexidades da articulao necessrias entre Unio, estados e municpios.

    Em suma, essas limitaes s reforam a ideia de a evoluo do federalismo brasileiro ser pautada por tenses e conflitos de interesses setoriais, institucionais e at individuais. Da mesma forma, sempre haver defensores e argumentos, de um lado, a favor do centralismo, da unidade e da integrao nacional, e, de outro, da descentralizao, da autonomia e da diversificao regional.

    Assim, ainda que os avanos, desde a Lei dos Consrcios Pblicos de 2005, sejam animadores, as tendncias presentes apontam para novas e maiores exign-cias de articulao federativa, em pelo menos duas vertentes. Em primeiro lugar, a diversificao nas preferncias dos cidados, do lado da demanda, e o cons-tante desenvolvimento tecnolgico, do lado da oferta, produzem uma crescente complexificao na prestao de servios pblicos, requerendo constantemente a adoo de novas institucionalidades destinadas sua proviso, em detrimento dos arranjos anteriormente consolidados. Em segundo lugar, o crescimento no n-mero de entes federados adiciona permanentemente novos atores ao processo de negociao, demandando uma atualizao do pacto federativo sobre novas bases. Alm da criao dos estados do Amap, de Rondnia, de Roraima e do Tocantins,

  • 14 Federalismo Brasileira: questes para discusso

    e da existncia de projetos tramitando atualmente no Congresso Nacional para a criao de outros 12 estados e trs territrios, o perodo posterior Constituio Federal de 1988 conheceu uma forte elevao no quantitativo de municpios, ainda que esta se encontre momentaneamente contida, desde a Emenda Constitucional no 15 de 1996, que transferiu Unio o poder de legislar sobre a formao de novas municipalidades. Em meio a estes fatores, as diversas assimetrias estruturais entre municpios (rurais e urbanos; pequenos, mdio e grandes; cidades do interior e regi-es metropolitanas; regies deprimidas e polos dinmicos da economia) pressiona-ram algumas cidades e estados com o fenmeno conhecido como welfare magnets, ou seja, a atrao pelo bem-estar.

    Como consequncia do quadro anterior, os gestores pblicos tero que, cada vez mais, considerar a articulao entre as diferentes polticas pblicas adotadas em distintos nveis de governo, de forma a potencializar os resultados. O caso das medidas preventivas de sade pblica e das redes de ateno primria, secundria, terciria e quaternria so o exemplo bvio desta necessidade crescente. Alm destes, certamente, os servios de planejamento territorial, saneamento, meio am-biente e transportes, entre outros, demandaro uma maior coordenao por parte de seus responsveis. Esta necessidade de uma adequada coordenao federativa impe o desafio de avaliar os resultados alcanados pelos instrumentos atuais, com vistas ao seu aperfeioamento, sua complementao ou sua substituio.

    Assim, trajetrias institucionais devem ser compreendidas em um novo patamar de atuao do Estado, bem como instrumentos de cooperao federa-tiva devem ser utilizados em particular os consrcios pblicos em face dos novos elementos e desafios que se apresentam. Se as tenses e os conflitos fede-rativos possuem como uma de suas dimenses mais pronunciadas as definies quanto repartio de recursos fiscais, no caso brasileiro, especificamente, esse problema ganha ainda maior relevo em 2012, posto que, por fora de deci-so do Supremo Tribunal Federal (STF), critrios de distribuio do fundo de participao dos estados (FPE) tero que ser estabelecidos. Em sintonia com a relevncia desta questo e buscando contribuir para o debate que se desenvolve em torno da questo neste momento, na segunda seo (parte 2), trs artigos sobre o federalismo fiscal so reservados para analisar as possibilidades que se apresentam para esta importante deciso.

    Nessa focalizao, surge uma anlise e uma simulao do rateio do FPE, seguida de uma sugesto de novos critrios de partilha do fundo e uma aplicao de pesos regionais para o FPE em uma funo de bem-estar social. O fundo surge por um lado, como um mecanismo de equalizao (parcial) das receitas estaduais, garantindo mais recursos aos estados com menor base tributria, e, por outro, como instrumento com desenho flexvel das transferncias a fim de

  • 15Introduo

    permitir possveis alteraes futuras da capacidade de arrecadao das Unidades Federativas. Nem sempre os resultados so unvocos. As simulaes apresenta-das mostram, inclusive, quais os estados ganhadores e perdedores pelos critrios sugeridos anteriormente. Por fim, tem-se a anlise sobre qual seria a repartio do FPE que maximizaria uma funo de bem-estar social para diversos graus de averso da sociedade desigualdade. O mtodo proposto qualificado sobre sua desvantagem em gerar incentivos errados para os gestores pblicos estaduais, pois, como observado, quanto menor e mais concentrada a renda per capita no estado, maior seria a sua parcela do FPE.

    Aqui, mais uma vez, os conflitos e as tenses no mbito fiscal tm suas reper-cusses ou seus efeitos em diversas dimenses. Nenhum ente federativo quer ser um perdedor, apesar de no se chegar a um entendimento sobre a possibilidade de um jogo (cooperativo) de soma positiva no qual todos possam ganhar. Em particular, surge aqui uma componente eminentemente territorial no debate so-bre a questo fiscal ou tributria, nesse caso, restrita ao mbito das transferncias constitucionais de recursos aos Estados (FPE). De maneira mais geral, a relao entre federalismo e territrio o tema central da terceira seo (parte 3). Para alm de um conflito e de uma tenso de diviso do bolo tributrio, a questo federativa brasileira, em particular, envolve diversas dimenses ou escalas territo-riais, entre elas a urbana (metropolitana) e a regional. No por acaso a soluo federativa uma escolha poltica e social para, de alguma forma, resolver os pro-blemas das desigualdades territoriais entre os entes federativos.

    A estrutura legal ou normativa constituda no mbito fiscal, partindo dos preceitos constitucionais estabelecidos a partir de 1988, est configurada dentro de certa homogeneidade ou simetria (aparente) para a dotao de capacidade financei-ra aos entes federativos, por meio de critrios de alocao de recursos tributrios. Trata-se eminentemente de uma viso macrofiscal ou macrotributria. necessrio atentar, contudo, para a heterogeneidade da prpria capacidade financeira local (municipal ou estadual), tendo como base agentes pblicos ou instituies pblicas (pessoal, infraestrutura etc.) tambm diferenciados em cada localidade, respons-veis por proporcionar, ainda, diferentes ofertas de bens e servios pblicos.

    Tratar o problema federativo relacionado somente com a (melhor) distribuio ou com a alocao dos recursos tributrios (funes alocativas, distributivas e estabi-lizadoras), a despeito de sua relevncia, enxergar apenas um lado da questo. pre-ciso saber, de forma complementar, como esses recursos esto sendo utilizados e se eles atendem apropriadamente e eficientemente as demandas da sociedade. Mais que ter recursos disponveis, preciso avaliar e confirmar se estes recursos esto sendo bem utilizados ou executados (gastos) pelos agentes e pelas instituies pblicas, nas diversas esferas federativas, na proviso ou produo adequada de maneira eficaz,

  • 16 Federalismo Brasileira: questes para discusso

    efetiva e eficiente de bens e servios no atendimento das demandas sociais espe-cficas. Se, no passado (do golpe militar de 1964 ao incio da redemocratizao dos 1980), existia uma maior centralizao do planejamento regional na esfera federal, hoje ele precisa ser compartilhado entre os vrios nveis federativos (Unio, estados e municpios), em funo, especialmente, do novo sistema ou modelo federativo ado-tado a partir da Constituio Federal de 1988. Em particular, a autonomia munici-pal torna a convergncia e a focalizao da poltica regional e de seus instrumentos mais complexas e desafiadoras, dada a diversidade de atores, de interesses e de aes envolvidas. A questo fiscal central, mas deve ser complementada por uma anlise territorial das desigualdades socioeconmicas.

