introduÇÃo ao debate sobre as políticas oficiais no ... · sem penas a qual se manifesta...

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IN TR ODUÇÃO AO DE BATE S OBRE AS P OLíTICAS OF ICIAIS NO CAMPO C RI MINAL Cezar Bueno de Lima Professor de Sociologia Geral e Jurídica da Unifil e PUC - Campus Londrina. E-mail: [email protected].br Resumo o processo de globalização econômica e fmanceira atual tem provocado respostas contraditórias na fonnulação de políticas criminais por parte da burocracia estatal. De um lado, sob forte influência do pensamento econômico neoc1ássico, surge, no reino unido, a teoria da nonnalização do crime qualificando o ato criminal como uma opção racional de escolha, uma questão de oportunidade mediante a qual os delinqüentes calculam racionalmente suas ações. De outro lado, surge, nos EUA, o movimento de defesa da lei e da ordem, que propõe tolerância zero ao crime mediante a ampliação do direito penal e o recrudescimento da resposta criminal estatal. Para os defensores da descriminalização e do abolicionismo a utopia da sociedade de controle favorável ao aumento da punição e mudanças de alvo para administrar o crime ignora o fato da existência de uma sociedade sem penas a qual se manifesta através da cifra negra, diferença entre infrações denunciadas na polícia e aquelas efetivamente julgadas. Palavras-chave: globalização, estado, crime, punição, descriminalização, abolição da pena D ois adolescentes I, o primeiro conhecido por Japonês e o segundo por Lázaro ambos com aproximadamente 14 anos de idade cometeram mais um roubo na região metropolitana de Londrina - PR no ano de 2000. 1 O relato dos atos infracionais em questão foi informado pelo profess or de filosofia da Unifil-Londrina, Joaquim Pacheco de Lima. Revista Mediações, Londrina, v.8, n. 1, p.47·69, jan./jun. 2003 47

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Page 1: INTRODUÇÃO AO DEBATE SOBRE AS POLíTICAS OFICIAIS NO ... · sem penas a qual se manifesta através da cifra negra, ... vinculados em razão do potencial revolucionário da informação

INTRODUCcedilAtildeO AO DEBATE SOBRE AS POLiacuteTICAS OFICIAIS NO CAMPO CRIMINAL

Cezar Bueno de Lima

Professor de Sociologia Geral e Juriacutedica da Unifil e PUC - Campus Londrina

E-mail cebuenorla01pucprbr

Resumo

o processo de globalizaccedilatildeo econocircmica e fmanceira atual tem provocado respostas contraditoacuterias na fonnulaccedilatildeo de poliacuteticas criminais por parte da burocracia estatal De um lado sob forte influecircncia do pensamento econocircmico neoc1aacutessico surge no reino unido a teoria da nonnalizaccedilatildeo do crime qualificando o ato criminal como uma opccedilatildeo racional de escolha uma questatildeo de oportunidade mediante a qual os delinquumlentes calculam racionalmente suas accedilotildees De outro lado surge nos EUA o movimento de defesa da lei e da ordem que propotildee toleracircncia zero ao crime mediante a ampliaccedilatildeo do direito penal e o recrudescimento da resposta criminal estatal Para os defensores da descriminalizaccedilatildeo e do abolicionismo a utopia da sociedade de controle favoraacutevel ao aumento da puniccedilatildeo e mudanccedilas de alvo para administrar o crime ignora o fato da existecircncia de uma sociedade sem penas a qual se manifesta atraveacutes da cifra negra diferenccedila entre infraccedilotildees denunciadas na poliacutecia e aquelas efetivamente julgadas

Palavras-chave globalizaccedilatildeo estado crime puniccedilatildeo descriminalizaccedilatildeo aboliccedilatildeo da pena

Dois adolescentes I o primeiro conhecido por Japonecircs e o segundo por Laacutezaro ambos com aproximadamente 14 anos de

idade cometeram mais um roubo na regiatildeo metropolitana de Londrina shyPR no ano de 2000

1 O relato dos atos infracionais em questatildeo foi informado pelo professor de filosofia da Unifil-Londrina Joaquim Pacheco de Lima

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Desta vez os adolescentes mantiveram um casal de idosos em cativeiro extorquindo-lhes um video-cassete uma fritadeira uma maacutequina fotograacutefica e mais R$ 7000 em dinheiro

A accedilatildeo criminal em questatildeo foi segundo relato dos adolescentes envolvidos desvendada do seguinte modo por volta das 19 horas a poliacutetica militar apropriou-se dos objetos roubados que estavam sob o poder dos adolescentes e numa aacuterea florestal proacutexima do local do crime os agentes policiais soltaram-nos dizendo o seguinte vocecircs natildeo nos viram e noacutes natildeo nos encontramos Passados dois meses os adolescentes foram detidos por furto numa outra residecircncia e encaminhados agrave Promotoria de Justiccedila a qual apoacutes conversas com os pais dos garotos os liberou

Quanto aos perfis familiar e econocircmico dos adolescentes infratores pode-se constatar que Laacutezaro possui matildee desconhecida e que seu pai fugiu da penitenciaacuteria do Estado do Paranaacute (Curitiba) onde cumpria pena por traacutefico de drogas O pai de Laacutezaro possui diversas passagens pela poliacutecia por praacutetica de homiciacutedios roubos e furtos Laacutezaro vive com a avoacute cujo ganho proveacutem de uma pensatildeo do marido jaacute falecido Problemas de psicose e esc1erose acompanham a combalida sauacutede da avoacute do adolescente infrator Natildeo obstante a distacircncia geograacutefica que separa Laacutezaro de seu pai este por telefone orienta o filho no exerciacutecio do traacutefico de droga A casa em que Laacutezaro reside com sua avoacute funciona como boca de fumo

No caso do segundo adolescente infrator sabe-se que seu pai abandonou a mulher e seis filhos trecircs adolescentes do sexo feminino e trecircs do sexo masculino Dentre as adolescentes duas ganham a vida prostituindo-se na Avenida Tiradentes (Londrina-PR) Quanto aos adolescentes masculinos um deles eacute deficiente mental por consumo abusivo de droga crack

A descriccedilatildeo das caracteriacutesticas da accedilatildeo infracional e dos perfis familiar e econocircmico dos agentes envolvidos eacute teoricamente relevante uma vez que esse tipo de ato infracional e caracteriacutesticas mencionadas se aplicam a uma quantidade significativa de accedilotildees infracionais praticadas na regiatildeo metropolitana de Londrina-PR Daiacute a importacircncia de fazer uma reflexatildeo socioloacutegica sobre os mecanismos oficiais e teoacutericos vigentes de resoluccedilatildeo dos conflitos criminais contra a pessoa e o patrimocircnio na sociedade atual

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o presente artigo visa expor algumas questotildees conceituais que abordam o fenocircmeno da criminalidade no acircmbito das ciecircncias sociais no intuito de contribuir para uma melhor compreensatildeo dos motivos que alimentam o modo de atuaccedilatildeo e a crenccedila legitimadora da intervenccedilatildeo da burocracia estatal visando combater uma duvidosa escalada da accedilatildeo criminal Dentre os elementos teoacutericos abordados discutir-se-aacute a relaccedilatildeo entre globalizaccedilatildeo Estado e as contradiccedilotildees das poliacuteticas criminais adotadas em resposta aos atos infracionais

Globalizaccedilatildeo eReestruturaccedilao da Poliacutetica Criminal Estatal

Tendo em vista o propoacutesito desse artigo optou-se por fazer uma breve discussatildeo sobre as abordagens teoacutericas marxistas e neoliberal com base nos diversos autores2 que fazem uma reflexatildeo sobre o atual processo de globalizaccedilatildeo

O processo de globalizaccedilatildeo em curso pode ser entendido a partir de duas perspectivas teoacutericas distintas De acordo com a teoria marxista (CHESNAIS 2001) trata-se de um fenocircmeno que do ponto de vista econocircmico financeiro poliacutetico e militar produz relaccedilotildees assimeacutetricas e hieraacuterquicas entre paiacuteses capitalistas centrais e perifeacutericos A partir dessa assimetria de poder entre naccedilotildees e estados certas demandas substantivas no campo da economia da poliacutetica estatal da cultura e estrateacutegicas de seguranccedila que dominam a agenda de discussatildeo entre os paiacuteses e organismos internacionais tendem a obedecer a uma relaccedilatildeo de subordinaccedilatildeo hieraacuterquica que vai do nuacutecleo duro agrave periferia do sistema

Os EUA satildeo um exemplo especiacutefico dessa relaccedilatildeo assimeacutetrica por ser o paiacutes que deteacutem o poder hegemocircnico no campo econocircmico poliacutetico e militar cuja evidecircncia se manifesta na esfera das relaccedilotildees internacionais No setor das poliacuteticas criminais Nova York eacute o local onde surge o termo toleracircncia zero rapidamente disseminado em outras partes do continente (Meacutexico Argentina e Brasil) na tentativa de enfrentar a escalada dos conflitos criminais nesses paiacuteses

Diversos autores como Boaventura Sousa Santos (2000) e Dowbor lanni Resende (I 998) tecircm discutido sobre o tema no campo das Ciecircncias Sociais

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A caraterizaccedilatildeo marxista do processo de globalizaccedilatildeo em curso eacute refutada por Ohmae (1999) segundo o qual o termo globalizaccedilatildeo coincide com o fim do conceito de Estado-Naccedilatildeo construiacutedo a partir das revoluccedilotildees econocircmica e poliacutetica europeacuteia do seacuteculo XIX

Atualmente afirma Ohmae (1999) assiste-se ao colapso da ideacuteia de Estado-naccedilatildeo Numa economia sem fronteiras diz o autor as pessoas tecircm melhor acesso a produtos de baixo custo e de boa qualidade quando natildeo satildeo fabricados no proacuteprio paiacutes No plano da comunicaccedilatildeo povos afastados geograficamente e distintos culturalmente estatildeo todos vinculados em razatildeo do potencial revolucionaacuterio da informaccedilatildeo global

Um exemplo disso proveacutem dos adolescentes Estes que satildeo milhotildees em todo mundo crescem num ambiente repleto de multimiacutedia e adquirem modos de ser e de comportamento muito mais parecidos uns com os outros comparativamente aos membros das geraccedilotildees mais velhas de suas proacuteprias culturas Diante da transformaccedilatildeo econocircmica e cultural em questatildeo qualquer reflexatildeo teoacuterica que tome o Estado-naccedilatildeo como paracircmetro de anaacutelise estaacute fadada ao fracasso

As crises econocircmicas e poliacuteticas que acompanham os paiacuteses em face da globalizaccedilatildeo resultam de dois fatores escassa prosperidade econocircmica e aumento das informaccedilotildees sobre o estilo de vida no exterior Eacute o caso por exemplo dos EUA que impulsionam expectativas muito rapidamente gerando um ambiente propiacutecio para que a inveja e o ressentimento comecem a se espalhar exigindo a intervenccedilatildeo populista do Estado em direccedilatildeo a uma poliacutetica distributiva

A raiz social desse descontentamento generalizado diz Ohmae estaacute na forma intervencionista que assume o Estado atraveacutes de poliacuteticas de subsidio Esse modelo de intervenccedilatildeo eacute uma caracteriacutestica da tirania da democracia atual cuja vocaccedilatildeo tem sido conceder pesos iguais aos votos antes que sejam levadas em conta as contribuiccedilotildees para a manutenccedilatildeo da sociedade como um todo Esse artificialismo vinculado agraves poliacuteticas distributivas definidas pelo poder tem por consequumlecircncia levar o governo a fazer empreacutestimos sem lastros com promessa de resgate a longo prazo hipotecando o destino das geraccedilotildees futuras

As consequumlecircncias desse processo poliacutetico intervencionista avalia Ohmae (1999) eacute criar viacutecios comprar votos e quanto mais funciona maior o apetite em niacuteveis cada vez mais elevados Esse modelo

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pode assumir um ponto sem retomo em que a maioria subsidiada e suprida do nuacutenimo puacuteblico natildeo teraacute necessidade nem incentivo para permitir a busca de um equiliacutebrio fiscal sustentaacutevel

As soluccedilotildees propostas pelo autor para inverter esse quadro satildeo primeiro fechar a torneira dos subsiacutedios atraveacutes de desregulamentaccedilatildeo privatizaccedilatildeo da infra-estrutura decreacutescimo da matildeoshyde-obra empregada no setor puacuteblico segundo limitar o poder poliacutetico do governo central agraves questotildees de seguranccedila e moeda fortalecer a ideacuteia dos estados-regiotildees concedendo autonomia agraves unidades federativas no campo das transaccedilotildees econocircmicas internacionais

Eacute interessante avaliar como esse modelo proposto de privatizaccedilatildeo do Estado estabelece correspondecircncia com as correntes teoacutericas no acircmbito da poliacutetica criminal

Economia Estado e o Novo Discurso Criminal

A partir de 1970 (GARLAND 1999 p64) foi montado no Reino Unido um discurso criminal com base na teoria da escolha racional da teoria da atividade de rotina do crime como oportunidade e da prevenccedilatildeo da criminal idade situacional desembocando nas novas criminologias da vida cotidiana O estereoacutetipo de delinquumlente muda de lugar O novo infrator calcula suas accedilotildees e a maior parte dos crimes converte-se numa questatildeo de oportunidade A melhor reposta seria portanto tomar as coisas mais difiacuteceis para os delinquumlentes

Garland (1999) afirma que uma linguagem analiacutetica do risco da racionalidade da escolha da probabilidade da determinaccedilatildeo de alvos da oferta e da demanda de ocasiotildees transfere as formas econocircmicas de raciociacutenio e de caacutelculo para o campo da criminologia Novos objetivos tais como compensaccedilatildeo controle de custo reduccedilatildeo dos danos etc satildeo definidos pela criaccedilatildeo da imagem do criminoso racional Quanto agrave imagem da viacutetima ela aparece como fornecedora de ocasiotildees criminais

Esse novo modelo de pensamento destroacutei consideraccedilotildees de caraacuteter psicoloacutegico e socioloacutegico utilizadas no seacutec XX e formula uma nova concepccedilatildeo de delinquumlente criminal A partir desse esquema de reflexatildeo procura-se repensar as dinacircmicas da criminalidade e do castigo

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em termos pseudo-econocircmicos Se o crime natildeo for uma escolha racional fica mais difiacutecil combatecirc-lo

Esse modelo de anaacutelise surgiu no setor privado (companhias de seguro empresas comerciais e de seguranccedila privada) com o objetivo de reduzir os custos do crime que lhes pesam sobre os ombros Esse raciociacutenio comercial e fundado no seguro acerca da repressatildeo criminal procura diminuir ou deslocar os custos do crime em direccedilatildeo natildeo do castigo mas da prevenccedilatildeo de reduzir o risco antes que garantir a justiccedila

Esse modelo de pensamento apoacutes os anos de 1980 passou a influenciar os organismos e praacuteticas do Estado sobretudo entre os setores profissionais ligados agraves concepccedilotildees sociais e legais da criminalidade Esse tipo de anaacutelise tributaacuterio das concepccedilotildees econocircmicas neoclaacutessicas forma o conjunto da teoria da escolha racional que vecirc no crime uma questatildeo de oportunidade ocasional

O ato criminal converte-se numa rotina algo que acontece no curso normal das coisas e natildeo mais uma perturbaccedilatildeo social que requer explicaccedilotildees especiais A conduta cotidiana da vida econocircmica e social fornece infindaacuteveis ocasiotildees de transaccedilatildeo ilegiacutetima As accedilotildees criminais satildeo vistas como atos regulares previsiacuteveis e sistemaacuteticos como um acidente de tracircnsito Nesse sentido as accedilotildees contra o crime devem recair natildeo sobre pessoas desviantes mas preferencialmente sobre accedilatildeo concebida para governar os haacutebitos sociais e econocircmicos (GARLAND1999p66)

Em oposiccedilatildeo agraves afirmaccedilotildees da criminologia claacutessica3 que vincula a accedilatildeo criminal agrave existecircncia de patologias individuais e deacuteficit de socializaccedilatildeo a teoria da escolha racional vale-se dos esquemas claacutessicos de motivaccedilatildeo econocircmica Para o sujeito incriminado trata-se de uma ocasiatildeo uma escolha de carreira um meio de conseguir emoccedilotildees fortes ou vingar-se Para a viacutetima ou o puacuteblico o crime constitui um risco que deve ser calculado ou um acidente a ser evitado e natildeo uma aberraccedilatildeo moral que exija explicaccedilotildees sofisticadas

Ao decretar a incapacidade do aparato repressivo do Estado de lidar com o problema da criminalidade essas teorias procuram desarmar a

3 Ver por exemplo a abordagem que faz Alexando Baratta (2002) no capiacutetulo escola positiva e explicaccedilatildeo patoloacutegica da criminalidade

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pesada e deficiente burocracia estatal em busca de outros padrotildees de intervenccedilatildeo O estabelecimento de novos programas de accedilatildeo devem influenciar a conduta das viacutetimas potenciais armar os alvos vulneraacuteveis melhorar a seguranccedila em zonas perigosas e reestruturar as rotinas da vida cotidiana que tecircm propiciada desagradaacuteveis ocasiotildees para o crime

A erosatildeo da confianccedila da sociedade atual nas eventualidades das penas dissuasivas decorre da duvidosa capacidade da poliacutecia de prender os bandidos ou da vatilde esperanccedila de que se possa ensinar o domiacutenio de si aos jovens cidadatildeos A nova ordem social requer como imperativo a necessidade de substituir o dinheiro vivo por cartotildees de creacutedito de embutir travas nas colunas de direccedilatildeo dos automoacuteveis contratar vigias nos estabelecimentos colocar circuitos internos de televisatildeo coordenar os horaacuterios de fechamento das discotecas rivais etc Essa nova concepccedilatildeo da normalizaccedilatildeo do crime justifica e abona a reforma neoliberal do Estado ao transferir para os setores privados a responsabilidade estatal pela seguranccedila puacuteblica

Dentro desse quadro ganham forccedila propostas poliacuteticas de defesa de reformas transferindo do Estado para os grupos privados a responsabilidade pela gestatildeo dos conflitos criminais Esse modelo de poliacutetica criminal desenvolvido no Reino Unido sob forte influecircncia do pensamento econocircmico neoliberal natildeo eacute hegemocircnico e em determinados aspectos contrasta abertamente com certos princiacutepios do chamado realismo penal adotados pelo aparato de Estado norteshyamericano no campo da poliacutetica criminal

AOpccedilao Norte-Americana Por Uma Poliacutetica Criminal de Toleracircncia Zero

Nos EUA a redefiniccedilatildeo das missotildees do Estado parte de princiacutepios quase dogmaacuteticos de reduzir o seu papel social e de ampliar sua intervenccedilatildeo penal

Os oacutergatildeos de Estado norte-americano encarregados de promover o rigor penal resultaram na quadruplicaccedilatildeo da populaccedilatildeo carceraacuteria As diretrizes da poliacutetica policial e judiciaacuteria fizeram de Nova York a vitrine mundial da doutrina da toleracircncia zero ao passar agraves forccedilas da ordem um cheque em branco para perseguir agressivamente

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a pequena delinquumlecircncia e reprimir os mendigos e os sem-teto nos bairros deserdados Isso vem segundo Wacquant (2001) acompanhado da vulgarizaccedilatildeo da teoria da vidraccedila quebrada que eacute um empreacutestimo do ditado popular quem rouba um ovo rouba um boi A premissa dessa teoria conservadora eacute lutar passo a passo contra os pequenos distuacuterbios cotidianos para reduzir as grandes patologias criminais

Sem comprovaccedilatildeo empiacuterica essa teoria serve de aacutelibi para conter o medo que as classes meacutedia e alta tecircm dos pobres nos espaccedilos puacuteblicos (ruas parques estaccedilotildees ferroviaacuterias ocircnibus metrocirc etc) A luta que visa eliminar a criminalidade atua em trecircs frentes a) aumento em 10 vezes o efetivo e equipamentos das brigadas b) restituiccedilatildeo das obrigaccedilotildees operacionais aos comissaacuterios de bairro com obrigaccedilatildeo quantitativa de resultados c) implantaccedilatildeo de um sistema de radar informatizado (arquivo central sinaleacutetico e cartograacutefico consultaacutevel em microcomputadores a bordo dos carros de patrulha) Esse conjunto de medidas possibilita uma intervenccedilatildeo implacaacutevel instantacircnea e inflexiacutevel da lei sobre os delitos menores tais como o jogo a mendicacircncia os atentados aos costumes a simples ameaccedila etc

Em termos monetaacuterios ocorreu uma extraordinaacuteria expansatildeo dos recursos destinados agrave manutenccedilatildeo da ordem em NY O orccedilamento policial superou em quatro vezes as verbas destinadas aos hospitais puacuteblicos Essa tendecircncia pode ser ainda mais acentuada nos paiacuteses capitalistas perifeacutericos que entram num processo passivo de globalizaccedilatildeo decretando o fim do Estado-naccedilatildeo

Em termos poliacuteticos o rebaixamento do Legislativo em benefiacutecio do Executivo implica no enfraquecimento do contratual em favor do regulamentar Essa inversatildeo institucional diz Charvet (1977) faz com que a produccedilatildeo da norma e sua concretizaccedilatildeo sejam subtraiacutedas de um compromisso puacuteblico em que indiviacuteduos tenham participado

Para os defensores do Estado policial trata-se no entanto do dever de impor a obrigaccedilatildeo do trabalho assalariado precaacuterio O EstadoshyProvidecircncia norte-americano fracassou devido ao seu programa de ajuda agrave pobreza porque era permissivo e natildeo impunha obrigaccedilatildeo estrita de comportamento aos seus beneficiaacuterios O desemprego deve-se menos agraves opccedilotildees de mercado e mais aos problemas de funcionamento pessoal

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dos desempregados Empregos sujos e mal pagos haacute muitos A situaccedilatildeo de desemprego eacute portanto uma questatildeo de escolha e natildeo de escassez

Uma questatildeo dessa magnitude natildeo pode ser deixada somente agrave boa vontade e agrave iniciativa dos que trabalham por isso devem-se adotar medidas capazes de tornar o trabalho assalariado um dever ciacutevico obrigatoacuterio semelhante ao que se verifica no serviccedilo militar O dever da generalizaccedilatildeo do trabalho precaacuterio deve ser feito atraveacutes do braccedilo punitivo do Estado A poliacutetica social afirma Wacquant desistiu de cumprir a meta de reformar a sociedade preocupando-se em supervisionar a vida dos pobres

De acordo com a arquitetura da ordem criminal norte-americana explicaccedilotildees estruturais da pobreza carecem de plausibilidade Trata-se de uma questatildeo mais relacionada ao comportamento dos pobres do que de barreiras sociais Portanto eacute o comportamento que deve mudar mais do que a sociedade

A existecircncia de um Estado paternalista apenas se justifica se este vier acompanhado de uma ampla estrutura punitiva Deve-se por exemplo utilizar da legislaccedilatildeo de apoio agraves crianccedilas para exigir dos pais ausentes que trabalhem para prover as necessidades de suas farm1ias Poliacuteticas paternalistas de amparo agrave pobreza exigindo a contrapartida do trabalho oferecem mais esperanccedila de melhorar a pobreza do que poliacuteticas estatais distributivas

A proliferaccedilatildeo das incivilidades dizem os defensores da nova ordem criminal eacute o caminho promissor para escalada da delinquumlecircncia As primeiras condutas desviantes quando natildeo recebem puniccedilotildees exemplares estigmatizam um bairro e nele polarizam outros desvios como roubo traacutefico de drogas etc As causas coletivas da accedilatildeo criminal satildeo meras desculpas porque natildeo constituem mecanismos geradores de comportamentos delinquumlentes O crime deve ser imputado ao indiviacuteduo e natildeo agrave sociedade

Natildeo punir os autores das violecircncias urbanas significa alimentar a escalada da delinquumlecircncia Independente da fratura social eacute inaceitaacutevel procurar desculpas para atos indesculpaacuteveis Caso contraacuterio todos os desempregados estariam autorizados a roubar pilhar e depredar A forccedila desse discurso que prega o aumento da repressatildeo criminal estaacute associada ao processo mais geral de globalizaccedilatildeo em curso o qual

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impotildee reformas estruturais no aparato de Estado cujo efeito tem sido o aumento da polarizaccedilatildeo econocircmica entre grupos e classes sociais em diversos paiacuteses

O processo de globalizaccedilatildeo econocircmica e financeira tem sido feacutertil na produccedilatildeo de respostas teoacutericas distintas no controle do crime nas sociedades contemporacircneas O Estado deve atuar entre os adeptos do conceito de normalizaccedilatildeo do crime motivando setores da sociedade civil a oferecer respostas no campo preventivo Nesse sentido a gestatildeo e o controle do crime deveratildeo preocupar-se mais com a vitima potencial e menos com o delinquumlente Armar os alvos que propiciam inumeraacuteveis oportunidades ao crime eacute o objetivo central desse modelo de poliacutetica criminal

Enquanto isso os adeptos do chamado realismo penal sustentam que a banalizaccedilatildeo do crime na sociedade proveacutem da complacecircncia e do enfraquecimento da resposta da lei diante dos agentes que praticam atos criminais No plano das poliacuteticas oficiais essa dualidade de concepccedilotildees teoacutericas tem permeado o discurso e a accedilatildeo da burocracia estatal no campo penal Tais contradiccedilotildees tendem a provocar uma taxa de legitimidade social decrescente da confianccedila do Estado na gestatildeo e controle do crime

Contradiccedilotildees da Criminologia Oficial da Prevenccedilatildeo ao Aumento das Prisocirces

A criminologia oficial informa Garland (1999) mostra-se dualista polarizada e ambivalente Ao lado de uma criminologia do eu que transforma o criminoso em um consumidor racional semelhante agrave viacutetima opera-se ao mesmo tempo uma criminologia do outro do paacuteria do ser ameaccedilador A primeira eacute invocada para banalizar e promover a accedilatildeo preventiva a segunda para provocar o medo as hostilidades populares e afirmar o peso punitivo do Estado (GARLAND 1999 p75)

No decorrer dos anos 90 verifica-se uma ambivalecircncia do discurso oficial Fala-se menos em guerra contra o crime e mais na existecircncia de limites do poder do Estado Documentos oficiais e manifestos poliacuteticos ressaltam que os organismos governamentais natildeo podem combater e controlar a criminalidade isoladamente Em razatildeo

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disso propotildee-se uma melhor gestatildeo dos riscos e dos recursos numa reduccedilatildeo do medo dos custos da criminalidade da justiccedila criminal e maior amparo agraves viacutetimas

Poreacutem nessa uacuteltima deacutecada tentativas expliacutecitas de expressar a coacutelera e o ressentimento do puacuteblico tornaram-se um tema recorrente da retoacuterica que acompanha a legislaccedilatildeo penal e a tomada de decisotildees Os sentimentos da viacutetima da farrulia de um puacuteblico temeroso ultrajado foram constantemente invocados em apoio agrave criaccedilatildeo de novas leis e poliacuteticas penais em que o castigo tornou-se em objeto a ser venerado

Se por um lado a sociedade precisa adaptar-se ao crime concebendo-o como uma atividade profissional normal por outro o realismo penal sugere a divisatildeo do crime em duas categorias crimes violentos como terrorismo assassinato estupro sequumlestro roubo incecircndio criminoso etc exigem uma resposta ultra repressiva cabendo agrave poliacutetica responder a essa expectativa junto ao puacuteblico Jaacute os crimes ocasionais como roubo de veiacuteculos arrombamentos vandalismo e furtos diversos natildeo podem esperar sucesso na accedilatildeo exclusiva da poliacutecia (GARLAND 1999p64)

Esse comportamento dualista da poliacutetica oficial do Estado que admite seu fracasso parcial na soluccedilatildeo dos conflitos penais tambeacutem retira das gavetas enferrujadas da histoacuteria do modelo penal claacutessico punitivo antigas e falaciosas virtudes com o objetivo de administrar o crime Nessa direccedilatildeo a prisatildeo tende a prosperar Por quecirc Porque ela funciona afirmam seus defensores As despesas penitenciaacuterias satildeo investimentos pensado e rentaacutevel para a sociedade A triplicaccedilatildeo da populaccedilatildeo carceraacuteria nos Estados Unidos (1975 e 1989) teria apenas por seu efeito neutralizante evitado 390000 assassinatos estupros e roubos com violecircncia

Na falta da pena de morte mostra Wacquant (2001) a reclusatildeo eacute de longe o meio mais eficaz de impedir os criminosos comprovados e notoacuterios de matar estuprar roubar e furtar Um sistema judiciaacuterio natildeo tem que se preocupar com as razotildees que levam algueacutem a cometer um crime A justiccedila estaacute aiacute para punir os culpados indenizar os inocentes e defender os interesses dos cidadatildeos que respeitam a lei Por isso o Estado deve punir com eficaacutecia aqueles que insistem em transgredir a lei

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Essa velha receita de accedilatildeo repressiva estatal deve prevalecer nos EUA e em outros paiacuteses4

bull Comportamentos criminosos ou protocriminosos como jogar lixo na rua insultar pichar e cometer atos de vandalismo devem ser reprimidos com firmeza a fim de impedir que comportamentos criminosos mais graves se desenvolvam Toma-se igualmente necessaacuterio restaurar o moral dos policiais que foram submetidos anos a fio ao trabalho daninho dos socioacutelogos e dos criminologistas que insistem em dizer que o crime eacute causado pela pobreza fora da alccedilada da poliacutecia

Mediante uma accedilatildeo penal resolutamente agressiva as instituiccedilotildees policiais e penitenciaacuterias na sociedade em tempos neoliberais pretendem reafirmar a autoridade moral do Estado no momento em que ele proacuteprio eacute atingido pela sua impotecircncia econocircmica O aumento da repressatildeo estatal consequumlecircncia da nova ordem criminal em vigor vem acompanhado da privatizaccedilatildeo do sistema penitenciaacuterio A multiplicaccedilatildeo de prisotildees deve acompanhar o aumento da produccedilatildeo juriacutedica de criminosos O mercado da puniccedilatildeo um negoacutecio promissor que proporciona aos detentores de tiacutetulos de accedilotildees das empresas de seguranccedila rendimentos suculentos estaacute nascendo

Wacquant (2001) afirma que as causas do crescimento da populaccedilatildeo carceraacuteria norte-americana estatildeo vinculadas aos pequenos delinquumlentes e particularmente dos toxicocircmanos Ao contraacuterio do discurso poliacutetico e midiaacutetico dominante as prisotildees estatildeo repletas natildeo de criminosos perigosos e violentos mas de vulgares condenados pelo direito comum por negoacutecios com drogas furto roubo ou simples atentados agrave ordem puacuteblica envolvendo parcelas precarizadas das classes subalternas

4 Charvet (1977) mostra um exemplo ilustrativo dessa nova estrateacutegica na RFA Enquanto os cabeleireiros foram convidados a indicar as conversaccedilotildees suspeitas de seus clientes coube aos bombeiros a tarefa adicional de vigiar os veiacuteculos suspeitos reinventando desse modo a delaccedilatildeo de massa Esse modelo de reengenharia estatal repressiva eacute justificado em nome da doutrina da seguranccedila cujo objetivo eacute decretar toleracircncia zero aos delinquumlentes Enquanto as prisotildees se multiplicam nota-se ao mesmo tempo uma notaacutevel estabilidade por crimes de sangue e de costume

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Em 1998 o nuacutemero de condenados por contenciosos natildeoshyviolentos reclusos rompeu sozinha a cifra simboacutelica do milhatildeo Nas prisotildees 6 em cada 10 condenados satildeo negros ou latinos Menos da metade tinha emprego em tempo integral no momento de ser posta atraacutes das grades (WACQUANT 2001 p83)

Essa mudanccedila de objetivo e de resultado reflete o abandono do ideal da reabilitaccedilatildeo depois das criacuteticas cruzadas da direita e da esquerda na deacutecada de 70 e de sua substituiccedilatildeo por uma nova penalogia norte-americana cujo objetivo natildeo eacute mais prevenir o crime nem tratar os delinquumlentes objetivando o seu eventual retorno agrave sociedade O propoacutesito da nova ordem criminal nos EUA eacute isolar grupos considerados perigosos e neutralizar seus membros mais agressivos mediante uma seacuterie padronizada de compOltamentos

O reconhecimento pelos teoacutericos da normalizaccedilatildeo do crime e pelos adeptos de uma poliacutetica criminal ultra-repressiva da incapacidade da burocracia estatal de gerir e controlar os litiacutegios criminais na sociedade atual reafirma a viabilidade de fazer um questionamento teoacuterico e poliacutetico mais profundo dos paradigmas que aceitam como um dado a priori a existecircncia do crime Trata-se portanto de acrescentar e analisar outros movimentos poliacuteticoshyteoacutericos para uma melhor compreensatildeo das razotildees da falecircncia do modelo penal estatal existente

Globalizaccedilatildeo e Outros Fundamentos da Accedilatildeo Criminal

A justiccedila como aparelho de Estado acha-se em dificuldades para cumprir sua missatildeo de regulaccedilatildeo dos conflitos porque comenta Charvet (1977) sua ideologia juriacutedica estaacute em crise sua legitimidade eacute contestada pelos dominados e sua eficiecircncia pelos dominantes Na Franccedila verifica-se o avanccedilo das forccedilas da ordem atraveacutes do crescimento dos efetivos policiais judiciaacuterios e das forccedilas militares (guardas nas praias rodovias e outros lugares da vida puacuteblica) Diante da crise fiscal que impede o Estado de colocar um policial atraacutes de cada cidadatildeo tende-se a criar estrateacutegias de modo a redescobrir e converter em um policial cada cidadatildeo

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A incapacidade da burocracia estatal de regular os conflitos criminais vai aleacutem do processo atual de globalizaccedilatildeo econocircmica e financeira Adorno (1999) fala de um novo paradigma que aponta para algo aleacutem do crimes

O surgimento do Estado moderno caracterizado pelo monopoacutelio da violecircncia e pacificaccedilatildeo social foi acompanhado pela racionalizaccedilatildeo do direito atraveacutes dos seguintes princiacutepios positividade (vontade de um legislador soberano que atraveacutes de meios juriacutedicos de organizaccedilatildeo regulamenta as atividades da vida social) legalidade (natildeo reconhece outro ordenamento juriacutedico que natildeo seja estatal e outra forma de ordenamento estatal que natildeo seja lei)formalidade (o direito moderno define o domiacutenio onde se pode exercer legitimamente o livre arbiacutetrio das pessoas privadas) Esses princiacutepios afirma Adorno estatildeo sendo esfacelados

Por volta de 1950 ocorreu em todos os paiacuteses ocidentais um aumento substancial dos crimes contra as pessoas e ainda mais contra o patrimocircnio Um maior nuacutemero de pessoas passou a violar as leis penais e um grande nuacutemero de comportamentos e bens protegidos pelas leis penais ficou mais vulneraacutevel agrave ofensa e ao ataque

O problema natildeo reside nos crimes em si mas na maior ou menor disposiccedilatildeo social em aceitaacute-los e conviver com eles Ocorre que na sociedade atual essa toleracircncia diz Dahrendorf apud Adorno (1999) teria chegado ao limite haja visto (sic) as reaccedilotildees e a ansiedade puacuteblica diante da crescente ameaccedila do crime e da incapacidade da burocracia estatal em resolvecirc-lo

A erosatildeo da lei e da ordem estaacute vinculada agrave maior probabilidade de um criminoso se manter oculto hoje comparativamente ao passado Uma taxa despreziacutevel dos crimes cometidos eacute resolvida em razatildeo do descaso da poliacutetica pelos delinquumlentes conhecidos desistecircncia deliberada e afrouxamento das puniccedilotildees ou incapacidade de se lidar com as infraccedilotildees A impunidade aumenta e potildee em questatildeo a eficaacutecia das normas Isso provoca a sensaccedilatildeo de inexistecircncia das leis ou

5 O novo paradigma afirma Adorno (1999 p77) diz respeito agrave mudanccedila de hiacutebitos agrave exacerbaccedilatildeo de novos conflitos sociais agrave adoccedilatildeo de soluccedilotildees que desafiam tradiccedilotildees democraacuteticas agrave demarcaccedilatildeo de novas fronteiras sociais [ ] ao sentimento de desordem e caos que se espelha na ausecircncia de justiccedila social

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quando invocadas resultam sem efeito As sociedades contemporacircneas convi vem com o decliacutenio das sanccedilotildees A impunidade torna-se cotidiana diante da decretada incapacidade da burocracia estatal de cuidar da seguranccedila dos cidadatildeos de proteger seus bens materiais e simboacutelicos

Os mecanismos de pressatildeo social (que atuam sobre o comportamento dos sujeitos) que operam sobretudo na esfera da moralidade puacuteblica e privada natildeo parecem suscitar nem o sentimento de medo nem sequer o de anguacutestia diante das possibilidades sempre abertas de violaccedilatildeo das normas sociais As sociedades urbanas complexas comenta Adorno (1999) liberaram o homem do controle social Diante de tantas incertezas cresce por parte da sociedade uma obsessatildeo punitiva reivindicando mais ordem social

Isso natildeo impede o surgimento do modelo de funcionamento da sociedade de risco que potildee em movimento uma superestrutura de prevenccedilatildeo e de seguranccedila por meio da proliferaccedilatildeo das sociedades de seguro e de mecanismos de vigilacircncia privada com o objetivo de enfrentar o medo os perigos e ameaccedilas que tornam a vida humana incerta (ADORNO 1999 plOl-102)

Um poliacutetica de responsabilizaccedilatildeo individual atraveacutes de medidas repressivas voltadas para os jovens delinquumlentes como a reduccedilatildeo da idade para efeitos de responsabilidade penal e instauraccedilatildeo da responsabilidade dos pais em mateacuteria civil e penal tem sido discutida pelos parlamentares europeus Enveredando-se pelo caminho de mais Estado econocircmico e menos Estado social cria-se e justifica-se o mito da inevitabilidade da escalada do crime para disseminar a estrateacutegia da responsabilizaccedilatildeo como forma de mostrar que a prevenccedilatildeo e o controle do crime natildeo pode de modo exclusivo recair mais sobre o Estado

De agora em diante varejistas industriais autoridades escolares empresas de transporte pais trabalhadores e desempregados teratildeo de dividir essa responsabilidade Na deacutecada de 1990 a poliacutetica criminal da responsabilizaccedilatildeo teve por efeito reduzir a dependecircncia para com o Estado e aumentar a dependecircncia para com o mercado Investimentos na criminalidade como dispositivos de seguranccedila satildeo cada vez mais impostos pelas forccedilas econocircmicas em detrimento da poliacutetica puacuteblica

Nas sociedades onde ocorrem divisotildees sociais e raciais

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profundas em que as taxas de criminalidade e os niacuteveis de inseguranccedila satildeo elevados onde soluccedilotildees sociais foram politicamente desacreditas aleacutem de haver um ceticismo crescente quanto agrave perspectiva de reintegraccedilatildeo dos antigos delinquumlentes um setor comercial em expansatildeo favorece o aumento da populaccedilatildeo carceraacuteria pondo em marcha uma cultura do encarceramento em massa nos paiacuteses democraacuteticos

A responsabilizaccedilatildeo de organismos natildeo estatais no combate agrave criminal idade provoca enormes disparidades no financiamento social e na rede de seguranccedila Esta deixa de ser garantida para todos por meio de um Estado soberano para converte-se num produto cuja distribuiccedilatildeo estaacute subordinada agraves forccedilas de mercado As classes subalternas que mais sofrem a criminal idade estatildeo incapacitadas de comprar seguranccedila de adaptar suas vidas cotidianas e de se organizar de forma eficaz contra o crime

Poliacuteticas sociais de prevenccedilatildeo da criminalidade foram seriamente atacadas em razatildeo das transformaccedilotildees poliacuteticas sociais e econocircmicas das uacuteltimas deacutecadas Tentativas de prevenccedilatildeo e de responsabilizaccedilatildeo satildeo solapadas por uma economia de livre mercado que exclui as massas do trabalho remunerado e que nutre ativamente o crime engendrando expectativas de consumidor insaciaacutevel gerando ao mesmo tempo novos niacuteveis de pobreza da crianccedila da disfunccedilatildeo da famiacutelia e de desigualdade social (GARLAND 1999 p77)

A emergecircncia de novos problemas sociais que desafiam os princiacutepios legitimadores do Estado moderno tende a acelerar poreacutem em si natildeo justifica o fracasso da burocracia oficial na resoluccedilatildeo dos atos infracionais na sociedade contemporacircnea Os sintomas aparentes de desordem de caos de aumento da impunidade etc que reinam na sociedade vatildeo muito aleacutem de uma poliacutetica criminal deliberada de afrouxamento do poder estatal como estrateacutegia de administrar os conflitos criminais

A crise de legitimidade estatal na gestatildeo do crime reforccedila a necessidade de pocircr em questatildeo a definiccedilatildeo de crime como verdade ontoloacutegica O propoacutesito do proacuteximo capiacutetulo eacute avaliar e discutir se os eventos sociais considerados problemaacuteticos e penalmente definidos como crimes na sociedade satildeo por esta reconhecidos e aceitos como tais na realidade

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Da Descriminalizaccedilatildeo agrave Aboliccedilatildeo da Pena

A crise profunda da justiccedila penal avalia Cervini (1995) estaacute associada ao fracasso da ideologia do tratamento que pretende em seus diversos niacuteveis resolver os custos individuais e sociais do delito a defasagem das leis com certas culturas a existecircncia da cifra negra6

aleacutem das contradiccedilotildees dogmaacuteticas No momento histoacuterico atual diz Cervine dois fatores favorecem

a tendecircncia de descriminalizaccedilatildeo do direito penal um individual outro social No primeiro caso a pena privativa de liberdade que diminui a possibilidade de adaptabilidade no segundo caso os efeitos sociais estigmatizadores depois de sua aplicaccedilatildeo Em termos sociais natildeo haacute uma soluccedilatildeo eficiente em reparar o custo do crime nem de supressatildeo do estigma de ex-presidiaacuterio

As soluccedilotildees que o sistema penal tem adotado para gerir o problema da criminalidade encontram um potente antiacutedoto quando se avalia a existecircncia da chamada cifra negra Essa afirma Cervine indica claramente que os fatos aos quais a lei denomina de delitos natildeo satildeo considerados como fatos agrave parte separados de outros aconteshycimentos Uma soma relevante de acontecimentos formalmente considerados delitos e teoricamente merecedores de aplicaccedilatildeo penal natildeo eacute considerada nem valorizada como tal pelas viacutetimas ou pelos agentes do sistema pessoalmente interpelados mediante delaccedilotildees concretas (CERVINI 1995 pl73)

Tais consideraccedilotildees colidem com as premissas utoacutepicas da sociedade de controle que busca incansavelmente definir e administrar o crime atraveacutes da diversificaccedilatildeo das penas de ajustes da reclusatildeo prisional de reforma eletrocircnica das prisotildees mais investimentos e maior eficiecircncia na burocraacutetica criminal A sociedade de controle diz Passetti (1999) natildeo atenta para o fato da existecircncia de uma sociedade sem penas seja em

6 Cervini (1995 p162) comenta que a cifra negra eacute produto da diferenccedila existente entre a criminalidade real quantidade de delitos cometidos num tempo e lugar determinados e a criminal idade aparente conhecida pelos oacutergatildeos de controle Ou seja um percentual substancial de delitos estaacute estruturalmente fora do alcance e do controle do direito penal colocando em xeque a credibilidade de todo o sistema

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razatildeo da cifra negra (diferenccedila entre infraccedilotildees denunciadas na poliacutecia e aquelas efetivamente julgadas) seja porque parte consideraacutevel das infraccedilotildees eacute resolvida sem a necessidade da formalidade juriacutedica do just07bull

A maioria dos conflitos cotidianos dentro das fanulias das empresas dos estabelecimentos de ensino das organizaccedilotildees profissionais dos sindicatos clubes ou associaccedilotildees privadas satildeo segundo Hulsman e Celis (1993) resolvidos sem ter de entrar no sistema penal O grande nuacutemero de encarcerados eacute insignificante diante da quantidade real de fatos puniacuteveis que ocorrem a todo instante raramente detectados pelo sistema penal O sistema penal eacute confrontado com uma espantosa soma de casos semelhantes poreacutem apenas alguns deles e de forma injusta satildeo tratados pelo sistema cuja prisatildeo se nutre diariamente de viacutetimas preferencias

Fora os delitos que natildeo pertencem ao chamado nuacutecleo duro da delinquumlecircncia como o terrorismo e a criminalidade organizada o sistema penal afirma Hulsman cria mais problemas do que contribuiccedilotildees para resolver

Diante disso o autor propotildee uma outra loacutegica Diz que um comportamento pode deixar de ser crime sem afetar os laccedilos de sociabilidade O homossexualismo cantado em prosa e verso por Platatildeo foi penalmente condenado pelo Estado moderno durante muito tempo A prostituiccedilatildeo convive com a proibiccedilatildeo sob ameaccedila penal ateacute a liberdade total ou passando por toda sorte de controle administrativo A embriaguez em si natildeo interessa agrave lei ocidental mas soacute indiretamente (dirigir embriagado) O mesmo tratamento diferencial ocorre em relaccedilatildeo ao uso e ao traacutefico de drogas Alguns paiacuteses condenam penalmente o uso e o traacutefico excluindo o consumo pessoal Outros soacute colocam no campo penal as drogas ditas pesadas excluindo as chamadas drogas leves8

7 Na opiniatildeo de Passeui (1999 p63) o que esta utopia natildeo admite mas permitia eacute que no lugar da ressocializaccedilatildeo e da futura reintegmccedilatildeo prevaleccedila o depoacutesito de corpos para os qu ai s os uacutenicos investimentos satildeo a diminui ccedilatildeo a zero da possibilidade de fuga e a rigorosa vigilacircncia apoacutes o sentenciaroento

Na avaliaccedilatildeo de Hulsman e Celis (1 993 plOI) natildeo exi stem nem crimes nem delitos mas apenas situaccedilotildees problemaacuteticas Sem a presenccedila e participaccedilatildeo das pessoas envolvidas nestas situaccedilotildees natildeo haacute como resolvecirc-las de forma humana Classificar um fato de crime significa excluir a priori ou tras saiacutedas poss iacuteveis limitando-se ao es tilo estatal punitivo dominado pelo pensamento juriacutedico distante da realidade

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o processo de globalizaccedilatildeo econocircmica e financeira apenas indiretamente contribui para aprofundar a crise do sistema de justiccedila penal nos paiacuteses capitalistas centrais e perifeacutericos As razotildees da falecircncia do modelo de poliacutetica criminal estatildeo associadas ao processo de reforma penal dos seacuteculos XVIII e XIX periacuteodo em que a sociedade burguesa adotou o principio da puniccedilatildeo generalizada por meio da teoria da humanizaccedilatildeo da pena A reforma do coacutedigo penal burguecircs diz Foucault (1987) converteu inuacutemeros problemas sociais em conflitos criminais estabeleceu uma classificaccedilatildeo metoacutedica dos delitos em termos de gravidade e hierarquia e como complemento modificou e converteu as prisotildees em locais privilegiados com o propoacutesito de recuperar os delinquumlentes infratores atraveacutes do tratamento ressocializador

Desde entatildeo todas as propostas adotadas visando a reforma do sistema penal natildeo tocaram e natildeo discutiram seriamente o significado do crime sua classificaccedilatildeo tampouco sua instituiccedilatildeo correlata a prisatildeo As teorias criminais da normalizaccedilatildeo e da defesa da lei e da ordem (toleracircncia zero) satildeo ilustrativas a esse respeito

A primeira vecirc no crime uma accedilatildeo racional oportunista Parte do pressuposto de que a sociedade atual eacute uma sociedade de risco em que o fenocircmeno criminal natildeo pode ser tratado como algo patoloacutegico mas uma questatildeo de oportunidade Propotildee desativar a burocracia estatal repressiva por ter falhado na tentativa de desarmar e de punir o autor do delito e transferir a responsabilidade do controle do crime aos setores da sociedade civil Grupos privados deveriam armar os alvos vulneraacuteveis criar obstaacuteculos defender suas casas carros cheques cartotildees de creacutedito etc Tais mudanccedilas tomariam as coisas mais difiacuteceis evitando que pessoas pertencentes aos diversos grupos sociais se convertessem em presas faacuteceis de accedilotildees criminais

A segunda (movimento da lei e da ordem) associa a banalizaccedilatildeo do crime agrave fraqueza das respostas das leis penais vigentes Por isso advoga a necessidade de uma perseguiccedilatildeo implacaacutevel de pequenos atos como jogar lixo no chatildeo e furtos ocasionais propondo o aumento da pena para os delinquumlentes ocasionais e a prisatildeo perpeacutetua para os delinquumlentes mais perigosos O que diferencia as teorias criminais em foco eacute mais uma questatildeo de estrateacutegia e natildeo de princiacutepios Ambas trabalham com a noccedilatildeo de crime como uma verdade social e juriacutedica

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A negaccedilatildeo do conceito de crime como um fato social normal constitui objeto de reflexatildeo das teorias da descriminalizaccedilatildeo e abolicionistas para as quais as definiccedilotildees abstratas de crime e de pena vigentes no coacutedigo penal natildeo correspondem agraves definiccedilotildees que delas fazem as pessoas reais A desqualificaccedilatildeo do discurso juriacutedico penal natildeo resulta portando das dificuldades da aplicaccedilatildeo da lei da ineficiecircncia dos oacutergatildeos de controle criados para administraacute-la ou ainda de seu reduzido alcance quando se compara a totalidade de crimes formalmente descritos e os que realmente satildeo solucionados

Uma soluccedilatildeo poliacutetica socialmente legiacutetima na soluccedilatildeo dos problemas sociais hoje definidos e classificados como problemas criminais natildeo pode limitar-se ao entendimento e agrave aceitaccedilatildeo do braccedilo punitivo estatal e de sua burocracia centralizadora como o melhor remeacutedio para gerir os conflitos penais existentes Portanto toma-se urgente questionar seriamente se os eventos sociais formalmente criminalizaacuteveis satildeo concebidos e aceitos como tais pelos agentes sociais direta e potencialmente envolvidos em tais conflitos

Isso implica admitir a possibilidade da sociedade resolver inuacutemeros problemas atualmente circunscritos no campo do direito penal fora do campo estatal punitivo Nesse sentido a responsabilidade pela soluccedilatildeo dos conflitos sob a tutela do direito penal seria transferida aos agentes direta e potencialmente envolvidos em situaccedilotildees problemaacuteticas (acusado viacutetima familiares Estado e demais interessados)

A atuaccedilatildeo da burocracia de justiccedila (poliacutecia e judiciaacuterio) se limitaria a mediar e natildeo intervir diretamente visando impor a melhor soluccedilatildeo para o conflito Para isso outras instacircncias juriacutedicas (campo civil e administrativo) poderiam ser acionadas em detrimento do pesado seletivo e ineficiente sistema de justiccedila penal estatal vigente que por meio de seus oacutergatildeos policiais judiciaacuterios e administrativos procura sem nunca poder encontrar a melhor soluccedilatildeo para o acusado seus familiares agrave vitima e a sociedade

Dois adolescentes (Japonecircs e Laacutezaro) praticaram mais um delito contra o patrimocircnio E daiacute Prendecirc-los ressocializaacute-Ios responsabilizar seus familiares Armar melhor determinados alvos sociais vulneraacuteveis que facilitam o roubo o furto

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Como ressocializar algueacutem que por razotildees conjunturais como o

desemprego e a crise econocircmica pratica um delito contra a propriedade se tais razotildees continuam a persistir Como responsabilizar seus familiares9 se a concepccedilatildeo nuclear de famiacutelia burguesa mudou

Para os defensores do movimento da lei e da ordem o Estado deve responder punindo de modo exemplar Entre os adeptos da normalizaccedilatildeo do crime o Estado deve preocupar-se em punir menos e criar uma nova estrateacutegia com O propoacutesito de armar mais as viacutetimas que os infratores

Tais movimentos natildeo tocam numa questatildeo central como o fazem os adeptos da descriminalizaccedilatildeo e da aboliccedilatildeo da pena para os quais a realidade atual propicia duas alternativas procurar outras repostas para os velhos e novos problemas questionando reduzindo e abolindo o crime e a prisatildeo ou restauraacute-la sob a condiccedilatildeo de aparelho de terror repressivo

9 Passetti (1995 p23) afirma que a situaccedilatildeo social dessas crianccedilas e adolescentes violentados permite desmistificar duas falaacutecias famiacutelias desestruturadas e o suposto acesso democraacutetico agrave escola O modelo de faTlllia vigente nas metroacutepoles natildeo corresponde mais agraves caracteriacutesticas da faTlllia modelar burguesa do capitalismo livre-concorrecircncia e natildeo pode mais ser restaurada como pretende o conservadorismo

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WACQUANT Lolc As prisotildees da miseacuteria Rio de Janeiro Zabar 2001

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Abstract

The current process of economic and financiaI globalization has elicited contradictory answers in the formulation of criminal policies by State bureaucracy On the one hand under strong influence of neoclassical economic thought there appears in the United Kingdom the theory of crime normalization qualifying the criminal act as a rational choice option a matter of opportunity according to which delinquents rational1y calculate their actions Such theory proposes to replace the classical model of criminal policy which relates the penal practice to the figure of the other the abnormal by a new model of risk society which sees a professional career in criminal acts On the other hand there appears in the United States the movement in defense of law and order which proposes no tolerance to crime by the amplification of penal right and the recrudescence of the State criminal answer For the defenders of decriminalization and penalabolitionism the utopia of control society which favors the increase of punisbment and target changes to administer crime ignores the existence of a society with no penalties which is manifested through the dark cipher the difference between reported infractions to the police and those really judged

Key words globalization state crime punishment decriminalization penalty abolishment

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Page 2: INTRODUÇÃO AO DEBATE SOBRE AS POLíTICAS OFICIAIS NO ... · sem penas a qual se manifesta através da cifra negra, ... vinculados em razão do potencial revolucionário da informação

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Desta vez os adolescentes mantiveram um casal de idosos em cativeiro extorquindo-lhes um video-cassete uma fritadeira uma maacutequina fotograacutefica e mais R$ 7000 em dinheiro

A accedilatildeo criminal em questatildeo foi segundo relato dos adolescentes envolvidos desvendada do seguinte modo por volta das 19 horas a poliacutetica militar apropriou-se dos objetos roubados que estavam sob o poder dos adolescentes e numa aacuterea florestal proacutexima do local do crime os agentes policiais soltaram-nos dizendo o seguinte vocecircs natildeo nos viram e noacutes natildeo nos encontramos Passados dois meses os adolescentes foram detidos por furto numa outra residecircncia e encaminhados agrave Promotoria de Justiccedila a qual apoacutes conversas com os pais dos garotos os liberou

Quanto aos perfis familiar e econocircmico dos adolescentes infratores pode-se constatar que Laacutezaro possui matildee desconhecida e que seu pai fugiu da penitenciaacuteria do Estado do Paranaacute (Curitiba) onde cumpria pena por traacutefico de drogas O pai de Laacutezaro possui diversas passagens pela poliacutecia por praacutetica de homiciacutedios roubos e furtos Laacutezaro vive com a avoacute cujo ganho proveacutem de uma pensatildeo do marido jaacute falecido Problemas de psicose e esc1erose acompanham a combalida sauacutede da avoacute do adolescente infrator Natildeo obstante a distacircncia geograacutefica que separa Laacutezaro de seu pai este por telefone orienta o filho no exerciacutecio do traacutefico de droga A casa em que Laacutezaro reside com sua avoacute funciona como boca de fumo

No caso do segundo adolescente infrator sabe-se que seu pai abandonou a mulher e seis filhos trecircs adolescentes do sexo feminino e trecircs do sexo masculino Dentre as adolescentes duas ganham a vida prostituindo-se na Avenida Tiradentes (Londrina-PR) Quanto aos adolescentes masculinos um deles eacute deficiente mental por consumo abusivo de droga crack

A descriccedilatildeo das caracteriacutesticas da accedilatildeo infracional e dos perfis familiar e econocircmico dos agentes envolvidos eacute teoricamente relevante uma vez que esse tipo de ato infracional e caracteriacutesticas mencionadas se aplicam a uma quantidade significativa de accedilotildees infracionais praticadas na regiatildeo metropolitana de Londrina-PR Daiacute a importacircncia de fazer uma reflexatildeo socioloacutegica sobre os mecanismos oficiais e teoacutericos vigentes de resoluccedilatildeo dos conflitos criminais contra a pessoa e o patrimocircnio na sociedade atual

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o presente artigo visa expor algumas questotildees conceituais que abordam o fenocircmeno da criminalidade no acircmbito das ciecircncias sociais no intuito de contribuir para uma melhor compreensatildeo dos motivos que alimentam o modo de atuaccedilatildeo e a crenccedila legitimadora da intervenccedilatildeo da burocracia estatal visando combater uma duvidosa escalada da accedilatildeo criminal Dentre os elementos teoacutericos abordados discutir-se-aacute a relaccedilatildeo entre globalizaccedilatildeo Estado e as contradiccedilotildees das poliacuteticas criminais adotadas em resposta aos atos infracionais

Globalizaccedilatildeo eReestruturaccedilao da Poliacutetica Criminal Estatal

Tendo em vista o propoacutesito desse artigo optou-se por fazer uma breve discussatildeo sobre as abordagens teoacutericas marxistas e neoliberal com base nos diversos autores2 que fazem uma reflexatildeo sobre o atual processo de globalizaccedilatildeo

O processo de globalizaccedilatildeo em curso pode ser entendido a partir de duas perspectivas teoacutericas distintas De acordo com a teoria marxista (CHESNAIS 2001) trata-se de um fenocircmeno que do ponto de vista econocircmico financeiro poliacutetico e militar produz relaccedilotildees assimeacutetricas e hieraacuterquicas entre paiacuteses capitalistas centrais e perifeacutericos A partir dessa assimetria de poder entre naccedilotildees e estados certas demandas substantivas no campo da economia da poliacutetica estatal da cultura e estrateacutegicas de seguranccedila que dominam a agenda de discussatildeo entre os paiacuteses e organismos internacionais tendem a obedecer a uma relaccedilatildeo de subordinaccedilatildeo hieraacuterquica que vai do nuacutecleo duro agrave periferia do sistema

Os EUA satildeo um exemplo especiacutefico dessa relaccedilatildeo assimeacutetrica por ser o paiacutes que deteacutem o poder hegemocircnico no campo econocircmico poliacutetico e militar cuja evidecircncia se manifesta na esfera das relaccedilotildees internacionais No setor das poliacuteticas criminais Nova York eacute o local onde surge o termo toleracircncia zero rapidamente disseminado em outras partes do continente (Meacutexico Argentina e Brasil) na tentativa de enfrentar a escalada dos conflitos criminais nesses paiacuteses

Diversos autores como Boaventura Sousa Santos (2000) e Dowbor lanni Resende (I 998) tecircm discutido sobre o tema no campo das Ciecircncias Sociais

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A caraterizaccedilatildeo marxista do processo de globalizaccedilatildeo em curso eacute refutada por Ohmae (1999) segundo o qual o termo globalizaccedilatildeo coincide com o fim do conceito de Estado-Naccedilatildeo construiacutedo a partir das revoluccedilotildees econocircmica e poliacutetica europeacuteia do seacuteculo XIX

Atualmente afirma Ohmae (1999) assiste-se ao colapso da ideacuteia de Estado-naccedilatildeo Numa economia sem fronteiras diz o autor as pessoas tecircm melhor acesso a produtos de baixo custo e de boa qualidade quando natildeo satildeo fabricados no proacuteprio paiacutes No plano da comunicaccedilatildeo povos afastados geograficamente e distintos culturalmente estatildeo todos vinculados em razatildeo do potencial revolucionaacuterio da informaccedilatildeo global

Um exemplo disso proveacutem dos adolescentes Estes que satildeo milhotildees em todo mundo crescem num ambiente repleto de multimiacutedia e adquirem modos de ser e de comportamento muito mais parecidos uns com os outros comparativamente aos membros das geraccedilotildees mais velhas de suas proacuteprias culturas Diante da transformaccedilatildeo econocircmica e cultural em questatildeo qualquer reflexatildeo teoacuterica que tome o Estado-naccedilatildeo como paracircmetro de anaacutelise estaacute fadada ao fracasso

As crises econocircmicas e poliacuteticas que acompanham os paiacuteses em face da globalizaccedilatildeo resultam de dois fatores escassa prosperidade econocircmica e aumento das informaccedilotildees sobre o estilo de vida no exterior Eacute o caso por exemplo dos EUA que impulsionam expectativas muito rapidamente gerando um ambiente propiacutecio para que a inveja e o ressentimento comecem a se espalhar exigindo a intervenccedilatildeo populista do Estado em direccedilatildeo a uma poliacutetica distributiva

A raiz social desse descontentamento generalizado diz Ohmae estaacute na forma intervencionista que assume o Estado atraveacutes de poliacuteticas de subsidio Esse modelo de intervenccedilatildeo eacute uma caracteriacutestica da tirania da democracia atual cuja vocaccedilatildeo tem sido conceder pesos iguais aos votos antes que sejam levadas em conta as contribuiccedilotildees para a manutenccedilatildeo da sociedade como um todo Esse artificialismo vinculado agraves poliacuteticas distributivas definidas pelo poder tem por consequumlecircncia levar o governo a fazer empreacutestimos sem lastros com promessa de resgate a longo prazo hipotecando o destino das geraccedilotildees futuras

As consequumlecircncias desse processo poliacutetico intervencionista avalia Ohmae (1999) eacute criar viacutecios comprar votos e quanto mais funciona maior o apetite em niacuteveis cada vez mais elevados Esse modelo

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pode assumir um ponto sem retomo em que a maioria subsidiada e suprida do nuacutenimo puacuteblico natildeo teraacute necessidade nem incentivo para permitir a busca de um equiliacutebrio fiscal sustentaacutevel

As soluccedilotildees propostas pelo autor para inverter esse quadro satildeo primeiro fechar a torneira dos subsiacutedios atraveacutes de desregulamentaccedilatildeo privatizaccedilatildeo da infra-estrutura decreacutescimo da matildeoshyde-obra empregada no setor puacuteblico segundo limitar o poder poliacutetico do governo central agraves questotildees de seguranccedila e moeda fortalecer a ideacuteia dos estados-regiotildees concedendo autonomia agraves unidades federativas no campo das transaccedilotildees econocircmicas internacionais

Eacute interessante avaliar como esse modelo proposto de privatizaccedilatildeo do Estado estabelece correspondecircncia com as correntes teoacutericas no acircmbito da poliacutetica criminal

Economia Estado e o Novo Discurso Criminal

A partir de 1970 (GARLAND 1999 p64) foi montado no Reino Unido um discurso criminal com base na teoria da escolha racional da teoria da atividade de rotina do crime como oportunidade e da prevenccedilatildeo da criminal idade situacional desembocando nas novas criminologias da vida cotidiana O estereoacutetipo de delinquumlente muda de lugar O novo infrator calcula suas accedilotildees e a maior parte dos crimes converte-se numa questatildeo de oportunidade A melhor reposta seria portanto tomar as coisas mais difiacuteceis para os delinquumlentes

Garland (1999) afirma que uma linguagem analiacutetica do risco da racionalidade da escolha da probabilidade da determinaccedilatildeo de alvos da oferta e da demanda de ocasiotildees transfere as formas econocircmicas de raciociacutenio e de caacutelculo para o campo da criminologia Novos objetivos tais como compensaccedilatildeo controle de custo reduccedilatildeo dos danos etc satildeo definidos pela criaccedilatildeo da imagem do criminoso racional Quanto agrave imagem da viacutetima ela aparece como fornecedora de ocasiotildees criminais

Esse novo modelo de pensamento destroacutei consideraccedilotildees de caraacuteter psicoloacutegico e socioloacutegico utilizadas no seacutec XX e formula uma nova concepccedilatildeo de delinquumlente criminal A partir desse esquema de reflexatildeo procura-se repensar as dinacircmicas da criminalidade e do castigo

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em termos pseudo-econocircmicos Se o crime natildeo for uma escolha racional fica mais difiacutecil combatecirc-lo

Esse modelo de anaacutelise surgiu no setor privado (companhias de seguro empresas comerciais e de seguranccedila privada) com o objetivo de reduzir os custos do crime que lhes pesam sobre os ombros Esse raciociacutenio comercial e fundado no seguro acerca da repressatildeo criminal procura diminuir ou deslocar os custos do crime em direccedilatildeo natildeo do castigo mas da prevenccedilatildeo de reduzir o risco antes que garantir a justiccedila

Esse modelo de pensamento apoacutes os anos de 1980 passou a influenciar os organismos e praacuteticas do Estado sobretudo entre os setores profissionais ligados agraves concepccedilotildees sociais e legais da criminalidade Esse tipo de anaacutelise tributaacuterio das concepccedilotildees econocircmicas neoclaacutessicas forma o conjunto da teoria da escolha racional que vecirc no crime uma questatildeo de oportunidade ocasional

O ato criminal converte-se numa rotina algo que acontece no curso normal das coisas e natildeo mais uma perturbaccedilatildeo social que requer explicaccedilotildees especiais A conduta cotidiana da vida econocircmica e social fornece infindaacuteveis ocasiotildees de transaccedilatildeo ilegiacutetima As accedilotildees criminais satildeo vistas como atos regulares previsiacuteveis e sistemaacuteticos como um acidente de tracircnsito Nesse sentido as accedilotildees contra o crime devem recair natildeo sobre pessoas desviantes mas preferencialmente sobre accedilatildeo concebida para governar os haacutebitos sociais e econocircmicos (GARLAND1999p66)

Em oposiccedilatildeo agraves afirmaccedilotildees da criminologia claacutessica3 que vincula a accedilatildeo criminal agrave existecircncia de patologias individuais e deacuteficit de socializaccedilatildeo a teoria da escolha racional vale-se dos esquemas claacutessicos de motivaccedilatildeo econocircmica Para o sujeito incriminado trata-se de uma ocasiatildeo uma escolha de carreira um meio de conseguir emoccedilotildees fortes ou vingar-se Para a viacutetima ou o puacuteblico o crime constitui um risco que deve ser calculado ou um acidente a ser evitado e natildeo uma aberraccedilatildeo moral que exija explicaccedilotildees sofisticadas

Ao decretar a incapacidade do aparato repressivo do Estado de lidar com o problema da criminalidade essas teorias procuram desarmar a

3 Ver por exemplo a abordagem que faz Alexando Baratta (2002) no capiacutetulo escola positiva e explicaccedilatildeo patoloacutegica da criminalidade

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pesada e deficiente burocracia estatal em busca de outros padrotildees de intervenccedilatildeo O estabelecimento de novos programas de accedilatildeo devem influenciar a conduta das viacutetimas potenciais armar os alvos vulneraacuteveis melhorar a seguranccedila em zonas perigosas e reestruturar as rotinas da vida cotidiana que tecircm propiciada desagradaacuteveis ocasiotildees para o crime

A erosatildeo da confianccedila da sociedade atual nas eventualidades das penas dissuasivas decorre da duvidosa capacidade da poliacutecia de prender os bandidos ou da vatilde esperanccedila de que se possa ensinar o domiacutenio de si aos jovens cidadatildeos A nova ordem social requer como imperativo a necessidade de substituir o dinheiro vivo por cartotildees de creacutedito de embutir travas nas colunas de direccedilatildeo dos automoacuteveis contratar vigias nos estabelecimentos colocar circuitos internos de televisatildeo coordenar os horaacuterios de fechamento das discotecas rivais etc Essa nova concepccedilatildeo da normalizaccedilatildeo do crime justifica e abona a reforma neoliberal do Estado ao transferir para os setores privados a responsabilidade estatal pela seguranccedila puacuteblica

Dentro desse quadro ganham forccedila propostas poliacuteticas de defesa de reformas transferindo do Estado para os grupos privados a responsabilidade pela gestatildeo dos conflitos criminais Esse modelo de poliacutetica criminal desenvolvido no Reino Unido sob forte influecircncia do pensamento econocircmico neoliberal natildeo eacute hegemocircnico e em determinados aspectos contrasta abertamente com certos princiacutepios do chamado realismo penal adotados pelo aparato de Estado norteshyamericano no campo da poliacutetica criminal

AOpccedilao Norte-Americana Por Uma Poliacutetica Criminal de Toleracircncia Zero

Nos EUA a redefiniccedilatildeo das missotildees do Estado parte de princiacutepios quase dogmaacuteticos de reduzir o seu papel social e de ampliar sua intervenccedilatildeo penal

Os oacutergatildeos de Estado norte-americano encarregados de promover o rigor penal resultaram na quadruplicaccedilatildeo da populaccedilatildeo carceraacuteria As diretrizes da poliacutetica policial e judiciaacuteria fizeram de Nova York a vitrine mundial da doutrina da toleracircncia zero ao passar agraves forccedilas da ordem um cheque em branco para perseguir agressivamente

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a pequena delinquumlecircncia e reprimir os mendigos e os sem-teto nos bairros deserdados Isso vem segundo Wacquant (2001) acompanhado da vulgarizaccedilatildeo da teoria da vidraccedila quebrada que eacute um empreacutestimo do ditado popular quem rouba um ovo rouba um boi A premissa dessa teoria conservadora eacute lutar passo a passo contra os pequenos distuacuterbios cotidianos para reduzir as grandes patologias criminais

Sem comprovaccedilatildeo empiacuterica essa teoria serve de aacutelibi para conter o medo que as classes meacutedia e alta tecircm dos pobres nos espaccedilos puacuteblicos (ruas parques estaccedilotildees ferroviaacuterias ocircnibus metrocirc etc) A luta que visa eliminar a criminalidade atua em trecircs frentes a) aumento em 10 vezes o efetivo e equipamentos das brigadas b) restituiccedilatildeo das obrigaccedilotildees operacionais aos comissaacuterios de bairro com obrigaccedilatildeo quantitativa de resultados c) implantaccedilatildeo de um sistema de radar informatizado (arquivo central sinaleacutetico e cartograacutefico consultaacutevel em microcomputadores a bordo dos carros de patrulha) Esse conjunto de medidas possibilita uma intervenccedilatildeo implacaacutevel instantacircnea e inflexiacutevel da lei sobre os delitos menores tais como o jogo a mendicacircncia os atentados aos costumes a simples ameaccedila etc

Em termos monetaacuterios ocorreu uma extraordinaacuteria expansatildeo dos recursos destinados agrave manutenccedilatildeo da ordem em NY O orccedilamento policial superou em quatro vezes as verbas destinadas aos hospitais puacuteblicos Essa tendecircncia pode ser ainda mais acentuada nos paiacuteses capitalistas perifeacutericos que entram num processo passivo de globalizaccedilatildeo decretando o fim do Estado-naccedilatildeo

Em termos poliacuteticos o rebaixamento do Legislativo em benefiacutecio do Executivo implica no enfraquecimento do contratual em favor do regulamentar Essa inversatildeo institucional diz Charvet (1977) faz com que a produccedilatildeo da norma e sua concretizaccedilatildeo sejam subtraiacutedas de um compromisso puacuteblico em que indiviacuteduos tenham participado

Para os defensores do Estado policial trata-se no entanto do dever de impor a obrigaccedilatildeo do trabalho assalariado precaacuterio O EstadoshyProvidecircncia norte-americano fracassou devido ao seu programa de ajuda agrave pobreza porque era permissivo e natildeo impunha obrigaccedilatildeo estrita de comportamento aos seus beneficiaacuterios O desemprego deve-se menos agraves opccedilotildees de mercado e mais aos problemas de funcionamento pessoal

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dos desempregados Empregos sujos e mal pagos haacute muitos A situaccedilatildeo de desemprego eacute portanto uma questatildeo de escolha e natildeo de escassez

Uma questatildeo dessa magnitude natildeo pode ser deixada somente agrave boa vontade e agrave iniciativa dos que trabalham por isso devem-se adotar medidas capazes de tornar o trabalho assalariado um dever ciacutevico obrigatoacuterio semelhante ao que se verifica no serviccedilo militar O dever da generalizaccedilatildeo do trabalho precaacuterio deve ser feito atraveacutes do braccedilo punitivo do Estado A poliacutetica social afirma Wacquant desistiu de cumprir a meta de reformar a sociedade preocupando-se em supervisionar a vida dos pobres

De acordo com a arquitetura da ordem criminal norte-americana explicaccedilotildees estruturais da pobreza carecem de plausibilidade Trata-se de uma questatildeo mais relacionada ao comportamento dos pobres do que de barreiras sociais Portanto eacute o comportamento que deve mudar mais do que a sociedade

A existecircncia de um Estado paternalista apenas se justifica se este vier acompanhado de uma ampla estrutura punitiva Deve-se por exemplo utilizar da legislaccedilatildeo de apoio agraves crianccedilas para exigir dos pais ausentes que trabalhem para prover as necessidades de suas farm1ias Poliacuteticas paternalistas de amparo agrave pobreza exigindo a contrapartida do trabalho oferecem mais esperanccedila de melhorar a pobreza do que poliacuteticas estatais distributivas

A proliferaccedilatildeo das incivilidades dizem os defensores da nova ordem criminal eacute o caminho promissor para escalada da delinquumlecircncia As primeiras condutas desviantes quando natildeo recebem puniccedilotildees exemplares estigmatizam um bairro e nele polarizam outros desvios como roubo traacutefico de drogas etc As causas coletivas da accedilatildeo criminal satildeo meras desculpas porque natildeo constituem mecanismos geradores de comportamentos delinquumlentes O crime deve ser imputado ao indiviacuteduo e natildeo agrave sociedade

Natildeo punir os autores das violecircncias urbanas significa alimentar a escalada da delinquumlecircncia Independente da fratura social eacute inaceitaacutevel procurar desculpas para atos indesculpaacuteveis Caso contraacuterio todos os desempregados estariam autorizados a roubar pilhar e depredar A forccedila desse discurso que prega o aumento da repressatildeo criminal estaacute associada ao processo mais geral de globalizaccedilatildeo em curso o qual

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impotildee reformas estruturais no aparato de Estado cujo efeito tem sido o aumento da polarizaccedilatildeo econocircmica entre grupos e classes sociais em diversos paiacuteses

O processo de globalizaccedilatildeo econocircmica e financeira tem sido feacutertil na produccedilatildeo de respostas teoacutericas distintas no controle do crime nas sociedades contemporacircneas O Estado deve atuar entre os adeptos do conceito de normalizaccedilatildeo do crime motivando setores da sociedade civil a oferecer respostas no campo preventivo Nesse sentido a gestatildeo e o controle do crime deveratildeo preocupar-se mais com a vitima potencial e menos com o delinquumlente Armar os alvos que propiciam inumeraacuteveis oportunidades ao crime eacute o objetivo central desse modelo de poliacutetica criminal

Enquanto isso os adeptos do chamado realismo penal sustentam que a banalizaccedilatildeo do crime na sociedade proveacutem da complacecircncia e do enfraquecimento da resposta da lei diante dos agentes que praticam atos criminais No plano das poliacuteticas oficiais essa dualidade de concepccedilotildees teoacutericas tem permeado o discurso e a accedilatildeo da burocracia estatal no campo penal Tais contradiccedilotildees tendem a provocar uma taxa de legitimidade social decrescente da confianccedila do Estado na gestatildeo e controle do crime

Contradiccedilotildees da Criminologia Oficial da Prevenccedilatildeo ao Aumento das Prisocirces

A criminologia oficial informa Garland (1999) mostra-se dualista polarizada e ambivalente Ao lado de uma criminologia do eu que transforma o criminoso em um consumidor racional semelhante agrave viacutetima opera-se ao mesmo tempo uma criminologia do outro do paacuteria do ser ameaccedilador A primeira eacute invocada para banalizar e promover a accedilatildeo preventiva a segunda para provocar o medo as hostilidades populares e afirmar o peso punitivo do Estado (GARLAND 1999 p75)

No decorrer dos anos 90 verifica-se uma ambivalecircncia do discurso oficial Fala-se menos em guerra contra o crime e mais na existecircncia de limites do poder do Estado Documentos oficiais e manifestos poliacuteticos ressaltam que os organismos governamentais natildeo podem combater e controlar a criminalidade isoladamente Em razatildeo

