investigação crimes de sonegação fiscal

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“ASPECTOS INVESTIGATIVOS DOS CRIMES CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO, DE SONEGAÇÃO FISCAL E LAVAGEM DE DINHEIRO”. Raquel Branquinho P. Mamede Nascimento Procuradora da República no Rio de Janeiro/RJ. Apresentação no Primeiro Seminário de Direito Penal e Processual Penal promovido pelo Núcleo da Escola Superior do Ministério Público Federal no Rio de Janeiro no mês de setembro de 2001. I - INTRODUÇÃO A instituição do Ministério Público, nos termos já discutido em inúmeros trabalhos doutrinários, seminários, simpósios, palestras, etc, foi objeto de uma grande remodelagem em seu perfil institucional a partir da Constituição de 1988, sendo-lhe atribuída, pelo Poder Constituinte Originário, a prerrogativa de ser o titular

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“ASPECTOS INVESTIGATIVOS DOS CRIMES CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO, DE SONEGAÇÃO FISCAL E LAVAGEM DE DINHEIRO”.

Raquel Branquinho P. Mamede NascimentoProcuradora da República no Rio de Janeiro/RJ.

Apresentação no Primeiro Seminário de Direito Penal e Processual Penal promovido pelo Núcleo da Escola Superior do Ministério Público Federal no Rio de Janeiro no mês de setembro de 2001.

I - INTRODUÇÃO

A instituição do Ministério Público, nos termos já discutido em inúmeros trabalhos doutrinários, seminários, simpósios, palestras, etc, foi objeto de uma grande remodelagem em seu perfil institucional a partir da Constituição de 1988, sendo-lhe atribuída, pelo Poder Constituinte Originário, a prerrogativa de ser o titular exclusivo da ação penal pública, dentre outras funções próprias para a defesa da sociedade, notadamente no que se refere a direitos de natureza coletiva.

Não possuindo mais a função de defesa do Estado (União), especificamente no caso do Ministério Público Federal, restou

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definido no texto constitucional que ao Ministério Público compete a exclusiva função de defesa da sociedade, seja na esfera criminal, enquanto dominus litis da ação penal, seja na esfera cível, como legitimado na propositura de ações civis públicas, ações pela prática de atos de improbidade administrativa e para a própria defesa da minorias e hipossuficientes, como é o caso de crianças e adolescentes, das comunidades indígenas, das pessoas portadoras de deficiência, etc.

Estabelecidos os parâmetros constitucionais de atuação do Ministério Público, foram promulgadas as legislações de regência dessa instituição seja na esfera federal, tratando-se da Lei Complementar nº 75/93, ou na estadual, Lei nº 8.625/93. Ambas as normas atribuem ao órgão do parquet, no desempenho da sua função, a possibilidade de investigação direta de crimes, podendo, para tanto, expedir notificações para colheita de depoimentos ou esclarecimentos (com o auxílio de força policial, se necessário); requisitar informações, exames periciais e documentos de autoridades federais, estaduais e municipais, de entidades privadas, etc.

Sobre tal matéria, os Tribunais Superiores já foram instados a se manifestarem em diversas ocasiões, podendo-se considerar que a posição da maioria da jurisprudência pátria é no sentido da possibilidade de investigação direta pelo órgão do parquet, restando pendente, no entanto, uma melhor definição dessa questão por parte do Supremo Tribunal Federal.

Acerca do entendimento de que a investigação criminal seria atribuição exclusiva da Polícia Federal, é certo que a aplicação de critérios hermenêuticos de interpretação segundo o Princípio da Unidade da Constituição, compatibilizando-se o preceito do

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artigo 129 e seus incisos com o artigo 144, parágrafo 1º, inciso IV do Texto Constitucional, conduz o intérprete à conclusão no sentido de que a única interpretação cabível para a expressão “exclusividade” que consta da última norma acima, possui como critério de parâmetros as demais forças policiais, ou seja, polícia rodoviária federal, militar, civil e nunca o Ministério Público, titular da ação penal.

Recente Acórdão da lavra do Ministro Gilson Dipp, julgado à unanimidade pela 5ª Turma do c. Superior Tribunal de Justiça, deixou estreme de dúvidas a possibilidade de o Ministério Público conduzir diretamente as investigações criminais, realizando todo o tipo de atos necessários à apuração criminal, tal como determinação de comparecimento em núcleo de investigação para a colheita de depoimentos.

Superada a questão acima, o presente trabalho destina-se a discorrer sobre as dificuldades enfrentadas pelo órgão da acusação na investigação de crimes disciplinados em legislações extravagantes, apenas introduzidas no ordenamento jurídico pátrio a partir de pressões externas e da própria sociedade, indignada com a reiterada prática de crimes contra o Estado, envolvendo má gestão de instituições financeiras em suas mais variadas formas, aspectos e conseqüências; sonegação fiscal e lavagem de dinheiro.

Ocorre que, não obstante a tutela penal desses bens jurídicos, de relevante interesse para a sociedade, até mesmo para o desenvolvimento econômico e social do país em parâmetros mais sólidos, proporcionando a imprescindível alteração do drástico quadro de má distribuição de rendas, diferenças sociais e concentração de riquezas em pequena parcela da população, os resultados obtidos pelo aparelho repressor do Estado (Polícia, Ministério Público e Poder Judiciário) são deveras insignificantes diante

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do volume de crimes praticados, do prejuízo de ordem moral e material que ocasionam e da impunidade de seus agentes.

Tal quadro encontra-se retratado com grande eficiência pela Subprocuradora Geral da República e Professora, Dra. Ela Wiecko V. de Castilho, em sua obra “O Controle Penal nos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional”, tendo a i. autora já destacado, no início de sua obra que “ Os estudos na perspectiva da reação social, no

Brasil e em outros países, preocupam-se, em geral, com a estigmatização, pelos órgãos do controle penal (Polícia, Ministério Público, Judiciário e órgãos da execução penal), das classes mais baixa ou de grupos vulneráveis. Já há, portanto, uma produção razoável de conhecimento sobre como e por que são os pobres que povoam as prisões. Faltam estudos e a demonstração sobre como os ricos são

excluídos do controle penal”.(pg. 14 - grifo nosso).