    Em suma, trata-se de considerar os arranjos federativos como mecanismos centrais para aes pblicas cooperativas ou compartilhadas capazes de reduzir a grande desigualdade e heterogeneidade estrutural da regio, em particular, e do pas. A persistncia das desigualdades regionais no Brasil pode estar associada com um modelo federativo que no favorece a cooperao e a sua incompatibilidade com a estrutura heterognea da demanda social, considerada do ponto de vista territorial ou regional. Isto no significa que no existam problemas srios tambm no lado da oferta. A necessidade de reformas tributrias explicada por distores existentes na arrecadao, distribuio e/ou alocao de recursos fiscais no pas. Contudo, o problema maior ocorre na compatibilizao entre a capacidade tribu-tria e a competncia estatal na proviso de bens e servios pblicos. Ou seja, o problema maior da eficcia, da efetividade e da eficincia da ao pblica est no lado da despesa. A demanda da sociedade est, em geral, mal atendida, devido a um descompasso entre oferta e demanda por bens e servios pblicos.

    No se atingiu, at o momento, um modelo federativo capaz de dar conta dessa dualidade. Ao menos, no parece haver outra forma mais ade-quada de utilizar instrumentos de planejamento pblico sem levar em consi-derao a necessidade de construo de arranjos federativos em que as aes e os recursos federais, estaduais e municipais atuem de maneira cooperativa ou compartilhada. Somente assim os esforos empenhados no desenho e na implementao de polticas pblicas podem ser potencializados, reduzindo-se as sobreposies e as fragmentaes nas aes dos poderes ou entes federados, em suas vrias dimenses urbano-metropolitana e regional, e tambm mu-nicipal, estadual e nacional.

    OrganizadoresPaulo de Tarso Frazo Linhares

    Constantino Cronemberger MendesAntonio Lassance

  • PARTE IFederalismo e polticas pblicas

  • INTRODUO

    Esta parte traa a trajetria do federalismo no Brasil, enfatizando sobretudo o contraste entre, de um lado, as competncias conferidas aos municpios, advindas do modelo institucional inaugurado pela Constituio promulgada em 1988, e de outro, as atribuies crescentes assumidas pelos entes locais em funo do aprofundamento da descentralizao da maior parte das polticas nacionais.

    A confluncia de novos desafios e dilemas do federalismo brasileiro tambm impulsionou avanos nos mecanismos de cooperao. Mas ainda persiste uma frgil arquitetura de coordenao e controle. Tambm pa-tente a insuficincia do atual modelo de repartio de recursos para a sua proviso descentralizada.

    Os textos aqui reunidos oferecem um quadro geral de compreenso do arranjo institucional do federalismo brasileiro, identificando alguns pontos de estrangulamento, verdadeiras encruzilhadas, e as alternativas de redirecionamen-to ou aprimoramento da gesto de polticas pblicas.

    No detalhamento da anlise, os autores se debruam em casos especficos, abordando principalmente as polticas pblicas de sade, a poltica urbana e a experincia dos consrcios municipais.

    O fio condutor da contribuio do Ipea, aqui condensada, ressaltar a im-portncia matricial da esfera federal no apenas no desenho nacional das polticas e na dotao dos recursos necessrios sua execuo. O papel complementar, mas cada vez mais fundamental ao sucesso da trajetria futura do federalismo brasileiro, facilitar e robustecer as relaes federativas, seus fluxos, suas regras e as capacidades mtuas de cada ente.

    Os textos evidenciam os diferentes mecanismos utilizados para esse fim: os novos arranjos institucionais voltados a aprimorar as relaes federativas; as po-lticas nacionais, com definio de parmetros comuns (objetivos, pblico-alvo, tipo de aes envolvidas, regras de transparncia e controle); os mecanismos de incentivo; e a estruturao de sistemas de indicadores municipais e de processos sistemticos de avaliao.

    Esta parte desenvolve-se em quatro captulos. Em Federalismo no Brasil: trajetria institucional e alternativas para um novo patamar de construo do Estado, Antonio Lassance apresenta uma anlise global das relaes federativas, imprescindvel para a compreenso do que hoje o Estado brasileiro. Situa, em uma anlise de longo prazo, a radicalizao do federalismo brasileiro, a partir

  • 20 Federalismo Brasileira: questes para discusso

    do modelo instaurado em 1988. Esta verdadeira ruptura histrica aprofundou as premissas descentralizadoras do setor pblico e estabeleceu uma diviso ins-titucional do trabalho entre os diversos entes.

    A Unio tornou-se responsvel pelas polticas nacionais e pela realizao do esforo maior de arrecadao fiscal e de devoluo de recursos, na forma das transferncias obrigatrias e voluntrias. Os estados vocacionaram-se para o papel de alavancas do desenvolvimento (sustentvel, em alguns casos; predatrio, em outros), transferindo aos municpios ou relegando a segundo plano seu envol-vimento com as polticas sociais. Os municpios, assim, tornaram-se os gestores fundamentais das polticas sociais no Brasil.

    Em consequncia, foram estabelecidos mecanismos institucionais de tria-gem das demandas de cidadania, efetivos em vrios aspectos, mas expostos a in-meros riscos, gargalos e travamentos. O modelo ainda funciona relativamente bem, mas demonstra sinais de cansao.

    O estudo de Paulo de Tarso Linhares, Alexandre dos Santos Cunha e Ana Paula Lima Ferreira, Cooperao federativa: a formao de consrcios entre entes pblicos no Brasil, analisa os consrcios, um dos mais importantes instrumentos de cooperao e coordenao em um Estado federado.

    Apesar de prevista desde 1998 pela Emenda Constitucional no 19, apenas a partir de 2005 foram institudos, pela Lei Federal no 11.107, instrumentos mais poderosos para o comprometimento dos associados.

    At ento, as iniciativas de articulao federativa eram extraordinariamente frgeis. A inovao institucional possibilitada pela nova lei atribuiu aos consrcios o carter de pessoas jurdicas de direito pblico, fortalecendo os compromissos assumidos entre os municpios e reforando seu carter obrigatrio.

    As regies Norte e Nordeste desenvolveram significativas experincias de consorciamento, embora as regies Sul e Sudeste as tenham realizado mais inten-samente. A rea de sade pblica foi uma das que mais se valeu deste instrumen-to, principalmente entre municpios pequenos e mdios. Uma notvel exceo ocorreu na rea de transporte, que diminuiu seu nvel de consorciamento.

    A sade mereceu, nesta parte, um tratamento especial, com o captulo de Roberto Passos Nogueira intitulado A progresso do carter federativo das relaes institucionais no SUS. A rea ao mesmo tempo uma experincia bem-sucedida e um exemplo das limitaes enfrentadas pela descentralizao da execuo de pol-ticas pblicas e das complexidades da articulao necessrias entre Unio, estados, municpios e Distrito Federal.

  • 21Federalismo e Polticas Pblicas

    Se, por um lado, parte dessa complexidade deve ser analisada como decor-rente da insuficincia de certos aspectos dos modelos gerenciais do setor pbli-co, por outro lado, as novas modalidades gerenciais introduzidas na gesto do Sistema nico de Sade (SUS), especialmente por estados e municpios, tm exposto problemas inerentes flexibilizao e precarizao de sua prestao de servios pblicos.

    A tenso particularmente aguda quando os princpios pblicos do SUS so confrontados com a relao sempre cambiante do setor privado.

    Outra rea apresentada em destaque a gesto urbana municipal. Rafael H. Moraes Pereira, Marco Aurlio Costa, Ernesto Pereira Galindo e Renato Balbim analisam-na em Programa federal de apoio gesto urbana municipal: situao e perspectivas.