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disso propotildee-se uma melhor gestatildeo dos riscos e dos recursos numa reduccedilatildeo do medo dos custos da criminalidade da justiccedila criminal e maior amparo agraves viacutetimas

Poreacutem nessa uacuteltima deacutecada tentativas expliacutecitas de expressar a coacutelera e o ressentimento do puacuteblico tornaram-se um tema recorrente da retoacuterica que acompanha a legislaccedilatildeo penal e a tomada de decisotildees Os sentimentos da viacutetima da farrulia de um puacuteblico temeroso ultrajado foram constantemente invocados em apoio agrave criaccedilatildeo de novas leis e poliacuteticas penais em que o castigo tornou-se em objeto a ser venerado

Se por um lado a sociedade precisa adaptar-se ao crime concebendo-o como uma atividade profissional normal por outro o realismo penal sugere a divisatildeo do crime em duas categorias crimes violentos como terrorismo assassinato estupro sequumlestro roubo incecircndio criminoso etc exigem uma resposta ultra repressiva cabendo agrave poliacutetica responder a essa expectativa junto ao puacuteblico Jaacute os crimes ocasionais como roubo de veiacuteculos arrombamentos vandalismo e furtos diversos natildeo podem esperar sucesso na accedilatildeo exclusiva da poliacutecia (GARLAND 1999p64)

Esse comportamento dualista da poliacutetica oficial do Estado que admite seu fracasso parcial na soluccedilatildeo dos conflitos penais tambeacutem retira das gavetas enferrujadas da histoacuteria do modelo penal claacutessico punitivo antigas e falaciosas virtudes com o objetivo de administrar o crime Nessa direccedilatildeo a prisatildeo tende a prosperar Por quecirc Porque ela funciona afirmam seus defensores As despesas penitenciaacuterias satildeo investimentos pensado e rentaacutevel para a sociedade A triplicaccedilatildeo da populaccedilatildeo carceraacuteria nos Estados Unidos (1975 e 1989) teria apenas por seu efeito neutralizante evitado 390000 assassinatos estupros e roubos com violecircncia

Na falta da pena de morte mostra Wacquant (2001) a reclusatildeo eacute de longe o meio mais eficaz de impedir os criminosos comprovados e notoacuterios de matar estuprar roubar e furtar Um sistema judiciaacuterio natildeo tem que se preocupar com as razotildees que levam algueacutem a cometer um crime A justiccedila estaacute aiacute para punir os culpados indenizar os inocentes e defender os interesses dos cidadatildeos que respeitam a lei Por isso o Estado deve punir com eficaacutecia aqueles que insistem em transgredir a lei

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Essa velha receita de accedilatildeo repressiva estatal deve prevalecer nos EUA e em outros paiacuteses4

bull Comportamentos criminosos ou protocriminosos como jogar lixo na rua insultar pichar e cometer atos de vandalismo devem ser reprimidos com firmeza a fim de impedir que comportamentos criminosos mais graves se desenvolvam Toma-se igualmente necessaacuterio restaurar o moral dos policiais que foram submetidos anos a fio ao trabalho daninho dos socioacutelogos e dos criminologistas que insistem em dizer que o crime eacute causado pela pobreza fora da alccedilada da poliacutecia

Mediante uma accedilatildeo penal resolutamente agressiva as instituiccedilotildees policiais e penitenciaacuterias na sociedade em tempos neoliberais pretendem reafirmar a autoridade moral do Estado no momento em que ele proacuteprio eacute atingido pela sua impotecircncia econocircmica O aumento da repressatildeo estatal consequumlecircncia da nova ordem criminal em vigor vem acompanhado da privatizaccedilatildeo do sistema penitenciaacuterio A multiplicaccedilatildeo de prisotildees deve acompanhar o aumento da produccedilatildeo juriacutedica de criminosos O mercado da puniccedilatildeo um negoacutecio promissor que proporciona aos detentores de tiacutetulos de accedilotildees das empresas de seguranccedila rendimentos suculentos estaacute nascendo

Wacquant (2001) afirma que as causas do crescimento da populaccedilatildeo carceraacuteria norte-americana estatildeo vinculadas aos pequenos delinquumlentes e particularmente dos toxicocircmanos Ao contraacuterio do discurso poliacutetico e midiaacutetico dominante as prisotildees estatildeo repletas natildeo de criminosos perigosos e violentos mas de vulgares condenados pelo direito comum por negoacutecios com drogas furto roubo ou simples atentados agrave ordem puacuteblica envolvendo parcelas precarizadas das classes subalternas

4 Charvet (1977) mostra um exemplo ilustrativo dessa nova estrateacutegica na RFA Enquanto os cabeleireiros foram convidados a indicar as conversaccedilotildees suspeitas de seus clientes coube aos bombeiros a tarefa adicional de vigiar os veiacuteculos suspeitos reinventando desse modo a delaccedilatildeo de massa Esse modelo de reengenharia estatal repressiva eacute justificado em nome da doutrina da seguranccedila cujo objetivo eacute decretar toleracircncia zero aos delinquumlentes Enquanto as prisotildees se multiplicam nota-se ao mesmo tempo uma notaacutevel estabilidade por crimes de sangue e de costume

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Em 1998 o nuacutemero de condenados por contenciosos natildeoshyviolentos reclusos rompeu sozinha a cifra simboacutelica do milhatildeo Nas prisotildees 6 em cada 10 condenados satildeo negros ou latinos Menos da metade tinha emprego em tempo integral no momento de ser posta atraacutes das grades (WACQUANT 2001 p83)

Essa mudanccedila de objetivo e de resultado reflete o abandono do ideal da reabilitaccedilatildeo depois das criacuteticas cruzadas da direita e da esquerda na deacutecada de 70 e de sua substituiccedilatildeo por uma nova penalogia norte-americana cujo objetivo natildeo eacute mais prevenir o crime nem tratar os delinquumlentes objetivando o seu eventual retorno agrave sociedade O propoacutesito da nova ordem criminal nos EUA eacute isolar grupos considerados perigosos e neutralizar seus membros mais agressivos mediante uma seacuterie padronizada de compOltamentos

O reconhecimento pelos teoacutericos da normalizaccedilatildeo do crime e pelos adeptos de uma poliacutetica criminal ultra-repressiva da incapacidade da burocracia estatal de gerir e controlar os litiacutegios criminais na sociedade atual reafirma a viabilidade de fazer um questionamento teoacuterico e poliacutetico mais profundo dos paradigmas que aceitam como um dado a priori a existecircncia do crime Trata-se portanto de acrescentar e analisar outros movimentos poliacuteticoshyteoacutericos para uma melhor compreensatildeo das razotildees da falecircncia do modelo penal estatal existente

Globalizaccedilatildeo e Outros Fundamentos da Accedilatildeo Criminal

A justiccedila como aparelho de Estado acha-se em dificuldades para cumprir sua missatildeo de regulaccedilatildeo dos conflitos porque comenta Charvet (1977) sua ideologia juriacutedica estaacute em crise sua legitimidade eacute contestada pelos dominados e sua eficiecircncia pelos dominantes Na Franccedila verifica-se o avanccedilo das forccedilas da ordem atraveacutes do crescimento dos efetivos policiais judiciaacuterios e das forccedilas militares (guardas nas praias rodovias e outros lugares da vida puacuteblica) Diante da crise fiscal que impede o Estado de colocar um policial atraacutes de cada cidadatildeo tende-se a criar estrateacutegias de modo a redescobrir e converter em um policial cada cidadatildeo

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A incapacidade da burocracia estatal de regular os conflitos criminais vai aleacutem do processo atual de globalizaccedilatildeo econocircmica e financeira Adorno (1999) fala de um novo paradigma que aponta para algo aleacutem do crimes

O surgimento do Estado moderno caracterizado pelo monopoacutelio da violecircncia e pacificaccedilatildeo social foi acompanhado pela racionalizaccedilatildeo do direito atraveacutes dos seguintes princiacutepios positividade (vontade de um legislador soberano que atraveacutes de meios juriacutedicos de organizaccedilatildeo regulamenta as atividades da vida social) legalidade (natildeo reconhece outro ordenamento juriacutedico que natildeo seja estatal e outra forma de ordenamento estatal que natildeo seja lei)formalidade (o direito moderno define o domiacutenio onde se pode exercer legitimamente o livre arbiacutetrio das pessoas privadas) Esses princiacutepios afirma Adorno estatildeo sendo esfacelados

Por volta de 1950 ocorreu em todos os paiacuteses ocidentais um aumento substancial dos crimes contra as pessoas e ainda mais contra o patrimocircnio Um maior nuacutemero de pessoas passou a violar as leis penais e um grande nuacutemero de comportamentos e bens protegidos pelas leis penais ficou mais vulneraacutevel agrave ofensa e ao ataque

O problema natildeo reside nos crimes em si mas na maior ou menor disposiccedilatildeo social em aceitaacute-los e conviver com eles Ocorre que na sociedade atual essa toleracircncia diz Dahrendorf apud Adorno (1999) teria chegado ao limite haja visto (sic) as reaccedilotildees e a ansiedade puacuteblica diante da crescente ameaccedila do crime e da incapacidade da burocracia estatal em resolvecirc-lo

A erosatildeo da lei e da ordem estaacute vinculada agrave maior probabilidade de um criminoso se manter oculto hoje comparativamente ao passado Uma taxa despreziacutevel dos crimes cometidos eacute resolvida em razatildeo do descaso da poliacutetica pelos delinquumlentes conhecidos desistecircncia deliberada e afrouxamento das puniccedilotildees ou incapacidade de se lidar com as infraccedilotildees A impunidade aumenta e potildee em questatildeo a eficaacutecia das normas Isso provoca a sensaccedilatildeo de inexistecircncia das leis ou

5 O novo paradigma afirma Adorno (1999 p77) diz respeito agrave mudanccedila de hiacutebitos agrave exacerbaccedilatildeo de novos conflitos sociais agrave adoccedilatildeo de soluccedilotildees que desafiam tradiccedilotildees democraacuteticas agrave demarcaccedilatildeo de novas fronteiras sociais [ ] ao sentimento de desordem e caos que se espelha na ausecircncia de justiccedila social

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quando invocadas resultam sem efeito As sociedades contemporacircneas convi vem com o decliacutenio das sanccedilotildees A impunidade torna-se cotidiana diante da decretada incapacidade da burocracia estatal de cuidar da seguranccedila dos cidadatildeos de proteger seus bens materiais e simboacutelicos

Os mecanismos de pressatildeo social (que atuam sobre o comportamento dos sujeitos) que operam sobretudo na esfera da moralidade puacuteblica e privada natildeo parecem suscitar nem o sentimento de medo nem sequer o de anguacutestia diante das possibilidades sempre abertas de violaccedilatildeo das normas sociais As sociedades urbanas complexas comenta Adorno (1999) liberaram o homem do controle social Diante de tantas incertezas cresce por parte da sociedade uma obsessatildeo punitiva reivindicando mais ordem social

Isso natildeo impede o surgimento do modelo de funcionamento da sociedade de risco que potildee em movimento uma superestrutura de prevenccedilatildeo e de seguranccedila por meio da proliferaccedilatildeo das sociedades de seguro e de mecanismos de vigilacircncia privada com o objetivo de enfrentar o medo os perigos e ameaccedilas que tornam a vida humana incerta (ADORNO 1999 plOl-102)

Um poliacutetica de responsabilizaccedilatildeo individual atraveacutes de medidas repressivas voltadas para os jovens delinquumlentes como a reduccedilatildeo da idade para efeitos de responsabilidade penal e instauraccedilatildeo da responsabilidade dos pais em mateacuteria civil e penal tem sido discutida pelos parlamentares europeus Enveredando-se pelo caminho de mais Estado econocircmico e menos Estado social cria-se e justifica-se o mito da inevitabilidade da escalada do crime para disseminar a estrateacutegia da responsabilizaccedilatildeo como forma de mostrar que a prevenccedilatildeo e o controle do crime natildeo pode de modo exclusivo recair mais sobre o Estado

De agora em diante varejistas industriais autoridades escolares empresas de transporte pais trabalhadores e desempregados teratildeo de dividir essa responsabilidade Na deacutecada de 1990 a poliacutetica criminal da responsabilizaccedilatildeo teve por efeito reduzir a dependecircncia para com o Estado e aumentar a dependecircncia para com o mercado Investimentos na criminalidade como dispositivos de seguranccedila satildeo cada vez mais impostos pelas forccedilas econocircmicas em detrimento da poliacutetica puacuteblica

Nas sociedades onde ocorrem divisotildees sociais e raciais

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profundas em que as taxas de criminalidade e os niacuteveis de inseguranccedila satildeo elevados onde soluccedilotildees sociais foram politicamente desacreditas aleacutem de haver um ceticismo crescente quanto agrave perspectiva de reintegraccedilatildeo dos antigos delinquumlentes um setor comercial em expansatildeo favorece o aumento da populaccedilatildeo carceraacuteria pondo em marcha uma cultura do encarceramento em massa nos paiacuteses democraacuteticos

A responsabilizaccedilatildeo de organismos natildeo estatais no combate agrave criminal idade provoca enormes disparidades no financiamento social e na rede de seguranccedila Esta deixa de ser garantida para todos por meio de um Estado soberano para converte-se num produto cuja distribuiccedilatildeo estaacute subordinada agraves forccedilas de mercado As classes subalternas que mais sofrem a criminal idade estatildeo incapacitadas de comprar seguranccedila de adaptar suas vidas cotidianas e de se organizar de forma eficaz contra o crime

Poliacuteticas sociais de prevenccedilatildeo da criminalidade foram seriamente atacadas em razatildeo das transformaccedilotildees poliacuteticas sociais e econocircmicas das uacuteltimas deacutecadas Tentativas de prevenccedilatildeo e de responsabilizaccedilatildeo satildeo solapadas por uma economia de livre mercado que exclui as massas do trabalho remunerado e que nutre ativamente o crime engendrando expectativas de consumidor insaciaacutevel gerando ao mesmo tempo novos niacuteveis de pobreza da crianccedila da disfunccedilatildeo da famiacutelia e de desigualdade social (GARLAND 1999 p77)

A emergecircncia de novos problemas sociais que desafiam os princiacutepios legitimadores do Estado moderno tende a acelerar poreacutem em si natildeo justifica o fracasso da burocracia oficial na resoluccedilatildeo dos atos infracionais na sociedade contemporacircnea Os sintomas aparentes de desordem de caos de aumento da impunidade etc que reinam na sociedade vatildeo muito aleacutem de uma poliacutetica criminal deliberada de afrouxamento do poder estatal como estrateacutegia de administrar os conflitos criminais

A crise de legitimidade estatal na gestatildeo do crime reforccedila a necessidade de pocircr em questatildeo a definiccedilatildeo de crime como verdade ontoloacutegica O propoacutesito do proacuteximo capiacutetulo eacute avaliar e discutir se os eventos sociais considerados problemaacuteticos e penalmente definidos como crimes na sociedade satildeo por esta reconhecidos e aceitos como tais na realidade

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Da Descriminalizaccedilatildeo agrave Aboliccedilatildeo da Pena

A crise profunda da justiccedila penal avalia Cervini (1995) estaacute associada ao fracasso da ideologia do tratamento que pretende em seus diversos niacuteveis resolver os custos individuais e sociais do delito a defasagem das leis com certas culturas a existecircncia da cifra negra6

aleacutem das contradiccedilotildees dogmaacuteticas No momento histoacuterico atual diz Cervine dois fatores favorecem

a tendecircncia de descriminalizaccedilatildeo do direito penal um individual outro social No primeiro caso a pena privativa de liberdade que diminui a possibilidade de adaptabilidade no segundo caso os efeitos sociais estigmatizadores depois de sua aplicaccedilatildeo Em termos sociais natildeo haacute uma soluccedilatildeo eficiente em reparar o custo do crime nem de supressatildeo do estigma de ex-presidiaacuterio

As soluccedilotildees que o sistema penal tem adotado para gerir o problema da criminalidade encontram um potente antiacutedoto quando se avalia a existecircncia da chamada cifra negra Essa afirma Cervine indica claramente que os fatos aos quais a lei denomina de delitos natildeo satildeo considerados como fatos agrave parte separados de outros aconteshycimentos Uma soma relevante de acontecimentos formalmente considerados delitos e teoricamente merecedores de aplicaccedilatildeo penal natildeo eacute considerada nem valorizada como tal pelas viacutetimas ou pelos agentes do sistema pessoalmente interpelados mediante delaccedilotildees concretas (CERVINI 1995 pl73)

Tais consideraccedilotildees colidem com as premissas utoacutepicas da sociedade de controle que busca incansavelmente definir e administrar o crime atraveacutes da diversificaccedilatildeo das penas de ajustes da reclusatildeo prisional de reforma eletrocircnica das prisotildees mais investimentos e maior eficiecircncia na burocraacutetica criminal A sociedade de controle diz Passetti (1999) natildeo atenta para o fato da existecircncia de uma sociedade sem penas seja em

6 Cervini (1995 p162) comenta que a cifra negra eacute produto da diferenccedila existente entre a criminalidade real quantidade de delitos cometidos num tempo e lugar determinados e a criminal idade aparente conhecida pelos oacutergatildeos de controle Ou seja um percentual substancial de delitos estaacute estruturalmente fora do alcance e do controle do direito penal colocando em xeque a credibilidade de todo o sistema

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razatildeo da cifra negra (diferenccedila entre infraccedilotildees denunciadas na poliacutecia e aquelas efetivamente julgadas) seja porque parte consideraacutevel das infraccedilotildees eacute resolvida sem a necessidade da formalidade juriacutedica do just07bull

A maioria dos conflitos cotidianos dentro das fanulias das empresas dos estabelecimentos de ensino das organizaccedilotildees profissionais dos sindicatos clubes ou associaccedilotildees privadas satildeo segundo Hulsman e Celis (1993) resolvidos sem ter de entrar no sistema penal O grande nuacutemero de encarcerados eacute insignificante diante da quantidade real de fatos puniacuteveis que ocorrem a todo instante raramente detectados pelo sistema penal O sistema penal eacute confrontado com uma espantosa soma de casos semelhantes poreacutem apenas alguns deles e de forma injusta satildeo tratados pelo sistema cuja prisatildeo se nutre diariamente de viacutetimas preferencias

Fora os delitos que natildeo pertencem ao chamado nuacutecleo duro da delinquumlecircncia como o terrorismo e a criminalidade organizada o sistema penal afirma Hulsman cria mais problemas do que contribuiccedilotildees para resolver

Diante disso o autor propotildee uma outra loacutegica Diz que um comportamento pode deixar de ser crime sem afetar os laccedilos de sociabilidade O homossexualismo cantado em prosa e verso por Platatildeo foi penalmente condenado pelo Estado moderno durante muito tempo A prostituiccedilatildeo convive com a proibiccedilatildeo sob ameaccedila penal ateacute a liberdade total ou passando por toda sorte de controle administrativo A embriaguez em si natildeo interessa agrave lei ocidental mas soacute indiretamente (dirigir embriagado) O mesmo tratamento diferencial ocorre em relaccedilatildeo ao uso e ao traacutefico de drogas Alguns paiacuteses condenam penalmente o uso e o traacutefico excluindo o consumo pessoal Outros soacute colocam no campo penal as drogas ditas pesadas excluindo as chamadas drogas leves8

7 Na opiniatildeo de Passeui (1999 p63) o que esta utopia natildeo admite mas permitia eacute que no lugar da ressocializaccedilatildeo e da futura reintegmccedilatildeo prevaleccedila o depoacutesito de corpos para os qu ai s os uacutenicos investimentos satildeo a diminui ccedilatildeo a zero da possibilidade de fuga e a rigorosa vigilacircncia apoacutes o sentenciaroento

Na avaliaccedilatildeo de Hulsman e Celis (1 993 plOI) natildeo exi stem nem crimes nem delitos mas apenas situaccedilotildees problemaacuteticas Sem a presenccedila e participaccedilatildeo das pessoas envolvidas nestas situaccedilotildees natildeo haacute como resolvecirc-las de forma humana Classificar um fato de crime significa excluir a priori ou tras saiacutedas poss iacuteveis limitando-se ao es tilo estatal punitivo dominado pelo pensamento juriacutedico distante da realidade

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o processo de globalizaccedilatildeo econocircmica e financeira apenas indiretamente contribui para aprofundar a crise do sistema de justiccedila penal nos paiacuteses capitalistas centrais e perifeacutericos As razotildees da falecircncia do modelo de poliacutetica criminal estatildeo associadas ao processo de reforma penal dos seacuteculos XVIII e XIX periacuteodo em que a sociedade burguesa adotou o principio da puniccedilatildeo generalizada por meio da teoria da humanizaccedilatildeo da pena A reforma do coacutedigo penal burguecircs diz Foucault (1987) converteu inuacutemeros problemas sociais em conflitos criminais estabeleceu uma classificaccedilatildeo metoacutedica dos delitos em termos de gravidade e hierarquia e como complemento modificou e converteu as prisotildees em locais privilegiados com o propoacutesito de recuperar os delinquumlentes infratores atraveacutes do tratamento ressocializador

Desde entatildeo todas as propostas adotadas visando a reforma do sistema penal natildeo tocaram e natildeo discutiram seriamente o significado do crime sua classificaccedilatildeo tampouco sua instituiccedilatildeo correlata a prisatildeo As teorias criminais da normalizaccedilatildeo e da defesa da lei e da ordem (toleracircncia zero) satildeo ilustrativas a esse respeito

A primeira vecirc no crime uma accedilatildeo racional oportunista Parte do pressuposto de que a sociedade atual eacute uma sociedade de risco em que o fenocircmeno criminal natildeo pode ser tratado como algo patoloacutegico mas uma questatildeo de oportunidade Propotildee desativar a burocracia estatal repressiva por ter falhado na tentativa de desarmar e de punir o autor do delito e transferir a responsabilidade do controle do crime aos setores da sociedade civil Grupos privados deveriam armar os alvos vulneraacuteveis criar obstaacuteculos defender suas casas carros cheques cartotildees de creacutedito etc Tais mudanccedilas tomariam as coisas mais difiacuteceis evitando que pessoas pertencentes aos diversos grupos sociais se convertessem em presas faacuteceis de accedilotildees criminais

A segunda (movimento da lei e da ordem) associa a banalizaccedilatildeo do crime agrave fraqueza das respostas das leis penais vigentes Por isso advoga a necessidade de uma perseguiccedilatildeo implacaacutevel de pequenos atos como jogar lixo no chatildeo e furtos ocasionais propondo o aumento da pena para os delinquumlentes ocasionais e a prisatildeo perpeacutetua para os delinquumlentes mais perigosos O que diferencia as teorias criminais em foco eacute mais uma questatildeo de estrateacutegia e natildeo de princiacutepios Ambas trabalham com a noccedilatildeo de crime como uma verdade social e juriacutedica

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A negaccedilatildeo do conceito de crime como um fato social normal constitui objeto de reflexatildeo das teorias da descriminalizaccedilatildeo e abolicionistas para as quais as definiccedilotildees abstratas de crime e de pena vigentes no coacutedigo penal natildeo correspondem agraves definiccedilotildees que delas fazem as pessoas reais A desqualificaccedilatildeo do discurso juriacutedico penal natildeo resulta portando das dificuldades da aplicaccedilatildeo da lei da ineficiecircncia dos oacutergatildeos de controle criados para administraacute-la ou ainda de seu reduzido alcance quando se compara a totalidade de crimes formalmente descritos e os que realmente satildeo solucionados

Uma soluccedilatildeo poliacutetica socialmente legiacutetima na soluccedilatildeo dos problemas sociais hoje definidos e classificados como problemas criminais natildeo pode limitar-se ao entendimento e agrave aceitaccedilatildeo do braccedilo punitivo estatal e de sua burocracia centralizadora como o melhor remeacutedio para gerir os conflitos penais existentes Portanto toma-se urgente questionar seriamente se os eventos sociais formalmente criminalizaacuteveis satildeo concebidos e aceitos como tais pelos agentes sociais direta e potencialmente envolvidos em tais conflitos

Isso implica admitir a possibilidade da sociedade resolver inuacutemeros problemas atualmente circunscritos no campo do direito penal fora do campo estatal punitivo Nesse sentido a responsabilidade pela soluccedilatildeo dos conflitos sob a tutela do direito penal seria transferida aos agentes direta e potencialmente envolvidos em situaccedilotildees problemaacuteticas (acusado viacutetima familiares Estado e demais interessados)

A atuaccedilatildeo da burocracia de justiccedila (poliacutecia e judiciaacuterio) se limitaria a mediar e natildeo intervir diretamente visando impor a melhor soluccedilatildeo para o conflito Para isso outras instacircncias juriacutedicas (campo civil e administrativo) poderiam ser acionadas em detrimento do pesado seletivo e ineficiente sistema de justiccedila penal estatal vigente que por meio de seus oacutergatildeos policiais judiciaacuterios e administrativos procura sem nunca poder encontrar a melhor soluccedilatildeo para o acusado seus familiares agrave vitima e a sociedade

Dois adolescentes (Japonecircs e Laacutezaro) praticaram mais um delito contra o patrimocircnio E daiacute Prendecirc-los ressocializaacute-Ios responsabilizar seus familiares Armar melhor determinados alvos sociais vulneraacuteveis que facilitam o roubo o furto

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Como ressocializar algueacutem que por razotildees conjunturais como o

desemprego e a crise econocircmica pratica um delito contra a propriedade se tais razotildees continuam a persistir Como responsabilizar seus familiares9 se a concepccedilatildeo nuclear de famiacutelia burguesa mudou

Para os defensores do movimento da lei e da ordem o Estado deve responder punindo de modo exemplar Entre os adeptos da normalizaccedilatildeo do crime o Estado deve preocupar-se em punir menos e criar uma nova estrateacutegia com O propoacutesito de armar mais as viacutetimas que os infratores

Tais movimentos natildeo tocam numa questatildeo central como o fazem os adeptos da descriminalizaccedilatildeo e da aboliccedilatildeo da pena para os quais a realidade atual propicia duas alternativas procurar outras repostas para os velhos e novos problemas questionando reduzindo e abolindo o crime e a prisatildeo ou restauraacute-la sob a condiccedilatildeo de aparelho de terror repressivo

9 Passetti (1995 p23) afirma que a situaccedilatildeo social dessas crianccedilas e adolescentes violentados permite desmistificar duas falaacutecias famiacutelias desestruturadas e o suposto acesso democraacutetico agrave escola O modelo de faTlllia vigente nas metroacutepoles natildeo corresponde mais agraves caracteriacutesticas da faTlllia modelar burguesa do capitalismo livre-concorrecircncia e natildeo pode mais ser restaurada como pretende o conservadorismo

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Referecircncias

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OHMAE Kenicbi O fim do Estado Naccedilatildeo a ascensatildeo das economias regionais 3ed Satildeo Paulo Campus 1999

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SANTOS Boaventura Sousa A crtica da razatildeo indolente contra o desperdfcio da experiecircncia Satildeo Paulo Cortez 2000 v 1

WACQUANT Lolc As prisotildees da miseacuteria Rio de Janeiro Zabar 2001

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Abstract

The current process of economic and financiaI globalization has elicited contradictory answers in the formulation of criminal policies by State bureaucracy On the one hand under strong influence of neoclassical economic thought there appears in the United Kingdom the theory of crime normalization qualifying the criminal act as a rational choice option a matter of opportunity according to which delinquents rational1y calculate their actions Such theory proposes to replace the classical model of criminal policy which relates the penal practice to the figure of the other the abnormal by a new model of risk society which sees a professional career in criminal acts On the other hand there appears in the United States the movement in defense of law and order which proposes no tolerance to crime by the amplification of penal right and the recrudescence of the State criminal answer For the defenders of decriminalization and penalabolitionism the utopia of control society which favors the increase of punisbment and target changes to administer crime ignores the existence of a society with no penalties which is manifested through the dark cipher the difference between reported infractions to the police and those really judged

Key words globalization state crime punishment decriminalization penalty abolishment

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Page 3: INTRODUÇÃO AO DEBATE SOBRE AS POLíTICAS OFICIAIS NO ... · sem penas a qual se manifesta através da cifra negra, ... vinculados em razão do potencial revolucionário da informação

o presente artigo visa expor algumas questotildees conceituais que abordam o fenocircmeno da criminalidade no acircmbito das ciecircncias sociais no intuito de contribuir para uma melhor compreensatildeo dos motivos que alimentam o modo de atuaccedilatildeo e a crenccedila legitimadora da intervenccedilatildeo da burocracia estatal visando combater uma duvidosa escalada da accedilatildeo criminal Dentre os elementos teoacutericos abordados discutir-se-aacute a relaccedilatildeo entre globalizaccedilatildeo Estado e as contradiccedilotildees das poliacuteticas criminais adotadas em resposta aos atos infracionais

Globalizaccedilatildeo eReestruturaccedilao da Poliacutetica Criminal Estatal

Tendo em vista o propoacutesito desse artigo optou-se por fazer uma breve discussatildeo sobre as abordagens teoacutericas marxistas e neoliberal com base nos diversos autores2 que fazem uma reflexatildeo sobre o atual processo de globalizaccedilatildeo

O processo de globalizaccedilatildeo em curso pode ser entendido a partir de duas perspectivas teoacutericas distintas De acordo com a teoria marxista (CHESNAIS 2001) trata-se de um fenocircmeno que do ponto de vista econocircmico financeiro poliacutetico e militar produz relaccedilotildees assimeacutetricas e hieraacuterquicas entre paiacuteses capitalistas centrais e perifeacutericos A partir dessa assimetria de poder entre naccedilotildees e estados certas demandas substantivas no campo da economia da poliacutetica estatal da cultura e estrateacutegicas de seguranccedila que dominam a agenda de discussatildeo entre os paiacuteses e organismos internacionais tendem a obedecer a uma relaccedilatildeo de subordinaccedilatildeo hieraacuterquica que vai do nuacutecleo duro agrave periferia do sistema

Os EUA satildeo um exemplo especiacutefico dessa relaccedilatildeo assimeacutetrica por ser o paiacutes que deteacutem o poder hegemocircnico no campo econocircmico poliacutetico e militar cuja evidecircncia se manifesta na esfera das relaccedilotildees internacionais No setor das poliacuteticas criminais Nova York eacute o local onde surge o termo toleracircncia zero rapidamente disseminado em outras partes do continente (Meacutexico Argentina e Brasil) na tentativa de enfrentar a escalada dos conflitos criminais nesses paiacuteses

Diversos autores como Boaventura Sousa Santos (2000) e Dowbor lanni Resende (I 998) tecircm discutido sobre o tema no campo das Ciecircncias Sociais

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A caraterizaccedilatildeo marxista do processo de globalizaccedilatildeo em curso eacute refutada por Ohmae (1999) segundo o qual o termo globalizaccedilatildeo coincide com o fim do conceito de Estado-Naccedilatildeo construiacutedo a partir das revoluccedilotildees econocircmica e poliacutetica europeacuteia do seacuteculo XIX

Atualmente afirma Ohmae (1999) assiste-se ao colapso da ideacuteia de Estado-naccedilatildeo Numa economia sem fronteiras diz o autor as pessoas tecircm melhor acesso a produtos de baixo custo e de boa qualidade quando natildeo satildeo fabricados no proacuteprio paiacutes No plano da comunicaccedilatildeo povos afastados geograficamente e distintos culturalmente estatildeo todos vinculados em razatildeo do potencial revolucionaacuterio da informaccedilatildeo global

Um exemplo disso proveacutem dos adolescentes Estes que satildeo milhotildees em todo mundo crescem num ambiente repleto de multimiacutedia e adquirem modos de ser e de comportamento muito mais parecidos uns com os outros comparativamente aos membros das geraccedilotildees mais velhas de suas proacuteprias culturas Diante da transformaccedilatildeo econocircmica e cultural em questatildeo qualquer reflexatildeo teoacuterica que tome o Estado-naccedilatildeo como paracircmetro de anaacutelise estaacute fadada ao fracasso

As crises econocircmicas e poliacuteticas que acompanham os paiacuteses em face da globalizaccedilatildeo resultam de dois fatores escassa prosperidade econocircmica e aumento das informaccedilotildees sobre o estilo de vida no exterior Eacute o caso por exemplo dos EUA que impulsionam expectativas muito rapidamente gerando um ambiente propiacutecio para que a inveja e o ressentimento comecem a se espalhar exigindo a intervenccedilatildeo populista do Estado em direccedilatildeo a uma poliacutetica distributiva

A raiz social desse descontentamento generalizado diz Ohmae estaacute na forma intervencionista que assume o Estado atraveacutes de poliacuteticas de subsidio Esse modelo de intervenccedilatildeo eacute uma caracteriacutestica da tirania da democracia atual cuja vocaccedilatildeo tem sido conceder pesos iguais aos votos antes que sejam levadas em conta as contribuiccedilotildees para a manutenccedilatildeo da sociedade como um todo Esse artificialismo vinculado agraves poliacuteticas distributivas definidas pelo poder tem por consequumlecircncia levar o governo a fazer empreacutestimos sem lastros com promessa de resgate a longo prazo hipotecando o destino das geraccedilotildees futuras

As consequumlecircncias desse processo poliacutetico intervencionista avalia Ohmae (1999) eacute criar viacutecios comprar votos e quanto mais funciona maior o apetite em niacuteveis cada vez mais elevados Esse modelo

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pode assumir um ponto sem retomo em que a maioria subsidiada e suprida do nuacutenimo puacuteblico natildeo teraacute necessidade nem incentivo para permitir a busca de um equiliacutebrio fiscal sustentaacutevel

As soluccedilotildees propostas pelo autor para inverter esse quadro satildeo primeiro fechar a torneira dos subsiacutedios atraveacutes de desregulamentaccedilatildeo privatizaccedilatildeo da infra-estrutura decreacutescimo da matildeoshyde-obra empregada no setor puacuteblico segundo limitar o poder poliacutetico do governo central agraves questotildees de seguranccedila e moeda fortalecer a ideacuteia dos estados-regiotildees concedendo autonomia agraves unidades federativas no campo das transaccedilotildees econocircmicas internacionais

Eacute interessante avaliar como esse modelo proposto de privatizaccedilatildeo do Estado estabelece correspondecircncia com as correntes teoacutericas no acircmbito da poliacutetica criminal

Economia Estado e o Novo Discurso Criminal

A partir de 1970 (GARLAND 1999 p64) foi montado no Reino Unido um discurso criminal com base na teoria da escolha racional da teoria da atividade de rotina do crime como oportunidade e da prevenccedilatildeo da criminal idade situacional desembocando nas novas criminologias da vida cotidiana O estereoacutetipo de delinquumlente muda de lugar O novo infrator calcula suas accedilotildees e a maior parte dos crimes converte-se numa questatildeo de oportunidade A melhor reposta seria portanto tomar as coisas mais difiacuteceis para os delinquumlentes

Garland (1999) afirma que uma linguagem analiacutetica do risco da racionalidade da escolha da probabilidade da determinaccedilatildeo de alvos da oferta e da demanda de ocasiotildees transfere as formas econocircmicas de raciociacutenio e de caacutelculo para o campo da criminologia Novos objetivos tais como compensaccedilatildeo controle de custo reduccedilatildeo dos danos etc satildeo definidos pela criaccedilatildeo da imagem do criminoso racional Quanto agrave imagem da viacutetima ela aparece como fornecedora de ocasiotildees criminais

Esse novo modelo de pensamento destroacutei consideraccedilotildees de caraacuteter psicoloacutegico e socioloacutegico utilizadas no seacutec XX e formula uma nova concepccedilatildeo de delinquumlente criminal A partir desse esquema de reflexatildeo procura-se repensar as dinacircmicas da criminalidade e do castigo

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em termos pseudo-econocircmicos Se o crime natildeo for uma escolha racional fica mais difiacutecil combatecirc-lo

Esse modelo de anaacutelise surgiu no setor privado (companhias de seguro empresas comerciais e de seguranccedila privada) com o objetivo de reduzir os custos do crime que lhes pesam sobre os ombros Esse raciociacutenio comercial e fundado no seguro acerca da repressatildeo criminal procura diminuir ou deslocar os custos do crime em direccedilatildeo natildeo do castigo mas da prevenccedilatildeo de reduzir o risco antes que garantir a justiccedila

Esse modelo de pensamento apoacutes os anos de 1980 passou a influenciar os organismos e praacuteticas do Estado sobretudo entre os setores profissionais ligados agraves concepccedilotildees sociais e legais da criminalidade Esse tipo de anaacutelise tributaacuterio das concepccedilotildees econocircmicas neoclaacutessicas forma o conjunto da teoria da escolha racional que vecirc no crime uma questatildeo de oportunidade ocasional

O ato criminal converte-se numa rotina algo que acontece no curso normal das coisas e natildeo mais uma perturbaccedilatildeo social que requer explicaccedilotildees especiais A conduta cotidiana da vida econocircmica e social fornece infindaacuteveis ocasiotildees de transaccedilatildeo ilegiacutetima As accedilotildees criminais satildeo vistas como atos regulares previsiacuteveis e sistemaacuteticos como um acidente de tracircnsito Nesse sentido as accedilotildees contra o crime devem recair natildeo sobre pessoas desviantes mas preferencialmente sobre accedilatildeo concebida para governar os haacutebitos sociais e econocircmicos (GARLAND1999p66)

Em oposiccedilatildeo agraves afirmaccedilotildees da criminologia claacutessica3 que vincula a accedilatildeo criminal agrave existecircncia de patologias individuais e deacuteficit de socializaccedilatildeo a teoria da escolha racional vale-se dos esquemas claacutessicos de motivaccedilatildeo econocircmica Para o sujeito incriminado trata-se de uma ocasiatildeo uma escolha de carreira um meio de conseguir emoccedilotildees fortes ou vingar-se Para a viacutetima ou o puacuteblico o crime constitui um risco que deve ser calculado ou um acidente a ser evitado e natildeo uma aberraccedilatildeo moral que exija explicaccedilotildees sofisticadas

Ao decretar a incapacidade do aparato repressivo do Estado de lidar com o problema da criminalidade essas teorias procuram desarmar a

3 Ver por exemplo a abordagem que faz Alexando Baratta (2002) no capiacutetulo escola positiva e explicaccedilatildeo patoloacutegica da criminalidade

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pesada e deficiente burocracia estatal em busca de outros padrotildees de intervenccedilatildeo O estabelecimento de novos programas de accedilatildeo devem influenciar a conduta das viacutetimas potenciais armar os alvos vulneraacuteveis melhorar a seguranccedila em zonas perigosas e reestruturar as rotinas da vida cotidiana que tecircm propiciada desagradaacuteveis ocasiotildees para o crime

A erosatildeo da confianccedila da sociedade atual nas eventualidades das penas dissuasivas decorre da duvidosa capacidade da poliacutecia de prender os bandidos ou da vatilde esperanccedila de que se possa ensinar o domiacutenio de si aos jovens cidadatildeos A nova ordem social requer como imperativo a necessidade de substituir o dinheiro vivo por cartotildees de creacutedito de embutir travas nas colunas de direccedilatildeo dos automoacuteveis contratar vigias nos estabelecimentos colocar circuitos internos de televisatildeo coordenar os horaacuterios de fechamento das discotecas rivais etc Essa nova concepccedilatildeo da normalizaccedilatildeo do crime justifica e abona a reforma neoliberal do Estado ao transferir para os setores privados a responsabilidade estatal pela seguranccedila puacuteblica

Dentro desse quadro ganham forccedila propostas poliacuteticas de defesa de reformas transferindo do Estado para os grupos privados a responsabilidade pela gestatildeo dos conflitos criminais Esse modelo de poliacutetica criminal desenvolvido no Reino Unido sob forte influecircncia do pensamento econocircmico neoliberal natildeo eacute hegemocircnico e em determinados aspectos contrasta abertamente com certos princiacutepios do chamado realismo penal adotados pelo aparato de Estado norteshyamericano no campo da poliacutetica criminal

AOpccedilao Norte-Americana Por Uma Poliacutetica Criminal de Toleracircncia Zero

Nos EUA a redefiniccedilatildeo das missotildees do Estado parte de princiacutepios quase dogmaacuteticos de reduzir o seu papel social e de ampliar sua intervenccedilatildeo penal

Os oacutergatildeos de Estado norte-americano encarregados de promover o rigor penal resultaram na quadruplicaccedilatildeo da populaccedilatildeo carceraacuteria As diretrizes da poliacutetica policial e judiciaacuteria fizeram de Nova York a vitrine mundial da doutrina da toleracircncia zero ao passar agraves forccedilas da ordem um cheque em branco para perseguir agressivamente

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a pequena delinquumlecircncia e reprimir os mendigos e os sem-teto nos bairros deserdados Isso vem segundo Wacquant (2001) acompanhado da vulgarizaccedilatildeo da teoria da vidraccedila quebrada que eacute um empreacutestimo do ditado popular quem rouba um ovo rouba um boi A premissa dessa teoria conservadora eacute lutar passo a passo contra os pequenos distuacuterbios cotidianos para reduzir as grandes patologias criminais

Sem comprovaccedilatildeo empiacuterica essa teoria serve de aacutelibi para conter o medo que as classes meacutedia e alta tecircm dos pobres nos espaccedilos puacuteblicos (ruas parques estaccedilotildees ferroviaacuterias ocircnibus metrocirc etc) A luta que visa eliminar a criminalidade atua em trecircs frentes a) aumento em 10 vezes o efetivo e equipamentos das brigadas b) restituiccedilatildeo das obrigaccedilotildees operacionais aos comissaacuterios de bairro com obrigaccedilatildeo quantitativa de resultados c) implantaccedilatildeo de um sistema de radar informatizado (arquivo central sinaleacutetico e cartograacutefico consultaacutevel em microcomputadores a bordo dos carros de patrulha) Esse conjunto de medidas possibilita uma intervenccedilatildeo implacaacutevel instantacircnea e inflexiacutevel da lei sobre os delitos menores tais como o jogo a mendicacircncia os atentados aos costumes a simples ameaccedila etc

Em termos monetaacuterios ocorreu uma extraordinaacuteria expansatildeo dos recursos destinados agrave manutenccedilatildeo da ordem em NY O orccedilamento policial superou em quatro vezes as verbas destinadas aos hospitais puacuteblicos Essa tendecircncia pode ser ainda mais acentuada nos paiacuteses capitalistas perifeacutericos que entram num processo passivo de globalizaccedilatildeo decretando o fim do Estado-naccedilatildeo

Em termos poliacuteticos o rebaixamento do Legislativo em benefiacutecio do Executivo implica no enfraquecimento do contratual em favor do regulamentar Essa inversatildeo institucional diz Charvet (1977) faz com que a produccedilatildeo da norma e sua concretizaccedilatildeo sejam subtraiacutedas de um compromisso puacuteblico em que indiviacuteduos tenham participado

Para os defensores do Estado policial trata-se no entanto do dever de impor a obrigaccedilatildeo do trabalho assalariado precaacuterio O EstadoshyProvidecircncia norte-americano fracassou devido ao seu programa de ajuda agrave pobreza porque era permissivo e natildeo impunha obrigaccedilatildeo estrita de comportamento aos seus beneficiaacuterios O desemprego deve-se menos agraves opccedilotildees de mercado e mais aos problemas de funcionamento pessoal

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dos desempregados Empregos sujos e mal pagos haacute muitos A situaccedilatildeo de desemprego eacute portanto uma questatildeo de escolha e natildeo de escassez

Uma questatildeo dessa magnitude natildeo pode ser deixada somente agrave boa vontade e agrave iniciativa dos que trabalham por isso devem-se adotar medidas capazes de tornar o trabalho assalariado um dever ciacutevico obrigatoacuterio semelhante ao que se verifica no serviccedilo militar O dever da generalizaccedilatildeo do trabalho precaacuterio deve ser feito atraveacutes do braccedilo punitivo do Estado A poliacutetica social afirma Wacquant desistiu de cumprir a meta de reformar a sociedade preocupando-se em supervisionar a vida dos pobres

De acordo com a arquitetura da ordem criminal norte-americana explicaccedilotildees estruturais da pobreza carecem de plausibilidade Trata-se de uma questatildeo mais relacionada ao comportamento dos pobres do que de barreiras sociais Portanto eacute o comportamento que deve mudar mais do que a sociedade

A existecircncia de um Estado paternalista apenas se justifica se este vier acompanhado de uma ampla estrutura punitiva Deve-se por exemplo utilizar da legislaccedilatildeo de apoio agraves crianccedilas para exigir dos pais ausentes que trabalhem para prover as necessidades de suas farm1ias Poliacuteticas paternalistas de amparo agrave pobreza exigindo a contrapartida do trabalho oferecem mais esperanccedila de melhorar a pobreza do que poliacuteticas estatais distributivas

A proliferaccedilatildeo das incivilidades dizem os defensores da nova ordem criminal eacute o caminho promissor para escalada da delinquumlecircncia As primeiras condutas desviantes quando natildeo recebem puniccedilotildees exemplares estigmatizam um bairro e nele polarizam outros desvios como roubo traacutefico de drogas etc As causas coletivas da accedilatildeo criminal satildeo meras desculpas porque natildeo constituem mecanismos geradores de comportamentos delinquumlentes O crime deve ser imputado ao indiviacuteduo e natildeo agrave sociedade

Natildeo punir os autores das violecircncias urbanas significa alimentar a escalada da delinquumlecircncia Independente da fratura social eacute inaceitaacutevel procurar desculpas para atos indesculpaacuteveis Caso contraacuterio todos os desempregados estariam autorizados a roubar pilhar e depredar A forccedila desse discurso que prega o aumento da repressatildeo criminal estaacute associada ao processo mais geral de globalizaccedilatildeo em curso o qual

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impotildee reformas estruturais no aparato de Estado cujo efeito tem sido o aumento da polarizaccedilatildeo econocircmica entre grupos e classes sociais em diversos paiacuteses

O processo de globalizaccedilatildeo econocircmica e financeira tem sido feacutertil na produccedilatildeo de respostas teoacutericas distintas no controle do crime nas sociedades contemporacircneas O Estado deve atuar entre os adeptos do conceito de normalizaccedilatildeo do crime motivando setores da sociedade civil a oferecer respostas no campo preventivo Nesse sentido a gestatildeo e o controle do crime deveratildeo preocupar-se mais com a vitima potencial e menos com o delinquumlente Armar os alvos que propiciam inumeraacuteveis oportunidades ao crime eacute o objetivo central desse modelo de poliacutetica criminal

Enquanto isso os adeptos do chamado realismo penal sustentam que a banalizaccedilatildeo do crime na sociedade proveacutem da complacecircncia e do enfraquecimento da resposta da lei diante dos agentes que praticam atos criminais No plano das poliacuteticas oficiais essa dualidade de concepccedilotildees teoacutericas tem permeado o discurso e a accedilatildeo da burocracia estatal no campo penal Tais contradiccedilotildees tendem a provocar uma taxa de legitimidade social decrescente da confianccedila do Estado na gestatildeo e controle do crime

Contradiccedilotildees da Criminologia Oficial da Prevenccedilatildeo ao Aumento das Prisocirces

A criminologia oficial informa Garland (1999) mostra-se dualista polarizada e ambivalente Ao lado de uma criminologia do eu que transforma o criminoso em um consumidor racional semelhante agrave viacutetima opera-se ao mesmo tempo uma criminologia do outro do paacuteria do ser ameaccedilador A primeira eacute invocada para banalizar e promover a accedilatildeo preventiva a segunda para provocar o medo as hostilidades populares e afirmar o peso punitivo do Estado (GARLAND 1999 p75)

No decorrer dos anos 90 verifica-se uma ambivalecircncia do discurso oficial Fala-se menos em guerra contra o crime e mais na existecircncia de limites do poder do Estado Documentos oficiais e manifestos poliacuteticos ressaltam que os organismos governamentais natildeo podem combater e controlar a criminalidade isoladamente Em razatildeo

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disso propotildee-se uma melhor gestatildeo dos riscos e dos recursos numa reduccedilatildeo do medo dos custos da criminalidade da justiccedila criminal e maior amparo agraves viacutetimas

Poreacutem nessa uacuteltima deacutecada tentativas expliacutecitas de expressar a coacutelera e o ressentimento do puacuteblico tornaram-se um tema recorrente da retoacuterica que acompanha a legislaccedilatildeo penal e a tomada de decisotildees Os sentimentos da viacutetima da farrulia de um puacuteblico temeroso ultrajado foram constantemente invocados em apoio agrave criaccedilatildeo de novas leis e poliacuteticas penais em que o castigo tornou-se em objeto a ser venerado

Se por um lado a sociedade precisa adaptar-se ao crime concebendo-o como uma atividade profissional normal por outro o realismo penal sugere a divisatildeo do crime em duas categorias crimes violentos como terrorismo assassinato estupro sequumlestro roubo incecircndio criminoso etc exigem uma resposta ultra repressiva cabendo agrave poliacutetica responder a essa expectativa junto ao puacuteblico Jaacute os crimes ocasionais como roubo de veiacuteculos arrombamentos vandalismo e furtos diversos natildeo podem esperar sucesso na accedilatildeo exclusiva da poliacutecia (GARLAND 1999p64)

Esse comportamento dualista da poliacutetica oficial do Estado que admite seu fracasso parcial na soluccedilatildeo dos conflitos penais tambeacutem retira das gavetas enferrujadas da histoacuteria do modelo penal claacutessico punitivo antigas e falaciosas virtudes com o objetivo de administrar o crime Nessa direccedilatildeo a prisatildeo tende a prosperar Por quecirc Porque ela funciona afirmam seus defensores As despesas penitenciaacuterias satildeo investimentos pensado e rentaacutevel para a sociedade A triplicaccedilatildeo da populaccedilatildeo carceraacuteria nos Estados Unidos (1975 e 1989) teria apenas por seu efeito neutralizante evitado 390000 assassinatos estupros e roubos com violecircncia

Na falta da pena de morte mostra Wacquant (2001) a reclusatildeo eacute de longe o meio mais eficaz de impedir os criminosos comprovados e notoacuterios de matar estuprar roubar e furtar Um sistema judiciaacuterio natildeo tem que se preocupar com as razotildees que levam algueacutem a cometer um crime A justiccedila estaacute aiacute para punir os culpados indenizar os inocentes e defender os interesses dos cidadatildeos que respeitam a lei Por isso o Estado deve punir com eficaacutecia aqueles que insistem em transgredir a lei

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Essa velha receita de accedilatildeo repressiva estatal deve prevalecer nos EUA e em outros paiacuteses4

bull Comportamentos criminosos ou protocriminosos como jogar lixo na rua insultar pichar e cometer atos de vandalismo devem ser reprimidos com firmeza a fim de impedir que comportamentos criminosos mais graves se desenvolvam Toma-se igualmente necessaacuterio restaurar o moral dos policiais que foram submetidos anos a fio ao trabalho daninho dos socioacutelogos e dos criminologistas que insistem em dizer que o crime eacute causado pela pobreza fora da alccedilada da poliacutecia

Mediante uma accedilatildeo penal resolutamente agressiva as instituiccedilotildees policiais e penitenciaacuterias na sociedade em tempos neoliberais pretendem reafirmar a autoridade moral do Estado no momento em que ele proacuteprio eacute atingido pela sua impotecircncia econocircmica O aumento da repressatildeo estatal consequumlecircncia da nova ordem criminal em vigor vem acompanhado da privatizaccedilatildeo do sistema penitenciaacuterio A multiplicaccedilatildeo de prisotildees deve acompanhar o aumento da produccedilatildeo juriacutedica de criminosos O mercado da puniccedilatildeo um negoacutecio promissor que proporciona aos detentores de tiacutetulos de accedilotildees das empresas de seguranccedila rendimentos suculentos estaacute nascendo

Wacquant (2001) afirma que as causas do crescimento da populaccedilatildeo carceraacuteria norte-americana estatildeo vinculadas aos pequenos delinquumlentes e particularmente dos toxicocircmanos Ao contraacuterio do discurso poliacutetico e midiaacutetico dominante as prisotildees estatildeo repletas natildeo de criminosos perigosos e violentos mas de vulgares condenados pelo direito comum por negoacutecios com drogas furto roubo ou simples atentados agrave ordem puacuteblica envolvendo parcelas precarizadas das classes subalternas

4 Charvet (1977) mostra um exemplo ilustrativo dessa nova estrateacutegica na RFA Enquanto os cabeleireiros foram convidados a indicar as conversaccedilotildees suspeitas de seus clientes coube aos bombeiros a tarefa adicional de vigiar os veiacuteculos suspeitos reinventando desse modo a delaccedilatildeo de massa Esse modelo de reengenharia estatal repressiva eacute justificado em nome da doutrina da seguranccedila cujo objetivo eacute decretar toleracircncia zero aos delinquumlentes Enquanto as prisotildees se multiplicam nota-se ao mesmo tempo uma notaacutevel estabilidade por crimes de sangue e de costume

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Em 1998 o nuacutemero de condenados por contenciosos natildeoshyviolentos reclusos rompeu sozinha a cifra simboacutelica do milhatildeo Nas prisotildees 6 em cada 10 condenados satildeo negros ou latinos Menos da metade tinha emprego em tempo integral no momento de ser posta atraacutes das grades (WACQUANT 2001 p83)

Essa mudanccedila de objetivo e de resultado reflete o abandono do ideal da reabilitaccedilatildeo depois das criacuteticas cruzadas da direita e da esquerda na deacutecada de 70 e de sua substituiccedilatildeo por uma nova penalogia norte-americana cujo objetivo natildeo eacute mais prevenir o crime nem tratar os delinquumlentes objetivando o seu eventual retorno agrave sociedade O propoacutesito da nova ordem criminal nos EUA eacute isolar grupos considerados perigosos e neutralizar seus membros mais agressivos mediante uma seacuterie padronizada de compOltamentos

O reconhecimento pelos teoacutericos da normalizaccedilatildeo do crime e pelos adeptos de uma poliacutetica criminal ultra-repressiva da incapacidade da burocracia estatal de gerir e controlar os litiacutegios criminais na sociedade atual reafirma a viabilidade de fazer um questionamento teoacuterico e poliacutetico mais profundo dos paradigmas que aceitam como um dado a priori a existecircncia do crime Trata-se portanto de acrescentar e analisar outros movimentos poliacuteticoshyteoacutericos para uma melhor compreensatildeo das razotildees da falecircncia do modelo penal estatal existente

Globalizaccedilatildeo e Outros Fundamentos da Accedilatildeo Criminal

A justiccedila como aparelho de Estado acha-se em dificuldades para cumprir sua missatildeo de regulaccedilatildeo dos conflitos porque comenta Charvet (1977) sua ideologia juriacutedica estaacute em crise sua legitimidade eacute contestada pelos dominados e sua eficiecircncia pelos dominantes Na Franccedila verifica-se o avanccedilo das forccedilas da ordem atraveacutes do crescimento dos efetivos policiais judiciaacuterios e das forccedilas militares (guardas nas praias rodovias e outros lugares da vida puacuteblica) Diante da crise fiscal que impede o Estado de colocar um policial atraacutes de cada cidadatildeo tende-se a criar estrateacutegias de modo a redescobrir e converter em um policial cada cidadatildeo

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A incapacidade da burocracia estatal de regular os conflitos criminais vai aleacutem do processo atual de globalizaccedilatildeo econocircmica e financeira Adorno (1999) fala de um novo paradigma que aponta para algo aleacutem do crimes

O surgimento do Estado moderno caracterizado pelo monopoacutelio da violecircncia e pacificaccedilatildeo social foi acompanhado pela racionalizaccedilatildeo do direito atraveacutes dos seguintes princiacutepios positividade (vontade de um legislador soberano que atraveacutes de meios juriacutedicos de organizaccedilatildeo regulamenta as atividades da vida social) legalidade (natildeo reconhece outro ordenamento juriacutedico que natildeo seja estatal e outra forma de ordenamento estatal que natildeo seja lei)formalidade (o direito moderno define o domiacutenio onde se pode exercer legitimamente o livre arbiacutetrio das pessoas privadas) Esses princiacutepios afirma Adorno estatildeo sendo esfacelados

Por volta de 1950 ocorreu em todos os paiacuteses ocidentais um aumento substancial dos crimes contra as pessoas e ainda mais contra o patrimocircnio Um maior nuacutemero de pessoas passou a violar as leis penais e um grande nuacutemero de comportamentos e bens protegidos pelas leis penais ficou mais vulneraacutevel agrave ofensa e ao ataque

O problema natildeo reside nos crimes em si mas na maior ou menor disposiccedilatildeo social em aceitaacute-los e conviver com eles Ocorre que na sociedade atual essa toleracircncia diz Dahrendorf apud Adorno (1999) teria chegado ao limite haja visto (sic) as reaccedilotildees e a ansiedade puacuteblica diante da crescente ameaccedila do crime e da incapacidade da burocracia estatal em resolvecirc-lo

A erosatildeo da lei e da ordem estaacute vinculada agrave maior probabilidade de um criminoso se manter oculto hoje comparativamente ao passado Uma taxa despreziacutevel dos crimes cometidos eacute resolvida em razatildeo do descaso da poliacutetica pelos delinquumlentes conhecidos desistecircncia deliberada e afrouxamento das puniccedilotildees ou incapacidade de se lidar com as infraccedilotildees A impunidade aumenta e potildee em questatildeo a eficaacutecia das normas Isso provoca a sensaccedilatildeo de inexistecircncia das leis ou

5 O novo paradigma afirma Adorno (1999 p77) diz respeito agrave mudanccedila de hiacutebitos agrave exacerbaccedilatildeo de novos conflitos sociais agrave adoccedilatildeo de soluccedilotildees que desafiam tradiccedilotildees democraacuteticas agrave demarcaccedilatildeo de novas fronteiras sociais [ ] ao sentimento de desordem e caos que se espelha na ausecircncia de justiccedila social

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quando invocadas resultam sem efeito As sociedades contemporacircneas convi vem com o decliacutenio das sanccedilotildees A impunidade torna-se cotidiana diante da decretada incapacidade da burocracia estatal de cuidar da seguranccedila dos cidadatildeos de proteger seus bens materiais e simboacutelicos

Os mecanismos de pressatildeo social (que atuam sobre o comportamento dos sujeitos) que operam sobretudo na esfera da moralidade puacuteblica e privada natildeo parecem suscitar nem o sentimento de medo nem sequer o de anguacutestia diante das possibilidades sempre abertas de violaccedilatildeo das normas sociais As sociedades urbanas complexas comenta Adorno (1999) liberaram o homem do controle social Diante de tantas incertezas cresce por parte da sociedade uma obsessatildeo punitiva reivindicando mais ordem social

Isso natildeo impede o surgimento do modelo de funcionamento da sociedade de risco que potildee em movimento uma superestrutura de prevenccedilatildeo e de seguranccedila por meio da proliferaccedilatildeo das sociedades de seguro e de mecanismos de vigilacircncia privada com o objetivo de enfrentar o medo os perigos e ameaccedilas que tornam a vida humana incerta (ADORNO 1999 plOl-102)

Um poliacutetica de responsabilizaccedilatildeo individual atraveacutes de medidas repressivas voltadas para os jovens delinquumlentes como a reduccedilatildeo da idade para efeitos de responsabilidade penal e instauraccedilatildeo da responsabilidade dos pais em mateacuteria civil e penal tem sido discutida pelos parlamentares europeus Enveredando-se pelo caminho de mais Estado econocircmico e menos Estado social cria-se e justifica-se o mito da inevitabilidade da escalada do crime para disseminar a estrateacutegia da responsabilizaccedilatildeo como forma de mostrar que a prevenccedilatildeo e o controle do crime natildeo pode de modo exclusivo recair mais sobre o Estado

De agora em diante varejistas industriais autoridades escolares empresas de transporte pais trabalhadores e desempregados teratildeo de dividir essa responsabilidade Na deacutecada de 1990 a poliacutetica criminal da responsabilizaccedilatildeo teve por efeito reduzir a dependecircncia para com o Estado e aumentar a dependecircncia para com o mercado Investimentos na criminalidade como dispositivos de seguranccedila satildeo cada vez mais impostos pelas forccedilas econocircmicas em detrimento da poliacutetica puacuteblica

Nas sociedades onde ocorrem divisotildees sociais e raciais

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profundas em que as taxas de criminalidade e os niacuteveis de inseguranccedila satildeo elevados onde soluccedilotildees sociais foram politicamente desacreditas aleacutem de haver um ceticismo crescente quanto agrave perspectiva de reintegraccedilatildeo dos antigos delinquumlentes um setor comercial em expansatildeo favorece o aumento da populaccedilatildeo carceraacuteria pondo em marcha uma cultura do encarceramento em massa nos paiacuteses democraacuteticos

A responsabilizaccedilatildeo de organismos natildeo estatais no combate agrave criminal idade provoca enormes disparidades no financiamento social e na rede de seguranccedila Esta deixa de ser garantida para todos por meio de um Estado soberano para converte-se num produto cuja distribuiccedilatildeo estaacute subordinada agraves forccedilas de mercado As classes subalternas que mais sofrem a criminal idade estatildeo incapacitadas de comprar seguranccedila de adaptar suas vidas cotidianas e de se organizar de forma eficaz contra o crime

Poliacuteticas sociais de prevenccedilatildeo da criminalidade foram seriamente atacadas em razatildeo das transformaccedilotildees poliacuteticas sociais e econocircmicas das uacuteltimas deacutecadas Tentativas de prevenccedilatildeo e de responsabilizaccedilatildeo satildeo solapadas por uma economia de livre mercado que exclui as massas do trabalho remunerado e que nutre ativamente o crime engendrando expectativas de consumidor insaciaacutevel gerando ao mesmo tempo novos niacuteveis de pobreza da crianccedila da disfunccedilatildeo da famiacutelia e de desigualdade social (GARLAND 1999 p77)

A emergecircncia de novos problemas sociais que desafiam os princiacutepios legitimadores do Estado moderno tende a acelerar poreacutem em si natildeo justifica o fracasso da burocracia oficial na resoluccedilatildeo dos atos infracionais na sociedade contemporacircnea Os sintomas aparentes de desordem de caos de aumento da impunidade etc que reinam na sociedade vatildeo muito aleacutem de uma poliacutetica criminal deliberada de afrouxamento do poder estatal como estrateacutegia de administrar os conflitos criminais

A crise de legitimidade estatal na gestatildeo do crime reforccedila a necessidade de pocircr em questatildeo a definiccedilatildeo de crime como verdade ontoloacutegica O propoacutesito do proacuteximo capiacutetulo eacute avaliar e discutir se os eventos sociais considerados problemaacuteticos e penalmente definidos como crimes na sociedade satildeo por esta reconhecidos e aceitos como tais na realidade

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Da Descriminalizaccedilatildeo agrave Aboliccedilatildeo da Pena

A crise profunda da justiccedila penal avalia Cervini (1995) estaacute associada ao fracasso da ideologia do tratamento que pretende em seus diversos niacuteveis resolver os custos individuais e sociais do delito a defasagem das leis com certas culturas a existecircncia da cifra negra6

aleacutem das contradiccedilotildees dogmaacuteticas No momento histoacuterico atual diz Cervine dois fatores favorecem

a tendecircncia de descriminalizaccedilatildeo do direito penal um individual outro social No primeiro caso a pena privativa de liberdade que diminui a possibilidade de adaptabilidade no segundo caso os efeitos sociais estigmatizadores depois de sua aplicaccedilatildeo Em termos sociais natildeo haacute uma soluccedilatildeo eficiente em reparar o custo do crime nem de supressatildeo do estigma de ex-presidiaacuterio

As soluccedilotildees que o sistema penal tem adotado para gerir o problema da criminalidade encontram um potente antiacutedoto quando se avalia a existecircncia da chamada cifra negra Essa afirma Cervine indica claramente que os fatos aos quais a lei denomina de delitos natildeo satildeo considerados como fatos agrave parte separados de outros aconteshycimentos Uma soma relevante de acontecimentos formalmente considerados delitos e teoricamente merecedores de aplicaccedilatildeo penal natildeo eacute considerada nem valorizada como tal pelas viacutetimas ou pelos agentes do sistema pessoalmente interpelados mediante delaccedilotildees concretas (CERVINI 1995 pl73)

Tais consideraccedilotildees colidem com as premissas utoacutepicas da sociedade de controle que busca incansavelmente definir e administrar o crime atraveacutes da diversificaccedilatildeo das penas de ajustes da reclusatildeo prisional de reforma eletrocircnica das prisotildees mais investimentos e maior eficiecircncia na burocraacutetica criminal A sociedade de controle diz Passetti (1999) natildeo atenta para o fato da existecircncia de uma sociedade sem penas seja em

6 Cervini (1995 p162) comenta que a cifra negra eacute produto da diferenccedila existente entre a criminalidade real quantidade de delitos cometidos num tempo e lugar determinados e a criminal idade aparente conhecida pelos oacutergatildeos de controle Ou seja um percentual substancial de delitos estaacute estruturalmente fora do alcance e do controle do direito penal colocando em xeque a credibilidade de todo o sistema

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razatildeo da cifra negra (diferenccedila entre infraccedilotildees denunciadas na poliacutecia e aquelas efetivamente julgadas) seja porque parte consideraacutevel das infraccedilotildees eacute resolvida sem a necessidade da formalidade juriacutedica do just07bull

A maioria dos conflitos cotidianos dentro das fanulias das empresas dos estabelecimentos de ensino das organizaccedilotildees profissionais dos sindicatos clubes ou associaccedilotildees privadas satildeo segundo Hulsman e Celis (1993) resolvidos sem ter de entrar no sistema penal O grande nuacutemero de encarcerados eacute insignificante diante da quantidade real de fatos puniacuteveis que ocorrem a todo instante raramente detectados pelo sistema penal O sistema penal eacute confrontado com uma espantosa soma de casos semelhantes poreacutem apenas alguns deles e de forma injusta satildeo tratados pelo sistema cuja prisatildeo se nutre diariamente de viacutetimas preferencias

Fora os delitos que natildeo pertencem ao chamado nuacutecleo duro da delinquumlecircncia como o terrorismo e a criminalidade organizada o sistema penal afirma Hulsman cria mais problemas do que contribuiccedilotildees para resolver

Diante disso o autor propotildee uma outra loacutegica Diz que um comportamento pode deixar de ser crime sem afetar os laccedilos de sociabilidade O homossexualismo cantado em prosa e verso por Platatildeo foi penalmente condenado pelo Estado moderno durante muito tempo A prostituiccedilatildeo convive com a proibiccedilatildeo sob ameaccedila penal ateacute a liberdade total ou passando por toda sorte de controle administrativo A embriaguez em si natildeo interessa agrave lei ocidental mas soacute indiretamente (dirigir embriagado) O mesmo tratamento diferencial ocorre em relaccedilatildeo ao uso e ao traacutefico de drogas Alguns paiacuteses condenam penalmente o uso e o traacutefico excluindo o consumo pessoal Outros soacute colocam no campo penal as drogas ditas pesadas excluindo as chamadas drogas leves8

7 Na opiniatildeo de Passeui (1999 p63) o que esta utopia natildeo admite mas permitia eacute que no lugar da ressocializaccedilatildeo e da futura reintegmccedilatildeo prevaleccedila o depoacutesito de corpos para os qu ai s os uacutenicos investimentos satildeo a diminui ccedilatildeo a zero da possibilidade de fuga e a rigorosa vigilacircncia apoacutes o sentenciaroento

Na avaliaccedilatildeo de Hulsman e Celis (1 993 plOI) natildeo exi stem nem crimes nem delitos mas apenas situaccedilotildees problemaacuteticas Sem a presenccedila e participaccedilatildeo das pessoas envolvidas nestas situaccedilotildees natildeo haacute como resolvecirc-las de forma humana Classificar um fato de crime significa excluir a priori ou tras saiacutedas poss iacuteveis limitando-se ao es tilo estatal punitivo dominado pelo pensamento juriacutedico distante da realidade

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o processo de globalizaccedilatildeo econocircmica e financeira apenas indiretamente contribui para aprofundar a crise do sistema de justiccedila penal nos paiacuteses capitalistas centrais e perifeacutericos As razotildees da falecircncia do modelo de poliacutetica criminal estatildeo associadas ao processo de reforma penal dos seacuteculos XVIII e XIX periacuteodo em que a sociedade burguesa adotou o principio da puniccedilatildeo generalizada por meio da teoria da humanizaccedilatildeo da pena A reforma do coacutedigo penal burguecircs diz Foucault (1987) converteu inuacutemeros problemas sociais em conflitos criminais estabeleceu uma classificaccedilatildeo metoacutedica dos delitos em termos de gravidade e hierarquia e como complemento modificou e converteu as prisotildees em locais privilegiados com o propoacutesito de recuperar os delinquumlentes infratores atraveacutes do tratamento ressocializador

Desde entatildeo todas as propostas adotadas visando a reforma do sistema penal natildeo tocaram e natildeo discutiram seriamente o significado do crime sua classificaccedilatildeo tampouco sua instituiccedilatildeo correlata a prisatildeo As teorias criminais da normalizaccedilatildeo e da defesa da lei e da ordem (toleracircncia zero) satildeo ilustrativas a esse respeito

A primeira vecirc no crime uma accedilatildeo racional oportunista Parte do pressuposto de que a sociedade atual eacute uma sociedade de risco em que o fenocircmeno criminal natildeo pode ser tratado como algo patoloacutegico mas uma questatildeo de oportunidade Propotildee desativar a burocracia estatal repressiva por ter falhado na tentativa de desarmar e de punir o autor do delito e transferir a responsabilidade do controle do crime aos setores da sociedade civil Grupos privados deveriam armar os alvos vulneraacuteveis criar obstaacuteculos defender suas casas carros cheques cartotildees de creacutedito etc Tais mudanccedilas tomariam as coisas mais difiacuteceis evitando que pessoas pertencentes aos diversos grupos sociais se convertessem em presas faacuteceis de accedilotildees criminais

A segunda (movimento da lei e da ordem) associa a banalizaccedilatildeo do crime agrave fraqueza das respostas das leis penais vigentes Por isso advoga a necessidade de uma perseguiccedilatildeo implacaacutevel de pequenos atos como jogar lixo no chatildeo e furtos ocasionais propondo o aumento da pena para os delinquumlentes ocasionais e a prisatildeo perpeacutetua para os delinquumlentes mais perigosos O que diferencia as teorias criminais em foco eacute mais uma questatildeo de estrateacutegia e natildeo de princiacutepios Ambas trabalham com a noccedilatildeo de crime como uma verdade social e juriacutedica

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A negaccedilatildeo do conceito de crime como um fato social normal constitui objeto de reflexatildeo das teorias da descriminalizaccedilatildeo e abolicionistas para as quais as definiccedilotildees abstratas de crime e de pena vigentes no coacutedigo penal natildeo correspondem agraves definiccedilotildees que delas fazem as pessoas reais A desqualificaccedilatildeo do discurso juriacutedico penal natildeo resulta portando das dificuldades da aplicaccedilatildeo da lei da ineficiecircncia dos oacutergatildeos de controle criados para administraacute-la ou ainda de seu reduzido alcance quando se compara a totalidade de crimes formalmente descritos e os que realmente satildeo solucionados

Uma soluccedilatildeo poliacutetica socialmente legiacutetima na soluccedilatildeo dos problemas sociais hoje definidos e classificados como problemas criminais natildeo pode limitar-se ao entendimento e agrave aceitaccedilatildeo do braccedilo punitivo estatal e de sua burocracia centralizadora como o melhor remeacutedio para gerir os conflitos penais existentes Portanto toma-se urgente questionar seriamente se os eventos sociais formalmente criminalizaacuteveis satildeo concebidos e aceitos como tais pelos agentes sociais direta e potencialmente envolvidos em tais conflitos

Isso implica admitir a possibilidade da sociedade resolver inuacutemeros problemas atualmente circunscritos no campo do direito penal fora do campo estatal punitivo Nesse sentido a responsabilidade pela soluccedilatildeo dos conflitos sob a tutela do direito penal seria transferida aos agentes direta e potencialmente envolvidos em situaccedilotildees problemaacuteticas (acusado viacutetima familiares Estado e demais interessados)

A atuaccedilatildeo da burocracia de justiccedila (poliacutecia e judiciaacuterio) se limitaria a mediar e natildeo intervir diretamente visando impor a melhor soluccedilatildeo para o conflito Para isso outras instacircncias juriacutedicas (campo civil e administrativo) poderiam ser acionadas em detrimento do pesado seletivo e ineficiente sistema de justiccedila penal estatal vigente que por meio de seus oacutergatildeos policiais judiciaacuterios e administrativos procura sem nunca poder encontrar a melhor soluccedilatildeo para o acusado seus familiares agrave vitima e a sociedade

Dois adolescentes (Japonecircs e Laacutezaro) praticaram mais um delito contra o patrimocircnio E daiacute Prendecirc-los ressocializaacute-Ios responsabilizar seus familiares Armar melhor determinados alvos sociais vulneraacuteveis que facilitam o roubo o furto

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Como ressocializar algueacutem que por razotildees conjunturais como o

desemprego e a crise econocircmica pratica um delito contra a propriedade se tais razotildees continuam a persistir Como responsabilizar seus familiares9 se a concepccedilatildeo nuclear de famiacutelia burguesa mudou

Para os defensores do movimento da lei e da ordem o Estado deve responder punindo de modo exemplar Entre os adeptos da normalizaccedilatildeo do crime o Estado deve preocupar-se em punir menos e criar uma nova estrateacutegia com O propoacutesito de armar mais as viacutetimas que os infratores

Tais movimentos natildeo tocam numa questatildeo central como o fazem os adeptos da descriminalizaccedilatildeo e da aboliccedilatildeo da pena para os quais a realidade atual propicia duas alternativas procurar outras repostas para os velhos e novos problemas questionando reduzindo e abolindo o crime e a prisatildeo ou restauraacute-la sob a condiccedilatildeo de aparelho de terror repressivo

9 Passetti (1995 p23) afirma que a situaccedilatildeo social dessas crianccedilas e adolescentes violentados permite desmistificar duas falaacutecias famiacutelias desestruturadas e o suposto acesso democraacutetico agrave escola O modelo de faTlllia vigente nas metroacutepoles natildeo corresponde mais agraves caracteriacutesticas da faTlllia modelar burguesa do capitalismo livre-concorrecircncia e natildeo pode mais ser restaurada como pretende o conservadorismo

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PASSETTI Edson (Org) Violentados crianccedilas adolescentes e justiccedila Satildeo Paulo Imaginaacuterio 1995

PASSETTI Edson Sociedade de controle e aboliccedilatildeo da puniccedilatildeo Violecircncia e Mal-Estar na Sociedade Satildeo Paulo em Perspectiva Satildeo Paulo v13 n3 jull set1 999

SANTOS Boaventura Sousa A crtica da razatildeo indolente contra o desperdfcio da experiecircncia Satildeo Paulo Cortez 2000 v 1

WACQUANT Lolc As prisotildees da miseacuteria Rio de Janeiro Zabar 2001

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Abstract

The current process of economic and financiaI globalization has elicited contradictory answers in the formulation of criminal policies by State bureaucracy On the one hand under strong influence of neoclassical economic thought there appears in the United Kingdom the theory of crime normalization qualifying the criminal act as a rational choice option a matter of opportunity according to which delinquents rational1y calculate their actions Such theory proposes to replace the classical model of criminal policy which relates the penal practice to the figure of the other the abnormal by a new model of risk society which sees a professional career in criminal acts On the other hand there appears in the United States the movement in defense of law and order which proposes no tolerance to crime by the amplification of penal right and the recrudescence of the State criminal answer For the defenders of decriminalization and penalabolitionism the utopia of control society which favors the increase of punisbment and target changes to administer crime ignores the existence of a society with no penalties which is manifested through the dark cipher the difference between reported infractions to the police and those really judged

Key words globalization state crime punishment decriminalization penalty abolishment

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Page 4: INTRODUÇÃO AO DEBATE SOBRE AS POLíTICAS OFICIAIS NO ... · sem penas a qual se manifesta através da cifra negra, ... vinculados em razão do potencial revolucionário da informação