Ao discorrer especificamente sobre o objeto do seu trabalho, que incluiu, dentre outros aspectos, o levantamento de representações encaminhadas ao Ministério Público Federal pelo Banco Central do Brasil no período de julho de 1986 a julho de 1995 e o resultado desses procedimentos, que se referem a 682 casos, alertou a ilustre autora que:

“... o volume dessa criminalidade, apurado no período de oito anos e meio, é extremamente reduzido, em comparação a outros setores da criminalidade, como, por exemplo, da criminalidade patrimonial. É um grão de areia, se considerarmos projeção feita pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciário em 1993, de que, ao ano, um milhão de crimes é praticado no Brasil. Mas, também revela que a impunidade se deve menos às instâncias formais tradicionais (Polícia, Ministério Público e Judiciário) e mais ao Banco Central. A chave do cofre que abriga enorme cifra oculta dessa criminalidade é uma instituição não -penal, que faz seleção básica, utilizando-se de parâmetros pouco transparentes e dificilmente submetidos a qualquer fiscalização”.

(pg. 18/19). Grifamos

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Em sendo o Ministério Público o titular da ação penal pública, tratando-se do órgão que, por disciplina constitucional expressa; possui a opinio delicti acerca da configuração ou não do ilícito, tendo poderes para investigar diretamente a ocorrência desses crimes, coordenar a investigação policial e de outros órgãos da esfera administrativa e também de atuar conjuntamente nessas apurações, questiona-se: - Seria o Ministério Público o responsável por tanta ineficiência e maus resultados nas apurações? Qual o motivo da dificuldade no processamento nesses crimes e na devida punição de seus autores?

Não podemos olvidar o grande avanço no processo de restabelecimento da democracia no país, que se intensificou com a promulgação da Carta Constitucional de 1988, inclusive devido ao fato de já contar o ordenamento jurídico nacional com legislações que tipificam condutas que, em passado bem recente e, devido à formação histórica de nosso país e dos privilégios sempre usufruídos pela classe dominante, passavam totalmente impunes.

Assim, atualmente, no campo do direito material, há uma disciplina específica para a tutela penal do sistema financeiro nacional (Lei 7.492/86); do sistema tributário (Lei 8.137/90) e, da própria lavagem de dinheiro (Lei 9.613/98), crimes que se encontram intrinsecamente relacionados e cuja prática tem-se intensificado a cada dia.

É certo que os crimes capitulados na conhecida lei do “colarinho branco”, a sonegação fiscal, os crimes praticados contra a Administração Pública e a lavagem de dinheiro sempre estiveram presentes em nossa realidade, intensificando a sua ocorrência, como era de se esperar, a partir do que veio a ser conhecido como

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“globalização”, principalmente com a abertura dos mercados de países “emergentes”, nos quais o Brasil se incluía, e que, atualmente, vivenciam crises constantes de manutenção da sua política econômica, devido a fortes ataques especulativos.

Tais países tornaram-se um grande atrativo a criminosos transnacionais, diante do precário, senão inexistente sistema de controle do processo de internação de capital; investimentos internos e retorno dessas importâncias a paraísos fiscais, em algumas ocasiões já transformadas em “investimentos lícitos”.

Esse processo também ocorreu de forma inversa, ou seja, com a remessa de divisas para o exterior, principalmente a partir da década de 90, através de expedientes diversos, inclusive das conhecidas contas “CC-5” (de estrangeiros não residentes). Em algumas ocasiões, dependendo da estratégia utilizada pela organização criminosa, essas cifras regressaram ao país a título de investimento de “estrangeiros”, com isenção de tributos, inclusive.

Ressalte-se que, no limiar de qualquer crise, volumes expressivos de capital são retirados de forma abrupta, desestabilizando a economia do país, com grande queda em suas reservas cambiais, o que se torna um ciclo vicioso, pois o dinheiro proveniente do crime, aplicado de forma especulativa em mercados de capitais, contabiliza vultosos ganhos, devido à política econômica adotada, que impossibilita o efetivo combate ao crime organizado quanto a seu aspecto financeiro.

Quando nos referimos a criminosos estrangeiros, é de conhecimento geral que o dinheiro que movimentam provém da

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prática de crimes tais como tráfico de drogas; tráfico de armas; exploração da prostituição; contrabando de todos os gêneros, extorsões, etc, e que, para serem transformados em “ativos” lícitos dependem de toda uma estrutura que envolve a montagem de diversas transações sempre relacionadas a instituições financeiras, havendo, assim, um grande intercâmbio entre o crime organizado, a sonegação fiscal, a lavagem de dinheiro e os crimes contra o sistema financeiro.

Também é certo que, para manter os seus privilégios e possibilidades de atuação sem o devido controle e fiscalização do Estado, o crime organizado impulsiona de forma visível e com grande intensidade a prática da corrupção por políticos e autoridades de alto escalão de todas as esferas do poder, fazendo com que haja uma importante e destacada atuação dessas pessoas na movimentação da máquina estatal em benefício do crime, dificultando, quando não impedindo a investigação e repressão desses ilícitos.

Em excelente monografia sobre o tema, a socióloga Flávia Schilling, em sua tese de doutorado na USP, definiu corrupção como um conjunto variável de práticas que implica em trocas entre quem detém

poder decisório na política e na administração e quem detém poder econômico, visando a obtenção de vantagens – ilícitas, ilegais ou ilegítimas – para os indivíduos

ou grupos envolvidos. (in Corrupção: Ilegalidade Intolerável ?: Comissões Parlamentares de Inquérito e a luta contra a Corrupção no Brasil. Flávia Schilling. São Paulo: IBCCRIM, 1999, pg. 15).