    Estabelecido no mbito da Poltica Nacional de Desenvolvimento Urba-no (PNDU), o programa exemplifica uma estratgia de apoio capacitao de municpios e agentes sociais para a gesto de polticas pblicas. Ilustra tambm, de modo categrico, que a formulao ambiciosa e generosa da Constituio Cidad e de seus marcos legais especficos (no caso, o Estatuto da Cidade) est muito distante do fluxo de recursos regulares sua consecuo, dos sistemas de monitoramento e avaliao e dos mecanismos de controle, transparncia e gesto participativa.

    As recomendaes dos autores remetem a um dos instrumentos mais disse-minados pelo Ipea na gesto pblica federal: o uso de modelos lgicos dos pro-gramas como ferramenta de planejamento estratgico para associar objetivos a processos de implementao, identificando pontos crticos.

    Em sntese, este conjunto de estudos consolida uma contribuio do Ipea para um aprendizado multissetorial sobre o desenho de polticas e a implemen-tao de programas, visando ao desenvolvimento institucional das relaes fede-rativas no Brasil. Paulatinamente, se tem firmado a noo de que as polticas p-blicas so instituies preciosas, por estruturarem regras da relao entre Estado e sociedade e por definirem a maneira concreta como os grandes marcos legais so aplicados em subsistemas especficos de gesto pblica. O desafio que se apresenta , portanto, compreender suas potencialidades e seus limites, no quadro de um Estado federal crescentemente descentralizado aps 1988. Os estudos realizados pelo Ipea fazem parte deste esforo de aprendizado.

  • CAPTULO 1

    FEDERALISMO NO BRASIL: TRAJETRIA INSTITUCIONAL E ALTERNATIVAS PARA UM NOVO PATAMAR DE CONSTRUO DO ESTADO

    Antonio Lassance*

    1 TRAJETRIA INSTITUCIONAL DO FEDERALISMO BRASILEIRO

    Juntamente com o presidencialismo, o federalismo instituio central do Estado brasileiro. Responsvel por um signficativo conjunto de regras formais e informais, cujas mltiplas combinaes marcaram a construo e a transformao do Estado brasileiro ao longo de sua Repblica, o federalismo representa o que se pode denomi-nar de matriz vertical do Estado, enquanto o presidencialismo a matriz horizontal.

    Enquanto instituio, o federalismo est condensado na distribuio das competncias exclusivas entre os entes federados, no grau de hierarquia entre suas competncias concorrentes e nos mecanismos de coordenao e incentivo nas competncias comuns.

    H uma lgica necessariamente contraditria nessa diviso de poderes em linha vertical, na medida em que serve, ao mesmo tempo, para unificar um gran-de territrio e dividi-lo em unidades menores; para estruturar aes que devam ocorrer nacionalmente; e, concomitantemente, fragmentar as polticas pblicas, obrigando multiplicao de programas para se adequar s diferentes realidades locais. O federalismo adensa e fraciona interesses em disputa, o que refora a unidade e d espao diversidade.

    O federalismo foi a principal bandeira em torno da qual se formou a co-alizo de atores e de interesses polticos que levaram derrocada do Imprio e instaurao da Repblica, em 1889. Institudo no Brasil em 1889, o modelo republicano presidencialista e federativo teve a experincia norte-americana como principal inspirao do que veio a ser chamado de Estados Unidos do Brazil.

    Em seu momento fundacional a Constituinte de 1891 , o federalismo significou a derrota da maior parte dos interesses da Unio e a adoo de um arranjo em que o Executivo federal era enfraquecido de poder, instrumentos e re-

    * Tcnico de Planejamento e Pesquisa da Diretoria de Estudos e Polticas do Estado, das Instituies e da Democracia (Diest) do Ipea. Endereo eletrnico: .

  • 24 Federalismo Brasileira: questes para discusso

    cursos que se fariam necessrios, especialmente em perodos crticos. Estabeleceu-se ampla autonomia dos estados, em uma inverso quase automtica do modelo institucional do Imprio.

    A questo tributria foi uma das que melhor materializaram as divergncias entre Unio e estados. O resultado final beneficiou os estados, que conquistaram grande vantagem em matria tributria e passaram a receber recursos significa-tivos, inclusive dos impostos arrecadados pela Unio. Foi o caso do imposto de importao, desde sempre arrecadado pela Unio, que passou a ser todo desti-nado aos estados. Anteriormente, dos 11% cobrados pelo imposto, a fazenda do Imprio ficava com 7% e destinava 4% s provncias.

    Dois impostos importantes surgiram em 1891 e passaram a beneficiar priorita-riamente os estados: o Imposto sobre a Propriedade Rural (atual Imposto Territorial Rural); e o Imposto de Renda da Pessoa Fsica (IRPF), que era de competncia cumulativa da Unio, dos estados e dos municpios. Como se no bastasse a vitria pela letra da lei, as justias estaduais imporiam inmeras derrotas Unio, favore-cendo os estados, s vezes at em detrimento da prpria legislao federal.

    Passado o perodo provisrio a efmera presidncia de Deodoro e sua fase de transio os governos de Floriano e Prudente de Moraes, de grande instabilida-de poltica e crise econmica profunda , o modelo presidencialista federativo bra-sileiro se estabilizaria a partir das bases montadas pela presidncia de Campos Sales.

    Embora abalado por crises e desavenas na coalizo governante por conta de inmeros e diversos conflitos, tendo variaes significativas a cada perodo presi-dencial, o modelo instaurado a partir de Campos Sales garantia fora ao presiden-cialismo federal, sem enfraquecer o presidencialismo estadual e municipal. De fato, este modelo tinha a tendncia de fortalec-los ao extremo. Vitor Nunes Leal, em sua obra clssica e institucionalista avant la lettre, faria uma bela apresentao dos mecanismos complexos e bastante efetivos do presidencialismo federativo, desde seu auge, na Primeira Repblica, at seu declnio (LEAL, 1948).

    Basicamente, a poltica dos governadores estabelecia uma coalizo nacio-nal calcada na aliana dos estados que tinham maior peso no eleitorado e de-monstravam maior grau na unidade poltica. Os critrios essenciais eram: a representatividade incontestvel de suas lideranas; a hegemonia sobre as foras polticas de seus municpios; a coeso partidria; e a disciplina congressual. Mesmo sob o comando de Vargas, a sorte dos interventores seria ditada por sua capacidade de manter tal modelo em vigor, apenas com o prejuzo do primeiro dos critrios. Ou seja, a principal dificuldade dos interventores era exatamente a de conquistarem a confiana como representantes dos estados, na medida em que, por definio, estavam l para serem representantes do governo federal. Uma diferena nada trivial.

  • 25Federalismo no Brasil

    Vargas implementou uma nova equao poltica presidencial, na qual o for-talecimento do Executivo federal e da figura do presidente, em particular, se deu s expensas dos presidencialismos estadual e municipal, que viram o esvaziamento de suas funes e a delimitao de suas prticas na forma de regulamentos administra-tivos da a importncia central do Departamento Administrativo do Servio P-blico (DASP). So emblemticas, a esse respeito, a substituio da denominao de presidentes de estado pela de governadores e a queima das bandeiras estaduais.

    A ruptura que teve lugar em 1930 partiu da fissura no arranjo federativo que vigorou durante a Primeira Repblica apelidada depois de Repblica Velha. Nesse sentido, 1930 um novo momento fundador. Os ganhos que Vargas conseguiu em termos de concentrao do poder e de fortalecimento da Presidncia da Repblica s podem ser explicados diante da crise profunda do modelo federativo de 1891.

    A histria do federalismo no Brasil a de um processo sinuoso de estabi-lizao e mudana, pontuado por crises. Seu momento fundacional remonta prpria Proclamao da Repblica, mas se alonga pela Constituinte de 1891 e vai at a presidncia de Campos Sales (1898-1902), quando se tornou um arranjo mais estruturado e estabilizado.