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A caraterizaccedilatildeo marxista do processo de globalizaccedilatildeo em curso eacute refutada por Ohmae (1999) segundo o qual o termo globalizaccedilatildeo coincide com o fim do conceito de Estado-Naccedilatildeo construiacutedo a partir das revoluccedilotildees econocircmica e poliacutetica europeacuteia do seacuteculo XIX

Atualmente afirma Ohmae (1999) assiste-se ao colapso da ideacuteia de Estado-naccedilatildeo Numa economia sem fronteiras diz o autor as pessoas tecircm melhor acesso a produtos de baixo custo e de boa qualidade quando natildeo satildeo fabricados no proacuteprio paiacutes No plano da comunicaccedilatildeo povos afastados geograficamente e distintos culturalmente estatildeo todos vinculados em razatildeo do potencial revolucionaacuterio da informaccedilatildeo global

Um exemplo disso proveacutem dos adolescentes Estes que satildeo milhotildees em todo mundo crescem num ambiente repleto de multimiacutedia e adquirem modos de ser e de comportamento muito mais parecidos uns com os outros comparativamente aos membros das geraccedilotildees mais velhas de suas proacuteprias culturas Diante da transformaccedilatildeo econocircmica e cultural em questatildeo qualquer reflexatildeo teoacuterica que tome o Estado-naccedilatildeo como paracircmetro de anaacutelise estaacute fadada ao fracasso

As crises econocircmicas e poliacuteticas que acompanham os paiacuteses em face da globalizaccedilatildeo resultam de dois fatores escassa prosperidade econocircmica e aumento das informaccedilotildees sobre o estilo de vida no exterior Eacute o caso por exemplo dos EUA que impulsionam expectativas muito rapidamente gerando um ambiente propiacutecio para que a inveja e o ressentimento comecem a se espalhar exigindo a intervenccedilatildeo populista do Estado em direccedilatildeo a uma poliacutetica distributiva

A raiz social desse descontentamento generalizado diz Ohmae estaacute na forma intervencionista que assume o Estado atraveacutes de poliacuteticas de subsidio Esse modelo de intervenccedilatildeo eacute uma caracteriacutestica da tirania da democracia atual cuja vocaccedilatildeo tem sido conceder pesos iguais aos votos antes que sejam levadas em conta as contribuiccedilotildees para a manutenccedilatildeo da sociedade como um todo Esse artificialismo vinculado agraves poliacuteticas distributivas definidas pelo poder tem por consequumlecircncia levar o governo a fazer empreacutestimos sem lastros com promessa de resgate a longo prazo hipotecando o destino das geraccedilotildees futuras

As consequumlecircncias desse processo poliacutetico intervencionista avalia Ohmae (1999) eacute criar viacutecios comprar votos e quanto mais funciona maior o apetite em niacuteveis cada vez mais elevados Esse modelo

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pode assumir um ponto sem retomo em que a maioria subsidiada e suprida do nuacutenimo puacuteblico natildeo teraacute necessidade nem incentivo para permitir a busca de um equiliacutebrio fiscal sustentaacutevel

As soluccedilotildees propostas pelo autor para inverter esse quadro satildeo primeiro fechar a torneira dos subsiacutedios atraveacutes de desregulamentaccedilatildeo privatizaccedilatildeo da infra-estrutura decreacutescimo da matildeoshyde-obra empregada no setor puacuteblico segundo limitar o poder poliacutetico do governo central agraves questotildees de seguranccedila e moeda fortalecer a ideacuteia dos estados-regiotildees concedendo autonomia agraves unidades federativas no campo das transaccedilotildees econocircmicas internacionais

Eacute interessante avaliar como esse modelo proposto de privatizaccedilatildeo do Estado estabelece correspondecircncia com as correntes teoacutericas no acircmbito da poliacutetica criminal

Economia Estado e o Novo Discurso Criminal

A partir de 1970 (GARLAND 1999 p64) foi montado no Reino Unido um discurso criminal com base na teoria da escolha racional da teoria da atividade de rotina do crime como oportunidade e da prevenccedilatildeo da criminal idade situacional desembocando nas novas criminologias da vida cotidiana O estereoacutetipo de delinquumlente muda de lugar O novo infrator calcula suas accedilotildees e a maior parte dos crimes converte-se numa questatildeo de oportunidade A melhor reposta seria portanto tomar as coisas mais difiacuteceis para os delinquumlentes

Garland (1999) afirma que uma linguagem analiacutetica do risco da racionalidade da escolha da probabilidade da determinaccedilatildeo de alvos da oferta e da demanda de ocasiotildees transfere as formas econocircmicas de raciociacutenio e de caacutelculo para o campo da criminologia Novos objetivos tais como compensaccedilatildeo controle de custo reduccedilatildeo dos danos etc satildeo definidos pela criaccedilatildeo da imagem do criminoso racional Quanto agrave imagem da viacutetima ela aparece como fornecedora de ocasiotildees criminais

Esse novo modelo de pensamento destroacutei consideraccedilotildees de caraacuteter psicoloacutegico e socioloacutegico utilizadas no seacutec XX e formula uma nova concepccedilatildeo de delinquumlente criminal A partir desse esquema de reflexatildeo procura-se repensar as dinacircmicas da criminalidade e do castigo

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em termos pseudo-econocircmicos Se o crime natildeo for uma escolha racional fica mais difiacutecil combatecirc-lo

Esse modelo de anaacutelise surgiu no setor privado (companhias de seguro empresas comerciais e de seguranccedila privada) com o objetivo de reduzir os custos do crime que lhes pesam sobre os ombros Esse raciociacutenio comercial e fundado no seguro acerca da repressatildeo criminal procura diminuir ou deslocar os custos do crime em direccedilatildeo natildeo do castigo mas da prevenccedilatildeo de reduzir o risco antes que garantir a justiccedila

Esse modelo de pensamento apoacutes os anos de 1980 passou a influenciar os organismos e praacuteticas do Estado sobretudo entre os setores profissionais ligados agraves concepccedilotildees sociais e legais da criminalidade Esse tipo de anaacutelise tributaacuterio das concepccedilotildees econocircmicas neoclaacutessicas forma o conjunto da teoria da escolha racional que vecirc no crime uma questatildeo de oportunidade ocasional

O ato criminal converte-se numa rotina algo que acontece no curso normal das coisas e natildeo mais uma perturbaccedilatildeo social que requer explicaccedilotildees especiais A conduta cotidiana da vida econocircmica e social fornece infindaacuteveis ocasiotildees de transaccedilatildeo ilegiacutetima As accedilotildees criminais satildeo vistas como atos regulares previsiacuteveis e sistemaacuteticos como um acidente de tracircnsito Nesse sentido as accedilotildees contra o crime devem recair natildeo sobre pessoas desviantes mas preferencialmente sobre accedilatildeo concebida para governar os haacutebitos sociais e econocircmicos (GARLAND1999p66)

Em oposiccedilatildeo agraves afirmaccedilotildees da criminologia claacutessica3 que vincula a accedilatildeo criminal agrave existecircncia de patologias individuais e deacuteficit de socializaccedilatildeo a teoria da escolha racional vale-se dos esquemas claacutessicos de motivaccedilatildeo econocircmica Para o sujeito incriminado trata-se de uma ocasiatildeo uma escolha de carreira um meio de conseguir emoccedilotildees fortes ou vingar-se Para a viacutetima ou o puacuteblico o crime constitui um risco que deve ser calculado ou um acidente a ser evitado e natildeo uma aberraccedilatildeo moral que exija explicaccedilotildees sofisticadas

Ao decretar a incapacidade do aparato repressivo do Estado de lidar com o problema da criminalidade essas teorias procuram desarmar a

3 Ver por exemplo a abordagem que faz Alexando Baratta (2002) no capiacutetulo escola positiva e explicaccedilatildeo patoloacutegica da criminalidade

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pesada e deficiente burocracia estatal em busca de outros padrotildees de intervenccedilatildeo O estabelecimento de novos programas de accedilatildeo devem influenciar a conduta das viacutetimas potenciais armar os alvos vulneraacuteveis melhorar a seguranccedila em zonas perigosas e reestruturar as rotinas da vida cotidiana que tecircm propiciada desagradaacuteveis ocasiotildees para o crime

A erosatildeo da confianccedila da sociedade atual nas eventualidades das penas dissuasivas decorre da duvidosa capacidade da poliacutecia de prender os bandidos ou da vatilde esperanccedila de que se possa ensinar o domiacutenio de si aos jovens cidadatildeos A nova ordem social requer como imperativo a necessidade de substituir o dinheiro vivo por cartotildees de creacutedito de embutir travas nas colunas de direccedilatildeo dos automoacuteveis contratar vigias nos estabelecimentos colocar circuitos internos de televisatildeo coordenar os horaacuterios de fechamento das discotecas rivais etc Essa nova concepccedilatildeo da normalizaccedilatildeo do crime justifica e abona a reforma neoliberal do Estado ao transferir para os setores privados a responsabilidade estatal pela seguranccedila puacuteblica

Dentro desse quadro ganham forccedila propostas poliacuteticas de defesa de reformas transferindo do Estado para os grupos privados a responsabilidade pela gestatildeo dos conflitos criminais Esse modelo de poliacutetica criminal desenvolvido no Reino Unido sob forte influecircncia do pensamento econocircmico neoliberal natildeo eacute hegemocircnico e em determinados aspectos contrasta abertamente com certos princiacutepios do chamado realismo penal adotados pelo aparato de Estado norteshyamericano no campo da poliacutetica criminal

AOpccedilao Norte-Americana Por Uma Poliacutetica Criminal de Toleracircncia Zero

Nos EUA a redefiniccedilatildeo das missotildees do Estado parte de princiacutepios quase dogmaacuteticos de reduzir o seu papel social e de ampliar sua intervenccedilatildeo penal

Os oacutergatildeos de Estado norte-americano encarregados de promover o rigor penal resultaram na quadruplicaccedilatildeo da populaccedilatildeo carceraacuteria As diretrizes da poliacutetica policial e judiciaacuteria fizeram de Nova York a vitrine mundial da doutrina da toleracircncia zero ao passar agraves forccedilas da ordem um cheque em branco para perseguir agressivamente

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a pequena delinquumlecircncia e reprimir os mendigos e os sem-teto nos bairros deserdados Isso vem segundo Wacquant (2001) acompanhado da vulgarizaccedilatildeo da teoria da vidraccedila quebrada que eacute um empreacutestimo do ditado popular quem rouba um ovo rouba um boi A premissa dessa teoria conservadora eacute lutar passo a passo contra os pequenos distuacuterbios cotidianos para reduzir as grandes patologias criminais

Sem comprovaccedilatildeo empiacuterica essa teoria serve de aacutelibi para conter o medo que as classes meacutedia e alta tecircm dos pobres nos espaccedilos puacuteblicos (ruas parques estaccedilotildees ferroviaacuterias ocircnibus metrocirc etc) A luta que visa eliminar a criminalidade atua em trecircs frentes a) aumento em 10 vezes o efetivo e equipamentos das brigadas b) restituiccedilatildeo das obrigaccedilotildees operacionais aos comissaacuterios de bairro com obrigaccedilatildeo quantitativa de resultados c) implantaccedilatildeo de um sistema de radar informatizado (arquivo central sinaleacutetico e cartograacutefico consultaacutevel em microcomputadores a bordo dos carros de patrulha) Esse conjunto de medidas possibilita uma intervenccedilatildeo implacaacutevel instantacircnea e inflexiacutevel da lei sobre os delitos menores tais como o jogo a mendicacircncia os atentados aos costumes a simples ameaccedila etc

Em termos monetaacuterios ocorreu uma extraordinaacuteria expansatildeo dos recursos destinados agrave manutenccedilatildeo da ordem em NY O orccedilamento policial superou em quatro vezes as verbas destinadas aos hospitais puacuteblicos Essa tendecircncia pode ser ainda mais acentuada nos paiacuteses capitalistas perifeacutericos que entram num processo passivo de globalizaccedilatildeo decretando o fim do Estado-naccedilatildeo

Em termos poliacuteticos o rebaixamento do Legislativo em benefiacutecio do Executivo implica no enfraquecimento do contratual em favor do regulamentar Essa inversatildeo institucional diz Charvet (1977) faz com que a produccedilatildeo da norma e sua concretizaccedilatildeo sejam subtraiacutedas de um compromisso puacuteblico em que indiviacuteduos tenham participado

Para os defensores do Estado policial trata-se no entanto do dever de impor a obrigaccedilatildeo do trabalho assalariado precaacuterio O EstadoshyProvidecircncia norte-americano fracassou devido ao seu programa de ajuda agrave pobreza porque era permissivo e natildeo impunha obrigaccedilatildeo estrita de comportamento aos seus beneficiaacuterios O desemprego deve-se menos agraves opccedilotildees de mercado e mais aos problemas de funcionamento pessoal

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dos desempregados Empregos sujos e mal pagos haacute muitos A situaccedilatildeo de desemprego eacute portanto uma questatildeo de escolha e natildeo de escassez

Uma questatildeo dessa magnitude natildeo pode ser deixada somente agrave boa vontade e agrave iniciativa dos que trabalham por isso devem-se adotar medidas capazes de tornar o trabalho assalariado um dever ciacutevico obrigatoacuterio semelhante ao que se verifica no serviccedilo militar O dever da generalizaccedilatildeo do trabalho precaacuterio deve ser feito atraveacutes do braccedilo punitivo do Estado A poliacutetica social afirma Wacquant desistiu de cumprir a meta de reformar a sociedade preocupando-se em supervisionar a vida dos pobres

De acordo com a arquitetura da ordem criminal norte-americana explicaccedilotildees estruturais da pobreza carecem de plausibilidade Trata-se de uma questatildeo mais relacionada ao comportamento dos pobres do que de barreiras sociais Portanto eacute o comportamento que deve mudar mais do que a sociedade

A existecircncia de um Estado paternalista apenas se justifica se este vier acompanhado de uma ampla estrutura punitiva Deve-se por exemplo utilizar da legislaccedilatildeo de apoio agraves crianccedilas para exigir dos pais ausentes que trabalhem para prover as necessidades de suas farm1ias Poliacuteticas paternalistas de amparo agrave pobreza exigindo a contrapartida do trabalho oferecem mais esperanccedila de melhorar a pobreza do que poliacuteticas estatais distributivas

A proliferaccedilatildeo das incivilidades dizem os defensores da nova ordem criminal eacute o caminho promissor para escalada da delinquumlecircncia As primeiras condutas desviantes quando natildeo recebem puniccedilotildees exemplares estigmatizam um bairro e nele polarizam outros desvios como roubo traacutefico de drogas etc As causas coletivas da accedilatildeo criminal satildeo meras desculpas porque natildeo constituem mecanismos geradores de comportamentos delinquumlentes O crime deve ser imputado ao indiviacuteduo e natildeo agrave sociedade

Natildeo punir os autores das violecircncias urbanas significa alimentar a escalada da delinquumlecircncia Independente da fratura social eacute inaceitaacutevel procurar desculpas para atos indesculpaacuteveis Caso contraacuterio todos os desempregados estariam autorizados a roubar pilhar e depredar A forccedila desse discurso que prega o aumento da repressatildeo criminal estaacute associada ao processo mais geral de globalizaccedilatildeo em curso o qual

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impotildee reformas estruturais no aparato de Estado cujo efeito tem sido o aumento da polarizaccedilatildeo econocircmica entre grupos e classes sociais em diversos paiacuteses

O processo de globalizaccedilatildeo econocircmica e financeira tem sido feacutertil na produccedilatildeo de respostas teoacutericas distintas no controle do crime nas sociedades contemporacircneas O Estado deve atuar entre os adeptos do conceito de normalizaccedilatildeo do crime motivando setores da sociedade civil a oferecer respostas no campo preventivo Nesse sentido a gestatildeo e o controle do crime deveratildeo preocupar-se mais com a vitima potencial e menos com o delinquumlente Armar os alvos que propiciam inumeraacuteveis oportunidades ao crime eacute o objetivo central desse modelo de poliacutetica criminal

Enquanto isso os adeptos do chamado realismo penal sustentam que a banalizaccedilatildeo do crime na sociedade proveacutem da complacecircncia e do enfraquecimento da resposta da lei diante dos agentes que praticam atos criminais No plano das poliacuteticas oficiais essa dualidade de concepccedilotildees teoacutericas tem permeado o discurso e a accedilatildeo da burocracia estatal no campo penal Tais contradiccedilotildees tendem a provocar uma taxa de legitimidade social decrescente da confianccedila do Estado na gestatildeo e controle do crime

Contradiccedilotildees da Criminologia Oficial da Prevenccedilatildeo ao Aumento das Prisocirces

A criminologia oficial informa Garland (1999) mostra-se dualista polarizada e ambivalente Ao lado de uma criminologia do eu que transforma o criminoso em um consumidor racional semelhante agrave viacutetima opera-se ao mesmo tempo uma criminologia do outro do paacuteria do ser ameaccedilador A primeira eacute invocada para banalizar e promover a accedilatildeo preventiva a segunda para provocar o medo as hostilidades populares e afirmar o peso punitivo do Estado (GARLAND 1999 p75)

No decorrer dos anos 90 verifica-se uma ambivalecircncia do discurso oficial Fala-se menos em guerra contra o crime e mais na existecircncia de limites do poder do Estado Documentos oficiais e manifestos poliacuteticos ressaltam que os organismos governamentais natildeo podem combater e controlar a criminalidade isoladamente Em razatildeo

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disso propotildee-se uma melhor gestatildeo dos riscos e dos recursos numa reduccedilatildeo do medo dos custos da criminalidade da justiccedila criminal e maior amparo agraves viacutetimas

Poreacutem nessa uacuteltima deacutecada tentativas expliacutecitas de expressar a coacutelera e o ressentimento do puacuteblico tornaram-se um tema recorrente da retoacuterica que acompanha a legislaccedilatildeo penal e a tomada de decisotildees Os sentimentos da viacutetima da farrulia de um puacuteblico temeroso ultrajado foram constantemente invocados em apoio agrave criaccedilatildeo de novas leis e poliacuteticas penais em que o castigo tornou-se em objeto a ser venerado

Se por um lado a sociedade precisa adaptar-se ao crime concebendo-o como uma atividade profissional normal por outro o realismo penal sugere a divisatildeo do crime em duas categorias crimes violentos como terrorismo assassinato estupro sequumlestro roubo incecircndio criminoso etc exigem uma resposta ultra repressiva cabendo agrave poliacutetica responder a essa expectativa junto ao puacuteblico Jaacute os crimes ocasionais como roubo de veiacuteculos arrombamentos vandalismo e furtos diversos natildeo podem esperar sucesso na accedilatildeo exclusiva da poliacutecia (GARLAND 1999p64)

Esse comportamento dualista da poliacutetica oficial do Estado que admite seu fracasso parcial na soluccedilatildeo dos conflitos penais tambeacutem retira das gavetas enferrujadas da histoacuteria do modelo penal claacutessico punitivo antigas e falaciosas virtudes com o objetivo de administrar o crime Nessa direccedilatildeo a prisatildeo tende a prosperar Por quecirc Porque ela funciona afirmam seus defensores As despesas penitenciaacuterias satildeo investimentos pensado e rentaacutevel para a sociedade A triplicaccedilatildeo da populaccedilatildeo carceraacuteria nos Estados Unidos (1975 e 1989) teria apenas por seu efeito neutralizante evitado 390000 assassinatos estupros e roubos com violecircncia

Na falta da pena de morte mostra Wacquant (2001) a reclusatildeo eacute de longe o meio mais eficaz de impedir os criminosos comprovados e notoacuterios de matar estuprar roubar e furtar Um sistema judiciaacuterio natildeo tem que se preocupar com as razotildees que levam algueacutem a cometer um crime A justiccedila estaacute aiacute para punir os culpados indenizar os inocentes e defender os interesses dos cidadatildeos que respeitam a lei Por isso o Estado deve punir com eficaacutecia aqueles que insistem em transgredir a lei

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Essa velha receita de accedilatildeo repressiva estatal deve prevalecer nos EUA e em outros paiacuteses4

bull Comportamentos criminosos ou protocriminosos como jogar lixo na rua insultar pichar e cometer atos de vandalismo devem ser reprimidos com firmeza a fim de impedir que comportamentos criminosos mais graves se desenvolvam Toma-se igualmente necessaacuterio restaurar o moral dos policiais que foram submetidos anos a fio ao trabalho daninho dos socioacutelogos e dos criminologistas que insistem em dizer que o crime eacute causado pela pobreza fora da alccedilada da poliacutecia

Mediante uma accedilatildeo penal resolutamente agressiva as instituiccedilotildees policiais e penitenciaacuterias na sociedade em tempos neoliberais pretendem reafirmar a autoridade moral do Estado no momento em que ele proacuteprio eacute atingido pela sua impotecircncia econocircmica O aumento da repressatildeo estatal consequumlecircncia da nova ordem criminal em vigor vem acompanhado da privatizaccedilatildeo do sistema penitenciaacuterio A multiplicaccedilatildeo de prisotildees deve acompanhar o aumento da produccedilatildeo juriacutedica de criminosos O mercado da puniccedilatildeo um negoacutecio promissor que proporciona aos detentores de tiacutetulos de accedilotildees das empresas de seguranccedila rendimentos suculentos estaacute nascendo

Wacquant (2001) afirma que as causas do crescimento da populaccedilatildeo carceraacuteria norte-americana estatildeo vinculadas aos pequenos delinquumlentes e particularmente dos toxicocircmanos Ao contraacuterio do discurso poliacutetico e midiaacutetico dominante as prisotildees estatildeo repletas natildeo de criminosos perigosos e violentos mas de vulgares condenados pelo direito comum por negoacutecios com drogas furto roubo ou simples atentados agrave ordem puacuteblica envolvendo parcelas precarizadas das classes subalternas

4 Charvet (1977) mostra um exemplo ilustrativo dessa nova estrateacutegica na RFA Enquanto os cabeleireiros foram convidados a indicar as conversaccedilotildees suspeitas de seus clientes coube aos bombeiros a tarefa adicional de vigiar os veiacuteculos suspeitos reinventando desse modo a delaccedilatildeo de massa Esse modelo de reengenharia estatal repressiva eacute justificado em nome da doutrina da seguranccedila cujo objetivo eacute decretar toleracircncia zero aos delinquumlentes Enquanto as prisotildees se multiplicam nota-se ao mesmo tempo uma notaacutevel estabilidade por crimes de sangue e de costume

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Em 1998 o nuacutemero de condenados por contenciosos natildeoshyviolentos reclusos rompeu sozinha a cifra simboacutelica do milhatildeo Nas prisotildees 6 em cada 10 condenados satildeo negros ou latinos Menos da metade tinha emprego em tempo integral no momento de ser posta atraacutes das grades (WACQUANT 2001 p83)

Essa mudanccedila de objetivo e de resultado reflete o abandono do ideal da reabilitaccedilatildeo depois das criacuteticas cruzadas da direita e da esquerda na deacutecada de 70 e de sua substituiccedilatildeo por uma nova penalogia norte-americana cujo objetivo natildeo eacute mais prevenir o crime nem tratar os delinquumlentes objetivando o seu eventual retorno agrave sociedade O propoacutesito da nova ordem criminal nos EUA eacute isolar grupos considerados perigosos e neutralizar seus membros mais agressivos mediante uma seacuterie padronizada de compOltamentos

O reconhecimento pelos teoacutericos da normalizaccedilatildeo do crime e pelos adeptos de uma poliacutetica criminal ultra-repressiva da incapacidade da burocracia estatal de gerir e controlar os litiacutegios criminais na sociedade atual reafirma a viabilidade de fazer um questionamento teoacuterico e poliacutetico mais profundo dos paradigmas que aceitam como um dado a priori a existecircncia do crime Trata-se portanto de acrescentar e analisar outros movimentos poliacuteticoshyteoacutericos para uma melhor compreensatildeo das razotildees da falecircncia do modelo penal estatal existente

Globalizaccedilatildeo e Outros Fundamentos da Accedilatildeo Criminal

A justiccedila como aparelho de Estado acha-se em dificuldades para cumprir sua missatildeo de regulaccedilatildeo dos conflitos porque comenta Charvet (1977) sua ideologia juriacutedica estaacute em crise sua legitimidade eacute contestada pelos dominados e sua eficiecircncia pelos dominantes Na Franccedila verifica-se o avanccedilo das forccedilas da ordem atraveacutes do crescimento dos efetivos policiais judiciaacuterios e das forccedilas militares (guardas nas praias rodovias e outros lugares da vida puacuteblica) Diante da crise fiscal que impede o Estado de colocar um policial atraacutes de cada cidadatildeo tende-se a criar estrateacutegias de modo a redescobrir e converter em um policial cada cidadatildeo

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A incapacidade da burocracia estatal de regular os conflitos criminais vai aleacutem do processo atual de globalizaccedilatildeo econocircmica e financeira Adorno (1999) fala de um novo paradigma que aponta para algo aleacutem do crimes

O surgimento do Estado moderno caracterizado pelo monopoacutelio da violecircncia e pacificaccedilatildeo social foi acompanhado pela racionalizaccedilatildeo do direito atraveacutes dos seguintes princiacutepios positividade (vontade de um legislador soberano que atraveacutes de meios juriacutedicos de organizaccedilatildeo regulamenta as atividades da vida social) legalidade (natildeo reconhece outro ordenamento juriacutedico que natildeo seja estatal e outra forma de ordenamento estatal que natildeo seja lei)formalidade (o direito moderno define o domiacutenio onde se pode exercer legitimamente o livre arbiacutetrio das pessoas privadas) Esses princiacutepios afirma Adorno estatildeo sendo esfacelados

Por volta de 1950 ocorreu em todos os paiacuteses ocidentais um aumento substancial dos crimes contra as pessoas e ainda mais contra o patrimocircnio Um maior nuacutemero de pessoas passou a violar as leis penais e um grande nuacutemero de comportamentos e bens protegidos pelas leis penais ficou mais vulneraacutevel agrave ofensa e ao ataque

O problema natildeo reside nos crimes em si mas na maior ou menor disposiccedilatildeo social em aceitaacute-los e conviver com eles Ocorre que na sociedade atual essa toleracircncia diz Dahrendorf apud Adorno (1999) teria chegado ao limite haja visto (sic) as reaccedilotildees e a ansiedade puacuteblica diante da crescente ameaccedila do crime e da incapacidade da burocracia estatal em resolvecirc-lo

A erosatildeo da lei e da ordem estaacute vinculada agrave maior probabilidade de um criminoso se manter oculto hoje comparativamente ao passado Uma taxa despreziacutevel dos crimes cometidos eacute resolvida em razatildeo do descaso da poliacutetica pelos delinquumlentes conhecidos desistecircncia deliberada e afrouxamento das puniccedilotildees ou incapacidade de se lidar com as infraccedilotildees A impunidade aumenta e potildee em questatildeo a eficaacutecia das normas Isso provoca a sensaccedilatildeo de inexistecircncia das leis ou

5 O novo paradigma afirma Adorno (1999 p77) diz respeito agrave mudanccedila de hiacutebitos agrave exacerbaccedilatildeo de novos conflitos sociais agrave adoccedilatildeo de soluccedilotildees que desafiam tradiccedilotildees democraacuteticas agrave demarcaccedilatildeo de novas fronteiras sociais [ ] ao sentimento de desordem e caos que se espelha na ausecircncia de justiccedila social

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quando invocadas resultam sem efeito As sociedades contemporacircneas convi vem com o decliacutenio das sanccedilotildees A impunidade torna-se cotidiana diante da decretada incapacidade da burocracia estatal de cuidar da seguranccedila dos cidadatildeos de proteger seus bens materiais e simboacutelicos

Os mecanismos de pressatildeo social (que atuam sobre o comportamento dos sujeitos) que operam sobretudo na esfera da moralidade puacuteblica e privada natildeo parecem suscitar nem o sentimento de medo nem sequer o de anguacutestia diante das possibilidades sempre abertas de violaccedilatildeo das normas sociais As sociedades urbanas complexas comenta Adorno (1999) liberaram o homem do controle social Diante de tantas incertezas cresce por parte da sociedade uma obsessatildeo punitiva reivindicando mais ordem social

Isso natildeo impede o surgimento do modelo de funcionamento da sociedade de risco que potildee em movimento uma superestrutura de prevenccedilatildeo e de seguranccedila por meio da proliferaccedilatildeo das sociedades de seguro e de mecanismos de vigilacircncia privada com o objetivo de enfrentar o medo os perigos e ameaccedilas que tornam a vida humana incerta (ADORNO 1999 plOl-102)

Um poliacutetica de responsabilizaccedilatildeo individual atraveacutes de medidas repressivas voltadas para os jovens delinquumlentes como a reduccedilatildeo da idade para efeitos de responsabilidade penal e instauraccedilatildeo da responsabilidade dos pais em mateacuteria civil e penal tem sido discutida pelos parlamentares europeus Enveredando-se pelo caminho de mais Estado econocircmico e menos Estado social cria-se e justifica-se o mito da inevitabilidade da escalada do crime para disseminar a estrateacutegia da responsabilizaccedilatildeo como forma de mostrar que a prevenccedilatildeo e o controle do crime natildeo pode de modo exclusivo recair mais sobre o Estado

De agora em diante varejistas industriais autoridades escolares empresas de transporte pais trabalhadores e desempregados teratildeo de dividir essa responsabilidade Na deacutecada de 1990 a poliacutetica criminal da responsabilizaccedilatildeo teve por efeito reduzir a dependecircncia para com o Estado e aumentar a dependecircncia para com o mercado Investimentos na criminalidade como dispositivos de seguranccedila satildeo cada vez mais impostos pelas forccedilas econocircmicas em detrimento da poliacutetica puacuteblica

Nas sociedades onde ocorrem divisotildees sociais e raciais

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profundas em que as taxas de criminalidade e os niacuteveis de inseguranccedila satildeo elevados onde soluccedilotildees sociais foram politicamente desacreditas aleacutem de haver um ceticismo crescente quanto agrave perspectiva de reintegraccedilatildeo dos antigos delinquumlentes um setor comercial em expansatildeo favorece o aumento da populaccedilatildeo carceraacuteria pondo em marcha uma cultura do encarceramento em massa nos paiacuteses democraacuteticos

A responsabilizaccedilatildeo de organismos natildeo estatais no combate agrave criminal idade provoca enormes disparidades no financiamento social e na rede de seguranccedila Esta deixa de ser garantida para todos por meio de um Estado soberano para converte-se num produto cuja distribuiccedilatildeo estaacute subordinada agraves forccedilas de mercado As classes subalternas que mais sofrem a criminal idade estatildeo incapacitadas de comprar seguranccedila de adaptar suas vidas cotidianas e de se organizar de forma eficaz contra o crime

Poliacuteticas sociais de prevenccedilatildeo da criminalidade foram seriamente atacadas em razatildeo das transformaccedilotildees poliacuteticas sociais e econocircmicas das uacuteltimas deacutecadas Tentativas de prevenccedilatildeo e de responsabilizaccedilatildeo satildeo solapadas por uma economia de livre mercado que exclui as massas do trabalho remunerado e que nutre ativamente o crime engendrando expectativas de consumidor insaciaacutevel gerando ao mesmo tempo novos niacuteveis de pobreza da crianccedila da disfunccedilatildeo da famiacutelia e de desigualdade social (GARLAND 1999 p77)

A emergecircncia de novos problemas sociais que desafiam os princiacutepios legitimadores do Estado moderno tende a acelerar poreacutem em si natildeo justifica o fracasso da burocracia oficial na resoluccedilatildeo dos atos infracionais na sociedade contemporacircnea Os sintomas aparentes de desordem de caos de aumento da impunidade etc que reinam na sociedade vatildeo muito aleacutem de uma poliacutetica criminal deliberada de afrouxamento do poder estatal como estrateacutegia de administrar os conflitos criminais

A crise de legitimidade estatal na gestatildeo do crime reforccedila a necessidade de pocircr em questatildeo a definiccedilatildeo de crime como verdade ontoloacutegica O propoacutesito do proacuteximo capiacutetulo eacute avaliar e discutir se os eventos sociais considerados problemaacuteticos e penalmente definidos como crimes na sociedade satildeo por esta reconhecidos e aceitos como tais na realidade

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Da Descriminalizaccedilatildeo agrave Aboliccedilatildeo da Pena

A crise profunda da justiccedila penal avalia Cervini (1995) estaacute associada ao fracasso da ideologia do tratamento que pretende em seus diversos niacuteveis resolver os custos individuais e sociais do delito a defasagem das leis com certas culturas a existecircncia da cifra negra6

aleacutem das contradiccedilotildees dogmaacuteticas No momento histoacuterico atual diz Cervine dois fatores favorecem

a tendecircncia de descriminalizaccedilatildeo do direito penal um individual outro social No primeiro caso a pena privativa de liberdade que diminui a possibilidade de adaptabilidade no segundo caso os efeitos sociais estigmatizadores depois de sua aplicaccedilatildeo Em termos sociais natildeo haacute uma soluccedilatildeo eficiente em reparar o custo do crime nem de supressatildeo do estigma de ex-presidiaacuterio

As soluccedilotildees que o sistema penal tem adotado para gerir o problema da criminalidade encontram um potente antiacutedoto quando se avalia a existecircncia da chamada cifra negra Essa afirma Cervine indica claramente que os fatos aos quais a lei denomina de delitos natildeo satildeo considerados como fatos agrave parte separados de outros aconteshycimentos Uma soma relevante de acontecimentos formalmente considerados delitos e teoricamente merecedores de aplicaccedilatildeo penal natildeo eacute considerada nem valorizada como tal pelas viacutetimas ou pelos agentes do sistema pessoalmente interpelados mediante delaccedilotildees concretas (CERVINI 1995 pl73)

Tais consideraccedilotildees colidem com as premissas utoacutepicas da sociedade de controle que busca incansavelmente definir e administrar o crime atraveacutes da diversificaccedilatildeo das penas de ajustes da reclusatildeo prisional de reforma eletrocircnica das prisotildees mais investimentos e maior eficiecircncia na burocraacutetica criminal A sociedade de controle diz Passetti (1999) natildeo atenta para o fato da existecircncia de uma sociedade sem penas seja em

6 Cervini (1995 p162) comenta que a cifra negra eacute produto da diferenccedila existente entre a criminalidade real quantidade de delitos cometidos num tempo e lugar determinados e a criminal idade aparente conhecida pelos oacutergatildeos de controle Ou seja um percentual substancial de delitos estaacute estruturalmente fora do alcance e do controle do direito penal colocando em xeque a credibilidade de todo o sistema

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razatildeo da cifra negra (diferenccedila entre infraccedilotildees denunciadas na poliacutecia e aquelas efetivamente julgadas) seja porque parte consideraacutevel das infraccedilotildees eacute resolvida sem a necessidade da formalidade juriacutedica do just07bull

A maioria dos conflitos cotidianos dentro das fanulias das empresas dos estabelecimentos de ensino das organizaccedilotildees profissionais dos sindicatos clubes ou associaccedilotildees privadas satildeo segundo Hulsman e Celis (1993) resolvidos sem ter de entrar no sistema penal O grande nuacutemero de encarcerados eacute insignificante diante da quantidade real de fatos puniacuteveis que ocorrem a todo instante raramente detectados pelo sistema penal O sistema penal eacute confrontado com uma espantosa soma de casos semelhantes poreacutem apenas alguns deles e de forma injusta satildeo tratados pelo sistema cuja prisatildeo se nutre diariamente de viacutetimas preferencias

Fora os delitos que natildeo pertencem ao chamado nuacutecleo duro da delinquumlecircncia como o terrorismo e a criminalidade organizada o sistema penal afirma Hulsman cria mais problemas do que contribuiccedilotildees para resolver

Diante disso o autor propotildee uma outra loacutegica Diz que um comportamento pode deixar de ser crime sem afetar os laccedilos de sociabilidade O homossexualismo cantado em prosa e verso por Platatildeo foi penalmente condenado pelo Estado moderno durante muito tempo A prostituiccedilatildeo convive com a proibiccedilatildeo sob ameaccedila penal ateacute a liberdade total ou passando por toda sorte de controle administrativo A embriaguez em si natildeo interessa agrave lei ocidental mas soacute indiretamente (dirigir embriagado) O mesmo tratamento diferencial ocorre em relaccedilatildeo ao uso e ao traacutefico de drogas Alguns paiacuteses condenam penalmente o uso e o traacutefico excluindo o consumo pessoal Outros soacute colocam no campo penal as drogas ditas pesadas excluindo as chamadas drogas leves8

7 Na opiniatildeo de Passeui (1999 p63) o que esta utopia natildeo admite mas permitia eacute que no lugar da ressocializaccedilatildeo e da futura reintegmccedilatildeo prevaleccedila o depoacutesito de corpos para os qu ai s os uacutenicos investimentos satildeo a diminui ccedilatildeo a zero da possibilidade de fuga e a rigorosa vigilacircncia apoacutes o sentenciaroento

Na avaliaccedilatildeo de Hulsman e Celis (1 993 plOI) natildeo exi stem nem crimes nem delitos mas apenas situaccedilotildees problemaacuteticas Sem a presenccedila e participaccedilatildeo das pessoas envolvidas nestas situaccedilotildees natildeo haacute como resolvecirc-las de forma humana Classificar um fato de crime significa excluir a priori ou tras saiacutedas poss iacuteveis limitando-se ao es tilo estatal punitivo dominado pelo pensamento juriacutedico distante da realidade

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o processo de globalizaccedilatildeo econocircmica e financeira apenas indiretamente contribui para aprofundar a crise do sistema de justiccedila penal nos paiacuteses capitalistas centrais e perifeacutericos As razotildees da falecircncia do modelo de poliacutetica criminal estatildeo associadas ao processo de reforma penal dos seacuteculos XVIII e XIX periacuteodo em que a sociedade burguesa adotou o principio da puniccedilatildeo generalizada por meio da teoria da humanizaccedilatildeo da pena A reforma do coacutedigo penal burguecircs diz Foucault (1987) converteu inuacutemeros problemas sociais em conflitos criminais estabeleceu uma classificaccedilatildeo metoacutedica dos delitos em termos de gravidade e hierarquia e como complemento modificou e converteu as prisotildees em locais privilegiados com o propoacutesito de recuperar os delinquumlentes infratores atraveacutes do tratamento ressocializador

Desde entatildeo todas as propostas adotadas visando a reforma do sistema penal natildeo tocaram e natildeo discutiram seriamente o significado do crime sua classificaccedilatildeo tampouco sua instituiccedilatildeo correlata a prisatildeo As teorias criminais da normalizaccedilatildeo e da defesa da lei e da ordem (toleracircncia zero) satildeo ilustrativas a esse respeito

A primeira vecirc no crime uma accedilatildeo racional oportunista Parte do pressuposto de que a sociedade atual eacute uma sociedade de risco em que o fenocircmeno criminal natildeo pode ser tratado como algo patoloacutegico mas uma questatildeo de oportunidade Propotildee desativar a burocracia estatal repressiva por ter falhado na tentativa de desarmar e de punir o autor do delito e transferir a responsabilidade do controle do crime aos setores da sociedade civil Grupos privados deveriam armar os alvos vulneraacuteveis criar obstaacuteculos defender suas casas carros cheques cartotildees de creacutedito etc Tais mudanccedilas tomariam as coisas mais difiacuteceis evitando que pessoas pertencentes aos diversos grupos sociais se convertessem em presas faacuteceis de accedilotildees criminais

A segunda (movimento da lei e da ordem) associa a banalizaccedilatildeo do crime agrave fraqueza das respostas das leis penais vigentes Por isso advoga a necessidade de uma perseguiccedilatildeo implacaacutevel de pequenos atos como jogar lixo no chatildeo e furtos ocasionais propondo o aumento da pena para os delinquumlentes ocasionais e a prisatildeo perpeacutetua para os delinquumlentes mais perigosos O que diferencia as teorias criminais em foco eacute mais uma questatildeo de estrateacutegia e natildeo de princiacutepios Ambas trabalham com a noccedilatildeo de crime como uma verdade social e juriacutedica

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A negaccedilatildeo do conceito de crime como um fato social normal constitui objeto de reflexatildeo das teorias da descriminalizaccedilatildeo e abolicionistas para as quais as definiccedilotildees abstratas de crime e de pena vigentes no coacutedigo penal natildeo correspondem agraves definiccedilotildees que delas fazem as pessoas reais A desqualificaccedilatildeo do discurso juriacutedico penal natildeo resulta portando das dificuldades da aplicaccedilatildeo da lei da ineficiecircncia dos oacutergatildeos de controle criados para administraacute-la ou ainda de seu reduzido alcance quando se compara a totalidade de crimes formalmente descritos e os que realmente satildeo solucionados

Uma soluccedilatildeo poliacutetica socialmente legiacutetima na soluccedilatildeo dos problemas sociais hoje definidos e classificados como problemas criminais natildeo pode limitar-se ao entendimento e agrave aceitaccedilatildeo do braccedilo punitivo estatal e de sua burocracia centralizadora como o melhor remeacutedio para gerir os conflitos penais existentes Portanto toma-se urgente questionar seriamente se os eventos sociais formalmente criminalizaacuteveis satildeo concebidos e aceitos como tais pelos agentes sociais direta e potencialmente envolvidos em tais conflitos

Isso implica admitir a possibilidade da sociedade resolver inuacutemeros problemas atualmente circunscritos no campo do direito penal fora do campo estatal punitivo Nesse sentido a responsabilidade pela soluccedilatildeo dos conflitos sob a tutela do direito penal seria transferida aos agentes direta e potencialmente envolvidos em situaccedilotildees problemaacuteticas (acusado viacutetima familiares Estado e demais interessados)

A atuaccedilatildeo da burocracia de justiccedila (poliacutecia e judiciaacuterio) se limitaria a mediar e natildeo intervir diretamente visando impor a melhor soluccedilatildeo para o conflito Para isso outras instacircncias juriacutedicas (campo civil e administrativo) poderiam ser acionadas em detrimento do pesado seletivo e ineficiente sistema de justiccedila penal estatal vigente que por meio de seus oacutergatildeos policiais judiciaacuterios e administrativos procura sem nunca poder encontrar a melhor soluccedilatildeo para o acusado seus familiares agrave vitima e a sociedade

Dois adolescentes (Japonecircs e Laacutezaro) praticaram mais um delito contra o patrimocircnio E daiacute Prendecirc-los ressocializaacute-Ios responsabilizar seus familiares Armar melhor determinados alvos sociais vulneraacuteveis que facilitam o roubo o furto

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Como ressocializar algueacutem que por razotildees conjunturais como o

desemprego e a crise econocircmica pratica um delito contra a propriedade se tais razotildees continuam a persistir Como responsabilizar seus familiares9 se a concepccedilatildeo nuclear de famiacutelia burguesa mudou

Para os defensores do movimento da lei e da ordem o Estado deve responder punindo de modo exemplar Entre os adeptos da normalizaccedilatildeo do crime o Estado deve preocupar-se em punir menos e criar uma nova estrateacutegia com O propoacutesito de armar mais as viacutetimas que os infratores

Tais movimentos natildeo tocam numa questatildeo central como o fazem os adeptos da descriminalizaccedilatildeo e da aboliccedilatildeo da pena para os quais a realidade atual propicia duas alternativas procurar outras repostas para os velhos e novos problemas questionando reduzindo e abolindo o crime e a prisatildeo ou restauraacute-la sob a condiccedilatildeo de aparelho de terror repressivo

9 Passetti (1995 p23) afirma que a situaccedilatildeo social dessas crianccedilas e adolescentes violentados permite desmistificar duas falaacutecias famiacutelias desestruturadas e o suposto acesso democraacutetico agrave escola O modelo de faTlllia vigente nas metroacutepoles natildeo corresponde mais agraves caracteriacutesticas da faTlllia modelar burguesa do capitalismo livre-concorrecircncia e natildeo pode mais ser restaurada como pretende o conservadorismo

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Referecircncias

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OHMAE Kenicbi O fim do Estado Naccedilatildeo a ascensatildeo das economias regionais 3ed Satildeo Paulo Campus 1999

PASSETTI Edson (Org) Violentados crianccedilas adolescentes e justiccedila Satildeo Paulo Imaginaacuterio 1995

PASSETTI Edson Sociedade de controle e aboliccedilatildeo da puniccedilatildeo Violecircncia e Mal-Estar na Sociedade Satildeo Paulo em Perspectiva Satildeo Paulo v13 n3 jull set1 999

SANTOS Boaventura Sousa A crtica da razatildeo indolente contra o desperdfcio da experiecircncia Satildeo Paulo Cortez 2000 v 1

WACQUANT Lolc As prisotildees da miseacuteria Rio de Janeiro Zabar 2001

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Abstract

The current process of economic and financiaI globalization has elicited contradictory answers in the formulation of criminal policies by State bureaucracy On the one hand under strong influence of neoclassical economic thought there appears in the United Kingdom the theory of crime normalization qualifying the criminal act as a rational choice option a matter of opportunity according to which delinquents rational1y calculate their actions Such theory proposes to replace the classical model of criminal policy which relates the penal practice to the figure of the other the abnormal by a new model of risk society which sees a professional career in criminal acts On the other hand there appears in the United States the movement in defense of law and order which proposes no tolerance to crime by the amplification of penal right and the recrudescence of the State criminal answer For the defenders of decriminalization and penalabolitionism the utopia of control society which favors the increase of punisbment and target changes to administer crime ignores the existence of a society with no penalties which is manifested through the dark cipher the difference between reported infractions to the police and those really judged

Key words globalization state crime punishment decriminalization penalty abolishment

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Page 5: INTRODUÇÃO AO DEBATE SOBRE AS POLíTICAS OFICIAIS NO ... · sem penas a qual se manifesta através da cifra negra, ... vinculados em razão do potencial revolucionário da informação

pode assumir um ponto sem retomo em que a maioria subsidiada e suprida do nuacutenimo puacuteblico natildeo teraacute necessidade nem incentivo para permitir a busca de um equiliacutebrio fiscal sustentaacutevel

As soluccedilotildees propostas pelo autor para inverter esse quadro satildeo primeiro fechar a torneira dos subsiacutedios atraveacutes de desregulamentaccedilatildeo privatizaccedilatildeo da infra-estrutura decreacutescimo da matildeoshyde-obra empregada no setor puacuteblico segundo limitar o poder poliacutetico do governo central agraves questotildees de seguranccedila e moeda fortalecer a ideacuteia dos estados-regiotildees concedendo autonomia agraves unidades federativas no campo das transaccedilotildees econocircmicas internacionais

Eacute interessante avaliar como esse modelo proposto de privatizaccedilatildeo do Estado estabelece correspondecircncia com as correntes teoacutericas no acircmbito da poliacutetica criminal

Economia Estado e o Novo Discurso Criminal

A partir de 1970 (GARLAND 1999 p64) foi montado no Reino Unido um discurso criminal com base na teoria da escolha racional da teoria da atividade de rotina do crime como oportunidade e da prevenccedilatildeo da criminal idade situacional desembocando nas novas criminologias da vida cotidiana O estereoacutetipo de delinquumlente muda de lugar O novo infrator calcula suas accedilotildees e a maior parte dos crimes converte-se numa questatildeo de oportunidade A melhor reposta seria portanto tomar as coisas mais difiacuteceis para os delinquumlentes

Garland (1999) afirma que uma linguagem analiacutetica do risco da racionalidade da escolha da probabilidade da determinaccedilatildeo de alvos da oferta e da demanda de ocasiotildees transfere as formas econocircmicas de raciociacutenio e de caacutelculo para o campo da criminologia Novos objetivos tais como compensaccedilatildeo controle de custo reduccedilatildeo dos danos etc satildeo definidos pela criaccedilatildeo da imagem do criminoso racional Quanto agrave imagem da viacutetima ela aparece como fornecedora de ocasiotildees criminais

Esse novo modelo de pensamento destroacutei consideraccedilotildees de caraacuteter psicoloacutegico e socioloacutegico utilizadas no seacutec XX e formula uma nova concepccedilatildeo de delinquumlente criminal A partir desse esquema de reflexatildeo procura-se repensar as dinacircmicas da criminalidade e do castigo

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em termos pseudo-econocircmicos Se o crime natildeo for uma escolha racional fica mais difiacutecil combatecirc-lo

Esse modelo de anaacutelise surgiu no setor privado (companhias de seguro empresas comerciais e de seguranccedila privada) com o objetivo de reduzir os custos do crime que lhes pesam sobre os ombros Esse raciociacutenio comercial e fundado no seguro acerca da repressatildeo criminal procura diminuir ou deslocar os custos do crime em direccedilatildeo natildeo do castigo mas da prevenccedilatildeo de reduzir o risco antes que garantir a justiccedila

Esse modelo de pensamento apoacutes os anos de 1980 passou a influenciar os organismos e praacuteticas do Estado sobretudo entre os setores profissionais ligados agraves concepccedilotildees sociais e legais da criminalidade Esse tipo de anaacutelise tributaacuterio das concepccedilotildees econocircmicas neoclaacutessicas forma o conjunto da teoria da escolha racional que vecirc no crime uma questatildeo de oportunidade ocasional

O ato criminal converte-se numa rotina algo que acontece no curso normal das coisas e natildeo mais uma perturbaccedilatildeo social que requer explicaccedilotildees especiais A conduta cotidiana da vida econocircmica e social fornece infindaacuteveis ocasiotildees de transaccedilatildeo ilegiacutetima As accedilotildees criminais satildeo vistas como atos regulares previsiacuteveis e sistemaacuteticos como um acidente de tracircnsito Nesse sentido as accedilotildees contra o crime devem recair natildeo sobre pessoas desviantes mas preferencialmente sobre accedilatildeo concebida para governar os haacutebitos sociais e econocircmicos (GARLAND1999p66)

Em oposiccedilatildeo agraves afirmaccedilotildees da criminologia claacutessica3 que vincula a accedilatildeo criminal agrave existecircncia de patologias individuais e deacuteficit de socializaccedilatildeo a teoria da escolha racional vale-se dos esquemas claacutessicos de motivaccedilatildeo econocircmica Para o sujeito incriminado trata-se de uma ocasiatildeo uma escolha de carreira um meio de conseguir emoccedilotildees fortes ou vingar-se Para a viacutetima ou o puacuteblico o crime constitui um risco que deve ser calculado ou um acidente a ser evitado e natildeo uma aberraccedilatildeo moral que exija explicaccedilotildees sofisticadas

Ao decretar a incapacidade do aparato repressivo do Estado de lidar com o problema da criminalidade essas teorias procuram desarmar a

3 Ver por exemplo a abordagem que faz Alexando Baratta (2002) no capiacutetulo escola positiva e explicaccedilatildeo patoloacutegica da criminalidade

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pesada e deficiente burocracia estatal em busca de outros padrotildees de intervenccedilatildeo O estabelecimento de novos programas de accedilatildeo devem influenciar a conduta das viacutetimas potenciais armar os alvos vulneraacuteveis melhorar a seguranccedila em zonas perigosas e reestruturar as rotinas da vida cotidiana que tecircm propiciada desagradaacuteveis ocasiotildees para o crime

A erosatildeo da confianccedila da sociedade atual nas eventualidades das penas dissuasivas decorre da duvidosa capacidade da poliacutecia de prender os bandidos ou da vatilde esperanccedila de que se possa ensinar o domiacutenio de si aos jovens cidadatildeos A nova ordem social requer como imperativo a necessidade de substituir o dinheiro vivo por cartotildees de creacutedito de embutir travas nas colunas de direccedilatildeo dos automoacuteveis contratar vigias nos estabelecimentos colocar circuitos internos de televisatildeo coordenar os horaacuterios de fechamento das discotecas rivais etc Essa nova concepccedilatildeo da normalizaccedilatildeo do crime justifica e abona a reforma neoliberal do Estado ao transferir para os setores privados a responsabilidade estatal pela seguranccedila puacuteblica

Dentro desse quadro ganham forccedila propostas poliacuteticas de defesa de reformas transferindo do Estado para os grupos privados a responsabilidade pela gestatildeo dos conflitos criminais Esse modelo de poliacutetica criminal desenvolvido no Reino Unido sob forte influecircncia do pensamento econocircmico neoliberal natildeo eacute hegemocircnico e em determinados aspectos contrasta abertamente com certos princiacutepios do chamado realismo penal adotados pelo aparato de Estado norteshyamericano no campo da poliacutetica criminal

AOpccedilao Norte-Americana Por Uma Poliacutetica Criminal de Toleracircncia Zero

Nos EUA a redefiniccedilatildeo das missotildees do Estado parte de princiacutepios quase dogmaacuteticos de reduzir o seu papel social e de ampliar sua intervenccedilatildeo penal

Os oacutergatildeos de Estado norte-americano encarregados de promover o rigor penal resultaram na quadruplicaccedilatildeo da populaccedilatildeo carceraacuteria As diretrizes da poliacutetica policial e judiciaacuteria fizeram de Nova York a vitrine mundial da doutrina da toleracircncia zero ao passar agraves forccedilas da ordem um cheque em branco para perseguir agressivamente

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a pequena delinquumlecircncia e reprimir os mendigos e os sem-teto nos bairros deserdados Isso vem segundo Wacquant (2001) acompanhado da vulgarizaccedilatildeo da teoria da vidraccedila quebrada que eacute um empreacutestimo do ditado popular quem rouba um ovo rouba um boi A premissa dessa teoria conservadora eacute lutar passo a passo contra os pequenos distuacuterbios cotidianos para reduzir as grandes patologias criminais

Sem comprovaccedilatildeo empiacuterica essa teoria serve de aacutelibi para conter o medo que as classes meacutedia e alta tecircm dos pobres nos espaccedilos puacuteblicos (ruas parques estaccedilotildees ferroviaacuterias ocircnibus metrocirc etc) A luta que visa eliminar a criminalidade atua em trecircs frentes a) aumento em 10 vezes o efetivo e equipamentos das brigadas b) restituiccedilatildeo das obrigaccedilotildees operacionais aos comissaacuterios de bairro com obrigaccedilatildeo quantitativa de resultados c) implantaccedilatildeo de um sistema de radar informatizado (arquivo central sinaleacutetico e cartograacutefico consultaacutevel em microcomputadores a bordo dos carros de patrulha) Esse conjunto de medidas possibilita uma intervenccedilatildeo implacaacutevel instantacircnea e inflexiacutevel da lei sobre os delitos menores tais como o jogo a mendicacircncia os atentados aos costumes a simples ameaccedila etc

Em termos monetaacuterios ocorreu uma extraordinaacuteria expansatildeo dos recursos destinados agrave manutenccedilatildeo da ordem em NY O orccedilamento policial superou em quatro vezes as verbas destinadas aos hospitais puacuteblicos Essa tendecircncia pode ser ainda mais acentuada nos paiacuteses capitalistas perifeacutericos que entram num processo passivo de globalizaccedilatildeo decretando o fim do Estado-naccedilatildeo

Em termos poliacuteticos o rebaixamento do Legislativo em benefiacutecio do Executivo implica no enfraquecimento do contratual em favor do regulamentar Essa inversatildeo institucional diz Charvet (1977) faz com que a produccedilatildeo da norma e sua concretizaccedilatildeo sejam subtraiacutedas de um compromisso puacuteblico em que indiviacuteduos tenham participado

Para os defensores do Estado policial trata-se no entanto do dever de impor a obrigaccedilatildeo do trabalho assalariado precaacuterio O EstadoshyProvidecircncia norte-americano fracassou devido ao seu programa de ajuda agrave pobreza porque era permissivo e natildeo impunha obrigaccedilatildeo estrita de comportamento aos seus beneficiaacuterios O desemprego deve-se menos agraves opccedilotildees de mercado e mais aos problemas de funcionamento pessoal

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dos desempregados Empregos sujos e mal pagos haacute muitos A situaccedilatildeo de desemprego eacute portanto uma questatildeo de escolha e natildeo de escassez

Uma questatildeo dessa magnitude natildeo pode ser deixada somente agrave boa vontade e agrave iniciativa dos que trabalham por isso devem-se adotar medidas capazes de tornar o trabalho assalariado um dever ciacutevico obrigatoacuterio semelhante ao que se verifica no serviccedilo militar O dever da generalizaccedilatildeo do trabalho precaacuterio deve ser feito atraveacutes do braccedilo punitivo do Estado A poliacutetica social afirma Wacquant desistiu de cumprir a meta de reformar a sociedade preocupando-se em supervisionar a vida dos pobres

De acordo com a arquitetura da ordem criminal norte-americana explicaccedilotildees estruturais da pobreza carecem de plausibilidade Trata-se de uma questatildeo mais relacionada ao comportamento dos pobres do que de barreiras sociais Portanto eacute o comportamento que deve mudar mais do que a sociedade

A existecircncia de um Estado paternalista apenas se justifica se este vier acompanhado de uma ampla estrutura punitiva Deve-se por exemplo utilizar da legislaccedilatildeo de apoio agraves crianccedilas para exigir dos pais ausentes que trabalhem para prover as necessidades de suas farm1ias Poliacuteticas paternalistas de amparo agrave pobreza exigindo a contrapartida do trabalho oferecem mais esperanccedila de melhorar a pobreza do que poliacuteticas estatais distributivas

A proliferaccedilatildeo das incivilidades dizem os defensores da nova ordem criminal eacute o caminho promissor para escalada da delinquumlecircncia As primeiras condutas desviantes quando natildeo recebem puniccedilotildees exemplares estigmatizam um bairro e nele polarizam outros desvios como roubo traacutefico de drogas etc As causas coletivas da accedilatildeo criminal satildeo meras desculpas porque natildeo constituem mecanismos geradores de comportamentos delinquumlentes O crime deve ser imputado ao indiviacuteduo e natildeo agrave sociedade

Natildeo punir os autores das violecircncias urbanas significa alimentar a escalada da delinquumlecircncia Independente da fratura social eacute inaceitaacutevel procurar desculpas para atos indesculpaacuteveis Caso contraacuterio todos os desempregados estariam autorizados a roubar pilhar e depredar A forccedila desse discurso que prega o aumento da repressatildeo criminal estaacute associada ao processo mais geral de globalizaccedilatildeo em curso o qual

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impotildee reformas estruturais no aparato de Estado cujo efeito tem sido o aumento da polarizaccedilatildeo econocircmica entre grupos e classes sociais em diversos paiacuteses

O processo de globalizaccedilatildeo econocircmica e financeira tem sido feacutertil na produccedilatildeo de respostas teoacutericas distintas no controle do crime nas sociedades contemporacircneas O Estado deve atuar entre os adeptos do conceito de normalizaccedilatildeo do crime motivando setores da sociedade civil a oferecer respostas no campo preventivo Nesse sentido a gestatildeo e o controle do crime deveratildeo preocupar-se mais com a vitima potencial e menos com o delinquumlente Armar os alvos que propiciam inumeraacuteveis oportunidades ao crime eacute o objetivo central desse modelo de poliacutetica criminal

Enquanto isso os adeptos do chamado realismo penal sustentam que a banalizaccedilatildeo do crime na sociedade proveacutem da complacecircncia e do enfraquecimento da resposta da lei diante dos agentes que praticam atos criminais No plano das poliacuteticas oficiais essa dualidade de concepccedilotildees teoacutericas tem permeado o discurso e a accedilatildeo da burocracia estatal no campo penal Tais contradiccedilotildees tendem a provocar uma taxa de legitimidade social decrescente da confianccedila do Estado na gestatildeo e controle do crime

Contradiccedilotildees da Criminologia Oficial da Prevenccedilatildeo ao Aumento das Prisocirces

A criminologia oficial informa Garland (1999) mostra-se dualista polarizada e ambivalente Ao lado de uma criminologia do eu que transforma o criminoso em um consumidor racional semelhante agrave viacutetima opera-se ao mesmo tempo uma criminologia do outro do paacuteria do ser ameaccedilador A primeira eacute invocada para banalizar e promover a accedilatildeo preventiva a segunda para provocar o medo as hostilidades populares e afirmar o peso punitivo do Estado (GARLAND 1999 p75)

No decorrer dos anos 90 verifica-se uma ambivalecircncia do discurso oficial Fala-se menos em guerra contra o crime e mais na existecircncia de limites do poder do Estado Documentos oficiais e manifestos poliacuteticos ressaltam que os organismos governamentais natildeo podem combater e controlar a criminalidade isoladamente Em razatildeo

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disso propotildee-se uma melhor gestatildeo dos riscos e dos recursos numa reduccedilatildeo do medo dos custos da criminalidade da justiccedila criminal e maior amparo agraves viacutetimas

Poreacutem nessa uacuteltima deacutecada tentativas expliacutecitas de expressar a coacutelera e o ressentimento do puacuteblico tornaram-se um tema recorrente da retoacuterica que acompanha a legislaccedilatildeo penal e a tomada de decisotildees Os sentimentos da viacutetima da farrulia de um puacuteblico temeroso ultrajado foram constantemente invocados em apoio agrave criaccedilatildeo de novas leis e poliacuteticas penais em que o castigo tornou-se em objeto a ser venerado

Se por um lado a sociedade precisa adaptar-se ao crime concebendo-o como uma atividade profissional normal por outro o realismo penal sugere a divisatildeo do crime em duas categorias crimes violentos como terrorismo assassinato estupro sequumlestro roubo incecircndio criminoso etc exigem uma resposta ultra repressiva cabendo agrave poliacutetica responder a essa expectativa junto ao puacuteblico Jaacute os crimes ocasionais como roubo de veiacuteculos arrombamentos vandalismo e furtos diversos natildeo podem esperar sucesso na accedilatildeo exclusiva da poliacutecia (GARLAND 1999p64)

Esse comportamento dualista da poliacutetica oficial do Estado que admite seu fracasso parcial na soluccedilatildeo dos conflitos penais tambeacutem retira das gavetas enferrujadas da histoacuteria do modelo penal claacutessico punitivo antigas e falaciosas virtudes com o objetivo de administrar o crime Nessa direccedilatildeo a prisatildeo tende a prosperar Por quecirc Porque ela funciona afirmam seus defensores As despesas penitenciaacuterias satildeo investimentos pensado e rentaacutevel para a sociedade A triplicaccedilatildeo da populaccedilatildeo carceraacuteria nos Estados Unidos (1975 e 1989) teria apenas por seu efeito neutralizante evitado 390000 assassinatos estupros e roubos com violecircncia

Na falta da pena de morte mostra Wacquant (2001) a reclusatildeo eacute de longe o meio mais eficaz de impedir os criminosos comprovados e notoacuterios de matar estuprar roubar e furtar Um sistema judiciaacuterio natildeo tem que se preocupar com as razotildees que levam algueacutem a cometer um crime A justiccedila estaacute aiacute para punir os culpados indenizar os inocentes e defender os interesses dos cidadatildeos que respeitam a lei Por isso o Estado deve punir com eficaacutecia aqueles que insistem em transgredir a lei

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Essa velha receita de accedilatildeo repressiva estatal deve prevalecer nos EUA e em outros paiacuteses4

bull Comportamentos criminosos ou protocriminosos como jogar lixo na rua insultar pichar e cometer atos de vandalismo devem ser reprimidos com firmeza a fim de impedir que comportamentos criminosos mais graves se desenvolvam Toma-se igualmente necessaacuterio restaurar o moral dos policiais que foram submetidos anos a fio ao trabalho daninho dos socioacutelogos e dos criminologistas que insistem em dizer que o crime eacute causado pela pobreza fora da alccedilada da poliacutecia

Mediante uma accedilatildeo penal resolutamente agressiva as instituiccedilotildees policiais e penitenciaacuterias na sociedade em tempos neoliberais pretendem reafirmar a autoridade moral do Estado no momento em que ele proacuteprio eacute atingido pela sua impotecircncia econocircmica O aumento da repressatildeo estatal consequumlecircncia da nova ordem criminal em vigor vem acompanhado da privatizaccedilatildeo do sistema penitenciaacuterio A multiplicaccedilatildeo de prisotildees deve acompanhar o aumento da produccedilatildeo juriacutedica de criminosos O mercado da puniccedilatildeo um negoacutecio promissor que proporciona aos detentores de tiacutetulos de accedilotildees das empresas de seguranccedila rendimentos suculentos estaacute nascendo

Wacquant (2001) afirma que as causas do crescimento da populaccedilatildeo carceraacuteria norte-americana estatildeo vinculadas aos pequenos delinquumlentes e particularmente dos toxicocircmanos Ao contraacuterio do discurso poliacutetico e midiaacutetico dominante as prisotildees estatildeo repletas natildeo de criminosos perigosos e violentos mas de vulgares condenados pelo direito comum por negoacutecios com drogas furto roubo ou simples atentados agrave ordem puacuteblica envolvendo parcelas precarizadas das classes subalternas

4 Charvet (1977) mostra um exemplo ilustrativo dessa nova estrateacutegica na RFA Enquanto os cabeleireiros foram convidados a indicar as conversaccedilotildees suspeitas de seus clientes coube aos bombeiros a tarefa adicional de vigiar os veiacuteculos suspeitos reinventando desse modo a delaccedilatildeo de massa Esse modelo de reengenharia estatal repressiva eacute justificado em nome da doutrina da seguranccedila cujo objetivo eacute decretar toleracircncia zero aos delinquumlentes Enquanto as prisotildees se multiplicam nota-se ao mesmo tempo uma notaacutevel estabilidade por crimes de sangue e de costume

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Em 1998 o nuacutemero de condenados por contenciosos natildeoshyviolentos reclusos rompeu sozinha a cifra simboacutelica do milhatildeo Nas prisotildees 6 em cada 10 condenados satildeo negros ou latinos Menos da metade tinha emprego em tempo integral no momento de ser posta atraacutes das grades (WACQUANT 2001 p83)

Essa mudanccedila de objetivo e de resultado reflete o abandono do ideal da reabilitaccedilatildeo depois das criacuteticas cruzadas da direita e da esquerda na deacutecada de 70 e de sua substituiccedilatildeo por uma nova penalogia norte-americana cujo objetivo natildeo eacute mais prevenir o crime nem tratar os delinquumlentes objetivando o seu eventual retorno agrave sociedade O propoacutesito da nova ordem criminal nos EUA eacute isolar grupos considerados perigosos e neutralizar seus membros mais agressivos mediante uma seacuterie padronizada de compOltamentos

O reconhecimento pelos teoacutericos da normalizaccedilatildeo do crime e pelos adeptos de uma poliacutetica criminal ultra-repressiva da incapacidade da burocracia estatal de gerir e controlar os litiacutegios criminais na sociedade atual reafirma a viabilidade de fazer um questionamento teoacuterico e poliacutetico mais profundo dos paradigmas que aceitam como um dado a priori a existecircncia do crime Trata-se portanto de acrescentar e analisar outros movimentos poliacuteticoshyteoacutericos para uma melhor compreensatildeo das razotildees da falecircncia do modelo penal estatal existente

Globalizaccedilatildeo e Outros Fundamentos da Accedilatildeo Criminal

A justiccedila como aparelho de Estado acha-se em dificuldades para cumprir sua missatildeo de regulaccedilatildeo dos conflitos porque comenta Charvet (1977) sua ideologia juriacutedica estaacute em crise sua legitimidade eacute contestada pelos dominados e sua eficiecircncia pelos dominantes Na Franccedila verifica-se o avanccedilo das forccedilas da ordem atraveacutes do crescimento dos efetivos policiais judiciaacuterios e das forccedilas militares (guardas nas praias rodovias e outros lugares da vida puacuteblica) Diante da crise fiscal que impede o Estado de colocar um policial atraacutes de cada cidadatildeo tende-se a criar estrateacutegias de modo a redescobrir e converter em um policial cada cidadatildeo

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A incapacidade da burocracia estatal de regular os conflitos criminais vai aleacutem do processo atual de globalizaccedilatildeo econocircmica e financeira Adorno (1999) fala de um novo paradigma que aponta para algo aleacutem do crimes

O surgimento do Estado moderno caracterizado pelo monopoacutelio da violecircncia e pacificaccedilatildeo social foi acompanhado pela racionalizaccedilatildeo do direito atraveacutes dos seguintes princiacutepios positividade (vontade de um legislador soberano que atraveacutes de meios juriacutedicos de organizaccedilatildeo regulamenta as atividades da vida social) legalidade (natildeo reconhece outro ordenamento juriacutedico que natildeo seja estatal e outra forma de ordenamento estatal que natildeo seja lei)formalidade (o direito moderno define o domiacutenio onde se pode exercer legitimamente o livre arbiacutetrio das pessoas privadas) Esses princiacutepios afirma Adorno estatildeo sendo esfacelados

Por volta de 1950 ocorreu em todos os paiacuteses ocidentais um aumento substancial dos crimes contra as pessoas e ainda mais contra o patrimocircnio Um maior nuacutemero de pessoas passou a violar as leis penais e um grande nuacutemero de comportamentos e bens protegidos pelas leis penais ficou mais vulneraacutevel agrave ofensa e ao ataque

O problema natildeo reside nos crimes em si mas na maior ou menor disposiccedilatildeo social em aceitaacute-los e conviver com eles Ocorre que na sociedade atual essa toleracircncia diz Dahrendorf apud Adorno (1999) teria chegado ao limite haja visto (sic) as reaccedilotildees e a ansiedade puacuteblica diante da crescente ameaccedila do crime e da incapacidade da burocracia estatal em resolvecirc-lo

A erosatildeo da lei e da ordem estaacute vinculada agrave maior probabilidade de um criminoso se manter oculto hoje comparativamente ao passado Uma taxa despreziacutevel dos crimes cometidos eacute resolvida em razatildeo do descaso da poliacutetica pelos delinquumlentes conhecidos desistecircncia deliberada e afrouxamento das puniccedilotildees ou incapacidade de se lidar com as infraccedilotildees A impunidade aumenta e potildee em questatildeo a eficaacutecia das normas Isso provoca a sensaccedilatildeo de inexistecircncia das leis ou

5 O novo paradigma afirma Adorno (1999 p77) diz respeito agrave mudanccedila de hiacutebitos agrave exacerbaccedilatildeo de novos conflitos sociais agrave adoccedilatildeo de soluccedilotildees que desafiam tradiccedilotildees democraacuteticas agrave demarcaccedilatildeo de novas fronteiras sociais [ ] ao sentimento de desordem e caos que se espelha na ausecircncia de justiccedila social

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quando invocadas resultam sem efeito As sociedades contemporacircneas convi vem com o decliacutenio das sanccedilotildees A impunidade torna-se cotidiana diante da decretada incapacidade da burocracia estatal de cuidar da seguranccedila dos cidadatildeos de proteger seus bens materiais e simboacutelicos

Os mecanismos de pressatildeo social (que atuam sobre o comportamento dos sujeitos) que operam sobretudo na esfera da moralidade puacuteblica e privada natildeo parecem suscitar nem o sentimento de medo nem sequer o de anguacutestia diante das possibilidades sempre abertas de violaccedilatildeo das normas sociais As sociedades urbanas complexas comenta Adorno (1999) liberaram o homem do controle social Diante de tantas incertezas cresce por parte da sociedade uma obsessatildeo punitiva reivindicando mais ordem social

Isso natildeo impede o surgimento do modelo de funcionamento da sociedade de risco que potildee em movimento uma superestrutura de prevenccedilatildeo e de seguranccedila por meio da proliferaccedilatildeo das sociedades de seguro e de mecanismos de vigilacircncia privada com o objetivo de enfrentar o medo os perigos e ameaccedilas que tornam a vida humana incerta (ADORNO 1999 plOl-102)

Um poliacutetica de responsabilizaccedilatildeo individual atraveacutes de medidas repressivas voltadas para os jovens delinquumlentes como a reduccedilatildeo da idade para efeitos de responsabilidade penal e instauraccedilatildeo da responsabilidade dos pais em mateacuteria civil e penal tem sido discutida pelos parlamentares europeus Enveredando-se pelo caminho de mais Estado econocircmico e menos Estado social cria-se e justifica-se o mito da inevitabilidade da escalada do crime para disseminar a estrateacutegia da responsabilizaccedilatildeo como forma de mostrar que a prevenccedilatildeo e o controle do crime natildeo pode de modo exclusivo recair mais sobre o Estado

De agora em diante varejistas industriais autoridades escolares empresas de transporte pais trabalhadores e desempregados teratildeo de dividir essa responsabilidade Na deacutecada de 1990 a poliacutetica criminal da responsabilizaccedilatildeo teve por efeito reduzir a dependecircncia para com o Estado e aumentar a dependecircncia para com o mercado Investimentos na criminalidade como dispositivos de seguranccedila satildeo cada vez mais impostos pelas forccedilas econocircmicas em detrimento da poliacutetica puacuteblica

Nas sociedades onde ocorrem divisotildees sociais e raciais

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profundas em que as taxas de criminalidade e os niacuteveis de inseguranccedila satildeo elevados onde soluccedilotildees sociais foram politicamente desacreditas aleacutem de haver um ceticismo crescente quanto agrave perspectiva de reintegraccedilatildeo dos antigos delinquumlentes um setor comercial em expansatildeo favorece o aumento da populaccedilatildeo carceraacuteria pondo em marcha uma cultura do encarceramento em massa nos paiacuteses democraacuteticos

A responsabilizaccedilatildeo de organismos natildeo estatais no combate agrave criminal idade provoca enormes disparidades no financiamento social e na rede de seguranccedila Esta deixa de ser garantida para todos por meio de um Estado soberano para converte-se num produto cuja distribuiccedilatildeo estaacute subordinada agraves forccedilas de mercado As classes subalternas que mais sofrem a criminal idade estatildeo incapacitadas de comprar seguranccedila de adaptar suas vidas cotidianas e de se organizar de forma eficaz contra o crime

Poliacuteticas sociais de prevenccedilatildeo da criminalidade foram seriamente atacadas em razatildeo das transformaccedilotildees poliacuteticas sociais e econocircmicas das uacuteltimas deacutecadas Tentativas de prevenccedilatildeo e de responsabilizaccedilatildeo satildeo solapadas por uma economia de livre mercado que exclui as massas do trabalho remunerado e que nutre ativamente o crime engendrando expectativas de consumidor insaciaacutevel gerando ao mesmo tempo novos niacuteveis de pobreza da crianccedila da disfunccedilatildeo da famiacutelia e de desigualdade social (GARLAND 1999 p77)

A emergecircncia de novos problemas sociais que desafiam os princiacutepios legitimadores do Estado moderno tende a acelerar poreacutem em si natildeo justifica o fracasso da burocracia oficial na resoluccedilatildeo dos atos infracionais na sociedade contemporacircnea Os sintomas aparentes de desordem de caos de aumento da impunidade etc que reinam na sociedade vatildeo muito aleacutem de uma poliacutetica criminal deliberada de afrouxamento do poder estatal como estrateacutegia de administrar os conflitos criminais

A crise de legitimidade estatal na gestatildeo do crime reforccedila a necessidade de pocircr em questatildeo a definiccedilatildeo de crime como verdade ontoloacutegica O propoacutesito do proacuteximo capiacutetulo eacute avaliar e discutir se os eventos sociais considerados problemaacuteticos e penalmente definidos como crimes na sociedade satildeo por esta reconhecidos e aceitos como tais na realidade

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Da Descriminalizaccedilatildeo agrave Aboliccedilatildeo da Pena

A crise profunda da justiccedila penal avalia Cervini (1995) estaacute associada ao fracasso da ideologia do tratamento que pretende em seus diversos niacuteveis resolver os custos individuais e sociais do delito a defasagem das leis com certas culturas a existecircncia da cifra negra6

aleacutem das contradiccedilotildees dogmaacuteticas No momento histoacuterico atual diz Cervine dois fatores favorecem

a tendecircncia de descriminalizaccedilatildeo do direito penal um individual outro social No primeiro caso a pena privativa de liberdade que diminui a possibilidade de adaptabilidade no segundo caso os efeitos sociais estigmatizadores depois de sua aplicaccedilatildeo Em termos sociais natildeo haacute uma soluccedilatildeo eficiente em reparar o custo do crime nem de supressatildeo do estigma de ex-presidiaacuterio