Esclarece a autora que o trabalho de dissertação, partindo do reconhecimento de que a corrupção se coloca de forma progressiva no Brasil no centro do debate político, verificou, dentre outras questões que:

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“’..se inicialmente, a corrupção era vista como formando ‘quistos’ na sociedade, como própria e intrínseca a determinadas instituições, começa a ser percebida como ampla e generalizada. Essa situação provoca um duplo registro: a corrupção é inevitável, é parte da natureza humana e da nossa cultura, é a única forma possível de governar. O outro registro diz:é um instrumento do poder e está ligada à permanência de uma certa configuração do poder que permeia os diferentes momentos políticos do Brasil, localizando-se de forma onde existe a capacidade de exercer influência. A conseqüência desta visão é a de que a corrupção não é inevitável, não é própria da natureza humana nem da nossa cultura: é fruto de uma sociedade com profundas desigualdades, com hierarquias por elas sustentadas e que a reproduzem, é uma forma perversa da arte

brasileira de fazer política” (op. cit, pg. 328 – gn).

Nesse quadro é que se deve desenhar o papel do Ministério Público, enquanto instituição encarregada da investigação e processamento desses ilícitos, questionando-se as efetivas razões de não se alcançar o devido êxito nesses casos, não obstante a intensa predisposição de seus integrantes em trabalharem ativamente para obterem um mínimo de equilíbrio entre os resultados auferidos na persecução criminal dos crimes de colarinho branco perante a Justiça Federal e os efetivos resultados alcançados quando se tratam de crimes praticados por aquela já conhecida parcela da sociedade que freqüenta diariamente nossos tribunais e povoa o sistema carcerário.

II - DAS DIFICULDADES NO PROCESSAMENTO DOS CRIMES CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO, TRIBUTÁRIO E DE LAVAGEM DE DINHEIRO.

A primeira questão a se analisar neste tópico não se trata propriamente da dificuldade operacional da investigação quando já se tem conhecimento do crime por meio de notitia criminis,

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delatio criminis ou de outras formas de informação da ocorrência desses ilícitos.

Trata-se, na realidade, da recalcitrância dos órgãos administrativos encarregados do controle e fiscalização dessas atividades, os quais possuem critérios discricionários e obscuros de seleção dos fatos sujeitos à comunicação ao Ministério Público ou à própria Polícia, deixando claro que o Ministério Público possui a opinio delicti apenas das situações que essas instituições, Banco Central do Brasil, Comissão de Valores Mobiliários, Superintendência de Seguros Privados, Conselho Federal de Atividades Financeiras, Receita Federal, dentre outras, julgarem cabíveis de encaminhamento de peças de informação.

O aprofundado estudo elaborado pela Prof. Ela Wiecko demonstrou a total inoperância do Banco Central, no período analisado --1986 a 1995 -, em comunicar fatos passíveis de apuração na esfera penal, deixando de lado as análises técnicas efetivadas por auditores, que em regra demonstram a existência de fundados indícios de ilícitos, por um longo julgamento político, que se protrai no tempo, tornando ineficaz posterior apuração penal, diante do advento da prescrição, o que apenas beneficia os envolvidos nessas irregularidades.

Afirma a ilustre Procuradora: “É o Banco Central que faz a seleção majoritária dos casos que deverão ser tratados como

infrações criminais contra a ordem econômica prevista na Lei nº 7.492/86. E conclui, mais adiante: “Identificou-se alguns casos de indubitáveis, ou pelo

menos fortes indícios de prática criminal, que não foram comunicados ao Ministério Público. Por exemplo, os casos dos bancos Goldmine e Ourinvest e da Usina Santa Bárbara, que serão analisados no item seguinte, porque neles está identificada também a presença de outro mecanismo, encontram-se ainda em fase de processo

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administrativo. O caso da ‘pasta cor-de-rosa’só veio ao Ministério Público por força de requisição de documentos. Uma lista de 126 infrações criminais praticadas pelos administradores do Banco Econômico também só foi comunicada ao Ministério Público em face de situação conjuntural. A fraude nos balanços do Banco Nacional, descoberta em 18 de novembro de 1995, só foi comunicada ao Ministério Público quatro meses após. E a omissão na contabilização das comissões relativas ao deságio de 29 operações de conversão informal de dívida externa, feitas em 1988,

pelo Banco Nacional, só foi comunicada em 1994”. (op. cit., pgs. 230 e 239). gn

Essa inércia dos órgãos encarregados do controle e fiscalização das atividades financeiras também se encontra retratada na obra dos i. juristas Paulo José da Costa Jr.; M. Elizabeth Queijo e Charles M. Machado, os quais concluem que:

“Jamais se registrou, no Sistema Financeiro Nacional, número

tão significativo de escândalos financeiros. Ora por má gestão, ora por gestão fraudulenta, mas sempre com conivência dos órgãos fiscalizatórios. Só para se ter uma idéia, nos últimos 5 anos, cerca de 188 instituições financeiras sofreram liquidação ou intervenção extrajudicial, perfazendo um passivo a descoberto de instituições liquidadas no valor de 75,5 bilhões, o que por si só já nos dá a idéia da inoperância e defasagem dos instrumentos de controle e punição do mercado financeiro.

(...)O certo é que a lógica do mercado nem sempre segue a ética

e os valores que o direito tenta proteger, de sorte que a ordem econômica com o passar do tempo corre sérios riscos com a manipulação de mercados que por vezes

fazem a riqueza de poucos e o infortúnio de muitos.(in Crimes do Colarinho Branco. São Paulo: Saraiva, 2000, pgs. 60/61). grifamos

Infelizmente tal situação apenas se agravou, pois, amparados em pareceres da Procuradoria do órgão, os técnicos do BACEN e da CVM, dentre outros, sistematicamente, têm-se negado a encaminhar documentos relacionados às investigações conduzidas

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pelo parquet, sob o fundamento genérico de que se tratam de dados acobertados pelo sigilo.

Basta considerar que, apesar da Lei 9613/98 instituir, em seu artigo 14, um órgão encarregado da disciplina, controle e fiscalização de fatos suspeitos de atividades ilícitas ligadas à lavagem de dinheiro, tratando-se do COAF e, seu artigo 15 expressamente determinar a esse órgão a obrigatoriedade de comunicação desses fatos às autoridades competentes para a instauração de procedimentos cabíveis à apuração de crimes, é certo que desde a sua instituição até a presente data, não se tem notícia de qualquer comunicação de crime à Procuradoria da República no Rio de Janeiro por parte do COAF, embora se saiba da existência dos procedimentos administrativos correlatos.