    Seus abalos podem ser demarcados temporalmente por uma srie de con-junturas crticas. Tanto o alargamento quanto a restrio das competncias da Unio foram decorrentes de mudanas impulsionadas nestes momentos.

    As prerrogativas presidenciais, ancoradas nas competncias institucionais da Unio, estariam firmadas em trs pilares fundamentais: o poder de iniciativa le-gislativa do presidente; o poder regulamentar; e a estrutura de governana, tendo a Presidncia da Repblica como organizao central.

    O rol elevado de competncias federais, muitas delas demandadas pelos pr-prios estados em busca de auxlio, conformaria a institucionalizao de poderes presidenciais expandidos, com prerrogativas mais amplas, um conjunto de me-canismos polticos de coordenao e de interveno mais fortes e estruturas de servio pblico cada vez maiores.

    A progressiva constitucionalizao de direitos sociais, a reorganizao do servio pblico e a montagem de estruturas estatais destinadas a ofertar bens pblicos em grande escala consolidaram uma longa trajetria do federalismo bra-sileiro, com o fortalecimento do Executivo federal e do presidencialismo justi-ficados pela necessidade de conferir musculatura para a realizao destas tarefas.

    Assim, o presidencialismo, que principiou como instituio central da pol-tica dos estados na Primeira Repblica, passou a ter o Executivo federal cada vez mais como sustentao de todo o arranjo federativo.

  • 26 Federalismo Brasileira: questes para discusso

    2 O FEDERALISMO RADICAL

    O perodo histrico que se abriu com a campanha das Diretas J em 1984, e conclui-se entre a Constituinte (1987-1988) e as eleies presidenciais de 1989, representou no apenas um novo momento do federalismo, mas sua radical trans-formao enquanto instituio poltica.

    Esta mudana de primeira grandeza, verdadeira ruptura histrica de not-veis consequncias (IPEA, 2008, p. 7), ocorreu sob um quadro poltico de trans-formaes aceleradas e de ascenso de novos personagens com fortes bases locais.

    A partir das eleies estaduais de 1982, os governadores ressurgiram como atores centrais da poltica brasileira e com lideranas de proa da chamada transi-o democrtica. Associados a uma nova gerao de prefeitos municipais eleitos no contexto da redemocratizao , e pressionados por movimentos sociais que retornavam cena nacional e projetavam novos atores, estes prefeitos conforma-ram uma coalizo multifacetada, de inmeras discordncias programticas, mas com pontos de aliana que serviram para impulsionar a radicalizao da matriz institucional federalista.

    A histrica relao entre Unio, estados e municpios sofreu transforma-es importantes. O formato tradicional, estabelecido pela Primeira Repblica, associava Unio e estados, submetendo os municpios s diretrizes e ao domnio poltico estadual. Tal modelo sofreria dois reveses ao fim dos anos 1980 e por toda a dcada de 1990.

    A compreenso sobre o que hoje o Estado brasileiro indissocivel de uma viso de longo prazo da radicalizao de seu federalismo.

    Alguns eventos marcaram esse redirecionamento: i) em 1983, a Emenda Constitucional no 23 (Emenda Passos Porto), que refez a diviso federativa dos recursos arrecadados, beneficiando estados e municpios, e a Emenda Constitu-cional no 24 (Emenda Calmon), que determinou a ampliao dos recursos desti-nados educao; ii) em 1985, a Emenda Constitucional no 25, que restabeleceu eleies diretas em todos os nveis e concedeu autonomia poltica ao Distrito Federal (ABRUCIO, 2005, p. 48); e iii) em 1988, a promulgao da Consti-tuio Federal, que redefiniu todo o quadro institucional brasileiro e introduziu o ingrediente de maior radicalidade do novo modelo federativo: a elevao dos municpios e do Distrito Federal condio de entes federados, com um rol sig-nificativo de competncias.

    A nova Constituio incorporou um municipalismo de longa tradio no pensamento poltico, jurdico e administrativo brasileiro, que se enrai-zou em parcela importante da burocracia como aquela mais vinculada s reas sociais.

  • 27Federalismo no Brasil

    Havia ainda o estmulo de uma tendncia mundial, nos anos 1980 e 1990, em favor da descentralizao, com o reconhecimento e enaltecimento do poder local. Referncias polticas tanto esquerda quanto direita apontavam para um mesmo sentido, muito embora com objetivos dspares.

    Governos nacionais conservadores encontraram na descentralizao uma maneira de se desonerarem de encargos e de atribuies, repassando-os aos gover-nos estaduais e locais tnica, por exemplo, da proposta de um novo federalis-mo, presente nos Estados Unidos desde Nixon, mas implementada a partir de Ronald Reagan (1981-1989).

    No caso brasileiro, a descentralizao esteve intimamente associada lgica do processo de transio democrtica. A emergncia de movimentos e de lide-ranas democrticas tornou a participao uma bandeira, e o municpio, o lcus privilegiado para a sua implementao autnoma (LASSANCE, 2007).

    diferena de outros processos internacionais, em que houve descentra-lizao sem o poder federal abrir mo de competncias legislativas exclusivas e de autoridade fiscalizadora (STEPAN, 1999), no Brasil, a descentralizao foi constitucionalizada e implicou a autonomia ampliada dos estados e a elevao de municpios e do Distrito Federal condio de entes federados.

    3 INOVAES INSTITUCIONAIS FORMAIS E INFORMAIS

    A confluncia de fatores e de atores que propiciou inovaes institucionais de uma nova trajetria do federalismo transformou os municpios em atores de peso do arranjo poltico federativo e da implementao de polticas pblicas, em maior escala que em qualquer outra poca.

    As mudanas consagradas pela nova Constituio vieram acompanhadas de iniciativas mantidas e aprofundadas ao longo de vrios governos, orientadas des-centralizao de um maior conjunto de polticas pblicas nacionais. Desde ento, polticas descentralizadas tornaram-se a regra, e as centralizadas, uma exceo.

    Os tradicionais instrumentos dedicados a apoiar o desenvolvimento regio-nal so um exemplo. Os fundos constitucionais, fundos de desenvolvimento e incentivos fiscais, muito importantes nos anos 1960 e 1970, perderam relevncia diante de outros instrumentos. Principalmente diante do fundo de participao dos municpios (FPM) e do fundo de particao dos estados e do Distrito Federal (FPE), do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educao Bsica (FNDE), dos royalties e dos recursos injetados por instituies financeiras como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social (BNDES), o Banco do Nor-deste do Brasil (BNB), a Caixa Econmica Federal (CEF) e o Banco do Brasil (MENDES e MONTEIRO NETO, 2011).

  • 28 Federalismo Brasileira: questes para discusso

    At mesmo polticas que esto em reas de sombra do desenho institucional, abrigadas ou sob a forma de competncias comuns ou concorrentes, passaram a contar com estratgias top-down de descentralizao. Pode-se citar a esse respei-to aes de vrias reas, como: o Fundo de Manuteno e Desenvolvimento da Educao Bsica e de Valorizao dos Profissionais da Educao (FUNDEB), na educao; o Programa Sade da Famlia, na sade; o Programa Bolsa Famlia, na assistncia social; o Programa Luz para Todos, na energia; o Programa Territrios da Cidadania, no desenvolvimento agrrio; o Programa Segurana com Cidada-nia, na segurana pblica; entre outros.

    Enquanto os governos municipais passaram a incumbir-se fortemente das polticas de cunho social, os governos estaduais retraram-se neste campo pela longa e grave crise fiscal dos anos 1990. A dinmica autofgica instalada neste perodo seria marcada por polticas de soma zero dos governadores contra esta-dos vizinhos e a Unio como no caso da guerra fiscal e de terra arrasada de governadores em fim de mandato contra seus sucessores. Estes herdariam dvidas impagveis e estruturas governamentais desmontadas ou inchadas e viciadas.