As soluccedilotildees que o sistema penal tem adotado para gerir o problema da criminalidade encontram um potente antiacutedoto quando se avalia a existecircncia da chamada cifra negra Essa afirma Cervine indica claramente que os fatos aos quais a lei denomina de delitos natildeo satildeo considerados como fatos agrave parte separados de outros aconteshycimentos Uma soma relevante de acontecimentos formalmente considerados delitos e teoricamente merecedores de aplicaccedilatildeo penal natildeo eacute considerada nem valorizada como tal pelas viacutetimas ou pelos agentes do sistema pessoalmente interpelados mediante delaccedilotildees concretas (CERVINI 1995 pl73)

Tais consideraccedilotildees colidem com as premissas utoacutepicas da sociedade de controle que busca incansavelmente definir e administrar o crime atraveacutes da diversificaccedilatildeo das penas de ajustes da reclusatildeo prisional de reforma eletrocircnica das prisotildees mais investimentos e maior eficiecircncia na burocraacutetica criminal A sociedade de controle diz Passetti (1999) natildeo atenta para o fato da existecircncia de uma sociedade sem penas seja em

6 Cervini (1995 p162) comenta que a cifra negra eacute produto da diferenccedila existente entre a criminalidade real quantidade de delitos cometidos num tempo e lugar determinados e a criminal idade aparente conhecida pelos oacutergatildeos de controle Ou seja um percentual substancial de delitos estaacute estruturalmente fora do alcance e do controle do direito penal colocando em xeque a credibilidade de todo o sistema

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razatildeo da cifra negra (diferenccedila entre infraccedilotildees denunciadas na poliacutecia e aquelas efetivamente julgadas) seja porque parte consideraacutevel das infraccedilotildees eacute resolvida sem a necessidade da formalidade juriacutedica do just07bull

A maioria dos conflitos cotidianos dentro das fanulias das empresas dos estabelecimentos de ensino das organizaccedilotildees profissionais dos sindicatos clubes ou associaccedilotildees privadas satildeo segundo Hulsman e Celis (1993) resolvidos sem ter de entrar no sistema penal O grande nuacutemero de encarcerados eacute insignificante diante da quantidade real de fatos puniacuteveis que ocorrem a todo instante raramente detectados pelo sistema penal O sistema penal eacute confrontado com uma espantosa soma de casos semelhantes poreacutem apenas alguns deles e de forma injusta satildeo tratados pelo sistema cuja prisatildeo se nutre diariamente de viacutetimas preferencias

Fora os delitos que natildeo pertencem ao chamado nuacutecleo duro da delinquumlecircncia como o terrorismo e a criminalidade organizada o sistema penal afirma Hulsman cria mais problemas do que contribuiccedilotildees para resolver

Diante disso o autor propotildee uma outra loacutegica Diz que um comportamento pode deixar de ser crime sem afetar os laccedilos de sociabilidade O homossexualismo cantado em prosa e verso por Platatildeo foi penalmente condenado pelo Estado moderno durante muito tempo A prostituiccedilatildeo convive com a proibiccedilatildeo sob ameaccedila penal ateacute a liberdade total ou passando por toda sorte de controle administrativo A embriaguez em si natildeo interessa agrave lei ocidental mas soacute indiretamente (dirigir embriagado) O mesmo tratamento diferencial ocorre em relaccedilatildeo ao uso e ao traacutefico de drogas Alguns paiacuteses condenam penalmente o uso e o traacutefico excluindo o consumo pessoal Outros soacute colocam no campo penal as drogas ditas pesadas excluindo as chamadas drogas leves8

7 Na opiniatildeo de Passeui (1999 p63) o que esta utopia natildeo admite mas permitia eacute que no lugar da ressocializaccedilatildeo e da futura reintegmccedilatildeo prevaleccedila o depoacutesito de corpos para os qu ai s os uacutenicos investimentos satildeo a diminui ccedilatildeo a zero da possibilidade de fuga e a rigorosa vigilacircncia apoacutes o sentenciaroento

Na avaliaccedilatildeo de Hulsman e Celis (1 993 plOI) natildeo exi stem nem crimes nem delitos mas apenas situaccedilotildees problemaacuteticas Sem a presenccedila e participaccedilatildeo das pessoas envolvidas nestas situaccedilotildees natildeo haacute como resolvecirc-las de forma humana Classificar um fato de crime significa excluir a priori ou tras saiacutedas poss iacuteveis limitando-se ao es tilo estatal punitivo dominado pelo pensamento juriacutedico distante da realidade

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o processo de globalizaccedilatildeo econocircmica e financeira apenas indiretamente contribui para aprofundar a crise do sistema de justiccedila penal nos paiacuteses capitalistas centrais e perifeacutericos As razotildees da falecircncia do modelo de poliacutetica criminal estatildeo associadas ao processo de reforma penal dos seacuteculos XVIII e XIX periacuteodo em que a sociedade burguesa adotou o principio da puniccedilatildeo generalizada por meio da teoria da humanizaccedilatildeo da pena A reforma do coacutedigo penal burguecircs diz Foucault (1987) converteu inuacutemeros problemas sociais em conflitos criminais estabeleceu uma classificaccedilatildeo metoacutedica dos delitos em termos de gravidade e hierarquia e como complemento modificou e converteu as prisotildees em locais privilegiados com o propoacutesito de recuperar os delinquumlentes infratores atraveacutes do tratamento ressocializador

Desde entatildeo todas as propostas adotadas visando a reforma do sistema penal natildeo tocaram e natildeo discutiram seriamente o significado do crime sua classificaccedilatildeo tampouco sua instituiccedilatildeo correlata a prisatildeo As teorias criminais da normalizaccedilatildeo e da defesa da lei e da ordem (toleracircncia zero) satildeo ilustrativas a esse respeito

A primeira vecirc no crime uma accedilatildeo racional oportunista Parte do pressuposto de que a sociedade atual eacute uma sociedade de risco em que o fenocircmeno criminal natildeo pode ser tratado como algo patoloacutegico mas uma questatildeo de oportunidade Propotildee desativar a burocracia estatal repressiva por ter falhado na tentativa de desarmar e de punir o autor do delito e transferir a responsabilidade do controle do crime aos setores da sociedade civil Grupos privados deveriam armar os alvos vulneraacuteveis criar obstaacuteculos defender suas casas carros cheques cartotildees de creacutedito etc Tais mudanccedilas tomariam as coisas mais difiacuteceis evitando que pessoas pertencentes aos diversos grupos sociais se convertessem em presas faacuteceis de accedilotildees criminais

A segunda (movimento da lei e da ordem) associa a banalizaccedilatildeo do crime agrave fraqueza das respostas das leis penais vigentes Por isso advoga a necessidade de uma perseguiccedilatildeo implacaacutevel de pequenos atos como jogar lixo no chatildeo e furtos ocasionais propondo o aumento da pena para os delinquumlentes ocasionais e a prisatildeo perpeacutetua para os delinquumlentes mais perigosos O que diferencia as teorias criminais em foco eacute mais uma questatildeo de estrateacutegia e natildeo de princiacutepios Ambas trabalham com a noccedilatildeo de crime como uma verdade social e juriacutedica

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A negaccedilatildeo do conceito de crime como um fato social normal constitui objeto de reflexatildeo das teorias da descriminalizaccedilatildeo e abolicionistas para as quais as definiccedilotildees abstratas de crime e de pena vigentes no coacutedigo penal natildeo correspondem agraves definiccedilotildees que delas fazem as pessoas reais A desqualificaccedilatildeo do discurso juriacutedico penal natildeo resulta portando das dificuldades da aplicaccedilatildeo da lei da ineficiecircncia dos oacutergatildeos de controle criados para administraacute-la ou ainda de seu reduzido alcance quando se compara a totalidade de crimes formalmente descritos e os que realmente satildeo solucionados

Uma soluccedilatildeo poliacutetica socialmente legiacutetima na soluccedilatildeo dos problemas sociais hoje definidos e classificados como problemas criminais natildeo pode limitar-se ao entendimento e agrave aceitaccedilatildeo do braccedilo punitivo estatal e de sua burocracia centralizadora como o melhor remeacutedio para gerir os conflitos penais existentes Portanto toma-se urgente questionar seriamente se os eventos sociais formalmente criminalizaacuteveis satildeo concebidos e aceitos como tais pelos agentes sociais direta e potencialmente envolvidos em tais conflitos

Isso implica admitir a possibilidade da sociedade resolver inuacutemeros problemas atualmente circunscritos no campo do direito penal fora do campo estatal punitivo Nesse sentido a responsabilidade pela soluccedilatildeo dos conflitos sob a tutela do direito penal seria transferida aos agentes direta e potencialmente envolvidos em situaccedilotildees problemaacuteticas (acusado viacutetima familiares Estado e demais interessados)

A atuaccedilatildeo da burocracia de justiccedila (poliacutecia e judiciaacuterio) se limitaria a mediar e natildeo intervir diretamente visando impor a melhor soluccedilatildeo para o conflito Para isso outras instacircncias juriacutedicas (campo civil e administrativo) poderiam ser acionadas em detrimento do pesado seletivo e ineficiente sistema de justiccedila penal estatal vigente que por meio de seus oacutergatildeos policiais judiciaacuterios e administrativos procura sem nunca poder encontrar a melhor soluccedilatildeo para o acusado seus familiares agrave vitima e a sociedade

Dois adolescentes (Japonecircs e Laacutezaro) praticaram mais um delito contra o patrimocircnio E daiacute Prendecirc-los ressocializaacute-Ios responsabilizar seus familiares Armar melhor determinados alvos sociais vulneraacuteveis que facilitam o roubo o furto

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Como ressocializar algueacutem que por razotildees conjunturais como o

desemprego e a crise econocircmica pratica um delito contra a propriedade se tais razotildees continuam a persistir Como responsabilizar seus familiares9 se a concepccedilatildeo nuclear de famiacutelia burguesa mudou

Para os defensores do movimento da lei e da ordem o Estado deve responder punindo de modo exemplar Entre os adeptos da normalizaccedilatildeo do crime o Estado deve preocupar-se em punir menos e criar uma nova estrateacutegia com O propoacutesito de armar mais as viacutetimas que os infratores

Tais movimentos natildeo tocam numa questatildeo central como o fazem os adeptos da descriminalizaccedilatildeo e da aboliccedilatildeo da pena para os quais a realidade atual propicia duas alternativas procurar outras repostas para os velhos e novos problemas questionando reduzindo e abolindo o crime e a prisatildeo ou restauraacute-la sob a condiccedilatildeo de aparelho de terror repressivo

9 Passetti (1995 p23) afirma que a situaccedilatildeo social dessas crianccedilas e adolescentes violentados permite desmistificar duas falaacutecias famiacutelias desestruturadas e o suposto acesso democraacutetico agrave escola O modelo de faTlllia vigente nas metroacutepoles natildeo corresponde mais agraves caracteriacutesticas da faTlllia modelar burguesa do capitalismo livre-concorrecircncia e natildeo pode mais ser restaurada como pretende o conservadorismo

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Abstract

The current process of economic and financiaI globalization has elicited contradictory answers in the formulation of criminal policies by State bureaucracy On the one hand under strong influence of neoclassical economic thought there appears in the United Kingdom the theory of crime normalization qualifying the criminal act as a rational choice option a matter of opportunity according to which delinquents rational1y calculate their actions Such theory proposes to replace the classical model of criminal policy which relates the penal practice to the figure of the other the abnormal by a new model of risk society which sees a professional career in criminal acts On the other hand there appears in the United States the movement in defense of law and order which proposes no tolerance to crime by the amplification of penal right and the recrudescence of the State criminal answer For the defenders of decriminalization and penalabolitionism the utopia of control society which favors the increase of punisbment and target changes to administer crime ignores the existence of a society with no penalties which is manifested through the dark cipher the difference between reported infractions to the police and those really judged

Key words globalization state crime punishment decriminalization penalty abolishment

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Page 6: INTRODUÇÃO AO DEBATE SOBRE AS POLíTICAS OFICIAIS NO ... · sem penas a qual se manifesta através da cifra negra, ... vinculados em razão do potencial revolucionário da informação

em termos pseudo-econocircmicos Se o crime natildeo for uma escolha racional fica mais difiacutecil combatecirc-lo

Esse modelo de anaacutelise surgiu no setor privado (companhias de seguro empresas comerciais e de seguranccedila privada) com o objetivo de reduzir os custos do crime que lhes pesam sobre os ombros Esse raciociacutenio comercial e fundado no seguro acerca da repressatildeo criminal procura diminuir ou deslocar os custos do crime em direccedilatildeo natildeo do castigo mas da prevenccedilatildeo de reduzir o risco antes que garantir a justiccedila

Esse modelo de pensamento apoacutes os anos de 1980 passou a influenciar os organismos e praacuteticas do Estado sobretudo entre os setores profissionais ligados agraves concepccedilotildees sociais e legais da criminalidade Esse tipo de anaacutelise tributaacuterio das concepccedilotildees econocircmicas neoclaacutessicas forma o conjunto da teoria da escolha racional que vecirc no crime uma questatildeo de oportunidade ocasional

O ato criminal converte-se numa rotina algo que acontece no curso normal das coisas e natildeo mais uma perturbaccedilatildeo social que requer explicaccedilotildees especiais A conduta cotidiana da vida econocircmica e social fornece infindaacuteveis ocasiotildees de transaccedilatildeo ilegiacutetima As accedilotildees criminais satildeo vistas como atos regulares previsiacuteveis e sistemaacuteticos como um acidente de tracircnsito Nesse sentido as accedilotildees contra o crime devem recair natildeo sobre pessoas desviantes mas preferencialmente sobre accedilatildeo concebida para governar os haacutebitos sociais e econocircmicos (GARLAND1999p66)

Em oposiccedilatildeo agraves afirmaccedilotildees da criminologia claacutessica3 que vincula a accedilatildeo criminal agrave existecircncia de patologias individuais e deacuteficit de socializaccedilatildeo a teoria da escolha racional vale-se dos esquemas claacutessicos de motivaccedilatildeo econocircmica Para o sujeito incriminado trata-se de uma ocasiatildeo uma escolha de carreira um meio de conseguir emoccedilotildees fortes ou vingar-se Para a viacutetima ou o puacuteblico o crime constitui um risco que deve ser calculado ou um acidente a ser evitado e natildeo uma aberraccedilatildeo moral que exija explicaccedilotildees sofisticadas

Ao decretar a incapacidade do aparato repressivo do Estado de lidar com o problema da criminalidade essas teorias procuram desarmar a

3 Ver por exemplo a abordagem que faz Alexando Baratta (2002) no capiacutetulo escola positiva e explicaccedilatildeo patoloacutegica da criminalidade

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pesada e deficiente burocracia estatal em busca de outros padrotildees de intervenccedilatildeo O estabelecimento de novos programas de accedilatildeo devem influenciar a conduta das viacutetimas potenciais armar os alvos vulneraacuteveis melhorar a seguranccedila em zonas perigosas e reestruturar as rotinas da vida cotidiana que tecircm propiciada desagradaacuteveis ocasiotildees para o crime

A erosatildeo da confianccedila da sociedade atual nas eventualidades das penas dissuasivas decorre da duvidosa capacidade da poliacutecia de prender os bandidos ou da vatilde esperanccedila de que se possa ensinar o domiacutenio de si aos jovens cidadatildeos A nova ordem social requer como imperativo a necessidade de substituir o dinheiro vivo por cartotildees de creacutedito de embutir travas nas colunas de direccedilatildeo dos automoacuteveis contratar vigias nos estabelecimentos colocar circuitos internos de televisatildeo coordenar os horaacuterios de fechamento das discotecas rivais etc Essa nova concepccedilatildeo da normalizaccedilatildeo do crime justifica e abona a reforma neoliberal do Estado ao transferir para os setores privados a responsabilidade estatal pela seguranccedila puacuteblica

Dentro desse quadro ganham forccedila propostas poliacuteticas de defesa de reformas transferindo do Estado para os grupos privados a responsabilidade pela gestatildeo dos conflitos criminais Esse modelo de poliacutetica criminal desenvolvido no Reino Unido sob forte influecircncia do pensamento econocircmico neoliberal natildeo eacute hegemocircnico e em determinados aspectos contrasta abertamente com certos princiacutepios do chamado realismo penal adotados pelo aparato de Estado norteshyamericano no campo da poliacutetica criminal

AOpccedilao Norte-Americana Por Uma Poliacutetica Criminal de Toleracircncia Zero

Nos EUA a redefiniccedilatildeo das missotildees do Estado parte de princiacutepios quase dogmaacuteticos de reduzir o seu papel social e de ampliar sua intervenccedilatildeo penal

Os oacutergatildeos de Estado norte-americano encarregados de promover o rigor penal resultaram na quadruplicaccedilatildeo da populaccedilatildeo carceraacuteria As diretrizes da poliacutetica policial e judiciaacuteria fizeram de Nova York a vitrine mundial da doutrina da toleracircncia zero ao passar agraves forccedilas da ordem um cheque em branco para perseguir agressivamente

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a pequena delinquumlecircncia e reprimir os mendigos e os sem-teto nos bairros deserdados Isso vem segundo Wacquant (2001) acompanhado da vulgarizaccedilatildeo da teoria da vidraccedila quebrada que eacute um empreacutestimo do ditado popular quem rouba um ovo rouba um boi A premissa dessa teoria conservadora eacute lutar passo a passo contra os pequenos distuacuterbios cotidianos para reduzir as grandes patologias criminais

Sem comprovaccedilatildeo empiacuterica essa teoria serve de aacutelibi para conter o medo que as classes meacutedia e alta tecircm dos pobres nos espaccedilos puacuteblicos (ruas parques estaccedilotildees ferroviaacuterias ocircnibus metrocirc etc) A luta que visa eliminar a criminalidade atua em trecircs frentes a) aumento em 10 vezes o efetivo e equipamentos das brigadas b) restituiccedilatildeo das obrigaccedilotildees operacionais aos comissaacuterios de bairro com obrigaccedilatildeo quantitativa de resultados c) implantaccedilatildeo de um sistema de radar informatizado (arquivo central sinaleacutetico e cartograacutefico consultaacutevel em microcomputadores a bordo dos carros de patrulha) Esse conjunto de medidas possibilita uma intervenccedilatildeo implacaacutevel instantacircnea e inflexiacutevel da lei sobre os delitos menores tais como o jogo a mendicacircncia os atentados aos costumes a simples ameaccedila etc

Em termos monetaacuterios ocorreu uma extraordinaacuteria expansatildeo dos recursos destinados agrave manutenccedilatildeo da ordem em NY O orccedilamento policial superou em quatro vezes as verbas destinadas aos hospitais puacuteblicos Essa tendecircncia pode ser ainda mais acentuada nos paiacuteses capitalistas perifeacutericos que entram num processo passivo de globalizaccedilatildeo decretando o fim do Estado-naccedilatildeo

Em termos poliacuteticos o rebaixamento do Legislativo em benefiacutecio do Executivo implica no enfraquecimento do contratual em favor do regulamentar Essa inversatildeo institucional diz Charvet (1977) faz com que a produccedilatildeo da norma e sua concretizaccedilatildeo sejam subtraiacutedas de um compromisso puacuteblico em que indiviacuteduos tenham participado

Para os defensores do Estado policial trata-se no entanto do dever de impor a obrigaccedilatildeo do trabalho assalariado precaacuterio O EstadoshyProvidecircncia norte-americano fracassou devido ao seu programa de ajuda agrave pobreza porque era permissivo e natildeo impunha obrigaccedilatildeo estrita de comportamento aos seus beneficiaacuterios O desemprego deve-se menos agraves opccedilotildees de mercado e mais aos problemas de funcionamento pessoal

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dos desempregados Empregos sujos e mal pagos haacute muitos A situaccedilatildeo de desemprego eacute portanto uma questatildeo de escolha e natildeo de escassez

Uma questatildeo dessa magnitude natildeo pode ser deixada somente agrave boa vontade e agrave iniciativa dos que trabalham por isso devem-se adotar medidas capazes de tornar o trabalho assalariado um dever ciacutevico obrigatoacuterio semelhante ao que se verifica no serviccedilo militar O dever da generalizaccedilatildeo do trabalho precaacuterio deve ser feito atraveacutes do braccedilo punitivo do Estado A poliacutetica social afirma Wacquant desistiu de cumprir a meta de reformar a sociedade preocupando-se em supervisionar a vida dos pobres

De acordo com a arquitetura da ordem criminal norte-americana explicaccedilotildees estruturais da pobreza carecem de plausibilidade Trata-se de uma questatildeo mais relacionada ao comportamento dos pobres do que de barreiras sociais Portanto eacute o comportamento que deve mudar mais do que a sociedade

A existecircncia de um Estado paternalista apenas se justifica se este vier acompanhado de uma ampla estrutura punitiva Deve-se por exemplo utilizar da legislaccedilatildeo de apoio agraves crianccedilas para exigir dos pais ausentes que trabalhem para prover as necessidades de suas farm1ias Poliacuteticas paternalistas de amparo agrave pobreza exigindo a contrapartida do trabalho oferecem mais esperanccedila de melhorar a pobreza do que poliacuteticas estatais distributivas

A proliferaccedilatildeo das incivilidades dizem os defensores da nova ordem criminal eacute o caminho promissor para escalada da delinquumlecircncia As primeiras condutas desviantes quando natildeo recebem puniccedilotildees exemplares estigmatizam um bairro e nele polarizam outros desvios como roubo traacutefico de drogas etc As causas coletivas da accedilatildeo criminal satildeo meras desculpas porque natildeo constituem mecanismos geradores de comportamentos delinquumlentes O crime deve ser imputado ao indiviacuteduo e natildeo agrave sociedade

Natildeo punir os autores das violecircncias urbanas significa alimentar a escalada da delinquumlecircncia Independente da fratura social eacute inaceitaacutevel procurar desculpas para atos indesculpaacuteveis Caso contraacuterio todos os desempregados estariam autorizados a roubar pilhar e depredar A forccedila desse discurso que prega o aumento da repressatildeo criminal estaacute associada ao processo mais geral de globalizaccedilatildeo em curso o qual

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impotildee reformas estruturais no aparato de Estado cujo efeito tem sido o aumento da polarizaccedilatildeo econocircmica entre grupos e classes sociais em diversos paiacuteses

O processo de globalizaccedilatildeo econocircmica e financeira tem sido feacutertil na produccedilatildeo de respostas teoacutericas distintas no controle do crime nas sociedades contemporacircneas O Estado deve atuar entre os adeptos do conceito de normalizaccedilatildeo do crime motivando setores da sociedade civil a oferecer respostas no campo preventivo Nesse sentido a gestatildeo e o controle do crime deveratildeo preocupar-se mais com a vitima potencial e menos com o delinquumlente Armar os alvos que propiciam inumeraacuteveis oportunidades ao crime eacute o objetivo central desse modelo de poliacutetica criminal

Enquanto isso os adeptos do chamado realismo penal sustentam que a banalizaccedilatildeo do crime na sociedade proveacutem da complacecircncia e do enfraquecimento da resposta da lei diante dos agentes que praticam atos criminais No plano das poliacuteticas oficiais essa dualidade de concepccedilotildees teoacutericas tem permeado o discurso e a accedilatildeo da burocracia estatal no campo penal Tais contradiccedilotildees tendem a provocar uma taxa de legitimidade social decrescente da confianccedila do Estado na gestatildeo e controle do crime

Contradiccedilotildees da Criminologia Oficial da Prevenccedilatildeo ao Aumento das Prisocirces

A criminologia oficial informa Garland (1999) mostra-se dualista polarizada e ambivalente Ao lado de uma criminologia do eu que transforma o criminoso em um consumidor racional semelhante agrave viacutetima opera-se ao mesmo tempo uma criminologia do outro do paacuteria do ser ameaccedilador A primeira eacute invocada para banalizar e promover a accedilatildeo preventiva a segunda para provocar o medo as hostilidades populares e afirmar o peso punitivo do Estado (GARLAND 1999 p75)

No decorrer dos anos 90 verifica-se uma ambivalecircncia do discurso oficial Fala-se menos em guerra contra o crime e mais na existecircncia de limites do poder do Estado Documentos oficiais e manifestos poliacuteticos ressaltam que os organismos governamentais natildeo podem combater e controlar a criminalidade isoladamente Em razatildeo

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disso propotildee-se uma melhor gestatildeo dos riscos e dos recursos numa reduccedilatildeo do medo dos custos da criminalidade da justiccedila criminal e maior amparo agraves viacutetimas

Poreacutem nessa uacuteltima deacutecada tentativas expliacutecitas de expressar a coacutelera e o ressentimento do puacuteblico tornaram-se um tema recorrente da retoacuterica que acompanha a legislaccedilatildeo penal e a tomada de decisotildees Os sentimentos da viacutetima da farrulia de um puacuteblico temeroso ultrajado foram constantemente invocados em apoio agrave criaccedilatildeo de novas leis e poliacuteticas penais em que o castigo tornou-se em objeto a ser venerado

Se por um lado a sociedade precisa adaptar-se ao crime concebendo-o como uma atividade profissional normal por outro o realismo penal sugere a divisatildeo do crime em duas categorias crimes violentos como terrorismo assassinato estupro sequumlestro roubo incecircndio criminoso etc exigem uma resposta ultra repressiva cabendo agrave poliacutetica responder a essa expectativa junto ao puacuteblico Jaacute os crimes ocasionais como roubo de veiacuteculos arrombamentos vandalismo e furtos diversos natildeo podem esperar sucesso na accedilatildeo exclusiva da poliacutecia (GARLAND 1999p64)

Esse comportamento dualista da poliacutetica oficial do Estado que admite seu fracasso parcial na soluccedilatildeo dos conflitos penais tambeacutem retira das gavetas enferrujadas da histoacuteria do modelo penal claacutessico punitivo antigas e falaciosas virtudes com o objetivo de administrar o crime Nessa direccedilatildeo a prisatildeo tende a prosperar Por quecirc Porque ela funciona afirmam seus defensores As despesas penitenciaacuterias satildeo investimentos pensado e rentaacutevel para a sociedade A triplicaccedilatildeo da populaccedilatildeo carceraacuteria nos Estados Unidos (1975 e 1989) teria apenas por seu efeito neutralizante evitado 390000 assassinatos estupros e roubos com violecircncia

Na falta da pena de morte mostra Wacquant (2001) a reclusatildeo eacute de longe o meio mais eficaz de impedir os criminosos comprovados e notoacuterios de matar estuprar roubar e furtar Um sistema judiciaacuterio natildeo tem que se preocupar com as razotildees que levam algueacutem a cometer um crime A justiccedila estaacute aiacute para punir os culpados indenizar os inocentes e defender os interesses dos cidadatildeos que respeitam a lei Por isso o Estado deve punir com eficaacutecia aqueles que insistem em transgredir a lei

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Essa velha receita de accedilatildeo repressiva estatal deve prevalecer nos EUA e em outros paiacuteses4

bull Comportamentos criminosos ou protocriminosos como jogar lixo na rua insultar pichar e cometer atos de vandalismo devem ser reprimidos com firmeza a fim de impedir que comportamentos criminosos mais graves se desenvolvam Toma-se igualmente necessaacuterio restaurar o moral dos policiais que foram submetidos anos a fio ao trabalho daninho dos socioacutelogos e dos criminologistas que insistem em dizer que o crime eacute causado pela pobreza fora da alccedilada da poliacutecia

Mediante uma accedilatildeo penal resolutamente agressiva as instituiccedilotildees policiais e penitenciaacuterias na sociedade em tempos neoliberais pretendem reafirmar a autoridade moral do Estado no momento em que ele proacuteprio eacute atingido pela sua impotecircncia econocircmica O aumento da repressatildeo estatal consequumlecircncia da nova ordem criminal em vigor vem acompanhado da privatizaccedilatildeo do sistema penitenciaacuterio A multiplicaccedilatildeo de prisotildees deve acompanhar o aumento da produccedilatildeo juriacutedica de criminosos O mercado da puniccedilatildeo um negoacutecio promissor que proporciona aos detentores de tiacutetulos de accedilotildees das empresas de seguranccedila rendimentos suculentos estaacute nascendo

Wacquant (2001) afirma que as causas do crescimento da populaccedilatildeo carceraacuteria norte-americana estatildeo vinculadas aos pequenos delinquumlentes e particularmente dos toxicocircmanos Ao contraacuterio do discurso poliacutetico e midiaacutetico dominante as prisotildees estatildeo repletas natildeo de criminosos perigosos e violentos mas de vulgares condenados pelo direito comum por negoacutecios com drogas furto roubo ou simples atentados agrave ordem puacuteblica envolvendo parcelas precarizadas das classes subalternas

4 Charvet (1977) mostra um exemplo ilustrativo dessa nova estrateacutegica na RFA Enquanto os cabeleireiros foram convidados a indicar as conversaccedilotildees suspeitas de seus clientes coube aos bombeiros a tarefa adicional de vigiar os veiacuteculos suspeitos reinventando desse modo a delaccedilatildeo de massa Esse modelo de reengenharia estatal repressiva eacute justificado em nome da doutrina da seguranccedila cujo objetivo eacute decretar toleracircncia zero aos delinquumlentes Enquanto as prisotildees se multiplicam nota-se ao mesmo tempo uma notaacutevel estabilidade por crimes de sangue e de costume

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Em 1998 o nuacutemero de condenados por contenciosos natildeoshyviolentos reclusos rompeu sozinha a cifra simboacutelica do milhatildeo Nas prisotildees 6 em cada 10 condenados satildeo negros ou latinos Menos da metade tinha emprego em tempo integral no momento de ser posta atraacutes das grades (WACQUANT 2001 p83)

Essa mudanccedila de objetivo e de resultado reflete o abandono do ideal da reabilitaccedilatildeo depois das criacuteticas cruzadas da direita e da esquerda na deacutecada de 70 e de sua substituiccedilatildeo por uma nova penalogia norte-americana cujo objetivo natildeo eacute mais prevenir o crime nem tratar os delinquumlentes objetivando o seu eventual retorno agrave sociedade O propoacutesito da nova ordem criminal nos EUA eacute isolar grupos considerados perigosos e neutralizar seus membros mais agressivos mediante uma seacuterie padronizada de compOltamentos

O reconhecimento pelos teoacutericos da normalizaccedilatildeo do crime e pelos adeptos de uma poliacutetica criminal ultra-repressiva da incapacidade da burocracia estatal de gerir e controlar os litiacutegios criminais na sociedade atual reafirma a viabilidade de fazer um questionamento teoacuterico e poliacutetico mais profundo dos paradigmas que aceitam como um dado a priori a existecircncia do crime Trata-se portanto de acrescentar e analisar outros movimentos poliacuteticoshyteoacutericos para uma melhor compreensatildeo das razotildees da falecircncia do modelo penal estatal existente

Globalizaccedilatildeo e Outros Fundamentos da Accedilatildeo Criminal

A justiccedila como aparelho de Estado acha-se em dificuldades para cumprir sua missatildeo de regulaccedilatildeo dos conflitos porque comenta Charvet (1977) sua ideologia juriacutedica estaacute em crise sua legitimidade eacute contestada pelos dominados e sua eficiecircncia pelos dominantes Na Franccedila verifica-se o avanccedilo das forccedilas da ordem atraveacutes do crescimento dos efetivos policiais judiciaacuterios e das forccedilas militares (guardas nas praias rodovias e outros lugares da vida puacuteblica) Diante da crise fiscal que impede o Estado de colocar um policial atraacutes de cada cidadatildeo tende-se a criar estrateacutegias de modo a redescobrir e converter em um policial cada cidadatildeo

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A incapacidade da burocracia estatal de regular os conflitos criminais vai aleacutem do processo atual de globalizaccedilatildeo econocircmica e financeira Adorno (1999) fala de um novo paradigma que aponta para algo aleacutem do crimes

O surgimento do Estado moderno caracterizado pelo monopoacutelio da violecircncia e pacificaccedilatildeo social foi acompanhado pela racionalizaccedilatildeo do direito atraveacutes dos seguintes princiacutepios positividade (vontade de um legislador soberano que atraveacutes de meios juriacutedicos de organizaccedilatildeo regulamenta as atividades da vida social) legalidade (natildeo reconhece outro ordenamento juriacutedico que natildeo seja estatal e outra forma de ordenamento estatal que natildeo seja lei)formalidade (o direito moderno define o domiacutenio onde se pode exercer legitimamente o livre arbiacutetrio das pessoas privadas) Esses princiacutepios afirma Adorno estatildeo sendo esfacelados

Por volta de 1950 ocorreu em todos os paiacuteses ocidentais um aumento substancial dos crimes contra as pessoas e ainda mais contra o patrimocircnio Um maior nuacutemero de pessoas passou a violar as leis penais e um grande nuacutemero de comportamentos e bens protegidos pelas leis penais ficou mais vulneraacutevel agrave ofensa e ao ataque

O problema natildeo reside nos crimes em si mas na maior ou menor disposiccedilatildeo social em aceitaacute-los e conviver com eles Ocorre que na sociedade atual essa toleracircncia diz Dahrendorf apud Adorno (1999) teria chegado ao limite haja visto (sic) as reaccedilotildees e a ansiedade puacuteblica diante da crescente ameaccedila do crime e da incapacidade da burocracia estatal em resolvecirc-lo

A erosatildeo da lei e da ordem estaacute vinculada agrave maior probabilidade de um criminoso se manter oculto hoje comparativamente ao passado Uma taxa despreziacutevel dos crimes cometidos eacute resolvida em razatildeo do descaso da poliacutetica pelos delinquumlentes conhecidos desistecircncia deliberada e afrouxamento das puniccedilotildees ou incapacidade de se lidar com as infraccedilotildees A impunidade aumenta e potildee em questatildeo a eficaacutecia das normas Isso provoca a sensaccedilatildeo de inexistecircncia das leis ou

5 O novo paradigma afirma Adorno (1999 p77) diz respeito agrave mudanccedila de hiacutebitos agrave exacerbaccedilatildeo de novos conflitos sociais agrave adoccedilatildeo de soluccedilotildees que desafiam tradiccedilotildees democraacuteticas agrave demarcaccedilatildeo de novas fronteiras sociais [ ] ao sentimento de desordem e caos que se espelha na ausecircncia de justiccedila social

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quando invocadas resultam sem efeito As sociedades contemporacircneas convi vem com o decliacutenio das sanccedilotildees A impunidade torna-se cotidiana diante da decretada incapacidade da burocracia estatal de cuidar da seguranccedila dos cidadatildeos de proteger seus bens materiais e simboacutelicos

Os mecanismos de pressatildeo social (que atuam sobre o comportamento dos sujeitos) que operam sobretudo na esfera da moralidade puacuteblica e privada natildeo parecem suscitar nem o sentimento de medo nem sequer o de anguacutestia diante das possibilidades sempre abertas de violaccedilatildeo das normas sociais As sociedades urbanas complexas comenta Adorno (1999) liberaram o homem do controle social Diante de tantas incertezas cresce por parte da sociedade uma obsessatildeo punitiva reivindicando mais ordem social

Isso natildeo impede o surgimento do modelo de funcionamento da sociedade de risco que potildee em movimento uma superestrutura de prevenccedilatildeo e de seguranccedila por meio da proliferaccedilatildeo das sociedades de seguro e de mecanismos de vigilacircncia privada com o objetivo de enfrentar o medo os perigos e ameaccedilas que tornam a vida humana incerta (ADORNO 1999 plOl-102)

Um poliacutetica de responsabilizaccedilatildeo individual atraveacutes de medidas repressivas voltadas para os jovens delinquumlentes como a reduccedilatildeo da idade para efeitos de responsabilidade penal e instauraccedilatildeo da responsabilidade dos pais em mateacuteria civil e penal tem sido discutida pelos parlamentares europeus Enveredando-se pelo caminho de mais Estado econocircmico e menos Estado social cria-se e justifica-se o mito da inevitabilidade da escalada do crime para disseminar a estrateacutegia da responsabilizaccedilatildeo como forma de mostrar que a prevenccedilatildeo e o controle do crime natildeo pode de modo exclusivo recair mais sobre o Estado

De agora em diante varejistas industriais autoridades escolares empresas de transporte pais trabalhadores e desempregados teratildeo de dividir essa responsabilidade Na deacutecada de 1990 a poliacutetica criminal da responsabilizaccedilatildeo teve por efeito reduzir a dependecircncia para com o Estado e aumentar a dependecircncia para com o mercado Investimentos na criminalidade como dispositivos de seguranccedila satildeo cada vez mais impostos pelas forccedilas econocircmicas em detrimento da poliacutetica puacuteblica

Nas sociedades onde ocorrem divisotildees sociais e raciais

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profundas em que as taxas de criminalidade e os niacuteveis de inseguranccedila satildeo elevados onde soluccedilotildees sociais foram politicamente desacreditas aleacutem de haver um ceticismo crescente quanto agrave perspectiva de reintegraccedilatildeo dos antigos delinquumlentes um setor comercial em expansatildeo favorece o aumento da populaccedilatildeo carceraacuteria pondo em marcha uma cultura do encarceramento em massa nos paiacuteses democraacuteticos

A responsabilizaccedilatildeo de organismos natildeo estatais no combate agrave criminal idade provoca enormes disparidades no financiamento social e na rede de seguranccedila Esta deixa de ser garantida para todos por meio de um Estado soberano para converte-se num produto cuja distribuiccedilatildeo estaacute subordinada agraves forccedilas de mercado As classes subalternas que mais sofrem a criminal idade estatildeo incapacitadas de comprar seguranccedila de adaptar suas vidas cotidianas e de se organizar de forma eficaz contra o crime

Poliacuteticas sociais de prevenccedilatildeo da criminalidade foram seriamente atacadas em razatildeo das transformaccedilotildees poliacuteticas sociais e econocircmicas das uacuteltimas deacutecadas Tentativas de prevenccedilatildeo e de responsabilizaccedilatildeo satildeo solapadas por uma economia de livre mercado que exclui as massas do trabalho remunerado e que nutre ativamente o crime engendrando expectativas de consumidor insaciaacutevel gerando ao mesmo tempo novos niacuteveis de pobreza da crianccedila da disfunccedilatildeo da famiacutelia e de desigualdade social (GARLAND 1999 p77)

A emergecircncia de novos problemas sociais que desafiam os princiacutepios legitimadores do Estado moderno tende a acelerar poreacutem em si natildeo justifica o fracasso da burocracia oficial na resoluccedilatildeo dos atos infracionais na sociedade contemporacircnea Os sintomas aparentes de desordem de caos de aumento da impunidade etc que reinam na sociedade vatildeo muito aleacutem de uma poliacutetica criminal deliberada de afrouxamento do poder estatal como estrateacutegia de administrar os conflitos criminais

A crise de legitimidade estatal na gestatildeo do crime reforccedila a necessidade de pocircr em questatildeo a definiccedilatildeo de crime como verdade ontoloacutegica O propoacutesito do proacuteximo capiacutetulo eacute avaliar e discutir se os eventos sociais considerados problemaacuteticos e penalmente definidos como crimes na sociedade satildeo por esta reconhecidos e aceitos como tais na realidade

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Da Descriminalizaccedilatildeo agrave Aboliccedilatildeo da Pena

A crise profunda da justiccedila penal avalia Cervini (1995) estaacute associada ao fracasso da ideologia do tratamento que pretende em seus diversos niacuteveis resolver os custos individuais e sociais do delito a defasagem das leis com certas culturas a existecircncia da cifra negra6

aleacutem das contradiccedilotildees dogmaacuteticas No momento histoacuterico atual diz Cervine dois fatores favorecem

a tendecircncia de descriminalizaccedilatildeo do direito penal um individual outro social No primeiro caso a pena privativa de liberdade que diminui a possibilidade de adaptabilidade no segundo caso os efeitos sociais estigmatizadores depois de sua aplicaccedilatildeo Em termos sociais natildeo haacute uma soluccedilatildeo eficiente em reparar o custo do crime nem de supressatildeo do estigma de ex-presidiaacuterio

As soluccedilotildees que o sistema penal tem adotado para gerir o problema da criminalidade encontram um potente antiacutedoto quando se avalia a existecircncia da chamada cifra negra Essa afirma Cervine indica claramente que os fatos aos quais a lei denomina de delitos natildeo satildeo considerados como fatos agrave parte separados de outros aconteshycimentos Uma soma relevante de acontecimentos formalmente considerados delitos e teoricamente merecedores de aplicaccedilatildeo penal natildeo eacute considerada nem valorizada como tal pelas viacutetimas ou pelos agentes do sistema pessoalmente interpelados mediante delaccedilotildees concretas (CERVINI 1995 pl73)

Tais consideraccedilotildees colidem com as premissas utoacutepicas da sociedade de controle que busca incansavelmente definir e administrar o crime atraveacutes da diversificaccedilatildeo das penas de ajustes da reclusatildeo prisional de reforma eletrocircnica das prisotildees mais investimentos e maior eficiecircncia na burocraacutetica criminal A sociedade de controle diz Passetti (1999) natildeo atenta para o fato da existecircncia de uma sociedade sem penas seja em

6 Cervini (1995 p162) comenta que a cifra negra eacute produto da diferenccedila existente entre a criminalidade real quantidade de delitos cometidos num tempo e lugar determinados e a criminal idade aparente conhecida pelos oacutergatildeos de controle Ou seja um percentual substancial de delitos estaacute estruturalmente fora do alcance e do controle do direito penal colocando em xeque a credibilidade de todo o sistema

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razatildeo da cifra negra (diferenccedila entre infraccedilotildees denunciadas na poliacutecia e aquelas efetivamente julgadas) seja porque parte consideraacutevel das infraccedilotildees eacute resolvida sem a necessidade da formalidade juriacutedica do just07bull

A maioria dos conflitos cotidianos dentro das fanulias das empresas dos estabelecimentos de ensino das organizaccedilotildees profissionais dos sindicatos clubes ou associaccedilotildees privadas satildeo segundo Hulsman e Celis (1993) resolvidos sem ter de entrar no sistema penal O grande nuacutemero de encarcerados eacute insignificante diante da quantidade real de fatos puniacuteveis que ocorrem a todo instante raramente detectados pelo sistema penal O sistema penal eacute confrontado com uma espantosa soma de casos semelhantes poreacutem apenas alguns deles e de forma injusta satildeo tratados pelo sistema cuja prisatildeo se nutre diariamente de viacutetimas preferencias

Fora os delitos que natildeo pertencem ao chamado nuacutecleo duro da delinquumlecircncia como o terrorismo e a criminalidade organizada o sistema penal afirma Hulsman cria mais problemas do que contribuiccedilotildees para resolver

Diante disso o autor propotildee uma outra loacutegica Diz que um comportamento pode deixar de ser crime sem afetar os laccedilos de sociabilidade O homossexualismo cantado em prosa e verso por Platatildeo foi penalmente condenado pelo Estado moderno durante muito tempo A prostituiccedilatildeo convive com a proibiccedilatildeo sob ameaccedila penal ateacute a liberdade total ou passando por toda sorte de controle administrativo A embriaguez em si natildeo interessa agrave lei ocidental mas soacute indiretamente (dirigir embriagado) O mesmo tratamento diferencial ocorre em relaccedilatildeo ao uso e ao traacutefico de drogas Alguns paiacuteses condenam penalmente o uso e o traacutefico excluindo o consumo pessoal Outros soacute colocam no campo penal as drogas ditas pesadas excluindo as chamadas drogas leves8

7 Na opiniatildeo de Passeui (1999 p63) o que esta utopia natildeo admite mas permitia eacute que no lugar da ressocializaccedilatildeo e da futura reintegmccedilatildeo prevaleccedila o depoacutesito de corpos para os qu ai s os uacutenicos investimentos satildeo a diminui ccedilatildeo a zero da possibilidade de fuga e a rigorosa vigilacircncia apoacutes o sentenciaroento

Na avaliaccedilatildeo de Hulsman e Celis (1 993 plOI) natildeo exi stem nem crimes nem delitos mas apenas situaccedilotildees problemaacuteticas Sem a presenccedila e participaccedilatildeo das pessoas envolvidas nestas situaccedilotildees natildeo haacute como resolvecirc-las de forma humana Classificar um fato de crime significa excluir a priori ou tras saiacutedas poss iacuteveis limitando-se ao es tilo estatal punitivo dominado pelo pensamento juriacutedico distante da realidade

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o processo de globalizaccedilatildeo econocircmica e financeira apenas indiretamente contribui para aprofundar a crise do sistema de justiccedila penal nos paiacuteses capitalistas centrais e perifeacutericos As razotildees da falecircncia do modelo de poliacutetica criminal estatildeo associadas ao processo de reforma penal dos seacuteculos XVIII e XIX periacuteodo em que a sociedade burguesa adotou o principio da puniccedilatildeo generalizada por meio da teoria da humanizaccedilatildeo da pena A reforma do coacutedigo penal burguecircs diz Foucault (1987) converteu inuacutemeros problemas sociais em conflitos criminais estabeleceu uma classificaccedilatildeo metoacutedica dos delitos em termos de gravidade e hierarquia e como complemento modificou e converteu as prisotildees em locais privilegiados com o propoacutesito de recuperar os delinquumlentes infratores atraveacutes do tratamento ressocializador

Desde entatildeo todas as propostas adotadas visando a reforma do sistema penal natildeo tocaram e natildeo discutiram seriamente o significado do crime sua classificaccedilatildeo tampouco sua instituiccedilatildeo correlata a prisatildeo As teorias criminais da normalizaccedilatildeo e da defesa da lei e da ordem (toleracircncia zero) satildeo ilustrativas a esse respeito

A primeira vecirc no crime uma accedilatildeo racional oportunista Parte do pressuposto de que a sociedade atual eacute uma sociedade de risco em que o fenocircmeno criminal natildeo pode ser tratado como algo patoloacutegico mas uma questatildeo de oportunidade Propotildee desativar a burocracia estatal repressiva por ter falhado na tentativa de desarmar e de punir o autor do delito e transferir a responsabilidade do controle do crime aos setores da sociedade civil Grupos privados deveriam armar os alvos vulneraacuteveis criar obstaacuteculos defender suas casas carros cheques cartotildees de creacutedito etc Tais mudanccedilas tomariam as coisas mais difiacuteceis evitando que pessoas pertencentes aos diversos grupos sociais se convertessem em presas faacuteceis de accedilotildees criminais

A segunda (movimento da lei e da ordem) associa a banalizaccedilatildeo do crime agrave fraqueza das respostas das leis penais vigentes Por isso advoga a necessidade de uma perseguiccedilatildeo implacaacutevel de pequenos atos como jogar lixo no chatildeo e furtos ocasionais propondo o aumento da pena para os delinquumlentes ocasionais e a prisatildeo perpeacutetua para os delinquumlentes mais perigosos O que diferencia as teorias criminais em foco eacute mais uma questatildeo de estrateacutegia e natildeo de princiacutepios Ambas trabalham com a noccedilatildeo de crime como uma verdade social e juriacutedica

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A negaccedilatildeo do conceito de crime como um fato social normal constitui objeto de reflexatildeo das teorias da descriminalizaccedilatildeo e abolicionistas para as quais as definiccedilotildees abstratas de crime e de pena vigentes no coacutedigo penal natildeo correspondem agraves definiccedilotildees que delas fazem as pessoas reais A desqualificaccedilatildeo do discurso juriacutedico penal natildeo resulta portando das dificuldades da aplicaccedilatildeo da lei da ineficiecircncia dos oacutergatildeos de controle criados para administraacute-la ou ainda de seu reduzido alcance quando se compara a totalidade de crimes formalmente descritos e os que realmente satildeo solucionados

Uma soluccedilatildeo poliacutetica socialmente legiacutetima na soluccedilatildeo dos problemas sociais hoje definidos e classificados como problemas criminais natildeo pode limitar-se ao entendimento e agrave aceitaccedilatildeo do braccedilo punitivo estatal e de sua burocracia centralizadora como o melhor remeacutedio para gerir os conflitos penais existentes Portanto toma-se urgente questionar seriamente se os eventos sociais formalmente criminalizaacuteveis satildeo concebidos e aceitos como tais pelos agentes sociais direta e potencialmente envolvidos em tais conflitos

Isso implica admitir a possibilidade da sociedade resolver inuacutemeros problemas atualmente circunscritos no campo do direito penal fora do campo estatal punitivo Nesse sentido a responsabilidade pela soluccedilatildeo dos conflitos sob a tutela do direito penal seria transferida aos agentes direta e potencialmente envolvidos em situaccedilotildees problemaacuteticas (acusado viacutetima familiares Estado e demais interessados)

A atuaccedilatildeo da burocracia de justiccedila (poliacutecia e judiciaacuterio) se limitaria a mediar e natildeo intervir diretamente visando impor a melhor soluccedilatildeo para o conflito Para isso outras instacircncias juriacutedicas (campo civil e administrativo) poderiam ser acionadas em detrimento do pesado seletivo e ineficiente sistema de justiccedila penal estatal vigente que por meio de seus oacutergatildeos policiais judiciaacuterios e administrativos procura sem nunca poder encontrar a melhor soluccedilatildeo para o acusado seus familiares agrave vitima e a sociedade

Dois adolescentes (Japonecircs e Laacutezaro) praticaram mais um delito contra o patrimocircnio E daiacute Prendecirc-los ressocializaacute-Ios responsabilizar seus familiares Armar melhor determinados alvos sociais vulneraacuteveis que facilitam o roubo o furto

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Como ressocializar algueacutem que por razotildees conjunturais como o

desemprego e a crise econocircmica pratica um delito contra a propriedade se tais razotildees continuam a persistir Como responsabilizar seus familiares9 se a concepccedilatildeo nuclear de famiacutelia burguesa mudou

Para os defensores do movimento da lei e da ordem o Estado deve responder punindo de modo exemplar Entre os adeptos da normalizaccedilatildeo do crime o Estado deve preocupar-se em punir menos e criar uma nova estrateacutegia com O propoacutesito de armar mais as viacutetimas que os infratores

Tais movimentos natildeo tocam numa questatildeo central como o fazem os adeptos da descriminalizaccedilatildeo e da aboliccedilatildeo da pena para os quais a realidade atual propicia duas alternativas procurar outras repostas para os velhos e novos problemas questionando reduzindo e abolindo o crime e a prisatildeo ou restauraacute-la sob a condiccedilatildeo de aparelho de terror repressivo

9 Passetti (1995 p23) afirma que a situaccedilatildeo social dessas crianccedilas e adolescentes violentados permite desmistificar duas falaacutecias famiacutelias desestruturadas e o suposto acesso democraacutetico agrave escola O modelo de faTlllia vigente nas metroacutepoles natildeo corresponde mais agraves caracteriacutesticas da faTlllia modelar burguesa do capitalismo livre-concorrecircncia e natildeo pode mais ser restaurada como pretende o conservadorismo

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Referecircncias

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CHARVET D Crise da Justiccedila da lei crise do Estado In POULANTZAS N (Org) O Estado em crise Rio de Janeiro Graal 1977

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OHMAE Kenicbi O fim do Estado Naccedilatildeo a ascensatildeo das economias regionais 3ed Satildeo Paulo Campus 1999

PASSETTI Edson (Org) Violentados crianccedilas adolescentes e justiccedila Satildeo Paulo Imaginaacuterio 1995

PASSETTI Edson Sociedade de controle e aboliccedilatildeo da puniccedilatildeo Violecircncia e Mal-Estar na Sociedade Satildeo Paulo em Perspectiva Satildeo Paulo v13 n3 jull set1 999

SANTOS Boaventura Sousa A crtica da razatildeo indolente contra o desperdfcio da experiecircncia Satildeo Paulo Cortez 2000 v 1

WACQUANT Lolc As prisotildees da miseacuteria Rio de Janeiro Zabar 2001

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Abstract

The current process of economic and financiaI globalization has elicited contradictory answers in the formulation of criminal policies by State bureaucracy On the one hand under strong influence of neoclassical economic thought there appears in the United Kingdom the theory of crime normalization qualifying the criminal act as a rational choice option a matter of opportunity according to which delinquents rational1y calculate their actions Such theory proposes to replace the classical model of criminal policy which relates the penal practice to the figure of the other the abnormal by a new model of risk society which sees a professional career in criminal acts On the other hand there appears in the United States the movement in defense of law and order which proposes no tolerance to crime by the amplification of penal right and the recrudescence of the State criminal answer For the defenders of decriminalization and penalabolitionism the utopia of control society which favors the increase of punisbment and target changes to administer crime ignores the existence of a society with no penalties which is manifested through the dark cipher the difference between reported infractions to the police and those really judged

Key words globalization state crime punishment decriminalization penalty abolishment

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Page 7: INTRODUÇÃO AO DEBATE SOBRE AS POLíTICAS OFICIAIS NO ... · sem penas a qual se manifesta através da cifra negra, ... vinculados em razão do potencial revolucionário da informação

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pesada e deficiente burocracia estatal em busca de outros padrotildees de intervenccedilatildeo O estabelecimento de novos programas de accedilatildeo devem influenciar a conduta das viacutetimas potenciais armar os alvos vulneraacuteveis melhorar a seguranccedila em zonas perigosas e reestruturar as rotinas da vida cotidiana que tecircm propiciada desagradaacuteveis ocasiotildees para o crime

A erosatildeo da confianccedila da sociedade atual nas eventualidades das penas dissuasivas decorre da duvidosa capacidade da poliacutecia de prender os bandidos ou da vatilde esperanccedila de que se possa ensinar o domiacutenio de si aos jovens cidadatildeos A nova ordem social requer como imperativo a necessidade de substituir o dinheiro vivo por cartotildees de creacutedito de embutir travas nas colunas de direccedilatildeo dos automoacuteveis contratar vigias nos estabelecimentos colocar circuitos internos de televisatildeo coordenar os horaacuterios de fechamento das discotecas rivais etc Essa nova concepccedilatildeo da normalizaccedilatildeo do crime justifica e abona a reforma neoliberal do Estado ao transferir para os setores privados a responsabilidade estatal pela seguranccedila puacuteblica

Dentro desse quadro ganham forccedila propostas poliacuteticas de defesa de reformas transferindo do Estado para os grupos privados a responsabilidade pela gestatildeo dos conflitos criminais Esse modelo de poliacutetica criminal desenvolvido no Reino Unido sob forte influecircncia do pensamento econocircmico neoliberal natildeo eacute hegemocircnico e em determinados aspectos contrasta abertamente com certos princiacutepios do chamado realismo penal adotados pelo aparato de Estado norteshyamericano no campo da poliacutetica criminal

AOpccedilao Norte-Americana Por Uma Poliacutetica Criminal de Toleracircncia Zero

Nos EUA a redefiniccedilatildeo das missotildees do Estado parte de princiacutepios quase dogmaacuteticos de reduzir o seu papel social e de ampliar sua intervenccedilatildeo penal

Os oacutergatildeos de Estado norte-americano encarregados de promover o rigor penal resultaram na quadruplicaccedilatildeo da populaccedilatildeo carceraacuteria As diretrizes da poliacutetica policial e judiciaacuteria fizeram de Nova York a vitrine mundial da doutrina da toleracircncia zero ao passar agraves forccedilas da ordem um cheque em branco para perseguir agressivamente

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a pequena delinquumlecircncia e reprimir os mendigos e os sem-teto nos bairros deserdados Isso vem segundo Wacquant (2001) acompanhado da vulgarizaccedilatildeo da teoria da vidraccedila quebrada que eacute um empreacutestimo do ditado popular quem rouba um ovo rouba um boi A premissa dessa teoria conservadora eacute lutar passo a passo contra os pequenos distuacuterbios cotidianos para reduzir as grandes patologias criminais

Sem comprovaccedilatildeo empiacuterica essa teoria serve de aacutelibi para conter o medo que as classes meacutedia e alta tecircm dos pobres nos espaccedilos puacuteblicos (ruas parques estaccedilotildees ferroviaacuterias ocircnibus metrocirc etc) A luta que visa eliminar a criminalidade atua em trecircs frentes a) aumento em 10 vezes o efetivo e equipamentos das brigadas b) restituiccedilatildeo das obrigaccedilotildees operacionais aos comissaacuterios de bairro com obrigaccedilatildeo quantitativa de resultados c) implantaccedilatildeo de um sistema de radar informatizado (arquivo central sinaleacutetico e cartograacutefico consultaacutevel em microcomputadores a bordo dos carros de patrulha) Esse conjunto de medidas possibilita uma intervenccedilatildeo implacaacutevel instantacircnea e inflexiacutevel da lei sobre os delitos menores tais como o jogo a mendicacircncia os atentados aos costumes a simples ameaccedila etc

Em termos monetaacuterios ocorreu uma extraordinaacuteria expansatildeo dos recursos destinados agrave manutenccedilatildeo da ordem em NY O orccedilamento policial superou em quatro vezes as verbas destinadas aos hospitais puacuteblicos Essa tendecircncia pode ser ainda mais acentuada nos paiacuteses capitalistas perifeacutericos que entram num processo passivo de globalizaccedilatildeo decretando o fim do Estado-naccedilatildeo

Em termos poliacuteticos o rebaixamento do Legislativo em benefiacutecio do Executivo implica no enfraquecimento do contratual em favor do regulamentar Essa inversatildeo institucional diz Charvet (1977) faz com que a produccedilatildeo da norma e sua concretizaccedilatildeo sejam subtraiacutedas de um compromisso puacuteblico em que indiviacuteduos tenham participado

Para os defensores do Estado policial trata-se no entanto do dever de impor a obrigaccedilatildeo do trabalho assalariado precaacuterio O EstadoshyProvidecircncia norte-americano fracassou devido ao seu programa de ajuda agrave pobreza porque era permissivo e natildeo impunha obrigaccedilatildeo estrita de comportamento aos seus beneficiaacuterios O desemprego deve-se menos agraves opccedilotildees de mercado e mais aos problemas de funcionamento pessoal

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dos desempregados Empregos sujos e mal pagos haacute muitos A situaccedilatildeo de desemprego eacute portanto uma questatildeo de escolha e natildeo de escassez

Uma questatildeo dessa magnitude natildeo pode ser deixada somente agrave boa vontade e agrave iniciativa dos que trabalham por isso devem-se adotar medidas capazes de tornar o trabalho assalariado um dever ciacutevico obrigatoacuterio semelhante ao que se verifica no serviccedilo militar O dever da generalizaccedilatildeo do trabalho precaacuterio deve ser feito atraveacutes do braccedilo punitivo do Estado A poliacutetica social afirma Wacquant desistiu de cumprir a meta de reformar a sociedade preocupando-se em supervisionar a vida dos pobres

De acordo com a arquitetura da ordem criminal norte-americana explicaccedilotildees estruturais da pobreza carecem de plausibilidade Trata-se de uma questatildeo mais relacionada ao comportamento dos pobres do que de barreiras sociais Portanto eacute o comportamento que deve mudar mais do que a sociedade

A existecircncia de um Estado paternalista apenas se justifica se este vier acompanhado de uma ampla estrutura punitiva Deve-se por exemplo utilizar da legislaccedilatildeo de apoio agraves crianccedilas para exigir dos pais ausentes que trabalhem para prover as necessidades de suas farm1ias Poliacuteticas paternalistas de amparo agrave pobreza exigindo a contrapartida do trabalho oferecem mais esperanccedila de melhorar a pobreza do que poliacuteticas estatais distributivas

A proliferaccedilatildeo das incivilidades dizem os defensores da nova ordem criminal eacute o caminho promissor para escalada da delinquumlecircncia As primeiras condutas desviantes quando natildeo recebem puniccedilotildees exemplares estigmatizam um bairro e nele polarizam outros desvios como roubo traacutefico de drogas etc As causas coletivas da accedilatildeo criminal satildeo meras desculpas porque natildeo constituem mecanismos geradores de comportamentos delinquumlentes O crime deve ser imputado ao indiviacuteduo e natildeo agrave sociedade

Natildeo punir os autores das violecircncias urbanas significa alimentar a escalada da delinquumlecircncia Independente da fratura social eacute inaceitaacutevel procurar desculpas para atos indesculpaacuteveis Caso contraacuterio todos os desempregados estariam autorizados a roubar pilhar e depredar A forccedila desse discurso que prega o aumento da repressatildeo criminal estaacute associada ao processo mais geral de globalizaccedilatildeo em curso o qual

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impotildee reformas estruturais no aparato de Estado cujo efeito tem sido o aumento da polarizaccedilatildeo econocircmica entre grupos e classes sociais em diversos paiacuteses

O processo de globalizaccedilatildeo econocircmica e financeira tem sido feacutertil na produccedilatildeo de respostas teoacutericas distintas no controle do crime nas sociedades contemporacircneas O Estado deve atuar entre os adeptos do conceito de normalizaccedilatildeo do crime motivando setores da sociedade civil a oferecer respostas no campo preventivo Nesse sentido a gestatildeo e o controle do crime deveratildeo preocupar-se mais com a vitima potencial e menos com o delinquumlente Armar os alvos que propiciam inumeraacuteveis oportunidades ao crime eacute o objetivo central desse modelo de poliacutetica criminal

Enquanto isso os adeptos do chamado realismo penal sustentam que a banalizaccedilatildeo do crime na sociedade proveacutem da complacecircncia e do enfraquecimento da resposta da lei diante dos agentes que praticam atos criminais No plano das poliacuteticas oficiais essa dualidade de concepccedilotildees teoacutericas tem permeado o discurso e a accedilatildeo da burocracia estatal no campo penal Tais contradiccedilotildees tendem a provocar uma taxa de legitimidade social decrescente da confianccedila do Estado na gestatildeo e controle do crime

Contradiccedilotildees da Criminologia Oficial da Prevenccedilatildeo ao Aumento das Prisocirces

A criminologia oficial informa Garland (1999) mostra-se dualista polarizada e ambivalente Ao lado de uma criminologia do eu que transforma o criminoso em um consumidor racional semelhante agrave viacutetima opera-se ao mesmo tempo uma criminologia do outro do paacuteria do ser ameaccedilador A primeira eacute invocada para banalizar e promover a accedilatildeo preventiva a segunda para provocar o medo as hostilidades populares e afirmar o peso punitivo do Estado (GARLAND 1999 p75)

No decorrer dos anos 90 verifica-se uma ambivalecircncia do discurso oficial Fala-se menos em guerra contra o crime e mais na existecircncia de limites do poder do Estado Documentos oficiais e manifestos poliacuteticos ressaltam que os organismos governamentais natildeo podem combater e controlar a criminalidade isoladamente Em razatildeo

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disso propotildee-se uma melhor gestatildeo dos riscos e dos recursos numa reduccedilatildeo do medo dos custos da criminalidade da justiccedila criminal e maior amparo agraves viacutetimas

Poreacutem nessa uacuteltima deacutecada tentativas expliacutecitas de expressar a coacutelera e o ressentimento do puacuteblico tornaram-se um tema recorrente da retoacuterica que acompanha a legislaccedilatildeo penal e a tomada de decisotildees Os sentimentos da viacutetima da farrulia de um puacuteblico temeroso ultrajado foram constantemente invocados em apoio agrave criaccedilatildeo de novas leis e poliacuteticas penais em que o castigo tornou-se em objeto a ser venerado

Se por um lado a sociedade precisa adaptar-se ao crime concebendo-o como uma atividade profissional normal por outro o realismo penal sugere a divisatildeo do crime em duas categorias crimes violentos como terrorismo assassinato estupro sequumlestro roubo incecircndio criminoso etc exigem uma resposta ultra repressiva cabendo agrave poliacutetica responder a essa expectativa junto ao puacuteblico Jaacute os crimes ocasionais como roubo de veiacuteculos arrombamentos vandalismo e furtos diversos natildeo podem esperar sucesso na accedilatildeo exclusiva da poliacutecia (GARLAND 1999p64)

Esse comportamento dualista da poliacutetica oficial do Estado que admite seu fracasso parcial na soluccedilatildeo dos conflitos penais tambeacutem retira das gavetas enferrujadas da histoacuteria do modelo penal claacutessico punitivo antigas e falaciosas virtudes com o objetivo de administrar o crime Nessa direccedilatildeo a prisatildeo tende a prosperar Por quecirc Porque ela funciona afirmam seus defensores As despesas penitenciaacuterias satildeo investimentos pensado e rentaacutevel para a sociedade A triplicaccedilatildeo da populaccedilatildeo carceraacuteria nos Estados Unidos (1975 e 1989) teria apenas por seu efeito neutralizante evitado 390000 assassinatos estupros e roubos com violecircncia

Na falta da pena de morte mostra Wacquant (2001) a reclusatildeo eacute de longe o meio mais eficaz de impedir os criminosos comprovados e notoacuterios de matar estuprar roubar e furtar Um sistema judiciaacuterio natildeo tem que se preocupar com as razotildees que levam algueacutem a cometer um crime A justiccedila estaacute aiacute para punir os culpados indenizar os inocentes e defender os interesses dos cidadatildeos que respeitam a lei Por isso o Estado deve punir com eficaacutecia aqueles que insistem em transgredir a lei

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Essa velha receita de accedilatildeo repressiva estatal deve prevalecer nos EUA e em outros paiacuteses4

bull Comportamentos criminosos ou protocriminosos como jogar lixo na rua insultar pichar e cometer atos de vandalismo devem ser reprimidos com firmeza a fim de impedir que comportamentos criminosos mais graves se desenvolvam Toma-se igualmente necessaacuterio restaurar o moral dos policiais que foram submetidos anos a fio ao trabalho daninho dos socioacutelogos e dos criminologistas que insistem em dizer que o crime eacute causado pela pobreza fora da alccedilada da poliacutecia

Mediante uma accedilatildeo penal resolutamente agressiva as instituiccedilotildees policiais e penitenciaacuterias na sociedade em tempos neoliberais pretendem reafirmar a autoridade moral do Estado no momento em que ele proacuteprio eacute atingido pela sua impotecircncia econocircmica O aumento da repressatildeo estatal consequumlecircncia da nova ordem criminal em vigor vem acompanhado da privatizaccedilatildeo do sistema penitenciaacuterio A multiplicaccedilatildeo de prisotildees deve acompanhar o aumento da produccedilatildeo juriacutedica de criminosos O mercado da puniccedilatildeo um negoacutecio promissor que proporciona aos detentores de tiacutetulos de accedilotildees das empresas de seguranccedila rendimentos suculentos estaacute nascendo

Wacquant (2001) afirma que as causas do crescimento da populaccedilatildeo carceraacuteria norte-americana estatildeo vinculadas aos pequenos delinquumlentes e particularmente dos toxicocircmanos Ao contraacuterio do discurso poliacutetico e midiaacutetico dominante as prisotildees estatildeo repletas natildeo de criminosos perigosos e violentos mas de vulgares condenados pelo direito comum por negoacutecios com drogas furto roubo ou simples atentados agrave ordem puacuteblica envolvendo parcelas precarizadas das classes subalternas

4 Charvet (1977) mostra um exemplo ilustrativo dessa nova estrateacutegica na RFA Enquanto os cabeleireiros foram convidados a indicar as conversaccedilotildees suspeitas de seus clientes coube aos bombeiros a tarefa adicional de vigiar os veiacuteculos suspeitos reinventando desse modo a delaccedilatildeo de massa Esse modelo de reengenharia estatal repressiva eacute justificado em nome da doutrina da seguranccedila cujo objetivo eacute decretar toleracircncia zero aos delinquumlentes Enquanto as prisotildees se multiplicam nota-se ao mesmo tempo uma notaacutevel estabilidade por crimes de sangue e de costume

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Em 1998 o nuacutemero de condenados por contenciosos natildeoshyviolentos reclusos rompeu sozinha a cifra simboacutelica do milhatildeo Nas prisotildees 6 em cada 10 condenados satildeo negros ou latinos Menos da metade tinha emprego em tempo integral no momento de ser posta atraacutes das grades (WACQUANT 2001 p83)

Essa mudanccedila de objetivo e de resultado reflete o abandono do ideal da reabilitaccedilatildeo depois das criacuteticas cruzadas da direita e da esquerda na deacutecada de 70 e de sua substituiccedilatildeo por uma nova penalogia norte-americana cujo objetivo natildeo eacute mais prevenir o crime nem tratar os delinquumlentes objetivando o seu eventual retorno agrave sociedade O propoacutesito da nova ordem criminal nos EUA eacute isolar grupos considerados perigosos e neutralizar seus membros mais agressivos mediante uma seacuterie padronizada de compOltamentos

O reconhecimento pelos teoacutericos da normalizaccedilatildeo do crime e pelos adeptos de uma poliacutetica criminal ultra-repressiva da incapacidade da burocracia estatal de gerir e controlar os litiacutegios criminais na sociedade atual reafirma a viabilidade de fazer um questionamento teoacuterico e poliacutetico mais profundo dos paradigmas que aceitam como um dado a priori a existecircncia do crime Trata-se portanto de acrescentar e analisar outros movimentos poliacuteticoshyteoacutericos para uma melhor compreensatildeo das razotildees da falecircncia do modelo penal estatal existente

Globalizaccedilatildeo e Outros Fundamentos da Accedilatildeo Criminal

A justiccedila como aparelho de Estado acha-se em dificuldades para cumprir sua missatildeo de regulaccedilatildeo dos conflitos porque comenta Charvet (1977) sua ideologia juriacutedica estaacute em crise sua legitimidade eacute contestada pelos dominados e sua eficiecircncia pelos dominantes Na Franccedila verifica-se o avanccedilo das forccedilas da ordem atraveacutes do crescimento dos efetivos policiais judiciaacuterios e das forccedilas militares (guardas nas praias rodovias e outros lugares da vida puacuteblica) Diante da crise fiscal que impede o Estado de colocar um policial atraacutes de cada cidadatildeo tende-se a criar estrateacutegias de modo a redescobrir e converter em um policial cada cidadatildeo

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A incapacidade da burocracia estatal de regular os conflitos criminais vai aleacutem do processo atual de globalizaccedilatildeo econocircmica e financeira Adorno (1999) fala de um novo paradigma que aponta para algo aleacutem do crimes

O surgimento do Estado moderno caracterizado pelo monopoacutelio da violecircncia e pacificaccedilatildeo social foi acompanhado pela racionalizaccedilatildeo do direito atraveacutes dos seguintes princiacutepios positividade (vontade de um legislador soberano que atraveacutes de meios juriacutedicos de organizaccedilatildeo regulamenta as atividades da vida social) legalidade (natildeo reconhece outro ordenamento juriacutedico que natildeo seja estatal e outra forma de ordenamento estatal que natildeo seja lei)formalidade (o direito moderno define o domiacutenio onde se pode exercer legitimamente o livre arbiacutetrio das pessoas privadas) Esses princiacutepios afirma Adorno estatildeo sendo esfacelados

Por volta de 1950 ocorreu em todos os paiacuteses ocidentais um aumento substancial dos crimes contra as pessoas e ainda mais contra o patrimocircnio Um maior nuacutemero de pessoas passou a violar as leis penais e um grande nuacutemero de comportamentos e bens protegidos pelas leis penais ficou mais vulneraacutevel agrave ofensa e ao ataque

O problema natildeo reside nos crimes em si mas na maior ou menor disposiccedilatildeo social em aceitaacute-los e conviver com eles Ocorre que na sociedade atual essa toleracircncia diz Dahrendorf apud Adorno (1999) teria chegado ao limite haja visto (sic) as reaccedilotildees e a ansiedade puacuteblica diante da crescente ameaccedila do crime e da incapacidade da burocracia estatal em resolvecirc-lo

A erosatildeo da lei e da ordem estaacute vinculada agrave maior probabilidade de um criminoso se manter oculto hoje comparativamente ao passado Uma taxa despreziacutevel dos crimes cometidos eacute resolvida em razatildeo do descaso da poliacutetica pelos delinquumlentes conhecidos desistecircncia deliberada e afrouxamento das puniccedilotildees ou incapacidade de se lidar com as infraccedilotildees A impunidade aumenta e potildee em questatildeo a eficaacutecia das normas Isso provoca a sensaccedilatildeo de inexistecircncia das leis ou

5 O novo paradigma afirma Adorno (1999 p77) diz respeito agrave mudanccedila de hiacutebitos agrave exacerbaccedilatildeo de novos conflitos sociais agrave adoccedilatildeo de soluccedilotildees que desafiam tradiccedilotildees democraacuteticas agrave demarcaccedilatildeo de novas fronteiras sociais [ ] ao sentimento de desordem e caos que se espelha na ausecircncia de justiccedila social

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quando invocadas resultam sem efeito As sociedades contemporacircneas convi vem com o decliacutenio das sanccedilotildees A impunidade torna-se cotidiana diante da decretada incapacidade da burocracia estatal de cuidar da seguranccedila dos cidadatildeos de proteger seus bens materiais e simboacutelicos

Os mecanismos de pressatildeo social (que atuam sobre o comportamento dos sujeitos) que operam sobretudo na esfera da moralidade puacuteblica e privada natildeo parecem suscitar nem o sentimento de medo nem sequer o de anguacutestia diante das possibilidades sempre abertas de violaccedilatildeo das normas sociais As sociedades urbanas complexas comenta Adorno (1999) liberaram o homem do controle social Diante de tantas incertezas cresce por parte da sociedade uma obsessatildeo punitiva reivindicando mais ordem social

Isso natildeo impede o surgimento do modelo de funcionamento da sociedade de risco que potildee em movimento uma superestrutura de prevenccedilatildeo e de seguranccedila por meio da proliferaccedilatildeo das sociedades de seguro e de mecanismos de vigilacircncia privada com o objetivo de enfrentar o medo os perigos e ameaccedilas que tornam a vida humana incerta (ADORNO 1999 plOl-102)

Um poliacutetica de responsabilizaccedilatildeo individual atraveacutes de medidas repressivas voltadas para os jovens delinquumlentes como a reduccedilatildeo da idade para efeitos de responsabilidade penal e instauraccedilatildeo da responsabilidade dos pais em mateacuteria civil e penal tem sido discutida pelos parlamentares europeus Enveredando-se pelo caminho de mais Estado econocircmico e menos Estado social cria-se e justifica-se o mito da inevitabilidade da escalada do crime para disseminar a estrateacutegia da responsabilizaccedilatildeo como forma de mostrar que a prevenccedilatildeo e o controle do crime natildeo pode de modo exclusivo recair mais sobre o Estado

De agora em diante varejistas industriais autoridades escolares empresas de transporte pais trabalhadores e desempregados teratildeo de dividir essa responsabilidade Na deacutecada de 1990 a poliacutetica criminal da responsabilizaccedilatildeo teve por efeito reduzir a dependecircncia para com o Estado e aumentar a dependecircncia para com o mercado Investimentos na criminalidade como dispositivos de seguranccedila satildeo cada vez mais impostos pelas forccedilas econocircmicas em detrimento da poliacutetica puacuteblica

Nas sociedades onde ocorrem divisotildees sociais e raciais

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profundas em que as taxas de criminalidade e os niacuteveis de inseguranccedila satildeo elevados onde soluccedilotildees sociais foram politicamente desacreditas aleacutem de haver um ceticismo crescente quanto agrave perspectiva de reintegraccedilatildeo dos antigos delinquumlentes um setor comercial em expansatildeo favorece o aumento da populaccedilatildeo carceraacuteria pondo em marcha uma cultura do encarceramento em massa nos paiacuteses democraacuteticos

A responsabilizaccedilatildeo de organismos natildeo estatais no combate agrave criminal idade provoca enormes disparidades no financiamento social e na rede de seguranccedila Esta deixa de ser garantida para todos por meio de um Estado soberano para converte-se num produto cuja distribuiccedilatildeo estaacute subordinada agraves forccedilas de mercado As classes subalternas que mais sofrem a criminal idade estatildeo incapacitadas de comprar seguranccedila de adaptar suas vidas cotidianas e de se organizar de forma eficaz contra o crime

Poliacuteticas sociais de prevenccedilatildeo da criminalidade foram seriamente atacadas em razatildeo das transformaccedilotildees poliacuteticas sociais e econocircmicas das uacuteltimas deacutecadas Tentativas de prevenccedilatildeo e de responsabilizaccedilatildeo satildeo solapadas por uma economia de livre mercado que exclui as massas do trabalho remunerado e que nutre ativamente o crime engendrando expectativas de consumidor insaciaacutevel gerando ao mesmo tempo novos niacuteveis de pobreza da crianccedila da disfunccedilatildeo da famiacutelia e de desigualdade social (GARLAND 1999 p77)