Não se pode olvidar que, no momento em que a análise da matéria suplanta a esfera técnica apropriada, como é o caso dos auditores, fiscais, dentre outros profissionais, o julgamento passa a ser estritamente político e o resultado está diretamente relacionado, em se tratando de órgão vinculado ao Executivo, aos interesses do Governo. Assim, a interpretação que vem sendo atribuída à questão da comunicação de crime por parte do BACEN, CVM, etc, é no sentido de que o encaminhamento de peças de informação ao Ministério Público ocorrerá no momento e na forma determinada por critérios internos de seleção.

Diante do quadro acima reportado, é possível a constatação no sentido de que a promulgação de leis que possibilitam o processamento e punição de pessoas que integram a elite econômica e política do país, quanto à prática de crimes do colarinho branco, contra a administração pública,

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de lavagem de dinheiro, etc, apenas ocorreu no plano formal, num processo de retórica e discurso pela moralização, sem alcançar a efetividade necessária ao combate a tais crimes.

Na prática, verifica-se que não há uma “vontade política” para a efetiva aplicação dessas normas e, quando se verifica que o Ministério Público e Polícia estão avançando no cumprimento do seu papel de investigação e o Poder Judiciário está sensível a tais fatos, com a condenação de seus agentes, muda-se a regra do jogo, com a criação de entraves de natureza meramente formal.

Exemplificando a assertiva acima, pode-se citar, a título ilustrativo, a redação do artigo 83, da Lei 9430/96; do artigo 11, da Lei 9639/98 e, por último, do artigo 15 da Lei 9964/2000, que de forma inconstitucional, atribui uma anistia penal, sob a forma de suspensão da pretensão punitiva, aos crimes tributários em que houver a simples opção ao REFIS, olvidando-se que o pagamento parcelado dos débitos refinanciados superam todos os limites prescricionais estabelecidos no Código Penal, ensejando a impunidade de seus agentes.

III - DO SIGILO BANCÁRIO E DE DADOS.

Outro óbice à comunicação de crime ao Ministério Público, ou quando há tal informação, ao encaminhamento da documentação respectiva de forma completa, trata-se do sigilo bancário e do sigilo de dados constantes dos registros e arquivos dos órgãos públicos já citados.

É importante ressaltar que o afastamento do sigilo bancário e do sigilo de dados, notadamente aqueles armazenados em

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meios magnéticos, representa a forma mais eficaz de apuração dos ilícitos já referidos, tanto sob o aspecto da materialidade desses crimes, quanto no que se refere à elucidação da sua autoria.

O crime organizado ou mesmo aquele praticado de forma isolada, mas que tenha correlação com evasão de divisas, sonegação fiscal, gestão fraudulenta ou temerária de instituições financeiras, dentre outros, são praticados sob as mais elaboradas formas, contando com o auxílio intelectual de especialistas em informática, economia, contabilidade, etc., o que torna extremamente difícil aos órgãos estatais encarregados da investigação a sua elucidação.

No âmbito federal, apenas em final dessa última década a Polícia Federal estruturou um setor próprio para investigação desses crimes – DCOIE/Divisão de Combate ao Crime Organizado e Inquéritos Especiais, sendo imprescindível ressaltar que tal Divisão ainda conta com as mais diversas dificuldades operacionais e estruturais, notadamente no que concerne ao suporte técnico especializado. Basta dizer que em todo o país, o Departamento de Polícia Federal conta com menos de dez peritos efetivamente capacitados a desenvolverem análises mais elaboradas na área de informática, não obstante a efetiva demanda de aprimoramento desse setor, pois qualquer investigação de crimes de colarinho branco depende do efetivo apoio técnico apropriado.

Retornando à questão do afastamento do sigilo bancário, a disciplina normativa dessa matéria tratava-se do artigo 38, da Lei 4.595/64, norma de regência do sistema financeiro nacional, recepcionada pelo Texto Constitucional na forma de Lei Complementar, que estabelece o seguinte:

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“Art. 38 – As instituições financeiras conservarão sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados.Parágrafo 1º – As informações e esclarecimentos ordenados pelo Poder Judiciário prestados pelo Banco Central da República do Brasil ou pelas instituições financeiras, e a exibição de livros e documentos em Juízo, se revestirão sempre do mesmo caráter sigiloso, só podendo a eles ter acesso as partes legítimas na causa, que deles não poderão servir-se para fins estranhos à mesma.(...)Parágrafo 7º - A quebra do sigilo de que trata este artigo constitui crime e sujeita os responsáveis à pena de 1 (m) a 4 (quatro) anos.

Já a Lei 7492/86, que tipifica os ilícitos contra o Sistema Financeiro Nacional, em seu artigo 29, parágrafo único, dispõe que:

“Art. 29. O órgão do Ministério Público Federal, sempre que julgar necessário, poderá requisitar, a qualquer autoridade, informação, documento ou diligência relativa à prova dos crimes previstos nesta lei.Parágrafo único. O sigilo dos serviços e operações financeiras não pode ser invocado como óbice ao atendimento da requisição prevista no caput deste

artigo.” Grifamos.

Os Tribunais Superiores, quando instados a se pronunciarem sobre a possibilidade de requisição direta pelo órgão do parquet das informações de que dispunha o Banco Central ou demais instituições financeiras, não se posicionaram de forma uniforme sobre a matéria, havendo divergência de entendimento tanto no sentido de que os dados bancários apenas poderiam ser informados mediante

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prévia autorização judicial, diante do teor do referido artigo 38, havendo aqueles que entendiam cabível a requisição direta de informações. Saliente-se que anteriormente à promulgação da nova Carta Constitucional, ambas as leis acima citadas possuíam a mesma hierarquia, ou seja, tratavam-se de leis ordinárias.

Há precedentes em que se admite a requisição direta de informações bancárias quando a investigação estiver relacionada ao desvio de verbas públicas, diante da publicidade dos atos governamentais, conforme julgamento do Mandado de Segurança nº 21.724-4/DF, que teve como Relator o Ministro Sepúlveda Pertença, publicado no DJ de 13/08/1993.