    O declnio do poder dos governadores de estado significou a dominncia cla-ra da Unio, por meio dos instrumentos da poltica de ajuste e estabilizao macro-econmica, a partir da presidncia de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).

    Os estados passaram a posicionar-se de modo diferente a partir da ascenso de um velho personagem, o prefeito, agora renovado e reforado poltica e institu-cionalmente. Muitos municpios viram na crise das polticas pblicas dos estados, e nas dificuldades de gerenciamento de programas pela Unio, uma oportunidade para expandir seu raio de ao e oferecer servios pblicos em substituio ou em associao aos governos estaduais e federal.

    O fenmeno se refletiu no crescimento das aes descentralizadas, dos conv-nios e das transferncias fundo a fundo, articulados cada vez mais diretamente entre o governo federal e as prefeituras. O processo foi acentuado durante as duas presi-dncias de Lula (de 2003 a 2006 e de 2007 a 2010), sendo particularmente notvel na poltica de desenvolvimento social, em torno do Programa Bolsa Famlia.

    O declnio dos estados no foi absoluto. Tratou-se de perda de poder e de margem de manobra, se contrastada a sua situao com a de perodos anteriores. Os estados continuam sendo atores cruciais no arranjo federativo, dadas a sua influncia na organizao dos partidos, a sua relao com as bancadas estaduais na Cmara e no Senado e a sua importncia nas eleies presidenciais.

    As reformas constitucionais e os projetos prioritrios do Executivo federal tambm acionam os governadores, inclusive os de partidos oposicionistas, para cumprirem o papel de intermedirios.

  • 29Federalismo no Brasil

    4 COOPERAO, COORDENAO E INTEGRAO

    Cooperao, coordenao e integrao nem sempre formam um trinmio harm-nico no federalismo brasileiro. Um quadro de fragmentao, de competio por recursos escassos e de estratgias de intensa disputa fiscal j foi considerado tpico de um federalismo predatrio (ABRUCIO, 1998).

    O pice desse processo ocorreu durante a dcada de 1990, marcada pela herana de endividamento dos governos estaduais e municipais e pela estagnao econmica dos anos 1980. Do lado da despesa, a sada encontrada foi a poltica de ajuste das contas pblicas, tendo como meta imediata a conteno do custeio, em particular pela reduo do quadro de pessoal, pelo achatamento do salrio dos servidores, e pela terceirizao e reduo da prestao de servios pblicos.

    Do lado da receita, houve a privatizao de empresas e bancos pblicos e a guerra fiscal para a atrao de empresas de estados vizinhos ou estrangeiras. Se, para o pas, os anos 1980 foram a dcada perdida, para a maioria dos governos estaduais os anos 1990 mereceriam a mesma qualificao.

    No caso dos municpios, em sua grande maioria a situao que se colocava era a da limitada capacidade para exercerem plenamente as funes a eles atribu-das pela Constituio promulgada em 1988. Os municpios assumiram tarefas e poderes que jamais haviam sido conferidos aos entes locais, sem necessariamente contarem com a retaguarda administrativa e tcnica necessria ao desempenho de suas novas funes.

    As diversas assimetrias estruturais entre municpios (rurais e urbanos; pe-quenos, mdios e grandes; cidades do interior e regies metropolitanas; regies deprimidas e polos dinmicos da economia) pressionaram algumas cidades e es-tados com o fenmeno conhecido como welfare magnets a atrao pelo bem-estar (ROM e PETERSON, 1990).

    Com servios pblicos mais abrangentes e mais bem estruturados, as gran-des cidades tinham suas polticas assoberbadas por uma populao ampliada pe-los cidados provenientes de seu entorno e mesmo de localidades muito distantes.

    Por seu turno, as oportunidades de desenvolvimento de polticas com o apor-te de recursos federais tinham como entrave a baixa capacidade de municpios menores apresentarem projetos na maioria das vezes, pela prpria inexistncia de profissionais habilitados a produzi-los. O mesmo acontecia com as fontes de fi-nanciamento provenientes de organismos internacionais, cujas exigncias tcnicas superavam as possibilidades de atendimento por municpios menos aparelhados.

    A combinao entre, de um lado, a estratgia de descentralizao dos sistemas pblicos e das polticas nacionais e a necessidade de dotar os muni-cpios de recursos necessrios execuo de aes abriu uma nova vertente do desenho federalista brasileiro. Polticas de cooperao induzidas envol-viam a instituio de um marco legal das polticas, a dotao de recursos

  • 30 Federalismo Brasileira: questes para discusso

    oramentrios prprios (s vezes com fundos especficos) e instrumentos destinados a facilitar a adeso municipal.

    A consolidao desse modelo de gesto federativa de polticas pblicas levou a duas mudanas institucionais de peso. A primeira foi que, por conta dos precei-tos constitucionais e tambm por escolhas polticas, o governo federal passou a ser menos um gastador e mais um transferidor de recursos arrecadados pela Unio, mas gastos pelos demais governos (ORAIR e GOBETTI, 2010).

    A segunda inovao institucional foi a proliferao da prtica dos consr-cios pblicos, a partir da Lei Federal no 11.107 de 2005, conhecida como Lei de Consrcios (LC). A existncia de consrcios bem anterior LC, mas se pode dizer que foram introduzidas trs modificaes significativas: i) o status jurdico dos municpios consorciados foi robustecido na federao; ii) sua presena, aos poucos, tornou-se quase uma regra, ao invs de uma exceo; e iii) a LC estabe-leceu canais de induo de polticas pblicas federalizadas e de interligao entre Unio, estados e municpios, com programas, transferncias de recursos e execu-o de aes, nos mais diversos dos sistemas de polticas pblicas.

    Os consrcios proliferaram principalmente entre as polticas pblicas cuja gesto ataca problemas com territorialidades multimunicipais, como sade, meio ambiente e infraestrutura (LINHARES e CUNHA, 2010).

    Mas, embora sejam mecanismos de cooperao, os consrcios no neces-sariamente so um sinal de coordenao. As diferenas entre as modalidades de consrcio, que so mais harmnicas quando da presena dos governos estaduais, e mais dspares quando de sua ausncia (LINHARES e CUNHA, 2010, p. 560-562), sugerem que os consrcios tanto podem surgir em torno do processo de coordenao de polticas estaduais descentralizadas, quanto, em outros casos muito numerosos , diante de sua ausncia ou baixa ateno. Os consrcios de certa forma mitigaram o desgaste de outras frmulas institucionais que caram em descrdito como formas de coordenao e integrao de esforos entre estados e intermunicipais, como as regies metropolitanas e as regies integradas de desen-volvimento econmico. Mas ainda revelam uma lacuna no federalismo brasileiro em termos de uma maior cooperao, coordenao e integrao.

    5 RELAES FEDERATIVAS PARA UM NOVO PATAMAR DE CONSTRUO DO ESTADO

    Estados e municpios tm competncias exclusivas em determinadas reas, mas a Unio ainda responsvel pela maior parte do financiamento das polticas pblicas.

    Da receita oramentria total prevista para 2011, pelo menos 22% estavam consignados para transferncias obrigatrias (BRASIL, 2011). Parte significativa comps transferncias voluntrias da Unio e gastos vinculados constitucionalmente.

  • 31Federalismo no Brasil

    Como se pode ver no grfico 1, a partir de 1988, as receitas passaram a ser fortemente vinculadas.

    GRFICO 1Composio das receitas oramentrias (1970-2008)(Em %)

    0

    20

    40

    60

    80

    100

    Desvinculadas Vinculadas

    Anos

    1970

    1975

    1979

    1980

    1981

    1982

    1983

    1984

    1985

    1986

    1987

    1988

    1989

    1990

    1991

    1992

    1993

    1994

    1995

    1996

    1997

    1998

    1999

    2000

    2001

    2002

    2003

    2004

    2005

    2006

    2007

    PLOA 200

    8

    FSE/FEF/DRU Transf. Est./Mun.