A emergecircncia de novos problemas sociais que desafiam os princiacutepios legitimadores do Estado moderno tende a acelerar poreacutem em si natildeo justifica o fracasso da burocracia oficial na resoluccedilatildeo dos atos infracionais na sociedade contemporacircnea Os sintomas aparentes de desordem de caos de aumento da impunidade etc que reinam na sociedade vatildeo muito aleacutem de uma poliacutetica criminal deliberada de afrouxamento do poder estatal como estrateacutegia de administrar os conflitos criminais

A crise de legitimidade estatal na gestatildeo do crime reforccedila a necessidade de pocircr em questatildeo a definiccedilatildeo de crime como verdade ontoloacutegica O propoacutesito do proacuteximo capiacutetulo eacute avaliar e discutir se os eventos sociais considerados problemaacuteticos e penalmente definidos como crimes na sociedade satildeo por esta reconhecidos e aceitos como tais na realidade

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Da Descriminalizaccedilatildeo agrave Aboliccedilatildeo da Pena

A crise profunda da justiccedila penal avalia Cervini (1995) estaacute associada ao fracasso da ideologia do tratamento que pretende em seus diversos niacuteveis resolver os custos individuais e sociais do delito a defasagem das leis com certas culturas a existecircncia da cifra negra6

aleacutem das contradiccedilotildees dogmaacuteticas No momento histoacuterico atual diz Cervine dois fatores favorecem

a tendecircncia de descriminalizaccedilatildeo do direito penal um individual outro social No primeiro caso a pena privativa de liberdade que diminui a possibilidade de adaptabilidade no segundo caso os efeitos sociais estigmatizadores depois de sua aplicaccedilatildeo Em termos sociais natildeo haacute uma soluccedilatildeo eficiente em reparar o custo do crime nem de supressatildeo do estigma de ex-presidiaacuterio

As soluccedilotildees que o sistema penal tem adotado para gerir o problema da criminalidade encontram um potente antiacutedoto quando se avalia a existecircncia da chamada cifra negra Essa afirma Cervine indica claramente que os fatos aos quais a lei denomina de delitos natildeo satildeo considerados como fatos agrave parte separados de outros aconteshycimentos Uma soma relevante de acontecimentos formalmente considerados delitos e teoricamente merecedores de aplicaccedilatildeo penal natildeo eacute considerada nem valorizada como tal pelas viacutetimas ou pelos agentes do sistema pessoalmente interpelados mediante delaccedilotildees concretas (CERVINI 1995 pl73)

Tais consideraccedilotildees colidem com as premissas utoacutepicas da sociedade de controle que busca incansavelmente definir e administrar o crime atraveacutes da diversificaccedilatildeo das penas de ajustes da reclusatildeo prisional de reforma eletrocircnica das prisotildees mais investimentos e maior eficiecircncia na burocraacutetica criminal A sociedade de controle diz Passetti (1999) natildeo atenta para o fato da existecircncia de uma sociedade sem penas seja em

6 Cervini (1995 p162) comenta que a cifra negra eacute produto da diferenccedila existente entre a criminalidade real quantidade de delitos cometidos num tempo e lugar determinados e a criminal idade aparente conhecida pelos oacutergatildeos de controle Ou seja um percentual substancial de delitos estaacute estruturalmente fora do alcance e do controle do direito penal colocando em xeque a credibilidade de todo o sistema

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razatildeo da cifra negra (diferenccedila entre infraccedilotildees denunciadas na poliacutecia e aquelas efetivamente julgadas) seja porque parte consideraacutevel das infraccedilotildees eacute resolvida sem a necessidade da formalidade juriacutedica do just07bull

A maioria dos conflitos cotidianos dentro das fanulias das empresas dos estabelecimentos de ensino das organizaccedilotildees profissionais dos sindicatos clubes ou associaccedilotildees privadas satildeo segundo Hulsman e Celis (1993) resolvidos sem ter de entrar no sistema penal O grande nuacutemero de encarcerados eacute insignificante diante da quantidade real de fatos puniacuteveis que ocorrem a todo instante raramente detectados pelo sistema penal O sistema penal eacute confrontado com uma espantosa soma de casos semelhantes poreacutem apenas alguns deles e de forma injusta satildeo tratados pelo sistema cuja prisatildeo se nutre diariamente de viacutetimas preferencias

Fora os delitos que natildeo pertencem ao chamado nuacutecleo duro da delinquumlecircncia como o terrorismo e a criminalidade organizada o sistema penal afirma Hulsman cria mais problemas do que contribuiccedilotildees para resolver

Diante disso o autor propotildee uma outra loacutegica Diz que um comportamento pode deixar de ser crime sem afetar os laccedilos de sociabilidade O homossexualismo cantado em prosa e verso por Platatildeo foi penalmente condenado pelo Estado moderno durante muito tempo A prostituiccedilatildeo convive com a proibiccedilatildeo sob ameaccedila penal ateacute a liberdade total ou passando por toda sorte de controle administrativo A embriaguez em si natildeo interessa agrave lei ocidental mas soacute indiretamente (dirigir embriagado) O mesmo tratamento diferencial ocorre em relaccedilatildeo ao uso e ao traacutefico de drogas Alguns paiacuteses condenam penalmente o uso e o traacutefico excluindo o consumo pessoal Outros soacute colocam no campo penal as drogas ditas pesadas excluindo as chamadas drogas leves8

7 Na opiniatildeo de Passeui (1999 p63) o que esta utopia natildeo admite mas permitia eacute que no lugar da ressocializaccedilatildeo e da futura reintegmccedilatildeo prevaleccedila o depoacutesito de corpos para os qu ai s os uacutenicos investimentos satildeo a diminui ccedilatildeo a zero da possibilidade de fuga e a rigorosa vigilacircncia apoacutes o sentenciaroento

Na avaliaccedilatildeo de Hulsman e Celis (1 993 plOI) natildeo exi stem nem crimes nem delitos mas apenas situaccedilotildees problemaacuteticas Sem a presenccedila e participaccedilatildeo das pessoas envolvidas nestas situaccedilotildees natildeo haacute como resolvecirc-las de forma humana Classificar um fato de crime significa excluir a priori ou tras saiacutedas poss iacuteveis limitando-se ao es tilo estatal punitivo dominado pelo pensamento juriacutedico distante da realidade

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o processo de globalizaccedilatildeo econocircmica e financeira apenas indiretamente contribui para aprofundar a crise do sistema de justiccedila penal nos paiacuteses capitalistas centrais e perifeacutericos As razotildees da falecircncia do modelo de poliacutetica criminal estatildeo associadas ao processo de reforma penal dos seacuteculos XVIII e XIX periacuteodo em que a sociedade burguesa adotou o principio da puniccedilatildeo generalizada por meio da teoria da humanizaccedilatildeo da pena A reforma do coacutedigo penal burguecircs diz Foucault (1987) converteu inuacutemeros problemas sociais em conflitos criminais estabeleceu uma classificaccedilatildeo metoacutedica dos delitos em termos de gravidade e hierarquia e como complemento modificou e converteu as prisotildees em locais privilegiados com o propoacutesito de recuperar os delinquumlentes infratores atraveacutes do tratamento ressocializador

Desde entatildeo todas as propostas adotadas visando a reforma do sistema penal natildeo tocaram e natildeo discutiram seriamente o significado do crime sua classificaccedilatildeo tampouco sua instituiccedilatildeo correlata a prisatildeo As teorias criminais da normalizaccedilatildeo e da defesa da lei e da ordem (toleracircncia zero) satildeo ilustrativas a esse respeito

A primeira vecirc no crime uma accedilatildeo racional oportunista Parte do pressuposto de que a sociedade atual eacute uma sociedade de risco em que o fenocircmeno criminal natildeo pode ser tratado como algo patoloacutegico mas uma questatildeo de oportunidade Propotildee desativar a burocracia estatal repressiva por ter falhado na tentativa de desarmar e de punir o autor do delito e transferir a responsabilidade do controle do crime aos setores da sociedade civil Grupos privados deveriam armar os alvos vulneraacuteveis criar obstaacuteculos defender suas casas carros cheques cartotildees de creacutedito etc Tais mudanccedilas tomariam as coisas mais difiacuteceis evitando que pessoas pertencentes aos diversos grupos sociais se convertessem em presas faacuteceis de accedilotildees criminais

A segunda (movimento da lei e da ordem) associa a banalizaccedilatildeo do crime agrave fraqueza das respostas das leis penais vigentes Por isso advoga a necessidade de uma perseguiccedilatildeo implacaacutevel de pequenos atos como jogar lixo no chatildeo e furtos ocasionais propondo o aumento da pena para os delinquumlentes ocasionais e a prisatildeo perpeacutetua para os delinquumlentes mais perigosos O que diferencia as teorias criminais em foco eacute mais uma questatildeo de estrateacutegia e natildeo de princiacutepios Ambas trabalham com a noccedilatildeo de crime como uma verdade social e juriacutedica

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A negaccedilatildeo do conceito de crime como um fato social normal constitui objeto de reflexatildeo das teorias da descriminalizaccedilatildeo e abolicionistas para as quais as definiccedilotildees abstratas de crime e de pena vigentes no coacutedigo penal natildeo correspondem agraves definiccedilotildees que delas fazem as pessoas reais A desqualificaccedilatildeo do discurso juriacutedico penal natildeo resulta portando das dificuldades da aplicaccedilatildeo da lei da ineficiecircncia dos oacutergatildeos de controle criados para administraacute-la ou ainda de seu reduzido alcance quando se compara a totalidade de crimes formalmente descritos e os que realmente satildeo solucionados

Uma soluccedilatildeo poliacutetica socialmente legiacutetima na soluccedilatildeo dos problemas sociais hoje definidos e classificados como problemas criminais natildeo pode limitar-se ao entendimento e agrave aceitaccedilatildeo do braccedilo punitivo estatal e de sua burocracia centralizadora como o melhor remeacutedio para gerir os conflitos penais existentes Portanto toma-se urgente questionar seriamente se os eventos sociais formalmente criminalizaacuteveis satildeo concebidos e aceitos como tais pelos agentes sociais direta e potencialmente envolvidos em tais conflitos

Isso implica admitir a possibilidade da sociedade resolver inuacutemeros problemas atualmente circunscritos no campo do direito penal fora do campo estatal punitivo Nesse sentido a responsabilidade pela soluccedilatildeo dos conflitos sob a tutela do direito penal seria transferida aos agentes direta e potencialmente envolvidos em situaccedilotildees problemaacuteticas (acusado viacutetima familiares Estado e demais interessados)

A atuaccedilatildeo da burocracia de justiccedila (poliacutecia e judiciaacuterio) se limitaria a mediar e natildeo intervir diretamente visando impor a melhor soluccedilatildeo para o conflito Para isso outras instacircncias juriacutedicas (campo civil e administrativo) poderiam ser acionadas em detrimento do pesado seletivo e ineficiente sistema de justiccedila penal estatal vigente que por meio de seus oacutergatildeos policiais judiciaacuterios e administrativos procura sem nunca poder encontrar a melhor soluccedilatildeo para o acusado seus familiares agrave vitima e a sociedade

Dois adolescentes (Japonecircs e Laacutezaro) praticaram mais um delito contra o patrimocircnio E daiacute Prendecirc-los ressocializaacute-Ios responsabilizar seus familiares Armar melhor determinados alvos sociais vulneraacuteveis que facilitam o roubo o furto

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Como ressocializar algueacutem que por razotildees conjunturais como o

desemprego e a crise econocircmica pratica um delito contra a propriedade se tais razotildees continuam a persistir Como responsabilizar seus familiares9 se a concepccedilatildeo nuclear de famiacutelia burguesa mudou

Para os defensores do movimento da lei e da ordem o Estado deve responder punindo de modo exemplar Entre os adeptos da normalizaccedilatildeo do crime o Estado deve preocupar-se em punir menos e criar uma nova estrateacutegia com O propoacutesito de armar mais as viacutetimas que os infratores

Tais movimentos natildeo tocam numa questatildeo central como o fazem os adeptos da descriminalizaccedilatildeo e da aboliccedilatildeo da pena para os quais a realidade atual propicia duas alternativas procurar outras repostas para os velhos e novos problemas questionando reduzindo e abolindo o crime e a prisatildeo ou restauraacute-la sob a condiccedilatildeo de aparelho de terror repressivo

9 Passetti (1995 p23) afirma que a situaccedilatildeo social dessas crianccedilas e adolescentes violentados permite desmistificar duas falaacutecias famiacutelias desestruturadas e o suposto acesso democraacutetico agrave escola O modelo de faTlllia vigente nas metroacutepoles natildeo corresponde mais agraves caracteriacutesticas da faTlllia modelar burguesa do capitalismo livre-concorrecircncia e natildeo pode mais ser restaurada como pretende o conservadorismo

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Referecircncias

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SANTOS Boaventura Sousa A crtica da razatildeo indolente contra o desperdfcio da experiecircncia Satildeo Paulo Cortez 2000 v 1

WACQUANT Lolc As prisotildees da miseacuteria Rio de Janeiro Zabar 2001

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Abstract

The current process of economic and financiaI globalization has elicited contradictory answers in the formulation of criminal policies by State bureaucracy On the one hand under strong influence of neoclassical economic thought there appears in the United Kingdom the theory of crime normalization qualifying the criminal act as a rational choice option a matter of opportunity according to which delinquents rational1y calculate their actions Such theory proposes to replace the classical model of criminal policy which relates the penal practice to the figure of the other the abnormal by a new model of risk society which sees a professional career in criminal acts On the other hand there appears in the United States the movement in defense of law and order which proposes no tolerance to crime by the amplification of penal right and the recrudescence of the State criminal answer For the defenders of decriminalization and penalabolitionism the utopia of control society which favors the increase of punisbment and target changes to administer crime ignores the existence of a society with no penalties which is manifested through the dark cipher the difference between reported infractions to the police and those really judged

Key words globalization state crime punishment decriminalization penalty abolishment

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Page 8: INTRODUÇÃO AO DEBATE SOBRE AS POLíTICAS OFICIAIS NO ... · sem penas a qual se manifesta através da cifra negra, ... vinculados em razão do potencial revolucionário da informação

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a pequena delinquumlecircncia e reprimir os mendigos e os sem-teto nos bairros deserdados Isso vem segundo Wacquant (2001) acompanhado da vulgarizaccedilatildeo da teoria da vidraccedila quebrada que eacute um empreacutestimo do ditado popular quem rouba um ovo rouba um boi A premissa dessa teoria conservadora eacute lutar passo a passo contra os pequenos distuacuterbios cotidianos para reduzir as grandes patologias criminais

Sem comprovaccedilatildeo empiacuterica essa teoria serve de aacutelibi para conter o medo que as classes meacutedia e alta tecircm dos pobres nos espaccedilos puacuteblicos (ruas parques estaccedilotildees ferroviaacuterias ocircnibus metrocirc etc) A luta que visa eliminar a criminalidade atua em trecircs frentes a) aumento em 10 vezes o efetivo e equipamentos das brigadas b) restituiccedilatildeo das obrigaccedilotildees operacionais aos comissaacuterios de bairro com obrigaccedilatildeo quantitativa de resultados c) implantaccedilatildeo de um sistema de radar informatizado (arquivo central sinaleacutetico e cartograacutefico consultaacutevel em microcomputadores a bordo dos carros de patrulha) Esse conjunto de medidas possibilita uma intervenccedilatildeo implacaacutevel instantacircnea e inflexiacutevel da lei sobre os delitos menores tais como o jogo a mendicacircncia os atentados aos costumes a simples ameaccedila etc

Em termos monetaacuterios ocorreu uma extraordinaacuteria expansatildeo dos recursos destinados agrave manutenccedilatildeo da ordem em NY O orccedilamento policial superou em quatro vezes as verbas destinadas aos hospitais puacuteblicos Essa tendecircncia pode ser ainda mais acentuada nos paiacuteses capitalistas perifeacutericos que entram num processo passivo de globalizaccedilatildeo decretando o fim do Estado-naccedilatildeo

Em termos poliacuteticos o rebaixamento do Legislativo em benefiacutecio do Executivo implica no enfraquecimento do contratual em favor do regulamentar Essa inversatildeo institucional diz Charvet (1977) faz com que a produccedilatildeo da norma e sua concretizaccedilatildeo sejam subtraiacutedas de um compromisso puacuteblico em que indiviacuteduos tenham participado

Para os defensores do Estado policial trata-se no entanto do dever de impor a obrigaccedilatildeo do trabalho assalariado precaacuterio O EstadoshyProvidecircncia norte-americano fracassou devido ao seu programa de ajuda agrave pobreza porque era permissivo e natildeo impunha obrigaccedilatildeo estrita de comportamento aos seus beneficiaacuterios O desemprego deve-se menos agraves opccedilotildees de mercado e mais aos problemas de funcionamento pessoal

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dos desempregados Empregos sujos e mal pagos haacute muitos A situaccedilatildeo de desemprego eacute portanto uma questatildeo de escolha e natildeo de escassez

Uma questatildeo dessa magnitude natildeo pode ser deixada somente agrave boa vontade e agrave iniciativa dos que trabalham por isso devem-se adotar medidas capazes de tornar o trabalho assalariado um dever ciacutevico obrigatoacuterio semelhante ao que se verifica no serviccedilo militar O dever da generalizaccedilatildeo do trabalho precaacuterio deve ser feito atraveacutes do braccedilo punitivo do Estado A poliacutetica social afirma Wacquant desistiu de cumprir a meta de reformar a sociedade preocupando-se em supervisionar a vida dos pobres

De acordo com a arquitetura da ordem criminal norte-americana explicaccedilotildees estruturais da pobreza carecem de plausibilidade Trata-se de uma questatildeo mais relacionada ao comportamento dos pobres do que de barreiras sociais Portanto eacute o comportamento que deve mudar mais do que a sociedade

A existecircncia de um Estado paternalista apenas se justifica se este vier acompanhado de uma ampla estrutura punitiva Deve-se por exemplo utilizar da legislaccedilatildeo de apoio agraves crianccedilas para exigir dos pais ausentes que trabalhem para prover as necessidades de suas farm1ias Poliacuteticas paternalistas de amparo agrave pobreza exigindo a contrapartida do trabalho oferecem mais esperanccedila de melhorar a pobreza do que poliacuteticas estatais distributivas

A proliferaccedilatildeo das incivilidades dizem os defensores da nova ordem criminal eacute o caminho promissor para escalada da delinquumlecircncia As primeiras condutas desviantes quando natildeo recebem puniccedilotildees exemplares estigmatizam um bairro e nele polarizam outros desvios como roubo traacutefico de drogas etc As causas coletivas da accedilatildeo criminal satildeo meras desculpas porque natildeo constituem mecanismos geradores de comportamentos delinquumlentes O crime deve ser imputado ao indiviacuteduo e natildeo agrave sociedade

Natildeo punir os autores das violecircncias urbanas significa alimentar a escalada da delinquumlecircncia Independente da fratura social eacute inaceitaacutevel procurar desculpas para atos indesculpaacuteveis Caso contraacuterio todos os desempregados estariam autorizados a roubar pilhar e depredar A forccedila desse discurso que prega o aumento da repressatildeo criminal estaacute associada ao processo mais geral de globalizaccedilatildeo em curso o qual

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impotildee reformas estruturais no aparato de Estado cujo efeito tem sido o aumento da polarizaccedilatildeo econocircmica entre grupos e classes sociais em diversos paiacuteses

O processo de globalizaccedilatildeo econocircmica e financeira tem sido feacutertil na produccedilatildeo de respostas teoacutericas distintas no controle do crime nas sociedades contemporacircneas O Estado deve atuar entre os adeptos do conceito de normalizaccedilatildeo do crime motivando setores da sociedade civil a oferecer respostas no campo preventivo Nesse sentido a gestatildeo e o controle do crime deveratildeo preocupar-se mais com a vitima potencial e menos com o delinquumlente Armar os alvos que propiciam inumeraacuteveis oportunidades ao crime eacute o objetivo central desse modelo de poliacutetica criminal

Enquanto isso os adeptos do chamado realismo penal sustentam que a banalizaccedilatildeo do crime na sociedade proveacutem da complacecircncia e do enfraquecimento da resposta da lei diante dos agentes que praticam atos criminais No plano das poliacuteticas oficiais essa dualidade de concepccedilotildees teoacutericas tem permeado o discurso e a accedilatildeo da burocracia estatal no campo penal Tais contradiccedilotildees tendem a provocar uma taxa de legitimidade social decrescente da confianccedila do Estado na gestatildeo e controle do crime

Contradiccedilotildees da Criminologia Oficial da Prevenccedilatildeo ao Aumento das Prisocirces

A criminologia oficial informa Garland (1999) mostra-se dualista polarizada e ambivalente Ao lado de uma criminologia do eu que transforma o criminoso em um consumidor racional semelhante agrave viacutetima opera-se ao mesmo tempo uma criminologia do outro do paacuteria do ser ameaccedilador A primeira eacute invocada para banalizar e promover a accedilatildeo preventiva a segunda para provocar o medo as hostilidades populares e afirmar o peso punitivo do Estado (GARLAND 1999 p75)

No decorrer dos anos 90 verifica-se uma ambivalecircncia do discurso oficial Fala-se menos em guerra contra o crime e mais na existecircncia de limites do poder do Estado Documentos oficiais e manifestos poliacuteticos ressaltam que os organismos governamentais natildeo podem combater e controlar a criminalidade isoladamente Em razatildeo

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disso propotildee-se uma melhor gestatildeo dos riscos e dos recursos numa reduccedilatildeo do medo dos custos da criminalidade da justiccedila criminal e maior amparo agraves viacutetimas

Poreacutem nessa uacuteltima deacutecada tentativas expliacutecitas de expressar a coacutelera e o ressentimento do puacuteblico tornaram-se um tema recorrente da retoacuterica que acompanha a legislaccedilatildeo penal e a tomada de decisotildees Os sentimentos da viacutetima da farrulia de um puacuteblico temeroso ultrajado foram constantemente invocados em apoio agrave criaccedilatildeo de novas leis e poliacuteticas penais em que o castigo tornou-se em objeto a ser venerado

Se por um lado a sociedade precisa adaptar-se ao crime concebendo-o como uma atividade profissional normal por outro o realismo penal sugere a divisatildeo do crime em duas categorias crimes violentos como terrorismo assassinato estupro sequumlestro roubo incecircndio criminoso etc exigem uma resposta ultra repressiva cabendo agrave poliacutetica responder a essa expectativa junto ao puacuteblico Jaacute os crimes ocasionais como roubo de veiacuteculos arrombamentos vandalismo e furtos diversos natildeo podem esperar sucesso na accedilatildeo exclusiva da poliacutecia (GARLAND 1999p64)

Esse comportamento dualista da poliacutetica oficial do Estado que admite seu fracasso parcial na soluccedilatildeo dos conflitos penais tambeacutem retira das gavetas enferrujadas da histoacuteria do modelo penal claacutessico punitivo antigas e falaciosas virtudes com o objetivo de administrar o crime Nessa direccedilatildeo a prisatildeo tende a prosperar Por quecirc Porque ela funciona afirmam seus defensores As despesas penitenciaacuterias satildeo investimentos pensado e rentaacutevel para a sociedade A triplicaccedilatildeo da populaccedilatildeo carceraacuteria nos Estados Unidos (1975 e 1989) teria apenas por seu efeito neutralizante evitado 390000 assassinatos estupros e roubos com violecircncia

Na falta da pena de morte mostra Wacquant (2001) a reclusatildeo eacute de longe o meio mais eficaz de impedir os criminosos comprovados e notoacuterios de matar estuprar roubar e furtar Um sistema judiciaacuterio natildeo tem que se preocupar com as razotildees que levam algueacutem a cometer um crime A justiccedila estaacute aiacute para punir os culpados indenizar os inocentes e defender os interesses dos cidadatildeos que respeitam a lei Por isso o Estado deve punir com eficaacutecia aqueles que insistem em transgredir a lei

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Essa velha receita de accedilatildeo repressiva estatal deve prevalecer nos EUA e em outros paiacuteses4

bull Comportamentos criminosos ou protocriminosos como jogar lixo na rua insultar pichar e cometer atos de vandalismo devem ser reprimidos com firmeza a fim de impedir que comportamentos criminosos mais graves se desenvolvam Toma-se igualmente necessaacuterio restaurar o moral dos policiais que foram submetidos anos a fio ao trabalho daninho dos socioacutelogos e dos criminologistas que insistem em dizer que o crime eacute causado pela pobreza fora da alccedilada da poliacutecia

Mediante uma accedilatildeo penal resolutamente agressiva as instituiccedilotildees policiais e penitenciaacuterias na sociedade em tempos neoliberais pretendem reafirmar a autoridade moral do Estado no momento em que ele proacuteprio eacute atingido pela sua impotecircncia econocircmica O aumento da repressatildeo estatal consequumlecircncia da nova ordem criminal em vigor vem acompanhado da privatizaccedilatildeo do sistema penitenciaacuterio A multiplicaccedilatildeo de prisotildees deve acompanhar o aumento da produccedilatildeo juriacutedica de criminosos O mercado da puniccedilatildeo um negoacutecio promissor que proporciona aos detentores de tiacutetulos de accedilotildees das empresas de seguranccedila rendimentos suculentos estaacute nascendo

Wacquant (2001) afirma que as causas do crescimento da populaccedilatildeo carceraacuteria norte-americana estatildeo vinculadas aos pequenos delinquumlentes e particularmente dos toxicocircmanos Ao contraacuterio do discurso poliacutetico e midiaacutetico dominante as prisotildees estatildeo repletas natildeo de criminosos perigosos e violentos mas de vulgares condenados pelo direito comum por negoacutecios com drogas furto roubo ou simples atentados agrave ordem puacuteblica envolvendo parcelas precarizadas das classes subalternas

4 Charvet (1977) mostra um exemplo ilustrativo dessa nova estrateacutegica na RFA Enquanto os cabeleireiros foram convidados a indicar as conversaccedilotildees suspeitas de seus clientes coube aos bombeiros a tarefa adicional de vigiar os veiacuteculos suspeitos reinventando desse modo a delaccedilatildeo de massa Esse modelo de reengenharia estatal repressiva eacute justificado em nome da doutrina da seguranccedila cujo objetivo eacute decretar toleracircncia zero aos delinquumlentes Enquanto as prisotildees se multiplicam nota-se ao mesmo tempo uma notaacutevel estabilidade por crimes de sangue e de costume

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Em 1998 o nuacutemero de condenados por contenciosos natildeoshyviolentos reclusos rompeu sozinha a cifra simboacutelica do milhatildeo Nas prisotildees 6 em cada 10 condenados satildeo negros ou latinos Menos da metade tinha emprego em tempo integral no momento de ser posta atraacutes das grades (WACQUANT 2001 p83)

Essa mudanccedila de objetivo e de resultado reflete o abandono do ideal da reabilitaccedilatildeo depois das criacuteticas cruzadas da direita e da esquerda na deacutecada de 70 e de sua substituiccedilatildeo por uma nova penalogia norte-americana cujo objetivo natildeo eacute mais prevenir o crime nem tratar os delinquumlentes objetivando o seu eventual retorno agrave sociedade O propoacutesito da nova ordem criminal nos EUA eacute isolar grupos considerados perigosos e neutralizar seus membros mais agressivos mediante uma seacuterie padronizada de compOltamentos

O reconhecimento pelos teoacutericos da normalizaccedilatildeo do crime e pelos adeptos de uma poliacutetica criminal ultra-repressiva da incapacidade da burocracia estatal de gerir e controlar os litiacutegios criminais na sociedade atual reafirma a viabilidade de fazer um questionamento teoacuterico e poliacutetico mais profundo dos paradigmas que aceitam como um dado a priori a existecircncia do crime Trata-se portanto de acrescentar e analisar outros movimentos poliacuteticoshyteoacutericos para uma melhor compreensatildeo das razotildees da falecircncia do modelo penal estatal existente

Globalizaccedilatildeo e Outros Fundamentos da Accedilatildeo Criminal

A justiccedila como aparelho de Estado acha-se em dificuldades para cumprir sua missatildeo de regulaccedilatildeo dos conflitos porque comenta Charvet (1977) sua ideologia juriacutedica estaacute em crise sua legitimidade eacute contestada pelos dominados e sua eficiecircncia pelos dominantes Na Franccedila verifica-se o avanccedilo das forccedilas da ordem atraveacutes do crescimento dos efetivos policiais judiciaacuterios e das forccedilas militares (guardas nas praias rodovias e outros lugares da vida puacuteblica) Diante da crise fiscal que impede o Estado de colocar um policial atraacutes de cada cidadatildeo tende-se a criar estrateacutegias de modo a redescobrir e converter em um policial cada cidadatildeo

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A incapacidade da burocracia estatal de regular os conflitos criminais vai aleacutem do processo atual de globalizaccedilatildeo econocircmica e financeira Adorno (1999) fala de um novo paradigma que aponta para algo aleacutem do crimes

O surgimento do Estado moderno caracterizado pelo monopoacutelio da violecircncia e pacificaccedilatildeo social foi acompanhado pela racionalizaccedilatildeo do direito atraveacutes dos seguintes princiacutepios positividade (vontade de um legislador soberano que atraveacutes de meios juriacutedicos de organizaccedilatildeo regulamenta as atividades da vida social) legalidade (natildeo reconhece outro ordenamento juriacutedico que natildeo seja estatal e outra forma de ordenamento estatal que natildeo seja lei)formalidade (o direito moderno define o domiacutenio onde se pode exercer legitimamente o livre arbiacutetrio das pessoas privadas) Esses princiacutepios afirma Adorno estatildeo sendo esfacelados

Por volta de 1950 ocorreu em todos os paiacuteses ocidentais um aumento substancial dos crimes contra as pessoas e ainda mais contra o patrimocircnio Um maior nuacutemero de pessoas passou a violar as leis penais e um grande nuacutemero de comportamentos e bens protegidos pelas leis penais ficou mais vulneraacutevel agrave ofensa e ao ataque

O problema natildeo reside nos crimes em si mas na maior ou menor disposiccedilatildeo social em aceitaacute-los e conviver com eles Ocorre que na sociedade atual essa toleracircncia diz Dahrendorf apud Adorno (1999) teria chegado ao limite haja visto (sic) as reaccedilotildees e a ansiedade puacuteblica diante da crescente ameaccedila do crime e da incapacidade da burocracia estatal em resolvecirc-lo

A erosatildeo da lei e da ordem estaacute vinculada agrave maior probabilidade de um criminoso se manter oculto hoje comparativamente ao passado Uma taxa despreziacutevel dos crimes cometidos eacute resolvida em razatildeo do descaso da poliacutetica pelos delinquumlentes conhecidos desistecircncia deliberada e afrouxamento das puniccedilotildees ou incapacidade de se lidar com as infraccedilotildees A impunidade aumenta e potildee em questatildeo a eficaacutecia das normas Isso provoca a sensaccedilatildeo de inexistecircncia das leis ou

5 O novo paradigma afirma Adorno (1999 p77) diz respeito agrave mudanccedila de hiacutebitos agrave exacerbaccedilatildeo de novos conflitos sociais agrave adoccedilatildeo de soluccedilotildees que desafiam tradiccedilotildees democraacuteticas agrave demarcaccedilatildeo de novas fronteiras sociais [ ] ao sentimento de desordem e caos que se espelha na ausecircncia de justiccedila social

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quando invocadas resultam sem efeito As sociedades contemporacircneas convi vem com o decliacutenio das sanccedilotildees A impunidade torna-se cotidiana diante da decretada incapacidade da burocracia estatal de cuidar da seguranccedila dos cidadatildeos de proteger seus bens materiais e simboacutelicos

Os mecanismos de pressatildeo social (que atuam sobre o comportamento dos sujeitos) que operam sobretudo na esfera da moralidade puacuteblica e privada natildeo parecem suscitar nem o sentimento de medo nem sequer o de anguacutestia diante das possibilidades sempre abertas de violaccedilatildeo das normas sociais As sociedades urbanas complexas comenta Adorno (1999) liberaram o homem do controle social Diante de tantas incertezas cresce por parte da sociedade uma obsessatildeo punitiva reivindicando mais ordem social

Isso natildeo impede o surgimento do modelo de funcionamento da sociedade de risco que potildee em movimento uma superestrutura de prevenccedilatildeo e de seguranccedila por meio da proliferaccedilatildeo das sociedades de seguro e de mecanismos de vigilacircncia privada com o objetivo de enfrentar o medo os perigos e ameaccedilas que tornam a vida humana incerta (ADORNO 1999 plOl-102)

Um poliacutetica de responsabilizaccedilatildeo individual atraveacutes de medidas repressivas voltadas para os jovens delinquumlentes como a reduccedilatildeo da idade para efeitos de responsabilidade penal e instauraccedilatildeo da responsabilidade dos pais em mateacuteria civil e penal tem sido discutida pelos parlamentares europeus Enveredando-se pelo caminho de mais Estado econocircmico e menos Estado social cria-se e justifica-se o mito da inevitabilidade da escalada do crime para disseminar a estrateacutegia da responsabilizaccedilatildeo como forma de mostrar que a prevenccedilatildeo e o controle do crime natildeo pode de modo exclusivo recair mais sobre o Estado

De agora em diante varejistas industriais autoridades escolares empresas de transporte pais trabalhadores e desempregados teratildeo de dividir essa responsabilidade Na deacutecada de 1990 a poliacutetica criminal da responsabilizaccedilatildeo teve por efeito reduzir a dependecircncia para com o Estado e aumentar a dependecircncia para com o mercado Investimentos na criminalidade como dispositivos de seguranccedila satildeo cada vez mais impostos pelas forccedilas econocircmicas em detrimento da poliacutetica puacuteblica

Nas sociedades onde ocorrem divisotildees sociais e raciais

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profundas em que as taxas de criminalidade e os niacuteveis de inseguranccedila satildeo elevados onde soluccedilotildees sociais foram politicamente desacreditas aleacutem de haver um ceticismo crescente quanto agrave perspectiva de reintegraccedilatildeo dos antigos delinquumlentes um setor comercial em expansatildeo favorece o aumento da populaccedilatildeo carceraacuteria pondo em marcha uma cultura do encarceramento em massa nos paiacuteses democraacuteticos

A responsabilizaccedilatildeo de organismos natildeo estatais no combate agrave criminal idade provoca enormes disparidades no financiamento social e na rede de seguranccedila Esta deixa de ser garantida para todos por meio de um Estado soberano para converte-se num produto cuja distribuiccedilatildeo estaacute subordinada agraves forccedilas de mercado As classes subalternas que mais sofrem a criminal idade estatildeo incapacitadas de comprar seguranccedila de adaptar suas vidas cotidianas e de se organizar de forma eficaz contra o crime

Poliacuteticas sociais de prevenccedilatildeo da criminalidade foram seriamente atacadas em razatildeo das transformaccedilotildees poliacuteticas sociais e econocircmicas das uacuteltimas deacutecadas Tentativas de prevenccedilatildeo e de responsabilizaccedilatildeo satildeo solapadas por uma economia de livre mercado que exclui as massas do trabalho remunerado e que nutre ativamente o crime engendrando expectativas de consumidor insaciaacutevel gerando ao mesmo tempo novos niacuteveis de pobreza da crianccedila da disfunccedilatildeo da famiacutelia e de desigualdade social (GARLAND 1999 p77)

A emergecircncia de novos problemas sociais que desafiam os princiacutepios legitimadores do Estado moderno tende a acelerar poreacutem em si natildeo justifica o fracasso da burocracia oficial na resoluccedilatildeo dos atos infracionais na sociedade contemporacircnea Os sintomas aparentes de desordem de caos de aumento da impunidade etc que reinam na sociedade vatildeo muito aleacutem de uma poliacutetica criminal deliberada de afrouxamento do poder estatal como estrateacutegia de administrar os conflitos criminais

A crise de legitimidade estatal na gestatildeo do crime reforccedila a necessidade de pocircr em questatildeo a definiccedilatildeo de crime como verdade ontoloacutegica O propoacutesito do proacuteximo capiacutetulo eacute avaliar e discutir se os eventos sociais considerados problemaacuteticos e penalmente definidos como crimes na sociedade satildeo por esta reconhecidos e aceitos como tais na realidade

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Da Descriminalizaccedilatildeo agrave Aboliccedilatildeo da Pena

A crise profunda da justiccedila penal avalia Cervini (1995) estaacute associada ao fracasso da ideologia do tratamento que pretende em seus diversos niacuteveis resolver os custos individuais e sociais do delito a defasagem das leis com certas culturas a existecircncia da cifra negra6

aleacutem das contradiccedilotildees dogmaacuteticas No momento histoacuterico atual diz Cervine dois fatores favorecem

a tendecircncia de descriminalizaccedilatildeo do direito penal um individual outro social No primeiro caso a pena privativa de liberdade que diminui a possibilidade de adaptabilidade no segundo caso os efeitos sociais estigmatizadores depois de sua aplicaccedilatildeo Em termos sociais natildeo haacute uma soluccedilatildeo eficiente em reparar o custo do crime nem de supressatildeo do estigma de ex-presidiaacuterio

As soluccedilotildees que o sistema penal tem adotado para gerir o problema da criminalidade encontram um potente antiacutedoto quando se avalia a existecircncia da chamada cifra negra Essa afirma Cervine indica claramente que os fatos aos quais a lei denomina de delitos natildeo satildeo considerados como fatos agrave parte separados de outros aconteshycimentos Uma soma relevante de acontecimentos formalmente considerados delitos e teoricamente merecedores de aplicaccedilatildeo penal natildeo eacute considerada nem valorizada como tal pelas viacutetimas ou pelos agentes do sistema pessoalmente interpelados mediante delaccedilotildees concretas (CERVINI 1995 pl73)

Tais consideraccedilotildees colidem com as premissas utoacutepicas da sociedade de controle que busca incansavelmente definir e administrar o crime atraveacutes da diversificaccedilatildeo das penas de ajustes da reclusatildeo prisional de reforma eletrocircnica das prisotildees mais investimentos e maior eficiecircncia na burocraacutetica criminal A sociedade de controle diz Passetti (1999) natildeo atenta para o fato da existecircncia de uma sociedade sem penas seja em

6 Cervini (1995 p162) comenta que a cifra negra eacute produto da diferenccedila existente entre a criminalidade real quantidade de delitos cometidos num tempo e lugar determinados e a criminal idade aparente conhecida pelos oacutergatildeos de controle Ou seja um percentual substancial de delitos estaacute estruturalmente fora do alcance e do controle do direito penal colocando em xeque a credibilidade de todo o sistema

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razatildeo da cifra negra (diferenccedila entre infraccedilotildees denunciadas na poliacutecia e aquelas efetivamente julgadas) seja porque parte consideraacutevel das infraccedilotildees eacute resolvida sem a necessidade da formalidade juriacutedica do just07bull

A maioria dos conflitos cotidianos dentro das fanulias das empresas dos estabelecimentos de ensino das organizaccedilotildees profissionais dos sindicatos clubes ou associaccedilotildees privadas satildeo segundo Hulsman e Celis (1993) resolvidos sem ter de entrar no sistema penal O grande nuacutemero de encarcerados eacute insignificante diante da quantidade real de fatos puniacuteveis que ocorrem a todo instante raramente detectados pelo sistema penal O sistema penal eacute confrontado com uma espantosa soma de casos semelhantes poreacutem apenas alguns deles e de forma injusta satildeo tratados pelo sistema cuja prisatildeo se nutre diariamente de viacutetimas preferencias

Fora os delitos que natildeo pertencem ao chamado nuacutecleo duro da delinquumlecircncia como o terrorismo e a criminalidade organizada o sistema penal afirma Hulsman cria mais problemas do que contribuiccedilotildees para resolver

Diante disso o autor propotildee uma outra loacutegica Diz que um comportamento pode deixar de ser crime sem afetar os laccedilos de sociabilidade O homossexualismo cantado em prosa e verso por Platatildeo foi penalmente condenado pelo Estado moderno durante muito tempo A prostituiccedilatildeo convive com a proibiccedilatildeo sob ameaccedila penal ateacute a liberdade total ou passando por toda sorte de controle administrativo A embriaguez em si natildeo interessa agrave lei ocidental mas soacute indiretamente (dirigir embriagado) O mesmo tratamento diferencial ocorre em relaccedilatildeo ao uso e ao traacutefico de drogas Alguns paiacuteses condenam penalmente o uso e o traacutefico excluindo o consumo pessoal Outros soacute colocam no campo penal as drogas ditas pesadas excluindo as chamadas drogas leves8

7 Na opiniatildeo de Passeui (1999 p63) o que esta utopia natildeo admite mas permitia eacute que no lugar da ressocializaccedilatildeo e da futura reintegmccedilatildeo prevaleccedila o depoacutesito de corpos para os qu ai s os uacutenicos investimentos satildeo a diminui ccedilatildeo a zero da possibilidade de fuga e a rigorosa vigilacircncia apoacutes o sentenciaroento

Na avaliaccedilatildeo de Hulsman e Celis (1 993 plOI) natildeo exi stem nem crimes nem delitos mas apenas situaccedilotildees problemaacuteticas Sem a presenccedila e participaccedilatildeo das pessoas envolvidas nestas situaccedilotildees natildeo haacute como resolvecirc-las de forma humana Classificar um fato de crime significa excluir a priori ou tras saiacutedas poss iacuteveis limitando-se ao es tilo estatal punitivo dominado pelo pensamento juriacutedico distante da realidade

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o processo de globalizaccedilatildeo econocircmica e financeira apenas indiretamente contribui para aprofundar a crise do sistema de justiccedila penal nos paiacuteses capitalistas centrais e perifeacutericos As razotildees da falecircncia do modelo de poliacutetica criminal estatildeo associadas ao processo de reforma penal dos seacuteculos XVIII e XIX periacuteodo em que a sociedade burguesa adotou o principio da puniccedilatildeo generalizada por meio da teoria da humanizaccedilatildeo da pena A reforma do coacutedigo penal burguecircs diz Foucault (1987) converteu inuacutemeros problemas sociais em conflitos criminais estabeleceu uma classificaccedilatildeo metoacutedica dos delitos em termos de gravidade e hierarquia e como complemento modificou e converteu as prisotildees em locais privilegiados com o propoacutesito de recuperar os delinquumlentes infratores atraveacutes do tratamento ressocializador

Desde entatildeo todas as propostas adotadas visando a reforma do sistema penal natildeo tocaram e natildeo discutiram seriamente o significado do crime sua classificaccedilatildeo tampouco sua instituiccedilatildeo correlata a prisatildeo As teorias criminais da normalizaccedilatildeo e da defesa da lei e da ordem (toleracircncia zero) satildeo ilustrativas a esse respeito

A primeira vecirc no crime uma accedilatildeo racional oportunista Parte do pressuposto de que a sociedade atual eacute uma sociedade de risco em que o fenocircmeno criminal natildeo pode ser tratado como algo patoloacutegico mas uma questatildeo de oportunidade Propotildee desativar a burocracia estatal repressiva por ter falhado na tentativa de desarmar e de punir o autor do delito e transferir a responsabilidade do controle do crime aos setores da sociedade civil Grupos privados deveriam armar os alvos vulneraacuteveis criar obstaacuteculos defender suas casas carros cheques cartotildees de creacutedito etc Tais mudanccedilas tomariam as coisas mais difiacuteceis evitando que pessoas pertencentes aos diversos grupos sociais se convertessem em presas faacuteceis de accedilotildees criminais

A segunda (movimento da lei e da ordem) associa a banalizaccedilatildeo do crime agrave fraqueza das respostas das leis penais vigentes Por isso advoga a necessidade de uma perseguiccedilatildeo implacaacutevel de pequenos atos como jogar lixo no chatildeo e furtos ocasionais propondo o aumento da pena para os delinquumlentes ocasionais e a prisatildeo perpeacutetua para os delinquumlentes mais perigosos O que diferencia as teorias criminais em foco eacute mais uma questatildeo de estrateacutegia e natildeo de princiacutepios Ambas trabalham com a noccedilatildeo de crime como uma verdade social e juriacutedica

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A negaccedilatildeo do conceito de crime como um fato social normal constitui objeto de reflexatildeo das teorias da descriminalizaccedilatildeo e abolicionistas para as quais as definiccedilotildees abstratas de crime e de pena vigentes no coacutedigo penal natildeo correspondem agraves definiccedilotildees que delas fazem as pessoas reais A desqualificaccedilatildeo do discurso juriacutedico penal natildeo resulta portando das dificuldades da aplicaccedilatildeo da lei da ineficiecircncia dos oacutergatildeos de controle criados para administraacute-la ou ainda de seu reduzido alcance quando se compara a totalidade de crimes formalmente descritos e os que realmente satildeo solucionados

Uma soluccedilatildeo poliacutetica socialmente legiacutetima na soluccedilatildeo dos problemas sociais hoje definidos e classificados como problemas criminais natildeo pode limitar-se ao entendimento e agrave aceitaccedilatildeo do braccedilo punitivo estatal e de sua burocracia centralizadora como o melhor remeacutedio para gerir os conflitos penais existentes Portanto toma-se urgente questionar seriamente se os eventos sociais formalmente criminalizaacuteveis satildeo concebidos e aceitos como tais pelos agentes sociais direta e potencialmente envolvidos em tais conflitos

Isso implica admitir a possibilidade da sociedade resolver inuacutemeros problemas atualmente circunscritos no campo do direito penal fora do campo estatal punitivo Nesse sentido a responsabilidade pela soluccedilatildeo dos conflitos sob a tutela do direito penal seria transferida aos agentes direta e potencialmente envolvidos em situaccedilotildees problemaacuteticas (acusado viacutetima familiares Estado e demais interessados)

A atuaccedilatildeo da burocracia de justiccedila (poliacutecia e judiciaacuterio) se limitaria a mediar e natildeo intervir diretamente visando impor a melhor soluccedilatildeo para o conflito Para isso outras instacircncias juriacutedicas (campo civil e administrativo) poderiam ser acionadas em detrimento do pesado seletivo e ineficiente sistema de justiccedila penal estatal vigente que por meio de seus oacutergatildeos policiais judiciaacuterios e administrativos procura sem nunca poder encontrar a melhor soluccedilatildeo para o acusado seus familiares agrave vitima e a sociedade

Dois adolescentes (Japonecircs e Laacutezaro) praticaram mais um delito contra o patrimocircnio E daiacute Prendecirc-los ressocializaacute-Ios responsabilizar seus familiares Armar melhor determinados alvos sociais vulneraacuteveis que facilitam o roubo o furto

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Como ressocializar algueacutem que por razotildees conjunturais como o

desemprego e a crise econocircmica pratica um delito contra a propriedade se tais razotildees continuam a persistir Como responsabilizar seus familiares9 se a concepccedilatildeo nuclear de famiacutelia burguesa mudou

Para os defensores do movimento da lei e da ordem o Estado deve responder punindo de modo exemplar Entre os adeptos da normalizaccedilatildeo do crime o Estado deve preocupar-se em punir menos e criar uma nova estrateacutegia com O propoacutesito de armar mais as viacutetimas que os infratores

Tais movimentos natildeo tocam numa questatildeo central como o fazem os adeptos da descriminalizaccedilatildeo e da aboliccedilatildeo da pena para os quais a realidade atual propicia duas alternativas procurar outras repostas para os velhos e novos problemas questionando reduzindo e abolindo o crime e a prisatildeo ou restauraacute-la sob a condiccedilatildeo de aparelho de terror repressivo

9 Passetti (1995 p23) afirma que a situaccedilatildeo social dessas crianccedilas e adolescentes violentados permite desmistificar duas falaacutecias famiacutelias desestruturadas e o suposto acesso democraacutetico agrave escola O modelo de faTlllia vigente nas metroacutepoles natildeo corresponde mais agraves caracteriacutesticas da faTlllia modelar burguesa do capitalismo livre-concorrecircncia e natildeo pode mais ser restaurada como pretende o conservadorismo

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WACQUANT Lolc As prisotildees da miseacuteria Rio de Janeiro Zabar 2001

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Abstract

The current process of economic and financiaI globalization has elicited contradictory answers in the formulation of criminal policies by State bureaucracy On the one hand under strong influence of neoclassical economic thought there appears in the United Kingdom the theory of crime normalization qualifying the criminal act as a rational choice option a matter of opportunity according to which delinquents rational1y calculate their actions Such theory proposes to replace the classical model of criminal policy which relates the penal practice to the figure of the other the abnormal by a new model of risk society which sees a professional career in criminal acts On the other hand there appears in the United States the movement in defense of law and order which proposes no tolerance to crime by the amplification of penal right and the recrudescence of the State criminal answer For the defenders of decriminalization and penalabolitionism the utopia of control society which favors the increase of punisbment and target changes to administer crime ignores the existence of a society with no penalties which is manifested through the dark cipher the difference between reported infractions to the police and those really judged

Key words globalization state crime punishment decriminalization penalty abolishment

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Page 9: INTRODUÇÃO AO DEBATE SOBRE AS POLíTICAS OFICIAIS NO ... · sem penas a qual se manifesta através da cifra negra, ... vinculados em razão do potencial revolucionário da informação

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dos desempregados Empregos sujos e mal pagos haacute muitos A situaccedilatildeo de desemprego eacute portanto uma questatildeo de escolha e natildeo de escassez

Uma questatildeo dessa magnitude natildeo pode ser deixada somente agrave boa vontade e agrave iniciativa dos que trabalham por isso devem-se adotar medidas capazes de tornar o trabalho assalariado um dever ciacutevico obrigatoacuterio semelhante ao que se verifica no serviccedilo militar O dever da generalizaccedilatildeo do trabalho precaacuterio deve ser feito atraveacutes do braccedilo punitivo do Estado A poliacutetica social afirma Wacquant desistiu de cumprir a meta de reformar a sociedade preocupando-se em supervisionar a vida dos pobres

De acordo com a arquitetura da ordem criminal norte-americana explicaccedilotildees estruturais da pobreza carecem de plausibilidade Trata-se de uma questatildeo mais relacionada ao comportamento dos pobres do que de barreiras sociais Portanto eacute o comportamento que deve mudar mais do que a sociedade

A existecircncia de um Estado paternalista apenas se justifica se este vier acompanhado de uma ampla estrutura punitiva Deve-se por exemplo utilizar da legislaccedilatildeo de apoio agraves crianccedilas para exigir dos pais ausentes que trabalhem para prover as necessidades de suas farm1ias Poliacuteticas paternalistas de amparo agrave pobreza exigindo a contrapartida do trabalho oferecem mais esperanccedila de melhorar a pobreza do que poliacuteticas estatais distributivas

A proliferaccedilatildeo das incivilidades dizem os defensores da nova ordem criminal eacute o caminho promissor para escalada da delinquumlecircncia As primeiras condutas desviantes quando natildeo recebem puniccedilotildees exemplares estigmatizam um bairro e nele polarizam outros desvios como roubo traacutefico de drogas etc As causas coletivas da accedilatildeo criminal satildeo meras desculpas porque natildeo constituem mecanismos geradores de comportamentos delinquumlentes O crime deve ser imputado ao indiviacuteduo e natildeo agrave sociedade

Natildeo punir os autores das violecircncias urbanas significa alimentar a escalada da delinquumlecircncia Independente da fratura social eacute inaceitaacutevel procurar desculpas para atos indesculpaacuteveis Caso contraacuterio todos os desempregados estariam autorizados a roubar pilhar e depredar A forccedila desse discurso que prega o aumento da repressatildeo criminal estaacute associada ao processo mais geral de globalizaccedilatildeo em curso o qual

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impotildee reformas estruturais no aparato de Estado cujo efeito tem sido o aumento da polarizaccedilatildeo econocircmica entre grupos e classes sociais em diversos paiacuteses

O processo de globalizaccedilatildeo econocircmica e financeira tem sido feacutertil na produccedilatildeo de respostas teoacutericas distintas no controle do crime nas sociedades contemporacircneas O Estado deve atuar entre os adeptos do conceito de normalizaccedilatildeo do crime motivando setores da sociedade civil a oferecer respostas no campo preventivo Nesse sentido a gestatildeo e o controle do crime deveratildeo preocupar-se mais com a vitima potencial e menos com o delinquumlente Armar os alvos que propiciam inumeraacuteveis oportunidades ao crime eacute o objetivo central desse modelo de poliacutetica criminal

Enquanto isso os adeptos do chamado realismo penal sustentam que a banalizaccedilatildeo do crime na sociedade proveacutem da complacecircncia e do enfraquecimento da resposta da lei diante dos agentes que praticam atos criminais No plano das poliacuteticas oficiais essa dualidade de concepccedilotildees teoacutericas tem permeado o discurso e a accedilatildeo da burocracia estatal no campo penal Tais contradiccedilotildees tendem a provocar uma taxa de legitimidade social decrescente da confianccedila do Estado na gestatildeo e controle do crime

Contradiccedilotildees da Criminologia Oficial da Prevenccedilatildeo ao Aumento das Prisocirces

A criminologia oficial informa Garland (1999) mostra-se dualista polarizada e ambivalente Ao lado de uma criminologia do eu que transforma o criminoso em um consumidor racional semelhante agrave viacutetima opera-se ao mesmo tempo uma criminologia do outro do paacuteria do ser ameaccedilador A primeira eacute invocada para banalizar e promover a accedilatildeo preventiva a segunda para provocar o medo as hostilidades populares e afirmar o peso punitivo do Estado (GARLAND 1999 p75)

No decorrer dos anos 90 verifica-se uma ambivalecircncia do discurso oficial Fala-se menos em guerra contra o crime e mais na existecircncia de limites do poder do Estado Documentos oficiais e manifestos poliacuteticos ressaltam que os organismos governamentais natildeo podem combater e controlar a criminalidade isoladamente Em razatildeo

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disso propotildee-se uma melhor gestatildeo dos riscos e dos recursos numa reduccedilatildeo do medo dos custos da criminalidade da justiccedila criminal e maior amparo agraves viacutetimas

Poreacutem nessa uacuteltima deacutecada tentativas expliacutecitas de expressar a coacutelera e o ressentimento do puacuteblico tornaram-se um tema recorrente da retoacuterica que acompanha a legislaccedilatildeo penal e a tomada de decisotildees Os sentimentos da viacutetima da farrulia de um puacuteblico temeroso ultrajado foram constantemente invocados em apoio agrave criaccedilatildeo de novas leis e poliacuteticas penais em que o castigo tornou-se em objeto a ser venerado

Se por um lado a sociedade precisa adaptar-se ao crime concebendo-o como uma atividade profissional normal por outro o realismo penal sugere a divisatildeo do crime em duas categorias crimes violentos como terrorismo assassinato estupro sequumlestro roubo incecircndio criminoso etc exigem uma resposta ultra repressiva cabendo agrave poliacutetica responder a essa expectativa junto ao puacuteblico Jaacute os crimes ocasionais como roubo de veiacuteculos arrombamentos vandalismo e furtos diversos natildeo podem esperar sucesso na accedilatildeo exclusiva da poliacutecia (GARLAND 1999p64)

Esse comportamento dualista da poliacutetica oficial do Estado que admite seu fracasso parcial na soluccedilatildeo dos conflitos penais tambeacutem retira das gavetas enferrujadas da histoacuteria do modelo penal claacutessico punitivo antigas e falaciosas virtudes com o objetivo de administrar o crime Nessa direccedilatildeo a prisatildeo tende a prosperar Por quecirc Porque ela funciona afirmam seus defensores As despesas penitenciaacuterias satildeo investimentos pensado e rentaacutevel para a sociedade A triplicaccedilatildeo da populaccedilatildeo carceraacuteria nos Estados Unidos (1975 e 1989) teria apenas por seu efeito neutralizante evitado 390000 assassinatos estupros e roubos com violecircncia

Na falta da pena de morte mostra Wacquant (2001) a reclusatildeo eacute de longe o meio mais eficaz de impedir os criminosos comprovados e notoacuterios de matar estuprar roubar e furtar Um sistema judiciaacuterio natildeo tem que se preocupar com as razotildees que levam algueacutem a cometer um crime A justiccedila estaacute aiacute para punir os culpados indenizar os inocentes e defender os interesses dos cidadatildeos que respeitam a lei Por isso o Estado deve punir com eficaacutecia aqueles que insistem em transgredir a lei

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Essa velha receita de accedilatildeo repressiva estatal deve prevalecer nos EUA e em outros paiacuteses4

bull Comportamentos criminosos ou protocriminosos como jogar lixo na rua insultar pichar e cometer atos de vandalismo devem ser reprimidos com firmeza a fim de impedir que comportamentos criminosos mais graves se desenvolvam Toma-se igualmente necessaacuterio restaurar o moral dos policiais que foram submetidos anos a fio ao trabalho daninho dos socioacutelogos e dos criminologistas que insistem em dizer que o crime eacute causado pela pobreza fora da alccedilada da poliacutecia

Mediante uma accedilatildeo penal resolutamente agressiva as instituiccedilotildees policiais e penitenciaacuterias na sociedade em tempos neoliberais pretendem reafirmar a autoridade moral do Estado no momento em que ele proacuteprio eacute atingido pela sua impotecircncia econocircmica O aumento da repressatildeo estatal consequumlecircncia da nova ordem criminal em vigor vem acompanhado da privatizaccedilatildeo do sistema penitenciaacuterio A multiplicaccedilatildeo de prisotildees deve acompanhar o aumento da produccedilatildeo juriacutedica de criminosos O mercado da puniccedilatildeo um negoacutecio promissor que proporciona aos detentores de tiacutetulos de accedilotildees das empresas de seguranccedila rendimentos suculentos estaacute nascendo

Wacquant (2001) afirma que as causas do crescimento da populaccedilatildeo carceraacuteria norte-americana estatildeo vinculadas aos pequenos delinquumlentes e particularmente dos toxicocircmanos Ao contraacuterio do discurso poliacutetico e midiaacutetico dominante as prisotildees estatildeo repletas natildeo de criminosos perigosos e violentos mas de vulgares condenados pelo direito comum por negoacutecios com drogas furto roubo ou simples atentados agrave ordem puacuteblica envolvendo parcelas precarizadas das classes subalternas

4 Charvet (1977) mostra um exemplo ilustrativo dessa nova estrateacutegica na RFA Enquanto os cabeleireiros foram convidados a indicar as conversaccedilotildees suspeitas de seus clientes coube aos bombeiros a tarefa adicional de vigiar os veiacuteculos suspeitos reinventando desse modo a delaccedilatildeo de massa Esse modelo de reengenharia estatal repressiva eacute justificado em nome da doutrina da seguranccedila cujo objetivo eacute decretar toleracircncia zero aos delinquumlentes Enquanto as prisotildees se multiplicam nota-se ao mesmo tempo uma notaacutevel estabilidade por crimes de sangue e de costume

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Em 1998 o nuacutemero de condenados por contenciosos natildeoshyviolentos reclusos rompeu sozinha a cifra simboacutelica do milhatildeo Nas prisotildees 6 em cada 10 condenados satildeo negros ou latinos Menos da metade tinha emprego em tempo integral no momento de ser posta atraacutes das grades (WACQUANT 2001 p83)

Essa mudanccedila de objetivo e de resultado reflete o abandono do ideal da reabilitaccedilatildeo depois das criacuteticas cruzadas da direita e da esquerda na deacutecada de 70 e de sua substituiccedilatildeo por uma nova penalogia norte-americana cujo objetivo natildeo eacute mais prevenir o crime nem tratar os delinquumlentes objetivando o seu eventual retorno agrave sociedade O propoacutesito da nova ordem criminal nos EUA eacute isolar grupos considerados perigosos e neutralizar seus membros mais agressivos mediante uma seacuterie padronizada de compOltamentos

O reconhecimento pelos teoacutericos da normalizaccedilatildeo do crime e pelos adeptos de uma poliacutetica criminal ultra-repressiva da incapacidade da burocracia estatal de gerir e controlar os litiacutegios criminais na sociedade atual reafirma a viabilidade de fazer um questionamento teoacuterico e poliacutetico mais profundo dos paradigmas que aceitam como um dado a priori a existecircncia do crime Trata-se portanto de acrescentar e analisar outros movimentos poliacuteticoshyteoacutericos para uma melhor compreensatildeo das razotildees da falecircncia do modelo penal estatal existente

Globalizaccedilatildeo e Outros Fundamentos da Accedilatildeo Criminal

A justiccedila como aparelho de Estado acha-se em dificuldades para cumprir sua missatildeo de regulaccedilatildeo dos conflitos porque comenta Charvet (1977) sua ideologia juriacutedica estaacute em crise sua legitimidade eacute contestada pelos dominados e sua eficiecircncia pelos dominantes Na Franccedila verifica-se o avanccedilo das forccedilas da ordem atraveacutes do crescimento dos efetivos policiais judiciaacuterios e das forccedilas militares (guardas nas praias rodovias e outros lugares da vida puacuteblica) Diante da crise fiscal que impede o Estado de colocar um policial atraacutes de cada cidadatildeo tende-se a criar estrateacutegias de modo a redescobrir e converter em um policial cada cidadatildeo

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A incapacidade da burocracia estatal de regular os conflitos criminais vai aleacutem do processo atual de globalizaccedilatildeo econocircmica e financeira Adorno (1999) fala de um novo paradigma que aponta para algo aleacutem do crimes

O surgimento do Estado moderno caracterizado pelo monopoacutelio da violecircncia e pacificaccedilatildeo social foi acompanhado pela racionalizaccedilatildeo do direito atraveacutes dos seguintes princiacutepios positividade (vontade de um legislador soberano que atraveacutes de meios juriacutedicos de organizaccedilatildeo regulamenta as atividades da vida social) legalidade (natildeo reconhece outro ordenamento juriacutedico que natildeo seja estatal e outra forma de ordenamento estatal que natildeo seja lei)formalidade (o direito moderno define o domiacutenio onde se pode exercer legitimamente o livre arbiacutetrio das pessoas privadas) Esses princiacutepios afirma Adorno estatildeo sendo esfacelados

Por volta de 1950 ocorreu em todos os paiacuteses ocidentais um aumento substancial dos crimes contra as pessoas e ainda mais contra o patrimocircnio Um maior nuacutemero de pessoas passou a violar as leis penais e um grande nuacutemero de comportamentos e bens protegidos pelas leis penais ficou mais vulneraacutevel agrave ofensa e ao ataque

O problema natildeo reside nos crimes em si mas na maior ou menor disposiccedilatildeo social em aceitaacute-los e conviver com eles Ocorre que na sociedade atual essa toleracircncia diz Dahrendorf apud Adorno (1999) teria chegado ao limite haja visto (sic) as reaccedilotildees e a ansiedade puacuteblica diante da crescente ameaccedila do crime e da incapacidade da burocracia estatal em resolvecirc-lo

A erosatildeo da lei e da ordem estaacute vinculada agrave maior probabilidade de um criminoso se manter oculto hoje comparativamente ao passado Uma taxa despreziacutevel dos crimes cometidos eacute resolvida em razatildeo do descaso da poliacutetica pelos delinquumlentes conhecidos desistecircncia deliberada e afrouxamento das puniccedilotildees ou incapacidade de se lidar com as infraccedilotildees A impunidade aumenta e potildee em questatildeo a eficaacutecia das normas Isso provoca a sensaccedilatildeo de inexistecircncia das leis ou

5 O novo paradigma afirma Adorno (1999 p77) diz respeito agrave mudanccedila de hiacutebitos agrave exacerbaccedilatildeo de novos conflitos sociais agrave adoccedilatildeo de soluccedilotildees que desafiam tradiccedilotildees democraacuteticas agrave demarcaccedilatildeo de novas fronteiras sociais [ ] ao sentimento de desordem e caos que se espelha na ausecircncia de justiccedila social

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quando invocadas resultam sem efeito As sociedades contemporacircneas convi vem com o decliacutenio das sanccedilotildees A impunidade torna-se cotidiana diante da decretada incapacidade da burocracia estatal de cuidar da seguranccedila dos cidadatildeos de proteger seus bens materiais e simboacutelicos

Os mecanismos de pressatildeo social (que atuam sobre o comportamento dos sujeitos) que operam sobretudo na esfera da moralidade puacuteblica e privada natildeo parecem suscitar nem o sentimento de medo nem sequer o de anguacutestia diante das possibilidades sempre abertas de violaccedilatildeo das normas sociais As sociedades urbanas complexas comenta Adorno (1999) liberaram o homem do controle social Diante de tantas incertezas cresce por parte da sociedade uma obsessatildeo punitiva reivindicando mais ordem social

Isso natildeo impede o surgimento do modelo de funcionamento da sociedade de risco que potildee em movimento uma superestrutura de prevenccedilatildeo e de seguranccedila por meio da proliferaccedilatildeo das sociedades de seguro e de mecanismos de vigilacircncia privada com o objetivo de enfrentar o medo os perigos e ameaccedilas que tornam a vida humana incerta (ADORNO 1999 plOl-102)

Um poliacutetica de responsabilizaccedilatildeo individual atraveacutes de medidas repressivas voltadas para os jovens delinquumlentes como a reduccedilatildeo da idade para efeitos de responsabilidade penal e instauraccedilatildeo da responsabilidade dos pais em mateacuteria civil e penal tem sido discutida pelos parlamentares europeus Enveredando-se pelo caminho de mais Estado econocircmico e menos Estado social cria-se e justifica-se o mito da inevitabilidade da escalada do crime para disseminar a estrateacutegia da responsabilizaccedilatildeo como forma de mostrar que a prevenccedilatildeo e o controle do crime natildeo pode de modo exclusivo recair mais sobre o Estado

De agora em diante varejistas industriais autoridades escolares empresas de transporte pais trabalhadores e desempregados teratildeo de dividir essa responsabilidade Na deacutecada de 1990 a poliacutetica criminal da responsabilizaccedilatildeo teve por efeito reduzir a dependecircncia para com o Estado e aumentar a dependecircncia para com o mercado Investimentos na criminalidade como dispositivos de seguranccedila satildeo cada vez mais impostos pelas forccedilas econocircmicas em detrimento da poliacutetica puacuteblica

Nas sociedades onde ocorrem divisotildees sociais e raciais

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profundas em que as taxas de criminalidade e os niacuteveis de inseguranccedila satildeo elevados onde soluccedilotildees sociais foram politicamente desacreditas aleacutem de haver um ceticismo crescente quanto agrave perspectiva de reintegraccedilatildeo dos antigos delinquumlentes um setor comercial em expansatildeo favorece o aumento da populaccedilatildeo carceraacuteria pondo em marcha uma cultura do encarceramento em massa nos paiacuteses democraacuteticos

A responsabilizaccedilatildeo de organismos natildeo estatais no combate agrave criminal idade provoca enormes disparidades no financiamento social e na rede de seguranccedila Esta deixa de ser garantida para todos por meio de um Estado soberano para converte-se num produto cuja distribuiccedilatildeo estaacute subordinada agraves forccedilas de mercado As classes subalternas que mais sofrem a criminal idade estatildeo incapacitadas de comprar seguranccedila de adaptar suas vidas cotidianas e de se organizar de forma eficaz contra o crime

Poliacuteticas sociais de prevenccedilatildeo da criminalidade foram seriamente atacadas em razatildeo das transformaccedilotildees poliacuteticas sociais e econocircmicas das uacuteltimas deacutecadas Tentativas de prevenccedilatildeo e de responsabilizaccedilatildeo satildeo solapadas por uma economia de livre mercado que exclui as massas do trabalho remunerado e que nutre ativamente o crime engendrando expectativas de consumidor insaciaacutevel gerando ao mesmo tempo novos niacuteveis de pobreza da crianccedila da disfunccedilatildeo da famiacutelia e de desigualdade social (GARLAND 1999 p77)

A emergecircncia de novos problemas sociais que desafiam os princiacutepios legitimadores do Estado moderno tende a acelerar poreacutem em si natildeo justifica o fracasso da burocracia oficial na resoluccedilatildeo dos atos infracionais na sociedade contemporacircnea Os sintomas aparentes de desordem de caos de aumento da impunidade etc que reinam na sociedade vatildeo muito aleacutem de uma poliacutetica criminal deliberada de afrouxamento do poder estatal como estrateacutegia de administrar os conflitos criminais

A crise de legitimidade estatal na gestatildeo do crime reforccedila a necessidade de pocircr em questatildeo a definiccedilatildeo de crime como verdade ontoloacutegica O propoacutesito do proacuteximo capiacutetulo eacute avaliar e discutir se os eventos sociais considerados problemaacuteticos e penalmente definidos como crimes na sociedade satildeo por esta reconhecidos e aceitos como tais na realidade

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Da Descriminalizaccedilatildeo agrave Aboliccedilatildeo da Pena

A crise profunda da justiccedila penal avalia Cervini (1995) estaacute associada ao fracasso da ideologia do tratamento que pretende em seus diversos niacuteveis resolver os custos individuais e sociais do delito a defasagem das leis com certas culturas a existecircncia da cifra negra6

aleacutem das contradiccedilotildees dogmaacuteticas No momento histoacuterico atual diz Cervine dois fatores favorecem

a tendecircncia de descriminalizaccedilatildeo do direito penal um individual outro social No primeiro caso a pena privativa de liberdade que diminui a possibilidade de adaptabilidade no segundo caso os efeitos sociais estigmatizadores depois de sua aplicaccedilatildeo Em termos sociais natildeo haacute uma soluccedilatildeo eficiente em reparar o custo do crime nem de supressatildeo do estigma de ex-presidiaacuterio

As soluccedilotildees que o sistema penal tem adotado para gerir o problema da criminalidade encontram um potente antiacutedoto quando se avalia a existecircncia da chamada cifra negra Essa afirma Cervine indica claramente que os fatos aos quais a lei denomina de delitos natildeo satildeo considerados como fatos agrave parte separados de outros aconteshycimentos Uma soma relevante de acontecimentos formalmente considerados delitos e teoricamente merecedores de aplicaccedilatildeo penal natildeo eacute considerada nem valorizada como tal pelas viacutetimas ou pelos agentes do sistema pessoalmente interpelados mediante delaccedilotildees concretas (CERVINI 1995 pl73)

Tais consideraccedilotildees colidem com as premissas utoacutepicas da sociedade de controle que busca incansavelmente definir e administrar o crime atraveacutes da diversificaccedilatildeo das penas de ajustes da reclusatildeo prisional de reforma eletrocircnica das prisotildees mais investimentos e maior eficiecircncia na burocraacutetica criminal A sociedade de controle diz Passetti (1999) natildeo atenta para o fato da existecircncia de uma sociedade sem penas seja em

6 Cervini (1995 p162) comenta que a cifra negra eacute produto da diferenccedila existente entre a criminalidade real quantidade de delitos cometidos num tempo e lugar determinados e a criminal idade aparente conhecida pelos oacutergatildeos de controle Ou seja um percentual substancial de delitos estaacute estruturalmente fora do alcance e do controle do direito penal colocando em xeque a credibilidade de todo o sistema

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razatildeo da cifra negra (diferenccedila entre infraccedilotildees denunciadas na poliacutecia e aquelas efetivamente julgadas) seja porque parte consideraacutevel das infraccedilotildees eacute resolvida sem a necessidade da formalidade juriacutedica do just07bull

A maioria dos conflitos cotidianos dentro das fanulias das empresas dos estabelecimentos de ensino das organizaccedilotildees profissionais dos sindicatos clubes ou associaccedilotildees privadas satildeo segundo Hulsman e Celis (1993) resolvidos sem ter de entrar no sistema penal O grande nuacutemero de encarcerados eacute insignificante diante da quantidade real de fatos puniacuteveis que ocorrem a todo instante raramente detectados pelo sistema penal O sistema penal eacute confrontado com uma espantosa soma de casos semelhantes poreacutem apenas alguns deles e de forma injusta satildeo tratados pelo sistema cuja prisatildeo se nutre diariamente de viacutetimas preferencias

Fora os delitos que natildeo pertencem ao chamado nuacutecleo duro da delinquumlecircncia como o terrorismo e a criminalidade organizada o sistema penal afirma Hulsman cria mais problemas do que contribuiccedilotildees para resolver

Diante disso o autor propotildee uma outra loacutegica Diz que um comportamento pode deixar de ser crime sem afetar os laccedilos de sociabilidade O homossexualismo cantado em prosa e verso por Platatildeo foi penalmente condenado pelo Estado moderno durante muito tempo A prostituiccedilatildeo convive com a proibiccedilatildeo sob ameaccedila penal ateacute a liberdade total ou passando por toda sorte de controle administrativo A embriaguez em si natildeo interessa agrave lei ocidental mas soacute indiretamente (dirigir embriagado) O mesmo tratamento diferencial ocorre em relaccedilatildeo ao uso e ao traacutefico de drogas Alguns paiacuteses condenam penalmente o uso e o traacutefico excluindo o consumo pessoal Outros soacute colocam no campo penal as drogas ditas pesadas excluindo as chamadas drogas leves8

7 Na opiniatildeo de Passeui (1999 p63) o que esta utopia natildeo admite mas permitia eacute que no lugar da ressocializaccedilatildeo e da futura reintegmccedilatildeo prevaleccedila o depoacutesito de corpos para os qu ai s os uacutenicos investimentos satildeo a diminui ccedilatildeo a zero da possibilidade de fuga e a rigorosa vigilacircncia apoacutes o sentenciaroento

Na avaliaccedilatildeo de Hulsman e Celis (1 993 plOI) natildeo exi stem nem crimes nem delitos mas apenas situaccedilotildees problemaacuteticas Sem a presenccedila e participaccedilatildeo das pessoas envolvidas nestas situaccedilotildees natildeo haacute como resolvecirc-las de forma humana Classificar um fato de crime significa excluir a priori ou tras saiacutedas poss iacuteveis limitando-se ao es tilo estatal punitivo dominado pelo pensamento juriacutedico distante da realidade

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o processo de globalizaccedilatildeo econocircmica e financeira apenas indiretamente contribui para aprofundar a crise do sistema de justiccedila penal nos paiacuteses capitalistas centrais e perifeacutericos As razotildees da falecircncia do modelo de poliacutetica criminal estatildeo associadas ao processo de reforma penal dos seacuteculos XVIII e XIX periacuteodo em que a sociedade burguesa adotou o principio da puniccedilatildeo generalizada por meio da teoria da humanizaccedilatildeo da pena A reforma do coacutedigo penal burguecircs diz Foucault (1987) converteu inuacutemeros problemas sociais em conflitos criminais estabeleceu uma classificaccedilatildeo metoacutedica dos delitos em termos de gravidade e hierarquia e como complemento modificou e converteu as prisotildees em locais privilegiados com o propoacutesito de recuperar os delinquumlentes infratores atraveacutes do tratamento ressocializador

Desde entatildeo todas as propostas adotadas visando a reforma do sistema penal natildeo tocaram e natildeo discutiram seriamente o significado do crime sua classificaccedilatildeo tampouco sua instituiccedilatildeo correlata a prisatildeo As teorias criminais da normalizaccedilatildeo e da defesa da lei e da ordem (toleracircncia zero) satildeo ilustrativas a esse respeito

A primeira vecirc no crime uma accedilatildeo racional oportunista Parte do pressuposto de que a sociedade atual eacute uma sociedade de risco em que o fenocircmeno criminal natildeo pode ser tratado como algo patoloacutegico mas uma questatildeo de oportunidade Propotildee desativar a burocracia estatal repressiva por ter falhado na tentativa de desarmar e de punir o autor do delito e transferir a responsabilidade do controle do crime aos setores da sociedade civil Grupos privados deveriam armar os alvos vulneraacuteveis criar obstaacuteculos defender suas casas carros cheques cartotildees de creacutedito etc Tais mudanccedilas tomariam as coisas mais difiacuteceis evitando que pessoas pertencentes aos diversos grupos sociais se convertessem em presas faacuteceis de accedilotildees criminais

A segunda (movimento da lei e da ordem) associa a banalizaccedilatildeo do crime agrave fraqueza das respostas das leis penais vigentes Por isso advoga a necessidade de uma perseguiccedilatildeo implacaacutevel de pequenos atos como jogar lixo no chatildeo e furtos ocasionais propondo o aumento da pena para os delinquumlentes ocasionais e a prisatildeo perpeacutetua para os delinquumlentes mais perigosos O que diferencia as teorias criminais em foco eacute mais uma questatildeo de estrateacutegia e natildeo de princiacutepios Ambas trabalham com a noccedilatildeo de crime como uma verdade social e juriacutedica