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, tiveram início longos debates sobre a questão do sigilo bancário, posicionando-se alguns juristas e doutrinadores no sentido da impossibilidade de acesso a dados bancários, ainda que por decisão judicial, pois estes estariam abrangidos nas expressões “intimidade”, “vida privada”, previstas no artigo 5º, inciso X, da Carta Constitucional e na inviolabilidade do sigilo de dados a que se refere o inciso XII, dessa mesma norma constitucional.

Uma simples análise da questão já indica a inadmissibilidade dessa interpretação, que inviabilizaria por completo a investigação de ilícitos de extrema gravidade, garantindo a impunidade de seus autores e privilegiando o interesse privado em detrimento do público, que se traduz pela necessidade de investigação do crime e punição de seus agentes.

Sem dúvida essa foi a interpretação dada tanto pelo Supremo Tribunal Federal, como pelo Superior Tribunal de Justiça,

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valendo-se dos princípios da proporcionabilidade, razoabilidade e supremacia do interesse público. Assim, a possibilidade de afastamento do sigilo bancário em investigações de natureza criminal e em determinadas situações na esfera cível, trata-se de tema pacífico na jurisprudência dos Tribunais Superiores, desde que haja a prévia autorização judicial.

No que se refere à requisição direta de informações pelo Ministério Público, seja Federal ou Estadual, com fundamento nas suas leis de regência (LC 75/93 e Lei 8.625/93), o tema suscita posições antagônicas, havendo, no entanto, julgados que admitem tal requisição, desde que as informações sejam referentes a órgãos ou entes públicos, pois nesse caso não haveria que se falar em intimidade, vida privada, sendo preponderante o princípio da publicidade, nos termos já salientados.

Atualmente, a questão referente ao afastamento do sigilo de dados bancários encontra-se sob ampla discussão jurídica e doutrinária, em face da revogação do artigo 38 da Lei 4595/64 pela Lei Complementar nº 105, que estabelece hipóteses de acesso a essas informações por parte das instituições encarregadas do controle e fiscalização da atividade financeira e tributária nacional no desempenho de suas atividades de fiscalização.

III.1 – DA LEI COMPLEMENTAR 105/01.

Num cenário de relevantes discussões jurídicas e políticas acerca de diversos crimes que abalaram a confiança da população na capacidade do Estado – Administração Pública – de resguardar o interesse público, notadamente o patrimonial, de lesões praticadas por agentes políticos, servidores públicos e particulares e,

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também numa tentativa por parte do Congresso Nacional na recuperação da sua respeitabilidade, ocorreu a aprovação da Lei Complementar 105/01, considerada como um meio eficaz de combate ao crime organizado nas suas mais diversas modalidades.

Tal legislação entrou em vigor sendo alvo de contundentes críticas no que se refere à possibilidade de acesso e utilização de informações bancárias por parte dos órgãos públicos que discrimina, no desempenho de suas funções de apuração de infrações civis/administrativas e, em conseqüência, informação de ilícitos criminais, diante do entendimento de diversos juristas no sentido de que o sigilo bancário trata-se de matéria que se submete ao princípio constitucional da reserva de jurisdição.

Nos termos já salientados, diversos julgados admitem o afastamento do sigilo bancário, mediante decisão judicial, entendendo que a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e dos dados referentes aos indivíduos deve ceder ao interesse público (STF – MS 23452/RJ; STF-RE-219780/PE; STJ-AgRg IP nº 187/DF; STJ-Resp nº 124.272-0/RO).

O dispositivo constitucional que garante a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e do sigilo dos dados, trata-se do artigo 5º do Texto Constitucional, que disciplina os “Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”.

Assim, a interpretação dos julgados já citados, que classificam as informações bancárias como integrantes da esfera privada do cidadão, apenas se referem ao sigilo de operações realizadas por pessoas físicas, titulares dos direitos fundamentais agasalhados pelo artigo 5º da Magna Carta, não

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podendo abranger, por conseguinte, pessoas jurídicas, dentre as quais órgãos públicos.

Ao discorrer sobre o tema, o jurista Celso Bastos assevera que: “todas as despesas ordinárias feitas pelo cidadão comum em sua vida cotidiana devem ser consideradas parte de sua vida privada, familiar ou domésticas e, portanto, protegidas contra interferências a despeito de qualquer pretexto...”(in Estudos e Pareceres, Sigilo Bancário. São Paulo: RT, 1993, pg. 62/67)

As pessoas jurídicas possuem personalidade distinta de seus administradores e mesmo que estes se valham do ente coletivo para a prática de crimes, o que não é raro nas hipóteses dos ilícitos sob análise, o afastamento do sigilo bancário da empresa, seja órgão público ou privado, não tem o condão de atingir a esfera de privacidade do seu administrador, ainda que seja o mesmo processado criminalmente em razão dos atos praticados na sua gestão, ressaltando-se que, na hipótese de órgão público, o princípio constitucional da publicidade é suficiente a garantir a informação bancária para fins de investigação administrativa ou criminal e verificação da destinação das verbas públicas.

Daí a inconstitucionalidade das restrições disciplinadas no parágrafo 1º, do artigo 3º e no parágrafo 3º, do artigo 5º, da LC 105/01, estabelecendo a prévia autorização judicial para o fornecimento de informações e documentos sigilosos referentes à apuração da responsabilidade de servidor público por infração praticada no exercício de suas atribuições e da análise pela Receita Federal das movimentações financeiras efetuadas pelas administrações direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

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Os recentes acontecimentos históricos do país demonstram que ilícitos de extrema gravidade estão relacionados à conduta de servidores públicos em seu sentido mais amplo, abrangendo agentes políticos e empresas da administração direta ou indireta, tais como SUDAM, DETRAM, diversos fundos públicos; BNDS, TRT/SP, etc, estão envolvidas em desvios e malversação de vultosos valores. Ademais, diante dos princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade, que disciplinam o trato com a res publica, tal fator de diferenciação não se justifica.

Os princípios da razoabilidade e da supremacia do interesse público quanto à devida apuração de crimes impedem uma interpretação extensiva dos dispositivos constitucionais já citados, no sentido de se garantir ao ente jurídico os mesmos direitos previstos à pessoa natural, sobretudo ao se considerar que os direitos e garantias fundamentais disciplinados no artigo 5º do Texto Constitucional tiveram a finalidade precípua de resguardar o cidadão de uma interferência estatal na esfera individual nos moldes ocorridos no regime antidemocrático que vigeu no país a partir da década de 60.