    Fonte: Brasil (2008a).Obs.: Constam somente receitas do Tesouro, desconsideradas as receitas de colocao de ttulos e de privatizaes.

    Cerca de 80% do total das receitas da Unio j tm destinao previamente definida, principalmente para a educao e a seguridade social sade, assistncia e previdncia social (BRASIL, 2011). Tal situao demonstra que a Unio, para alm das prerrogativas generosas que a Constituio lhe conferiu, possui razovel controle sobre expressivos recursos utilizados para irrigar polticas nacionais.

    Todavia, a capacidade de controle e as possibilidades de integrao pressu-pem polticas institucionalizadas nacionalmente, com regras gerais que aperfei-oem a diviso de trabalho entre os entes federados e os fluxos de financiamento requeridos. Falta maioria dos sistemas pblicos, para fazer jus qualificao de sistema, o enquadramento da atuao das unidades descentralizadas de execuo.

    A rea da sade, que se configura como o modelo mais bem estruturado de subsistema nacional de polticas pblicas, comparativamente a outros, baseia seu sistema nico justamente como organizao hierrquica descentralizada, com parmetros institucionais estabelecidos tanto pela Constituio, em termos mais amplos, quanto de forma mais especfica nos termos da Lei no 8.080 de 1990, seguidos pelas Normas Operacionais Bsicas (NOB), pelas Normas Operacio-nais da Assistncia Sade (Noas) e pelo Pacto de Gesto (NOGUEIRA, 2010).

  • 32 Federalismo Brasileira: questes para discusso

    Essa hierarquia institucionalizada no adveio da pura conduta racional dos gestores. Mais importante foi que a sade incorporou institucionalmente, na Constituio promulgada em 1988, o resultado de um longo processo histrico de mobilizao social (NOGUEIRA, 2010), traduzida em uma concepo do Sistema nico de Sade (SUS) e sustentada por uma coalizo de atores em torno de princpios e prioridades para aquela poltica.

    Tambm chama ateno que cerca de 70% de todo o pessoal do Ministrio da Sade (MS) esto em exerccio em unidades federais de atuao desconcentrada (NOGUEIRA, 2010), como fundaes por exemplo, a Fundao Nacional de Sade (Funasa) e a Fundao Oswaldo Cruz (Fiocruz) , institutos por exemplo, o Instituto Evandro Chagas (IEC) , centros de formao e escolas tcnicas.

    Portanto, no caso do SUS, a estratgia de descentralizao empregada foi acompanhada de reforo aos comandos hierrquicos e ampliao da capilaridade de suas estruturas de atuao regionalizada e estadualizada.

    Algo similar foi experimentado pela poltica de transferncia de renda, com o Programa Bolsa Famlia. A crise vivida em 2004, quando o governo federal foi acusado de no exercer controle suficiente sobre os benefcios pagos, levou a gran-des mudanas na arquitetura do programa. Entre 2005 e 2006, foram editadas vrias normas reguladoras da concesso do benefcio e do acompanhamento das condicionalidades. A gesto continuou descentralizada, mas sob a definio mais clara das responsabilidades e a obrigatoriedade de um termo formal de adeso pelos municpios (COTTA e PAIVA, 2010).

    O federalismo, instituio fundamental da Repblica brasileira, implicou uma forte descentralizao, a partir de 1988, com diferenas entre os vrios sub-sistemas de polticas pblicas. No se pode recair no retrocesso de centralizar a execuo de programas, projetos e atividades, mas tambm no se deve desin-cumbir a Unio de exercer seu papel de integrao vertical, sob forte coordenao federal. Este tem sido um aprendizado crucial sobre os erros e os acertos das polticas pblicas do pas.

    Hoje no Brasil h cerca de 373 programas federais. Pouco mais de 10% deles se destinam a gastos gerenciais, o que inclui o custeio da mquina admi-nistrativa governamental. Mais da metade (190 programas) atende a municpios e a estados (BRASIL, 2008b). Ou seja, a maior parte dos programas existe para alimentar ou para complementar a organizao federativa nacional, garantindo o arranjo institudo a partir da Constituio de 1988 e a sustentabilidade da trajetria de descentralizao que se afirmou como tendncia de longo prazo da organizao do Estado.

  • 33Federalismo no Brasil

    O perfil desses programas federais mostra-se equilibrado entre polticas so-ciais (47,89%) e desenvolvimento econmico e infraestrutura (44,74%), sendo 7,37% deles de apoio gesto pblica (BRASIL, 2008b), o que bastante razovel.

    GRFICO 2Programas federais de apoio a municpios(Em %)

    0,00

    10,00

    20,00

    30,00

    40,00

    50,00

    60,00

    70,00

    80,00

    90,00

    100,00

    Polticas sociais Desenvolvimentoeconmico e infraestrutura

    Apoio gesto pblica

    Fonte: Brasil (2008b).Elaborao do autor.

    Para que se torne possvel orientar melhor os procedimentos, coibir abusos, limitar a ao discricionria e reduzir os nveis de ambiguidade e ambivalncia co-muns gesto pblica, a atual fase do processo de construo do Estado brasileiro carece da institucionalizao de outro patamar das relaes federativas.

    Tornou-se premente reforar um padro mais vertical, de base normativa detalhada e com maior presena regional dos rgos federais, no para executar aes, mas para melhor coordenar polticas e zelar pelo controle dos gastos pbli-cos descentralizados.

    Marcos legais nacionais, com regras de uso de recursos federais, devem aprimorar suas orientaes gesto e seus critrios de desempenho, induzindo a transparncia e o controle social. Em paralelo, instrumentos operacionais (manu-ais, sistemas informatizados e outros recursos gerenciais) tornaram-se essenciais tarefa de reduzir a discricionariedade que motivada no pela m f dos gestores municipais, mas muitas vezes pela debilidade de sua formao e capacitao.

    Finalmente, estruturas desconcentradas, que garantam a presena de agentes federais capazes de orientar, monitorar e expedir alertas, so recursos necessrios ao esforo federal de assegurar resultados precisos s suas polticas.

  • 34 Federalismo Brasileira: questes para discusso

    Enfim, preciso abrir uma nova fase no federalismo brasileiro, com um aprofundamento da institucionalizao de polticas pblicas com vistas maior coeso programtica das aes federais e ao aprimoramento de seu poder de co-ordenao e controle de resultados, inclusive por meio de uma maior presena federal em estados e municpios.

    As inmeras vantagens do federalismo radical brasileiro convivem com con-tradies latentes ou explcitas de uma diviso institucional do trabalho. Nesta diviso, a Unio responsvel por polticas nacionais e pelo maior esforo de arrecadao fiscal e de devoluo de impostos, na forma das transferncias obri-gatrias e voluntrias. Os estados se vocacionaram para o papel de alavancas do desenvolvimento (sustentvel, em alguns casos; predatrio, em outros) e abando-naram seu envolvimento primacial com as polticas sociais, entregando-as cada vez mais aos municpios, que se tornaram os principais agentes de implementao da prestao de servios pblicos.

    O federalismo consolidou-se como um mecanismo institucional de triagem das demandas de cidadania, o que positivo e necessrio organizao do poder e implementao de polticas pblicas, mas se expe a inmeros gargalos e tra-vamentos de um modelo que ainda funciona relativamente bem, mas demonstra alguns sinais de cansao.

    REFERNCIAS

    ABRUCIO, F. L. Os bares da federao: os governadores e a redemocratizao brasileira. So Paulo: HUCITEC, 1998.

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    ______. Secretaria de Relaes Institucionais. Catlogo de programas do go-verno federal destinados aos municpios. Braslia: SRI, 2008b. Disponvel em: . Acesso em: 12 mar. 2011.