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A negaccedilatildeo do conceito de crime como um fato social normal constitui objeto de reflexatildeo das teorias da descriminalizaccedilatildeo e abolicionistas para as quais as definiccedilotildees abstratas de crime e de pena vigentes no coacutedigo penal natildeo correspondem agraves definiccedilotildees que delas fazem as pessoas reais A desqualificaccedilatildeo do discurso juriacutedico penal natildeo resulta portando das dificuldades da aplicaccedilatildeo da lei da ineficiecircncia dos oacutergatildeos de controle criados para administraacute-la ou ainda de seu reduzido alcance quando se compara a totalidade de crimes formalmente descritos e os que realmente satildeo solucionados

Uma soluccedilatildeo poliacutetica socialmente legiacutetima na soluccedilatildeo dos problemas sociais hoje definidos e classificados como problemas criminais natildeo pode limitar-se ao entendimento e agrave aceitaccedilatildeo do braccedilo punitivo estatal e de sua burocracia centralizadora como o melhor remeacutedio para gerir os conflitos penais existentes Portanto toma-se urgente questionar seriamente se os eventos sociais formalmente criminalizaacuteveis satildeo concebidos e aceitos como tais pelos agentes sociais direta e potencialmente envolvidos em tais conflitos

Isso implica admitir a possibilidade da sociedade resolver inuacutemeros problemas atualmente circunscritos no campo do direito penal fora do campo estatal punitivo Nesse sentido a responsabilidade pela soluccedilatildeo dos conflitos sob a tutela do direito penal seria transferida aos agentes direta e potencialmente envolvidos em situaccedilotildees problemaacuteticas (acusado viacutetima familiares Estado e demais interessados)

A atuaccedilatildeo da burocracia de justiccedila (poliacutecia e judiciaacuterio) se limitaria a mediar e natildeo intervir diretamente visando impor a melhor soluccedilatildeo para o conflito Para isso outras instacircncias juriacutedicas (campo civil e administrativo) poderiam ser acionadas em detrimento do pesado seletivo e ineficiente sistema de justiccedila penal estatal vigente que por meio de seus oacutergatildeos policiais judiciaacuterios e administrativos procura sem nunca poder encontrar a melhor soluccedilatildeo para o acusado seus familiares agrave vitima e a sociedade

Dois adolescentes (Japonecircs e Laacutezaro) praticaram mais um delito contra o patrimocircnio E daiacute Prendecirc-los ressocializaacute-Ios responsabilizar seus familiares Armar melhor determinados alvos sociais vulneraacuteveis que facilitam o roubo o furto

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Como ressocializar algueacutem que por razotildees conjunturais como o

desemprego e a crise econocircmica pratica um delito contra a propriedade se tais razotildees continuam a persistir Como responsabilizar seus familiares9 se a concepccedilatildeo nuclear de famiacutelia burguesa mudou

Para os defensores do movimento da lei e da ordem o Estado deve responder punindo de modo exemplar Entre os adeptos da normalizaccedilatildeo do crime o Estado deve preocupar-se em punir menos e criar uma nova estrateacutegia com O propoacutesito de armar mais as viacutetimas que os infratores

Tais movimentos natildeo tocam numa questatildeo central como o fazem os adeptos da descriminalizaccedilatildeo e da aboliccedilatildeo da pena para os quais a realidade atual propicia duas alternativas procurar outras repostas para os velhos e novos problemas questionando reduzindo e abolindo o crime e a prisatildeo ou restauraacute-la sob a condiccedilatildeo de aparelho de terror repressivo

9 Passetti (1995 p23) afirma que a situaccedilatildeo social dessas crianccedilas e adolescentes violentados permite desmistificar duas falaacutecias famiacutelias desestruturadas e o suposto acesso democraacutetico agrave escola O modelo de faTlllia vigente nas metroacutepoles natildeo corresponde mais agraves caracteriacutesticas da faTlllia modelar burguesa do capitalismo livre-concorrecircncia e natildeo pode mais ser restaurada como pretende o conservadorismo

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Abstract

The current process of economic and financiaI globalization has elicited contradictory answers in the formulation of criminal policies by State bureaucracy On the one hand under strong influence of neoclassical economic thought there appears in the United Kingdom the theory of crime normalization qualifying the criminal act as a rational choice option a matter of opportunity according to which delinquents rational1y calculate their actions Such theory proposes to replace the classical model of criminal policy which relates the penal practice to the figure of the other the abnormal by a new model of risk society which sees a professional career in criminal acts On the other hand there appears in the United States the movement in defense of law and order which proposes no tolerance to crime by the amplification of penal right and the recrudescence of the State criminal answer For the defenders of decriminalization and penalabolitionism the utopia of control society which favors the increase of punisbment and target changes to administer crime ignores the existence of a society with no penalties which is manifested through the dark cipher the difference between reported infractions to the police and those really judged

Key words globalization state crime punishment decriminalization penalty abolishment

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Page 10: INTRODUÇÃO AO DEBATE SOBRE AS POLíTICAS OFICIAIS NO ... · sem penas a qual se manifesta através da cifra negra, ... vinculados em razão do potencial revolucionário da informação

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impotildee reformas estruturais no aparato de Estado cujo efeito tem sido o aumento da polarizaccedilatildeo econocircmica entre grupos e classes sociais em diversos paiacuteses

O processo de globalizaccedilatildeo econocircmica e financeira tem sido feacutertil na produccedilatildeo de respostas teoacutericas distintas no controle do crime nas sociedades contemporacircneas O Estado deve atuar entre os adeptos do conceito de normalizaccedilatildeo do crime motivando setores da sociedade civil a oferecer respostas no campo preventivo Nesse sentido a gestatildeo e o controle do crime deveratildeo preocupar-se mais com a vitima potencial e menos com o delinquumlente Armar os alvos que propiciam inumeraacuteveis oportunidades ao crime eacute o objetivo central desse modelo de poliacutetica criminal

Enquanto isso os adeptos do chamado realismo penal sustentam que a banalizaccedilatildeo do crime na sociedade proveacutem da complacecircncia e do enfraquecimento da resposta da lei diante dos agentes que praticam atos criminais No plano das poliacuteticas oficiais essa dualidade de concepccedilotildees teoacutericas tem permeado o discurso e a accedilatildeo da burocracia estatal no campo penal Tais contradiccedilotildees tendem a provocar uma taxa de legitimidade social decrescente da confianccedila do Estado na gestatildeo e controle do crime

Contradiccedilotildees da Criminologia Oficial da Prevenccedilatildeo ao Aumento das Prisocirces

A criminologia oficial informa Garland (1999) mostra-se dualista polarizada e ambivalente Ao lado de uma criminologia do eu que transforma o criminoso em um consumidor racional semelhante agrave viacutetima opera-se ao mesmo tempo uma criminologia do outro do paacuteria do ser ameaccedilador A primeira eacute invocada para banalizar e promover a accedilatildeo preventiva a segunda para provocar o medo as hostilidades populares e afirmar o peso punitivo do Estado (GARLAND 1999 p75)

No decorrer dos anos 90 verifica-se uma ambivalecircncia do discurso oficial Fala-se menos em guerra contra o crime e mais na existecircncia de limites do poder do Estado Documentos oficiais e manifestos poliacuteticos ressaltam que os organismos governamentais natildeo podem combater e controlar a criminalidade isoladamente Em razatildeo

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disso propotildee-se uma melhor gestatildeo dos riscos e dos recursos numa reduccedilatildeo do medo dos custos da criminalidade da justiccedila criminal e maior amparo agraves viacutetimas

Poreacutem nessa uacuteltima deacutecada tentativas expliacutecitas de expressar a coacutelera e o ressentimento do puacuteblico tornaram-se um tema recorrente da retoacuterica que acompanha a legislaccedilatildeo penal e a tomada de decisotildees Os sentimentos da viacutetima da farrulia de um puacuteblico temeroso ultrajado foram constantemente invocados em apoio agrave criaccedilatildeo de novas leis e poliacuteticas penais em que o castigo tornou-se em objeto a ser venerado

Se por um lado a sociedade precisa adaptar-se ao crime concebendo-o como uma atividade profissional normal por outro o realismo penal sugere a divisatildeo do crime em duas categorias crimes violentos como terrorismo assassinato estupro sequumlestro roubo incecircndio criminoso etc exigem uma resposta ultra repressiva cabendo agrave poliacutetica responder a essa expectativa junto ao puacuteblico Jaacute os crimes ocasionais como roubo de veiacuteculos arrombamentos vandalismo e furtos diversos natildeo podem esperar sucesso na accedilatildeo exclusiva da poliacutecia (GARLAND 1999p64)

Esse comportamento dualista da poliacutetica oficial do Estado que admite seu fracasso parcial na soluccedilatildeo dos conflitos penais tambeacutem retira das gavetas enferrujadas da histoacuteria do modelo penal claacutessico punitivo antigas e falaciosas virtudes com o objetivo de administrar o crime Nessa direccedilatildeo a prisatildeo tende a prosperar Por quecirc Porque ela funciona afirmam seus defensores As despesas penitenciaacuterias satildeo investimentos pensado e rentaacutevel para a sociedade A triplicaccedilatildeo da populaccedilatildeo carceraacuteria nos Estados Unidos (1975 e 1989) teria apenas por seu efeito neutralizante evitado 390000 assassinatos estupros e roubos com violecircncia

Na falta da pena de morte mostra Wacquant (2001) a reclusatildeo eacute de longe o meio mais eficaz de impedir os criminosos comprovados e notoacuterios de matar estuprar roubar e furtar Um sistema judiciaacuterio natildeo tem que se preocupar com as razotildees que levam algueacutem a cometer um crime A justiccedila estaacute aiacute para punir os culpados indenizar os inocentes e defender os interesses dos cidadatildeos que respeitam a lei Por isso o Estado deve punir com eficaacutecia aqueles que insistem em transgredir a lei

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Essa velha receita de accedilatildeo repressiva estatal deve prevalecer nos EUA e em outros paiacuteses4

bull Comportamentos criminosos ou protocriminosos como jogar lixo na rua insultar pichar e cometer atos de vandalismo devem ser reprimidos com firmeza a fim de impedir que comportamentos criminosos mais graves se desenvolvam Toma-se igualmente necessaacuterio restaurar o moral dos policiais que foram submetidos anos a fio ao trabalho daninho dos socioacutelogos e dos criminologistas que insistem em dizer que o crime eacute causado pela pobreza fora da alccedilada da poliacutecia

Mediante uma accedilatildeo penal resolutamente agressiva as instituiccedilotildees policiais e penitenciaacuterias na sociedade em tempos neoliberais pretendem reafirmar a autoridade moral do Estado no momento em que ele proacuteprio eacute atingido pela sua impotecircncia econocircmica O aumento da repressatildeo estatal consequumlecircncia da nova ordem criminal em vigor vem acompanhado da privatizaccedilatildeo do sistema penitenciaacuterio A multiplicaccedilatildeo de prisotildees deve acompanhar o aumento da produccedilatildeo juriacutedica de criminosos O mercado da puniccedilatildeo um negoacutecio promissor que proporciona aos detentores de tiacutetulos de accedilotildees das empresas de seguranccedila rendimentos suculentos estaacute nascendo

Wacquant (2001) afirma que as causas do crescimento da populaccedilatildeo carceraacuteria norte-americana estatildeo vinculadas aos pequenos delinquumlentes e particularmente dos toxicocircmanos Ao contraacuterio do discurso poliacutetico e midiaacutetico dominante as prisotildees estatildeo repletas natildeo de criminosos perigosos e violentos mas de vulgares condenados pelo direito comum por negoacutecios com drogas furto roubo ou simples atentados agrave ordem puacuteblica envolvendo parcelas precarizadas das classes subalternas

4 Charvet (1977) mostra um exemplo ilustrativo dessa nova estrateacutegica na RFA Enquanto os cabeleireiros foram convidados a indicar as conversaccedilotildees suspeitas de seus clientes coube aos bombeiros a tarefa adicional de vigiar os veiacuteculos suspeitos reinventando desse modo a delaccedilatildeo de massa Esse modelo de reengenharia estatal repressiva eacute justificado em nome da doutrina da seguranccedila cujo objetivo eacute decretar toleracircncia zero aos delinquumlentes Enquanto as prisotildees se multiplicam nota-se ao mesmo tempo uma notaacutevel estabilidade por crimes de sangue e de costume

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Em 1998 o nuacutemero de condenados por contenciosos natildeoshyviolentos reclusos rompeu sozinha a cifra simboacutelica do milhatildeo Nas prisotildees 6 em cada 10 condenados satildeo negros ou latinos Menos da metade tinha emprego em tempo integral no momento de ser posta atraacutes das grades (WACQUANT 2001 p83)

Essa mudanccedila de objetivo e de resultado reflete o abandono do ideal da reabilitaccedilatildeo depois das criacuteticas cruzadas da direita e da esquerda na deacutecada de 70 e de sua substituiccedilatildeo por uma nova penalogia norte-americana cujo objetivo natildeo eacute mais prevenir o crime nem tratar os delinquumlentes objetivando o seu eventual retorno agrave sociedade O propoacutesito da nova ordem criminal nos EUA eacute isolar grupos considerados perigosos e neutralizar seus membros mais agressivos mediante uma seacuterie padronizada de compOltamentos

O reconhecimento pelos teoacutericos da normalizaccedilatildeo do crime e pelos adeptos de uma poliacutetica criminal ultra-repressiva da incapacidade da burocracia estatal de gerir e controlar os litiacutegios criminais na sociedade atual reafirma a viabilidade de fazer um questionamento teoacuterico e poliacutetico mais profundo dos paradigmas que aceitam como um dado a priori a existecircncia do crime Trata-se portanto de acrescentar e analisar outros movimentos poliacuteticoshyteoacutericos para uma melhor compreensatildeo das razotildees da falecircncia do modelo penal estatal existente

Globalizaccedilatildeo e Outros Fundamentos da Accedilatildeo Criminal

A justiccedila como aparelho de Estado acha-se em dificuldades para cumprir sua missatildeo de regulaccedilatildeo dos conflitos porque comenta Charvet (1977) sua ideologia juriacutedica estaacute em crise sua legitimidade eacute contestada pelos dominados e sua eficiecircncia pelos dominantes Na Franccedila verifica-se o avanccedilo das forccedilas da ordem atraveacutes do crescimento dos efetivos policiais judiciaacuterios e das forccedilas militares (guardas nas praias rodovias e outros lugares da vida puacuteblica) Diante da crise fiscal que impede o Estado de colocar um policial atraacutes de cada cidadatildeo tende-se a criar estrateacutegias de modo a redescobrir e converter em um policial cada cidadatildeo

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A incapacidade da burocracia estatal de regular os conflitos criminais vai aleacutem do processo atual de globalizaccedilatildeo econocircmica e financeira Adorno (1999) fala de um novo paradigma que aponta para algo aleacutem do crimes

O surgimento do Estado moderno caracterizado pelo monopoacutelio da violecircncia e pacificaccedilatildeo social foi acompanhado pela racionalizaccedilatildeo do direito atraveacutes dos seguintes princiacutepios positividade (vontade de um legislador soberano que atraveacutes de meios juriacutedicos de organizaccedilatildeo regulamenta as atividades da vida social) legalidade (natildeo reconhece outro ordenamento juriacutedico que natildeo seja estatal e outra forma de ordenamento estatal que natildeo seja lei)formalidade (o direito moderno define o domiacutenio onde se pode exercer legitimamente o livre arbiacutetrio das pessoas privadas) Esses princiacutepios afirma Adorno estatildeo sendo esfacelados

Por volta de 1950 ocorreu em todos os paiacuteses ocidentais um aumento substancial dos crimes contra as pessoas e ainda mais contra o patrimocircnio Um maior nuacutemero de pessoas passou a violar as leis penais e um grande nuacutemero de comportamentos e bens protegidos pelas leis penais ficou mais vulneraacutevel agrave ofensa e ao ataque

O problema natildeo reside nos crimes em si mas na maior ou menor disposiccedilatildeo social em aceitaacute-los e conviver com eles Ocorre que na sociedade atual essa toleracircncia diz Dahrendorf apud Adorno (1999) teria chegado ao limite haja visto (sic) as reaccedilotildees e a ansiedade puacuteblica diante da crescente ameaccedila do crime e da incapacidade da burocracia estatal em resolvecirc-lo

A erosatildeo da lei e da ordem estaacute vinculada agrave maior probabilidade de um criminoso se manter oculto hoje comparativamente ao passado Uma taxa despreziacutevel dos crimes cometidos eacute resolvida em razatildeo do descaso da poliacutetica pelos delinquumlentes conhecidos desistecircncia deliberada e afrouxamento das puniccedilotildees ou incapacidade de se lidar com as infraccedilotildees A impunidade aumenta e potildee em questatildeo a eficaacutecia das normas Isso provoca a sensaccedilatildeo de inexistecircncia das leis ou

5 O novo paradigma afirma Adorno (1999 p77) diz respeito agrave mudanccedila de hiacutebitos agrave exacerbaccedilatildeo de novos conflitos sociais agrave adoccedilatildeo de soluccedilotildees que desafiam tradiccedilotildees democraacuteticas agrave demarcaccedilatildeo de novas fronteiras sociais [ ] ao sentimento de desordem e caos que se espelha na ausecircncia de justiccedila social

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quando invocadas resultam sem efeito As sociedades contemporacircneas convi vem com o decliacutenio das sanccedilotildees A impunidade torna-se cotidiana diante da decretada incapacidade da burocracia estatal de cuidar da seguranccedila dos cidadatildeos de proteger seus bens materiais e simboacutelicos

Os mecanismos de pressatildeo social (que atuam sobre o comportamento dos sujeitos) que operam sobretudo na esfera da moralidade puacuteblica e privada natildeo parecem suscitar nem o sentimento de medo nem sequer o de anguacutestia diante das possibilidades sempre abertas de violaccedilatildeo das normas sociais As sociedades urbanas complexas comenta Adorno (1999) liberaram o homem do controle social Diante de tantas incertezas cresce por parte da sociedade uma obsessatildeo punitiva reivindicando mais ordem social

Isso natildeo impede o surgimento do modelo de funcionamento da sociedade de risco que potildee em movimento uma superestrutura de prevenccedilatildeo e de seguranccedila por meio da proliferaccedilatildeo das sociedades de seguro e de mecanismos de vigilacircncia privada com o objetivo de enfrentar o medo os perigos e ameaccedilas que tornam a vida humana incerta (ADORNO 1999 plOl-102)

Um poliacutetica de responsabilizaccedilatildeo individual atraveacutes de medidas repressivas voltadas para os jovens delinquumlentes como a reduccedilatildeo da idade para efeitos de responsabilidade penal e instauraccedilatildeo da responsabilidade dos pais em mateacuteria civil e penal tem sido discutida pelos parlamentares europeus Enveredando-se pelo caminho de mais Estado econocircmico e menos Estado social cria-se e justifica-se o mito da inevitabilidade da escalada do crime para disseminar a estrateacutegia da responsabilizaccedilatildeo como forma de mostrar que a prevenccedilatildeo e o controle do crime natildeo pode de modo exclusivo recair mais sobre o Estado

De agora em diante varejistas industriais autoridades escolares empresas de transporte pais trabalhadores e desempregados teratildeo de dividir essa responsabilidade Na deacutecada de 1990 a poliacutetica criminal da responsabilizaccedilatildeo teve por efeito reduzir a dependecircncia para com o Estado e aumentar a dependecircncia para com o mercado Investimentos na criminalidade como dispositivos de seguranccedila satildeo cada vez mais impostos pelas forccedilas econocircmicas em detrimento da poliacutetica puacuteblica

Nas sociedades onde ocorrem divisotildees sociais e raciais

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profundas em que as taxas de criminalidade e os niacuteveis de inseguranccedila satildeo elevados onde soluccedilotildees sociais foram politicamente desacreditas aleacutem de haver um ceticismo crescente quanto agrave perspectiva de reintegraccedilatildeo dos antigos delinquumlentes um setor comercial em expansatildeo favorece o aumento da populaccedilatildeo carceraacuteria pondo em marcha uma cultura do encarceramento em massa nos paiacuteses democraacuteticos

A responsabilizaccedilatildeo de organismos natildeo estatais no combate agrave criminal idade provoca enormes disparidades no financiamento social e na rede de seguranccedila Esta deixa de ser garantida para todos por meio de um Estado soberano para converte-se num produto cuja distribuiccedilatildeo estaacute subordinada agraves forccedilas de mercado As classes subalternas que mais sofrem a criminal idade estatildeo incapacitadas de comprar seguranccedila de adaptar suas vidas cotidianas e de se organizar de forma eficaz contra o crime

Poliacuteticas sociais de prevenccedilatildeo da criminalidade foram seriamente atacadas em razatildeo das transformaccedilotildees poliacuteticas sociais e econocircmicas das uacuteltimas deacutecadas Tentativas de prevenccedilatildeo e de responsabilizaccedilatildeo satildeo solapadas por uma economia de livre mercado que exclui as massas do trabalho remunerado e que nutre ativamente o crime engendrando expectativas de consumidor insaciaacutevel gerando ao mesmo tempo novos niacuteveis de pobreza da crianccedila da disfunccedilatildeo da famiacutelia e de desigualdade social (GARLAND 1999 p77)

A emergecircncia de novos problemas sociais que desafiam os princiacutepios legitimadores do Estado moderno tende a acelerar poreacutem em si natildeo justifica o fracasso da burocracia oficial na resoluccedilatildeo dos atos infracionais na sociedade contemporacircnea Os sintomas aparentes de desordem de caos de aumento da impunidade etc que reinam na sociedade vatildeo muito aleacutem de uma poliacutetica criminal deliberada de afrouxamento do poder estatal como estrateacutegia de administrar os conflitos criminais

A crise de legitimidade estatal na gestatildeo do crime reforccedila a necessidade de pocircr em questatildeo a definiccedilatildeo de crime como verdade ontoloacutegica O propoacutesito do proacuteximo capiacutetulo eacute avaliar e discutir se os eventos sociais considerados problemaacuteticos e penalmente definidos como crimes na sociedade satildeo por esta reconhecidos e aceitos como tais na realidade

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Da Descriminalizaccedilatildeo agrave Aboliccedilatildeo da Pena

A crise profunda da justiccedila penal avalia Cervini (1995) estaacute associada ao fracasso da ideologia do tratamento que pretende em seus diversos niacuteveis resolver os custos individuais e sociais do delito a defasagem das leis com certas culturas a existecircncia da cifra negra6

aleacutem das contradiccedilotildees dogmaacuteticas No momento histoacuterico atual diz Cervine dois fatores favorecem

a tendecircncia de descriminalizaccedilatildeo do direito penal um individual outro social No primeiro caso a pena privativa de liberdade que diminui a possibilidade de adaptabilidade no segundo caso os efeitos sociais estigmatizadores depois de sua aplicaccedilatildeo Em termos sociais natildeo haacute uma soluccedilatildeo eficiente em reparar o custo do crime nem de supressatildeo do estigma de ex-presidiaacuterio

As soluccedilotildees que o sistema penal tem adotado para gerir o problema da criminalidade encontram um potente antiacutedoto quando se avalia a existecircncia da chamada cifra negra Essa afirma Cervine indica claramente que os fatos aos quais a lei denomina de delitos natildeo satildeo considerados como fatos agrave parte separados de outros aconteshycimentos Uma soma relevante de acontecimentos formalmente considerados delitos e teoricamente merecedores de aplicaccedilatildeo penal natildeo eacute considerada nem valorizada como tal pelas viacutetimas ou pelos agentes do sistema pessoalmente interpelados mediante delaccedilotildees concretas (CERVINI 1995 pl73)

Tais consideraccedilotildees colidem com as premissas utoacutepicas da sociedade de controle que busca incansavelmente definir e administrar o crime atraveacutes da diversificaccedilatildeo das penas de ajustes da reclusatildeo prisional de reforma eletrocircnica das prisotildees mais investimentos e maior eficiecircncia na burocraacutetica criminal A sociedade de controle diz Passetti (1999) natildeo atenta para o fato da existecircncia de uma sociedade sem penas seja em

6 Cervini (1995 p162) comenta que a cifra negra eacute produto da diferenccedila existente entre a criminalidade real quantidade de delitos cometidos num tempo e lugar determinados e a criminal idade aparente conhecida pelos oacutergatildeos de controle Ou seja um percentual substancial de delitos estaacute estruturalmente fora do alcance e do controle do direito penal colocando em xeque a credibilidade de todo o sistema

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razatildeo da cifra negra (diferenccedila entre infraccedilotildees denunciadas na poliacutecia e aquelas efetivamente julgadas) seja porque parte consideraacutevel das infraccedilotildees eacute resolvida sem a necessidade da formalidade juriacutedica do just07bull

A maioria dos conflitos cotidianos dentro das fanulias das empresas dos estabelecimentos de ensino das organizaccedilotildees profissionais dos sindicatos clubes ou associaccedilotildees privadas satildeo segundo Hulsman e Celis (1993) resolvidos sem ter de entrar no sistema penal O grande nuacutemero de encarcerados eacute insignificante diante da quantidade real de fatos puniacuteveis que ocorrem a todo instante raramente detectados pelo sistema penal O sistema penal eacute confrontado com uma espantosa soma de casos semelhantes poreacutem apenas alguns deles e de forma injusta satildeo tratados pelo sistema cuja prisatildeo se nutre diariamente de viacutetimas preferencias

Fora os delitos que natildeo pertencem ao chamado nuacutecleo duro da delinquumlecircncia como o terrorismo e a criminalidade organizada o sistema penal afirma Hulsman cria mais problemas do que contribuiccedilotildees para resolver

Diante disso o autor propotildee uma outra loacutegica Diz que um comportamento pode deixar de ser crime sem afetar os laccedilos de sociabilidade O homossexualismo cantado em prosa e verso por Platatildeo foi penalmente condenado pelo Estado moderno durante muito tempo A prostituiccedilatildeo convive com a proibiccedilatildeo sob ameaccedila penal ateacute a liberdade total ou passando por toda sorte de controle administrativo A embriaguez em si natildeo interessa agrave lei ocidental mas soacute indiretamente (dirigir embriagado) O mesmo tratamento diferencial ocorre em relaccedilatildeo ao uso e ao traacutefico de drogas Alguns paiacuteses condenam penalmente o uso e o traacutefico excluindo o consumo pessoal Outros soacute colocam no campo penal as drogas ditas pesadas excluindo as chamadas drogas leves8

7 Na opiniatildeo de Passeui (1999 p63) o que esta utopia natildeo admite mas permitia eacute que no lugar da ressocializaccedilatildeo e da futura reintegmccedilatildeo prevaleccedila o depoacutesito de corpos para os qu ai s os uacutenicos investimentos satildeo a diminui ccedilatildeo a zero da possibilidade de fuga e a rigorosa vigilacircncia apoacutes o sentenciaroento

Na avaliaccedilatildeo de Hulsman e Celis (1 993 plOI) natildeo exi stem nem crimes nem delitos mas apenas situaccedilotildees problemaacuteticas Sem a presenccedila e participaccedilatildeo das pessoas envolvidas nestas situaccedilotildees natildeo haacute como resolvecirc-las de forma humana Classificar um fato de crime significa excluir a priori ou tras saiacutedas poss iacuteveis limitando-se ao es tilo estatal punitivo dominado pelo pensamento juriacutedico distante da realidade

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o processo de globalizaccedilatildeo econocircmica e financeira apenas indiretamente contribui para aprofundar a crise do sistema de justiccedila penal nos paiacuteses capitalistas centrais e perifeacutericos As razotildees da falecircncia do modelo de poliacutetica criminal estatildeo associadas ao processo de reforma penal dos seacuteculos XVIII e XIX periacuteodo em que a sociedade burguesa adotou o principio da puniccedilatildeo generalizada por meio da teoria da humanizaccedilatildeo da pena A reforma do coacutedigo penal burguecircs diz Foucault (1987) converteu inuacutemeros problemas sociais em conflitos criminais estabeleceu uma classificaccedilatildeo metoacutedica dos delitos em termos de gravidade e hierarquia e como complemento modificou e converteu as prisotildees em locais privilegiados com o propoacutesito de recuperar os delinquumlentes infratores atraveacutes do tratamento ressocializador

Desde entatildeo todas as propostas adotadas visando a reforma do sistema penal natildeo tocaram e natildeo discutiram seriamente o significado do crime sua classificaccedilatildeo tampouco sua instituiccedilatildeo correlata a prisatildeo As teorias criminais da normalizaccedilatildeo e da defesa da lei e da ordem (toleracircncia zero) satildeo ilustrativas a esse respeito

A primeira vecirc no crime uma accedilatildeo racional oportunista Parte do pressuposto de que a sociedade atual eacute uma sociedade de risco em que o fenocircmeno criminal natildeo pode ser tratado como algo patoloacutegico mas uma questatildeo de oportunidade Propotildee desativar a burocracia estatal repressiva por ter falhado na tentativa de desarmar e de punir o autor do delito e transferir a responsabilidade do controle do crime aos setores da sociedade civil Grupos privados deveriam armar os alvos vulneraacuteveis criar obstaacuteculos defender suas casas carros cheques cartotildees de creacutedito etc Tais mudanccedilas tomariam as coisas mais difiacuteceis evitando que pessoas pertencentes aos diversos grupos sociais se convertessem em presas faacuteceis de accedilotildees criminais

A segunda (movimento da lei e da ordem) associa a banalizaccedilatildeo do crime agrave fraqueza das respostas das leis penais vigentes Por isso advoga a necessidade de uma perseguiccedilatildeo implacaacutevel de pequenos atos como jogar lixo no chatildeo e furtos ocasionais propondo o aumento da pena para os delinquumlentes ocasionais e a prisatildeo perpeacutetua para os delinquumlentes mais perigosos O que diferencia as teorias criminais em foco eacute mais uma questatildeo de estrateacutegia e natildeo de princiacutepios Ambas trabalham com a noccedilatildeo de crime como uma verdade social e juriacutedica

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A negaccedilatildeo do conceito de crime como um fato social normal constitui objeto de reflexatildeo das teorias da descriminalizaccedilatildeo e abolicionistas para as quais as definiccedilotildees abstratas de crime e de pena vigentes no coacutedigo penal natildeo correspondem agraves definiccedilotildees que delas fazem as pessoas reais A desqualificaccedilatildeo do discurso juriacutedico penal natildeo resulta portando das dificuldades da aplicaccedilatildeo da lei da ineficiecircncia dos oacutergatildeos de controle criados para administraacute-la ou ainda de seu reduzido alcance quando se compara a totalidade de crimes formalmente descritos e os que realmente satildeo solucionados

Uma soluccedilatildeo poliacutetica socialmente legiacutetima na soluccedilatildeo dos problemas sociais hoje definidos e classificados como problemas criminais natildeo pode limitar-se ao entendimento e agrave aceitaccedilatildeo do braccedilo punitivo estatal e de sua burocracia centralizadora como o melhor remeacutedio para gerir os conflitos penais existentes Portanto toma-se urgente questionar seriamente se os eventos sociais formalmente criminalizaacuteveis satildeo concebidos e aceitos como tais pelos agentes sociais direta e potencialmente envolvidos em tais conflitos

Isso implica admitir a possibilidade da sociedade resolver inuacutemeros problemas atualmente circunscritos no campo do direito penal fora do campo estatal punitivo Nesse sentido a responsabilidade pela soluccedilatildeo dos conflitos sob a tutela do direito penal seria transferida aos agentes direta e potencialmente envolvidos em situaccedilotildees problemaacuteticas (acusado viacutetima familiares Estado e demais interessados)

A atuaccedilatildeo da burocracia de justiccedila (poliacutecia e judiciaacuterio) se limitaria a mediar e natildeo intervir diretamente visando impor a melhor soluccedilatildeo para o conflito Para isso outras instacircncias juriacutedicas (campo civil e administrativo) poderiam ser acionadas em detrimento do pesado seletivo e ineficiente sistema de justiccedila penal estatal vigente que por meio de seus oacutergatildeos policiais judiciaacuterios e administrativos procura sem nunca poder encontrar a melhor soluccedilatildeo para o acusado seus familiares agrave vitima e a sociedade

Dois adolescentes (Japonecircs e Laacutezaro) praticaram mais um delito contra o patrimocircnio E daiacute Prendecirc-los ressocializaacute-Ios responsabilizar seus familiares Armar melhor determinados alvos sociais vulneraacuteveis que facilitam o roubo o furto

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Como ressocializar algueacutem que por razotildees conjunturais como o

desemprego e a crise econocircmica pratica um delito contra a propriedade se tais razotildees continuam a persistir Como responsabilizar seus familiares9 se a concepccedilatildeo nuclear de famiacutelia burguesa mudou

Para os defensores do movimento da lei e da ordem o Estado deve responder punindo de modo exemplar Entre os adeptos da normalizaccedilatildeo do crime o Estado deve preocupar-se em punir menos e criar uma nova estrateacutegia com O propoacutesito de armar mais as viacutetimas que os infratores

Tais movimentos natildeo tocam numa questatildeo central como o fazem os adeptos da descriminalizaccedilatildeo e da aboliccedilatildeo da pena para os quais a realidade atual propicia duas alternativas procurar outras repostas para os velhos e novos problemas questionando reduzindo e abolindo o crime e a prisatildeo ou restauraacute-la sob a condiccedilatildeo de aparelho de terror repressivo

9 Passetti (1995 p23) afirma que a situaccedilatildeo social dessas crianccedilas e adolescentes violentados permite desmistificar duas falaacutecias famiacutelias desestruturadas e o suposto acesso democraacutetico agrave escola O modelo de faTlllia vigente nas metroacutepoles natildeo corresponde mais agraves caracteriacutesticas da faTlllia modelar burguesa do capitalismo livre-concorrecircncia e natildeo pode mais ser restaurada como pretende o conservadorismo

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Referecircncias

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Abstract

The current process of economic and financiaI globalization has elicited contradictory answers in the formulation of criminal policies by State bureaucracy On the one hand under strong influence of neoclassical economic thought there appears in the United Kingdom the theory of crime normalization qualifying the criminal act as a rational choice option a matter of opportunity according to which delinquents rational1y calculate their actions Such theory proposes to replace the classical model of criminal policy which relates the penal practice to the figure of the other the abnormal by a new model of risk society which sees a professional career in criminal acts On the other hand there appears in the United States the movement in defense of law and order which proposes no tolerance to crime by the amplification of penal right and the recrudescence of the State criminal answer For the defenders of decriminalization and penalabolitionism the utopia of control society which favors the increase of punisbment and target changes to administer crime ignores the existence of a society with no penalties which is manifested through the dark cipher the difference between reported infractions to the police and those really judged

Key words globalization state crime punishment decriminalization penalty abolishment

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Page 11: INTRODUÇÃO AO DEBATE SOBRE AS POLíTICAS OFICIAIS NO ... · sem penas a qual se manifesta através da cifra negra, ... vinculados em razão do potencial revolucionário da informação

disso propotildee-se uma melhor gestatildeo dos riscos e dos recursos numa reduccedilatildeo do medo dos custos da criminalidade da justiccedila criminal e maior amparo agraves viacutetimas

Poreacutem nessa uacuteltima deacutecada tentativas expliacutecitas de expressar a coacutelera e o ressentimento do puacuteblico tornaram-se um tema recorrente da retoacuterica que acompanha a legislaccedilatildeo penal e a tomada de decisotildees Os sentimentos da viacutetima da farrulia de um puacuteblico temeroso ultrajado foram constantemente invocados em apoio agrave criaccedilatildeo de novas leis e poliacuteticas penais em que o castigo tornou-se em objeto a ser venerado

Se por um lado a sociedade precisa adaptar-se ao crime concebendo-o como uma atividade profissional normal por outro o realismo penal sugere a divisatildeo do crime em duas categorias crimes violentos como terrorismo assassinato estupro sequumlestro roubo incecircndio criminoso etc exigem uma resposta ultra repressiva cabendo agrave poliacutetica responder a essa expectativa junto ao puacuteblico Jaacute os crimes ocasionais como roubo de veiacuteculos arrombamentos vandalismo e furtos diversos natildeo podem esperar sucesso na accedilatildeo exclusiva da poliacutecia (GARLAND 1999p64)

Esse comportamento dualista da poliacutetica oficial do Estado que admite seu fracasso parcial na soluccedilatildeo dos conflitos penais tambeacutem retira das gavetas enferrujadas da histoacuteria do modelo penal claacutessico punitivo antigas e falaciosas virtudes com o objetivo de administrar o crime Nessa direccedilatildeo a prisatildeo tende a prosperar Por quecirc Porque ela funciona afirmam seus defensores As despesas penitenciaacuterias satildeo investimentos pensado e rentaacutevel para a sociedade A triplicaccedilatildeo da populaccedilatildeo carceraacuteria nos Estados Unidos (1975 e 1989) teria apenas por seu efeito neutralizante evitado 390000 assassinatos estupros e roubos com violecircncia

Na falta da pena de morte mostra Wacquant (2001) a reclusatildeo eacute de longe o meio mais eficaz de impedir os criminosos comprovados e notoacuterios de matar estuprar roubar e furtar Um sistema judiciaacuterio natildeo tem que se preocupar com as razotildees que levam algueacutem a cometer um crime A justiccedila estaacute aiacute para punir os culpados indenizar os inocentes e defender os interesses dos cidadatildeos que respeitam a lei Por isso o Estado deve punir com eficaacutecia aqueles que insistem em transgredir a lei

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Essa velha receita de accedilatildeo repressiva estatal deve prevalecer nos EUA e em outros paiacuteses4

bull Comportamentos criminosos ou protocriminosos como jogar lixo na rua insultar pichar e cometer atos de vandalismo devem ser reprimidos com firmeza a fim de impedir que comportamentos criminosos mais graves se desenvolvam Toma-se igualmente necessaacuterio restaurar o moral dos policiais que foram submetidos anos a fio ao trabalho daninho dos socioacutelogos e dos criminologistas que insistem em dizer que o crime eacute causado pela pobreza fora da alccedilada da poliacutecia

Mediante uma accedilatildeo penal resolutamente agressiva as instituiccedilotildees policiais e penitenciaacuterias na sociedade em tempos neoliberais pretendem reafirmar a autoridade moral do Estado no momento em que ele proacuteprio eacute atingido pela sua impotecircncia econocircmica O aumento da repressatildeo estatal consequumlecircncia da nova ordem criminal em vigor vem acompanhado da privatizaccedilatildeo do sistema penitenciaacuterio A multiplicaccedilatildeo de prisotildees deve acompanhar o aumento da produccedilatildeo juriacutedica de criminosos O mercado da puniccedilatildeo um negoacutecio promissor que proporciona aos detentores de tiacutetulos de accedilotildees das empresas de seguranccedila rendimentos suculentos estaacute nascendo

Wacquant (2001) afirma que as causas do crescimento da populaccedilatildeo carceraacuteria norte-americana estatildeo vinculadas aos pequenos delinquumlentes e particularmente dos toxicocircmanos Ao contraacuterio do discurso poliacutetico e midiaacutetico dominante as prisotildees estatildeo repletas natildeo de criminosos perigosos e violentos mas de vulgares condenados pelo direito comum por negoacutecios com drogas furto roubo ou simples atentados agrave ordem puacuteblica envolvendo parcelas precarizadas das classes subalternas

4 Charvet (1977) mostra um exemplo ilustrativo dessa nova estrateacutegica na RFA Enquanto os cabeleireiros foram convidados a indicar as conversaccedilotildees suspeitas de seus clientes coube aos bombeiros a tarefa adicional de vigiar os veiacuteculos suspeitos reinventando desse modo a delaccedilatildeo de massa Esse modelo de reengenharia estatal repressiva eacute justificado em nome da doutrina da seguranccedila cujo objetivo eacute decretar toleracircncia zero aos delinquumlentes Enquanto as prisotildees se multiplicam nota-se ao mesmo tempo uma notaacutevel estabilidade por crimes de sangue e de costume

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Em 1998 o nuacutemero de condenados por contenciosos natildeoshyviolentos reclusos rompeu sozinha a cifra simboacutelica do milhatildeo Nas prisotildees 6 em cada 10 condenados satildeo negros ou latinos Menos da metade tinha emprego em tempo integral no momento de ser posta atraacutes das grades (WACQUANT 2001 p83)

Essa mudanccedila de objetivo e de resultado reflete o abandono do ideal da reabilitaccedilatildeo depois das criacuteticas cruzadas da direita e da esquerda na deacutecada de 70 e de sua substituiccedilatildeo por uma nova penalogia norte-americana cujo objetivo natildeo eacute mais prevenir o crime nem tratar os delinquumlentes objetivando o seu eventual retorno agrave sociedade O propoacutesito da nova ordem criminal nos EUA eacute isolar grupos considerados perigosos e neutralizar seus membros mais agressivos mediante uma seacuterie padronizada de compOltamentos

O reconhecimento pelos teoacutericos da normalizaccedilatildeo do crime e pelos adeptos de uma poliacutetica criminal ultra-repressiva da incapacidade da burocracia estatal de gerir e controlar os litiacutegios criminais na sociedade atual reafirma a viabilidade de fazer um questionamento teoacuterico e poliacutetico mais profundo dos paradigmas que aceitam como um dado a priori a existecircncia do crime Trata-se portanto de acrescentar e analisar outros movimentos poliacuteticoshyteoacutericos para uma melhor compreensatildeo das razotildees da falecircncia do modelo penal estatal existente

Globalizaccedilatildeo e Outros Fundamentos da Accedilatildeo Criminal

A justiccedila como aparelho de Estado acha-se em dificuldades para cumprir sua missatildeo de regulaccedilatildeo dos conflitos porque comenta Charvet (1977) sua ideologia juriacutedica estaacute em crise sua legitimidade eacute contestada pelos dominados e sua eficiecircncia pelos dominantes Na Franccedila verifica-se o avanccedilo das forccedilas da ordem atraveacutes do crescimento dos efetivos policiais judiciaacuterios e das forccedilas militares (guardas nas praias rodovias e outros lugares da vida puacuteblica) Diante da crise fiscal que impede o Estado de colocar um policial atraacutes de cada cidadatildeo tende-se a criar estrateacutegias de modo a redescobrir e converter em um policial cada cidadatildeo

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A incapacidade da burocracia estatal de regular os conflitos criminais vai aleacutem do processo atual de globalizaccedilatildeo econocircmica e financeira Adorno (1999) fala de um novo paradigma que aponta para algo aleacutem do crimes

O surgimento do Estado moderno caracterizado pelo monopoacutelio da violecircncia e pacificaccedilatildeo social foi acompanhado pela racionalizaccedilatildeo do direito atraveacutes dos seguintes princiacutepios positividade (vontade de um legislador soberano que atraveacutes de meios juriacutedicos de organizaccedilatildeo regulamenta as atividades da vida social) legalidade (natildeo reconhece outro ordenamento juriacutedico que natildeo seja estatal e outra forma de ordenamento estatal que natildeo seja lei)formalidade (o direito moderno define o domiacutenio onde se pode exercer legitimamente o livre arbiacutetrio das pessoas privadas) Esses princiacutepios afirma Adorno estatildeo sendo esfacelados

Por volta de 1950 ocorreu em todos os paiacuteses ocidentais um aumento substancial dos crimes contra as pessoas e ainda mais contra o patrimocircnio Um maior nuacutemero de pessoas passou a violar as leis penais e um grande nuacutemero de comportamentos e bens protegidos pelas leis penais ficou mais vulneraacutevel agrave ofensa e ao ataque

O problema natildeo reside nos crimes em si mas na maior ou menor disposiccedilatildeo social em aceitaacute-los e conviver com eles Ocorre que na sociedade atual essa toleracircncia diz Dahrendorf apud Adorno (1999) teria chegado ao limite haja visto (sic) as reaccedilotildees e a ansiedade puacuteblica diante da crescente ameaccedila do crime e da incapacidade da burocracia estatal em resolvecirc-lo

A erosatildeo da lei e da ordem estaacute vinculada agrave maior probabilidade de um criminoso se manter oculto hoje comparativamente ao passado Uma taxa despreziacutevel dos crimes cometidos eacute resolvida em razatildeo do descaso da poliacutetica pelos delinquumlentes conhecidos desistecircncia deliberada e afrouxamento das puniccedilotildees ou incapacidade de se lidar com as infraccedilotildees A impunidade aumenta e potildee em questatildeo a eficaacutecia das normas Isso provoca a sensaccedilatildeo de inexistecircncia das leis ou

5 O novo paradigma afirma Adorno (1999 p77) diz respeito agrave mudanccedila de hiacutebitos agrave exacerbaccedilatildeo de novos conflitos sociais agrave adoccedilatildeo de soluccedilotildees que desafiam tradiccedilotildees democraacuteticas agrave demarcaccedilatildeo de novas fronteiras sociais [ ] ao sentimento de desordem e caos que se espelha na ausecircncia de justiccedila social

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quando invocadas resultam sem efeito As sociedades contemporacircneas convi vem com o decliacutenio das sanccedilotildees A impunidade torna-se cotidiana diante da decretada incapacidade da burocracia estatal de cuidar da seguranccedila dos cidadatildeos de proteger seus bens materiais e simboacutelicos

Os mecanismos de pressatildeo social (que atuam sobre o comportamento dos sujeitos) que operam sobretudo na esfera da moralidade puacuteblica e privada natildeo parecem suscitar nem o sentimento de medo nem sequer o de anguacutestia diante das possibilidades sempre abertas de violaccedilatildeo das normas sociais As sociedades urbanas complexas comenta Adorno (1999) liberaram o homem do controle social Diante de tantas incertezas cresce por parte da sociedade uma obsessatildeo punitiva reivindicando mais ordem social

Isso natildeo impede o surgimento do modelo de funcionamento da sociedade de risco que potildee em movimento uma superestrutura de prevenccedilatildeo e de seguranccedila por meio da proliferaccedilatildeo das sociedades de seguro e de mecanismos de vigilacircncia privada com o objetivo de enfrentar o medo os perigos e ameaccedilas que tornam a vida humana incerta (ADORNO 1999 plOl-102)

Um poliacutetica de responsabilizaccedilatildeo individual atraveacutes de medidas repressivas voltadas para os jovens delinquumlentes como a reduccedilatildeo da idade para efeitos de responsabilidade penal e instauraccedilatildeo da responsabilidade dos pais em mateacuteria civil e penal tem sido discutida pelos parlamentares europeus Enveredando-se pelo caminho de mais Estado econocircmico e menos Estado social cria-se e justifica-se o mito da inevitabilidade da escalada do crime para disseminar a estrateacutegia da responsabilizaccedilatildeo como forma de mostrar que a prevenccedilatildeo e o controle do crime natildeo pode de modo exclusivo recair mais sobre o Estado

De agora em diante varejistas industriais autoridades escolares empresas de transporte pais trabalhadores e desempregados teratildeo de dividir essa responsabilidade Na deacutecada de 1990 a poliacutetica criminal da responsabilizaccedilatildeo teve por efeito reduzir a dependecircncia para com o Estado e aumentar a dependecircncia para com o mercado Investimentos na criminalidade como dispositivos de seguranccedila satildeo cada vez mais impostos pelas forccedilas econocircmicas em detrimento da poliacutetica puacuteblica

Nas sociedades onde ocorrem divisotildees sociais e raciais

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profundas em que as taxas de criminalidade e os niacuteveis de inseguranccedila satildeo elevados onde soluccedilotildees sociais foram politicamente desacreditas aleacutem de haver um ceticismo crescente quanto agrave perspectiva de reintegraccedilatildeo dos antigos delinquumlentes um setor comercial em expansatildeo favorece o aumento da populaccedilatildeo carceraacuteria pondo em marcha uma cultura do encarceramento em massa nos paiacuteses democraacuteticos

A responsabilizaccedilatildeo de organismos natildeo estatais no combate agrave criminal idade provoca enormes disparidades no financiamento social e na rede de seguranccedila Esta deixa de ser garantida para todos por meio de um Estado soberano para converte-se num produto cuja distribuiccedilatildeo estaacute subordinada agraves forccedilas de mercado As classes subalternas que mais sofrem a criminal idade estatildeo incapacitadas de comprar seguranccedila de adaptar suas vidas cotidianas e de se organizar de forma eficaz contra o crime

Poliacuteticas sociais de prevenccedilatildeo da criminalidade foram seriamente atacadas em razatildeo das transformaccedilotildees poliacuteticas sociais e econocircmicas das uacuteltimas deacutecadas Tentativas de prevenccedilatildeo e de responsabilizaccedilatildeo satildeo solapadas por uma economia de livre mercado que exclui as massas do trabalho remunerado e que nutre ativamente o crime engendrando expectativas de consumidor insaciaacutevel gerando ao mesmo tempo novos niacuteveis de pobreza da crianccedila da disfunccedilatildeo da famiacutelia e de desigualdade social (GARLAND 1999 p77)

A emergecircncia de novos problemas sociais que desafiam os princiacutepios legitimadores do Estado moderno tende a acelerar poreacutem em si natildeo justifica o fracasso da burocracia oficial na resoluccedilatildeo dos atos infracionais na sociedade contemporacircnea Os sintomas aparentes de desordem de caos de aumento da impunidade etc que reinam na sociedade vatildeo muito aleacutem de uma poliacutetica criminal deliberada de afrouxamento do poder estatal como estrateacutegia de administrar os conflitos criminais

A crise de legitimidade estatal na gestatildeo do crime reforccedila a necessidade de pocircr em questatildeo a definiccedilatildeo de crime como verdade ontoloacutegica O propoacutesito do proacuteximo capiacutetulo eacute avaliar e discutir se os eventos sociais considerados problemaacuteticos e penalmente definidos como crimes na sociedade satildeo por esta reconhecidos e aceitos como tais na realidade

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Da Descriminalizaccedilatildeo agrave Aboliccedilatildeo da Pena

A crise profunda da justiccedila penal avalia Cervini (1995) estaacute associada ao fracasso da ideologia do tratamento que pretende em seus diversos niacuteveis resolver os custos individuais e sociais do delito a defasagem das leis com certas culturas a existecircncia da cifra negra6

aleacutem das contradiccedilotildees dogmaacuteticas No momento histoacuterico atual diz Cervine dois fatores favorecem

a tendecircncia de descriminalizaccedilatildeo do direito penal um individual outro social No primeiro caso a pena privativa de liberdade que diminui a possibilidade de adaptabilidade no segundo caso os efeitos sociais estigmatizadores depois de sua aplicaccedilatildeo Em termos sociais natildeo haacute uma soluccedilatildeo eficiente em reparar o custo do crime nem de supressatildeo do estigma de ex-presidiaacuterio

As soluccedilotildees que o sistema penal tem adotado para gerir o problema da criminalidade encontram um potente antiacutedoto quando se avalia a existecircncia da chamada cifra negra Essa afirma Cervine indica claramente que os fatos aos quais a lei denomina de delitos natildeo satildeo considerados como fatos agrave parte separados de outros aconteshycimentos Uma soma relevante de acontecimentos formalmente considerados delitos e teoricamente merecedores de aplicaccedilatildeo penal natildeo eacute considerada nem valorizada como tal pelas viacutetimas ou pelos agentes do sistema pessoalmente interpelados mediante delaccedilotildees concretas (CERVINI 1995 pl73)

Tais consideraccedilotildees colidem com as premissas utoacutepicas da sociedade de controle que busca incansavelmente definir e administrar o crime atraveacutes da diversificaccedilatildeo das penas de ajustes da reclusatildeo prisional de reforma eletrocircnica das prisotildees mais investimentos e maior eficiecircncia na burocraacutetica criminal A sociedade de controle diz Passetti (1999) natildeo atenta para o fato da existecircncia de uma sociedade sem penas seja em

6 Cervini (1995 p162) comenta que a cifra negra eacute produto da diferenccedila existente entre a criminalidade real quantidade de delitos cometidos num tempo e lugar determinados e a criminal idade aparente conhecida pelos oacutergatildeos de controle Ou seja um percentual substancial de delitos estaacute estruturalmente fora do alcance e do controle do direito penal colocando em xeque a credibilidade de todo o sistema

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razatildeo da cifra negra (diferenccedila entre infraccedilotildees denunciadas na poliacutecia e aquelas efetivamente julgadas) seja porque parte consideraacutevel das infraccedilotildees eacute resolvida sem a necessidade da formalidade juriacutedica do just07bull

A maioria dos conflitos cotidianos dentro das fanulias das empresas dos estabelecimentos de ensino das organizaccedilotildees profissionais dos sindicatos clubes ou associaccedilotildees privadas satildeo segundo Hulsman e Celis (1993) resolvidos sem ter de entrar no sistema penal O grande nuacutemero de encarcerados eacute insignificante diante da quantidade real de fatos puniacuteveis que ocorrem a todo instante raramente detectados pelo sistema penal O sistema penal eacute confrontado com uma espantosa soma de casos semelhantes poreacutem apenas alguns deles e de forma injusta satildeo tratados pelo sistema cuja prisatildeo se nutre diariamente de viacutetimas preferencias

Fora os delitos que natildeo pertencem ao chamado nuacutecleo duro da delinquumlecircncia como o terrorismo e a criminalidade organizada o sistema penal afirma Hulsman cria mais problemas do que contribuiccedilotildees para resolver

Diante disso o autor propotildee uma outra loacutegica Diz que um comportamento pode deixar de ser crime sem afetar os laccedilos de sociabilidade O homossexualismo cantado em prosa e verso por Platatildeo foi penalmente condenado pelo Estado moderno durante muito tempo A prostituiccedilatildeo convive com a proibiccedilatildeo sob ameaccedila penal ateacute a liberdade total ou passando por toda sorte de controle administrativo A embriaguez em si natildeo interessa agrave lei ocidental mas soacute indiretamente (dirigir embriagado) O mesmo tratamento diferencial ocorre em relaccedilatildeo ao uso e ao traacutefico de drogas Alguns paiacuteses condenam penalmente o uso e o traacutefico excluindo o consumo pessoal Outros soacute colocam no campo penal as drogas ditas pesadas excluindo as chamadas drogas leves8

7 Na opiniatildeo de Passeui (1999 p63) o que esta utopia natildeo admite mas permitia eacute que no lugar da ressocializaccedilatildeo e da futura reintegmccedilatildeo prevaleccedila o depoacutesito de corpos para os qu ai s os uacutenicos investimentos satildeo a diminui ccedilatildeo a zero da possibilidade de fuga e a rigorosa vigilacircncia apoacutes o sentenciaroento

Na avaliaccedilatildeo de Hulsman e Celis (1 993 plOI) natildeo exi stem nem crimes nem delitos mas apenas situaccedilotildees problemaacuteticas Sem a presenccedila e participaccedilatildeo das pessoas envolvidas nestas situaccedilotildees natildeo haacute como resolvecirc-las de forma humana Classificar um fato de crime significa excluir a priori ou tras saiacutedas poss iacuteveis limitando-se ao es tilo estatal punitivo dominado pelo pensamento juriacutedico distante da realidade

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o processo de globalizaccedilatildeo econocircmica e financeira apenas indiretamente contribui para aprofundar a crise do sistema de justiccedila penal nos paiacuteses capitalistas centrais e perifeacutericos As razotildees da falecircncia do modelo de poliacutetica criminal estatildeo associadas ao processo de reforma penal dos seacuteculos XVIII e XIX periacuteodo em que a sociedade burguesa adotou o principio da puniccedilatildeo generalizada por meio da teoria da humanizaccedilatildeo da pena A reforma do coacutedigo penal burguecircs diz Foucault (1987) converteu inuacutemeros problemas sociais em conflitos criminais estabeleceu uma classificaccedilatildeo metoacutedica dos delitos em termos de gravidade e hierarquia e como complemento modificou e converteu as prisotildees em locais privilegiados com o propoacutesito de recuperar os delinquumlentes infratores atraveacutes do tratamento ressocializador

Desde entatildeo todas as propostas adotadas visando a reforma do sistema penal natildeo tocaram e natildeo discutiram seriamente o significado do crime sua classificaccedilatildeo tampouco sua instituiccedilatildeo correlata a prisatildeo As teorias criminais da normalizaccedilatildeo e da defesa da lei e da ordem (toleracircncia zero) satildeo ilustrativas a esse respeito

A primeira vecirc no crime uma accedilatildeo racional oportunista Parte do pressuposto de que a sociedade atual eacute uma sociedade de risco em que o fenocircmeno criminal natildeo pode ser tratado como algo patoloacutegico mas uma questatildeo de oportunidade Propotildee desativar a burocracia estatal repressiva por ter falhado na tentativa de desarmar e de punir o autor do delito e transferir a responsabilidade do controle do crime aos setores da sociedade civil Grupos privados deveriam armar os alvos vulneraacuteveis criar obstaacuteculos defender suas casas carros cheques cartotildees de creacutedito etc Tais mudanccedilas tomariam as coisas mais difiacuteceis evitando que pessoas pertencentes aos diversos grupos sociais se convertessem em presas faacuteceis de accedilotildees criminais

A segunda (movimento da lei e da ordem) associa a banalizaccedilatildeo do crime agrave fraqueza das respostas das leis penais vigentes Por isso advoga a necessidade de uma perseguiccedilatildeo implacaacutevel de pequenos atos como jogar lixo no chatildeo e furtos ocasionais propondo o aumento da pena para os delinquumlentes ocasionais e a prisatildeo perpeacutetua para os delinquumlentes mais perigosos O que diferencia as teorias criminais em foco eacute mais uma questatildeo de estrateacutegia e natildeo de princiacutepios Ambas trabalham com a noccedilatildeo de crime como uma verdade social e juriacutedica

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A negaccedilatildeo do conceito de crime como um fato social normal constitui objeto de reflexatildeo das teorias da descriminalizaccedilatildeo e abolicionistas para as quais as definiccedilotildees abstratas de crime e de pena vigentes no coacutedigo penal natildeo correspondem agraves definiccedilotildees que delas fazem as pessoas reais A desqualificaccedilatildeo do discurso juriacutedico penal natildeo resulta portando das dificuldades da aplicaccedilatildeo da lei da ineficiecircncia dos oacutergatildeos de controle criados para administraacute-la ou ainda de seu reduzido alcance quando se compara a totalidade de crimes formalmente descritos e os que realmente satildeo solucionados

Uma soluccedilatildeo poliacutetica socialmente legiacutetima na soluccedilatildeo dos problemas sociais hoje definidos e classificados como problemas criminais natildeo pode limitar-se ao entendimento e agrave aceitaccedilatildeo do braccedilo punitivo estatal e de sua burocracia centralizadora como o melhor remeacutedio para gerir os conflitos penais existentes Portanto toma-se urgente questionar seriamente se os eventos sociais formalmente criminalizaacuteveis satildeo concebidos e aceitos como tais pelos agentes sociais direta e potencialmente envolvidos em tais conflitos

Isso implica admitir a possibilidade da sociedade resolver inuacutemeros problemas atualmente circunscritos no campo do direito penal fora do campo estatal punitivo Nesse sentido a responsabilidade pela soluccedilatildeo dos conflitos sob a tutela do direito penal seria transferida aos agentes direta e potencialmente envolvidos em situaccedilotildees problemaacuteticas (acusado viacutetima familiares Estado e demais interessados)

A atuaccedilatildeo da burocracia de justiccedila (poliacutecia e judiciaacuterio) se limitaria a mediar e natildeo intervir diretamente visando impor a melhor soluccedilatildeo para o conflito Para isso outras instacircncias juriacutedicas (campo civil e administrativo) poderiam ser acionadas em detrimento do pesado seletivo e ineficiente sistema de justiccedila penal estatal vigente que por meio de seus oacutergatildeos policiais judiciaacuterios e administrativos procura sem nunca poder encontrar a melhor soluccedilatildeo para o acusado seus familiares agrave vitima e a sociedade

Dois adolescentes (Japonecircs e Laacutezaro) praticaram mais um delito contra o patrimocircnio E daiacute Prendecirc-los ressocializaacute-Ios responsabilizar seus familiares Armar melhor determinados alvos sociais vulneraacuteveis que facilitam o roubo o furto

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Como ressocializar algueacutem que por razotildees conjunturais como o

desemprego e a crise econocircmica pratica um delito contra a propriedade se tais razotildees continuam a persistir Como responsabilizar seus familiares9 se a concepccedilatildeo nuclear de famiacutelia burguesa mudou

Para os defensores do movimento da lei e da ordem o Estado deve responder punindo de modo exemplar Entre os adeptos da normalizaccedilatildeo do crime o Estado deve preocupar-se em punir menos e criar uma nova estrateacutegia com O propoacutesito de armar mais as viacutetimas que os infratores

Tais movimentos natildeo tocam numa questatildeo central como o fazem os adeptos da descriminalizaccedilatildeo e da aboliccedilatildeo da pena para os quais a realidade atual propicia duas alternativas procurar outras repostas para os velhos e novos problemas questionando reduzindo e abolindo o crime e a prisatildeo ou restauraacute-la sob a condiccedilatildeo de aparelho de terror repressivo

9 Passetti (1995 p23) afirma que a situaccedilatildeo social dessas crianccedilas e adolescentes violentados permite desmistificar duas falaacutecias famiacutelias desestruturadas e o suposto acesso democraacutetico agrave escola O modelo de faTlllia vigente nas metroacutepoles natildeo corresponde mais agraves caracteriacutesticas da faTlllia modelar burguesa do capitalismo livre-concorrecircncia e natildeo pode mais ser restaurada como pretende o conservadorismo

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Referecircncias

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Abstract

The current process of economic and financiaI globalization has elicited contradictory answers in the formulation of criminal policies by State bureaucracy On the one hand under strong influence of neoclassical economic thought there appears in the United Kingdom the theory of crime normalization qualifying the criminal act as a rational choice option a matter of opportunity according to which delinquents rational1y calculate their actions Such theory proposes to replace the classical model of criminal policy which relates the penal practice to the figure of the other the abnormal by a new model of risk society which sees a professional career in criminal acts On the other hand there appears in the United States the movement in defense of law and order which proposes no tolerance to crime by the amplification of penal right and the recrudescence of the State criminal answer For the defenders of decriminalization and penalabolitionism the utopia of control society which favors the increase of punisbment and target changes to administer crime ignores the existence of a society with no penalties which is manifested through the dark cipher the difference between reported infractions to the police and those really judged

Key words globalization state crime punishment decriminalization penalty abolishment

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Page 12: INTRODUÇÃO AO DEBATE SOBRE AS POLíTICAS OFICIAIS NO ... · sem penas a qual se manifesta através da cifra negra, ... vinculados em razão do potencial revolucionário da informação

Essa velha receita de accedilatildeo repressiva estatal deve prevalecer nos EUA e em outros paiacuteses4

bull Comportamentos criminosos ou protocriminosos como jogar lixo na rua insultar pichar e cometer atos de vandalismo devem ser reprimidos com firmeza a fim de impedir que comportamentos criminosos mais graves se desenvolvam Toma-se igualmente necessaacuterio restaurar o moral dos policiais que foram submetidos anos a fio ao trabalho daninho dos socioacutelogos e dos criminologistas que insistem em dizer que o crime eacute causado pela pobreza fora da alccedilada da poliacutecia

Mediante uma accedilatildeo penal resolutamente agressiva as instituiccedilotildees policiais e penitenciaacuterias na sociedade em tempos neoliberais pretendem reafirmar a autoridade moral do Estado no momento em que ele proacuteprio eacute atingido pela sua impotecircncia econocircmica O aumento da repressatildeo estatal consequumlecircncia da nova ordem criminal em vigor vem acompanhado da privatizaccedilatildeo do sistema penitenciaacuterio A multiplicaccedilatildeo de prisotildees deve acompanhar o aumento da produccedilatildeo juriacutedica de criminosos O mercado da puniccedilatildeo um negoacutecio promissor que proporciona aos detentores de tiacutetulos de accedilotildees das empresas de seguranccedila rendimentos suculentos estaacute nascendo

Wacquant (2001) afirma que as causas do crescimento da populaccedilatildeo carceraacuteria norte-americana estatildeo vinculadas aos pequenos delinquumlentes e particularmente dos toxicocircmanos Ao contraacuterio do discurso poliacutetico e midiaacutetico dominante as prisotildees estatildeo repletas natildeo de criminosos perigosos e violentos mas de vulgares condenados pelo direito comum por negoacutecios com drogas furto roubo ou simples atentados agrave ordem puacuteblica envolvendo parcelas precarizadas das classes subalternas

4 Charvet (1977) mostra um exemplo ilustrativo dessa nova estrateacutegica na RFA Enquanto os cabeleireiros foram convidados a indicar as conversaccedilotildees suspeitas de seus clientes coube aos bombeiros a tarefa adicional de vigiar os veiacuteculos suspeitos reinventando desse modo a delaccedilatildeo de massa Esse modelo de reengenharia estatal repressiva eacute justificado em nome da doutrina da seguranccedila cujo objetivo eacute decretar toleracircncia zero aos delinquumlentes Enquanto as prisotildees se multiplicam nota-se ao mesmo tempo uma notaacutevel estabilidade por crimes de sangue e de costume

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Em 1998 o nuacutemero de condenados por contenciosos natildeoshyviolentos reclusos rompeu sozinha a cifra simboacutelica do milhatildeo Nas prisotildees 6 em cada 10 condenados satildeo negros ou latinos Menos da metade tinha emprego em tempo integral no momento de ser posta atraacutes das grades (WACQUANT 2001 p83)

Essa mudanccedila de objetivo e de resultado reflete o abandono do ideal da reabilitaccedilatildeo depois das criacuteticas cruzadas da direita e da esquerda na deacutecada de 70 e de sua substituiccedilatildeo por uma nova penalogia norte-americana cujo objetivo natildeo eacute mais prevenir o crime nem tratar os delinquumlentes objetivando o seu eventual retorno agrave sociedade O propoacutesito da nova ordem criminal nos EUA eacute isolar grupos considerados perigosos e neutralizar seus membros mais agressivos mediante uma seacuterie padronizada de compOltamentos

O reconhecimento pelos teoacutericos da normalizaccedilatildeo do crime e pelos adeptos de uma poliacutetica criminal ultra-repressiva da incapacidade da burocracia estatal de gerir e controlar os litiacutegios criminais na sociedade atual reafirma a viabilidade de fazer um questionamento teoacuterico e poliacutetico mais profundo dos paradigmas que aceitam como um dado a priori a existecircncia do crime Trata-se portanto de acrescentar e analisar outros movimentos poliacuteticoshyteoacutericos para uma melhor compreensatildeo das razotildees da falecircncia do modelo penal estatal existente

Globalizaccedilatildeo e Outros Fundamentos da Accedilatildeo Criminal

A justiccedila como aparelho de Estado acha-se em dificuldades para cumprir sua missatildeo de regulaccedilatildeo dos conflitos porque comenta Charvet (1977) sua ideologia juriacutedica estaacute em crise sua legitimidade eacute contestada pelos dominados e sua eficiecircncia pelos dominantes Na Franccedila verifica-se o avanccedilo das forccedilas da ordem atraveacutes do crescimento dos efetivos policiais judiciaacuterios e das forccedilas militares (guardas nas praias rodovias e outros lugares da vida puacuteblica) Diante da crise fiscal que impede o Estado de colocar um policial atraacutes de cada cidadatildeo tende-se a criar estrateacutegias de modo a redescobrir e converter em um policial cada cidadatildeo

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A incapacidade da burocracia estatal de regular os conflitos criminais vai aleacutem do processo atual de globalizaccedilatildeo econocircmica e financeira Adorno (1999) fala de um novo paradigma que aponta para algo aleacutem do crimes

O surgimento do Estado moderno caracterizado pelo monopoacutelio da violecircncia e pacificaccedilatildeo social foi acompanhado pela racionalizaccedilatildeo do direito atraveacutes dos seguintes princiacutepios positividade (vontade de um legislador soberano que atraveacutes de meios juriacutedicos de organizaccedilatildeo regulamenta as atividades da vida social) legalidade (natildeo reconhece outro ordenamento juriacutedico que natildeo seja estatal e outra forma de ordenamento estatal que natildeo seja lei)formalidade (o direito moderno define o domiacutenio onde se pode exercer legitimamente o livre arbiacutetrio das pessoas privadas) Esses princiacutepios afirma Adorno estatildeo sendo esfacelados

Por volta de 1950 ocorreu em todos os paiacuteses ocidentais um aumento substancial dos crimes contra as pessoas e ainda mais contra o patrimocircnio Um maior nuacutemero de pessoas passou a violar as leis penais e um grande nuacutemero de comportamentos e bens protegidos pelas leis penais ficou mais vulneraacutevel agrave ofensa e ao ataque

O problema natildeo reside nos crimes em si mas na maior ou menor disposiccedilatildeo social em aceitaacute-los e conviver com eles Ocorre que na sociedade atual essa toleracircncia diz Dahrendorf apud Adorno (1999) teria chegado ao limite haja visto (sic) as reaccedilotildees e a ansiedade puacuteblica diante da crescente ameaccedila do crime e da incapacidade da burocracia estatal em resolvecirc-lo

A erosatildeo da lei e da ordem estaacute vinculada agrave maior probabilidade de um criminoso se manter oculto hoje comparativamente ao passado Uma taxa despreziacutevel dos crimes cometidos eacute resolvida em razatildeo do descaso da poliacutetica pelos delinquumlentes conhecidos desistecircncia deliberada e afrouxamento das puniccedilotildees ou incapacidade de se lidar com as infraccedilotildees A impunidade aumenta e potildee em questatildeo a eficaacutecia das normas Isso provoca a sensaccedilatildeo de inexistecircncia das leis ou

5 O novo paradigma afirma Adorno (1999 p77) diz respeito agrave mudanccedila de hiacutebitos agrave exacerbaccedilatildeo de novos conflitos sociais agrave adoccedilatildeo de soluccedilotildees que desafiam tradiccedilotildees democraacuteticas agrave demarcaccedilatildeo de novas fronteiras sociais [ ] ao sentimento de desordem e caos que se espelha na ausecircncia de justiccedila social

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quando invocadas resultam sem efeito As sociedades contemporacircneas convi vem com o decliacutenio das sanccedilotildees A impunidade torna-se cotidiana diante da decretada incapacidade da burocracia estatal de cuidar da seguranccedila dos cidadatildeos de proteger seus bens materiais e simboacutelicos

Os mecanismos de pressatildeo social (que atuam sobre o comportamento dos sujeitos) que operam sobretudo na esfera da moralidade puacuteblica e privada natildeo parecem suscitar nem o sentimento de medo nem sequer o de anguacutestia diante das possibilidades sempre abertas de violaccedilatildeo das normas sociais As sociedades urbanas complexas comenta Adorno (1999) liberaram o homem do controle social Diante de tantas incertezas cresce por parte da sociedade uma obsessatildeo punitiva reivindicando mais ordem social

Isso natildeo impede o surgimento do modelo de funcionamento da sociedade de risco que potildee em movimento uma superestrutura de prevenccedilatildeo e de seguranccedila por meio da proliferaccedilatildeo das sociedades de seguro e de mecanismos de vigilacircncia privada com o objetivo de enfrentar o medo os perigos e ameaccedilas que tornam a vida humana incerta (ADORNO 1999 plOl-102)

Um poliacutetica de responsabilizaccedilatildeo individual atraveacutes de medidas repressivas voltadas para os jovens delinquumlentes como a reduccedilatildeo da idade para efeitos de responsabilidade penal e instauraccedilatildeo da responsabilidade dos pais em mateacuteria civil e penal tem sido discutida pelos parlamentares europeus Enveredando-se pelo caminho de mais Estado econocircmico e menos Estado social cria-se e justifica-se o mito da inevitabilidade da escalada do crime para disseminar a estrateacutegia da responsabilizaccedilatildeo como forma de mostrar que a prevenccedilatildeo e o controle do crime natildeo pode de modo exclusivo recair mais sobre o Estado

De agora em diante varejistas industriais autoridades escolares empresas de transporte pais trabalhadores e desempregados teratildeo de dividir essa responsabilidade Na deacutecada de 1990 a poliacutetica criminal da responsabilizaccedilatildeo teve por efeito reduzir a dependecircncia para com o Estado e aumentar a dependecircncia para com o mercado Investimentos na criminalidade como dispositivos de seguranccedila satildeo cada vez mais impostos pelas forccedilas econocircmicas em detrimento da poliacutetica puacuteblica

Nas sociedades onde ocorrem divisotildees sociais e raciais

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profundas em que as taxas de criminalidade e os niacuteveis de inseguranccedila satildeo elevados onde soluccedilotildees sociais foram politicamente desacreditas aleacutem de haver um ceticismo crescente quanto agrave perspectiva de reintegraccedilatildeo dos antigos delinquumlentes um setor comercial em expansatildeo favorece o aumento da populaccedilatildeo carceraacuteria pondo em marcha uma cultura do encarceramento em massa nos paiacuteses democraacuteticos

A responsabilizaccedilatildeo de organismos natildeo estatais no combate agrave criminal idade provoca enormes disparidades no financiamento social e na rede de seguranccedila Esta deixa de ser garantida para todos por meio de um Estado soberano para converte-se num produto cuja distribuiccedilatildeo estaacute subordinada agraves forccedilas de mercado As classes subalternas que mais sofrem a criminal idade estatildeo incapacitadas de comprar seguranccedila de adaptar suas vidas cotidianas e de se organizar de forma eficaz contra o crime

Poliacuteticas sociais de prevenccedilatildeo da criminalidade foram seriamente atacadas em razatildeo das transformaccedilotildees poliacuteticas sociais e econocircmicas das uacuteltimas deacutecadas Tentativas de prevenccedilatildeo e de responsabilizaccedilatildeo satildeo solapadas por uma economia de livre mercado que exclui as massas do trabalho remunerado e que nutre ativamente o crime engendrando expectativas de consumidor insaciaacutevel gerando ao mesmo tempo novos niacuteveis de pobreza da crianccedila da disfunccedilatildeo da famiacutelia e de desigualdade social (GARLAND 1999 p77)

A emergecircncia de novos problemas sociais que desafiam os princiacutepios legitimadores do Estado moderno tende a acelerar poreacutem em si natildeo justifica o fracasso da burocracia oficial na resoluccedilatildeo dos atos infracionais na sociedade contemporacircnea Os sintomas aparentes de desordem de caos de aumento da impunidade etc que reinam na sociedade vatildeo muito aleacutem de uma poliacutetica criminal deliberada de afrouxamento do poder estatal como estrateacutegia de administrar os conflitos criminais

A crise de legitimidade estatal na gestatildeo do crime reforccedila a necessidade de pocircr em questatildeo a definiccedilatildeo de crime como verdade ontoloacutegica O propoacutesito do proacuteximo capiacutetulo eacute avaliar e discutir se os eventos sociais considerados problemaacuteticos e penalmente definidos como crimes na sociedade satildeo por esta reconhecidos e aceitos como tais na realidade

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Da Descriminalizaccedilatildeo agrave Aboliccedilatildeo da Pena

A crise profunda da justiccedila penal avalia Cervini (1995) estaacute associada ao fracasso da ideologia do tratamento que pretende em seus diversos niacuteveis resolver os custos individuais e sociais do delito a defasagem das leis com certas culturas a existecircncia da cifra negra6

aleacutem das contradiccedilotildees dogmaacuteticas No momento histoacuterico atual diz Cervine dois fatores favorecem

a tendecircncia de descriminalizaccedilatildeo do direito penal um individual outro social No primeiro caso a pena privativa de liberdade que diminui a possibilidade de adaptabilidade no segundo caso os efeitos sociais estigmatizadores depois de sua aplicaccedilatildeo Em termos sociais natildeo haacute uma soluccedilatildeo eficiente em reparar o custo do crime nem de supressatildeo do estigma de ex-presidiaacuterio