As garantias constitucionais não podem representar um escudo para a prática de crimes, impedindo a apuração dos ilícitos que justamente causam sérios gravames à sociedade e que são praticados de forma elaborada e de difícil elucidação, sendo imprescindível a análise do iter percorrido por vultosos valores objeto das mais diversas operações bancárias, em regra, de titularidade de pessoas jurídicas que em determinadas situações sequer de fato existem.

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Quanto ao tema de se tratar o sigilo bancário de matéria reservada a exclusiva apreciação judicial, como garantia ao resguardo do direito à privacidade e intimidade do indivíduo, entendimento que impediria a aplicabilidade da Lei Complementar nº 105/01, partilhamos do entendimento de alguns doutrinadores no sentido de que a interpretação sistemática dos preceitos constitucionais, segundo a ponderação dos valores agasalhados pelos princípios implícitos e explícitos no Texto Constitucional, admite, seja em prol da “igualdade tributária”, da justiça fiscal ou mesmo da possibilidade do Estado-Administração apurar e posteriormente punir condutas que vulneram interesses públicos, protegidos na esfera penal, que a própria administração pública, na forma disciplinada na LC 105/01, proceda às apurações cabíveis em sua esfera de atribuição.

Assim, segundo ensaio jurídico da lavra do Prof. Kleber Augusto Tagliaferro, publicado na Revista Dialética de Direito Tributário nº 66, pg.72: “O sigilo bancário não pode mais ser o porto seguro dos sonegadores, tampouco instrumento de injustiça social. Deve prevalecer, portanto, o interesse público sobre o particular, a igualdade tributária sobre a liberdade/intimidade, sem o que o pacto social perderia sentido”.

O i. jurista acima citado entende que a exigência de prévia autorização judicial para que a administração pública desempenhe a função de fiscalização que lhe é inerente, configura vulneração ao disposto no artigo 60, parágrafo 4º, III da Constituição Federal, pois estaria a restringir a separação das funções do Estado.

Nada obsta, no entanto, que ao considerar injustificado o procedimento adotado pelo Estado-Administração, o

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cidadão faça uso do seu direito constitucional do livre acesso ao Poder Judiciário, a fim de discutir a legalidade dos atos administrativos.

A apuração de infração civil, administrativa ou criminal, com base, inclusive, em informações e documentos mantidos pelas instituições que compõem o sistema financeiro nacional não representa uma violação a direitos e garantias individuais, sobretudo ao ser efetivada na forma disciplinada pelas normas de regência, que prescrevem sanções aos agentes que, encarregados da apuração, praticarem qualquer desvio de conduta na utilização desses dados.

III.2 – DA LEI COMPLEMENTAR 105 E A COMUNICAÇÃO DE CRIMES.

Outro aspecto a ser analisado trata-se da obrigatoriedade dos órgãos públicos detentores das informações protegidas pelo sigilo (art. 1º, LC 105/01), notadamente o Banco Central, Receita Federal, CVM, dentre outros, de procederem às comunicações ao Ministério Público dos fatos passíveis de apuração na esfera criminal.

É certo que o artigo 9º da citada Lei estabelece que o BACEN e a CVM, no exercício de suas atribuições, deverão comunicar a ocorrência de crime definido em lei como de ação pública, ou indícios de sua ocorrência ao Ministério Público, instruindo tal informação com a documentação pertinente.

Seguindo a linha de entendimento que já vinha sendo adotada anteriormente à vigência dessa norma, os órgãos acima citados, ao serem instados pelo MPF a encaminharem informações relativas a fatos que se encontravam sob investigação,

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com o resguardo dos dados bancários, que poderiam ser submetidos a posterior requerimento judicial, informaram que o encaminhamento dessas informações apenas ocorreria no momento que entendessem caracterizados indícios da prática de crimes, na forma do artigo 9º, vez que o artigo 3º da referida Lei Complementar não teria disciplinado as requisições do Ministério Público dentre as possibilidades de afastamento do sigilo.

Tal posicionamento mostra-se inconstitucional, por infringir o disposto no artigo 129, inciso VI da Magna Carta e ilegal, vez que também vulnera os preceitos normativos da LC 75/93, do mesmo patamar hierárquico da lei de regência do sigilo bancário.

O artigo 9º da LC 105/01 e o artigo 28 da Lei 7492/86, estabelecem, como cláusula de fechamento do sistema que disciplinam, a obrigatoriedade de os órgãos públicos comunicarem ao titular da ação penal a ocorrência de fatos passíveis de apuração criminal. Todavia, não se pode admitir, sob pena de se privar o Ministério Público da sua função constitucional de conduzir, juntamente com o aparelho policial, as investigações e formar a opinio delicti dos fatos sob apuração, que o atendimento às requisições ministeriais esteja sujeito ao crivo discricionário do órgão administrativo que apenas encaminhará a documentação requisitada quando verificar a ocorrência de crimes.

Os órgãos públicos acima citados fazem tabula rasa do princípio geral do direito relativo à independência das instâncias civil e penal, sobretudo ao se considerar que, ainda que determinado fato não seja devidamente apurado na esfera administrativa, poderá ser submetido à apuração criminal, com a deflagração de ação penal e até mesmo a condenação de seus autores, possibilitando ao Juízo

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Criminal adotar, como efeito da condenação, diversas medidas que interferem na própria seara administrativa, como, por exemplo, a perda do cargo público.

O artigo 9º impõe a obrigatoriedade de comunicação, sob pena de responsabilização pessoal do servidor, quando a atividade administrativa fiscalizatória indicar a ocorrência de crimes. No entanto, não tem o condão de inverter a ordem constitucional e processual vigente, que possibilita o acesso pelo órgão do parquet às informações que entenda pertinentes à condução das investigações e transportar tal atribuição ao próprio órgão fiscalizador, sobretudo em face de situações que apontam para a conivência e participação desse mesmo órgão nos fatos apurados.