    ______. Presidncia da Repblica. Decreto no 7.445, de 1o de maro de 2011. Dispe sobre a programao oramentria e financeira, estabelece o cronograma mensal de desembolso do Poder Executivo para o exerccio de 2011 e d outras providncias. Dirio Oficial da Unio, Braslia, 2011.

  • 35Federalismo no Brasil

    COTTA, T. C.; PAIVA, L. H. O Programa Bolsa Famlia e a proteo social no Brasil. In: CASTRO, J. A.; MODESTO, L. Bolsa Famlia 2003-2010: avanos e desafios. Braslia: Ipea, 2010.

    IPEA INSTITUTO DE PESQUISA ECONMICA APLICADA. Polticas sociais: acompanhamento e anlise. Braslia: Ipea, nov. 2008. n. 16.

    LASSANCE, A. Bases da poltica brasileira: um estudo das reeleies nos muni-cpios. 2007. Dissertao (Mestrado) Universidade de Braslia, Braslia, Distrito Federal, 2007.

    LEAL, V. N. Coronelismo, enxada e voto: o municpio e o regime representati-vo no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1948.

    LINHARES, P. T.; CUNHA, A. Cooperao federativa: a formao de con-srcios pblicos no Brasil. In: INSTITUTO DE PESQUISA ECONMICA APLICADA. Brasil em Desenvolvimento: Estado, planejamento e polticas p-blicas. Braslia: Ipea, 2010. v. 3.

    MENDES, C. C.; MONTEIRO NETO, A. Planejamento, instrumentos e re-sultados: avaliao da compatibilidade de polticas para o desenvolvimento do Nordeste. Rio de Janeiro: Ipea, jul. 2011. (Texto para Discusso, n. 1.633).

    NOGUEIRA, R. P. O desenvolvimento federativo do SUS e as novas modalida-des institucionais de gerncia das unidades assistenciais. In: INSTITUTO DE PESQUISA ECONMICA APLICADA. Estado, instituies e democracia: Repblica. Braslia: Ipea, 2010. v. 1, p. 249-275.

    ORAIR, R.; GOBETTI, S. Governo gastador ou transferidor? Um macrodiag-nstico das despesas federais no perodo 2002 a 2010. In: INSTITUTO DE PESQUISA ECONMICA APLICADA. Brasil em Desenvolvimento: Estado, planejamento e polticas pblicas. Braslia: Ipea, 2010. v. 1.

    PETERSON, P. The price of federalism. Washington: Brookings Institute, 1995.

    ROM, M. C.; PETERSON, P. E. Welfare magnets: a new case for a national standard. Washington: Brookings Institution Press, 1990.

    STEPAN, A. Para uma nova anlise comparativa do federalismo e da democracia: federaes que restringem ou ampliam o poder do demos. Dados, v. 42, n. 2, p. 197-251, 1999.

  • CAPTULO 2

    COOPERAO FEDERATIVA: A FORMAO DE CONSRCIOS ENTRE ENTES PBLICOS NO BRASIL

    Paulo de Tarso Linhares*Alexandre dos Santos Cunha*

    Ana Paula Lima Ferreira**

    1 INTRODUO

    No desenho institucional resultante das diretrizes estabelecidas pela Constituio Federal de 1988 (CF/88), a articulao entre os entes da Federao brasileira apresenta-se na forma de um conjunto superposto de arenas de negociao, coor-denao e produo de polticas e servios pblicos, ramificados horizontal, verti-cal e setorialmente em cada nvel de governo ou rea de atuao pblica. A figura resultante encontra-se em constante transformao, impulsionada por variados interesses algumas vezes, de competio; em outras, de cooperao entre os entes federados. H entrelaamento entre as dinmicas setoriais e dos nveis de governo que produz resultados nem sempre eficientes.

    Ainda que os avanos, nos ltimos cinco anos, sejam animadores, as ten-dncias presentes indicam novas e maiores exigncias de articulao federativa, em pelo menos duas vertentes. Em primeiro lugar, a diversificao nas prefe-rncias dos cidados, do lado da demanda, e o constante desenvolvimento tec-nolgico, do lado da oferta, produzem crescente complexificao na prestao de servios pblicos e requerem constantemente a adoo de novas institucio-nalidades destinadas sua proviso, em detrimento dos arranjos anteriormente consolidados. Em segundo lugar, o crescimento no nmero de entes federados adiciona permanentemente novos atores ao processo de negociao, demandan-do atualizao do pacto federativo sobre novas bases. Alm da criao dos esta-dos do Amap, de Rondnia, de Roraima e do Tocantins, o perodo posterior CF/88 conheceu forte elevao no quantitativo de municpios, ainda que esta

    * Tcnico de Planejamento e Pesquisa da Diretoria de Estudos e Polticas do Estado, das Instituies e da Democracia (Diest) do Ipea.** Bolsista da Diest do Ipea.

  • 38 Federalismo Brasileira: questes para discusso

    se encontre momentaneamente contida, desde a Emenda Constitucional (EC) no 15, de 1996, que transferiu Unio o poder de legislar sobre a formao de novas municipalidades.

    Como consequncia do quadro exposto, os gestores pblicos tero de, cada vez mais, considerar a articulao entre as diferentes polticas pblicas adotadas em distintos nveis de governo, de forma a potencializar os resultados. O caso das medidas preventivas de sade pblica e das redes de ateno primria, secundria, terciria e quartenria o exemplo bvio desta necessidade crescente. Alm deste, certamente os servios de planejamento territorial, saneamento, meio ambiente e transportes, entre outros, demandaro maior coordenao por parte de seus res-ponsveis. Esta necessidade de adequada composio federativa impe o desafio de avaliar os resultados alcanados pelos instrumentos atuais, com vistas ao seu aperfeioamento, sua complementao ou sua substituio.

    Neste texto, busca-se contextualizar a dinmica de interao cooperativa en-tre os entes federados na promoo de polticas e proviso de servios pblicos. Em seguida, observa-se a trajetria recente do mais importante instrumento legal de coordenao federativa cooperativa: o consrcio em especial, o pblico. Para tanto, utilizam-se os dados produzidos pela Pesquisa de Informaes Municipais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (MUNIC/IBGE), entre 2005 e 2009. Este perodo de observao no casual, pois reflete diretamente os efeitos da Lei Federal no 11.107, de 6 de abril de 2005, que regulamentou os consrcios pblicos.

    2 TRAJETRIA BRASILEIRA NA FORMAO DE ARRANJOS FEDERATIVOS COOPERATIVOS

    Cada uma das 28 federaes existentes hoje no mundo apresenta arranjo institu-cional absolutamente nico, combinando maior ou menor centralizao de com-petncias e recursos financeiros (ANDERSON, 2009). A concertao entre estas duas variveis gera ao menos quatro modelos de organizao federal.

    O primeiro modelo o da concentrao de competncias e recursos finan-ceiros em um ente nacional. Esta soluo pouco representativa de modelos fe-derais de organizao do Estado e mais afeita aos estados unitrios.

    No segundo modelo, existe concentrao de competncias em um ente nacional, mas a implementao das polticas pblicas e os recursos financeiros correspondentes so descentralizados para um ente subnacional. No Brasil, o Pro-grama Bolsa Famlia (PBF) constitui bom exemplo deste tipo de arranjo.

    No terceiro modelo, a competncia do ente subnacional, mas a implemen-tao das polticas pblicas delegada a um ente estatal superior. So exemplos desta possibilidade os servios de trnsito, desde a edio do Cdigo de Trnsito

  • 39Cooperao Federativa

    Brasileiro de 1996. Embora a poltica de trnsito seja de competncia municipal, este pode demandar que o governo estadual, por meio da Polcia Militar (PM), atue em sua implementao.