As soluccedilotildees que o sistema penal tem adotado para gerir o problema da criminalidade encontram um potente antiacutedoto quando se avalia a existecircncia da chamada cifra negra Essa afirma Cervine indica claramente que os fatos aos quais a lei denomina de delitos natildeo satildeo considerados como fatos agrave parte separados de outros aconteshycimentos Uma soma relevante de acontecimentos formalmente considerados delitos e teoricamente merecedores de aplicaccedilatildeo penal natildeo eacute considerada nem valorizada como tal pelas viacutetimas ou pelos agentes do sistema pessoalmente interpelados mediante delaccedilotildees concretas (CERVINI 1995 pl73)

Tais consideraccedilotildees colidem com as premissas utoacutepicas da sociedade de controle que busca incansavelmente definir e administrar o crime atraveacutes da diversificaccedilatildeo das penas de ajustes da reclusatildeo prisional de reforma eletrocircnica das prisotildees mais investimentos e maior eficiecircncia na burocraacutetica criminal A sociedade de controle diz Passetti (1999) natildeo atenta para o fato da existecircncia de uma sociedade sem penas seja em

6 Cervini (1995 p162) comenta que a cifra negra eacute produto da diferenccedila existente entre a criminalidade real quantidade de delitos cometidos num tempo e lugar determinados e a criminal idade aparente conhecida pelos oacutergatildeos de controle Ou seja um percentual substancial de delitos estaacute estruturalmente fora do alcance e do controle do direito penal colocando em xeque a credibilidade de todo o sistema

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razatildeo da cifra negra (diferenccedila entre infraccedilotildees denunciadas na poliacutecia e aquelas efetivamente julgadas) seja porque parte consideraacutevel das infraccedilotildees eacute resolvida sem a necessidade da formalidade juriacutedica do just07bull

A maioria dos conflitos cotidianos dentro das fanulias das empresas dos estabelecimentos de ensino das organizaccedilotildees profissionais dos sindicatos clubes ou associaccedilotildees privadas satildeo segundo Hulsman e Celis (1993) resolvidos sem ter de entrar no sistema penal O grande nuacutemero de encarcerados eacute insignificante diante da quantidade real de fatos puniacuteveis que ocorrem a todo instante raramente detectados pelo sistema penal O sistema penal eacute confrontado com uma espantosa soma de casos semelhantes poreacutem apenas alguns deles e de forma injusta satildeo tratados pelo sistema cuja prisatildeo se nutre diariamente de viacutetimas preferencias

Fora os delitos que natildeo pertencem ao chamado nuacutecleo duro da delinquumlecircncia como o terrorismo e a criminalidade organizada o sistema penal afirma Hulsman cria mais problemas do que contribuiccedilotildees para resolver

Diante disso o autor propotildee uma outra loacutegica Diz que um comportamento pode deixar de ser crime sem afetar os laccedilos de sociabilidade O homossexualismo cantado em prosa e verso por Platatildeo foi penalmente condenado pelo Estado moderno durante muito tempo A prostituiccedilatildeo convive com a proibiccedilatildeo sob ameaccedila penal ateacute a liberdade total ou passando por toda sorte de controle administrativo A embriaguez em si natildeo interessa agrave lei ocidental mas soacute indiretamente (dirigir embriagado) O mesmo tratamento diferencial ocorre em relaccedilatildeo ao uso e ao traacutefico de drogas Alguns paiacuteses condenam penalmente o uso e o traacutefico excluindo o consumo pessoal Outros soacute colocam no campo penal as drogas ditas pesadas excluindo as chamadas drogas leves8

7 Na opiniatildeo de Passeui (1999 p63) o que esta utopia natildeo admite mas permitia eacute que no lugar da ressocializaccedilatildeo e da futura reintegmccedilatildeo prevaleccedila o depoacutesito de corpos para os qu ai s os uacutenicos investimentos satildeo a diminui ccedilatildeo a zero da possibilidade de fuga e a rigorosa vigilacircncia apoacutes o sentenciaroento

Na avaliaccedilatildeo de Hulsman e Celis (1 993 plOI) natildeo exi stem nem crimes nem delitos mas apenas situaccedilotildees problemaacuteticas Sem a presenccedila e participaccedilatildeo das pessoas envolvidas nestas situaccedilotildees natildeo haacute como resolvecirc-las de forma humana Classificar um fato de crime significa excluir a priori ou tras saiacutedas poss iacuteveis limitando-se ao es tilo estatal punitivo dominado pelo pensamento juriacutedico distante da realidade

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o processo de globalizaccedilatildeo econocircmica e financeira apenas indiretamente contribui para aprofundar a crise do sistema de justiccedila penal nos paiacuteses capitalistas centrais e perifeacutericos As razotildees da falecircncia do modelo de poliacutetica criminal estatildeo associadas ao processo de reforma penal dos seacuteculos XVIII e XIX periacuteodo em que a sociedade burguesa adotou o principio da puniccedilatildeo generalizada por meio da teoria da humanizaccedilatildeo da pena A reforma do coacutedigo penal burguecircs diz Foucault (1987) converteu inuacutemeros problemas sociais em conflitos criminais estabeleceu uma classificaccedilatildeo metoacutedica dos delitos em termos de gravidade e hierarquia e como complemento modificou e converteu as prisotildees em locais privilegiados com o propoacutesito de recuperar os delinquumlentes infratores atraveacutes do tratamento ressocializador

Desde entatildeo todas as propostas adotadas visando a reforma do sistema penal natildeo tocaram e natildeo discutiram seriamente o significado do crime sua classificaccedilatildeo tampouco sua instituiccedilatildeo correlata a prisatildeo As teorias criminais da normalizaccedilatildeo e da defesa da lei e da ordem (toleracircncia zero) satildeo ilustrativas a esse respeito

A primeira vecirc no crime uma accedilatildeo racional oportunista Parte do pressuposto de que a sociedade atual eacute uma sociedade de risco em que o fenocircmeno criminal natildeo pode ser tratado como algo patoloacutegico mas uma questatildeo de oportunidade Propotildee desativar a burocracia estatal repressiva por ter falhado na tentativa de desarmar e de punir o autor do delito e transferir a responsabilidade do controle do crime aos setores da sociedade civil Grupos privados deveriam armar os alvos vulneraacuteveis criar obstaacuteculos defender suas casas carros cheques cartotildees de creacutedito etc Tais mudanccedilas tomariam as coisas mais difiacuteceis evitando que pessoas pertencentes aos diversos grupos sociais se convertessem em presas faacuteceis de accedilotildees criminais

A segunda (movimento da lei e da ordem) associa a banalizaccedilatildeo do crime agrave fraqueza das respostas das leis penais vigentes Por isso advoga a necessidade de uma perseguiccedilatildeo implacaacutevel de pequenos atos como jogar lixo no chatildeo e furtos ocasionais propondo o aumento da pena para os delinquumlentes ocasionais e a prisatildeo perpeacutetua para os delinquumlentes mais perigosos O que diferencia as teorias criminais em foco eacute mais uma questatildeo de estrateacutegia e natildeo de princiacutepios Ambas trabalham com a noccedilatildeo de crime como uma verdade social e juriacutedica

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A negaccedilatildeo do conceito de crime como um fato social normal constitui objeto de reflexatildeo das teorias da descriminalizaccedilatildeo e abolicionistas para as quais as definiccedilotildees abstratas de crime e de pena vigentes no coacutedigo penal natildeo correspondem agraves definiccedilotildees que delas fazem as pessoas reais A desqualificaccedilatildeo do discurso juriacutedico penal natildeo resulta portando das dificuldades da aplicaccedilatildeo da lei da ineficiecircncia dos oacutergatildeos de controle criados para administraacute-la ou ainda de seu reduzido alcance quando se compara a totalidade de crimes formalmente descritos e os que realmente satildeo solucionados

Uma soluccedilatildeo poliacutetica socialmente legiacutetima na soluccedilatildeo dos problemas sociais hoje definidos e classificados como problemas criminais natildeo pode limitar-se ao entendimento e agrave aceitaccedilatildeo do braccedilo punitivo estatal e de sua burocracia centralizadora como o melhor remeacutedio para gerir os conflitos penais existentes Portanto toma-se urgente questionar seriamente se os eventos sociais formalmente criminalizaacuteveis satildeo concebidos e aceitos como tais pelos agentes sociais direta e potencialmente envolvidos em tais conflitos

Isso implica admitir a possibilidade da sociedade resolver inuacutemeros problemas atualmente circunscritos no campo do direito penal fora do campo estatal punitivo Nesse sentido a responsabilidade pela soluccedilatildeo dos conflitos sob a tutela do direito penal seria transferida aos agentes direta e potencialmente envolvidos em situaccedilotildees problemaacuteticas (acusado viacutetima familiares Estado e demais interessados)

A atuaccedilatildeo da burocracia de justiccedila (poliacutecia e judiciaacuterio) se limitaria a mediar e natildeo intervir diretamente visando impor a melhor soluccedilatildeo para o conflito Para isso outras instacircncias juriacutedicas (campo civil e administrativo) poderiam ser acionadas em detrimento do pesado seletivo e ineficiente sistema de justiccedila penal estatal vigente que por meio de seus oacutergatildeos policiais judiciaacuterios e administrativos procura sem nunca poder encontrar a melhor soluccedilatildeo para o acusado seus familiares agrave vitima e a sociedade

Dois adolescentes (Japonecircs e Laacutezaro) praticaram mais um delito contra o patrimocircnio E daiacute Prendecirc-los ressocializaacute-Ios responsabilizar seus familiares Armar melhor determinados alvos sociais vulneraacuteveis que facilitam o roubo o furto

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Como ressocializar algueacutem que por razotildees conjunturais como o

desemprego e a crise econocircmica pratica um delito contra a propriedade se tais razotildees continuam a persistir Como responsabilizar seus familiares9 se a concepccedilatildeo nuclear de famiacutelia burguesa mudou

Para os defensores do movimento da lei e da ordem o Estado deve responder punindo de modo exemplar Entre os adeptos da normalizaccedilatildeo do crime o Estado deve preocupar-se em punir menos e criar uma nova estrateacutegia com O propoacutesito de armar mais as viacutetimas que os infratores

Tais movimentos natildeo tocam numa questatildeo central como o fazem os adeptos da descriminalizaccedilatildeo e da aboliccedilatildeo da pena para os quais a realidade atual propicia duas alternativas procurar outras repostas para os velhos e novos problemas questionando reduzindo e abolindo o crime e a prisatildeo ou restauraacute-la sob a condiccedilatildeo de aparelho de terror repressivo

9 Passetti (1995 p23) afirma que a situaccedilatildeo social dessas crianccedilas e adolescentes violentados permite desmistificar duas falaacutecias famiacutelias desestruturadas e o suposto acesso democraacutetico agrave escola O modelo de faTlllia vigente nas metroacutepoles natildeo corresponde mais agraves caracteriacutesticas da faTlllia modelar burguesa do capitalismo livre-concorrecircncia e natildeo pode mais ser restaurada como pretende o conservadorismo

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Referecircncias

ADORNO S Violecircncia e civilizaccedilatildeo In CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA 9 1999 Pelotas Anais Pelotas Sociedade Brasileira de Sociologia 1999 p77-106

BARATTA Alessandro Escola positiva e explicaccedilatildeo patoloacutegica da criminal idade In ___ o Criminologia crftica e criacutetica do direito penal introduccedilatildeo agrave sociologia do direito penal 3ed Rio de Janeiro Revan 2002

CERVINI Rauacutel Os processos de descriminalizaccedilatildeo 2ed Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 1995

CHARVET D Crise da Justiccedila da lei crise do Estado In POULANTZAS N (Org) O Estado em crise Rio de Janeiro Graal 1977

CHESNAIS Franccedilois Mundializaccedilatildeo o capital financeiro no comando Outubro Revista do Instituto de Estudos Socialistas Satildeo Paulo n5 p7-42 2001

DOWBOR Ladislau IANNI Octavio RESENDE Paulo Edgar (orgs) Desafios da Globalizaccedilatildeo Petroacutepolis Vozes 1998

FOUCAULT Michel Vigiar e punir histoacuteria da violecircncia nas prisotildees 23ed Petroacutepolis Vozes 1987

GARLAND David As contradiccedilotildees da sociedade punitiva o caso britacircnico Revista de Sociologia e Poliacutetica Curitiba n13 p59-80 novo 1999

HULSMAN Louk CELlS Jacqueline Bernat de Penas perdidas o sistema penal em ques tatildeo Rio de Janeiro Luam 1993

OHMAE Kenicbi O fim do Estado Naccedilatildeo a ascensatildeo das economias regionais 3ed Satildeo Paulo Campus 1999

PASSETTI Edson (Org) Violentados crianccedilas adolescentes e justiccedila Satildeo Paulo Imaginaacuterio 1995

PASSETTI Edson Sociedade de controle e aboliccedilatildeo da puniccedilatildeo Violecircncia e Mal-Estar na Sociedade Satildeo Paulo em Perspectiva Satildeo Paulo v13 n3 jull set1 999

SANTOS Boaventura Sousa A crtica da razatildeo indolente contra o desperdfcio da experiecircncia Satildeo Paulo Cortez 2000 v 1

WACQUANT Lolc As prisotildees da miseacuteria Rio de Janeiro Zabar 2001

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Abstract

The current process of economic and financiaI globalization has elicited contradictory answers in the formulation of criminal policies by State bureaucracy On the one hand under strong influence of neoclassical economic thought there appears in the United Kingdom the theory of crime normalization qualifying the criminal act as a rational choice option a matter of opportunity according to which delinquents rational1y calculate their actions Such theory proposes to replace the classical model of criminal policy which relates the penal practice to the figure of the other the abnormal by a new model of risk society which sees a professional career in criminal acts On the other hand there appears in the United States the movement in defense of law and order which proposes no tolerance to crime by the amplification of penal right and the recrudescence of the State criminal answer For the defenders of decriminalization and penalabolitionism the utopia of control society which favors the increase of punisbment and target changes to administer crime ignores the existence of a society with no penalties which is manifested through the dark cipher the difference between reported infractions to the police and those really judged

Key words globalization state crime punishment decriminalization penalty abolishment

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Page 13: INTRODUÇÃO AO DEBATE SOBRE AS POLíTICAS OFICIAIS NO ... · sem penas a qual se manifesta através da cifra negra, ... vinculados em razão do potencial revolucionário da informação

Em 1998 o nuacutemero de condenados por contenciosos natildeoshyviolentos reclusos rompeu sozinha a cifra simboacutelica do milhatildeo Nas prisotildees 6 em cada 10 condenados satildeo negros ou latinos Menos da metade tinha emprego em tempo integral no momento de ser posta atraacutes das grades (WACQUANT 2001 p83)

Essa mudanccedila de objetivo e de resultado reflete o abandono do ideal da reabilitaccedilatildeo depois das criacuteticas cruzadas da direita e da esquerda na deacutecada de 70 e de sua substituiccedilatildeo por uma nova penalogia norte-americana cujo objetivo natildeo eacute mais prevenir o crime nem tratar os delinquumlentes objetivando o seu eventual retorno agrave sociedade O propoacutesito da nova ordem criminal nos EUA eacute isolar grupos considerados perigosos e neutralizar seus membros mais agressivos mediante uma seacuterie padronizada de compOltamentos

O reconhecimento pelos teoacutericos da normalizaccedilatildeo do crime e pelos adeptos de uma poliacutetica criminal ultra-repressiva da incapacidade da burocracia estatal de gerir e controlar os litiacutegios criminais na sociedade atual reafirma a viabilidade de fazer um questionamento teoacuterico e poliacutetico mais profundo dos paradigmas que aceitam como um dado a priori a existecircncia do crime Trata-se portanto de acrescentar e analisar outros movimentos poliacuteticoshyteoacutericos para uma melhor compreensatildeo das razotildees da falecircncia do modelo penal estatal existente

Globalizaccedilatildeo e Outros Fundamentos da Accedilatildeo Criminal

A justiccedila como aparelho de Estado acha-se em dificuldades para cumprir sua missatildeo de regulaccedilatildeo dos conflitos porque comenta Charvet (1977) sua ideologia juriacutedica estaacute em crise sua legitimidade eacute contestada pelos dominados e sua eficiecircncia pelos dominantes Na Franccedila verifica-se o avanccedilo das forccedilas da ordem atraveacutes do crescimento dos efetivos policiais judiciaacuterios e das forccedilas militares (guardas nas praias rodovias e outros lugares da vida puacuteblica) Diante da crise fiscal que impede o Estado de colocar um policial atraacutes de cada cidadatildeo tende-se a criar estrateacutegias de modo a redescobrir e converter em um policial cada cidadatildeo

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A incapacidade da burocracia estatal de regular os conflitos criminais vai aleacutem do processo atual de globalizaccedilatildeo econocircmica e financeira Adorno (1999) fala de um novo paradigma que aponta para algo aleacutem do crimes

O surgimento do Estado moderno caracterizado pelo monopoacutelio da violecircncia e pacificaccedilatildeo social foi acompanhado pela racionalizaccedilatildeo do direito atraveacutes dos seguintes princiacutepios positividade (vontade de um legislador soberano que atraveacutes de meios juriacutedicos de organizaccedilatildeo regulamenta as atividades da vida social) legalidade (natildeo reconhece outro ordenamento juriacutedico que natildeo seja estatal e outra forma de ordenamento estatal que natildeo seja lei)formalidade (o direito moderno define o domiacutenio onde se pode exercer legitimamente o livre arbiacutetrio das pessoas privadas) Esses princiacutepios afirma Adorno estatildeo sendo esfacelados

Por volta de 1950 ocorreu em todos os paiacuteses ocidentais um aumento substancial dos crimes contra as pessoas e ainda mais contra o patrimocircnio Um maior nuacutemero de pessoas passou a violar as leis penais e um grande nuacutemero de comportamentos e bens protegidos pelas leis penais ficou mais vulneraacutevel agrave ofensa e ao ataque

O problema natildeo reside nos crimes em si mas na maior ou menor disposiccedilatildeo social em aceitaacute-los e conviver com eles Ocorre que na sociedade atual essa toleracircncia diz Dahrendorf apud Adorno (1999) teria chegado ao limite haja visto (sic) as reaccedilotildees e a ansiedade puacuteblica diante da crescente ameaccedila do crime e da incapacidade da burocracia estatal em resolvecirc-lo

A erosatildeo da lei e da ordem estaacute vinculada agrave maior probabilidade de um criminoso se manter oculto hoje comparativamente ao passado Uma taxa despreziacutevel dos crimes cometidos eacute resolvida em razatildeo do descaso da poliacutetica pelos delinquumlentes conhecidos desistecircncia deliberada e afrouxamento das puniccedilotildees ou incapacidade de se lidar com as infraccedilotildees A impunidade aumenta e potildee em questatildeo a eficaacutecia das normas Isso provoca a sensaccedilatildeo de inexistecircncia das leis ou

5 O novo paradigma afirma Adorno (1999 p77) diz respeito agrave mudanccedila de hiacutebitos agrave exacerbaccedilatildeo de novos conflitos sociais agrave adoccedilatildeo de soluccedilotildees que desafiam tradiccedilotildees democraacuteticas agrave demarcaccedilatildeo de novas fronteiras sociais [ ] ao sentimento de desordem e caos que se espelha na ausecircncia de justiccedila social

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quando invocadas resultam sem efeito As sociedades contemporacircneas convi vem com o decliacutenio das sanccedilotildees A impunidade torna-se cotidiana diante da decretada incapacidade da burocracia estatal de cuidar da seguranccedila dos cidadatildeos de proteger seus bens materiais e simboacutelicos

Os mecanismos de pressatildeo social (que atuam sobre o comportamento dos sujeitos) que operam sobretudo na esfera da moralidade puacuteblica e privada natildeo parecem suscitar nem o sentimento de medo nem sequer o de anguacutestia diante das possibilidades sempre abertas de violaccedilatildeo das normas sociais As sociedades urbanas complexas comenta Adorno (1999) liberaram o homem do controle social Diante de tantas incertezas cresce por parte da sociedade uma obsessatildeo punitiva reivindicando mais ordem social

Isso natildeo impede o surgimento do modelo de funcionamento da sociedade de risco que potildee em movimento uma superestrutura de prevenccedilatildeo e de seguranccedila por meio da proliferaccedilatildeo das sociedades de seguro e de mecanismos de vigilacircncia privada com o objetivo de enfrentar o medo os perigos e ameaccedilas que tornam a vida humana incerta (ADORNO 1999 plOl-102)

Um poliacutetica de responsabilizaccedilatildeo individual atraveacutes de medidas repressivas voltadas para os jovens delinquumlentes como a reduccedilatildeo da idade para efeitos de responsabilidade penal e instauraccedilatildeo da responsabilidade dos pais em mateacuteria civil e penal tem sido discutida pelos parlamentares europeus Enveredando-se pelo caminho de mais Estado econocircmico e menos Estado social cria-se e justifica-se o mito da inevitabilidade da escalada do crime para disseminar a estrateacutegia da responsabilizaccedilatildeo como forma de mostrar que a prevenccedilatildeo e o controle do crime natildeo pode de modo exclusivo recair mais sobre o Estado

De agora em diante varejistas industriais autoridades escolares empresas de transporte pais trabalhadores e desempregados teratildeo de dividir essa responsabilidade Na deacutecada de 1990 a poliacutetica criminal da responsabilizaccedilatildeo teve por efeito reduzir a dependecircncia para com o Estado e aumentar a dependecircncia para com o mercado Investimentos na criminalidade como dispositivos de seguranccedila satildeo cada vez mais impostos pelas forccedilas econocircmicas em detrimento da poliacutetica puacuteblica

Nas sociedades onde ocorrem divisotildees sociais e raciais

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profundas em que as taxas de criminalidade e os niacuteveis de inseguranccedila satildeo elevados onde soluccedilotildees sociais foram politicamente desacreditas aleacutem de haver um ceticismo crescente quanto agrave perspectiva de reintegraccedilatildeo dos antigos delinquumlentes um setor comercial em expansatildeo favorece o aumento da populaccedilatildeo carceraacuteria pondo em marcha uma cultura do encarceramento em massa nos paiacuteses democraacuteticos

A responsabilizaccedilatildeo de organismos natildeo estatais no combate agrave criminal idade provoca enormes disparidades no financiamento social e na rede de seguranccedila Esta deixa de ser garantida para todos por meio de um Estado soberano para converte-se num produto cuja distribuiccedilatildeo estaacute subordinada agraves forccedilas de mercado As classes subalternas que mais sofrem a criminal idade estatildeo incapacitadas de comprar seguranccedila de adaptar suas vidas cotidianas e de se organizar de forma eficaz contra o crime

Poliacuteticas sociais de prevenccedilatildeo da criminalidade foram seriamente atacadas em razatildeo das transformaccedilotildees poliacuteticas sociais e econocircmicas das uacuteltimas deacutecadas Tentativas de prevenccedilatildeo e de responsabilizaccedilatildeo satildeo solapadas por uma economia de livre mercado que exclui as massas do trabalho remunerado e que nutre ativamente o crime engendrando expectativas de consumidor insaciaacutevel gerando ao mesmo tempo novos niacuteveis de pobreza da crianccedila da disfunccedilatildeo da famiacutelia e de desigualdade social (GARLAND 1999 p77)

A emergecircncia de novos problemas sociais que desafiam os princiacutepios legitimadores do Estado moderno tende a acelerar poreacutem em si natildeo justifica o fracasso da burocracia oficial na resoluccedilatildeo dos atos infracionais na sociedade contemporacircnea Os sintomas aparentes de desordem de caos de aumento da impunidade etc que reinam na sociedade vatildeo muito aleacutem de uma poliacutetica criminal deliberada de afrouxamento do poder estatal como estrateacutegia de administrar os conflitos criminais

A crise de legitimidade estatal na gestatildeo do crime reforccedila a necessidade de pocircr em questatildeo a definiccedilatildeo de crime como verdade ontoloacutegica O propoacutesito do proacuteximo capiacutetulo eacute avaliar e discutir se os eventos sociais considerados problemaacuteticos e penalmente definidos como crimes na sociedade satildeo por esta reconhecidos e aceitos como tais na realidade

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Da Descriminalizaccedilatildeo agrave Aboliccedilatildeo da Pena

A crise profunda da justiccedila penal avalia Cervini (1995) estaacute associada ao fracasso da ideologia do tratamento que pretende em seus diversos niacuteveis resolver os custos individuais e sociais do delito a defasagem das leis com certas culturas a existecircncia da cifra negra6

aleacutem das contradiccedilotildees dogmaacuteticas No momento histoacuterico atual diz Cervine dois fatores favorecem

a tendecircncia de descriminalizaccedilatildeo do direito penal um individual outro social No primeiro caso a pena privativa de liberdade que diminui a possibilidade de adaptabilidade no segundo caso os efeitos sociais estigmatizadores depois de sua aplicaccedilatildeo Em termos sociais natildeo haacute uma soluccedilatildeo eficiente em reparar o custo do crime nem de supressatildeo do estigma de ex-presidiaacuterio

As soluccedilotildees que o sistema penal tem adotado para gerir o problema da criminalidade encontram um potente antiacutedoto quando se avalia a existecircncia da chamada cifra negra Essa afirma Cervine indica claramente que os fatos aos quais a lei denomina de delitos natildeo satildeo considerados como fatos agrave parte separados de outros aconteshycimentos Uma soma relevante de acontecimentos formalmente considerados delitos e teoricamente merecedores de aplicaccedilatildeo penal natildeo eacute considerada nem valorizada como tal pelas viacutetimas ou pelos agentes do sistema pessoalmente interpelados mediante delaccedilotildees concretas (CERVINI 1995 pl73)

Tais consideraccedilotildees colidem com as premissas utoacutepicas da sociedade de controle que busca incansavelmente definir e administrar o crime atraveacutes da diversificaccedilatildeo das penas de ajustes da reclusatildeo prisional de reforma eletrocircnica das prisotildees mais investimentos e maior eficiecircncia na burocraacutetica criminal A sociedade de controle diz Passetti (1999) natildeo atenta para o fato da existecircncia de uma sociedade sem penas seja em

6 Cervini (1995 p162) comenta que a cifra negra eacute produto da diferenccedila existente entre a criminalidade real quantidade de delitos cometidos num tempo e lugar determinados e a criminal idade aparente conhecida pelos oacutergatildeos de controle Ou seja um percentual substancial de delitos estaacute estruturalmente fora do alcance e do controle do direito penal colocando em xeque a credibilidade de todo o sistema

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razatildeo da cifra negra (diferenccedila entre infraccedilotildees denunciadas na poliacutecia e aquelas efetivamente julgadas) seja porque parte consideraacutevel das infraccedilotildees eacute resolvida sem a necessidade da formalidade juriacutedica do just07bull

A maioria dos conflitos cotidianos dentro das fanulias das empresas dos estabelecimentos de ensino das organizaccedilotildees profissionais dos sindicatos clubes ou associaccedilotildees privadas satildeo segundo Hulsman e Celis (1993) resolvidos sem ter de entrar no sistema penal O grande nuacutemero de encarcerados eacute insignificante diante da quantidade real de fatos puniacuteveis que ocorrem a todo instante raramente detectados pelo sistema penal O sistema penal eacute confrontado com uma espantosa soma de casos semelhantes poreacutem apenas alguns deles e de forma injusta satildeo tratados pelo sistema cuja prisatildeo se nutre diariamente de viacutetimas preferencias

Fora os delitos que natildeo pertencem ao chamado nuacutecleo duro da delinquumlecircncia como o terrorismo e a criminalidade organizada o sistema penal afirma Hulsman cria mais problemas do que contribuiccedilotildees para resolver

Diante disso o autor propotildee uma outra loacutegica Diz que um comportamento pode deixar de ser crime sem afetar os laccedilos de sociabilidade O homossexualismo cantado em prosa e verso por Platatildeo foi penalmente condenado pelo Estado moderno durante muito tempo A prostituiccedilatildeo convive com a proibiccedilatildeo sob ameaccedila penal ateacute a liberdade total ou passando por toda sorte de controle administrativo A embriaguez em si natildeo interessa agrave lei ocidental mas soacute indiretamente (dirigir embriagado) O mesmo tratamento diferencial ocorre em relaccedilatildeo ao uso e ao traacutefico de drogas Alguns paiacuteses condenam penalmente o uso e o traacutefico excluindo o consumo pessoal Outros soacute colocam no campo penal as drogas ditas pesadas excluindo as chamadas drogas leves8

7 Na opiniatildeo de Passeui (1999 p63) o que esta utopia natildeo admite mas permitia eacute que no lugar da ressocializaccedilatildeo e da futura reintegmccedilatildeo prevaleccedila o depoacutesito de corpos para os qu ai s os uacutenicos investimentos satildeo a diminui ccedilatildeo a zero da possibilidade de fuga e a rigorosa vigilacircncia apoacutes o sentenciaroento

Na avaliaccedilatildeo de Hulsman e Celis (1 993 plOI) natildeo exi stem nem crimes nem delitos mas apenas situaccedilotildees problemaacuteticas Sem a presenccedila e participaccedilatildeo das pessoas envolvidas nestas situaccedilotildees natildeo haacute como resolvecirc-las de forma humana Classificar um fato de crime significa excluir a priori ou tras saiacutedas poss iacuteveis limitando-se ao es tilo estatal punitivo dominado pelo pensamento juriacutedico distante da realidade

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o processo de globalizaccedilatildeo econocircmica e financeira apenas indiretamente contribui para aprofundar a crise do sistema de justiccedila penal nos paiacuteses capitalistas centrais e perifeacutericos As razotildees da falecircncia do modelo de poliacutetica criminal estatildeo associadas ao processo de reforma penal dos seacuteculos XVIII e XIX periacuteodo em que a sociedade burguesa adotou o principio da puniccedilatildeo generalizada por meio da teoria da humanizaccedilatildeo da pena A reforma do coacutedigo penal burguecircs diz Foucault (1987) converteu inuacutemeros problemas sociais em conflitos criminais estabeleceu uma classificaccedilatildeo metoacutedica dos delitos em termos de gravidade e hierarquia e como complemento modificou e converteu as prisotildees em locais privilegiados com o propoacutesito de recuperar os delinquumlentes infratores atraveacutes do tratamento ressocializador

Desde entatildeo todas as propostas adotadas visando a reforma do sistema penal natildeo tocaram e natildeo discutiram seriamente o significado do crime sua classificaccedilatildeo tampouco sua instituiccedilatildeo correlata a prisatildeo As teorias criminais da normalizaccedilatildeo e da defesa da lei e da ordem (toleracircncia zero) satildeo ilustrativas a esse respeito

A primeira vecirc no crime uma accedilatildeo racional oportunista Parte do pressuposto de que a sociedade atual eacute uma sociedade de risco em que o fenocircmeno criminal natildeo pode ser tratado como algo patoloacutegico mas uma questatildeo de oportunidade Propotildee desativar a burocracia estatal repressiva por ter falhado na tentativa de desarmar e de punir o autor do delito e transferir a responsabilidade do controle do crime aos setores da sociedade civil Grupos privados deveriam armar os alvos vulneraacuteveis criar obstaacuteculos defender suas casas carros cheques cartotildees de creacutedito etc Tais mudanccedilas tomariam as coisas mais difiacuteceis evitando que pessoas pertencentes aos diversos grupos sociais se convertessem em presas faacuteceis de accedilotildees criminais

A segunda (movimento da lei e da ordem) associa a banalizaccedilatildeo do crime agrave fraqueza das respostas das leis penais vigentes Por isso advoga a necessidade de uma perseguiccedilatildeo implacaacutevel de pequenos atos como jogar lixo no chatildeo e furtos ocasionais propondo o aumento da pena para os delinquumlentes ocasionais e a prisatildeo perpeacutetua para os delinquumlentes mais perigosos O que diferencia as teorias criminais em foco eacute mais uma questatildeo de estrateacutegia e natildeo de princiacutepios Ambas trabalham com a noccedilatildeo de crime como uma verdade social e juriacutedica

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A negaccedilatildeo do conceito de crime como um fato social normal constitui objeto de reflexatildeo das teorias da descriminalizaccedilatildeo e abolicionistas para as quais as definiccedilotildees abstratas de crime e de pena vigentes no coacutedigo penal natildeo correspondem agraves definiccedilotildees que delas fazem as pessoas reais A desqualificaccedilatildeo do discurso juriacutedico penal natildeo resulta portando das dificuldades da aplicaccedilatildeo da lei da ineficiecircncia dos oacutergatildeos de controle criados para administraacute-la ou ainda de seu reduzido alcance quando se compara a totalidade de crimes formalmente descritos e os que realmente satildeo solucionados

Uma soluccedilatildeo poliacutetica socialmente legiacutetima na soluccedilatildeo dos problemas sociais hoje definidos e classificados como problemas criminais natildeo pode limitar-se ao entendimento e agrave aceitaccedilatildeo do braccedilo punitivo estatal e de sua burocracia centralizadora como o melhor remeacutedio para gerir os conflitos penais existentes Portanto toma-se urgente questionar seriamente se os eventos sociais formalmente criminalizaacuteveis satildeo concebidos e aceitos como tais pelos agentes sociais direta e potencialmente envolvidos em tais conflitos

Isso implica admitir a possibilidade da sociedade resolver inuacutemeros problemas atualmente circunscritos no campo do direito penal fora do campo estatal punitivo Nesse sentido a responsabilidade pela soluccedilatildeo dos conflitos sob a tutela do direito penal seria transferida aos agentes direta e potencialmente envolvidos em situaccedilotildees problemaacuteticas (acusado viacutetima familiares Estado e demais interessados)

A atuaccedilatildeo da burocracia de justiccedila (poliacutecia e judiciaacuterio) se limitaria a mediar e natildeo intervir diretamente visando impor a melhor soluccedilatildeo para o conflito Para isso outras instacircncias juriacutedicas (campo civil e administrativo) poderiam ser acionadas em detrimento do pesado seletivo e ineficiente sistema de justiccedila penal estatal vigente que por meio de seus oacutergatildeos policiais judiciaacuterios e administrativos procura sem nunca poder encontrar a melhor soluccedilatildeo para o acusado seus familiares agrave vitima e a sociedade

Dois adolescentes (Japonecircs e Laacutezaro) praticaram mais um delito contra o patrimocircnio E daiacute Prendecirc-los ressocializaacute-Ios responsabilizar seus familiares Armar melhor determinados alvos sociais vulneraacuteveis que facilitam o roubo o furto

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Como ressocializar algueacutem que por razotildees conjunturais como o

desemprego e a crise econocircmica pratica um delito contra a propriedade se tais razotildees continuam a persistir Como responsabilizar seus familiares9 se a concepccedilatildeo nuclear de famiacutelia burguesa mudou

Para os defensores do movimento da lei e da ordem o Estado deve responder punindo de modo exemplar Entre os adeptos da normalizaccedilatildeo do crime o Estado deve preocupar-se em punir menos e criar uma nova estrateacutegia com O propoacutesito de armar mais as viacutetimas que os infratores

Tais movimentos natildeo tocam numa questatildeo central como o fazem os adeptos da descriminalizaccedilatildeo e da aboliccedilatildeo da pena para os quais a realidade atual propicia duas alternativas procurar outras repostas para os velhos e novos problemas questionando reduzindo e abolindo o crime e a prisatildeo ou restauraacute-la sob a condiccedilatildeo de aparelho de terror repressivo

9 Passetti (1995 p23) afirma que a situaccedilatildeo social dessas crianccedilas e adolescentes violentados permite desmistificar duas falaacutecias famiacutelias desestruturadas e o suposto acesso democraacutetico agrave escola O modelo de faTlllia vigente nas metroacutepoles natildeo corresponde mais agraves caracteriacutesticas da faTlllia modelar burguesa do capitalismo livre-concorrecircncia e natildeo pode mais ser restaurada como pretende o conservadorismo

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Referecircncias

ADORNO S Violecircncia e civilizaccedilatildeo In CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA 9 1999 Pelotas Anais Pelotas Sociedade Brasileira de Sociologia 1999 p77-106

BARATTA Alessandro Escola positiva e explicaccedilatildeo patoloacutegica da criminal idade In ___ o Criminologia crftica e criacutetica do direito penal introduccedilatildeo agrave sociologia do direito penal 3ed Rio de Janeiro Revan 2002

CERVINI Rauacutel Os processos de descriminalizaccedilatildeo 2ed Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 1995

CHARVET D Crise da Justiccedila da lei crise do Estado In POULANTZAS N (Org) O Estado em crise Rio de Janeiro Graal 1977

CHESNAIS Franccedilois Mundializaccedilatildeo o capital financeiro no comando Outubro Revista do Instituto de Estudos Socialistas Satildeo Paulo n5 p7-42 2001

DOWBOR Ladislau IANNI Octavio RESENDE Paulo Edgar (orgs) Desafios da Globalizaccedilatildeo Petroacutepolis Vozes 1998

FOUCAULT Michel Vigiar e punir histoacuteria da violecircncia nas prisotildees 23ed Petroacutepolis Vozes 1987

GARLAND David As contradiccedilotildees da sociedade punitiva o caso britacircnico Revista de Sociologia e Poliacutetica Curitiba n13 p59-80 novo 1999

HULSMAN Louk CELlS Jacqueline Bernat de Penas perdidas o sistema penal em ques tatildeo Rio de Janeiro Luam 1993

OHMAE Kenicbi O fim do Estado Naccedilatildeo a ascensatildeo das economias regionais 3ed Satildeo Paulo Campus 1999

PASSETTI Edson (Org) Violentados crianccedilas adolescentes e justiccedila Satildeo Paulo Imaginaacuterio 1995

PASSETTI Edson Sociedade de controle e aboliccedilatildeo da puniccedilatildeo Violecircncia e Mal-Estar na Sociedade Satildeo Paulo em Perspectiva Satildeo Paulo v13 n3 jull set1 999

SANTOS Boaventura Sousa A crtica da razatildeo indolente contra o desperdfcio da experiecircncia Satildeo Paulo Cortez 2000 v 1

WACQUANT Lolc As prisotildees da miseacuteria Rio de Janeiro Zabar 2001

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Abstract

The current process of economic and financiaI globalization has elicited contradictory answers in the formulation of criminal policies by State bureaucracy On the one hand under strong influence of neoclassical economic thought there appears in the United Kingdom the theory of crime normalization qualifying the criminal act as a rational choice option a matter of opportunity according to which delinquents rational1y calculate their actions Such theory proposes to replace the classical model of criminal policy which relates the penal practice to the figure of the other the abnormal by a new model of risk society which sees a professional career in criminal acts On the other hand there appears in the United States the movement in defense of law and order which proposes no tolerance to crime by the amplification of penal right and the recrudescence of the State criminal answer For the defenders of decriminalization and penalabolitionism the utopia of control society which favors the increase of punisbment and target changes to administer crime ignores the existence of a society with no penalties which is manifested through the dark cipher the difference between reported infractions to the police and those really judged

Key words globalization state crime punishment decriminalization penalty abolishment

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Page 14: INTRODUÇÃO AO DEBATE SOBRE AS POLíTICAS OFICIAIS NO ... · sem penas a qual se manifesta através da cifra negra, ... vinculados em razão do potencial revolucionário da informação

A incapacidade da burocracia estatal de regular os conflitos criminais vai aleacutem do processo atual de globalizaccedilatildeo econocircmica e financeira Adorno (1999) fala de um novo paradigma que aponta para algo aleacutem do crimes

O surgimento do Estado moderno caracterizado pelo monopoacutelio da violecircncia e pacificaccedilatildeo social foi acompanhado pela racionalizaccedilatildeo do direito atraveacutes dos seguintes princiacutepios positividade (vontade de um legislador soberano que atraveacutes de meios juriacutedicos de organizaccedilatildeo regulamenta as atividades da vida social) legalidade (natildeo reconhece outro ordenamento juriacutedico que natildeo seja estatal e outra forma de ordenamento estatal que natildeo seja lei)formalidade (o direito moderno define o domiacutenio onde se pode exercer legitimamente o livre arbiacutetrio das pessoas privadas) Esses princiacutepios afirma Adorno estatildeo sendo esfacelados

Por volta de 1950 ocorreu em todos os paiacuteses ocidentais um aumento substancial dos crimes contra as pessoas e ainda mais contra o patrimocircnio Um maior nuacutemero de pessoas passou a violar as leis penais e um grande nuacutemero de comportamentos e bens protegidos pelas leis penais ficou mais vulneraacutevel agrave ofensa e ao ataque

O problema natildeo reside nos crimes em si mas na maior ou menor disposiccedilatildeo social em aceitaacute-los e conviver com eles Ocorre que na sociedade atual essa toleracircncia diz Dahrendorf apud Adorno (1999) teria chegado ao limite haja visto (sic) as reaccedilotildees e a ansiedade puacuteblica diante da crescente ameaccedila do crime e da incapacidade da burocracia estatal em resolvecirc-lo

A erosatildeo da lei e da ordem estaacute vinculada agrave maior probabilidade de um criminoso se manter oculto hoje comparativamente ao passado Uma taxa despreziacutevel dos crimes cometidos eacute resolvida em razatildeo do descaso da poliacutetica pelos delinquumlentes conhecidos desistecircncia deliberada e afrouxamento das puniccedilotildees ou incapacidade de se lidar com as infraccedilotildees A impunidade aumenta e potildee em questatildeo a eficaacutecia das normas Isso provoca a sensaccedilatildeo de inexistecircncia das leis ou

5 O novo paradigma afirma Adorno (1999 p77) diz respeito agrave mudanccedila de hiacutebitos agrave exacerbaccedilatildeo de novos conflitos sociais agrave adoccedilatildeo de soluccedilotildees que desafiam tradiccedilotildees democraacuteticas agrave demarcaccedilatildeo de novas fronteiras sociais [ ] ao sentimento de desordem e caos que se espelha na ausecircncia de justiccedila social

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quando invocadas resultam sem efeito As sociedades contemporacircneas convi vem com o decliacutenio das sanccedilotildees A impunidade torna-se cotidiana diante da decretada incapacidade da burocracia estatal de cuidar da seguranccedila dos cidadatildeos de proteger seus bens materiais e simboacutelicos

Os mecanismos de pressatildeo social (que atuam sobre o comportamento dos sujeitos) que operam sobretudo na esfera da moralidade puacuteblica e privada natildeo parecem suscitar nem o sentimento de medo nem sequer o de anguacutestia diante das possibilidades sempre abertas de violaccedilatildeo das normas sociais As sociedades urbanas complexas comenta Adorno (1999) liberaram o homem do controle social Diante de tantas incertezas cresce por parte da sociedade uma obsessatildeo punitiva reivindicando mais ordem social

Isso natildeo impede o surgimento do modelo de funcionamento da sociedade de risco que potildee em movimento uma superestrutura de prevenccedilatildeo e de seguranccedila por meio da proliferaccedilatildeo das sociedades de seguro e de mecanismos de vigilacircncia privada com o objetivo de enfrentar o medo os perigos e ameaccedilas que tornam a vida humana incerta (ADORNO 1999 plOl-102)

Um poliacutetica de responsabilizaccedilatildeo individual atraveacutes de medidas repressivas voltadas para os jovens delinquumlentes como a reduccedilatildeo da idade para efeitos de responsabilidade penal e instauraccedilatildeo da responsabilidade dos pais em mateacuteria civil e penal tem sido discutida pelos parlamentares europeus Enveredando-se pelo caminho de mais Estado econocircmico e menos Estado social cria-se e justifica-se o mito da inevitabilidade da escalada do crime para disseminar a estrateacutegia da responsabilizaccedilatildeo como forma de mostrar que a prevenccedilatildeo e o controle do crime natildeo pode de modo exclusivo recair mais sobre o Estado

De agora em diante varejistas industriais autoridades escolares empresas de transporte pais trabalhadores e desempregados teratildeo de dividir essa responsabilidade Na deacutecada de 1990 a poliacutetica criminal da responsabilizaccedilatildeo teve por efeito reduzir a dependecircncia para com o Estado e aumentar a dependecircncia para com o mercado Investimentos na criminalidade como dispositivos de seguranccedila satildeo cada vez mais impostos pelas forccedilas econocircmicas em detrimento da poliacutetica puacuteblica

Nas sociedades onde ocorrem divisotildees sociais e raciais

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profundas em que as taxas de criminalidade e os niacuteveis de inseguranccedila satildeo elevados onde soluccedilotildees sociais foram politicamente desacreditas aleacutem de haver um ceticismo crescente quanto agrave perspectiva de reintegraccedilatildeo dos antigos delinquumlentes um setor comercial em expansatildeo favorece o aumento da populaccedilatildeo carceraacuteria pondo em marcha uma cultura do encarceramento em massa nos paiacuteses democraacuteticos

A responsabilizaccedilatildeo de organismos natildeo estatais no combate agrave criminal idade provoca enormes disparidades no financiamento social e na rede de seguranccedila Esta deixa de ser garantida para todos por meio de um Estado soberano para converte-se num produto cuja distribuiccedilatildeo estaacute subordinada agraves forccedilas de mercado As classes subalternas que mais sofrem a criminal idade estatildeo incapacitadas de comprar seguranccedila de adaptar suas vidas cotidianas e de se organizar de forma eficaz contra o crime

Poliacuteticas sociais de prevenccedilatildeo da criminalidade foram seriamente atacadas em razatildeo das transformaccedilotildees poliacuteticas sociais e econocircmicas das uacuteltimas deacutecadas Tentativas de prevenccedilatildeo e de responsabilizaccedilatildeo satildeo solapadas por uma economia de livre mercado que exclui as massas do trabalho remunerado e que nutre ativamente o crime engendrando expectativas de consumidor insaciaacutevel gerando ao mesmo tempo novos niacuteveis de pobreza da crianccedila da disfunccedilatildeo da famiacutelia e de desigualdade social (GARLAND 1999 p77)

A emergecircncia de novos problemas sociais que desafiam os princiacutepios legitimadores do Estado moderno tende a acelerar poreacutem em si natildeo justifica o fracasso da burocracia oficial na resoluccedilatildeo dos atos infracionais na sociedade contemporacircnea Os sintomas aparentes de desordem de caos de aumento da impunidade etc que reinam na sociedade vatildeo muito aleacutem de uma poliacutetica criminal deliberada de afrouxamento do poder estatal como estrateacutegia de administrar os conflitos criminais

A crise de legitimidade estatal na gestatildeo do crime reforccedila a necessidade de pocircr em questatildeo a definiccedilatildeo de crime como verdade ontoloacutegica O propoacutesito do proacuteximo capiacutetulo eacute avaliar e discutir se os eventos sociais considerados problemaacuteticos e penalmente definidos como crimes na sociedade satildeo por esta reconhecidos e aceitos como tais na realidade

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Da Descriminalizaccedilatildeo agrave Aboliccedilatildeo da Pena

A crise profunda da justiccedila penal avalia Cervini (1995) estaacute associada ao fracasso da ideologia do tratamento que pretende em seus diversos niacuteveis resolver os custos individuais e sociais do delito a defasagem das leis com certas culturas a existecircncia da cifra negra6

aleacutem das contradiccedilotildees dogmaacuteticas No momento histoacuterico atual diz Cervine dois fatores favorecem

a tendecircncia de descriminalizaccedilatildeo do direito penal um individual outro social No primeiro caso a pena privativa de liberdade que diminui a possibilidade de adaptabilidade no segundo caso os efeitos sociais estigmatizadores depois de sua aplicaccedilatildeo Em termos sociais natildeo haacute uma soluccedilatildeo eficiente em reparar o custo do crime nem de supressatildeo do estigma de ex-presidiaacuterio

As soluccedilotildees que o sistema penal tem adotado para gerir o problema da criminalidade encontram um potente antiacutedoto quando se avalia a existecircncia da chamada cifra negra Essa afirma Cervine indica claramente que os fatos aos quais a lei denomina de delitos natildeo satildeo considerados como fatos agrave parte separados de outros aconteshycimentos Uma soma relevante de acontecimentos formalmente considerados delitos e teoricamente merecedores de aplicaccedilatildeo penal natildeo eacute considerada nem valorizada como tal pelas viacutetimas ou pelos agentes do sistema pessoalmente interpelados mediante delaccedilotildees concretas (CERVINI 1995 pl73)

Tais consideraccedilotildees colidem com as premissas utoacutepicas da sociedade de controle que busca incansavelmente definir e administrar o crime atraveacutes da diversificaccedilatildeo das penas de ajustes da reclusatildeo prisional de reforma eletrocircnica das prisotildees mais investimentos e maior eficiecircncia na burocraacutetica criminal A sociedade de controle diz Passetti (1999) natildeo atenta para o fato da existecircncia de uma sociedade sem penas seja em

6 Cervini (1995 p162) comenta que a cifra negra eacute produto da diferenccedila existente entre a criminalidade real quantidade de delitos cometidos num tempo e lugar determinados e a criminal idade aparente conhecida pelos oacutergatildeos de controle Ou seja um percentual substancial de delitos estaacute estruturalmente fora do alcance e do controle do direito penal colocando em xeque a credibilidade de todo o sistema

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razatildeo da cifra negra (diferenccedila entre infraccedilotildees denunciadas na poliacutecia e aquelas efetivamente julgadas) seja porque parte consideraacutevel das infraccedilotildees eacute resolvida sem a necessidade da formalidade juriacutedica do just07bull

A maioria dos conflitos cotidianos dentro das fanulias das empresas dos estabelecimentos de ensino das organizaccedilotildees profissionais dos sindicatos clubes ou associaccedilotildees privadas satildeo segundo Hulsman e Celis (1993) resolvidos sem ter de entrar no sistema penal O grande nuacutemero de encarcerados eacute insignificante diante da quantidade real de fatos puniacuteveis que ocorrem a todo instante raramente detectados pelo sistema penal O sistema penal eacute confrontado com uma espantosa soma de casos semelhantes poreacutem apenas alguns deles e de forma injusta satildeo tratados pelo sistema cuja prisatildeo se nutre diariamente de viacutetimas preferencias

Fora os delitos que natildeo pertencem ao chamado nuacutecleo duro da delinquumlecircncia como o terrorismo e a criminalidade organizada o sistema penal afirma Hulsman cria mais problemas do que contribuiccedilotildees para resolver

Diante disso o autor propotildee uma outra loacutegica Diz que um comportamento pode deixar de ser crime sem afetar os laccedilos de sociabilidade O homossexualismo cantado em prosa e verso por Platatildeo foi penalmente condenado pelo Estado moderno durante muito tempo A prostituiccedilatildeo convive com a proibiccedilatildeo sob ameaccedila penal ateacute a liberdade total ou passando por toda sorte de controle administrativo A embriaguez em si natildeo interessa agrave lei ocidental mas soacute indiretamente (dirigir embriagado) O mesmo tratamento diferencial ocorre em relaccedilatildeo ao uso e ao traacutefico de drogas Alguns paiacuteses condenam penalmente o uso e o traacutefico excluindo o consumo pessoal Outros soacute colocam no campo penal as drogas ditas pesadas excluindo as chamadas drogas leves8

7 Na opiniatildeo de Passeui (1999 p63) o que esta utopia natildeo admite mas permitia eacute que no lugar da ressocializaccedilatildeo e da futura reintegmccedilatildeo prevaleccedila o depoacutesito de corpos para os qu ai s os uacutenicos investimentos satildeo a diminui ccedilatildeo a zero da possibilidade de fuga e a rigorosa vigilacircncia apoacutes o sentenciaroento

Na avaliaccedilatildeo de Hulsman e Celis (1 993 plOI) natildeo exi stem nem crimes nem delitos mas apenas situaccedilotildees problemaacuteticas Sem a presenccedila e participaccedilatildeo das pessoas envolvidas nestas situaccedilotildees natildeo haacute como resolvecirc-las de forma humana Classificar um fato de crime significa excluir a priori ou tras saiacutedas poss iacuteveis limitando-se ao es tilo estatal punitivo dominado pelo pensamento juriacutedico distante da realidade

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o processo de globalizaccedilatildeo econocircmica e financeira apenas indiretamente contribui para aprofundar a crise do sistema de justiccedila penal nos paiacuteses capitalistas centrais e perifeacutericos As razotildees da falecircncia do modelo de poliacutetica criminal estatildeo associadas ao processo de reforma penal dos seacuteculos XVIII e XIX periacuteodo em que a sociedade burguesa adotou o principio da puniccedilatildeo generalizada por meio da teoria da humanizaccedilatildeo da pena A reforma do coacutedigo penal burguecircs diz Foucault (1987) converteu inuacutemeros problemas sociais em conflitos criminais estabeleceu uma classificaccedilatildeo metoacutedica dos delitos em termos de gravidade e hierarquia e como complemento modificou e converteu as prisotildees em locais privilegiados com o propoacutesito de recuperar os delinquumlentes infratores atraveacutes do tratamento ressocializador

Desde entatildeo todas as propostas adotadas visando a reforma do sistema penal natildeo tocaram e natildeo discutiram seriamente o significado do crime sua classificaccedilatildeo tampouco sua instituiccedilatildeo correlata a prisatildeo As teorias criminais da normalizaccedilatildeo e da defesa da lei e da ordem (toleracircncia zero) satildeo ilustrativas a esse respeito

A primeira vecirc no crime uma accedilatildeo racional oportunista Parte do pressuposto de que a sociedade atual eacute uma sociedade de risco em que o fenocircmeno criminal natildeo pode ser tratado como algo patoloacutegico mas uma questatildeo de oportunidade Propotildee desativar a burocracia estatal repressiva por ter falhado na tentativa de desarmar e de punir o autor do delito e transferir a responsabilidade do controle do crime aos setores da sociedade civil Grupos privados deveriam armar os alvos vulneraacuteveis criar obstaacuteculos defender suas casas carros cheques cartotildees de creacutedito etc Tais mudanccedilas tomariam as coisas mais difiacuteceis evitando que pessoas pertencentes aos diversos grupos sociais se convertessem em presas faacuteceis de accedilotildees criminais

A segunda (movimento da lei e da ordem) associa a banalizaccedilatildeo do crime agrave fraqueza das respostas das leis penais vigentes Por isso advoga a necessidade de uma perseguiccedilatildeo implacaacutevel de pequenos atos como jogar lixo no chatildeo e furtos ocasionais propondo o aumento da pena para os delinquumlentes ocasionais e a prisatildeo perpeacutetua para os delinquumlentes mais perigosos O que diferencia as teorias criminais em foco eacute mais uma questatildeo de estrateacutegia e natildeo de princiacutepios Ambas trabalham com a noccedilatildeo de crime como uma verdade social e juriacutedica

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A negaccedilatildeo do conceito de crime como um fato social normal constitui objeto de reflexatildeo das teorias da descriminalizaccedilatildeo e abolicionistas para as quais as definiccedilotildees abstratas de crime e de pena vigentes no coacutedigo penal natildeo correspondem agraves definiccedilotildees que delas fazem as pessoas reais A desqualificaccedilatildeo do discurso juriacutedico penal natildeo resulta portando das dificuldades da aplicaccedilatildeo da lei da ineficiecircncia dos oacutergatildeos de controle criados para administraacute-la ou ainda de seu reduzido alcance quando se compara a totalidade de crimes formalmente descritos e os que realmente satildeo solucionados

Uma soluccedilatildeo poliacutetica socialmente legiacutetima na soluccedilatildeo dos problemas sociais hoje definidos e classificados como problemas criminais natildeo pode limitar-se ao entendimento e agrave aceitaccedilatildeo do braccedilo punitivo estatal e de sua burocracia centralizadora como o melhor remeacutedio para gerir os conflitos penais existentes Portanto toma-se urgente questionar seriamente se os eventos sociais formalmente criminalizaacuteveis satildeo concebidos e aceitos como tais pelos agentes sociais direta e potencialmente envolvidos em tais conflitos

Isso implica admitir a possibilidade da sociedade resolver inuacutemeros problemas atualmente circunscritos no campo do direito penal fora do campo estatal punitivo Nesse sentido a responsabilidade pela soluccedilatildeo dos conflitos sob a tutela do direito penal seria transferida aos agentes direta e potencialmente envolvidos em situaccedilotildees problemaacuteticas (acusado viacutetima familiares Estado e demais interessados)

A atuaccedilatildeo da burocracia de justiccedila (poliacutecia e judiciaacuterio) se limitaria a mediar e natildeo intervir diretamente visando impor a melhor soluccedilatildeo para o conflito Para isso outras instacircncias juriacutedicas (campo civil e administrativo) poderiam ser acionadas em detrimento do pesado seletivo e ineficiente sistema de justiccedila penal estatal vigente que por meio de seus oacutergatildeos policiais judiciaacuterios e administrativos procura sem nunca poder encontrar a melhor soluccedilatildeo para o acusado seus familiares agrave vitima e a sociedade

Dois adolescentes (Japonecircs e Laacutezaro) praticaram mais um delito contra o patrimocircnio E daiacute Prendecirc-los ressocializaacute-Ios responsabilizar seus familiares Armar melhor determinados alvos sociais vulneraacuteveis que facilitam o roubo o furto

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Como ressocializar algueacutem que por razotildees conjunturais como o

desemprego e a crise econocircmica pratica um delito contra a propriedade se tais razotildees continuam a persistir Como responsabilizar seus familiares9 se a concepccedilatildeo nuclear de famiacutelia burguesa mudou

Para os defensores do movimento da lei e da ordem o Estado deve responder punindo de modo exemplar Entre os adeptos da normalizaccedilatildeo do crime o Estado deve preocupar-se em punir menos e criar uma nova estrateacutegia com O propoacutesito de armar mais as viacutetimas que os infratores

Tais movimentos natildeo tocam numa questatildeo central como o fazem os adeptos da descriminalizaccedilatildeo e da aboliccedilatildeo da pena para os quais a realidade atual propicia duas alternativas procurar outras repostas para os velhos e novos problemas questionando reduzindo e abolindo o crime e a prisatildeo ou restauraacute-la sob a condiccedilatildeo de aparelho de terror repressivo

9 Passetti (1995 p23) afirma que a situaccedilatildeo social dessas crianccedilas e adolescentes violentados permite desmistificar duas falaacutecias famiacutelias desestruturadas e o suposto acesso democraacutetico agrave escola O modelo de faTlllia vigente nas metroacutepoles natildeo corresponde mais agraves caracteriacutesticas da faTlllia modelar burguesa do capitalismo livre-concorrecircncia e natildeo pode mais ser restaurada como pretende o conservadorismo

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Referecircncias

ADORNO S Violecircncia e civilizaccedilatildeo In CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA 9 1999 Pelotas Anais Pelotas Sociedade Brasileira de Sociologia 1999 p77-106

BARATTA Alessandro Escola positiva e explicaccedilatildeo patoloacutegica da criminal idade In ___ o Criminologia crftica e criacutetica do direito penal introduccedilatildeo agrave sociologia do direito penal 3ed Rio de Janeiro Revan 2002

CERVINI Rauacutel Os processos de descriminalizaccedilatildeo 2ed Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 1995

CHARVET D Crise da Justiccedila da lei crise do Estado In POULANTZAS N (Org) O Estado em crise Rio de Janeiro Graal 1977

CHESNAIS Franccedilois Mundializaccedilatildeo o capital financeiro no comando Outubro Revista do Instituto de Estudos Socialistas Satildeo Paulo n5 p7-42 2001

DOWBOR Ladislau IANNI Octavio RESENDE Paulo Edgar (orgs) Desafios da Globalizaccedilatildeo Petroacutepolis Vozes 1998

FOUCAULT Michel Vigiar e punir histoacuteria da violecircncia nas prisotildees 23ed Petroacutepolis Vozes 1987

GARLAND David As contradiccedilotildees da sociedade punitiva o caso britacircnico Revista de Sociologia e Poliacutetica Curitiba n13 p59-80 novo 1999

HULSMAN Louk CELlS Jacqueline Bernat de Penas perdidas o sistema penal em ques tatildeo Rio de Janeiro Luam 1993

OHMAE Kenicbi O fim do Estado Naccedilatildeo a ascensatildeo das economias regionais 3ed Satildeo Paulo Campus 1999

PASSETTI Edson (Org) Violentados crianccedilas adolescentes e justiccedila Satildeo Paulo Imaginaacuterio 1995

PASSETTI Edson Sociedade de controle e aboliccedilatildeo da puniccedilatildeo Violecircncia e Mal-Estar na Sociedade Satildeo Paulo em Perspectiva Satildeo Paulo v13 n3 jull set1 999

SANTOS Boaventura Sousa A crtica da razatildeo indolente contra o desperdfcio da experiecircncia Satildeo Paulo Cortez 2000 v 1

WACQUANT Lolc As prisotildees da miseacuteria Rio de Janeiro Zabar 2001

Revista Mediaccedilotildees Londrina v8n I p47-69janjun 2003

Abstract

The current process of economic and financiaI globalization has elicited contradictory answers in the formulation of criminal policies by State bureaucracy On the one hand under strong influence of neoclassical economic thought there appears in the United Kingdom the theory of crime normalization qualifying the criminal act as a rational choice option a matter of opportunity according to which delinquents rational1y calculate their actions Such theory proposes to replace the classical model of criminal policy which relates the penal practice to the figure of the other the abnormal by a new model of risk society which sees a professional career in criminal acts On the other hand there appears in the United States the movement in defense of law and order which proposes no tolerance to crime by the amplification of penal right and the recrudescence of the State criminal answer For the defenders of decriminalization and penalabolitionism the utopia of control society which favors the increase of punisbment and target changes to administer crime ignores the existence of a society with no penalties which is manifested through the dark cipher the difference between reported infractions to the police and those really judged

Key words globalization state crime punishment decriminalization penalty abolishment

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Page 15: INTRODUÇÃO AO DEBATE SOBRE AS POLíTICAS OFICIAIS NO ... · sem penas a qual se manifesta através da cifra negra, ... vinculados em razão do potencial revolucionário da informação

quando invocadas resultam sem efeito As sociedades contemporacircneas convi vem com o decliacutenio das sanccedilotildees A impunidade torna-se cotidiana diante da decretada incapacidade da burocracia estatal de cuidar da seguranccedila dos cidadatildeos de proteger seus bens materiais e simboacutelicos

Os mecanismos de pressatildeo social (que atuam sobre o comportamento dos sujeitos) que operam sobretudo na esfera da moralidade puacuteblica e privada natildeo parecem suscitar nem o sentimento de medo nem sequer o de anguacutestia diante das possibilidades sempre abertas de violaccedilatildeo das normas sociais As sociedades urbanas complexas comenta Adorno (1999) liberaram o homem do controle social Diante de tantas incertezas cresce por parte da sociedade uma obsessatildeo punitiva reivindicando mais ordem social

Isso natildeo impede o surgimento do modelo de funcionamento da sociedade de risco que potildee em movimento uma superestrutura de prevenccedilatildeo e de seguranccedila por meio da proliferaccedilatildeo das sociedades de seguro e de mecanismos de vigilacircncia privada com o objetivo de enfrentar o medo os perigos e ameaccedilas que tornam a vida humana incerta (ADORNO 1999 plOl-102)

Um poliacutetica de responsabilizaccedilatildeo individual atraveacutes de medidas repressivas voltadas para os jovens delinquumlentes como a reduccedilatildeo da idade para efeitos de responsabilidade penal e instauraccedilatildeo da responsabilidade dos pais em mateacuteria civil e penal tem sido discutida pelos parlamentares europeus Enveredando-se pelo caminho de mais Estado econocircmico e menos Estado social cria-se e justifica-se o mito da inevitabilidade da escalada do crime para disseminar a estrateacutegia da responsabilizaccedilatildeo como forma de mostrar que a prevenccedilatildeo e o controle do crime natildeo pode de modo exclusivo recair mais sobre o Estado

De agora em diante varejistas industriais autoridades escolares empresas de transporte pais trabalhadores e desempregados teratildeo de dividir essa responsabilidade Na deacutecada de 1990 a poliacutetica criminal da responsabilizaccedilatildeo teve por efeito reduzir a dependecircncia para com o Estado e aumentar a dependecircncia para com o mercado Investimentos na criminalidade como dispositivos de seguranccedila satildeo cada vez mais impostos pelas forccedilas econocircmicas em detrimento da poliacutetica puacuteblica

Nas sociedades onde ocorrem divisotildees sociais e raciais

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profundas em que as taxas de criminalidade e os niacuteveis de inseguranccedila satildeo elevados onde soluccedilotildees sociais foram politicamente desacreditas aleacutem de haver um ceticismo crescente quanto agrave perspectiva de reintegraccedilatildeo dos antigos delinquumlentes um setor comercial em expansatildeo favorece o aumento da populaccedilatildeo carceraacuteria pondo em marcha uma cultura do encarceramento em massa nos paiacuteses democraacuteticos

A responsabilizaccedilatildeo de organismos natildeo estatais no combate agrave criminal idade provoca enormes disparidades no financiamento social e na rede de seguranccedila Esta deixa de ser garantida para todos por meio de um Estado soberano para converte-se num produto cuja distribuiccedilatildeo estaacute subordinada agraves forccedilas de mercado As classes subalternas que mais sofrem a criminal idade estatildeo incapacitadas de comprar seguranccedila de adaptar suas vidas cotidianas e de se organizar de forma eficaz contra o crime

Poliacuteticas sociais de prevenccedilatildeo da criminalidade foram seriamente atacadas em razatildeo das transformaccedilotildees poliacuteticas sociais e econocircmicas das uacuteltimas deacutecadas Tentativas de prevenccedilatildeo e de responsabilizaccedilatildeo satildeo solapadas por uma economia de livre mercado que exclui as massas do trabalho remunerado e que nutre ativamente o crime engendrando expectativas de consumidor insaciaacutevel gerando ao mesmo tempo novos niacuteveis de pobreza da crianccedila da disfunccedilatildeo da famiacutelia e de desigualdade social (GARLAND 1999 p77)

A emergecircncia de novos problemas sociais que desafiam os princiacutepios legitimadores do Estado moderno tende a acelerar poreacutem em si natildeo justifica o fracasso da burocracia oficial na resoluccedilatildeo dos atos infracionais na sociedade contemporacircnea Os sintomas aparentes de desordem de caos de aumento da impunidade etc que reinam na sociedade vatildeo muito aleacutem de uma poliacutetica criminal deliberada de afrouxamento do poder estatal como estrateacutegia de administrar os conflitos criminais

A crise de legitimidade estatal na gestatildeo do crime reforccedila a necessidade de pocircr em questatildeo a definiccedilatildeo de crime como verdade ontoloacutegica O propoacutesito do proacuteximo capiacutetulo eacute avaliar e discutir se os eventos sociais considerados problemaacuteticos e penalmente definidos como crimes na sociedade satildeo por esta reconhecidos e aceitos como tais na realidade

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Da Descriminalizaccedilatildeo agrave Aboliccedilatildeo da Pena

A crise profunda da justiccedila penal avalia Cervini (1995) estaacute associada ao fracasso da ideologia do tratamento que pretende em seus diversos niacuteveis resolver os custos individuais e sociais do delito a defasagem das leis com certas culturas a existecircncia da cifra negra6

aleacutem das contradiccedilotildees dogmaacuteticas No momento histoacuterico atual diz Cervine dois fatores favorecem

a tendecircncia de descriminalizaccedilatildeo do direito penal um individual outro social No primeiro caso a pena privativa de liberdade que diminui a possibilidade de adaptabilidade no segundo caso os efeitos sociais estigmatizadores depois de sua aplicaccedilatildeo Em termos sociais natildeo haacute uma soluccedilatildeo eficiente em reparar o custo do crime nem de supressatildeo do estigma de ex-presidiaacuterio

As soluccedilotildees que o sistema penal tem adotado para gerir o problema da criminalidade encontram um potente antiacutedoto quando se avalia a existecircncia da chamada cifra negra Essa afirma Cervine indica claramente que os fatos aos quais a lei denomina de delitos natildeo satildeo considerados como fatos agrave parte separados de outros aconteshycimentos Uma soma relevante de acontecimentos formalmente considerados delitos e teoricamente merecedores de aplicaccedilatildeo penal natildeo eacute considerada nem valorizada como tal pelas viacutetimas ou pelos agentes do sistema pessoalmente interpelados mediante delaccedilotildees concretas (CERVINI 1995 pl73)

Tais consideraccedilotildees colidem com as premissas utoacutepicas da sociedade de controle que busca incansavelmente definir e administrar o crime atraveacutes da diversificaccedilatildeo das penas de ajustes da reclusatildeo prisional de reforma eletrocircnica das prisotildees mais investimentos e maior eficiecircncia na burocraacutetica criminal A sociedade de controle diz Passetti (1999) natildeo atenta para o fato da existecircncia de uma sociedade sem penas seja em

6 Cervini (1995 p162) comenta que a cifra negra eacute produto da diferenccedila existente entre a criminalidade real quantidade de delitos cometidos num tempo e lugar determinados e a criminal idade aparente conhecida pelos oacutergatildeos de controle Ou seja um percentual substancial de delitos estaacute estruturalmente fora do alcance e do controle do direito penal colocando em xeque a credibilidade de todo o sistema

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razatildeo da cifra negra (diferenccedila entre infraccedilotildees denunciadas na poliacutecia e aquelas efetivamente julgadas) seja porque parte consideraacutevel das infraccedilotildees eacute resolvida sem a necessidade da formalidade juriacutedica do just07bull

A maioria dos conflitos cotidianos dentro das fanulias das empresas dos estabelecimentos de ensino das organizaccedilotildees profissionais dos sindicatos clubes ou associaccedilotildees privadas satildeo segundo Hulsman e Celis (1993) resolvidos sem ter de entrar no sistema penal O grande nuacutemero de encarcerados eacute insignificante diante da quantidade real de fatos puniacuteveis que ocorrem a todo instante raramente detectados pelo sistema penal O sistema penal eacute confrontado com uma espantosa soma de casos semelhantes poreacutem apenas alguns deles e de forma injusta satildeo tratados pelo sistema cuja prisatildeo se nutre diariamente de viacutetimas preferencias

Fora os delitos que natildeo pertencem ao chamado nuacutecleo duro da delinquumlecircncia como o terrorismo e a criminalidade organizada o sistema penal afirma Hulsman cria mais problemas do que contribuiccedilotildees para resolver

Diante disso o autor propotildee uma outra loacutegica Diz que um comportamento pode deixar de ser crime sem afetar os laccedilos de sociabilidade O homossexualismo cantado em prosa e verso por Platatildeo foi penalmente condenado pelo Estado moderno durante muito tempo A prostituiccedilatildeo convive com a proibiccedilatildeo sob ameaccedila penal ateacute a liberdade total ou passando por toda sorte de controle administrativo A embriaguez em si natildeo interessa agrave lei ocidental mas soacute indiretamente (dirigir embriagado) O mesmo tratamento diferencial ocorre em relaccedilatildeo ao uso e ao traacutefico de drogas Alguns paiacuteses condenam penalmente o uso e o traacutefico excluindo o consumo pessoal Outros soacute colocam no campo penal as drogas ditas pesadas excluindo as chamadas drogas leves8

7 Na opiniatildeo de Passeui (1999 p63) o que esta utopia natildeo admite mas permitia eacute que no lugar da ressocializaccedilatildeo e da futura reintegmccedilatildeo prevaleccedila o depoacutesito de corpos para os qu ai s os uacutenicos investimentos satildeo a diminui ccedilatildeo a zero da possibilidade de fuga e a rigorosa vigilacircncia apoacutes o sentenciaroento

Na avaliaccedilatildeo de Hulsman e Celis (1 993 plOI) natildeo exi stem nem crimes nem delitos mas apenas situaccedilotildees problemaacuteticas Sem a presenccedila e participaccedilatildeo das pessoas envolvidas nestas situaccedilotildees natildeo haacute como resolvecirc-las de forma humana Classificar um fato de crime significa excluir a priori ou tras saiacutedas poss iacuteveis limitando-se ao es tilo estatal punitivo dominado pelo pensamento juriacutedico distante da realidade

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o processo de globalizaccedilatildeo econocircmica e financeira apenas indiretamente contribui para aprofundar a crise do sistema de justiccedila penal nos paiacuteses capitalistas centrais e perifeacutericos As razotildees da falecircncia do modelo de poliacutetica criminal estatildeo associadas ao processo de reforma penal dos seacuteculos XVIII e XIX periacuteodo em que a sociedade burguesa adotou o principio da puniccedilatildeo generalizada por meio da teoria da humanizaccedilatildeo da pena A reforma do coacutedigo penal burguecircs diz Foucault (1987) converteu inuacutemeros problemas sociais em conflitos criminais estabeleceu uma classificaccedilatildeo metoacutedica dos delitos em termos de gravidade e hierarquia e como complemento modificou e converteu as prisotildees em locais privilegiados com o propoacutesito de recuperar os delinquumlentes infratores atraveacutes do tratamento ressocializador

Desde entatildeo todas as propostas adotadas visando a reforma do sistema penal natildeo tocaram e natildeo discutiram seriamente o significado do crime sua classificaccedilatildeo tampouco sua instituiccedilatildeo correlata a prisatildeo As teorias criminais da normalizaccedilatildeo e da defesa da lei e da ordem (toleracircncia zero) satildeo ilustrativas a esse respeito

A primeira vecirc no crime uma accedilatildeo racional oportunista Parte do pressuposto de que a sociedade atual eacute uma sociedade de risco em que o fenocircmeno criminal natildeo pode ser tratado como algo patoloacutegico mas uma questatildeo de oportunidade Propotildee desativar a burocracia estatal repressiva por ter falhado na tentativa de desarmar e de punir o autor do delito e transferir a responsabilidade do controle do crime aos setores da sociedade civil Grupos privados deveriam armar os alvos vulneraacuteveis criar obstaacuteculos defender suas casas carros cheques cartotildees de creacutedito etc Tais mudanccedilas tomariam as coisas mais difiacuteceis evitando que pessoas pertencentes aos diversos grupos sociais se convertessem em presas faacuteceis de accedilotildees criminais

A segunda (movimento da lei e da ordem) associa a banalizaccedilatildeo do crime agrave fraqueza das respostas das leis penais vigentes Por isso advoga a necessidade de uma perseguiccedilatildeo implacaacutevel de pequenos atos como jogar lixo no chatildeo e furtos ocasionais propondo o aumento da pena para os delinquumlentes ocasionais e a prisatildeo perpeacutetua para os delinquumlentes mais perigosos O que diferencia as teorias criminais em foco eacute mais uma questatildeo de estrateacutegia e natildeo de princiacutepios Ambas trabalham com a noccedilatildeo de crime como uma verdade social e juriacutedica

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A negaccedilatildeo do conceito de crime como um fato social normal constitui objeto de reflexatildeo das teorias da descriminalizaccedilatildeo e abolicionistas para as quais as definiccedilotildees abstratas de crime e de pena vigentes no coacutedigo penal natildeo correspondem agraves definiccedilotildees que delas fazem as pessoas reais A desqualificaccedilatildeo do discurso juriacutedico penal natildeo resulta portando das dificuldades da aplicaccedilatildeo da lei da ineficiecircncia dos oacutergatildeos de controle criados para administraacute-la ou ainda de seu reduzido alcance quando se compara a totalidade de crimes formalmente descritos e os que realmente satildeo solucionados

Uma soluccedilatildeo poliacutetica socialmente legiacutetima na soluccedilatildeo dos problemas sociais hoje definidos e classificados como problemas criminais natildeo pode limitar-se ao entendimento e agrave aceitaccedilatildeo do braccedilo punitivo estatal e de sua burocracia centralizadora como o melhor remeacutedio para gerir os conflitos penais existentes Portanto toma-se urgente questionar seriamente se os eventos sociais formalmente criminalizaacuteveis satildeo concebidos e aceitos como tais pelos agentes sociais direta e potencialmente envolvidos em tais conflitos

Isso implica admitir a possibilidade da sociedade resolver inuacutemeros problemas atualmente circunscritos no campo do direito penal fora do campo estatal punitivo Nesse sentido a responsabilidade pela soluccedilatildeo dos conflitos sob a tutela do direito penal seria transferida aos agentes direta e potencialmente envolvidos em situaccedilotildees problemaacuteticas (acusado viacutetima familiares Estado e demais interessados)

A atuaccedilatildeo da burocracia de justiccedila (poliacutecia e judiciaacuterio) se limitaria a mediar e natildeo intervir diretamente visando impor a melhor soluccedilatildeo para o conflito Para isso outras instacircncias juriacutedicas (campo civil e administrativo) poderiam ser acionadas em detrimento do pesado seletivo e ineficiente sistema de justiccedila penal estatal vigente que por meio de seus oacutergatildeos policiais judiciaacuterios e administrativos procura sem nunca poder encontrar a melhor soluccedilatildeo para o acusado seus familiares agrave vitima e a sociedade