A interpretação teleológica e finalística da citada norma resultam nessa conclusão. Assim, o artigo 1º, que define como regra geral a obrigatoriedade de preservação do sigilo das operações realizadas pelas instituições que discrimina, já estabelece, como exceção a essa regra geral, a comunicação, às autoridades competentes, de prática de ilícitos penais ou administrativos, abrangendo o fornecimento de informações sobre operações que envolvem recursos provenientes de qualquer prática criminosa (art. 1º, parág. 3º, IV).

Já o parágrafo 4º dessa norma, de natureza interpretativa e com efeitos declaratórios da extensão e finalidade do afastamento do sigilo, estabelece que a sua quebra poderá ocorrer em qualquer fase do inquérito ou do processo judicial, atribuindo especial atenção a crimes considerados de extrema gravidade no atual contexto histórico de nossa sociedade, dentre os quais, aqueles que

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atingem o sistema financeiro nacional, a Administração Pública, a ordem tributária e a previdência social e a lavagem de dinheiro.

Ressalte-se que os ataques à Lei Complementar 105/01 referem-se, precipuamente, à questão do acesso a dados e operações bancárias pelos órgãos encarregados da investigação administrativa e criminal de fatos que constituam ilícitos nessas esferas do Direito. Nesse aspecto, necessário que os operadores do Direito, notadamente o Judiciário e o próprio Ministério Público, estejam alertas em relação a discursos maniqueístas que, sob o enfoque da preservação dos direitos e garantias fundamentais do cidadão, estejam aptos a promover, senão garantir, a impunidade dos autores de crimes que atentam contra a sociedade como um todo, causam lesões de extrema gravidade e se escondem nas arestas criadas pelo sistema, a fim de impedir a sua efetiva e exemplar punição.

Não se verificou, até o momento, o enfrentamento da matéria referente ao afastamento de dados bancários, cadastrais, pessoais, etc, relativamente a indivíduos que, por diversos motivos, não conseguem adimplir suas dívidas, tendo seus nomes e diversas outras informações lançados em cadastros de instituições bancárias, empresas comerciais, etc, que são fornecidos ao público em geral sem qualquer restrição e, até a promulgação da LC 105/01, sem qualquer amparo legal.

Assim, a troca de informações entre instituições financeiras para fins cadastrais, inclusive por intermédio de centrais de risco e o fornecimento de dados constantes de cadastros de emitentes de cheques sem provisão de fundos e de devedores inadimplentes a entidades de proteção ao crédito, também não constitui quebra do

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sigilo bancário, segundo estabelecido no parágrafo 3º, incisos I e II da citada norma.

Relevante observar que essa “troca de informações” não ocorre entre órgãos públicos ou tais dados são manuseados por servidores públicos que respondem civil e penalmente pelos seus atos, ou pelo próprio Ministério Público, na defesa da sociedade, mas sim, por particulares, com a finalidade precípua de resguardar os interesses estritamente privados.

A LC 105/01 não representa a solução para todos os entraves jurídicos e operacionais enfrentados pelo aparelho investigativo estatal na elucidação dos crimes, mas constitui um grande avanço nessa difícil batalha, sendo que caberá ao Supremo Tribunal Federal declarar, com base na análise de todos os aspectos já suscitados e outros não levantados neste trabalho, se o interesse público deverá se sobrepor ao privado, mantendo-se a separação das funções estatais, de forma que a investigação administrativa e criminal, com a utilização de informações bancárias, constitua um poder-dever do Estado-Administração no combate ao crime, respeitados os limites estabelecidos pela própria norma e seus regulamentos.

IV – DIFICULDADES OPERACIONAIS NA INVESTIGAÇÃO DE CRIMES CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO E OUTROS.

A par de todos os entraves jurídicos já suscitados, necessário ressaltar que, no campo processual e mesmo instrumental, são enfrentados problemas de todas a natureza, sobretudo de estrutura adequada para a elucidação desses ilícitos, os quais,

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conforme salientado, são praticados de forma elaborada e com todo os auxílio técnico que o dinheiro pode proporcionar.

Assim, superada a questão referente à possibilidade de acesso aos dados bancários, o primeiro problema enfrentado na apuração do crime trata-se da inexistência de um cadastro nacional de contas e demais operações financeiras, o que torna praticamente impossível a averiguação completa do universo de operações relativas aos fatos investigados, limitando-se o Banco Central, ao receber uma determinação judicial de acesso às informações bancárias, a retransmitir essa ordem via sistema, a fim de que as instituições financeiras informem ao Juízo ou mesmo ao Ministério Público a existência de movimentações e encaminhe os documentos pertinentes.

A experiência tem demonstrado que tal mecanismo é ineficiente e inseguro, pois transfere à instituição financeira que mantém as contas sob apuração a responsabilidade de informá-las e remeter os respectivos documentos, sem a previsão de qualquer penalidade para eventual não atendimento. Em regra, as instituições informam, de forma célere, que nada possuem relativamente aos fatos investigados. Todavia, em situações de maior relevância, inclusive quanto ao volume movimentado, as informações são incompletas, os documentos são ilegíveis e, em determinados casos, algumas contas ou operações sequer são informadas, demandando um grande trabalho de cruzamento de dados para a verificação que os informes estão incompletos.

No desempenho da sua função de controle e fiscalização da atividade financeira, apresenta-se imprescindível a instituição, pelo BACEN, de um cadastro nacional de contas e também,

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a previsão de meios operacionais mais céleres e adequados para a análise e rastreamento de movimentações bancárias, devendo tais informações ser encaminhadas pelas respectivas instituições em meio magnético compatível à leitura e processamento pelo Departamento de Polícia Federal e pela própria Receita Federal.

O volume de documentos produzido em cumprimento à ordem de afastamento do sigilo torna praticamente impossível a adequada análise dessas informações e o cruzamento de dados.

Outro aspecto de extrema relevância nessas apurações, trata-se da adequada estruturação do Setor de Perícia da Polícia Federal para o desenvolvimento de perícias em área de informática, contabilidade, economia, finanças públicas e privadas, cruzamento de dados bancários, etc.