    Por fim, o quarto modelo caracteriza-se pela concentrao de competncias e recursos financeiros nos entes subnacionais, como era o caso no Brasil, durante a Repblica Velha.

    Os modelos de organizao so representados, de forma esquemtica, no quadro 1.

    QUADRO 1Modelos de organizao federal

    Responsabilidade por implementar a poltica pblica

    Responsabilidade por regulamentar a poltica pblica

    Forma Centralizada Descentralizada

    Centralizada 1 2

    Descentralizada 3 4

    Elaborao prpria.

    A trajetria brasileira, dos anos 1970 at hoje, foi, principalmente, do pri-meiro para o segundo e quarto quadrantes. Ou seja, muitas polticas pblicas passaram a ser oferecidas de forma descentralizada, ainda que regulamentadas centralmente ou regulamentadas e executadas localmente.

    Todavia, dizer que a regulamentao ocorre de forma centralizada no significa necessariamente que esta seja de competncia privativa do governo federal, j que a CF/88 prdiga na atribuio de competncias comuns entre os nveis de governo. No regime de competncia comum, compete Unio estabelecer as normas gerais, que podem ser suplementadas por normas estaduais e municipais. possvel tam-bm que, nas hipteses de competncia privativa ou competncia comum, a Unio compartilhe seu poder decisrio com os estados e os municpios, mediante a parti-cipao em conselhos nacionais de polticas pblicas, por exemplo.

    Os servios de sade pblica, a partir do modelo adotado pelo Sistema ni-co de Sade (SUS), constituem paradigma de poltica pblica cuja execuo est a cargo dos governos locais, mas regulamentada de modo centralizado. Por sua vez, a poltica de transporte urbano, que j foi esfera de deciso do governo federal, passou a ser regulamentada e implementada pelos municpios aps a CF/88.

    A criao de mecanismos de articulao federativa pode servir tanto para criar cooperao, quando se incentiva os entes federados a agir em favor de in-teresses comuns, quanto para gerar coordenao, hiptese na qual se estabelece taxativamente quando, como e o qu cada ente far. Entretanto, a simples predis-posio para agir cooperativamente no suficiente para a produo de resultados

  • 40 Federalismo Brasileira: questes para discusso

    satisfatrios. Neste sentido, instrumentos de coordenao no garantem resulta-dos socialmente desejveis, pois sempre possvel que as aes adotadas sejam contraditrias entre si ou contrrias aos interesses dos cidados. Logo, instru-mentos de cooperao e coordenao tm seu efeito positivo potencializado em ambiente democrtico, no qual a poltica deve se submeter escolha dos eleitores e s preferncias dos cidados.

    Por sua vez, agentes polticos no exerccio do mandato so constrangidos por regras que limitam o campo das aes possveis e os resultados por estas produzidos. A principal fonte de restrio ao destes agentes o arranjo institucional, entendido neste estudo como um conjunto de regras formais. Consequentemente, analisar a cooperao e a coordenao federativa no Brasil implica conhecer as regras nas quais estas aes ocorrem. Entre os principais instrumentos de articulao federativa para a produo de polticas e a provi-so de servios pblicos, encontra-se a Lei Federal no 11.107/2005, conhecida como Lei de Consrcios (LC).

    Para melhor entender a contribuio da LC cooperao e coordenao entre entes federados, preciso entender o quadro institucional maior no qual se organiza o federalismo brasileiro em especial, a distribuio de competncias e recursos financeiros.

    A CF/88 imprimiu forte impulso descentralizador organizao estatal brasileira, transferindo aos municpios responsabilidades inditas quanto for-mulao e implementao de polticas pblicas. Todavia, em que pese o sen-tido cooperativo existente na atribuio de competncias concorrentes entre a Unio, os estados-membros e os municpios, no esto previstos mecanismos para induzir a cooperao. Ou seja, faltavam os instrumentos formais necess-rios coordenao federativa.

    Apenas em 1998, com a edio da Emenda Constitucional no 19 (BRASIL, 1998), abriu-se o caminho superao da fragilidade institucional dos arranjos cooperativos, com a introduo da seguinte regra:

    Art. 241. A Unio, os Estados, o Distrito Federal e os Municpios disciplinaro por meio de lei os consrcios pblicos e os convnios de cooperao entre entes federa-dos, autorizando a gesto associada de servios pblicos, bem como a transferncia total ou parcial de encargos, servios, pessoal e bens essenciais continuidade dos servios transferidos.

    Atualmente, est-se vivendo um perodo em que h expressivo crescimento no nmero de consorciamentos entre entes federados no pas. Porm, a busca pela construo de arranjos cooperativos entre municpios bastante anterior a este momento. J na dcada de 1960, com a criao do Consrcio de Promoo Social da Regio de Bauru (SP) e na dcada seguinte, com o Consrcio do Vale do

  • 41Cooperao Federativa

    Paraba (SP) , observa-se esforo de articulao entre administraes pblicas, mormente no nvel local. Contudo, percebe-se que estas primeiras experincias possuam carter menos orientado prestao de servios pblicos especficos, buscando especialmente a integrao e o desenvolvimento regionais. Em alguma medida, pode-se dizer que a experincia do Consrcio Intermunicipal Grande ABC (SP), de 1990, certamente o mais documentado, herdeiro do modelo adotado naquelas primeiras iniciativas associativas. Os elementos inovadores da experincia do ABC esto ligados, por um lado, abrangncia de sua atuao que abarcou tambm polticas sociais, infraestrutura e desenvolvimento local e regional , bem como, por outro lado, incorporao de novos atores, como o governo estadual e setores organizados da sociedade civil.

    Nos anos 1980 e 1990, inicia-se o processo de consorciamento para a pres-tao de servios pblicos, com destaque para a rea de sade, cujas iniciativas de consorciamento so, at hoje, as mais expressivas em quantidade. Entre os con-srcios surgidos naquela poca, destaca-se o Consrcio Intermunicipal de Sade de Penpolis (SP), criado em 1986. Cabe observar que os consrcios de sade no apenas representavam muito mais que o resultado da iniciativa pioneira de alguns prefeitos, mas tambm o esforo dos governos estaduais e a experincia de arti-culao preexistente entre os gestores pblicos desta modalidade de servio, que, desde o movimento da Reforma Sanitria do perodo 1970-1980, passaram a ver a coordenao federativa como meio para contornar os problemas decorrentes da excessiva centralizao, caracterstica da Ditadura Militar. Esta conjuno de fatores se tornou ainda mais favorvel a partir da descentralizao ordenada pela CF/88 e da consequente criao do SUS (Lei Federal no 8.080/1990). Portanto, no se deve desprezar a importncia da ao concertada dos vrios atores sociais envolvidos na construo de contexto favorvel ao crescimento dos consrcios de sade no Brasil.

    Apesar da forte expanso verificada a partir dos anos 1980, o instrumento jurdico sobre o qual essas iniciativas de cooperao se encontravam fundadas era extraordinariamente frgil. Grande parte dos consrcios de sade era instituda por meio de convnios e adotava a forma da associao civil de direito privado. Como observou Cunha (2004, p. 14), esse procedimento tem levado a uma situao contraditria, uma vez que a soma de uma pessoa jurdica de direito pblico com outra pessoa jurdica de direito pblico resulta numa pessoa jurdica de direito privado.

    O convnio entre organizaes pblicas constitui modalidade de contrato administrativo que pode ser denunciado por qualquer uma das partes, a qualquer tempo, com poucas possibilidades concretas de obter-se seu cumprimento com-pulsrio (enforcement), por meio judicial. Logo, os consrcios de sade fundados em convnio constituam entes precrios, totalmente dependentes da vontade

  • 42 Federalismo Brasileira: questes para discusso

    poltica dos governantes de planto e sujeitos a perodos de forte mobilizao ou total paralisia. Procurando superar estes problemas, a LC atribuiu aos consrcios pblicos o carter de pessoas jur