Dois adolescentes (Japonecircs e Laacutezaro) praticaram mais um delito contra o patrimocircnio E daiacute Prendecirc-los ressocializaacute-Ios responsabilizar seus familiares Armar melhor determinados alvos sociais vulneraacuteveis que facilitam o roubo o furto

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Como ressocializar algueacutem que por razotildees conjunturais como o

desemprego e a crise econocircmica pratica um delito contra a propriedade se tais razotildees continuam a persistir Como responsabilizar seus familiares9 se a concepccedilatildeo nuclear de famiacutelia burguesa mudou

Para os defensores do movimento da lei e da ordem o Estado deve responder punindo de modo exemplar Entre os adeptos da normalizaccedilatildeo do crime o Estado deve preocupar-se em punir menos e criar uma nova estrateacutegia com O propoacutesito de armar mais as viacutetimas que os infratores

Tais movimentos natildeo tocam numa questatildeo central como o fazem os adeptos da descriminalizaccedilatildeo e da aboliccedilatildeo da pena para os quais a realidade atual propicia duas alternativas procurar outras repostas para os velhos e novos problemas questionando reduzindo e abolindo o crime e a prisatildeo ou restauraacute-la sob a condiccedilatildeo de aparelho de terror repressivo

9 Passetti (1995 p23) afirma que a situaccedilatildeo social dessas crianccedilas e adolescentes violentados permite desmistificar duas falaacutecias famiacutelias desestruturadas e o suposto acesso democraacutetico agrave escola O modelo de faTlllia vigente nas metroacutepoles natildeo corresponde mais agraves caracteriacutesticas da faTlllia modelar burguesa do capitalismo livre-concorrecircncia e natildeo pode mais ser restaurada como pretende o conservadorismo

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Referecircncias

ADORNO S Violecircncia e civilizaccedilatildeo In CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA 9 1999 Pelotas Anais Pelotas Sociedade Brasileira de Sociologia 1999 p77-106

BARATTA Alessandro Escola positiva e explicaccedilatildeo patoloacutegica da criminal idade In ___ o Criminologia crftica e criacutetica do direito penal introduccedilatildeo agrave sociologia do direito penal 3ed Rio de Janeiro Revan 2002

CERVINI Rauacutel Os processos de descriminalizaccedilatildeo 2ed Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 1995

CHARVET D Crise da Justiccedila da lei crise do Estado In POULANTZAS N (Org) O Estado em crise Rio de Janeiro Graal 1977

CHESNAIS Franccedilois Mundializaccedilatildeo o capital financeiro no comando Outubro Revista do Instituto de Estudos Socialistas Satildeo Paulo n5 p7-42 2001

DOWBOR Ladislau IANNI Octavio RESENDE Paulo Edgar (orgs) Desafios da Globalizaccedilatildeo Petroacutepolis Vozes 1998

FOUCAULT Michel Vigiar e punir histoacuteria da violecircncia nas prisotildees 23ed Petroacutepolis Vozes 1987

GARLAND David As contradiccedilotildees da sociedade punitiva o caso britacircnico Revista de Sociologia e Poliacutetica Curitiba n13 p59-80 novo 1999

HULSMAN Louk CELlS Jacqueline Bernat de Penas perdidas o sistema penal em ques tatildeo Rio de Janeiro Luam 1993

OHMAE Kenicbi O fim do Estado Naccedilatildeo a ascensatildeo das economias regionais 3ed Satildeo Paulo Campus 1999

PASSETTI Edson (Org) Violentados crianccedilas adolescentes e justiccedila Satildeo Paulo Imaginaacuterio 1995

PASSETTI Edson Sociedade de controle e aboliccedilatildeo da puniccedilatildeo Violecircncia e Mal-Estar na Sociedade Satildeo Paulo em Perspectiva Satildeo Paulo v13 n3 jull set1 999

SANTOS Boaventura Sousa A crtica da razatildeo indolente contra o desperdfcio da experiecircncia Satildeo Paulo Cortez 2000 v 1

WACQUANT Lolc As prisotildees da miseacuteria Rio de Janeiro Zabar 2001

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Abstract

The current process of economic and financiaI globalization has elicited contradictory answers in the formulation of criminal policies by State bureaucracy On the one hand under strong influence of neoclassical economic thought there appears in the United Kingdom the theory of crime normalization qualifying the criminal act as a rational choice option a matter of opportunity according to which delinquents rational1y calculate their actions Such theory proposes to replace the classical model of criminal policy which relates the penal practice to the figure of the other the abnormal by a new model of risk society which sees a professional career in criminal acts On the other hand there appears in the United States the movement in defense of law and order which proposes no tolerance to crime by the amplification of penal right and the recrudescence of the State criminal answer For the defenders of decriminalization and penalabolitionism the utopia of control society which favors the increase of punisbment and target changes to administer crime ignores the existence of a society with no penalties which is manifested through the dark cipher the difference between reported infractions to the police and those really judged

Key words globalization state crime punishment decriminalization penalty abolishment

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profundas em que as taxas de criminalidade e os niacuteveis de inseguranccedila satildeo elevados onde soluccedilotildees sociais foram politicamente desacreditas aleacutem de haver um ceticismo crescente quanto agrave perspectiva de reintegraccedilatildeo dos antigos delinquumlentes um setor comercial em expansatildeo favorece o aumento da populaccedilatildeo carceraacuteria pondo em marcha uma cultura do encarceramento em massa nos paiacuteses democraacuteticos

A responsabilizaccedilatildeo de organismos natildeo estatais no combate agrave criminal idade provoca enormes disparidades no financiamento social e na rede de seguranccedila Esta deixa de ser garantida para todos por meio de um Estado soberano para converte-se num produto cuja distribuiccedilatildeo estaacute subordinada agraves forccedilas de mercado As classes subalternas que mais sofrem a criminal idade estatildeo incapacitadas de comprar seguranccedila de adaptar suas vidas cotidianas e de se organizar de forma eficaz contra o crime

Poliacuteticas sociais de prevenccedilatildeo da criminalidade foram seriamente atacadas em razatildeo das transformaccedilotildees poliacuteticas sociais e econocircmicas das uacuteltimas deacutecadas Tentativas de prevenccedilatildeo e de responsabilizaccedilatildeo satildeo solapadas por uma economia de livre mercado que exclui as massas do trabalho remunerado e que nutre ativamente o crime engendrando expectativas de consumidor insaciaacutevel gerando ao mesmo tempo novos niacuteveis de pobreza da crianccedila da disfunccedilatildeo da famiacutelia e de desigualdade social (GARLAND 1999 p77)

A emergecircncia de novos problemas sociais que desafiam os princiacutepios legitimadores do Estado moderno tende a acelerar poreacutem em si natildeo justifica o fracasso da burocracia oficial na resoluccedilatildeo dos atos infracionais na sociedade contemporacircnea Os sintomas aparentes de desordem de caos de aumento da impunidade etc que reinam na sociedade vatildeo muito aleacutem de uma poliacutetica criminal deliberada de afrouxamento do poder estatal como estrateacutegia de administrar os conflitos criminais

A crise de legitimidade estatal na gestatildeo do crime reforccedila a necessidade de pocircr em questatildeo a definiccedilatildeo de crime como verdade ontoloacutegica O propoacutesito do proacuteximo capiacutetulo eacute avaliar e discutir se os eventos sociais considerados problemaacuteticos e penalmente definidos como crimes na sociedade satildeo por esta reconhecidos e aceitos como tais na realidade

Revista Mediaccedilotildees Londrina v8 n 1 p47middot69janjun 2003

Da Descriminalizaccedilatildeo agrave Aboliccedilatildeo da Pena

A crise profunda da justiccedila penal avalia Cervini (1995) estaacute associada ao fracasso da ideologia do tratamento que pretende em seus diversos niacuteveis resolver os custos individuais e sociais do delito a defasagem das leis com certas culturas a existecircncia da cifra negra6

aleacutem das contradiccedilotildees dogmaacuteticas No momento histoacuterico atual diz Cervine dois fatores favorecem

a tendecircncia de descriminalizaccedilatildeo do direito penal um individual outro social No primeiro caso a pena privativa de liberdade que diminui a possibilidade de adaptabilidade no segundo caso os efeitos sociais estigmatizadores depois de sua aplicaccedilatildeo Em termos sociais natildeo haacute uma soluccedilatildeo eficiente em reparar o custo do crime nem de supressatildeo do estigma de ex-presidiaacuterio

As soluccedilotildees que o sistema penal tem adotado para gerir o problema da criminalidade encontram um potente antiacutedoto quando se avalia a existecircncia da chamada cifra negra Essa afirma Cervine indica claramente que os fatos aos quais a lei denomina de delitos natildeo satildeo considerados como fatos agrave parte separados de outros aconteshycimentos Uma soma relevante de acontecimentos formalmente considerados delitos e teoricamente merecedores de aplicaccedilatildeo penal natildeo eacute considerada nem valorizada como tal pelas viacutetimas ou pelos agentes do sistema pessoalmente interpelados mediante delaccedilotildees concretas (CERVINI 1995 pl73)

Tais consideraccedilotildees colidem com as premissas utoacutepicas da sociedade de controle que busca incansavelmente definir e administrar o crime atraveacutes da diversificaccedilatildeo das penas de ajustes da reclusatildeo prisional de reforma eletrocircnica das prisotildees mais investimentos e maior eficiecircncia na burocraacutetica criminal A sociedade de controle diz Passetti (1999) natildeo atenta para o fato da existecircncia de uma sociedade sem penas seja em

6 Cervini (1995 p162) comenta que a cifra negra eacute produto da diferenccedila existente entre a criminalidade real quantidade de delitos cometidos num tempo e lugar determinados e a criminal idade aparente conhecida pelos oacutergatildeos de controle Ou seja um percentual substancial de delitos estaacute estruturalmente fora do alcance e do controle do direito penal colocando em xeque a credibilidade de todo o sistema

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razatildeo da cifra negra (diferenccedila entre infraccedilotildees denunciadas na poliacutecia e aquelas efetivamente julgadas) seja porque parte consideraacutevel das infraccedilotildees eacute resolvida sem a necessidade da formalidade juriacutedica do just07bull

A maioria dos conflitos cotidianos dentro das fanulias das empresas dos estabelecimentos de ensino das organizaccedilotildees profissionais dos sindicatos clubes ou associaccedilotildees privadas satildeo segundo Hulsman e Celis (1993) resolvidos sem ter de entrar no sistema penal O grande nuacutemero de encarcerados eacute insignificante diante da quantidade real de fatos puniacuteveis que ocorrem a todo instante raramente detectados pelo sistema penal O sistema penal eacute confrontado com uma espantosa soma de casos semelhantes poreacutem apenas alguns deles e de forma injusta satildeo tratados pelo sistema cuja prisatildeo se nutre diariamente de viacutetimas preferencias

Fora os delitos que natildeo pertencem ao chamado nuacutecleo duro da delinquumlecircncia como o terrorismo e a criminalidade organizada o sistema penal afirma Hulsman cria mais problemas do que contribuiccedilotildees para resolver

Diante disso o autor propotildee uma outra loacutegica Diz que um comportamento pode deixar de ser crime sem afetar os laccedilos de sociabilidade O homossexualismo cantado em prosa e verso por Platatildeo foi penalmente condenado pelo Estado moderno durante muito tempo A prostituiccedilatildeo convive com a proibiccedilatildeo sob ameaccedila penal ateacute a liberdade total ou passando por toda sorte de controle administrativo A embriaguez em si natildeo interessa agrave lei ocidental mas soacute indiretamente (dirigir embriagado) O mesmo tratamento diferencial ocorre em relaccedilatildeo ao uso e ao traacutefico de drogas Alguns paiacuteses condenam penalmente o uso e o traacutefico excluindo o consumo pessoal Outros soacute colocam no campo penal as drogas ditas pesadas excluindo as chamadas drogas leves8

7 Na opiniatildeo de Passeui (1999 p63) o que esta utopia natildeo admite mas permitia eacute que no lugar da ressocializaccedilatildeo e da futura reintegmccedilatildeo prevaleccedila o depoacutesito de corpos para os qu ai s os uacutenicos investimentos satildeo a diminui ccedilatildeo a zero da possibilidade de fuga e a rigorosa vigilacircncia apoacutes o sentenciaroento

Na avaliaccedilatildeo de Hulsman e Celis (1 993 plOI) natildeo exi stem nem crimes nem delitos mas apenas situaccedilotildees problemaacuteticas Sem a presenccedila e participaccedilatildeo das pessoas envolvidas nestas situaccedilotildees natildeo haacute como resolvecirc-las de forma humana Classificar um fato de crime significa excluir a priori ou tras saiacutedas poss iacuteveis limitando-se ao es tilo estatal punitivo dominado pelo pensamento juriacutedico distante da realidade

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o processo de globalizaccedilatildeo econocircmica e financeira apenas indiretamente contribui para aprofundar a crise do sistema de justiccedila penal nos paiacuteses capitalistas centrais e perifeacutericos As razotildees da falecircncia do modelo de poliacutetica criminal estatildeo associadas ao processo de reforma penal dos seacuteculos XVIII e XIX periacuteodo em que a sociedade burguesa adotou o principio da puniccedilatildeo generalizada por meio da teoria da humanizaccedilatildeo da pena A reforma do coacutedigo penal burguecircs diz Foucault (1987) converteu inuacutemeros problemas sociais em conflitos criminais estabeleceu uma classificaccedilatildeo metoacutedica dos delitos em termos de gravidade e hierarquia e como complemento modificou e converteu as prisotildees em locais privilegiados com o propoacutesito de recuperar os delinquumlentes infratores atraveacutes do tratamento ressocializador

Desde entatildeo todas as propostas adotadas visando a reforma do sistema penal natildeo tocaram e natildeo discutiram seriamente o significado do crime sua classificaccedilatildeo tampouco sua instituiccedilatildeo correlata a prisatildeo As teorias criminais da normalizaccedilatildeo e da defesa da lei e da ordem (toleracircncia zero) satildeo ilustrativas a esse respeito

A primeira vecirc no crime uma accedilatildeo racional oportunista Parte do pressuposto de que a sociedade atual eacute uma sociedade de risco em que o fenocircmeno criminal natildeo pode ser tratado como algo patoloacutegico mas uma questatildeo de oportunidade Propotildee desativar a burocracia estatal repressiva por ter falhado na tentativa de desarmar e de punir o autor do delito e transferir a responsabilidade do controle do crime aos setores da sociedade civil Grupos privados deveriam armar os alvos vulneraacuteveis criar obstaacuteculos defender suas casas carros cheques cartotildees de creacutedito etc Tais mudanccedilas tomariam as coisas mais difiacuteceis evitando que pessoas pertencentes aos diversos grupos sociais se convertessem em presas faacuteceis de accedilotildees criminais

A segunda (movimento da lei e da ordem) associa a banalizaccedilatildeo do crime agrave fraqueza das respostas das leis penais vigentes Por isso advoga a necessidade de uma perseguiccedilatildeo implacaacutevel de pequenos atos como jogar lixo no chatildeo e furtos ocasionais propondo o aumento da pena para os delinquumlentes ocasionais e a prisatildeo perpeacutetua para os delinquumlentes mais perigosos O que diferencia as teorias criminais em foco eacute mais uma questatildeo de estrateacutegia e natildeo de princiacutepios Ambas trabalham com a noccedilatildeo de crime como uma verdade social e juriacutedica

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A negaccedilatildeo do conceito de crime como um fato social normal constitui objeto de reflexatildeo das teorias da descriminalizaccedilatildeo e abolicionistas para as quais as definiccedilotildees abstratas de crime e de pena vigentes no coacutedigo penal natildeo correspondem agraves definiccedilotildees que delas fazem as pessoas reais A desqualificaccedilatildeo do discurso juriacutedico penal natildeo resulta portando das dificuldades da aplicaccedilatildeo da lei da ineficiecircncia dos oacutergatildeos de controle criados para administraacute-la ou ainda de seu reduzido alcance quando se compara a totalidade de crimes formalmente descritos e os que realmente satildeo solucionados

Uma soluccedilatildeo poliacutetica socialmente legiacutetima na soluccedilatildeo dos problemas sociais hoje definidos e classificados como problemas criminais natildeo pode limitar-se ao entendimento e agrave aceitaccedilatildeo do braccedilo punitivo estatal e de sua burocracia centralizadora como o melhor remeacutedio para gerir os conflitos penais existentes Portanto toma-se urgente questionar seriamente se os eventos sociais formalmente criminalizaacuteveis satildeo concebidos e aceitos como tais pelos agentes sociais direta e potencialmente envolvidos em tais conflitos

Isso implica admitir a possibilidade da sociedade resolver inuacutemeros problemas atualmente circunscritos no campo do direito penal fora do campo estatal punitivo Nesse sentido a responsabilidade pela soluccedilatildeo dos conflitos sob a tutela do direito penal seria transferida aos agentes direta e potencialmente envolvidos em situaccedilotildees problemaacuteticas (acusado viacutetima familiares Estado e demais interessados)

A atuaccedilatildeo da burocracia de justiccedila (poliacutecia e judiciaacuterio) se limitaria a mediar e natildeo intervir diretamente visando impor a melhor soluccedilatildeo para o conflito Para isso outras instacircncias juriacutedicas (campo civil e administrativo) poderiam ser acionadas em detrimento do pesado seletivo e ineficiente sistema de justiccedila penal estatal vigente que por meio de seus oacutergatildeos policiais judiciaacuterios e administrativos procura sem nunca poder encontrar a melhor soluccedilatildeo para o acusado seus familiares agrave vitima e a sociedade

Dois adolescentes (Japonecircs e Laacutezaro) praticaram mais um delito contra o patrimocircnio E daiacute Prendecirc-los ressocializaacute-Ios responsabilizar seus familiares Armar melhor determinados alvos sociais vulneraacuteveis que facilitam o roubo o furto

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Como ressocializar algueacutem que por razotildees conjunturais como o

desemprego e a crise econocircmica pratica um delito contra a propriedade se tais razotildees continuam a persistir Como responsabilizar seus familiares9 se a concepccedilatildeo nuclear de famiacutelia burguesa mudou

Para os defensores do movimento da lei e da ordem o Estado deve responder punindo de modo exemplar Entre os adeptos da normalizaccedilatildeo do crime o Estado deve preocupar-se em punir menos e criar uma nova estrateacutegia com O propoacutesito de armar mais as viacutetimas que os infratores

Tais movimentos natildeo tocam numa questatildeo central como o fazem os adeptos da descriminalizaccedilatildeo e da aboliccedilatildeo da pena para os quais a realidade atual propicia duas alternativas procurar outras repostas para os velhos e novos problemas questionando reduzindo e abolindo o crime e a prisatildeo ou restauraacute-la sob a condiccedilatildeo de aparelho de terror repressivo

9 Passetti (1995 p23) afirma que a situaccedilatildeo social dessas crianccedilas e adolescentes violentados permite desmistificar duas falaacutecias famiacutelias desestruturadas e o suposto acesso democraacutetico agrave escola O modelo de faTlllia vigente nas metroacutepoles natildeo corresponde mais agraves caracteriacutesticas da faTlllia modelar burguesa do capitalismo livre-concorrecircncia e natildeo pode mais ser restaurada como pretende o conservadorismo

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Referecircncias

ADORNO S Violecircncia e civilizaccedilatildeo In CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA 9 1999 Pelotas Anais Pelotas Sociedade Brasileira de Sociologia 1999 p77-106

BARATTA Alessandro Escola positiva e explicaccedilatildeo patoloacutegica da criminal idade In ___ o Criminologia crftica e criacutetica do direito penal introduccedilatildeo agrave sociologia do direito penal 3ed Rio de Janeiro Revan 2002

CERVINI Rauacutel Os processos de descriminalizaccedilatildeo 2ed Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 1995

CHARVET D Crise da Justiccedila da lei crise do Estado In POULANTZAS N (Org) O Estado em crise Rio de Janeiro Graal 1977

CHESNAIS Franccedilois Mundializaccedilatildeo o capital financeiro no comando Outubro Revista do Instituto de Estudos Socialistas Satildeo Paulo n5 p7-42 2001

DOWBOR Ladislau IANNI Octavio RESENDE Paulo Edgar (orgs) Desafios da Globalizaccedilatildeo Petroacutepolis Vozes 1998

FOUCAULT Michel Vigiar e punir histoacuteria da violecircncia nas prisotildees 23ed Petroacutepolis Vozes 1987

GARLAND David As contradiccedilotildees da sociedade punitiva o caso britacircnico Revista de Sociologia e Poliacutetica Curitiba n13 p59-80 novo 1999

HULSMAN Louk CELlS Jacqueline Bernat de Penas perdidas o sistema penal em ques tatildeo Rio de Janeiro Luam 1993

OHMAE Kenicbi O fim do Estado Naccedilatildeo a ascensatildeo das economias regionais 3ed Satildeo Paulo Campus 1999

PASSETTI Edson (Org) Violentados crianccedilas adolescentes e justiccedila Satildeo Paulo Imaginaacuterio 1995

PASSETTI Edson Sociedade de controle e aboliccedilatildeo da puniccedilatildeo Violecircncia e Mal-Estar na Sociedade Satildeo Paulo em Perspectiva Satildeo Paulo v13 n3 jull set1 999

SANTOS Boaventura Sousa A crtica da razatildeo indolente contra o desperdfcio da experiecircncia Satildeo Paulo Cortez 2000 v 1

WACQUANT Lolc As prisotildees da miseacuteria Rio de Janeiro Zabar 2001

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Abstract

The current process of economic and financiaI globalization has elicited contradictory answers in the formulation of criminal policies by State bureaucracy On the one hand under strong influence of neoclassical economic thought there appears in the United Kingdom the theory of crime normalization qualifying the criminal act as a rational choice option a matter of opportunity according to which delinquents rational1y calculate their actions Such theory proposes to replace the classical model of criminal policy which relates the penal practice to the figure of the other the abnormal by a new model of risk society which sees a professional career in criminal acts On the other hand there appears in the United States the movement in defense of law and order which proposes no tolerance to crime by the amplification of penal right and the recrudescence of the State criminal answer For the defenders of decriminalization and penalabolitionism the utopia of control society which favors the increase of punisbment and target changes to administer crime ignores the existence of a society with no penalties which is manifested through the dark cipher the difference between reported infractions to the police and those really judged

Key words globalization state crime punishment decriminalization penalty abolishment

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Page 17: INTRODUÇÃO AO DEBATE SOBRE AS POLíTICAS OFICIAIS NO ... · sem penas a qual se manifesta através da cifra negra, ... vinculados em razão do potencial revolucionário da informação

Da Descriminalizaccedilatildeo agrave Aboliccedilatildeo da Pena

A crise profunda da justiccedila penal avalia Cervini (1995) estaacute associada ao fracasso da ideologia do tratamento que pretende em seus diversos niacuteveis resolver os custos individuais e sociais do delito a defasagem das leis com certas culturas a existecircncia da cifra negra6

aleacutem das contradiccedilotildees dogmaacuteticas No momento histoacuterico atual diz Cervine dois fatores favorecem

a tendecircncia de descriminalizaccedilatildeo do direito penal um individual outro social No primeiro caso a pena privativa de liberdade que diminui a possibilidade de adaptabilidade no segundo caso os efeitos sociais estigmatizadores depois de sua aplicaccedilatildeo Em termos sociais natildeo haacute uma soluccedilatildeo eficiente em reparar o custo do crime nem de supressatildeo do estigma de ex-presidiaacuterio

As soluccedilotildees que o sistema penal tem adotado para gerir o problema da criminalidade encontram um potente antiacutedoto quando se avalia a existecircncia da chamada cifra negra Essa afirma Cervine indica claramente que os fatos aos quais a lei denomina de delitos natildeo satildeo considerados como fatos agrave parte separados de outros aconteshycimentos Uma soma relevante de acontecimentos formalmente considerados delitos e teoricamente merecedores de aplicaccedilatildeo penal natildeo eacute considerada nem valorizada como tal pelas viacutetimas ou pelos agentes do sistema pessoalmente interpelados mediante delaccedilotildees concretas (CERVINI 1995 pl73)

Tais consideraccedilotildees colidem com as premissas utoacutepicas da sociedade de controle que busca incansavelmente definir e administrar o crime atraveacutes da diversificaccedilatildeo das penas de ajustes da reclusatildeo prisional de reforma eletrocircnica das prisotildees mais investimentos e maior eficiecircncia na burocraacutetica criminal A sociedade de controle diz Passetti (1999) natildeo atenta para o fato da existecircncia de uma sociedade sem penas seja em

6 Cervini (1995 p162) comenta que a cifra negra eacute produto da diferenccedila existente entre a criminalidade real quantidade de delitos cometidos num tempo e lugar determinados e a criminal idade aparente conhecida pelos oacutergatildeos de controle Ou seja um percentual substancial de delitos estaacute estruturalmente fora do alcance e do controle do direito penal colocando em xeque a credibilidade de todo o sistema

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razatildeo da cifra negra (diferenccedila entre infraccedilotildees denunciadas na poliacutecia e aquelas efetivamente julgadas) seja porque parte consideraacutevel das infraccedilotildees eacute resolvida sem a necessidade da formalidade juriacutedica do just07bull

A maioria dos conflitos cotidianos dentro das fanulias das empresas dos estabelecimentos de ensino das organizaccedilotildees profissionais dos sindicatos clubes ou associaccedilotildees privadas satildeo segundo Hulsman e Celis (1993) resolvidos sem ter de entrar no sistema penal O grande nuacutemero de encarcerados eacute insignificante diante da quantidade real de fatos puniacuteveis que ocorrem a todo instante raramente detectados pelo sistema penal O sistema penal eacute confrontado com uma espantosa soma de casos semelhantes poreacutem apenas alguns deles e de forma injusta satildeo tratados pelo sistema cuja prisatildeo se nutre diariamente de viacutetimas preferencias

Fora os delitos que natildeo pertencem ao chamado nuacutecleo duro da delinquumlecircncia como o terrorismo e a criminalidade organizada o sistema penal afirma Hulsman cria mais problemas do que contribuiccedilotildees para resolver

Diante disso o autor propotildee uma outra loacutegica Diz que um comportamento pode deixar de ser crime sem afetar os laccedilos de sociabilidade O homossexualismo cantado em prosa e verso por Platatildeo foi penalmente condenado pelo Estado moderno durante muito tempo A prostituiccedilatildeo convive com a proibiccedilatildeo sob ameaccedila penal ateacute a liberdade total ou passando por toda sorte de controle administrativo A embriaguez em si natildeo interessa agrave lei ocidental mas soacute indiretamente (dirigir embriagado) O mesmo tratamento diferencial ocorre em relaccedilatildeo ao uso e ao traacutefico de drogas Alguns paiacuteses condenam penalmente o uso e o traacutefico excluindo o consumo pessoal Outros soacute colocam no campo penal as drogas ditas pesadas excluindo as chamadas drogas leves8

7 Na opiniatildeo de Passeui (1999 p63) o que esta utopia natildeo admite mas permitia eacute que no lugar da ressocializaccedilatildeo e da futura reintegmccedilatildeo prevaleccedila o depoacutesito de corpos para os qu ai s os uacutenicos investimentos satildeo a diminui ccedilatildeo a zero da possibilidade de fuga e a rigorosa vigilacircncia apoacutes o sentenciaroento

Na avaliaccedilatildeo de Hulsman e Celis (1 993 plOI) natildeo exi stem nem crimes nem delitos mas apenas situaccedilotildees problemaacuteticas Sem a presenccedila e participaccedilatildeo das pessoas envolvidas nestas situaccedilotildees natildeo haacute como resolvecirc-las de forma humana Classificar um fato de crime significa excluir a priori ou tras saiacutedas poss iacuteveis limitando-se ao es tilo estatal punitivo dominado pelo pensamento juriacutedico distante da realidade

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o processo de globalizaccedilatildeo econocircmica e financeira apenas indiretamente contribui para aprofundar a crise do sistema de justiccedila penal nos paiacuteses capitalistas centrais e perifeacutericos As razotildees da falecircncia do modelo de poliacutetica criminal estatildeo associadas ao processo de reforma penal dos seacuteculos XVIII e XIX periacuteodo em que a sociedade burguesa adotou o principio da puniccedilatildeo generalizada por meio da teoria da humanizaccedilatildeo da pena A reforma do coacutedigo penal burguecircs diz Foucault (1987) converteu inuacutemeros problemas sociais em conflitos criminais estabeleceu uma classificaccedilatildeo metoacutedica dos delitos em termos de gravidade e hierarquia e como complemento modificou e converteu as prisotildees em locais privilegiados com o propoacutesito de recuperar os delinquumlentes infratores atraveacutes do tratamento ressocializador

Desde entatildeo todas as propostas adotadas visando a reforma do sistema penal natildeo tocaram e natildeo discutiram seriamente o significado do crime sua classificaccedilatildeo tampouco sua instituiccedilatildeo correlata a prisatildeo As teorias criminais da normalizaccedilatildeo e da defesa da lei e da ordem (toleracircncia zero) satildeo ilustrativas a esse respeito

A primeira vecirc no crime uma accedilatildeo racional oportunista Parte do pressuposto de que a sociedade atual eacute uma sociedade de risco em que o fenocircmeno criminal natildeo pode ser tratado como algo patoloacutegico mas uma questatildeo de oportunidade Propotildee desativar a burocracia estatal repressiva por ter falhado na tentativa de desarmar e de punir o autor do delito e transferir a responsabilidade do controle do crime aos setores da sociedade civil Grupos privados deveriam armar os alvos vulneraacuteveis criar obstaacuteculos defender suas casas carros cheques cartotildees de creacutedito etc Tais mudanccedilas tomariam as coisas mais difiacuteceis evitando que pessoas pertencentes aos diversos grupos sociais se convertessem em presas faacuteceis de accedilotildees criminais

A segunda (movimento da lei e da ordem) associa a banalizaccedilatildeo do crime agrave fraqueza das respostas das leis penais vigentes Por isso advoga a necessidade de uma perseguiccedilatildeo implacaacutevel de pequenos atos como jogar lixo no chatildeo e furtos ocasionais propondo o aumento da pena para os delinquumlentes ocasionais e a prisatildeo perpeacutetua para os delinquumlentes mais perigosos O que diferencia as teorias criminais em foco eacute mais uma questatildeo de estrateacutegia e natildeo de princiacutepios Ambas trabalham com a noccedilatildeo de crime como uma verdade social e juriacutedica

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A negaccedilatildeo do conceito de crime como um fato social normal constitui objeto de reflexatildeo das teorias da descriminalizaccedilatildeo e abolicionistas para as quais as definiccedilotildees abstratas de crime e de pena vigentes no coacutedigo penal natildeo correspondem agraves definiccedilotildees que delas fazem as pessoas reais A desqualificaccedilatildeo do discurso juriacutedico penal natildeo resulta portando das dificuldades da aplicaccedilatildeo da lei da ineficiecircncia dos oacutergatildeos de controle criados para administraacute-la ou ainda de seu reduzido alcance quando se compara a totalidade de crimes formalmente descritos e os que realmente satildeo solucionados

Uma soluccedilatildeo poliacutetica socialmente legiacutetima na soluccedilatildeo dos problemas sociais hoje definidos e classificados como problemas criminais natildeo pode limitar-se ao entendimento e agrave aceitaccedilatildeo do braccedilo punitivo estatal e de sua burocracia centralizadora como o melhor remeacutedio para gerir os conflitos penais existentes Portanto toma-se urgente questionar seriamente se os eventos sociais formalmente criminalizaacuteveis satildeo concebidos e aceitos como tais pelos agentes sociais direta e potencialmente envolvidos em tais conflitos

Isso implica admitir a possibilidade da sociedade resolver inuacutemeros problemas atualmente circunscritos no campo do direito penal fora do campo estatal punitivo Nesse sentido a responsabilidade pela soluccedilatildeo dos conflitos sob a tutela do direito penal seria transferida aos agentes direta e potencialmente envolvidos em situaccedilotildees problemaacuteticas (acusado viacutetima familiares Estado e demais interessados)

A atuaccedilatildeo da burocracia de justiccedila (poliacutecia e judiciaacuterio) se limitaria a mediar e natildeo intervir diretamente visando impor a melhor soluccedilatildeo para o conflito Para isso outras instacircncias juriacutedicas (campo civil e administrativo) poderiam ser acionadas em detrimento do pesado seletivo e ineficiente sistema de justiccedila penal estatal vigente que por meio de seus oacutergatildeos policiais judiciaacuterios e administrativos procura sem nunca poder encontrar a melhor soluccedilatildeo para o acusado seus familiares agrave vitima e a sociedade

Dois adolescentes (Japonecircs e Laacutezaro) praticaram mais um delito contra o patrimocircnio E daiacute Prendecirc-los ressocializaacute-Ios responsabilizar seus familiares Armar melhor determinados alvos sociais vulneraacuteveis que facilitam o roubo o furto

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Como ressocializar algueacutem que por razotildees conjunturais como o

desemprego e a crise econocircmica pratica um delito contra a propriedade se tais razotildees continuam a persistir Como responsabilizar seus familiares9 se a concepccedilatildeo nuclear de famiacutelia burguesa mudou

Para os defensores do movimento da lei e da ordem o Estado deve responder punindo de modo exemplar Entre os adeptos da normalizaccedilatildeo do crime o Estado deve preocupar-se em punir menos e criar uma nova estrateacutegia com O propoacutesito de armar mais as viacutetimas que os infratores

Tais movimentos natildeo tocam numa questatildeo central como o fazem os adeptos da descriminalizaccedilatildeo e da aboliccedilatildeo da pena para os quais a realidade atual propicia duas alternativas procurar outras repostas para os velhos e novos problemas questionando reduzindo e abolindo o crime e a prisatildeo ou restauraacute-la sob a condiccedilatildeo de aparelho de terror repressivo

9 Passetti (1995 p23) afirma que a situaccedilatildeo social dessas crianccedilas e adolescentes violentados permite desmistificar duas falaacutecias famiacutelias desestruturadas e o suposto acesso democraacutetico agrave escola O modelo de faTlllia vigente nas metroacutepoles natildeo corresponde mais agraves caracteriacutesticas da faTlllia modelar burguesa do capitalismo livre-concorrecircncia e natildeo pode mais ser restaurada como pretende o conservadorismo

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Referecircncias

ADORNO S Violecircncia e civilizaccedilatildeo In CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA 9 1999 Pelotas Anais Pelotas Sociedade Brasileira de Sociologia 1999 p77-106

BARATTA Alessandro Escola positiva e explicaccedilatildeo patoloacutegica da criminal idade In ___ o Criminologia crftica e criacutetica do direito penal introduccedilatildeo agrave sociologia do direito penal 3ed Rio de Janeiro Revan 2002

CERVINI Rauacutel Os processos de descriminalizaccedilatildeo 2ed Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 1995

CHARVET D Crise da Justiccedila da lei crise do Estado In POULANTZAS N (Org) O Estado em crise Rio de Janeiro Graal 1977

CHESNAIS Franccedilois Mundializaccedilatildeo o capital financeiro no comando Outubro Revista do Instituto de Estudos Socialistas Satildeo Paulo n5 p7-42 2001

DOWBOR Ladislau IANNI Octavio RESENDE Paulo Edgar (orgs) Desafios da Globalizaccedilatildeo Petroacutepolis Vozes 1998

FOUCAULT Michel Vigiar e punir histoacuteria da violecircncia nas prisotildees 23ed Petroacutepolis Vozes 1987

GARLAND David As contradiccedilotildees da sociedade punitiva o caso britacircnico Revista de Sociologia e Poliacutetica Curitiba n13 p59-80 novo 1999

HULSMAN Louk CELlS Jacqueline Bernat de Penas perdidas o sistema penal em ques tatildeo Rio de Janeiro Luam 1993

OHMAE Kenicbi O fim do Estado Naccedilatildeo a ascensatildeo das economias regionais 3ed Satildeo Paulo Campus 1999

PASSETTI Edson (Org) Violentados crianccedilas adolescentes e justiccedila Satildeo Paulo Imaginaacuterio 1995

PASSETTI Edson Sociedade de controle e aboliccedilatildeo da puniccedilatildeo Violecircncia e Mal-Estar na Sociedade Satildeo Paulo em Perspectiva Satildeo Paulo v13 n3 jull set1 999

SANTOS Boaventura Sousa A crtica da razatildeo indolente contra o desperdfcio da experiecircncia Satildeo Paulo Cortez 2000 v 1

WACQUANT Lolc As prisotildees da miseacuteria Rio de Janeiro Zabar 2001

Revista Mediaccedilotildees Londrina v8n I p47-69janjun 2003

Abstract

The current process of economic and financiaI globalization has elicited contradictory answers in the formulation of criminal policies by State bureaucracy On the one hand under strong influence of neoclassical economic thought there appears in the United Kingdom the theory of crime normalization qualifying the criminal act as a rational choice option a matter of opportunity according to which delinquents rational1y calculate their actions Such theory proposes to replace the classical model of criminal policy which relates the penal practice to the figure of the other the abnormal by a new model of risk society which sees a professional career in criminal acts On the other hand there appears in the United States the movement in defense of law and order which proposes no tolerance to crime by the amplification of penal right and the recrudescence of the State criminal answer For the defenders of decriminalization and penalabolitionism the utopia of control society which favors the increase of punisbment and target changes to administer crime ignores the existence of a society with no penalties which is manifested through the dark cipher the difference between reported infractions to the police and those really judged

Key words globalization state crime punishment decriminalization penalty abolishment

Revista Mediaccedilotildees Londrina v8 n 1 p47middot69jan4un 2003 69

Page 18: INTRODUÇÃO AO DEBATE SOBRE AS POLíTICAS OFICIAIS NO ... · sem penas a qual se manifesta através da cifra negra, ... vinculados em razão do potencial revolucionário da informação

razatildeo da cifra negra (diferenccedila entre infraccedilotildees denunciadas na poliacutecia e aquelas efetivamente julgadas) seja porque parte consideraacutevel das infraccedilotildees eacute resolvida sem a necessidade da formalidade juriacutedica do just07bull

A maioria dos conflitos cotidianos dentro das fanulias das empresas dos estabelecimentos de ensino das organizaccedilotildees profissionais dos sindicatos clubes ou associaccedilotildees privadas satildeo segundo Hulsman e Celis (1993) resolvidos sem ter de entrar no sistema penal O grande nuacutemero de encarcerados eacute insignificante diante da quantidade real de fatos puniacuteveis que ocorrem a todo instante raramente detectados pelo sistema penal O sistema penal eacute confrontado com uma espantosa soma de casos semelhantes poreacutem apenas alguns deles e de forma injusta satildeo tratados pelo sistema cuja prisatildeo se nutre diariamente de viacutetimas preferencias

Fora os delitos que natildeo pertencem ao chamado nuacutecleo duro da delinquumlecircncia como o terrorismo e a criminalidade organizada o sistema penal afirma Hulsman cria mais problemas do que contribuiccedilotildees para resolver

Diante disso o autor propotildee uma outra loacutegica Diz que um comportamento pode deixar de ser crime sem afetar os laccedilos de sociabilidade O homossexualismo cantado em prosa e verso por Platatildeo foi penalmente condenado pelo Estado moderno durante muito tempo A prostituiccedilatildeo convive com a proibiccedilatildeo sob ameaccedila penal ateacute a liberdade total ou passando por toda sorte de controle administrativo A embriaguez em si natildeo interessa agrave lei ocidental mas soacute indiretamente (dirigir embriagado) O mesmo tratamento diferencial ocorre em relaccedilatildeo ao uso e ao traacutefico de drogas Alguns paiacuteses condenam penalmente o uso e o traacutefico excluindo o consumo pessoal Outros soacute colocam no campo penal as drogas ditas pesadas excluindo as chamadas drogas leves8

7 Na opiniatildeo de Passeui (1999 p63) o que esta utopia natildeo admite mas permitia eacute que no lugar da ressocializaccedilatildeo e da futura reintegmccedilatildeo prevaleccedila o depoacutesito de corpos para os qu ai s os uacutenicos investimentos satildeo a diminui ccedilatildeo a zero da possibilidade de fuga e a rigorosa vigilacircncia apoacutes o sentenciaroento

Na avaliaccedilatildeo de Hulsman e Celis (1 993 plOI) natildeo exi stem nem crimes nem delitos mas apenas situaccedilotildees problemaacuteticas Sem a presenccedila e participaccedilatildeo das pessoas envolvidas nestas situaccedilotildees natildeo haacute como resolvecirc-las de forma humana Classificar um fato de crime significa excluir a priori ou tras saiacutedas poss iacuteveis limitando-se ao es tilo estatal punitivo dominado pelo pensamento juriacutedico distante da realidade

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o processo de globalizaccedilatildeo econocircmica e financeira apenas indiretamente contribui para aprofundar a crise do sistema de justiccedila penal nos paiacuteses capitalistas centrais e perifeacutericos As razotildees da falecircncia do modelo de poliacutetica criminal estatildeo associadas ao processo de reforma penal dos seacuteculos XVIII e XIX periacuteodo em que a sociedade burguesa adotou o principio da puniccedilatildeo generalizada por meio da teoria da humanizaccedilatildeo da pena A reforma do coacutedigo penal burguecircs diz Foucault (1987) converteu inuacutemeros problemas sociais em conflitos criminais estabeleceu uma classificaccedilatildeo metoacutedica dos delitos em termos de gravidade e hierarquia e como complemento modificou e converteu as prisotildees em locais privilegiados com o propoacutesito de recuperar os delinquumlentes infratores atraveacutes do tratamento ressocializador

Desde entatildeo todas as propostas adotadas visando a reforma do sistema penal natildeo tocaram e natildeo discutiram seriamente o significado do crime sua classificaccedilatildeo tampouco sua instituiccedilatildeo correlata a prisatildeo As teorias criminais da normalizaccedilatildeo e da defesa da lei e da ordem (toleracircncia zero) satildeo ilustrativas a esse respeito

A primeira vecirc no crime uma accedilatildeo racional oportunista Parte do pressuposto de que a sociedade atual eacute uma sociedade de risco em que o fenocircmeno criminal natildeo pode ser tratado como algo patoloacutegico mas uma questatildeo de oportunidade Propotildee desativar a burocracia estatal repressiva por ter falhado na tentativa de desarmar e de punir o autor do delito e transferir a responsabilidade do controle do crime aos setores da sociedade civil Grupos privados deveriam armar os alvos vulneraacuteveis criar obstaacuteculos defender suas casas carros cheques cartotildees de creacutedito etc Tais mudanccedilas tomariam as coisas mais difiacuteceis evitando que pessoas pertencentes aos diversos grupos sociais se convertessem em presas faacuteceis de accedilotildees criminais

A segunda (movimento da lei e da ordem) associa a banalizaccedilatildeo do crime agrave fraqueza das respostas das leis penais vigentes Por isso advoga a necessidade de uma perseguiccedilatildeo implacaacutevel de pequenos atos como jogar lixo no chatildeo e furtos ocasionais propondo o aumento da pena para os delinquumlentes ocasionais e a prisatildeo perpeacutetua para os delinquumlentes mais perigosos O que diferencia as teorias criminais em foco eacute mais uma questatildeo de estrateacutegia e natildeo de princiacutepios Ambas trabalham com a noccedilatildeo de crime como uma verdade social e juriacutedica

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A negaccedilatildeo do conceito de crime como um fato social normal constitui objeto de reflexatildeo das teorias da descriminalizaccedilatildeo e abolicionistas para as quais as definiccedilotildees abstratas de crime e de pena vigentes no coacutedigo penal natildeo correspondem agraves definiccedilotildees que delas fazem as pessoas reais A desqualificaccedilatildeo do discurso juriacutedico penal natildeo resulta portando das dificuldades da aplicaccedilatildeo da lei da ineficiecircncia dos oacutergatildeos de controle criados para administraacute-la ou ainda de seu reduzido alcance quando se compara a totalidade de crimes formalmente descritos e os que realmente satildeo solucionados

Uma soluccedilatildeo poliacutetica socialmente legiacutetima na soluccedilatildeo dos problemas sociais hoje definidos e classificados como problemas criminais natildeo pode limitar-se ao entendimento e agrave aceitaccedilatildeo do braccedilo punitivo estatal e de sua burocracia centralizadora como o melhor remeacutedio para gerir os conflitos penais existentes Portanto toma-se urgente questionar seriamente se os eventos sociais formalmente criminalizaacuteveis satildeo concebidos e aceitos como tais pelos agentes sociais direta e potencialmente envolvidos em tais conflitos

Isso implica admitir a possibilidade da sociedade resolver inuacutemeros problemas atualmente circunscritos no campo do direito penal fora do campo estatal punitivo Nesse sentido a responsabilidade pela soluccedilatildeo dos conflitos sob a tutela do direito penal seria transferida aos agentes direta e potencialmente envolvidos em situaccedilotildees problemaacuteticas (acusado viacutetima familiares Estado e demais interessados)

A atuaccedilatildeo da burocracia de justiccedila (poliacutecia e judiciaacuterio) se limitaria a mediar e natildeo intervir diretamente visando impor a melhor soluccedilatildeo para o conflito Para isso outras instacircncias juriacutedicas (campo civil e administrativo) poderiam ser acionadas em detrimento do pesado seletivo e ineficiente sistema de justiccedila penal estatal vigente que por meio de seus oacutergatildeos policiais judiciaacuterios e administrativos procura sem nunca poder encontrar a melhor soluccedilatildeo para o acusado seus familiares agrave vitima e a sociedade

Dois adolescentes (Japonecircs e Laacutezaro) praticaram mais um delito contra o patrimocircnio E daiacute Prendecirc-los ressocializaacute-Ios responsabilizar seus familiares Armar melhor determinados alvos sociais vulneraacuteveis que facilitam o roubo o furto

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Como ressocializar algueacutem que por razotildees conjunturais como o

desemprego e a crise econocircmica pratica um delito contra a propriedade se tais razotildees continuam a persistir Como responsabilizar seus familiares9 se a concepccedilatildeo nuclear de famiacutelia burguesa mudou

Para os defensores do movimento da lei e da ordem o Estado deve responder punindo de modo exemplar Entre os adeptos da normalizaccedilatildeo do crime o Estado deve preocupar-se em punir menos e criar uma nova estrateacutegia com O propoacutesito de armar mais as viacutetimas que os infratores

Tais movimentos natildeo tocam numa questatildeo central como o fazem os adeptos da descriminalizaccedilatildeo e da aboliccedilatildeo da pena para os quais a realidade atual propicia duas alternativas procurar outras repostas para os velhos e novos problemas questionando reduzindo e abolindo o crime e a prisatildeo ou restauraacute-la sob a condiccedilatildeo de aparelho de terror repressivo

9 Passetti (1995 p23) afirma que a situaccedilatildeo social dessas crianccedilas e adolescentes violentados permite desmistificar duas falaacutecias famiacutelias desestruturadas e o suposto acesso democraacutetico agrave escola O modelo de faTlllia vigente nas metroacutepoles natildeo corresponde mais agraves caracteriacutesticas da faTlllia modelar burguesa do capitalismo livre-concorrecircncia e natildeo pode mais ser restaurada como pretende o conservadorismo

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Referecircncias

ADORNO S Violecircncia e civilizaccedilatildeo In CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA 9 1999 Pelotas Anais Pelotas Sociedade Brasileira de Sociologia 1999 p77-106

BARATTA Alessandro Escola positiva e explicaccedilatildeo patoloacutegica da criminal idade In ___ o Criminologia crftica e criacutetica do direito penal introduccedilatildeo agrave sociologia do direito penal 3ed Rio de Janeiro Revan 2002

CERVINI Rauacutel Os processos de descriminalizaccedilatildeo 2ed Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 1995

CHARVET D Crise da Justiccedila da lei crise do Estado In POULANTZAS N (Org) O Estado em crise Rio de Janeiro Graal 1977

CHESNAIS Franccedilois Mundializaccedilatildeo o capital financeiro no comando Outubro Revista do Instituto de Estudos Socialistas Satildeo Paulo n5 p7-42 2001

DOWBOR Ladislau IANNI Octavio RESENDE Paulo Edgar (orgs) Desafios da Globalizaccedilatildeo Petroacutepolis Vozes 1998

FOUCAULT Michel Vigiar e punir histoacuteria da violecircncia nas prisotildees 23ed Petroacutepolis Vozes 1987

GARLAND David As contradiccedilotildees da sociedade punitiva o caso britacircnico Revista de Sociologia e Poliacutetica Curitiba n13 p59-80 novo 1999

HULSMAN Louk CELlS Jacqueline Bernat de Penas perdidas o sistema penal em ques tatildeo Rio de Janeiro Luam 1993

OHMAE Kenicbi O fim do Estado Naccedilatildeo a ascensatildeo das economias regionais 3ed Satildeo Paulo Campus 1999

PASSETTI Edson (Org) Violentados crianccedilas adolescentes e justiccedila Satildeo Paulo Imaginaacuterio 1995

PASSETTI Edson Sociedade de controle e aboliccedilatildeo da puniccedilatildeo Violecircncia e Mal-Estar na Sociedade Satildeo Paulo em Perspectiva Satildeo Paulo v13 n3 jull set1 999

SANTOS Boaventura Sousa A crtica da razatildeo indolente contra o desperdfcio da experiecircncia Satildeo Paulo Cortez 2000 v 1

WACQUANT Lolc As prisotildees da miseacuteria Rio de Janeiro Zabar 2001

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Abstract

The current process of economic and financiaI globalization has elicited contradictory answers in the formulation of criminal policies by State bureaucracy On the one hand under strong influence of neoclassical economic thought there appears in the United Kingdom the theory of crime normalization qualifying the criminal act as a rational choice option a matter of opportunity according to which delinquents rational1y calculate their actions Such theory proposes to replace the classical model of criminal policy which relates the penal practice to the figure of the other the abnormal by a new model of risk society which sees a professional career in criminal acts On the other hand there appears in the United States the movement in defense of law and order which proposes no tolerance to crime by the amplification of penal right and the recrudescence of the State criminal answer For the defenders of decriminalization and penalabolitionism the utopia of control society which favors the increase of punisbment and target changes to administer crime ignores the existence of a society with no penalties which is manifested through the dark cipher the difference between reported infractions to the police and those really judged

Key words globalization state crime punishment decriminalization penalty abolishment

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Page 19: INTRODUÇÃO AO DEBATE SOBRE AS POLíTICAS OFICIAIS NO ... · sem penas a qual se manifesta através da cifra negra, ... vinculados em razão do potencial revolucionário da informação

o processo de globalizaccedilatildeo econocircmica e financeira apenas indiretamente contribui para aprofundar a crise do sistema de justiccedila penal nos paiacuteses capitalistas centrais e perifeacutericos As razotildees da falecircncia do modelo de poliacutetica criminal estatildeo associadas ao processo de reforma penal dos seacuteculos XVIII e XIX periacuteodo em que a sociedade burguesa adotou o principio da puniccedilatildeo generalizada por meio da teoria da humanizaccedilatildeo da pena A reforma do coacutedigo penal burguecircs diz Foucault (1987) converteu inuacutemeros problemas sociais em conflitos criminais estabeleceu uma classificaccedilatildeo metoacutedica dos delitos em termos de gravidade e hierarquia e como complemento modificou e converteu as prisotildees em locais privilegiados com o propoacutesito de recuperar os delinquumlentes infratores atraveacutes do tratamento ressocializador

Desde entatildeo todas as propostas adotadas visando a reforma do sistema penal natildeo tocaram e natildeo discutiram seriamente o significado do crime sua classificaccedilatildeo tampouco sua instituiccedilatildeo correlata a prisatildeo As teorias criminais da normalizaccedilatildeo e da defesa da lei e da ordem (toleracircncia zero) satildeo ilustrativas a esse respeito

A primeira vecirc no crime uma accedilatildeo racional oportunista Parte do pressuposto de que a sociedade atual eacute uma sociedade de risco em que o fenocircmeno criminal natildeo pode ser tratado como algo patoloacutegico mas uma questatildeo de oportunidade Propotildee desativar a burocracia estatal repressiva por ter falhado na tentativa de desarmar e de punir o autor do delito e transferir a responsabilidade do controle do crime aos setores da sociedade civil Grupos privados deveriam armar os alvos vulneraacuteveis criar obstaacuteculos defender suas casas carros cheques cartotildees de creacutedito etc Tais mudanccedilas tomariam as coisas mais difiacuteceis evitando que pessoas pertencentes aos diversos grupos sociais se convertessem em presas faacuteceis de accedilotildees criminais

A segunda (movimento da lei e da ordem) associa a banalizaccedilatildeo do crime agrave fraqueza das respostas das leis penais vigentes Por isso advoga a necessidade de uma perseguiccedilatildeo implacaacutevel de pequenos atos como jogar lixo no chatildeo e furtos ocasionais propondo o aumento da pena para os delinquumlentes ocasionais e a prisatildeo perpeacutetua para os delinquumlentes mais perigosos O que diferencia as teorias criminais em foco eacute mais uma questatildeo de estrateacutegia e natildeo de princiacutepios Ambas trabalham com a noccedilatildeo de crime como uma verdade social e juriacutedica

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A negaccedilatildeo do conceito de crime como um fato social normal constitui objeto de reflexatildeo das teorias da descriminalizaccedilatildeo e abolicionistas para as quais as definiccedilotildees abstratas de crime e de pena vigentes no coacutedigo penal natildeo correspondem agraves definiccedilotildees que delas fazem as pessoas reais A desqualificaccedilatildeo do discurso juriacutedico penal natildeo resulta portando das dificuldades da aplicaccedilatildeo da lei da ineficiecircncia dos oacutergatildeos de controle criados para administraacute-la ou ainda de seu reduzido alcance quando se compara a totalidade de crimes formalmente descritos e os que realmente satildeo solucionados

Uma soluccedilatildeo poliacutetica socialmente legiacutetima na soluccedilatildeo dos problemas sociais hoje definidos e classificados como problemas criminais natildeo pode limitar-se ao entendimento e agrave aceitaccedilatildeo do braccedilo punitivo estatal e de sua burocracia centralizadora como o melhor remeacutedio para gerir os conflitos penais existentes Portanto toma-se urgente questionar seriamente se os eventos sociais formalmente criminalizaacuteveis satildeo concebidos e aceitos como tais pelos agentes sociais direta e potencialmente envolvidos em tais conflitos

Isso implica admitir a possibilidade da sociedade resolver inuacutemeros problemas atualmente circunscritos no campo do direito penal fora do campo estatal punitivo Nesse sentido a responsabilidade pela soluccedilatildeo dos conflitos sob a tutela do direito penal seria transferida aos agentes direta e potencialmente envolvidos em situaccedilotildees problemaacuteticas (acusado viacutetima familiares Estado e demais interessados)

A atuaccedilatildeo da burocracia de justiccedila (poliacutecia e judiciaacuterio) se limitaria a mediar e natildeo intervir diretamente visando impor a melhor soluccedilatildeo para o conflito Para isso outras instacircncias juriacutedicas (campo civil e administrativo) poderiam ser acionadas em detrimento do pesado seletivo e ineficiente sistema de justiccedila penal estatal vigente que por meio de seus oacutergatildeos policiais judiciaacuterios e administrativos procura sem nunca poder encontrar a melhor soluccedilatildeo para o acusado seus familiares agrave vitima e a sociedade

Dois adolescentes (Japonecircs e Laacutezaro) praticaram mais um delito contra o patrimocircnio E daiacute Prendecirc-los ressocializaacute-Ios responsabilizar seus familiares Armar melhor determinados alvos sociais vulneraacuteveis que facilitam o roubo o furto

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Como ressocializar algueacutem que por razotildees conjunturais como o

desemprego e a crise econocircmica pratica um delito contra a propriedade se tais razotildees continuam a persistir Como responsabilizar seus familiares9 se a concepccedilatildeo nuclear de famiacutelia burguesa mudou

Para os defensores do movimento da lei e da ordem o Estado deve responder punindo de modo exemplar Entre os adeptos da normalizaccedilatildeo do crime o Estado deve preocupar-se em punir menos e criar uma nova estrateacutegia com O propoacutesito de armar mais as viacutetimas que os infratores

Tais movimentos natildeo tocam numa questatildeo central como o fazem os adeptos da descriminalizaccedilatildeo e da aboliccedilatildeo da pena para os quais a realidade atual propicia duas alternativas procurar outras repostas para os velhos e novos problemas questionando reduzindo e abolindo o crime e a prisatildeo ou restauraacute-la sob a condiccedilatildeo de aparelho de terror repressivo

9 Passetti (1995 p23) afirma que a situaccedilatildeo social dessas crianccedilas e adolescentes violentados permite desmistificar duas falaacutecias famiacutelias desestruturadas e o suposto acesso democraacutetico agrave escola O modelo de faTlllia vigente nas metroacutepoles natildeo corresponde mais agraves caracteriacutesticas da faTlllia modelar burguesa do capitalismo livre-concorrecircncia e natildeo pode mais ser restaurada como pretende o conservadorismo

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Referecircncias

ADORNO S Violecircncia e civilizaccedilatildeo In CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA 9 1999 Pelotas Anais Pelotas Sociedade Brasileira de Sociologia 1999 p77-106

BARATTA Alessandro Escola positiva e explicaccedilatildeo patoloacutegica da criminal idade In ___ o Criminologia crftica e criacutetica do direito penal introduccedilatildeo agrave sociologia do direito penal 3ed Rio de Janeiro Revan 2002

CERVINI Rauacutel Os processos de descriminalizaccedilatildeo 2ed Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 1995

CHARVET D Crise da Justiccedila da lei crise do Estado In POULANTZAS N (Org) O Estado em crise Rio de Janeiro Graal 1977

CHESNAIS Franccedilois Mundializaccedilatildeo o capital financeiro no comando Outubro Revista do Instituto de Estudos Socialistas Satildeo Paulo n5 p7-42 2001

DOWBOR Ladislau IANNI Octavio RESENDE Paulo Edgar (orgs) Desafios da Globalizaccedilatildeo Petroacutepolis Vozes 1998

FOUCAULT Michel Vigiar e punir histoacuteria da violecircncia nas prisotildees 23ed Petroacutepolis Vozes 1987

GARLAND David As contradiccedilotildees da sociedade punitiva o caso britacircnico Revista de Sociologia e Poliacutetica Curitiba n13 p59-80 novo 1999

HULSMAN Louk CELlS Jacqueline Bernat de Penas perdidas o sistema penal em ques tatildeo Rio de Janeiro Luam 1993

OHMAE Kenicbi O fim do Estado Naccedilatildeo a ascensatildeo das economias regionais 3ed Satildeo Paulo Campus 1999

PASSETTI Edson (Org) Violentados crianccedilas adolescentes e justiccedila Satildeo Paulo Imaginaacuterio 1995

PASSETTI Edson Sociedade de controle e aboliccedilatildeo da puniccedilatildeo Violecircncia e Mal-Estar na Sociedade Satildeo Paulo em Perspectiva Satildeo Paulo v13 n3 jull set1 999

SANTOS Boaventura Sousa A crtica da razatildeo indolente contra o desperdfcio da experiecircncia Satildeo Paulo Cortez 2000 v 1

WACQUANT Lolc As prisotildees da miseacuteria Rio de Janeiro Zabar 2001

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Abstract

The current process of economic and financiaI globalization has elicited contradictory answers in the formulation of criminal policies by State bureaucracy On the one hand under strong influence of neoclassical economic thought there appears in the United Kingdom the theory of crime normalization qualifying the criminal act as a rational choice option a matter of opportunity according to which delinquents rational1y calculate their actions Such theory proposes to replace the classical model of criminal policy which relates the penal practice to the figure of the other the abnormal by a new model of risk society which sees a professional career in criminal acts On the other hand there appears in the United States the movement in defense of law and order which proposes no tolerance to crime by the amplification of penal right and the recrudescence of the State criminal answer For the defenders of decriminalization and penalabolitionism the utopia of control society which favors the increase of punisbment and target changes to administer crime ignores the existence of a society with no penalties which is manifested through the dark cipher the difference between reported infractions to the police and those really judged

Key words globalization state crime punishment decriminalization penalty abolishment

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A negaccedilatildeo do conceito de crime como um fato social normal constitui objeto de reflexatildeo das teorias da descriminalizaccedilatildeo e abolicionistas para as quais as definiccedilotildees abstratas de crime e de pena vigentes no coacutedigo penal natildeo correspondem agraves definiccedilotildees que delas fazem as pessoas reais A desqualificaccedilatildeo do discurso juriacutedico penal natildeo resulta portando das dificuldades da aplicaccedilatildeo da lei da ineficiecircncia dos oacutergatildeos de controle criados para administraacute-la ou ainda de seu reduzido alcance quando se compara a totalidade de crimes formalmente descritos e os que realmente satildeo solucionados

Uma soluccedilatildeo poliacutetica socialmente legiacutetima na soluccedilatildeo dos problemas sociais hoje definidos e classificados como problemas criminais natildeo pode limitar-se ao entendimento e agrave aceitaccedilatildeo do braccedilo punitivo estatal e de sua burocracia centralizadora como o melhor remeacutedio para gerir os conflitos penais existentes Portanto toma-se urgente questionar seriamente se os eventos sociais formalmente criminalizaacuteveis satildeo concebidos e aceitos como tais pelos agentes sociais direta e potencialmente envolvidos em tais conflitos

Isso implica admitir a possibilidade da sociedade resolver inuacutemeros problemas atualmente circunscritos no campo do direito penal fora do campo estatal punitivo Nesse sentido a responsabilidade pela soluccedilatildeo dos conflitos sob a tutela do direito penal seria transferida aos agentes direta e potencialmente envolvidos em situaccedilotildees problemaacuteticas (acusado viacutetima familiares Estado e demais interessados)

A atuaccedilatildeo da burocracia de justiccedila (poliacutecia e judiciaacuterio) se limitaria a mediar e natildeo intervir diretamente visando impor a melhor soluccedilatildeo para o conflito Para isso outras instacircncias juriacutedicas (campo civil e administrativo) poderiam ser acionadas em detrimento do pesado seletivo e ineficiente sistema de justiccedila penal estatal vigente que por meio de seus oacutergatildeos policiais judiciaacuterios e administrativos procura sem nunca poder encontrar a melhor soluccedilatildeo para o acusado seus familiares agrave vitima e a sociedade

Dois adolescentes (Japonecircs e Laacutezaro) praticaram mais um delito contra o patrimocircnio E daiacute Prendecirc-los ressocializaacute-Ios responsabilizar seus familiares Armar melhor determinados alvos sociais vulneraacuteveis que facilitam o roubo o furto

Revista Mediaccedilotildees Londrina v8n1p47middot69janjun 2003

Como ressocializar algueacutem que por razotildees conjunturais como o

desemprego e a crise econocircmica pratica um delito contra a propriedade se tais razotildees continuam a persistir Como responsabilizar seus familiares9 se a concepccedilatildeo nuclear de famiacutelia burguesa mudou

Para os defensores do movimento da lei e da ordem o Estado deve responder punindo de modo exemplar Entre os adeptos da normalizaccedilatildeo do crime o Estado deve preocupar-se em punir menos e criar uma nova estrateacutegia com O propoacutesito de armar mais as viacutetimas que os infratores

Tais movimentos natildeo tocam numa questatildeo central como o fazem os adeptos da descriminalizaccedilatildeo e da aboliccedilatildeo da pena para os quais a realidade atual propicia duas alternativas procurar outras repostas para os velhos e novos problemas questionando reduzindo e abolindo o crime e a prisatildeo ou restauraacute-la sob a condiccedilatildeo de aparelho de terror repressivo

9 Passetti (1995 p23) afirma que a situaccedilatildeo social dessas crianccedilas e adolescentes violentados permite desmistificar duas falaacutecias famiacutelias desestruturadas e o suposto acesso democraacutetico agrave escola O modelo de faTlllia vigente nas metroacutepoles natildeo corresponde mais agraves caracteriacutesticas da faTlllia modelar burguesa do capitalismo livre-concorrecircncia e natildeo pode mais ser restaurada como pretende o conservadorismo

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Referecircncias

ADORNO S Violecircncia e civilizaccedilatildeo In CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA 9 1999 Pelotas Anais Pelotas Sociedade Brasileira de Sociologia 1999 p77-106

BARATTA Alessandro Escola positiva e explicaccedilatildeo patoloacutegica da criminal idade In ___ o Criminologia crftica e criacutetica do direito penal introduccedilatildeo agrave sociologia do direito penal 3ed Rio de Janeiro Revan 2002

CERVINI Rauacutel Os processos de descriminalizaccedilatildeo 2ed Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 1995

CHARVET D Crise da Justiccedila da lei crise do Estado In POULANTZAS N (Org) O Estado em crise Rio de Janeiro Graal 1977

CHESNAIS Franccedilois Mundializaccedilatildeo o capital financeiro no comando Outubro Revista do Instituto de Estudos Socialistas Satildeo Paulo n5 p7-42 2001

DOWBOR Ladislau IANNI Octavio RESENDE Paulo Edgar (orgs) Desafios da Globalizaccedilatildeo Petroacutepolis Vozes 1998

FOUCAULT Michel Vigiar e punir histoacuteria da violecircncia nas prisotildees 23ed Petroacutepolis Vozes 1987

GARLAND David As contradiccedilotildees da sociedade punitiva o caso britacircnico Revista de Sociologia e Poliacutetica Curitiba n13 p59-80 novo 1999

HULSMAN Louk CELlS Jacqueline Bernat de Penas perdidas o sistema penal em ques tatildeo Rio de Janeiro Luam 1993

OHMAE Kenicbi O fim do Estado Naccedilatildeo a ascensatildeo das economias regionais 3ed Satildeo Paulo Campus 1999

PASSETTI Edson (Org) Violentados crianccedilas adolescentes e justiccedila Satildeo Paulo Imaginaacuterio 1995

PASSETTI Edson Sociedade de controle e aboliccedilatildeo da puniccedilatildeo Violecircncia e Mal-Estar na Sociedade Satildeo Paulo em Perspectiva Satildeo Paulo v13 n3 jull set1 999

SANTOS Boaventura Sousa A crtica da razatildeo indolente contra o desperdfcio da experiecircncia Satildeo Paulo Cortez 2000 v 1

WACQUANT Lolc As prisotildees da miseacuteria Rio de Janeiro Zabar 2001

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Abstract

The current process of economic and financiaI globalization has elicited contradictory answers in the formulation of criminal policies by State bureaucracy On the one hand under strong influence of neoclassical economic thought there appears in the United Kingdom the theory of crime normalization qualifying the criminal act as a rational choice option a matter of opportunity according to which delinquents rational1y calculate their actions Such theory proposes to replace the classical model of criminal policy which relates the penal practice to the figure of the other the abnormal by a new model of risk society which sees a professional career in criminal acts On the other hand there appears in the United States the movement in defense of law and order which proposes no tolerance to crime by the amplification of penal right and the recrudescence of the State criminal answer For the defenders of decriminalization and penalabolitionism the utopia of control society which favors the increase of punisbment and target changes to administer crime ignores the existence of a society with no penalties which is manifested through the dark cipher the difference between reported infractions to the police and those really judged

Key words globalization state crime punishment decriminalization penalty abolishment

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Page 21: INTRODUÇÃO AO DEBATE SOBRE AS POLíTICAS OFICIAIS NO ... · sem penas a qual se manifesta através da cifra negra, ... vinculados em razão do potencial revolucionário da informação

Como ressocializar algueacutem que por razotildees conjunturais como o

desemprego e a crise econocircmica pratica um delito contra a propriedade se tais razotildees continuam a persistir Como responsabilizar seus familiares9 se a concepccedilatildeo nuclear de famiacutelia burguesa mudou

Para os defensores do movimento da lei e da ordem o Estado deve responder punindo de modo exemplar Entre os adeptos da normalizaccedilatildeo do crime o Estado deve preocupar-se em punir menos e criar uma nova estrateacutegia com O propoacutesito de armar mais as viacutetimas que os infratores

Tais movimentos natildeo tocam numa questatildeo central como o fazem os adeptos da descriminalizaccedilatildeo e da aboliccedilatildeo da pena para os quais a realidade atual propicia duas alternativas procurar outras repostas para os velhos e novos problemas questionando reduzindo e abolindo o crime e a prisatildeo ou restauraacute-la sob a condiccedilatildeo de aparelho de terror repressivo

9 Passetti (1995 p23) afirma que a situaccedilatildeo social dessas crianccedilas e adolescentes violentados permite desmistificar duas falaacutecias famiacutelias desestruturadas e o suposto acesso democraacutetico agrave escola O modelo de faTlllia vigente nas metroacutepoles natildeo corresponde mais agraves caracteriacutesticas da faTlllia modelar burguesa do capitalismo livre-concorrecircncia e natildeo pode mais ser restaurada como pretende o conservadorismo

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Referecircncias

ADORNO S Violecircncia e civilizaccedilatildeo In CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA 9 1999 Pelotas Anais Pelotas Sociedade Brasileira de Sociologia 1999 p77-106

BARATTA Alessandro Escola positiva e explicaccedilatildeo patoloacutegica da criminal idade In ___ o Criminologia crftica e criacutetica do direito penal introduccedilatildeo agrave sociologia do direito penal 3ed Rio de Janeiro Revan 2002

CERVINI Rauacutel Os processos de descriminalizaccedilatildeo 2ed Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 1995

CHARVET D Crise da Justiccedila da lei crise do Estado In POULANTZAS N (Org) O Estado em crise Rio de Janeiro Graal 1977

CHESNAIS Franccedilois Mundializaccedilatildeo o capital financeiro no comando Outubro Revista do Instituto de Estudos Socialistas Satildeo Paulo n5 p7-42 2001

DOWBOR Ladislau IANNI Octavio RESENDE Paulo Edgar (orgs) Desafios da Globalizaccedilatildeo Petroacutepolis Vozes 1998

FOUCAULT Michel Vigiar e punir histoacuteria da violecircncia nas prisotildees 23ed Petroacutepolis Vozes 1987

GARLAND David As contradiccedilotildees da sociedade punitiva o caso britacircnico Revista de Sociologia e Poliacutetica Curitiba n13 p59-80 novo 1999

HULSMAN Louk CELlS Jacqueline Bernat de Penas perdidas o sistema penal em ques tatildeo Rio de Janeiro Luam 1993

OHMAE Kenicbi O fim do Estado Naccedilatildeo a ascensatildeo das economias regionais 3ed Satildeo Paulo Campus 1999

PASSETTI Edson (Org) Violentados crianccedilas adolescentes e justiccedila Satildeo Paulo Imaginaacuterio 1995

PASSETTI Edson Sociedade de controle e aboliccedilatildeo da puniccedilatildeo Violecircncia e Mal-Estar na Sociedade Satildeo Paulo em Perspectiva Satildeo Paulo v13 n3 jull set1 999

SANTOS Boaventura Sousa A crtica da razatildeo indolente contra o desperdfcio da experiecircncia Satildeo Paulo Cortez 2000 v 1

WACQUANT Lolc As prisotildees da miseacuteria Rio de Janeiro Zabar 2001

Revista Mediaccedilotildees Londrina v8n I p47-69janjun 2003

Abstract

The current process of economic and financiaI globalization has elicited contradictory answers in the formulation of criminal policies by State bureaucracy On the one hand under strong influence of neoclassical economic thought there appears in the United Kingdom the theory of crime normalization qualifying the criminal act as a rational choice option a matter of opportunity according to which delinquents rational1y calculate their actions Such theory proposes to replace the classical model of criminal policy which relates the penal practice to the figure of the other the abnormal by a new model of risk society which sees a professional career in criminal acts On the other hand there appears in the United States the movement in defense of law and order which proposes no tolerance to crime by the amplification of penal right and the recrudescence of the State criminal answer For the defenders of decriminalization and penalabolitionism the utopia of control society which favors the increase of punisbment and target changes to administer crime ignores the existence of a society with no penalties which is manifested through the dark cipher the difference between reported infractions to the police and those really judged

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Referecircncias

ADORNO S Violecircncia e civilizaccedilatildeo In CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA 9 1999 Pelotas Anais Pelotas Sociedade Brasileira de Sociologia 1999 p77-106

BARATTA Alessandro Escola positiva e explicaccedilatildeo patoloacutegica da criminal idade In ___ o Criminologia crftica e criacutetica do direito penal introduccedilatildeo agrave sociologia do direito penal 3ed Rio de Janeiro Revan 2002

CERVINI Rauacutel Os processos de descriminalizaccedilatildeo 2ed Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 1995

CHARVET D Crise da Justiccedila da lei crise do Estado In POULANTZAS N (Org) O Estado em crise Rio de Janeiro Graal 1977

CHESNAIS Franccedilois Mundializaccedilatildeo o capital financeiro no comando Outubro Revista do Instituto de Estudos Socialistas Satildeo Paulo n5 p7-42 2001

DOWBOR Ladislau IANNI Octavio RESENDE Paulo Edgar (orgs) Desafios da Globalizaccedilatildeo Petroacutepolis Vozes 1998

FOUCAULT Michel Vigiar e punir histoacuteria da violecircncia nas prisotildees 23ed Petroacutepolis Vozes 1987

GARLAND David As contradiccedilotildees da sociedade punitiva o caso britacircnico Revista de Sociologia e Poliacutetica Curitiba n13 p59-80 novo 1999

HULSMAN Louk CELlS Jacqueline Bernat de Penas perdidas o sistema penal em ques tatildeo Rio de Janeiro Luam 1993

OHMAE Kenicbi O fim do Estado Naccedilatildeo a ascensatildeo das economias regionais 3ed Satildeo Paulo Campus 1999

PASSETTI Edson (Org) Violentados crianccedilas adolescentes e justiccedila Satildeo Paulo Imaginaacuterio 1995

PASSETTI Edson Sociedade de controle e aboliccedilatildeo da puniccedilatildeo Violecircncia e Mal-Estar na Sociedade Satildeo Paulo em Perspectiva Satildeo Paulo v13 n3 jull set1 999

SANTOS Boaventura Sousa A crtica da razatildeo indolente contra o desperdfcio da experiecircncia Satildeo Paulo Cortez 2000 v 1

WACQUANT Lolc As prisotildees da miseacuteria Rio de Janeiro Zabar 2001

Revista Mediaccedilotildees Londrina v8n I p47-69janjun 2003

Abstract

The current process of economic and financiaI globalization has elicited contradictory answers in the formulation of criminal policies by State bureaucracy On the one hand under strong influence of neoclassical economic thought there appears in the United Kingdom the theory of crime normalization qualifying the criminal act as a rational choice option a matter of opportunity according to which delinquents rational1y calculate their actions Such theory proposes to replace the classical model of criminal policy which relates the penal practice to the figure of the other the abnormal by a new model of risk society which sees a professional career in criminal acts On the other hand there appears in the United States the movement in defense of law and order which proposes no tolerance to crime by the amplification of penal right and the recrudescence of the State criminal answer For the defenders of decriminalization and penalabolitionism the utopia of control society which favors the increase of punisbment and target changes to administer crime ignores the existence of a society with no penalties which is manifested through the dark cipher the difference between reported infractions to the police and those really judged

Key words globalization state crime punishment decriminalization penalty abolishment

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Abstract

The current process of economic and financiaI globalization has elicited contradictory answers in the formulation of criminal policies by State bureaucracy On the one hand under strong influence of neoclassical economic thought there appears in the United Kingdom the theory of crime normalization qualifying the criminal act as a rational choice option a matter of opportunity according to which delinquents rational1y calculate their actions Such theory proposes to replace the classical model of criminal policy which relates the penal practice to the figure of the other the abnormal by a new model of risk society which sees a professional career in criminal acts On the other hand there appears in the United States the movement in defense of law and order which proposes no tolerance to crime by the amplification of penal right and the recrudescence of the State criminal answer For the defenders of decriminalization and penalabolitionism the utopia of control society which favors the increase of punisbment and target changes to administer crime ignores the existence of a society with no penalties which is manifested through the dark cipher the difference between reported infractions to the police and those really judged

Key words globalization state crime punishment decriminalization penalty abolishment

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