Diante do pequeno corpo técnico com especialidade nessas áreas, da grande demanda de sua atuação e inexistência da adequada infra-estrutura material e tecnológica, torna-se extremamente difícil desvendar todos os aspectos que envolvem a prática de crimes contra o sistema financeiro nacional, lavagem de dinheiro, dentre outros.

Nesses mesmos termos, apresenta-se de grande relevância na apuração dos ilícitos já citados, a interceptação das comunicações telefônicas e telemáticas. O primeiro obstáculo que surge a partir do deferimento da ordem judicial, refere-se à operacionalização dessa medida, que se tornou extremamente difícil com a nova estrutura do sistema de telefonia nacional, diante da existência de diversas operadores de telefones móveis e fixos; das

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diferentes estruturas técnicas operacionais de cada uma, bem como da existência de aparelhos que não permitem a identificação do seu usuário, tais como os pré-pagos.

Torna-se necessário que o agente regulador dessa atividade adote medidas para uniformizar a prestação desse munus público, inclusive sob o aspecto da informação de registros de comunicações, que deveriam constar de meios magnéticos, pois, se não houver uma política de combate ao crime que conte com o aparato técnico dessas empresas, notadamente quanto à disponibilização de linhas para a interceptação e das informações documentais pertinentes, tornar-se-á praticamente impossível a elucidação de algumas atividades criminosas.

No que se refere especificamente à lavagem de dinheiro, evasão de divisas e sonegação fiscal, é certo que vultosas quantias são movimentadas em diversas contas, que transitam internamente no país em nome, em regra, de “fantasmas” ou “testas de ferro” e, em determinado momento, são remetidas ao exterior, tendo como beneficiárias pessoas físicas ou até mesmo jurídicas, residentes ou domiciliadas em paraísos fiscais.

Nesse aspecto, imprescindível a efetiva aplicação dos acordos de cooperação internacional que possibilitem a localização do dinheiro indevidamente enviado ao exterior; dos criminosos foragidos do país; de investigados e demais agentes residentes no país ou no exterior, que tenham envolvimento com os fatos apurados.

Tal mecanismo ainda se mostra burocrático e demorado, dependendo do cumprimento de inúmeras formalidades, ensejando, em determinadas situações, o transcurso do momento

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adequado para a prática de determinado ato, sendo efetivado, em regra, por meio de cartas rogatórias.

Tal quadro tem sofrido algumas alterações, diante da existência de política internacional de combate ao crime organizado, com especial atenção ao tráfico de entorpecentes e à lavagem de dinheiro, como demonstra recente Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal, firmado entre o Brasil e os EUA, aprovado por meio do Decreto Legislativo nº 262/2000.

A implementação de meios técnicos adequados à apuração de ilícitos deve acompanhar o progresso tecnológico, bem como os métodos de que se valem os criminosos em sua atuação, sob pena de se mostrar o Estado totalmente desestruturado no combate ao crime organizado em suas mais diversas modalidades.

V – CONCLUSÃO.

Concluindo o presente estudo, em síntese, pode-se afirmar que:

1 – O Ministério Público, enquanto titular da ação penal, tem o poder-dever de participar ativamente das investigações de ilícitos, seja diligenciando diretamente para sua elucidação, através da requisição de documentos e informações, oitivas de investigados e testemunhas, diligências externas, pedidos de busca e apreensão, requisição de perícias, etc; ou atuando conjuntamente com a Autoridade Policial;

2 – A única forma de se impedir ou, ao menos atenuar, o controle “político” e discricionário na comunicação de

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crimes, trata-se do acesso, pelo órgão do parquet, a todos os processos ou procedimentos administrativos dos órgãos públicos já citados (COAF, BACEN, CVM, etc), a partir da conclusão da equipe técnica respectiva pela configuração de infração administrativa. Compete unicamente ao Ministério Público, a partir das apurações cabíveis, verificar se essas infrações também configuram ilícitos criminais;

3 – A partir da promulgação da Carta Constitucional de 1988, a interpretação majoritária dos Tribunais, inclusive do STF, firmou-se no sentido de ser admissível o afastamento do sigilo de dados bancários para fins de investigação criminal, mediante prévia autorização judicial.

Com a edição da LC 105/01, que revogou o artigo 38, da Lei 4595/64, os critérios de interpretação dos dispositivos constitucionais que garantem a inviolabilidade do sigilo, mas que também impõem a supremacia do interesse público e social em face do interesse privado (ponderação de interesses), enseja a conclusão quanto à constitucionalidade do disposto na LC 105/01;

4 – O artigo 9º da LC 105/01 impõe aos órgãos encarregados do controle e fiscalização de atividades financeiras, a obrigatoriedade da comunicação de fatos passíveis de configuração de crimes ao Ministério Público;

Por outro lado, o disposto nos artigos 129, inciso VI da CF; no artigo 8º da LC 75/93 e no próprio artigo 1º, parágrafo 3º, inciso IV da LC 105/01, conferem ao órgão do parquet a possibilidade de requisição de toda a documentação necessária à condução de investigações criminais;

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5 – A LC 105/01 afronta os princípios constitucionais expressamente consignados no caput do artigo 37 da Magna Carta, notadamente o princípio da publicidade de todos os atos e procedimentos que envolvam bem ou interesse público, quando exige prévia autorização judicial para o acesso a informações e documentos sigilosos referentes à conduta de servidor público, quanto à prática de infrações no exercício de sua função (art. 3º, parág. 1º) e quando impede que a Receita Federal, nos termos disciplinados no artigo 5º, obtenha informações referentes a operações financeiras efetuadas pelas administrações direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;

6 – Com fundamento na mesma interpretação vigente até a edição da LC 105/01, quanto à preservação da intimidade, vida privada, honra, etc, garantias fundamentais do indivíduo, verifica-se que a norma do artigo 1º, parágrafo 3º, incisos I e II da citada lei, que torna legítima a troca de informações e fornecimento de dados, inclusive bancários, entre instituições financeiras, centrais de risco, cadastro de emitente de cheques sem fundos e devedores inadimplentes e entidade de proteção ao crédito, de fato afronta as garantias acima referidas e à própria dignidade da pessoa humana, diante das conseqüências que ocasionam, nem sempre proporcional ao dano causado, e dos interesses que protegem, unicamente privados e patrimoniais.

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